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Ella Shohat Robert Stam Critica da imagem eurocéntrica Multiculturatismo erepresentasao traducao Marcos Soares ‘COSACNAIFY 198 combinacio entre ceticismo cognitivo elevado ¢ quietude politica que con- dduz incapacidade. Na verdade, a Guerca do Golfo revelon assimetrias essen- ciais no modo como a falta de profundidade do pés-moderno é sentida, Tais assimetrias nfo se limitam somente & experiéncia da televisio ¢ da guerra, expandindo-se em direcao aos combatentes ¢ espectadores envolvidos em lados opostos da guerra. Alguns grapos assistiram & guerra de uma distancia segura, 2 passo que outros a experimentaram ao lado da morte, da mutila- fo, da doenca e da fome. A tecnologia tanto melhorou a qualidade da visd0 ¢ da audicao, quanto as cbliterou. Como observa Jonathan Schell, os ame- ricanos travaram a guerra “em trés dimens6es’, 20 passo que o inimigo, “a cxemplo dos participantes de certos jogos geométricos, foi encurralado em das dimensées [... Nés matamos ¢ eles morrem, como se titds estivessem ‘combatendo seres humanos"* Se 0 pés-modernismo disseminou pelo globo a sensagéo telemitica da midia do Primeiro Mundo, mal conseguiu abalar as relag6es de poder que ‘marginalizam, desvalorizam, e constantemente massacram povos e culturas diferentes. Radicalmente a-histrica, 2 explicagio de Baudrillard nao consi- era que o tempo é palimpséstico;vivernos em muitas épocas,e no apenas na “nova" era da propaganda e da midia, No caso da Guerra do Golfo, tecnologia de iltima goracio foi posta « servigo de idéias extraidas de fontes milenares, das Cruzadas cristis contra 0s mulgumanos as “gucrras selvagens” contra os fndios. Na Guerra do Golo, o exterminio em massa ¢ a descontinuidade ra- dical entre 0s vivos e os mortos sevelam as limitagdes de um mundo visto somente através do prisme do simulacro. 4 Vet Jonathan Schell Modern Might, Ancient Arrogance’ Nawiday, 12 fr 1990 B86 146 Paraler als sobre a Guerra do Gala, ver Rober Stam, “Mebiling Fictions: The Gulf Wat, ‘the Media and the Recruliment ofthe Spectator’ Publ: Culture 2 prmavers de 1992 eta passage fo esrta antes da publica da obra Unertcal Theory: Postmodern, Itl= ecuas andthe Gulf War, Ambers, University of Massachasets Press, 192, de Chropher [Nozzis que aborda oasnunto de modo similis embore no idétic Fatamos de pleno acordo comaciticade Nomis er reap 'eumplidadeideolica que existe entre. a doutrina sattueista extrema ov iraionlinta ee rte de vigor mole pltco daguele ex vores vera terse levantndo contra at ages exreutadas am seus propos nome (p. 27) 4. Tropos do império No universo do discurso colonialista, metiforas, tropos e motivos alegéricos cexerceram um papel fundamental na “figuragio” da superioridade enropéia Segundo Hayden White, 0 tropo ou emprego das palavras em sentido figu- rado é“e alma do discurso’ mecanismo sem o qual o discurso ndo pode fazer ‘6 seu trabalho on atingir seus objetivos:* Embora os tropos tenham algo de ‘epressivo, uma vez que sio mecanismos de defesa contra o sentido literal les também representam vias de contestacio, pois cada um deles est sujeito A perpetuagio, & rejeigio ou 2 subversio.* Vejamos, por exemplo, o conceito de rasa, 0 qual pode ser compreendido nao tanto como uma realidade, mas ‘como tum tropo. Como Henry Louis Gates J. observou, esse conceito seria um tropo de diferenga. A parte a associagio de “racs’ com metaforas de pedigree « criagdo de cavalos, a palavza também ¢ empregada, de modo figurado, em tuma espécie de exagero esquemitico: as pesso2s nao séo lteralmente pretas, vermelhas, brancas ou amarelas mas exibem, a bem da verdade, um amplo 1 Hayden Whit, Tropics of Dcours, Baliemore, Maryland, Johns Hopkins University Pes, 1978.p.2 12 Sobrea intexpretacio do carter represivo dos wopos ver Harold Bloom, A Map of Mira ing Nora York, Oxtord University Pres975 pst (im portaguts: Un mapa da destin, aad, de Thelma Médic NSbrege, Rio de Janel, Imago, 1995. 