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O ESTATUTO DA CIDADE E A REFORMA

URBANA NO BRASIL

Jo s é B o rz a c c h ie llo da S ilv a *

R ES U M O :
A Geografia Urbana brasileira incorporou a discussão em torno do Estatuto da Cidade, permitindo reativar a análise
científica da luta pela Reforma Urbana e reacender toda a dimensão teórica e m etodológica do direito à cidade,
contido em práticas políticas e ações mobilizadoras da sociedade brasileira na busca insistente pelo direito de morar
e viver dignam ente na cidade, fazendo-a mais justa e democrática. O Estatuto da Cidade, nome com o ficou
conhecida a Lei 10.257/01, que estabelece diretrizes da política urbana e dá outras providências, fixa parâm etros
para aplicação do capítulo da política urbana da Constituição Federal, definindo princípios e objetivos, diretrizes
de ação e instrum entos de gestão urbana a serem utilizados, principalmente, pelo Poder Público municipal. Envolve
tam bém , entre outros assuntos, instrumentos jurídicos de controle da especulação imobiliária, capazes, ao menos,
de atenuar o caos generalizado que tem sido m orar em nossas cidades. A retom ada da discussão em torno da
Reform a Urbana traz à tona itens que com põem a pauta de dem andas sociais reprim idas, que evidenciam a
necessidade de se realizar uma releitura geográfica da cidade e do urbano, que perm ita sua redefinição, con­
cebendo-a enquanto am biente e, buscando nela, um novo sentido para a vida gregária.
PA LA V RA S-C H A V E:
Cidade, Estado, direitos, reivindicações, cidadania.

ABSTRA CT:
Brazilian Urban Geography incorporated the discussion around the Statute of the City, allowing to reactivate the
scientific analysis of the fight for the Urban Reform and to relight the whole theoretical and m ethodological
dim ension of the right to the city contained in political practices and mobilizations actions of the Brazilian society
in the insistent search for the right of to live and to live worthily in the city, m aking it just and democratic. The
Statute of the City, nam e as it was well-known Lei 10.257/01, that establishes guidelines of the urban politics and
gives other providences, attem pts to fasten parameters for application of the chapter of the urban politics of the
Federal Constitution, defining beginnings and objectives, action guidelines and instruments of urban administration
to be used, mainly, for the municipal Public Power. It also involves, am ong other subjects, juridical instruments of
control of the urbanland speculation, at least in view of attenuate the widespread chaos that has been to live in
our cities. The retaking of the discussion around the Urban Reform set up several topics that represent repressed
social dem ands. It evidences the need of a new geographical reading of the city and of the urban which allows
its redefinition, as conceiving it while environment, and looking at her for a new sense for agregation life.
K E Y W O R D S:
City, State, rights, claim s, citizenship.

♦Professor Doutor Titular da UFC


10 Revista GEOUSP, N° 10 Jo s é Borzacchiello da Silva

I - In tro d u ção dos D eputados em 1990, quando recebeu a


apensação dos projetos que então tramitavam
No Brasil, a luta pelo acesso à cidade naquela Casa, prioridade conferida, regimen-
tem sido constante. Fundamentada na noção de talmente, às proposições que já contavam com
direito1, essa luta mantém uma dinâmica e in­ parecer do Senado Federal. Basicam ente, a Lei
tensa mobilização, evidenciando as contradições estabelece diretrizes gerais para a política ur­
do sistem a social do país regido por política bana, regulamenta o capítulo de política urbana
e c o n ô m ic a c o n c e n tra d o ra e e x clu d en te . A da Constituição Federal e institui instrumentos
persistente busca por uma cidade mais justa e para a gestão das cidades pelos Municípios. O
dem ocrática, ecoa na discussão em torno da Estatuto da Cidade permite reacender a discussão
Reform a Urbana, am algam ada por segm entos do modelo brasileiro de urbanização, reconhecido
so c ia is an ta g ô n ico s, po rtad ores de c o m p re ­ como contraditório, injusto e conflitante.
ensão e discursos diferentes sobre a cidade
enquanto espaço social complexo. A in ten si­
ficação por esta busca, dá-se, exatamente, num
II - A realid ad e b rasileira
m om ento em que se evidencia uma falência
sem igual do Estado, enquanto gestor, com
A m aior parte da população brasileira
denúncias de corrupção e im probidade ad m i­
mora, hoje, nos grandes centros urbanos. S e ­
nistrativa, acentuada por um colapso de algu­
gundo o IB G E, quando da realização da Conta­
mas das principais funções urbanas, presentes
gem da População, em 1996, mais de 78,36%
em d ive rsa s e sca la s no contexto da cid ad e
dos brasileiros m oram nas cidades, as quais
brasileira. Até agora, a intervenção deste E s ­
tado tem priorizado, nas áreas urbanas, ^lguns concentram , tam bém , inúm eros e com plexos
setores para dotá-los de infra-estrutura, equi­ problem as d iretam en te relacio n ad os à q u a li­
pamentos e serviços para alguns em detrimento dade de vida dessa população. Mas cidades, é
das necessidades e demandas da maioria. gerada a parte significativa da riqueza brasileira
Objetivando estabelecer diretrizes fede­ e mundial.
rais para a política urbana, o Congresso nacio­ Os problemas das cidades e as suas res­
nal aprovou a Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, pectivas soluções guardam forte paralelo com
autodenom inado Estatuto da Cidade, que regu­ os dilemas do campo, rio centro da questão da
lamenta os artigos 182 e 183 da Constituição reforma urbana está o tem a da propriedade,
Federal e envolve, entre outros assuntos, instru­ assim como no centro da questão agrária no
m entos ju ríd ico s de controle da especu lação país está o tema da propriedade rural. A con­
im obiliária, capazes, ao menos, de atenuar o centração da terra nas cidades e a construção
caos g e n e raliz ad o que tem sido m o rar nas do desenho das cidades, sob a ótica dos inte­
cidades brasileiras. A aprovação da Lei amplia a resses contidos na expansão urbana, são pro­
discussão em torno da Reforma Urbana, trazen­ blemas no cerne dos quais se situa a questão
do à tona itens que compõem a pauta de de­ da propriedade.
mandas sociais reprimidas, e evidenciam a ne­ Em sua trajetória, a cidade no Brasil tem
cessidade de se realizar uma releitura da cida­ sido local de construção e destruição simultânea
de na perspectiva de sua redefinição, conceben­ de experim entação, adquirindo im agens extre­
do-a enquanto ambiente e, buscando nela, um mamente cam biantes, com m udanças acelera­
novo sentido para a vida gregária. das de sua estrutura, forma e perfil. Essa cida­
O Estatuto da Cidade, apresentado em de, quase um laboratório, aberta às novas pro­
1989, foi aprovado e encam inhado à Câm ara postas e intervenções, torna-se cada vez mais
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 11

