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Capítulo 3

Concepções de território para


entender a desterritorialização

Rogério Haesbaert

O debate sobre os processos de des-re-territorialização, ou seja,


sobre a criação e o desaparecimento dos territórios, constitui,
podemos afirmar, um dos mais relevantes na última década e
promoveu uma espécie de diálogo oculto entre a Geografia e as
demais ciências sociais, preocupadas cada vez mais com a di-
mensão espacial da sociedade. Diálogo oculto porque ele pou-
“cas vezes € explicitado e, acreditamos, pouco se dá de maneira
efetiva. A maioria dos geógrafos discute pouco, de forma direta,
a questão da desterritorialização (explicitada apenas em obras
bem recentes como as de O"Tuathail (1998) e Mitchell (2000),
ou a nossa própria em Haesbaert, 1995), e a imensa maioria dos
cientistas sociais que abordam a questão ignora solenemente o
trabalho dos geógrafos.

Este texto vincula-se a um trabalho de maior fôlego sobre as dinâmicas


ditas de desterritorialização, em desenvolvimento no âmbito do Nureg
(Núcleo de Pesquisas sobre Regionalização e Globalização) do Depar-
tamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense. O autor
agradece aos participantes dos debates efetuados em eventos científicos
em que o tema foi apresentado, especialmente o II Simpósio Nacional!
sobre Espaço e Cultura (Uerj, 2000), o Simpósio Nacional Discurso,
Identidade e Sociedade (PUC-Rio, 2001) e o XX Encontro Naciona!
da Anpur (UFRJ, 2001)
No entanto, devemos reconhecer que vivenciamos hoje um
entrecruzamento de proposições teóricas, e são muitos, por
exemplo, os que contestam a leitura materialista como aquela
que responde pelos fundamentos primeiros da organização so-
cial. Somos levados, mais uma vez, a buscar superar a dicoto-
mia material/ideal, o território envolvendo, ao mesmo tempo,
a dimensão espacial concreta das relações sociais e o conjunto
de representações sobre o espaço ou o “imaginário geográfico”
que também move essas relações.
É por isso que não basta partirmos de posições filosóficas bem
definidas, na medida erh que diversas proposições conceituais não
se enquadram com clareza em uma única grande corrente teórica,
como ocorria no passado. Apesar dos riscos de seus ecletismos,
um dos legados do chamado pós-modernismo contemporâneo
é justamente esta abertura para um maior cruzamento de in-
fluências teóricas, sem esquecer que se trata de um movimento
multifacetado (Haesbaert, 1997), que incorpora inclusive autores
que mantêm um “pé” em correntes filosóficas bem estruturadas
(como é o caso do materialismo histórico [“e geográfico”] em
autores como Harvey, 1989, e Soja, 1989). Períodos de crise e
de mudança social mais acentuadas como o nosso exigem mui-
ta cautela.frente aos grandes conjuntos teóricos pautados numa
coerência histórica que, pelo menos em parte, pode já estar su-
perada. Assim, temos como preocupação primeira não tanto en-
contrar e destacar as eventuais incoerências teóricas do conceito,
mas “mapear”, respeitando suas complexidades, as várias frentes
com que o território foi definido dentro dos grandes referenciais
anteriormente enunciados.

Território numa posição materialista: território e natureza

Dentro do par materialismo/idealismo, podemos dizer que a ver-


tente predominante é, de longe, aquela que vê o território numa
perspectiva materialista, ainda que não obrigatoriamente “deter-
minada” pelas relações econômicas ou de produção, como numa
leitura marxista mais ortodoxa que foi difundida na Geografia.
A opção pelo “material” não é privilégio dos geógrafos. Até mes-
mo alguns antropólogos, tão preocupados em enfatizar a impor-
tância da dimensão cultural ou simbólica da sociedade, deixam
clara esta opção. É como se eles, mesmo priorizando o simbólico,
ao se reportarem a dimensão mais concreta apelassem para Ca-

tegorias como a de território, vendo-o fundamentalmente nesta


perspectiva. É o caso de Maurice Godelier, ao afirmar:

Designa-se por território uma porção da natureza e, portanto,


do espaço sobre o qual uma determinada sociedade reivindica
e garante a todos ou parte de seus membrosdireitos estáveis
de acesso, de controle e de uso com respeito à totalidade ou
parte dos recursos que aí se encontram e que ela deseja e é
capaz de explorar (1984, p. 112).

Ou:

Denominaremos “território” a porção da natureza e do espaço


que uma sociedade reivindica como o lugar em que os seus
membros encontrarão permanentemente as condições e os
meios materiais de sua existência (ib., p. 114).

À ligação do território com a natureza é explícita e, nessa li-


gação, o território se torna, antes de mais nada, uma fonte de
recursos, “meios materiais de existência”, Apesar de ser uma
Proposição com pretensões de universalidade, trata-se clara-
mente de uma noção de território bastante influenciada, como
ocorre entre muitos antropólogos, pela experiência territorial
das sociedades mais tradicionais, em que a principal fonte de
recursos provém da natureza, da terra (por exemplo: disponi-
bilidade de animais e plantas para coleta, fertilidade dos solos
e presença de água para a agricultura).
Hoje, em muitos lugares do mundo, estamos bem distantes de
uma concepção de território como “fonte de recursos” ou como
simples “apropriação da natureza” em sentido estrito. Isto não
significa, contudo, que estas características estejam completa-
mente superadas. Dependendo das bases tecnológicas do grupo
social, sua “territorialidade” ainda pode carregar marcas profun-
das de uma ligação com a terra, no sentido físico do termo.
O mesmo ocorre com áreas em que alguns fenômenos naturais
(vulcanismos, abalos sísmicos, furacões) são profundamente rees-
truturadores da vida social.
É comum, mesmo entre os geógrafos, negligenciar a relação
entre sociedade e natureza” na definição de espaço ou de terri-
tório. Por força de uma visão antropocêntrica de mundo, menos-
prezamos ou simplesmente ignoramos a dinâmica da natureza
que, dita hoje indissociável da ação humana, na maioria das
vezes acaba perdendo totalmente sua especificidade. Em certo
sentido, podemos até mesmo afirmar que também existe uma
espécie de “desterritorialização natural” da sociedade, na me-
dida em que fenômenos naturais como vulcanismos e terremo-
tos são responsáveis por mudanças radicais na organização de
muitos territórios. A recente erupção de um vulcão no Congo,
obrigando dezenas de milhares de pessoas a abandonar a cidade
de Goma, é um dos inúmeros exemplos deste processo. Mesmo
sabendo que os efeitos desta “desterritorialização” são muito
variáveis de acordo com as condições sociais e tecnológicas das
sociedades, não há dúvida de que temos aí uma outra “força”,
não-humana, interferindo na construção da territorialidade.
Mesmo que não denominemos esses processos como desterrito-
rialização, em sentido estrito, pois seria absurdo considerarmos a
existência de territórios “naturais”, não definidos por relações so-
ciais, não podemos ignorar este tipo de intervenção, pelo simples
fato de que o homem, por mais que tenha avançado tecnicamente,
não conseguiu dominar uma série de fenômenos ligados direta-
mente à dinâmica da natureza. Dentro da dimensão “material”
do território é necessário, portanto, considerar essa dimensão
“natural”, que em alguns casos ainda se revela um de seus com-
ponentes fundamentais.

