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Rogério Haesbaert
Ou:
as
Além disso, se levarmos em conta a discutível tese de autores
que ampliam de tal forma a noção de poder que ela acaba ultra-
passando os limites da sociedade, é possível extrapolar dizendo
que o território, mesmo na leitura que privilegia sua vinculação
a relações de poder, também incorpora uma dimensão “natura!”
em sua constituição. Reconhecer a importância de uma dimen-
são “natural” na constituição de territórios não significa, entre
tanto, concordar com a posição de autores que, como Blackburn
(1992),* estendem a noção de poder para a esfera'da natureza.
5e
foi o mais pretensioso, principalmente na análise lablacheana.
Embora também haja uma tradição, por exemplo, em privilegiar
os processos econômicos na construção de regiões, sem dúvida a
idéia de fundo é, sempre, a de que haveria um elemento estrutu-
rador, o fundamento que serviria de amálgama na organização do
espaço regional, seja ele a natureza (para o “primeiro” La Blache),
a economia (urbana, no “segundo” La Blache)* ou a cultura.
Um pouco dessa leitura da região clássica se reproduz hoje
nos debates sobre o território, alguns elegendoo poder políti-
co, outros os símbolos da cultura, outros a base econômica,a
fim de demonstrar os fundamentos da organização territorial
da sociedade. É evidente que, dependendo da perspectiva, te-
remos ou não maior visibilidade daquilo que denominamos de
desterritorialização. Uma das questões mais sérias, aqui, é que,
ao contrário da região na versão lablacheana do início do sécu-
lo, dificilmente encontramos um espaço capaz de “integrar” de
forma coesa as múltiplas dimensões ou lógicas: econômica, po-
lítica, cultural, natural. Daí o fato de alguns defensores de uma
visão totalizante ou integradora de território advogarem a sua
superação. É o caso de Chivallon (1999) que, ao definir territó-
rio como “uma espécie de “experiência total' do espaço que faz
conjugar-se num mesmo lugar os diversos componentes da vida
social”, e questionando a possibilidade, hoje, desta “experiência
total”, propõe a sua substituição pela noção de espacialidade.
Território e história
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Estado, o território pode ficar restrito às sociedades modernas
articuladas em torno de Estados nações. Nesse caso, a crise do
Estado seria a principal responsável pelos atuais processos de
desterritorialização. Trata-se de uma das leituras mais restri-
tivas de território.
Para outros, o território compõe de forma indissociável a re-
produção dos grupos sociais, no sentido de que as relações so-
ciais são espacial ou geograficamente mediadas. Podemos dizer
que essa é a noção mais ampla de território, passível assim de ser
estendida a qualquer tipo de sociedade,
em qualquer momento
histórico, e podendo igualmente ser confundida com a noção
de espaço geográfico.
Numa perspectiva intermediária em termos de problemáti-
cas às quais se vincula, mas que ainda assim pode ser estendida
a toda a história humana, temos o território definido a partir
das relações de poder mediadas pelo espaço. Nesse caso, mister
se faz definir de que forma estamos concebendo “poder”, pois
dentro de uma perspectiva histórica ele muda de configuração —
por exemplo, assumindo hoje uma carga simbólica muito maior
(o “poder simbólico” aludido por Bourdieu, 1989).
O território, de qualquer forma, define-se antes de tudo com
referência às relações sociais (ou culturais, em sentido amplo) em
que está mergulhado, relações estas que são sempre, também, re-
lações de poder. Esse sentido relacional do território também está
presente na abordagem mais materialista de Maurice Godelier.
Para ele, “as formas de propriedade de um território são ao mes-
mo tempo uma relação com a natureza e uma relação entre os ho-
mens”, sendo esta última “dupla: uma relação entre as sociedades
ao mesmo tempo que uma relação no interior de cada sociedade
entre os indivíduos e os grupos que a compõem” (1984, p. LIS).
Território e rede
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“em rede” (Castelis, 1996) em detrimento de uma sociedade
“territorial” — Castells contrapõe um “espaço dos fluxos” a um
“espaço dos lugares”. Aquilo que para muitos não passa de um
binômio, a relação território-rede, pode adquirir aqui a feição
de uma dicotomia: ao mundo dos territórios, mais estável, en-
raizado, contrapor-se-ia um mundo das redes, muito mais ins-
tável e fluido.