199 espectro de tons nuangados. Isso, no entanto, nfo impediu Hollywood de literalmente pintar as atzizes (Sarita Montiel, por exemplo, em Renegando 0 ‘meu sangue {Run of the Arrow],1957) com maquiagem de tons avermelhados, conforme as convengGes raciais. Ainda que inconfundlvel, a nogio de cores, 6 em si mesma ~ um tropo; na verdade, algumas pessoas “negras” so mais, dlaras que algumas pessoas “brancas Um tropo correlato & a nasi de “des- cendéncia racial sangiines’, que tem servido historicamente para significar fliagao religioss (“sangue judew), classe social "sangue azut”), acionalidade (sangue alemao”)¢ raca (“sangue negro"). Ainda assim, a naturezafigurada da nocio de descendéncia racial sangéinea” ndo impediu o Exéreito americano de, durante a Segunda Guerra Mundial, separar plasma de sangue “negro” do plasma de sangue “branco’ Preacupagdes com outros tipos de miscigenagbes, com a troca de outros fiuidos, foram transferidas para a esfera da“descendén- cia racial sangitines” propriamente dita. Apesar de sua natureza quaseficticia, ‘topos raciais desempenham papéisefetivamente reals no mundo. ‘Assim, operagdes de caréter tropoligico formam um tipo de substrato metaférico no interior do discurso imperial, Um tropo colonial essencial foi © da“animalizagio” Enraizado em uma tradigéo religiosa efiloséfica que tra ou fronteiras bem demarcadas entre 0 animal e o humano, esse tropo teve a fangao de suprimir todas as caracteristicas semelhantes ou relativas a0 animal {que porventura constitufssem 0 eu, Para Fanon,o discurso colonial sempre re- corte ao bestidrio.O discurso colonial/racista representa os colonizados como bestas selvagens em virtude da incapacidade desses sujeitos de controlarem sua libido, de se vestirem apropriadamente, de constrairem habitagGes outras ‘que no cabanas de barro parecidas com ninhos e tocas, O discurso colonial ‘estabeleceu um elo entre “individuos selvagens ¢ animaissilvestres, ambos criaturas ferozes vagando em “terras nio-habitadas’. O ex-presidente norte nericano Andrew Jackson, por exemplo, incitou suas tropas a arrancarem 03 ‘ndios de suas ‘tocas”e matarem suas“mulherese filhotes"? Os judeus, por sua ‘vez, foram representados pela propaganda narista como vermes, © processo 45 Gtado em Davi Stannard Aertcan Holocaust: Cours and the Conquest ofthe New Worl Nova York, Oxfer University Pest. 1992 através do qual 0 poderoso mito da ‘cadeia biologics” tornou-se uma questdo racial levou os cientistas & busea do"elo perdido” entre animais superiores, st postamente 0s macacos,¢ eres humanos inferiores, a saber, os negros. Final mente, a metéfora da "sobrevivéncia do mais forte’, criada pelo darwinismo social, transferiu uma nogio da rea da zoologia pare 0 universo do género © da raga. De modo sub-repticio, otropo que animaliza tudo ¢ todos continua 4 assombrar o discurso da midia em relaggo aos pobres e sem teto, em sua ‘aioria pessoas de cor. “Inadequadas” 4 sobrevivencta, tis pessoas seriam -merecedoras da vida miserével dos “pobres, desvalidos e desgracados’ © processo de animalizagio faz parte do mecanismo mais ample e di- faso da naturalizagSo, ou seja, a redugdo do elemento cultural ao biolégico, associando assim o colonizado a fatores vegetativos ¢ instintivos em vez de associd-lo a aspectos culturais ¢ intelectuais,“O Homem torna-se Homem ‘em oposicio & Natureza”, como observa James Snead, ¢ “o Negro representa ‘0 Homnem Natural em toda sua selvageria e rebeldia’ Os povos color sao representados como corpos em ver dle mentes. A decorréncia logica da ‘visio do mundo colonizado como a esfera da matéria-prima, em oposiga0 20 universe manufaturado e da atividade mental, é considerar 0 sujeito coloni- zado sob a perspectiva da atividade fisica, em contraposigdo a uma posstvel atividade mental. Os tropos coloniais ¢ fopoi do discurso colonial também apresentain especificidades regionais. Eles associam e América Latina, eespe- cialmente as mulheres