2. É importante lembrar que muitos =:-tores consideram “natureza” num sen-


tido muito amplo, tornando-se assim, praticamente, sinônimo de “mundo
físico” ou de “experiência sensorial”. Whitehead (1993), por exemplo, em
seu livro O conceito de natureza, define-a como “aquilo que observamos
pela percepção obtida através dos sentidos” (p. 7). Optamos aqui por uma
interpretação mais estrita, com o único objetivo de enfatizar a existência
de uma dinâmica da natureza de algum modo distinta (mas nunca dis-
sociada) da dinâmica da sociedade.

as
Além disso, se levarmos em conta a discutível tese de autores
que ampliam de tal forma a noção de poder que ela acaba ultra-
passando os limites da sociedade, é possível extrapolar dizendo
que o território, mesmo na leitura que privilegia sua vinculação
a relações de poder, também incorpora uma dimensão “natura!”
em sua constituição. Reconhecer a importância de uma dimen-
são “natural” na constituição de territórios não significa, entre
tanto, concordar com a posição de autores que, como Blackburn
(1992),* estendem a noção de poder para a esfera'da natureza.

Território numa perspectiva idealista: território e cultura

Mesmo Maurice Godelier, na sua posição “materialista” de ter-


ritório (coerente com a influência que o marxismo tem em sua
obra), apresenta importantes nuanças, possibilitando também
a incorporação de uma dimensão ideal ou “apropriação simbó-
lica”, pois “o que reivindica uma sociedade ao se apropriar de
um território é o acesso, o controle e o uso, tanto das realida-
des visíveis quanto dos poderes invisíveis que as compõem, e que
parecem partilhar o domínio das condições de reprodução da
vida dos homens, tanto a deles própria quanto a dos recursos
dos quais eles dependem” (p. 114, grifo nosso).
3. Para Blackburn, “o 'poder' pode ser atribuído a propriedades da natureza
tanto quanto a propriedades da espécie humana, tais como o poder muúl-
tiplo do meio ambiente sobre as comunidades humanas. De fato, a emer-
gência de nossa espécie e da própria evolução da vida atestou o poder da
seleção natural. 'Poder', num sentido geral, pode ser provisoriamente de-
finido como a habilidade de criar, destruir, consumir, preservar ou reparar.
Os poderes produtivos acessíveis à sociedade. que para Marx são sinônimos
de forças produtivas, desembocam sobre os da natureza, como a fertilidade
natural do solo e a procriatividade do mundo animal. Os poderes destruti-
vos da natureza incluem a entropia, terremotos c relâmpagos, seus poderes
preservadores e restauradores abrangem sistemas de imunidade biológica,
coberturas florestais e lava solidificada. É numa tensão criativa com esses
poderes fundamentais de transformação e preservação que a história hu-
mana tem se desenrolado”. O autor define ainda o “poder humano” como
“a habilidade de [realizar as intenções ou potencialidades humanas de) criar,
destruir, consumir ou preservar coisas, tais como independência e autor-
dade na esfera politica, rqueza na econômica, ou poder na esfera militar,
através da intervenção nesses poderes da natureza” (tyy2, p. 287;
Há, entretanto, autores que enfatizam mais abertamente a
perspectiva ideal-simbólica do território. Na Geografia, onde
a dimensão cultural é mais bem apreendida por meio de con-
cepções como lugar e paisagem, a leitura cultural ou simbólica
de território é minoritária. Ainda assim, encontramos alguns
autores que enfatizam esta abordagem. É o caso, por exemplo,
de Bonnemaison e Cambrêzy (1996). Para eles, a lógica terri-
torial cartesiana moderna, pautada no “quebra-cabeça” dos Es-
tados-nações, que não admite sobreposições e dá pouca ênfase
aos fluxos, ao movimento, é suplantada hoje pela

lógica culturalista ou, se preferirmos, pós-moderna, que a geo-


metria não permite medir e a cartografia, menos ainda, repre-
sentar. Nesta [...] perspectiva o pertencimento ao território
implica a representação da identidade cultural e não mais a
posição num polígono. Ela supõe redes múltiplas, refere-se
a geossímbolos mais que a fronteiras, inscreve-se nos lugares
e caminhos que ultrapassam os blocos de espaço homogêneo e
contínuo da “ideologia geográfica” (termo de Gilles Sautter
para definir a visão de espaço cartesiana moderna).

Para esses autores há um enfrentamento, hoje, entre a lógica


funcional estatal moderna e a lógica identitária pós-moderna,
contraditórias, reveladoras de dois sistemas de valores e duas éti-
cas distintas frente ao território. Embora não seja uma simples
questão de mudança de escala, também há uma reválorização
da dimensão local. O território reforça sua dimensão enquan-
to representação, valor simbólico. A abordagem utilitarista de
território não dá conta dos principais conflitos do mundo con-
temporâneo. Por isso “o território é primeiro um valor”, pois “a
existência e mesmo a imperiosa necessidade para toda socieda-
de humana de estabelecer uma relação forte, ou mesmo uma
relação espiritual com seu espaço de vida, parece claramente
estabelecida” (p. 10).
Prosseguindo, Bonnemaison e Cambrezy afirmam:

O poder do laço territorial revela que o espaço está investido


de valores não apenas materiais mas também éticos, espiri-
tuais, simbólicos e afetivos. E assim que O território cultural
precede o território político e com ainda mais razão precede
o espaço econômico (ib., p. 10).