excludente e perversa. A cidade, no Brasil, tem pacidade das cidades brasileiras de acolher e
no pobre e na pobreza, atores de primeira li­ acomodar todos os que engrossam o fluxo m i­
nha. O país, na condição de industrializado e gratório campo-cidade. Esta incapacidade física
subdesenvolvido, possui um significativo contin­ de acolh im en to som ada à au sên cia de um a
gente de pobres. Pobres que não encontram na disposição política para discutir a gravidade da
cid ad e form al e legal as suas referencias. O situação das cidades, provocou a em ergência de
produto urbano desta cidade legal e formal não uma questão urbana sem igual no país, adqui­
perm ite aos pobres, em sua maioria, o alcance, rindo esta m aior efervescência no período da
inclusive, da razão da cidade por meio de suas última Constituição. O Movimento Nacional de
três qualidades inerentes: identidade, estrutura Reforma Urbana, constituído por representantes
e significação conforme LYNCH (1970)2 do movimento popular e participantes de e n ­
Esta cid ad e negada vai ser buscada, tidades profissionais em torno de uma proposta
m esm o que parcialm ente, na intensa m o bili­ para a Constituição Federal elaborada e prom ul­
zação popular. A Lei Nacional do Uso do Solo gada em 1988, exerceu papel preponderante na
Urbano, representa, neste sentido, uma grande organização e mobilização de forças que con­
conquista. A luta pela reforma urbana inscreve- duziram a manifestações expressivas no cenário
se num processo constante de ação e reflexão, político, com ganhos significativos para a popu­
procurando construir novos sujeitos históricos, lação urbana do país. A pauta de discussão, em
portadores de direitos sociais, aptos a combater seu conjunto, colocou em evidência alguns pon­
as formas dominantes de exclusão econômica e tos centrais, dentre eles:
social.
- A fun ção so cial da p ro p rie d a d e e da
cidade;
III - A cid ad e em q u estão - Participação popular na definição e gestão
das políticas referentes ao urbano;
A percepção do acesso à cidade como - Uso cap ião especial de im óvel urbano
um direito de praticá-la, vivenciá-la ultrapassa a para propriedade até metros quadrados4.
sua condição de unidade social complexa, nos O processo de elaboração e aprovação
m o ld e s da gestão urbana c o n ve n cio n a l. Na da Constituição, precedido de ampla organiza­
verdade, o uso social da cidade impõe a domi- ção e mobilização, acusou e apresentou ganhos
n ân cia de p ráticas p articip ativas capazes de na medida em que aqueles pontos básicos estão
perm itir situações que conduzam a um processo presentes hoje não só na Carta Constitucional
de intercâm bio entre sua base administrativa, a mas também, de forma mais detalhada, em vá­
respectiva sociedade nela existente e a infra- rias Constituições Estaduais, Leis Orgânicas Mu­
estrutura construída. Sob este prisma, a cidade nicipais e Planos Diretores.
e o meio am biente urbano em seu conjunto são No que se refere ao uso mais social do
co ncebidos e analisados com o resultado dos solo urbano, uma série de instrumentos legais,
diversos processos de interação entre as ins­ voltados para a melhora da qualidade de vida
tâncias e subsistemas, contendo o humano, o das cidades e que possibilitem o controle das
social, o natural e o construído sob a égide do iniciativas públicas e privadas sobre o urbano,
adm inistrativo3. foi aprovada pelo legislativo em suas diferentes
A discussão em torno da Reforma Urba­ esferas. Destacam-se dentre os instrumentos:
na no Brasil atingiu seu ápice em 1988 com 1 - Tributários - IPTU - Imposto Predial e
e x p re ssiv a p a rtic ip a ç ã o p o p u la r e re sp a ld o Territorial Urbano, progressivo no tem ­
parlamentar, fundados na constatação da inca­ po para as áreas ociosas.
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2 - Ju r íd ic o s - E d ific a ç ã o co m p u lsó ria , apresentar novas propostas, sempre em versão