latino-americanas, a epitetos verbais que evocam calor tropical, violencia e paixto. Desse modo, Lupe Velez torna-se“a mexicana que cospe fogo", Acquanetta é 0 “vulcio venemelano’, Olga San Juan € o“pote de pimenta porto-riquenha’ e Maria Antonieta Pons é 0 “furactio cubano’, Pro- ‘ico ¢ miltiplo, o discurso colonial adota retoricas diversas e até contradité- rias, que vatiam de acordo com a regio, com o periodo histérico e com as necessidades ideolégicas do momento. Condena tanto o mundo arabe pelo ados 4 Ver Geonge L Mose, Toward the Final Solution: A SBstory of European Racism, Londtes, Dent, Temes Saeud “Repetition as Figure of Blac Culture em Rastll ergusca, Martha Geer, Trinh T Mink-ha e Corel Wes (orgs) Out there: Marginalzation and Contemporary Cl fares Canbridge, Maseachosets, a7 Frss1990. Avimal iagio eric: Jesephine Baker em VErus negro (Zau-Z0), cexcesso na indumentéria (0 véu), quanto o universo indigena pela economia ra vestimenta (a nudez). Se por um lado esse discurso colonial representa ‘© continente africano como hipermasculino, excessivamente corporal ¢ in- suficientemente abstrato, a Asia é represeniada como sonhadora, feminina ‘e demasiadamente abstrata, A Africa seria uma crianea ¢ a Asia, um velho franzino, a0 passo que a Europa sempre maniérn wnta vantagem comparativa. “Tanto a Asia quanto a Africa sio vistas como essencialmente deficientes, ao passo que a Europa sempre permanece no dpice dessa hierarquia de valores. Enquanto isso, o tropo da infantilizacao representa os colonizadas como se corporificassem um estigio primitivo do progresso humano individual oa do vasto desenvolvimento cultural. Na obra de Henan hé mengdes a “eterna infancia das ragas néo passives de perfeicio’® Racist cientificos tentaram “provar” que negros adultos eram, anatOmica ¢ intelectualmente, idénticos is criancas brancas” O negro que entra em contato com os brancos, de acordo com um romance belga de 1868, ‘perde seu cardter bérbaro, mantendo so- :mente as qualidades infantis dos habitantes da florests* O costume racista de ‘chamar homens colonizados de“meninos’, bem como o tique de fala que per- mite alta burguesia zesvalar para um discurso infantilizado quando disloga ‘com negros, éa marca lingiistica dessa atitude. “Quem € 0 garoto ao piano?” Bergman pergunta a Bogart em Casablanca (1942), referindo-se a Dooley Wilson, um negro adulto, Shirley Temple, a menina que dé ordens 20 adulto Bill Robinson em A pequena rebelde (The Littlest Rebel 1935), transforma esse tropo em mise-en-scéne cinematogeéfica. (Claudia, a personagem de Toni Mortison no livre O ofho mais azud, mutre um édio especial por Shirley ‘Tem- pple porque ela havia dangado com Bojangles, um amigo muito querido, um tio,tim pai) Para os indios, o tropo da infantilizagao assumiut uma forma esta- tutaria; seu cardter supostamente infantil os calocou sob“custédia do Estado” [Até 1988, 08 indios brasileiros, em virtude do seu estatuto legal como adoles- {6 Ernst Renan, The Future of Slnce, Boston, Robes Roberts, 893, p13. 2 Ver Stephen Jay Gould, The Mlameasre of Man, Nove Yk, WW. Norton, 981.40. 18 Citado em fan Peterse, White on Black Image of Aflea and Blacks in Western Popular Culture, New Haven, Cnectiat, Yale University Pres. 1992 P83. 203 304, \egetalnagzaexétiea:Carmen Manda como deusaéaferlidade em Erte loura 62 rmerena 953) centes,ndo podiam representar& si proprios em filmes. Foi somente a partir dessa data que @ nova Const 120s adultos. 