Nas sociedades agrícolas pré-industriais e nas sociedades


“primitivas” de caçadores e coletores,

o território não se definia por um princípio material de apro-


priação, mas por um princípio cultural deidenrtificação ou,
se preferirmos, de pertencimento. Este princípio explica a
intensidade da relação ao território. Ele não pode ser perce-
bido apenas como uma posse ou como uma entidade exterior
à sociedade que o habita. É uma parcela de identidade, fon-
te de uma relação de essência afetiva ou mesmo amorosa ao
espaço (ib., p. 13).

Os autores enfatizam que a ligação dos povos tradicionais ao


espaço de vida era mais intensa porque, além de um território-
fonte de recursos, o espaço era “ocupado” de forma ainda mais
intensa através da apropriação simbólico-religiosa.

Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo,


habitamo-lo, impregnamo-nos dele. Além disso, os viventes
não são os únicos a ocupar o território, a presença dos mortos
marca-o mais do que nunca com o signo do sagrado. Enfim,
o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas
ao ser. Esquecer este princípio espiritual e não material é se
sujeitar a não compreender a violência trágica de muitas lutas
e conflitos que afetam o mundo de hoje: perder seu território
é desaparecer (ib., p. 13-14).

Embora se refiram, sobretudo, às sociedades tradicionais,


Bonnemaison e Cambrêzy deixam clara a primazia que conce-
dem à natureza simbólica das relações sociais na sua definição
de território. A força de sua carga simbólica é tamanha que o
território é “um construtor de identidade, talvez o mais eficaz
de todos” (b.,, Pp. 14).
Território e integração entre diferentes dimensões sociais

Encontramos aqui outro debate muito relevante: aquele que en-


volve as dimensões priorizadas na definição de território. Nesse
sentido, há duas tradições principais na construção do conceito:
uma, já ultrapassada, que concedia privilégio à dimensão natural,
biológica, do território (e que nasce com a “territorialidade” dos
animais, na etologia);* outra, ainda muito presente, que prioriza
as relações de poder, a condição política do território, principal-
mente aquela ligada ao Estado nação moderno.
Autores como Bonnemaison e Cambrêzy, ao privilegiarem a
dimensão simbólico-cultural, colocam-se claramente numa ter-
ceira vertente, minoritária, mas com crescente influência num
mundo em que as questões culturais voltam à tona com força
redobrada. Uma outra abordagem, por fim, é aquela que prio-
riza a dimensão econômica. Pela forma com que foi trabalhada,
em geral não aparece isolada, mas acoplada a discussões sobre o
domínio político do espaço a serviço de interesses econômicos.
As questões do controle, do “ordenamento” e da gestão do
espaço têm sido sempre centrais nas discussões sobre território.
Como elas não se restringem, em hipótese alguma, à figura do
Estado, e hoje, mais do que nunca, precisam incluir o papel ges-
tor das grandes corporações industriais, comerciais, de serviços
e financeiras, é imprescindível trabalhar com o território numa
interação entre as múltiplas dimensões sociais.
Essa vocação contemporânea para uma visão integradora do
espaço social em suas diversas perspectivas é bastante visível,
principalmente no âmbito da Geografia, com o território desem-
penhando um pouco o papel que cabia à região como o gran-
de conceito integrador na perspectiva clássica desta disciplina.
Entre os conceitos geográficos pode-se afirmar que o de região

4. Essa tradição “naturalista” do território não está totalmente ultrapassa-


da no âmbito das ciências biológicas, onde se fala, por exemplo, numa
espécie de território como “espaço vital” para a sobrevivência de cer-
tos animais. O gato, por exemplo, pode desenvolver uma “ansiedade de
desterritorialização” quando deixa seu espaço habitual de reprodução.
Ver a esse respeito, na perspectiva da Ciência Política, o processo de
um

construção da idéia de território em Alliês (1980).

5e
foi o mais pretensioso, principalmente na análise lablacheana.
Embora também haja uma tradição, por exemplo, em privilegiar
os processos econômicos na construção de regiões, sem dúvida a
idéia de fundo é, sempre, a de que haveria um elemento estrutu-
rador, o fundamento que serviria de amálgama na organização do
espaço regional, seja ele a natureza (para o “primeiro” La Blache),
a economia (urbana, no “segundo” La Blache)* ou a cultura.
Um pouco dessa leitura da região clássica se reproduz hoje
nos debates sobre o território, alguns elegendoo poder políti-
co, outros os símbolos da cultura, outros a base econômica,a
fim de demonstrar os fundamentos da organização territorial
da sociedade. É evidente que, dependendo da perspectiva, te-
remos ou não maior visibilidade daquilo que denominamos de
desterritorialização. Uma das questões mais sérias, aqui, é que,
ao contrário da região na versão lablacheana do início do sécu-
lo, dificilmente encontramos um espaço capaz de “integrar” de
forma coesa as múltiplas dimensões ou lógicas: econômica, po-
lítica, cultural, natural. Daí o fato de alguns defensores de uma
visão totalizante ou integradora de território advogarem a sua
superação. É o caso de Chivallon (1999) que, ao definir territó-
rio como “uma espécie de “experiência total' do espaço que faz
conjugar-se num mesmo lugar os diversos componentes da vida
social”, e questionando a possibilidade, hoje, desta “experiência
total”, propõe a sua substituição pela noção de espacialidade.

Território e história

Da mesma forma que pode ou não ser um conceito que integra


todas as esferas sociais, o território, numa perspectiva histórica,
pode também ser amplo, generalizável a ponto de abranger toda
a história humana — constituindo assim um de seus componen-
tes “ontológicos” —, ou ser visto de forma mais restrita, relacio-
nando-se apenas a determinados contextos histórico-sociais.
Todas essas abordagens encontram-se combinadas. Assim, se
privilegiamos as questões políticas e, dentro delas, a questão do

6. Sobre essas diversas fases do pensamento lablacheano, ver Robic e Ozouf


Marignier (1995).