desapropriação, discriminação das ter­ atualizada, na certeza de que as conquistas sig­
ras públicas e regularização de lotea- n ificariam , verd ad eira m e n te , uma vitó ria da
mentos ilegais e áreas faveladas. particip ação efetiva da socied ad e na busca,
3 - Urbanísticos - Criação de zonas espe­ compreensão e ajuste da e na cidade.
ciais de investimentos públicos e m aio­ Mos últimos anos, os movimentos sociais
res exigências para aprovação dos lo- organizados registraram várias conquistas no
teamentos. contexto político brasileiro, sendo a maior, na
4 - Participação Popular - Mecanismos como verdade, a incorporação da visão política da
em end as p o p u lares que podem ser questão urbana em contraposição à concepção
apresentadas no âmbito do Legislativo e tecnocràtica dominante nas décadas anteriores.
dos Conselhos Municipais instituídos em A maior visibilidade adquirida pela ques­
várias prefeituras do país, onde a so­ tão urbana desnudou a situação de penúria dos
ciedade civil participa, por seus repre­ tra b a lh a d o re s u rb an o s, m o ra d o re s em sua
sentan tes, na d efin ição dos Planos grande maioria de bairros subequipados em ha­
Diretores. bitações precárias e em longínquas periferias,
Ainda no que tange à participação popu­ onde a ausência de condições de vida dignas,
lar, os instrumentos legais expressam o reco­ entre outros aspectos, expressam-se concreta­
nhecimento formal das necessidades e direitos mente no território. Os fulcros e enrugam entos
da população pobre das áreas urbanas. territoriais testem unham o m oderno processo
Dentre elas, evidencia-se a questão do de industrialização que o país experimentou nos
acesso à moradia que pressupõe: últimos 50 anos, com a formação de uma massa
Urbanização e regularização fundiária das de trabalhadores de baixos salários, inseridos
áreas faveladas e loteamentos ilegais. numa sociedade de fortes apelos de consumo.
Programas de construção de moradias po­ A precariedade da habitação5 e de seu
pulares por parte dos estados e municípios. entorno, no Brasil, ganha realce com o aumento
- Utilização das terras públicas ociosas pa­ acentuado de favelas e cortiços, além do cresci­
ra assentamentos da população de baixa mento do número de pessoas que não possuem
renda. moradia fixa e que moram nas ruas.
O advento da participação popular, con­ Sabe-se que a relação emprego e renda
forme os preceitos das conquistas sociais deste exclui parcela expressiva de trabalhadores dos
final de século, enfatiza os princípios basilares programas habitacionais oficiais. O salário m í­
em relação à vida nas cidades: nimo brasileiro é um dos mais baixos do mundo,
1 - Direito à cidade; (atualmente 180 reais - mais ou menos 70 dó­
2 - Gestão Democrática da cidade; lares), incom patível com a relevância interna­
3 - Função social da cidade e da propriedade. cional do país que tem um P IB situado entre os
Essa concepção de cidade ensejou uma dez maiores do mundo. Contraditoriam ente, a
ampla discussão de sua dimensão política, con­ distribuição de renda no Brasil é uma das mais
tida nos preceitos da dem ocracia, agregando injustas do planeta.
administradores, políticos, lideranças comunitá­ Aqui, há uma forte relação entre o pro­
rias, assessores de Ongs e demais agentes en­ cesso de industrialização, urbanização e co n ­
volvidos na gestão urbana na perspectiva do centração fundiária no campo. Luta-se por terra
território. Buscando êxito nas negociações, ali­ no campo para o trabalho, na cidade, por em ­
cerçado pelo insistente desejo social dos cita- prego e casa para morar. O modelo contradi­
dinos, estes agentes estavam credenciados a tório da urbanização brasileira fortalece a apar-
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 13

tação e o conflito. Ele nega, na verdade, os setores ligados à especulação im obiliária. De