0 brasileira reconheceu os povos indigenas © tropo da infantiizacao também pressupde a imaturidade politica dos povos colonizados out anteriormente colonizadas, vistos como Calibans ~ vt timas daguilo que Octave Mannoni chamou de “Complexo de Préspero’, ou soja, uma dependéncia congénita em relagéo & lideranga dos brancos euro- pous. A sessdo do congresso conduvida por negros em O nascimento de uma nnagio (The Birth of a Nation, 1915), ma qual legisadores negros descalgos mas- tigavam coxas de galinha ruidosamente e bebiam ulsque em grandes goles, projeta uma imagem de imaturidade politica dos negros. Ademais, 0 pedido dos brancos aos ativstas negros, defensores dos direitos humanos, para que «estes fossem “pacientes” — ainda que seja racista de um modo menos cruel ~, tinhe como premissa octita a mesma idéia de que os negros eram desprovi dos de msturidade suficiente pare pleitear igualdade. A ideologia do principio dda progressio gradual paternalistica, conhecida como in loco parentis (no Iu ¢gar dos pais), supunha 2 necessidade da tutela brance. Termos como “subde- senvolvimento’ sindnimos diplomaticos para “infant, projetam o tropo da {nfantilizagio para uma escala global. O Terceiro Mundo, um bebé ~ ainda que resultado de mil anos de civilizagao -,nao consegue ainda controlar seu. 207 208 evocou tum processo quase divino de atribuigio de vida e significado ex nihil, Instauraram-se, portanto, como que por obra de Prometeu, ordem no caos € plenitude em meio a privacio. Na verdade,o“complexo de Pr6spero” ocidental ‘tem como premissa o retrato do leste/sul como uma ilha de Caliban, um lugar de privagbes impostas que clama por transformagées engendradas pelo oeste! norte, como na produsio fica da vida a partir da costela de Adto. O herd americano, como observa R.W. Lewis foi elebrado como o Adio anterior & queda, um Novo Homem emancipado da hist6ria (a saber, da his- téria européia), com todo o mundo e tempo 2 sua disposigio:* O Adio ame- ricano ~ ohomem branco sem a Bva, soitério e fundamentalmente inocente, acontemplar 0 oeste -, tornou-se um juiz verbal com a prerrogativa divina de poder nomear.‘Trata-se de uma narrativa que claramente entrelasa os discur- s08 colonial e patriarcal. No Livro de Génesis, a criagéo do mundo teve como conseqiiéncia o surgimento de Ado. Criado a partir da terra (em hebraico, adama), Adio deveria controlar « natureza. Como 0 poder da criacio esta intrinsecamente ligado & habilidade de nomeat, Deus outorga a Adio autori- dade para dar nomes como uma marca do seu poder. Assim, Eva fi “chamada ‘mulher fem hebraico, ichd] porque foi tomada do homem [em hebraico, ich)”. Do mesmo modo, 0 poder de nomear desempenhou um papel fundamen- tal na hist6ria colonial & medida que o descobridor dava nomes aos lugares > esse dscursn Ver ila Shohat, staf ima: East/West and he Polite of Representation, Austin, Univer of Texas Press, parainformaySce sabres discussia de representasio 1 Palestina no cinemas ieralens como represeatagie de gnero, 29 Sobrea tlagio entre mulheres es fronteirasamericanas. ver Annette Kolodny the Lay of the Lande Metaphors as Experience and History in American Life and Lettr, Chapel Hl, University of North Carolina Press, g75:€ The Land before Her Fantasy ond Bsperiens of ‘he Amerie Prontiers, 630-860, Chapel Hil Ueiversity of Neth Carolina Press 198, 38 RWLewis, The American Adan lomocence, Tragedy, and Tradition in the Nitec Ce ‘ary, Chicago, University of Chicago Pres, 199. Cariosamente, Hans Blamenberg observa, ‘em slog a Fandls Bacon, que «rearligto do paralio como objetivo histrica deveris ‘er prometio ums facidade magic, Pra ele, 0 conhecimento da ature ext associado A delingfo da condicto paradislaca come domino verbal. Yer Blimenberg, The Lesiinacy ofthe Moder Age, taduzido para ings por Robert Wallace, Cambridge, Masachassts sa Pres, a98 ‘como um sinal de posse (“América em homenagem a Américo Vespticio) ou como indice da perspectiva européia ("Oriente Médio’, “Oriente Distante’). ‘Nomes indigenas “impronunciiveis usados para designar lugares “perifér cos” ¢ seus habitantes, foram ~ com o advento do colonialismo ~ substitufdos por nomes que passaram a distinguir tais lugares como propriedade colonial. “Muitas vezes, essas novas designacdes eram degradantes ou resultavam de identificacdes européias equivocadas. A provincia mexicana hoje chamada de Yucatin (expresso maia que significa “nd sabemos do que voeés estio