53
Estado, o território pode ficar restrito às sociedades modernas
articuladas em torno de Estados nações. Nesse caso, a crise do
Estado seria a principal responsável pelos atuais processos de
desterritorialização. Trata-se de uma das leituras mais restri-
tivas de território.
Para outros, o território compõe de forma indissociável a re-
produção dos grupos sociais, no sentido de que as relações so-
ciais são espacial ou geograficamente mediadas. Podemos dizer
que essa é a noção mais ampla de território, passível assim de ser
estendida a qualquer tipo de sociedade,
em qualquer momento
histórico, e podendo igualmente ser confundida com a noção
de espaço geográfico.
Numa perspectiva intermediária em termos de problemáti-
cas às quais se vincula, mas que ainda assim pode ser estendida
a toda a história humana, temos o território definido a partir
das relações de poder mediadas pelo espaço. Nesse caso, mister
se faz definir de que forma estamos concebendo “poder”, pois
dentro de uma perspectiva histórica ele muda de configuração —
por exemplo, assumindo hoje uma carga simbólica muito maior
(o “poder simbólico” aludido por Bourdieu, 1989).
O território, de qualquer forma, define-se antes de tudo com
referência às relações sociais (ou culturais, em sentido amplo) em
que está mergulhado, relações estas que são sempre, também, re-
lações de poder. Esse sentido relacional do território também está
presente na abordagem mais materialista de Maurice Godelier.
Para ele, “as formas de propriedade de um território são ao mes-
mo tempo uma relação com a natureza e uma relação entre os ho-
mens”, sendo esta última “dupla: uma relação entre as sociedades
ao mesmo tempo que uma relação no interior de cada sociedade
entre os indivíduos e os grupos que a compõem” (1984, p. LIS).

Território: sentido absoluto e relacional

Outro debate teórico central sobre o território e, consequente-


mente, sobre a desterritorialização, envolve seu caráter “abso-
luto”, como um a priori ou como coisa (substrato concreto), ou
“relacional”, como fruto de relações sociais ou, de modo mais
específico para alguns autores, de relações de poder.
Embora muitos materialistas, em especial os mais mecanicis-
tas, possam simplificar, afirmando que o território se restringe à
base espaço-material sobre a qual se reproduz a sociedade, outros,
notadamente muitos materialistas dialéticos, dirão que o territó-
rio tem como um de seus componentes essenciais o conjunto de
relações sociais. Aqui, entretanto, as divergências também podem
ser marcantes, desde aqueles que concedem à materialidade do
território, seu substrato físico, um papel simplesmente acessório
ou quase nulo (uma espécie de palco, reflexo ou produto) diante
das relações sociais (vistas em geral de forma dicotômica em rela-
ção à materialidade mediante a qual se realizam), até aqueles que
colocam este substrato físico como mediador, componente fun-
damental ou até mesmo determinante dessas relações (o espaço
como instância social em Santos, 1978, e Morales, 1983).
Entre os autores que enfatizam ó sentido relacional do territó-
rio destacamos Souza (1995, p. 97) em sua crítica a Raffestin:

Ao que parece, Raffestin não explorou suficientemente o veio


oferecido por uma abordagem relacional, pois não discerniu
que o território não é o substrato, o espaço social em si, mas
sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente
delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referen-
cial. (Sem sombra de dúvida pode o exercício do poder depen-
der muito diretamente da organização espacial, das formas
espaciais; mas aí falamos dos trunfos espaciais da defesa do
território, e não do conceito de território em si.)

Souza enfatiza esse caráter relacional, tendo o cuidado de não


cair no extremo oposto, o de desconsiderar completamente o pa-
pel das formas espaciais na construção das relações sociais. Diante
de nossa preocupação com a “espaciologia” (Souza, 1988) ou com
o determinismo das formas espaciais, devemos ter cuidado para
não sugerir, num outro extremo, um excesso de “sociologização”,
de alguma forma “desgeografizando” o território ao sobrevalorizá-
lo como relação social e menosprezá-lo como base material que
envolve, na condição de constituinte indissociávei, 2csas relações.
Se a virtude, também aqui, está “no meio”, não é nada fácil en-
contrá-la e, menos ainda, praticá-la em nossos estudos.
UN
un
Podemos afirmar que o território é relacional não apenas
no sentido de incorporar um conjunto de relações sociais, mas
também no sentido, destacado por Godelier, de envolver uma
relação complexa entre processos sociais e espaço material, seja
ele visto como a primeira ou a segunda natureza, para utilizar
os termos de Marx. Além disso, outra consequência muito im-
portante ao enfatizarmos o sentido relacional do território é a
percepção de que ele não significa simplesmente enraizamento,
estabilidade, limite e/ou fronteira. Justamente por ser relacional,
o território inclui também o movimento, a fluidez, as conexões.
Como veremos mais adiante, isto é muito importante na crítica
a algumas posições contemporâneas sobre o domínio dos pro-
cessos de desterritorialização.
Como relação social, uma das características mais importan-
tes a ser trabalhada sobre o conceito de território é a sua his-
toricidade. Voltando a esse atributo, é imprescindível, mesmo
que consideremos “território” um constituinte de todo grupo
social, presente em qualquer período histórico, delimitá-lo na
especificidade de sua caracterização histórica.
Voltemo-nos então para a especificidade histórica do território
e da territorialidade contemporâneos. O que mudou em relação
ao mundo moderno e em relação às sociedades mais tradicio-
nais? Por que o território estaria desaparecendo; ou melhor, em
termos mais adequados, que tipo de território, especificamente,
estaria desaparecendo?

Os significados da desterritorialização contemporânea

Pretendemos aqui retomar as considerações do item anterior e, a


partir delas, avaliar os múltiplos sentidos adquiridos hoje pelos
discursos da desterritorialização. Em primeiro lugar, devemos
nos perguntar em que sentido a territorialidade contemporânea
é distinta daquelas que a antecederam.