preceitos de qualidade de vida digna e m anu­ 1988 até sua aprovação, o Projeto de Lei foi
tenção das referencias culturais estruturantes, enviado para exame às diversas Com issões da
necessários na construção do caráter e da iden­ Câmara Federal de acordo com os temas aborda­
tidade da população. A gestão oficial prioriza dos. Distribuído originalm ente à Com issão de
áreas restritas nas cidades para assentam ento Viação e Transportes, Desenvolvimento Urbano e
de infra-estrutura e equipam entos destinados Interior (depois subdividida em Comissão de Via­
aos setores dom inantes em detrimento das ne­ ção e Transportes - CVT - e Comissão de Desen­
cessidades básicas, m ateriais e im ateriais, da volvimento Urbano e Interior - CDUI), e à Com is­
maioria dos trabalhadores. são de Constituição e Ju s tiç a e de Redação
Os pressupostos para reverter este qua­ (C C JR ), a proposição teve audiência solicitada
dro da política urbana no Brasil apoiavam-se em pela Comissão de Economia, Indústria e Com ér­
princípios norteadores e normas básicas, edifi­ cio (CEIC) e pela Comissão de Defesa do Consu­
cados a partir da discussão com a sociedade midor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM).
civil, mediante consulta a suas entidades, espe­ Som ente em outubro de 1997. o Estatuto
cialistas e parlamentares. Cumprindo esta feita, da Cidade logrou ser aprovado na forma de um
a determ inação constitucional (art. 21, inciso Substituto na primeira das comissões, a CEIC. A
XX, da CF) diz que com pete à União instituir CDCMAM, por seu turno, aprovou o projeto no
diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclu­ final de 1998, também na forma de um Su bs­
sive habitação, saneam ento básico e transpor­ titutivo, que aproveita o texto da C EIC e o aper­
tes urbanos. Exigia, especialm ente, a aprovação feiçoa com algum as emendas. A CDCMAM re­
de uma lei que instrumentalizasse os municípios quereu e obteve a redistribuição do projeto,
para que pudessem cumprir, de forma eficiente, motivo pelo qual o seu parecer tem o status
o seu papel de principais sujeitos e beneficiários regimental de parecer de mérito.
da política urbana. Coube a CDUI, tida como principal co­
missão de mérito, a análise geral da m atéria
tratada pelo PL 5.788/90 e seus apensos.
IV - O E s ta tu to da Cidade A aprovação do Estatuto da cidade foi
uma grande vitória da sociedade civil, especial­
O Estatuto da Cidade6, nome como ficou m ente dos m ovim entos sociais urbanos. Sua
conhecida a lei que estabelece diretrizes da po­ ação reg u lad o ra auxiliará as a d m in istra ç õ e s
lítica urbana e dá outras providências, fixa parâ­ m unicipais que contarão com um im portante
metros para aplicação do capítulo da política instrumento para intervir na estrutura e dinâ­
urbana da Constituição Federal, definindo prin­ mica dos centros urbanos.
cípios e objetivos, diretrizes de ação e instru­ Cabe ao Estatuto da Cidade um papel fun­
mentos de gestão urbana a serem utilizados, damental no processo de reestruturação e requa-
principalmente pelo Poder Público municipal. lificação urbana das cidades brasileiras. Ao ins­
Ho que tange aos ganhos, o Estatuto da tituir e disciplinar antigas dem andas expressas
cidade contém outros instrumentos que foram em questões, como IPTU progressivo, desapro­
por ele disciplinados. Eles têm um expressivo priação com pagamento em títulos e usucapião
peso na redefinição de uma nova cidade, con­ urbano, ele cumpre um inestimável papel social. A
soante aos anseios e desejo da população. grande conquista é a possibilidade do usucapião
Os ganhos contidos no Estatuto da Cidade coletivo, o que permite a concessão de títulos de
explicam sua longa tramitação. O encam inha­ posse para as comunidades faveladas em lotea-
mento do Projeto de Lei teve forte reação dos mentos clandestinos, entre outras. O usucapião
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especial, coletivo de imóvel urbano, será decla­ Mesta segunda parte, a lei dispõe sobre
rado pelo juiz, mediante sentença, na qual será as diretrizes gerais que deverão orientar a po­
atribuida igual fração ideal de terreno a cada lítica urbana, destacando-se a gestão dem ocrá­
possuidor, independentemente da dimensão do tica, o atendimento ao interesse social, a orde­
terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de nação e o controle do uso do solo urbano, a
acordo escrito entre os condominos, estabele­ adequação dos gastos públicos aos objetivos do
cendo frações ideais diferenciadas. O projeto di- desenvolvim ento urbano e o cum primento da
vide-se em três títulos: função social da propriedade. Define como po­
1 - Principios e Objetivos; líticas setoriais a ordenação do território, o con­
2 - Política Urbana; trole do uso do solo, a participação comunitária
3 - Disposições Gerais. e o desfavelamento. Enum era os instrumentos
da política de desenvolvimento urbano, dispondo
sobre o parcelamento, a edificação e a utiliza­
1 . Princípios e objetivos
ção compulsórios, o direito de preempção, o di­
reito de superfície e o usucapião especial co­
1.1 Definições
letivo. Mos dispositivos referentes ao plano di­
1.2 função Social da Propriedade
retor, são definidos o processo de elaboração,
as diretrizes essenciais e o conteúdo básico.
Meste item, a lei define a política urbana,
Determina que o plano diretor e os planos m u­
a garantia do direito à cidade, urbanism o e
nicipais de desenvolvim ento serão elaborados
direito urbanístico, enumerando os objetivos da
pelo Poder Executivo municipal, subm etidos à
política urbana, entre eles o direito dos agentes
Câm ara de Vereadores, que os aprovará por
coletivos à cidade; a distribuição social dos ser­
quorum qualificado. Prevê a criação de uma
viços públicos e equipamentos urbanos; e a or­
agência social de habitação para gerenciar a
denação da ocupação, do uso e da expansão do
política habitacional. O Município Metropolitano
território urbano de acordo com a função social
é definido como aquele que coordenará a ges­
da propriedade. Em seguida, estabelece os re­
tão de sua respectiva região metropolitana, do
quisitos para o cumprimento da função social da
Prefeito Metropolitano e do Conselho D elibe­
propriedade imobiliária urbana, vinculando-o ao
rativo. A adesão do Município à região metropo­
atendim ento das exigências do plano diretor.
litana, segundo a proposta, implica com prom is­
Dispõe, ainda, sobre os casos de abuso do di­
so de participação no planejamento conjunto, na
reito e da função social da propriedade, entre
eles a retenção especulativa do solo urbano. ob servância das p rio rid ad es ap rovad as pelo
Conselho Deliberativo e na contribuição para a
cobertura dos gastos comuns.
2 . P olítica urbana

2.1 Diretrizes Gerais 3 . D isposições g erais


2.2 Políticas Setoriais
2.3 Instrumentos da Política de Desen­ 3.1 Do Conselho Macional de Política
volvimento Urbano Urbana
2.4 Plano Diretor 3.2 Disposições Finais
2.5 Equipam entos Urbanos e C om u ­
nitários O Poder Ex ecu tivo está au to riz a d o a
2.6 Regiões Metropolitanas e Aglom e­ transformar o então existente Conselho Macional
rações Urbanas de Desenvolvimento Urbano (CMDU) em Conse-
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 15