Ora, a hegemonia das redes seria assim tão recente? Podemos
demonstrar que, tanto quanto a idéia de território, a de rede tam-
bém precisa ser historicamente avaliada. Assim como é de um
tipo específico de território que estamos falando quando discu-
timos a desterritorialização ou o “fim dos territórios”, é taâÂmbém
de um tipo específico de rede que estamos falando, hoje, quando
propomos o surgimento de uma “sociedade em rede”.
A distinção entre território e rede envolve diferentes interpre-
tações. Podemos delimitar três grandes perspectivas, desde os que
radicalizam na dicotomização e consideram território e rede duas
categorias distintas, até aqueles que transformam a rede num sim-
ples componente do território, a ele totalmente subordinada.
Na postura mais radical, o território se opõe à rede. Para al-
guns defensores desta proposta, a sociedade “territorial” estaria
sendo substituída pela sociedade em rede (Castells, 1996; Badie,
1996); para outros, o território seria uma forma de organização do
espaço mais tradicional do que a rede. Neste caso, abrem-se pelo
menos duas perspectivas de análise. Uma delas é a que distingue
duas lógicas espaciais, como faz Berque (1982) ao propor uma ló-
gica zonal ou em área frente a uma lógica reticular. Outra é a que
defende Lévy (1993), para quem existiriam duas “métricas”, uma
contínua, topográfica, euclidiana, dita territorial, e outra descon-
tínua, topológica, não-euclidiana, a métrica das redes.
Uma leitura intermediária entre a que separa claramente ter-
ritório de rede (pregando a hegemonia crescente das redes) e
a que dilui completamente as redes no interior dos territórios,
é a que afirma que território e rede formam um binômio em
que a rede pode tanto ser um elemento fortalecedor, interno aos
territórios (como nas redes viárias e de comunicações como base
na integração do território nacional), quanto um elemento que
se projeta para fora do território, promovendo a sua desestrutu-
ração, ou seja, um processo de desterritorialização (Haesbaert,
1995). Assim, Raffestin (1988) defende a idéia da rede como uma
das “invariáveis” constituintes do território, juntamente com os
nós ou pólos e as malhas (ou tecidos). O que varia na verdade
é a composição entre esses três elementos ao longo da história.
Desse modo, a própria rede e os fluxos podem se tornar de tal
forma dominantes que acabam se confundindo com o próprio
território (enquanto controle de fluxos, mais do que de áreas).
Temos então a formação de “territórios-rede” (Haesbaert, 1994;
Souza, 1996).
Finalmente, em terceiro lugar, para aqueles que denomina-
mos de “territorialistas”, cada vez mais raros, a idéia de rede está
completamente subordinada à de território, e este se confunde
com o espaço geográfico, já que toda relação social seria também
uma relação territorial. A rede é vista participando apenas de pro-
cessos territorializadores, na medida em que ajuda a integrar o
território, visto sempre como sendo mais estável e enraizador.
A partir daí podemos analisar alguns discursos sobre a dester-
ritorialização, a grande maioria deles apoiada neste raciocínio
de uma sociedade cuja organização espacial muda de um padrão
“em mosaico”, mutuamente excludente, como é a lógica territo-
rial dos Estados-nações, para um padrão reticular, descontínuo
e fragmentado, que admite sobreposições territoriais.
Seja como elemento separado do território e que o domina,
seja como seu constituinte que adquire novo peso, a rede se
coloca como um referencial teórico fundamental neste deba-
te. Ela é o veículo por excelência da maior fluidez que atinge o
espaço e, no nosso ponto de vista, o componente mais impor-
tante da territorialidade contemporânea. Seguindo o raciocí-
nio de Raffestin (1993, 1988) e suas três “invariantes” básicas
(os nós ou pólos, as malhas ou “tessituras” e as redes), enquan-
to nas sociedades tradicionais o elemento dominante eram as
Nesse trabalho afirmávamos que “os territórios neste final de seculo são
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malhas, a “dimensão horizontal”” do espaço, gradativamente as
redes vão adquirindo importância, ao ponto de, na sociedade in-
formacional contemporânea, tornarem-se o principal elemento
na configuração territorial.
Para autores como Claude Raffestin, o espaço é anterior ao território, este re-
sultando da apropriação e/ou dominação daquele pela sociedade: “É essencial
compreender bem que o espaço é anterior ao território. [...] Ao se apropriar
de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), 0
ator 'territorializa' o espaço” (1993, p. 143). Afirmando seguir o raciocínio de
Lefebvre, Raffestin diz que o território “é uma produção, a partir do espaço”
que, obrigatoriamente, “se inscreve num campo de poder” (p. 144), ou seja,
o território é o espaço social inscrito dentro de relações de poder.