falando”) receben esse nome quando os espanhéis confundiram a reagio de confusio ¢ espanto dos habitantes locais com o nome do lugar. Os sioux, que se autodenominam dakota (“aiados”), foram designados por meio de uma condensagio francesa da palavra ofibwa nadowe-is-iw (“cobra “inimigo”) Os navajo (“ladrdes”), assim chamados pelos espanhiis,estio pleiteando re conhecimento oficial como dineh ("0 povo"), seu nome original ‘A nogio do Adio americano obliterou o fato de que ja havia habitentes no Novo Mundo quando os colonizadores chegaram, Estimativas ceautelosas ssugerem o encontro de aproximadamente 75 milhes de nativos"® com um co- lonizador que mal havia despejado sna profunda bagagem cultural do Velho ‘Mundo, Nesse contexto, a idéia de “virgindade” ~ que se refletiu no nome das thas Virgens”- deve ser compreendida em relacao diacritica com a metifora cram apenas racistas ou que eles nada tinham de importante para dizer, mas mostrar que o racismo, como o sexismo, tem sua origem nas propria alturas de modernidade filossfica. Ainda assim, alguns pensadores adotaram uma perspectiva diferente O abade Guillzume-Thomas Reynal, autor de LHisioire des deus Indes (1776), convidou os interessados em filosofia a debater a questio ‘A descoberta da América foi uma béngio ou uma maldigéo sobrea humanidade?’ concluindo que, diante das priticas “atrozes” do tréfico de escravos e de destruigio dos ppovos nativos,"apenas uma criatura infernal” concordaria com a primeira op- 40." O mais apaixonado dos filésofos anticolonialista foi Denis Diderot, que em seu Suplemento a viagem de Bougainville preveniu os tatianos contra os curopeus “armados com o crucifixo em uma mao ¢ a espada na outra” que 0s forgariam a “aceitar seus costumes ¢ opinis rot inverte a metonimia colonialista da “fera e selvagemeavisa os afticanos: Em outros escritas, Dide- Fujam, inflizes, fujam! Escondam-se nas florestas! As feras vorazes que vives nelas dio menos assustadoras que o império que agora os ameaga[.]-Ouse-vooes tém coragem, tomem seus machiidos, seus arcos,¢fagam chover suas fechas en venenadas sobre a cabeca desses estrangeiros* Como Montaigne, Diderot inverteu 0 tropo do barbarismo ao tratar os colo- nizadores como os verdadeiros bérbaros, Ele até chegou a se imaginar como ‘um tipo de guerrilheiro anticolonialista avant la lettre, escrevendo em 1781: > Phleanphy and the Order of Kanye, Bloomington Indiana Universi Press 2088 pp. 73, Chad em Kikpatick Sle, The Conquest f Parade: Ch'sopher Colombe he Colen- lan Lagu, Nove York: Aired A, Kopf 990,59. 366-7 [Ein portagués A conguists do Po- rit: Cristo Colombo ese legade, trad. de Ruy Jungenann, Rio de Jnr, Zabus, 1992] 74. Chado em A. Moorehead, The Fal Impact: An Aezount of the ovason ofthe South Pai Harmondowocth, Penguin 1987.35. 75. Citado em Wes Benot, Diderot: de Tathéome & Pant-Colonialisme, Pats, Maspero, 1270, pave 13 ‘Buropeus barbarost O britho de suas empreitadas no me impressiona, Seu s- esto néo esconde sua injustice. Na mine Imaginacio muitas vezesembarquel mum desses navios que os levama pales dstantes, para, uma vex em terra fieme, jntar-me 2 inimigo,tomando armas contra voets,encharcando minha mBo com pepeeeeaty ‘Assim, Diderot antecipa radicais como Sartre, que no preficio de Os con- denados da terva, de Fanon, também denunciou a hipocrisia do moralismo sentimental europeu: Hid um século, a Europa everbera com 2s mximas morais mais sublimes. Afra temidade de todos os homens foi estabelecida em escritosimortas {.]