Iho nacional de Política Urbana (CHPU), tendo conjunto de políticas voltava-se para o mercado
por finalidade manter estudos permanentes so­ formal de trabalho, deixando à sua própria sor­
bre o processo de urbanização, de acom panhar te um enorm e contingente de trabalhadores in­
a execução dos programas da agencia de ha­ formais. A favelização e o cortiçamento acelera­
bitação, de sugerir aos Estados e Municipios do das grandes e médias cidades foram uma
instrum entos de política urbana. Entre outras das rápidas respostas geradas por este equivo­
atribuições, assegura a participação popular no cado procedimento político. O advento do Fundo
cnpu. de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do
Sistem a Brasileiro de Poupança e Em préstim o
(S B P E ) foram básicos para o fortalecimento do
V - O E s ta tu to da Cidade e p o lítica urbana BHH. A partir do final da década de 1960, o BHH
torna-se instrum ento financeiro e ssen cial na
A aprovação do Estatuto da Cidade, além estratégia desenvolvimentista do regim e militar.
de realçar todo o mérito que ele contém no que Ha conjuntura histórica brasileira, no bo­
concerne a seu caráter de instrumento de re­ jo do "m ilagre econômico" a década de 1970 se
gulação urbana e disciplinamento das cidades, destaca. Durante ela, surgem os pólos de de­
garan te e incentiva o retorno às discussões senvolvim ento e a institucionalização das re­
capazes de reavivar o debate sobre a questão giões metropolitanas. O reconhecim ento oficial
urbana. De recente inserção no contexto político da in te n sid ad e dos fluxos d e m o g ráfico s em
do país, a questão urbana ainda é pouco m ere­ direção às grandes cidades revela a composição
cedora de atenção por parte das autoridades da nova fisionomia do País. Em 1973, são cria­
públicas. A reconstituição histórica da recente das as regiões m etropolitanas de São Paulo,
política urbana brasileira remonta ao período do Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador,
governo Jo ã o Goulart, em 1963, quando houve Curitiba, Belém e Fortaleza e, em 1974, a re­
a primeira tentativa federal de sistematização e gião metropolitana do Rio de Janeiro . Completa
intervenção mais consistente neste setor - res­ esse período, a inserção de um capítulo sobre a
posta às fortes pressões populares, no conjunto questão urbana no II Plano Hacional de Desen­
das reformas de base ocorridas nesse período, volvimento (II PHD) e a criação do Conselho Ha­
foi realizado o Sem inário nacional de Habitação cional de Desenvolvimento Urbano (CHDU).
e Reforma Urbana, dando origem ao SERFHAU - As cidades espraiam-se, am pliando d e­
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo. O masiadamente sua área. Eclodem os problem as
golpe de 1964 redireciona a política urbana, ambientais urbanos com a destruição ou com ­
enfocando a questão pela vertente habitacional prometimento acelerado dos recursos naturais.
e financeira, nesse ano é criado o Banco nacio­ O BHH é o carro-chefe, o principal agente pú­
nal de Habitação (BHH) que estabelece uma po­ blico do processo acelerado de urbanização,
lítica de Financiamento para a habitação. A ação vitória da ideologia oficial de incentivo ao aces­
do BHH será determ inante no redesenho da so à casa própria, num quadro de acentuado
cidade brasileira, favorecendo a form ação de déficit habitacional. O m ercado am pliad o dá
am plos espaços periféricos constituídos pelos respostas à forte demanda por habitação, ser­
enorm es conjuntos habitacionais. As políticas viços públicos e equipamentos coletivos de con­
adotadas aceleram o processo especulativo do sumo, incrementando a construção civil. O au ­
mercado urbano de terras, inflaciona os custos mento acentuado do predom ínio do governo
de m aterial de construção, além de com pro­ central nas decisões políticas n acio n ais c o n ­
m eter núm ero con sid erável de fam ílias com trasta com o paulatino esvaziam ento da au to­
longos períodos de financiamento da moradia. O nomia dos estados e municípios. A centralização
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do poder e a crença na capacidade do planeja­ Só em 1988, quando foi promulgada a


mento em dar respostas aos grandes problemas nova Constituição Brasileira, as dem andas so­
nacionais e gerar o esperado desenvolvimento, ciais, vislumbrando uma cidade melhor, são tra­
reforçam e mantêm a concentração da expan­ tadas de forma mais conseqüente. Ho título Da
são industrial nos grandes pólos tradicionais7 Ordem Econôm ica e Financeira, um capítulo é
Os primeiros sintomas de mudança ocor­ consagrado à política urbana e detalhado em
rem com o encam inhamento ao Congresso pelo seus artigos 182 e 183.
Executivo do Projeto de Lei 775/83. "Lentos si­ Prom ulgada a Carta Constitucional de
nais de abertura política, em resposta à forte 1988, o senador Pompeu de Souza apresentou o
pressão política e popular ao regime m ilitar" O Projeto de Lei do Senado 181/89, denominado
grande ganho repousa no princípio da função Estatuto da Cidade, que regulamenta os artigos
social da propriedade e no estabelecimento de 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece
um a política urbana em consonância com a diretrizes gerais de política urbana. Aprovado no
realidade do país. Senado Federal, o projeto vai para a Câm ara
Há consolidação dos movimentos sociais dos Deputados em 1990, na forma do Projeto
com forte participação popular, apoio da Igreja de Lei 5.788/90 e, infelizmente, passa a ter uma
por meio da C EB 's e da organização sindical. O tramitação extremamente lenta.
encam inham ento do projeto, inscreve-se entre A lenta tram itação do projeto é inter­
as primeiras vitórias da sociedade civil sobre o rompida em 1997, com forte influência das enti­
regim e militar. O contexto político alim entava dades, políticos e militantes que participaram do
um am plo debate nacional com a organização e Fórum Hacional de Reforma Urbana (FHRU). O
fortalecimento dos partidos de esquerda. A luta projeto volta a ganhar fôlego e retorna à pauta
pela reforma urbana se consolidava, seguia o do Legislativo. Após intenso debate na CEIC, é
rastro das reivindicações de toda ordem que apresentado o primeiro Substitutivo na Câmara
colocava o país em ebulição. O povo nas ruas dos Deputados. Como resultado de um trabalho
clamava por m elhores condições de vida, onde do movimento social organizado, o Executivo Fe­
a moradia tinha papel preponderante. deral passa a demonstrar interesse na matéria
A d errota do m ovim ento "D iretas J á " por meio da então Secretaria de Política Urbana
frustrou o movimento popular, partidos de es­ do Ministério do Planejamento e Orçamento e, o
querda, m obilização estudantil e organização em presariado urbano, aos poucos, com eça a
sindical. Segue-se a "Hova República" com pro­ perceber o Estatuto da Cidade como instrum en­
m essas e decepções. Com a m esm a rapidez to importante no desenvolvimento de seus inte­
que cria, extingue, o Ministério do D esenvol­ resses econômicos.
vimento Urbano (MDU), que durou um ano. Du­ Após a aprovação na C E IC 8,. a proposi­
rante sua existência provocou e gerou grande ção é enviada a CDCMAM, na qual é aprovado
interesse social e destacava a importância que outro Substitutivo que aperfeiçoa o texto da co ­
a questão urbana ganhava com a lenta rede- missão anterior, sobretudo em relação à ques­
m o cra tiz a ç ã o do p aís. A e fe rv e s c ê n c ia dos tão ambiental.
m ovim entos sociais urbanos com intensa orga­ O Estatuto da Cidade disciplina instru­
nização e m obilização das com unidades não mentos fundamentais para a regulam entação da
foi suficiente para im pedir o desm anche de Constituição Federal.
tudo que fora institucionalizado até então. E s ­ O parcelamento, a edificação ou a uti­
sa desm o n tag em sem igual im pediu a p re ­ lização compulsórios, com base no artigo 182,
sença do urbano institucionalizado na pauta § 4 ° da Constituição, são um dos principais ins­
política nacional. trumentos para limitar ou mesmo impedir a re-
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 17