10 Sack (1986) é o autor que melhor reproduz esta perspectiva, ao afirmar
que “territorialidade será definida como a tentativa, por um individuo
ou grupo, de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e re-
lacionamentos, pela delimicação e afirmação do controle sobre uma área
geográfica. Esta área será chamada território (p. 19). A territorialidade
para os seres humanos é uma poderosa estratégia geográfica para contro-
lar pessoas e coisas através de áreas. Territórios políticos e propriedade
privada cia terra podem ser suas formas mais familiares” (p. 5).
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do acirramento da desterritorialização — principalmente
porque, nesse caso, a debilidade dos controles territoriais
em uma escala pode estar significando a força do controle
em outra(s) escala(s).
IV. Desterritorialização como “deslocalização” econômica, a
libertação, principalmente por parte das grandes corpora-
ções transnacionais, dos principais fatores locacionais, o que
favoreceria o seu deslocamento e a sua localização em inú-
meros lugares. O território ou a territorialização confun-
de-se, basicamente, com a influência das condições ou dos
contextos locais, “mais concretos”, em que se desdobram os
processos sociais. À questão é que as condições locais não
desapareceram, mas mudaram de conteúdo — por exemplo,
incorporando fatores ligados ao setor financeiro, à densidade
do aparato tecnológico disponível e aos incentivos fiscais
localmente oferecidos. Por outro lado, a “localização” em
sentido amplo é revalorizada justamente porque, num mun-
do tão “móvel”, o fato de estar localizado é um trunfo a ser
usufruído (a propósito, ver Bourdin, 2001).
Desterritorialização como fruto da crescente homogenei-
zação cultural do planeta. O território é valorizado em sua
dimensão cultural, identitária, vinculado à diferenciação
e à diversidade cultural. Ao sobrevalorizar uma pretensa
homogeneização efetivada pela globalização, esquece-se a
natureza contraditória deste movimento, seu caráter dia-
lógico, na medida em que reúne num mesmo conjunto
globalização e fragmentação, homogeneização e hetero-
geneização, condições culturais mundiais e locais (os pro-
cessos de glocalização).!2
A partir de agora pretendemos aprofundar a discussão sobre
duas posições antagônicas que, de certa forma, representam ao
mesmo tempo dois extremos e duas visões bastante comuns e
distintas de desterritorialização. À primeira é aquela que diz
respeito à debilitação das bases materiais na dinâmica social.
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vivem “no espaço”, um espaço pesado que amarra O tempo € o
mantém fora do seu controle, um tempo “redundante e inútil”,
nunca preenchido (p. 96-97). Em nosso ponto de vista, essa
distinção entre a experiência espaço-temporal dos privilegia-
dos, seu “espaço virtual”, e a dos excluídos, seu “espaço brutal”,
é o que mais importa nos debates sobre a desterritorialização.
Sem esquecer que os privilegiados, em grande parte por for-
ça da crescente exclusão da maior parte da população, se re-
territorializam fortemente, preocupados cada vez mais com seus
“espaços de segurança” cotidianos.
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Segundo Lévy, os “operadores mais desterritorializados”, hoje,
que são “os da tecnociência, das finanças e dos meios de comuni-
cação”, são ao mesmo tempo os principais responsáveis pela estru-
turação da realidade social. A coerção “da hora e da geografia” se
torna uma variável contingente, levando à desterritorialização, à
“saída da “presença”, do 'agora' e do 'isto” (p. 22). Trata-se de um
raciocínio semelhante àquele de O'Brien (1992), ao trabalhar com
os circuitos financeiros como destruidores “da geografia”, e ao
de Virilio (1997), ao afirmar que não se trata do fim da história,
como quer Fukuyama, mas do fim da geografia.
O fim da geografia de Virilio se refere à “aceleração” não só
do tempo, mas da própria realidade contemporânea, onde um
“tempo mundial” instantâneo “apaga definitivamente a realida-
de das distâncias, destes intervalos geográficos que organiza-
vam, ainda ontem, a política das nações e suas coalizões” (p. 17).