. Mesmo seftimentos imaginirios provocam légrimas no sléncio de nossas salase ainda mais no teatro. Mas o destino fatal de megrs ingelizes no nos toca. Estes si tr alzados, mutilados, queimados,esfequeados, ¢ ouvimos estas histérias friamente, ‘sem emogia. Os tormentos de um povo a quem devemos nostos prazeres nunca atingem nosso coragio”” Enquanto Hame utlizou o termo “natureza” para negar a humanidade do ne- 270, Diderot usow a mesma categoria para demunciar a escravidao coma um “rime contra a natureza’. Mas enquanto Diderot clamava pela insurrei africana contra os colonos europeus, Hegel, em Filosofia da histéria, colocou 4 Africa fora das correntes da historia. Hegel, que nada sabia sobre a Africa, argumentou que esse continente nos forga a abandonar a prépria categoria de uuniversalidade: ‘A Arica ndo fez parte da historia do Mundo, Nio possal movimento ou desen- volvimento, Sous movimentoshistricos ~na parte norte do continente ~ perten- em a0 mundo asiético ou europe [..].Aquilo que compreendemos como Africa 76 Citadoem Beno Diderot, p17, 77 Bod p 209, constitu o Espirito A-Hisidrico, Néo-Desenvolvide, ainda envolto nas condigbes da mera natureza.™ Para Hegel.a dnica relacio fundamental entre os africanos eos europeus rea escravidio, que ele acreitava ser importante para o “aumento de sentimento dhumano entre os negros”” As culturas nativas do México e do Perueram pare Hegel “espiritualmente impotentes” e destinadas a “desaparecer na medida ‘em que se aproxima a razd0"" Do mesmo modo, a China perpetuava uma “existéncia natural vegetative,” enquanto na india 0 Ser Absoluto estava “em tum estado feliz de sonho"™ Hegel conclui que o dominio pela Europa" era“o destino necessirio dos impétios asisticos”® Embora Mars tivesse subvertido as idéias de Hegel em alguns pontos,em outros ele prolongou 0 eurocentrismo da filosofia hegeliana.* Para Mars, as sociedades pré-capitalistas da Asia e das Américas viviam em uma tempo- ralidade historica condenada e estavam destinadas a desaparecer diante do avango produtivo do capitalismo. Como alguns criticos jé apontaram, 0 pen- samento marxista divide com 0 capitalismo a nogdo de produtividade apli- cada ao trabalho humano e & terra." Por outro lado, o positivismo de Comite 78 G.W. Hegel, The Philosophy of History, tra. pars ngs por | Slbre, Nows York, Dows, 1956, pp 91-9. [Em portaguts, Faso da Wisin trad. de Maia Rodrigues Hans Haden, Brass, Ua. 1995] 79. Chado eas Paul Gilroy, The Black Asante, Cambridge, Masachastts, Harvard University ress 1993 pat [Em portugues: O Atintce negro: moderidade e pla carci, tad, de Cid Knipel Morsia, Sho Paslo/Rio de faneivo, Editor 34/2001) 40 Cada em Bofe,Arérea Latina p.20. 1. Hog The Piloephy of History, pay. 4 Tid, pase, a5 Tid, pra, 14. Sobre o orientalis em Mars ver Edward Sed, Orientalism, Nova York, Pantheon, 1979 © Ronald inden, maging Inds, Oxford Bai Blackwell gg, [Em portguas: Orientalism: 0 Oriente comm ivengo do Osideme, trad, Tomas Rosa Bueno, Sto Paulo, Companhia das Letras 1990] 4 Parana erica das prmissascuroctricas do marsimo de uma perspective indigen ver ‘ard Churchill (org), Marsiom andthe Native Americas Boston South End Press, 988, ws BE via 0 “ordem e progresso” da historia humana como algo que se desenvolvia em estigios prevsiveis€ universals. Em Time and the other, Johannes Fabian descrove uma tendéncia parecida na antropologia ~ um desejo de projetar 0 colonizado como um ser que vive em outro tempo, essociado a perfodos an- teriores da existéncia individual (a infineia) ou da hietérie human (primiti- vismo),em oposicéo a uma “modernidade” vibrente.* No século xrx,0 racismo eurocéntrico ganhow uma aura associada i cién- cia como conhecimento “objetive’ livre dos perigos do subjetivo e do con- tingente (Molefi Kete Asante observa que aquilo que passa por objetividade ino é mais do que um senso coletivo da subjetividade européia).” Na mesma época houve © nascimento do racismo biolégico e antigos preconceitos ga- aharam roupagem cientifica. 