tenção de terrenos urbanos ociosos. São funda­ Transferência onerosa do direito de cons­
mentais no barateamento dos custos de im plan­ truir: estabelecimento pelo Município de um
tação e m anutenção de infra-estrutura, equipa­ coeficiente de ocupação de solo autorizada
mentos e serviços urbanos e no aumento das sob pagamento. Permite ao Poder Público a
densidades, coibindo a especulação e manuten­ cobrança pela utilização mais intensa da
ção dos onerosos vazios urbanos. infra-estrutura urbana instalada na proximi­
O IPTU progressivo no tempo, também dade das operações imobiliárias.
previsto na Lei, no artigo 182, § 4o, da Cons­ - Operações urbanas consorciadas: compõe-
tituição, é uma sanção compulsoria vinculada ao se de um conjunto de intervenções e m e­
não cum prim ento do parcelam ento, da edifi­ didas co o rd en ad as pelo poder pú blico
cação ou da utilização do solo urbano. m unicipal, com a participação dos pro ­
A desapropriação com pagam ento m e­ prietários, moradores e usuários e de in­
diante títulos da dívida pública, sem elhante à vestidores privados, com o objetivo de a l­
realizada para fins de reforma agrária é outro cançar, em uma área, transform ações e
instrumento previsto pela Lei cuja efetivação se melhoras urbanísticas estruturais, m elho­
cumpre como seqüência da aplicação dos dois rias sociais e valorização ambiental.
anteriores. - Direito de preempção: na concepção do
A Lei dispõe também sobre o usucapião Estatuto da Cidade, dispõe sobre a pre­
especial urbano, relativo ao artigo 183 da Cons­ ferência do Poder Público na compra de
tituição Federal. O Estatuto da Cidade avança ao im óveis urbanos, visando a assegurar a
perm itir a figura do usucapião coletivo. Seu formação de um estoque de terras públi­
papel é básico na promoção da regularização cas sem a necessidade de desapropriação.
fundiária nas cidades.
A Lei trata ainda do Plano Diretor, pre­ Alguns desses instrumentos foram incor­
visto no artigo 182, § I o, da Constituição conce­ porados nos substitutivos elaborados pelas co­
bido com o instrum ento básico da política de missões técnicas, a partir dos projetos apen-
desenvolvim ento e de expansão urbana9 sados e de planos diretores municipais já pro­
Além de regulam entação constitucional, postos ou aprovados e são fundam entais na
o Estatuto da Cidade disciplina os seguintes criação de melhores condições de vida para os
instrumentos: citadinos. Entretanto, o Estatuto da Cidade ain ­
- Direito de superfície: permite dissociar o da é limitado no que tange ao alcance de con­
d ireito de p ro pried ad e do terreno e o dições necessárias a uma vida socialmente justa
direito de propriedade de edificação. O e am b ien talm en te saudável, co m p ree n d en d o
proprietário urbano poderá conceder a uma gestão urbana que envolva, inclusive, con­
outrem o d ireito de su perfície do seu quistas na área do sistema de saneam ento bá­
terreno, por um tempo determ inado ou sico pela gerência adequada dos resíduos só­
indeterminado, mediante escritura pública lidos, captação, tratamento- e ab astecim e n to
averbada no Cartório de Registro de Im ó­ d'água, coleta e tratamento do esgoto, além da
veis. Visa fundam entalm ente a flexibili­ universalização desses serviços.
dade e utilização dos terrenos. A administração pública não ultrapassou
- Transferencia do direito de construir: facul­ os limites da política de intenções e não obteve,
dade atribuída ao proprietário do imóvel portanto, repercussões práticas sobre o p ro ­
urbano, autorizada por lei municipal, de cesso de urbanização caótico no Brasil, contri­
exercer o direito de construir em outro local buindo para a perm anência de determ inado s
ou alienar um direito ainda não exercido. critérios de intervenção sobre a vida urbana
18 Revista GEOUSP, N° 10 Jo sé Borzacchiello da Silva

que redundam em recorrentes fracassos e na rosa apenas ao direito de construir. A alte­