Território e rede

Um dos discursos mais difundidos na temática da desterrito-


rialização é aquele que propõe a emergência de uma sociedade

56
“em rede” (Castelis, 1996) em detrimento de uma sociedade
“territorial” — Castells contrapõe um “espaço dos fluxos” a um
“espaço dos lugares”. Aquilo que para muitos não passa de um
binômio, a relação território-rede, pode adquirir aqui a feição
de uma dicotomia: ao mundo dos territórios, mais estável, en-
raizado, contrapor-se-ia um mundo das redes, muito mais ins-
tável e fluido.
Ora, a hegemonia das redes seria assim tão recente? Podemos
demonstrar que, tanto quanto a idéia de território, a de rede tam-
bém precisa ser historicamente avaliada. Assim como é de um
tipo específico de território que estamos falando quando discu-
timos a desterritorialização ou o “fim dos territórios”, é taâÂmbém
de um tipo específico de rede que estamos falando, hoje, quando
propomos o surgimento de uma “sociedade em rede”.
A distinção entre território e rede envolve diferentes interpre-
tações. Podemos delimitar três grandes perspectivas, desde os que
radicalizam na dicotomização e consideram território e rede duas
categorias distintas, até aqueles que transformam a rede num sim-
ples componente do território, a ele totalmente subordinada.
Na postura mais radical, o território se opõe à rede. Para al-
guns defensores desta proposta, a sociedade “territorial” estaria
sendo substituída pela sociedade em rede (Castells, 1996; Badie,
1996); para outros, o território seria uma forma de organização do
espaço mais tradicional do que a rede. Neste caso, abrem-se pelo
menos duas perspectivas de análise. Uma delas é a que distingue
duas lógicas espaciais, como faz Berque (1982) ao propor uma ló-
gica zonal ou em área frente a uma lógica reticular. Outra é a que
defende Lévy (1993), para quem existiriam duas “métricas”, uma
contínua, topográfica, euclidiana, dita territorial, e outra descon-
tínua, topológica, não-euclidiana, a métrica das redes.
Uma leitura intermediária entre a que separa claramente ter-
ritório de rede (pregando a hegemonia crescente das redes) e
a que dilui completamente as redes no interior dos territórios,
é a que afirma que território e rede formam um binômio em
que a rede pode tanto ser um elemento fortalecedor, interno aos
territórios (como nas redes viárias e de comunicações como base
na integração do território nacional), quanto um elemento que
se projeta para fora do território, promovendo a sua desestrutu-
ração, ou seja, um processo de desterritorialização (Haesbaert,
1995). Assim, Raffestin (1988) defende a idéia da rede como uma
das “invariáveis” constituintes do território, juntamente com os
nós ou pólos e as malhas (ou tecidos). O que varia na verdade
é a composição entre esses três elementos ao longo da história.
Desse modo, a própria rede e os fluxos podem se tornar de tal
forma dominantes que acabam se confundindo com o próprio
território (enquanto controle de fluxos, mais do que de áreas).
Temos então a formação de “territórios-rede” (Haesbaert, 1994;
Souza, 1996).
Finalmente, em terceiro lugar, para aqueles que denomina-
mos de “territorialistas”, cada vez mais raros, a idéia de rede está
completamente subordinada à de território, e este se confunde
com o espaço geográfico, já que toda relação social seria também
uma relação territorial. A rede é vista participando apenas de pro-
cessos territorializadores, na medida em que ajuda a integrar o
território, visto sempre como sendo mais estável e enraizador.
A partir daí podemos analisar alguns discursos sobre a dester-
ritorialização, a grande maioria deles apoiada neste raciocínio
de uma sociedade cuja organização espacial muda de um padrão
“em mosaico”, mutuamente excludente, como é a lógica territo-
rial dos Estados-nações, para um padrão reticular, descontínuo
e fragmentado, que admite sobreposições territoriais.
Seja como elemento separado do território e que o domina,
seja como seu constituinte que adquire novo peso, a rede se
coloca como um referencial teórico fundamental neste deba-
te. Ela é o veículo por excelência da maior fluidez que atinge o
espaço e, no nosso ponto de vista, o componente mais impor-
tante da territorialidade contemporânea. Seguindo o raciocí-
nio de Raffestin (1993, 1988) e suas três “invariantes” básicas
(os nós ou pólos, as malhas ou “tessituras” e as redes), enquan-
to nas sociedades tradicionais o elemento dominante eram as

Nesse trabalho afirmávamos que “os territórios neste final de seculo são
>

sempre, [...; em diferentes níveis, 'territórios-rede', porque associados, em


maior ou menor grau, a fluxos [...! hierárquica ou complementarmente
articulados” (p. 211).

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malhas, a “dimensão horizontal”” do espaço, gradativamente as
redes vão adquirindo importância, ao ponto de, na sociedade in-
formacional contemporânea, tornarem-se o principal elemento
na configuração territorial.

As diferentes versões da desterritorialização

Propomos agora identificar, através de um balanço do trabalho


de vários autores que enfocam o tema, dentro e fora da Geografia,
as principais interpretações que envolvem os processos de
desterritorialização, começando pela contraposição entre fixidez
e fluidez ou entre território e rede:
1. Desterritorialização como domínio das redes, dos fluxos, da
mobilidade. O território é visto aqui, antes de tudo, como
o focus da estabilidade e do enraizamento. A mobilidade
proporcionada pela hegemonia das redes suplantaria a or-
dem mais estável do mundo territorial westfafiano moderno
(Badie, 1996). Essa interpretação ignora que, conforme já
ressaltamos, as redes e a mobilidade que elas proporcionam
são componentes indissociáveis do território, em qualquer
contexto histórico. Mais ou menos móveis, na verdade os
territórios sempre carregaram, juntamente com as caracte-
rísticas de controle e estabilidade, a idéia do movimento,
da integração e da conectividade.
11. Desterritorialização como perda de referenciais espaciais,
concretos, sob o domínio das relações imateriais. O terri-
tório aqui é visto, sobretudo, como o fundamento material/
espacial da sociedade, confundido assim com a idéia de es-