0 determinismo biologico postulava que dife- rengas socioecondmicas entre racas, classes ¢ sexos eram o produto de tracos genéticos herdados: 0 social se transformou em epifenémeno da biologi. A iistura de racas virou a justifcativa da decadéncia e 0 mestigo, como mostra Jan Pieterse, tornou-se a “personificagéo da dialética entre império © eman- cipagfo, ¢ era temido pelos racstas como uma monstruosidad, um hibrido inférti?" Alguns métodos contemporaneos de avaliagdo psicologica e intelec- tual herdaram ideologias deterministas desse perfodo, especialmente a nogao de que “valor pode ser atribuido a individuos e grupos através da quantifica- cio da inteligéncia“® Todas essa correntes tem em comum um monologismo arrogante: s6 pode existir uma cultura legitima, ume estética, um caminho para a civilizagio “madura’, todas as sociedades podem ser classificadas de acordo com sua progressio na diregéo dessa medida tinica, Na segunda metade do século xn afilosofia racista foi reformulada como {6 Johannes Fabian, He an the Other: How Anthroplogy Makes Is Objet, Nova York Co Iumbis University Pres 98, P55 87. Vee Mole Kete Asante, Kemet, Afrocentricisy and Knowle, Teaton, Ne ere Aftea Word Press, 9909-24 8 Ver Peter, Empice and Emancipation». 360. ‘Ver Stephen Jay Gould The Miumeasure of Man, Nova York, WWE Nesta, 196s p20, Sm portagués A fala macide do omer, tad de Valter Lalli Sigur, 20d, So Pal, Mae- tins Fontes 19991 Cassifcaedo conta: povos do murda 8 “darwinismo social”, Baseada na teoria da evolucio por selegao natural de Da~ ‘rnin essa escola via a competigao econdmica e mesmo a guerra como “testes” de vistude racial, Os determinismos sociais pregavam a “sobrevivéncia do mais forte’, sendo que o “mais fort parecia ser sempre o curopeu, Para Karl Pearson, ocaminho do progresso” estava “repleto dos destrocos das naces’ 1:38 “hecatombes das racas inferiores” se tornaram “os degraus sobre 05 quais a humanidade se levantow na diregéo de uma vida de valores intelectuais € emocionats superiores"" © darwinismo social ofereceu uma versio secular da Providéncia divina: a lgica da extingo natural foi ligada a ume ideologia da hierarquia, que excluia qualquer possibilidade de conversto ou transfor- magia Se ideologia da Inquisicao ainda vislumbrava a possibilidade de“pu- rifcagio” através da conversio, as teorias de limpeza racial do século xtx nao previam sequer esse tipo de salda. Essa foi a ideologia que levou néo apenas aos massacres coloniais, mas também i “Solugo Final” que exterminou dois, tersos dos judeus da Europa. ‘A genética infloenciou a cultura européia do século xrx de forma com- plex, como parte de um aparetho de policiamento das identidades que as protegia da fluidex.andrquica dos intercambios raciais e sexuais. Una mani pela dassificagao e pelas medidas ~ expressa em pseudociéncias como a fre- pologi ea craniometria - fez com que cada detalhe fosse analisaco em nome de bierarguias abstratas, sequindo o crtério da capacidade para a abstragio como sinal de superioridade. 0 cinema europeu, na sua infincia, herdou o discurso racist ¢ colonia- lista eos contornos hist6ricos acabamos de delinear. O cinema, ele proprio produto dis “descobertas cientificas do Ocidente™, tomnou palpével para as plains a narrativa mestra do progresso da civilizagio ocidental’, muitas ve- zesstravés das narrativas biogréficas de exploradores, Como articulagio de uma nova fé na cincia, 0 cinema se via como pice deum novo tipo de cincia interdisciplinar que podia dar acesso a “outros” smundos: podia fazer um mapa do planeta como um cartégrafo, relatar even- nventores e clentstas. se Kl Peuson citado em Random House Historical Famphlet, Social Darwinism Law of Na fareor scan of Repression! Londres, Random House, 2967. p.53 tos como um historiador, escavar 0 passado como um arqueélogo ¢ fornecer uuma anatomia dos costumes de povos “exéticos” como um antropélogo. Em seu papel pedagégico,o cinema hegeménico prometeu apresentar 0 especta~ dor ocidental 4s culturas desconhecidas, aquelas que viviam do “lado de fora’ da histdria.O cinema tornow-se, assim, um mediador epistemol6gico entre © espaco cultural do espectador ocidental eo espaco das culturasrepresentadas za tela, relacionando temporalidades e lugares separados em um tinico ma- mento de exposicio. 339

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