execução das estruturas administrativas respon­ ração de uso do solo, mediante contrapar­
sáveis pelo planejamento. tida a ser prestada pelo beneficiário, é
A partir desse intenso e abrangente tra­ também um instrumento importante.
balho com os diferentes setores da sociedade, - Ação civil pública: Prevista expressamente
foram ampliados no Substitutivo as disposições com vistas à reparação de danos causa­
sobre o Plano Diretor e as regiões m etropo­ dos à ordem urbanística. Hão obstante, a
litanas, introduzidos em capítulo específico so­ Lei da Ação Civil Pública já prevê a sua
bre gestão democrática. Foi disciplinado o ins­ u tilização para a defesa de in teresses
trumento da outorga onerosa de alteração de difusos e coletivos, o Ministério Público
uso, estabelecendo o rito sumário para as ações tem enfrentado problem as para fazê-lo
de usucapião especial urbano, prevendo expres­ aplicar em caso de questões urbanísticas.
samente a utilização da ação civil pública com Trata-se de m edida que fortalecerá so­
vistas à reparação dos danos causados à ordem
brem aneira a intervenção do Ministério
urbanística. Este prevê diferentes tipos de san­
Público.
ções. São inovações importantes:
- Sanções: Tãnto o PL 8.788/90 com o os
Mo processo de discussão do parecer,
su bstitu tivos ap rovad os na C E IC e na
houve várias propostas de inserção no
CDCMAM são omissos em relação às san­
texto do Substitutivo de matéria referente
ções aplicáveis nos casos de infrações a
à organização das regiões m etropolita­
suas determinações. Na Lei aprovada fo­
nas, como a obrigação de constituírem-se
ram previstos diferentes tipos de sanções.
conselhos administrativos, fundos metro­
Será nula, por exemplo, a lei que instituir o
politanos, etc. O entendimento foi que dis­
positivos com esse tipo de conteúdo se­ Plano Diretor sem participação popular em
riam inconstitucionais, razão pela qual não seu processo de elaboração. As ações e
foram inseridos. omissões graves do Prefeito caracterizar-
Ho difícil trâmite do Estatuto da Cidade, se-ão como improbidade administrativa.
certos temas geraram muitas polêmicas,
exigindo uma complicada negociação: A negociação exigiu vários ajustes em
Gestão democrática: não obstante o Subs­ pontos do Substitutivo da CDCMAM. Destacam-
titutivo da CDCMAM conter algumas refe­ se as alte raçõ e s feitas nos disp o sitivo s que
rências à participação popular na gestão tratam da taxa de juros na desapropriação/san­
urbana, não tratava o tema com a impor­ ção prevista pelo art. 182 da Constituição Fede­
tância necessária. Foi proposta que a ges­ ral que, injusdificadamente, beneficiava o infra­
tão democrática passe a constituir um ca­ tor, e da definição de subutilização do solo
pítulo específico, que explicite os instru­ urbano, que não previa a hipótese de descum-
mentos a serem utilizados e que enfoque a primento da legislação cabível. Essas, como a
gestão orçamentária participativa. m aioria das inovações propostas no Substitu­
- Usucapião especial urbano: Foi previsto o tivo, resultam do processo de discussão sobre a
"rito sumário" para ação judicial relativa reforma urbana.
ao usucapião especial de imóveis urba­ A Reforma Urbana no Brasil é uma ne­
nos. A m orosidade processual excessiva cessidade. O Estatuto da Cidade é um caminho.
tem hoje im pedido a concretização do É bem verdade que este volta-se mais para os
direito à moradia. aspectos fundiários, sendo omisso no que con­
- Outorga onerosa de alteração de uso: não cerne às questões capazes de redefinir e rede­
se justifica a concessão da outorga one­ senhar as cidades brasileiras. É inegável seu
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 19

papel na g a ran tia de vida digna em nossas O documento submetido à discussão e


cidades. Para efetivá-la, é fundamental assegu­ deliberação dos presentes na Sessão Plenária e
rar a justa distribuição dos benefícios e ônus do de Encerram ento da Conferência das Cidades
processo de urbanização. A sua concretização foi aprovado por unanimidade. Ele constata, ex­
depende de fatores diversos, entre os quais se pressa e denuncia o injusto processo de urba­
destaca o am plo engajam ento da sociedade com nização brasileiro, excessivam ente seletivo e
o in te re sse so c ia l. Se ava n ça m o s agora no concentrador, incoerente com os pressupostos
aspecto fundiário da cidade, garantindo lugar de uma sociedade verdadeiram ente d em o crá­
para todos, cabe continuar a luta em busca de tica. Ao contrário do que se esperava, o pro­
um com p leto estatuto que contenha solução cesso se acirra neste final de século, sob a égi­
para questões fundamentais, como saneamento de da globalização, atingindo através da exclu­
básico, habitação, transporte e segurança pú­ são expressivo contingente da população u r­
blica. Um Estatuto da Cidade completo só pode­ bana. O aperfeiçoamento das técnicas de m ar­
rá ser produzido com a participação efetiva da keting e de publicidade am plia e vulgariza a
população. As antigas estruturas de poder têm difusão de produtos, redim ensionando o m er­
que se ajustar às novas demandas sociais que cado. Meste contexto, a cidade, em seu conjun­
incluem a gestão urbana particip ativa com o to, é tratada como mercadoria. A I Conferência
e ssen cial. C o n stru ir cidades bonitas, lim pas, das Cidades conclama e reafirma a mobilização
funcionais e ju s ta s é uma tarefa difícil. Sua popular como instrumento de defesa de Refor­
execução depende ainda da ação da sociedade ma Urbana, co n d içã o leg al de g a ra n tia do
na defesa de Planos Diretores corretos e ade­ direito à cidade.
quados às necessidades da comunidade e para A seguir, a íntegra do documento e os
obtenção de investimentos nas áreas mais ca­ com entários n ecessários à sua co m p reensão
rentes detectadas pela comunidade. como instrumento de reforço à implantação da
Reforma Urbana no Brasil.