8. É interessante lembrar aqui que a alusão à diferenciação entre uma “dimen-


são horizontal” e uma “dimensão vertical” do espaço, bem destacada por
Milton Santos em termos da relação entre horizontalidades e verticalidades,
tem uma tradição antiga na Geografia, podendo-se destacar o peso que
adquiriu, por exemplo, no debate catre regiões homogêncas é funcionais
na obra de Hartshorne (197811966]). Esse autor se refere ao trabalho de
G. de Jong (Fer karakter var de gesgrafische totalitett, Groningen, 1955).
que distingue entre “unidade vertical” e “unidade horizontal”, aplicáveis
conjuntamente a um mesmo espaço.
paço geográfico.” Alude-se principalmente à perda de im-
portância das bases materiais na configuração dos proces-
sos sociais dentro do chamado “ciberespaço” (Lévy, 1996).
Ignora-se que mesmo o espaço “virtual” do ciberespaço
não pode prescindir de bases materiais e contatos face-a-
face, assim como a territorialidade — enquanto “qualidade”
necessária à constituição de territórios — pode se manter
mesmo sem a sua base material, como é o caso dos migran-
tes em diáspora que, em sua mobilidade, carregam “geo-
grafias imaginárias” (nos termos de Edward Said), virtuais
fomentadoras de novas construções socioespaciais.
11. Desterritorialização como perda de poder em termos do
controle dos processos sociais através do espaço, especial-
mente,o enfraquecimento do território dos Estados-nações.
O território seria uma construção histórica bem definida,
ligada especialmente à formação dos Estados modernos.
A crise do papel regulador do Estado, hoje, levaria a uma
crescente desterritorialização. Na verdade o que estamos
presenciando, especialmente após os atentados de setembro
de 2001 nos Estados Unidos, é um reforço do papel do
Estado, principalmente no que diz respeito à segurança
e ao controle dos fluxos migratórios. Tomando-se uma
perspectiva mais ampla de territorialidade como forma de
controle de processos sociais, muito além da escala dos
Estados-nações,!º torna-se mais difícil argumentar a favor

Para autores como Claude Raffestin, o espaço é anterior ao território, este re-
sultando da apropriação e/ou dominação daquele pela sociedade: “É essencial
compreender bem que o espaço é anterior ao território. [...] Ao se apropriar
de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), 0
ator 'territorializa' o espaço” (1993, p. 143). Afirmando seguir o raciocínio de
Lefebvre, Raffestin diz que o território “é uma produção, a partir do espaço”
que, obrigatoriamente, “se inscreve num campo de poder” (p. 144), ou seja,
o território é o espaço social inscrito dentro de relações de poder.
10 Sack (1986) é o autor que melhor reproduz esta perspectiva, ao afirmar
que “territorialidade será definida como a tentativa, por um individuo
ou grupo, de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e re-
lacionamentos, pela delimicação e afirmação do controle sobre uma área
geográfica. Esta área será chamada território (p. 19). A territorialidade
para os seres humanos é uma poderosa estratégia geográfica para contro-
lar pessoas e coisas através de áreas. Territórios políticos e propriedade
privada cia terra podem ser suas formas mais familiares” (p. 5).

60
do acirramento da desterritorialização — principalmente
porque, nesse caso, a debilidade dos controles territoriais
em uma escala pode estar significando a força do controle
em outra(s) escala(s).
IV. Desterritorialização como “deslocalização” econômica, a
libertação, principalmente por parte das grandes corpora-
ções transnacionais, dos principais fatores locacionais, o que
favoreceria o seu deslocamento e a sua localização em inú-
meros lugares. O território ou a territorialização confun-
de-se, basicamente, com a influência das condições ou dos
contextos locais, “mais concretos”, em que se desdobram os
processos sociais. À questão é que as condições locais não
desapareceram, mas mudaram de conteúdo — por exemplo,
incorporando fatores ligados ao setor financeiro, à densidade
do aparato tecnológico disponível e aos incentivos fiscais
localmente oferecidos. Por outro lado, a “localização” em
sentido amplo é revalorizada justamente porque, num mun-
do tão “móvel”, o fato de estar localizado é um trunfo a ser
usufruído (a propósito, ver Bourdin, 2001).
Desterritorialização como fruto da crescente homogenei-
zação cultural do planeta. O território é valorizado em sua
dimensão cultural, identitária, vinculado à diferenciação
e à diversidade cultural. Ao sobrevalorizar uma pretensa
homogeneização efetivada pela globalização, esquece-se a
natureza contraditória deste movimento, seu caráter dia-
lógico, na medida em que reúne num mesmo conjunto
globalização e fragmentação, homogeneização e hetero-
geneização, condições culturais mundiais e locais (os pro-
cessos de glocalização).!2
A partir de agora pretendemos aprofundar a discussão sobre
duas posições antagônicas que, de certa forma, representam ao
mesmo tempo dois extremos e duas visões bastante comuns e
distintas de desterritorialização. À primeira é aquela que diz
respeito à debilitação das bases materiais na dinâmica social.

Storper (1994), por exemply, define desterritorialização como o “enfraque-


cimento da atividade cconômica especifica de um local e menor deper-
dência dessa atividade em relação a locais especificos” (p. c4;
- A respeito do debate er» turno da glocalização, ver nor exemplo, Roberts or.
(1995) e Swyngedow.
uma espécie de desterritorialização “do alto” ou “superior”, es-
pecialmente vinculada às categorias sociais privilegiadas, que
usufruem de todas as benesses dos circuitos técnico-informa-
cionais globalizados. A segunda, num outro extremo da pirâmi-
de social, é a desterritorialização “de baixo” ou “inferior”, pois
envolve alguns dos grupos mais expropriados, aqueles que não
só estão alijados do acesso a esse mundo “imaterial” do cibe-
respaço, como estão sendo privados do acesso ao território no
seu sentido mais elementar, o de “terra”, “terreno”, como base
material primeira da reprodução social. Sem-terra, sem-teto,
indígenas... muitos são os grupos “excluídos” que entram nessa
categoria de desterritorializados stricto sensu.
O mais curioso é que essa segunda acepção, mais “social” e,
em nosso ponto de vista, mais adequada para a utilização do
termo, é à menos utilizada nos discursos correntes sobre dester-
ritorialização, a ponto de ter sido excluída do elenco de interpre-
tações acima apresentado. Confrontam-se assim uma desterrito-
rialização das classes dominantes e outra dos grupos subalternos.
Podemos afirmar, como o fizemos em trabalho anterior:

Desterritorialização, para os ricos, pode ser confundida com


uma multiterritorialidade segura, mergulhada na flexibilida-
de e em experiências múltiplas de uma mobilidade “opcional”
(a “topoligamia” ou o “casamento” com vários lugares a que
se refere Beck, 1999). Enquanto isto, para os mais pobres,
a desterritorialização é uma multi ou, no limite, à-territoria-
lidade insegura, onde a mobilidade é compulsória, resultado
da total falta de opção, de alternativas, de “Aexibilidade”, em
“experiências múltiplas” imprevisíveis em busca da simples
sobrevivência física cotidiana (Haesbaert, 2001, p. 1775).