Já O'Brien, restringindo sua análise à esfera financeira, defende
a tese de que, aí, a localização geográfica das firmas pesa cada
vez menos, e a globalização dos investimentos torna-os quase
“autônomos” em relação aos constrangimentos espaciais. Mas
mesmo nessa esfera o autor reconhece que haverá resistências ao
“fim da geografia”. Os serviços financeiros, por exemplo, conti-
nuarão dependendo dos contatos pessoais mais diretos.
Graham (1998) sintetiza as posições frente à relação entre
sistemas de tecnologias de informação e espaço e lugar ou, de
forma mais simplificada, entre “espaço eletrônico” (o “ciberes-
paço”) e “espaço material” (na verdade indissociáveis), em três
vertentes interpretativas:
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tornar alvo fácil dos identitarismos mais radicais, O território
também envolve sempre, em diferentes níveis, uma dimensão
simbólico-identitária.
Assim, vinculada à polêmica perspectiva “naturalista” do po-
der e do território, inicialmente comentada, temos a idéia de
território associada à “terra”, ao substrato físico, material, em
sentido amplo (que incorpora o substrato “natural”). Identifi-
camos aí duas leituras distintas, mas igualmente relevantes e,
de certo modo, complementares. Numa primefra perspectiva,
como a do movimento dos agricultores sem terra, desterritoria-
lização aparece associada à exclusão do acesso à terra e adquire
um sentido, sobretudo, econômico. À identidade do grupo e os
símbolos que a sustentam são construídos na própria luta pela
terra enquanto instrumento de trabalho. Já no exemplo do mo-
vimento indígena pela delimitação e controle de suas reservas,
a desterritorialização não se fundamenta tanto na exclusão do
acesso à terra enquanto meio de produção (solos férteis, florestas
ricas em produtos extrativos) mas, primeiro, num nível simbó-
lico-cultural. Mesmo exercendo o domínio sobre um deter-
minado espaço, podem faltar ao grupo indígena as referências
territoriais de sua cultura, o próprio “imaginário geográfico”
condensado simbolicamente em determinadas parcelas do es-
paço (um rio, uma cachoeira, um trecho de floresta — espaços
de deuses ou dos espíritos de seus ancestrais).
Território, para o índio, é ao mesmo tempo um espaço de
reprodução física, de subsistência material, e um espaço carre-
gado de referências simbólicas, veículo de manutenção de sua
identidade cultural. Aqui, nestas “sociedades holistas”, como
diria Dumont (1985), parece caber melhor a expressão do ter-
ritório como “experiência total do espaço”. Na verdade, cada
grupo cultural e cada período histórico funda sua própria forma
de “vivenciar” integralmente o espaço.
Se o indígena e o sem-terra desenvolvem, cada um a seu
modo, uma “experiência total do espaço”, é dentro de uma con-
dição de classe e/ou de grupo cultural e num determinado con-
texto histórico (e de releitura do passado) que ela se processa.
O que os une é a dinâmica de precarização socioespacial domi-
nante na sociedade capitalista, que dá forma aquilo que denomi-
namos “aglomerados humanos de exclusão” (Haesbaert, 1995),
o exemplo mais estrito de desterritorialização.
Desterritorialização, portanto, antes de significar desmateriali-
zação, dissolução das distâncias, deslocalização de firmas ou
debilitação dos controles fronteiriços, é um processo de exclusão
social, ou melhor, de exclusão socioespacial. Da mesma forma
que cada momento histórico tem os seus próprios elementos
estruturadores de uma experiência, se não “total”, como nas
sociedades holistas, pelo menos “integral” ou “coesa” do espaço,
ora de caráter mais concreto, ora mais simbólico, cada contexto
tem também os seus próprios agentes básicos de desterritoria-
lização. Na sociedade contemporânea, com toda a sua diversi-
dade, não resta dúvida de que o processo de “exclusão”, ou me-
lhor, de precarização socioespacial, promovido por um sistema
econômico altamente concentrador é o principal responsável
pela desterritorialização.
Num mundo dito globalizado como o nosso, o acesso ple-
no a um território como “experiência integrada do espaço” só
se dará quando todos, de alguma forma, puderem vivenciar o
mundo em suas múltiplas escalas, pois o território é, hoje, so-
bretudo, multiescalar e um território-rede. Por isso o combate
à desterritorialização enquanto exclusão socioespacial significa
também o acesso amplo às diferentes escalas e redes que, ainda
hoje, constitui-se um privilégio de uma elite planetária cada vez
mais auto-segregada.
Referências