Uma interpretação semelhante é a de Bauman (1999), para


quem a globalização criou o “paradigma do turista”, válido para
as classes privilegiadas, e o do “vagabundo”, para os grupos su-
balternos. Embora este autor não utilize o conceito de desterrito-
rialização, ele afirma que, enquanto os “turistas” vivem “no tem-
po”, num presente constantemente preenchido, controlado, sem
se importar com o espaço, com as fronteiras, os “vagabundos”

5
vivem “no espaço”, um espaço pesado que amarra O tempo € o
mantém fora do seu controle, um tempo “redundante e inútil”,
nunca preenchido (p. 96-97). Em nosso ponto de vista, essa
distinção entre a experiência espaço-temporal dos privilegia-
dos, seu “espaço virtual”, e a dos excluídos, seu “espaço brutal”,
é o que mais importa nos debates sobre a desterritorialização.
Sem esquecer que os privilegiados, em grande parte por for-
ça da crescente exclusão da maior parte da população, se re-
territorializam fortemente, preocupados cada vez mais com seus
“espaços de segurança” cotidianos.

Desterritorialização e imaterialidade do ciberespaço

Comecemos pela análise da desterritorialização “do alto”, vincu-


lada ao domínio da imaterialidade e do “ciberespaço”, uma das
mais difundidas, principalmente na ótica dos países centrais.
A partir de uma visão de território (muitas vezes apenas impli-
cita) como base material e fundamentado em condições espa-
ciais/locais de reprodução social, considera-se que partilhamos
de uma desterritorialização pela perda crescente de importância
dos contextos geográficos e do substrato material que medeia
as relações sociais. À corrente mais importante neste pensa-
mento é a que aborda o “ciberespaço”, que estaria substituin-
do o “espaço geográfico” em termos mais tradicionais. Por sua
magnitude, julgamos ser importante dedicar um espaço maior
a essa discussão, tomando como base um de seus autores mais
importantes, o filósofo francês Pierre Lévy. Em Cibercultura, o
autor associa claramente ciberespaço e rede:

O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo


meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos
computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutu-
ra material da comunicação digital, mas também o universo
oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres
humanos que navegam e alimentam esse universo (por)
t.. | Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação
aberto pela interconexão mundial dos computadores e das
memórias dos computadores (999. DP 92)
Uma das tendências fundamentais no ciberespaço é a virtua-
lização, considerando-se virtual “aquilo que existe apenas em po-
tência e não em ato” (ao contrário da visão corrente de virtual
como irrealidade). Lévy associa então virtualização e desterrito-
rialização: “É virtual toda entidade 'desterritorializada', capaz de
gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos
e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um
lugar ou tempo em particular” (p. 47). Em outras palavras, “o ci-
berespaço encoraja um estilo de relacionamento quase indepen-
dente dos lugares geográficos (telecomunicações, telepresença) e
da coincidência de tempos (comunicação assíncrona)”.
Em O que é virtual, Lévy afirma que, na comunidade virtual,
“a geografia é contingente, não é mais nem um ponto de partida,
nem uma,coerção”. Essa comunidade “vive sem lugar de refe-
rência estável; em toda parte onde se encontrem seus membros
móveis... ou em parte alguma” (1996, p. 20). Ao se virtuali-
zarem, as pessoas no ciberespaço “se tornam não-presentes, se
desterritorializam” (1996, p. 21).
A noção de desterritorialização para Pierre Lévy está pau-
tada num mundo “desmaterializado” e em rede, dominado por
relações sociais que prescindem de contextos espaço-temporais
específicos. Ainda assim, entretanto, o autor se vê obrigado a
reconhecer, pelo menos, a convivência de duas formas de viven-
ciar o espaço-tempo, pois pessoas

não são totalmente independentes do espaço-tempo de re-


ferência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes
físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde.
No entanto, a virtualização lhes fez tomar a tangente. Recor-
tam o espaço-tempo clássico apenas aqui e ali, escapando a
seus lugares comuns “realistas”: ubiquidade, simultaneidade,
distribuição irradiada ou massivamente paralela, À virtua-
lização submete a narrativa clássica a uma prova rude: uni-
dade de tempo sem unidade de lugar (graças às interações em
tempo real [...)), continuidade de ação apesar de uma duração
descontínua [...). À sincronização substitui a unidade de lu-
gar, e a interconexão, a unidade de tempo (1996, p. 21).

64
Segundo Lévy, os “operadores mais desterritorializados”, hoje,
que são “os da tecnociência, das finanças e dos meios de comuni-
cação”, são ao mesmo tempo os principais responsáveis pela estru-
turação da realidade social. A coerção “da hora e da geografia” se
torna uma variável contingente, levando à desterritorialização, à
“saída da “presença”, do 'agora' e do 'isto” (p. 22). Trata-se de um
raciocínio semelhante àquele de O'Brien (1992), ao trabalhar com
os circuitos financeiros como destruidores “da geografia”, e ao
de Virilio (1997), ao afirmar que não se trata do fim da história,
como quer Fukuyama, mas do fim da geografia.
O fim da geografia de Virilio se refere à “aceleração” não só
do tempo, mas da própria realidade contemporânea, onde um
“tempo mundial” instantâneo “apaga definitivamente a realida-
de das distâncias, destes intervalos geográficos que organiza-
vam, ainda ontem, a política das nações e suas coalizões” (p. 17).
Já O'Brien, restringindo sua análise à esfera financeira, defende
a tese de que, aí, a localização geográfica das firmas pesa cada
vez menos, e a globalização dos investimentos torna-os quase
“autônomos” em relação aos constrangimentos espaciais. Mas
mesmo nessa esfera o autor reconhece que haverá resistências ao
“fim da geografia”. Os serviços financeiros, por exemplo, conti-
nuarão dependendo dos contatos pessoais mais diretos.
Graham (1998) sintetiza as posições frente à relação entre
sistemas de tecnologias de informação e espaço e lugar ou, de
forma mais simplificada, entre “espaço eletrônico” (o “ciberes-
paço”) e “espaço material” (na verdade indissociáveis), em três
vertentes interpretativas:

Primeiro, há a perspectiva da substituição e transcendência —


a idéia de que a territorialidade humana, e a dinâmica da vida
humana baseada no espaço e no lugar, pode de algum modo
ser substituída pelo uso de novas tecnologias. Em segundo lu
gar, há a perspectiva da coevolução, cujo argumento é o de que
tanto os “espaços” eletrônicos quanto os espaços territoriais são
necessariamente produzidos juntos, como parte de uma conti:-
nua reestruturação do sistema politico-econômico capitalista.
Finalmente, há a perspectiva da recombinação, que se vale de
estudos recentes da teoria da rede-ator. Aqui o argumento é o
de que é necessária uma visão inteiramente relacional das liga-
ções entre tecnologia, tempo, espaço e vida social (p. 167).

Ampliando esse raciocínio, podemos pensar a desterritoria-


lização como um movimento que, longe de estar fazendo desa-
parecer os territórios, ou mesmo de correr “paralelo” a um mo-
vimento territorializador, geralmente mais tradicional, deve ser
interpretado como um processo relacional, des-re-territorializador,
em que o próprio território se torna mais complexo, múltiplo, por
um lado mais híbrido e flexível, mergulhado que está nos siste-
mas em redc, multiescalares, das novas tecnologias da informação
e, por outro, mais inflexível e fechado, marcado pelos muros que
separam-ricos e pobres, grupos “mais” e “menos seguros” , mais e
menos “territorializados”.

Desterritorialização como precarização territorial

Assim como não há um “ciberespaço” unificado, válido para a


Terra inteira, permanecendo uma grande parcela da humanida-
de off-fine,)'* também não há uma territorialidade que manifeste
o “hibridismo” entre ciberespaço e espaço material difundido
da mesma forma por toda a superfície da Terra. Podemos mes-
mo afirmar que, para a maior parte dos habitantes do planeta,
não é a sua inserção “desterritorializada” no ciberespaço, seja
ela unilateral ou “híbrida”, que importa. À precarização (para
alguns “exclusão”) social que lança de forma crescente milhões
de pessoas na miséria faz com que eles revalorizem seus víncu-
los básicos com o “território”, mesmo no seu sentido mais ele-
mentar — como “terra”, “terreno”, base primeira da reprodução
social, como abrigo e fontg de sobrevivência. Mas, do mesmo
modo como o ser humano, mesmo na condição econômica mais
precária, não se reduz a um indivíduo biológico, podendo se

13 Graham (1998) afirma que nos espaços 9f-fine, “frequentemente espaços


esquecidos, tempo e espaço permanecem profundamente reais, talvez
constrangimentos crescentes na vida social, devido à reestruturação do
mercado de trabalho c da previdência e à retração dos serviços bancários
e de transporte” (p. 177).

66
tornar alvo fácil dos identitarismos mais radicais, O território
também envolve sempre, em diferentes níveis, uma dimensão
simbólico-identitária.
Assim, vinculada à polêmica perspectiva “naturalista” do po-
der e do território, inicialmente comentada, temos a idéia de
território associada à “terra”, ao substrato físico, material, em
sentido amplo (que incorpora o substrato “natural”). Identifi-
camos aí duas leituras distintas, mas igualmente relevantes e,
de certo modo, complementares. Numa primefra perspectiva,
como a do movimento dos agricultores sem terra, desterritoria-
lização aparece associada à exclusão do acesso à terra e adquire
um sentido, sobretudo, econômico. À identidade do grupo e os
símbolos que a sustentam são construídos na própria luta pela
terra enquanto instrumento de trabalho. Já no exemplo do mo-
vimento indígena pela delimitação e controle de suas reservas,
a desterritorialização não se fundamenta tanto na exclusão do
acesso à terra enquanto meio de produção (solos férteis, florestas
ricas em produtos extrativos) mas, primeiro, num nível simbó-
lico-cultural. Mesmo exercendo o domínio sobre um deter-
minado espaço, podem faltar ao grupo indígena as referências
territoriais de sua cultura, o próprio “imaginário geográfico”
condensado simbolicamente em determinadas parcelas do es-
paço (um rio, uma cachoeira, um trecho de floresta — espaços
de deuses ou dos espíritos de seus ancestrais).
Território, para o índio, é ao mesmo tempo um espaço de
reprodução física, de subsistência material, e um espaço carre-
gado de referências simbólicas, veículo de manutenção de sua
identidade cultural. Aqui, nestas “sociedades holistas”, como
diria Dumont (1985), parece caber melhor a expressão do ter-
ritório como “experiência total do espaço”. Na verdade, cada
grupo cultural e cada período histórico funda sua própria forma
de “vivenciar” integralmente o espaço.
Se o indígena e o sem-terra desenvolvem, cada um a seu
modo, uma “experiência total do espaço”, é dentro de uma con-
dição de classe e/ou de grupo cultural e num determinado con-
texto histórico (e de releitura do passado) que ela se processa.
O que os une é a dinâmica de precarização socioespacial domi-
nante na sociedade capitalista, que dá forma aquilo que denomi-
namos “aglomerados humanos de exclusão” (Haesbaert, 1995),
o exemplo mais estrito de desterritorialização.
Desterritorialização, portanto, antes de significar desmateriali-
zação, dissolução das distâncias, deslocalização de firmas ou
debilitação dos controles fronteiriços, é um processo de exclusão
social, ou melhor, de exclusão socioespacial. Da mesma forma
que cada momento histórico tem os seus próprios elementos
estruturadores de uma experiência, se não “total”, como nas
sociedades holistas, pelo menos “integral” ou “coesa” do espaço,
ora de caráter mais concreto, ora mais simbólico, cada contexto
tem também os seus próprios agentes básicos de desterritoria-
lização. Na sociedade contemporânea, com toda a sua diversi-
dade, não resta dúvida de que o processo de “exclusão”, ou me-
lhor, de precarização socioespacial, promovido por um sistema
econômico altamente concentrador é o principal responsável
pela desterritorialização.
Num mundo dito globalizado como o nosso, o acesso ple-
no a um território como “experiência integrada do espaço” só
se dará quando todos, de alguma forma, puderem vivenciar o
mundo em suas múltiplas escalas, pois o território é, hoje, so-
bretudo, multiescalar e um território-rede. Por isso o combate
à desterritorialização enquanto exclusão socioespacial significa
também o acesso amplo às diferentes escalas e redes que, ainda
hoje, constitui-se um privilégio de uma elite planetária cada vez
mais auto-segregada.

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