VI - C arta d as cid a d e s: uma con q u ista


coletiva C arta das cid ad es

A Carta das Cidades é um documento I A I Conferência das Cidades, realizada


aprovado na plenária final da I Conferência das no espaço privilegiado do Parlamento,
Cidades realizada no período de 1 a 3 de de­ com a presença de p articip an tes de
zembro de 1999, na Câm ara dos Deputados, todos os Estados da Federação, prove­
organizada pela Com issão de Desenvolvimento nientes de organizações da sociedade
Urbano e Interior. A Carta estabeleceu diretrizes civil e institucionais, vinculadas às ques­
básicas voltadas para o aperfeiçoam ento das tões urbanas, manifesta ao governo e à
políticas públicas na área do desenvolvim ento sociedade brasileira o sentido de ur­
urbano. A transform ação das diretrizes e dos gência das transformações indispensá­
instrum entos tratados pelo Estatuto da Cidade veis para que o País encontre o rumo
em lei federal foi um passo necessário nesse da construção de um am biente hum a­
processo. A Conferência das Cidades em B ra ­ no, so cialm en te digno, e fe tivam en te
sília reuniu trabalhos e reflexões de várias or­ democrático e culturalm ente rico para
ganizações da sociedade civil, especialistas e a população.
parlam entares, que estabeleceram as bases de II A cidade brasileira é o retrato perfeito
uma Carta das Cidades. de uma sociedade que se construiu e
20 Revista GEOUSP, M° 10 Jo sé Borzacchiello da Silva

se reproduz sobre a exploração e a V Tâl modelo é responsável pela realida­


opressão da imensa maioria da popu­ de em que vive a população brasileira,
lação. Este modelo contou com um E s ­ demonstrada pelos índices de desem ­
tado que investiu pesadamente no fo­ prego (6 m ilhões de brasileiro s p e r­
mento e na estruturação do desenvol­ deram o emprego na década de 1990,
vim en to u rbano-industrial, m ediante conforme dados do IBG E); pelo número
políticas cujo resultado foi uma cidade elevado de trabalhadores sem carteira
mais desigual, mais segregada. profissional assinada; pelo aumento da
III- Esta situação urbana tem sua origem população, vivendo em favelas, corti­
num conjunto articulado de questões ços, loteamentos clandestinos, nas ruas
e sob as pontes; pela violência urbana
oriundas de problem as estruturais do
e ru ral; pelo im en so c o n tig e n te de
País, como a concentração de renda, a
crianças ab an do nadas; pelos m a ssa­
migração do campo para as cidades, a
cres generalizados; pela redução cres­
inconsistência da política fundiária, a
cente da mobilidade, fruto do modelo
baixa taxação sobre a propriedade imo­
individual de transportes, pesado e one­
biliária ociosa, o escasso investimento
roso, e de leis de zoneamento que man­
público na provisão de infra-estrutura e
têm a força de trabalho em áreas lon­
na produção habitacional - fatores que
gínquas, gerando o caos nos trajetos,
favorecem os com portam entos e sp e ­
deslocamentos demorados e agressivos
culativos sobre a função social do solo
que implicam em perdas de recursos,
urbano.
tempo e vidas hum anas. Um m odelo
IV - A financeirização da economia submete
perverso, enfim , que gera in d ivid u a­
os ritmos de vida da humanidade e da
lismo, implicando na elevação da hosti­
natureza, degradando a cidadania, de­
lidade e na decadência dos valores da
predando o meio ambiente e o patri­
so lid aried ad e, h um anid ad e e c o o p e ­
mônio cultural, ignorando a m em ória
ração urbana.
como elem ento construtivo e signifi­ VI - O Estado brasileiro foi historicam ente
cativo para a com preensão e gestão marcado pela desigualdade e pelo uso
das cid ad es, desagreg an do e a m e a ­ dos bens p ú b lico s em b e n e fício de
çando a sobrevivência das populações classes já privilegiadas. Investim entos
trad icion ais (índios, pescadores, c a i­ socialm ente concentrados e oriundos
ç a ra s, p o vo a ç õ e s rib e irin h a s , e tc.). das relações de troca de favores e cli­
Com a reestruturação econôm ica e a entelism o reduziram e continuam re­
globalização, as cidades são progres­ duzindo o acesso da maioria da popu­
sivam en te integradas em estratég ias lação a direitos básicos. Nos anos 90,
mundializadas, que produzem formatos essa situação piorou. Houve mudanças
de cidades homogêneas (shopping cen­ na re la ç ã o E s ta d o - s o c ie d a d e c iv il,
ters, etc.). Sistem as de comunicação e aumento do déficit público, desm onte
inform atização nos integram ao p ri­ das políticas sociais, privatização de
meiro mundo a um custo social gravís­ bens e serviços públicos, agravam ento
simo, descaracterizando as instituições da crise social, endividamento dos go­
públicas, os movimentos sociais e tor­ vernos estaduais e m unicipais, im po­
nando descartáveis setores produtivos sições internacionais, perda de direitos
excluídos pelos novos parâmetros. conquistados na Constituição de 1988,
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 21

disputa entre níveis de governo, bem IX - A I C o n fe rê n c ia das C id a d e s bu sca


com o a em erg en cia de novos re p re ­ oferecer ressonância à voz dos que lu­
sentantes das velhas elites brasileiras tam e sonham que é possível construir
no desenho de políticas urbanas, acen­ espaços de convivência com um novo
tuando as lógicas em presariais e de perfil. Em nom e dessas aspirações e
negocios e transform ando os direitos das múltiplas possibilidades oferecidas
sociais em mercadoria. pelo exercício da cidadania, afirma-se
V I I - A cidade brasileira também é o lugar a perspectiva da construção de cidades
da luta, o lugar da constituição de m o­ estruturadas para a plena satisfação
v im e n to s o rg a n iz a d o s que q u erem das exigências m ateriais e espirituais
transformá-la. É o lugar da construção de seus habitantes.
da cidadania, conquistada a partir de X - A I Conferência das Cidades reafirma e
experiências concretas de solidariedade assume para si as deliberações da Con­
e da elaboração coletiva de projetos ferência nacional de Saneamento e pro­
alternativos. Hão obstante, na atual po­ põe à sociedade brasileira, de imediato:
lítica centralista, inúmeros m unicípios - A formulação de um novo projeto de
têm fortalecido a democracia e o aten­ desenvolvim ento para o Brasil, ins­
dim ento das necessidades de parcela crevendo, entre outras políticas pú­
significativa da população, a partir da blicas, o desenvolvimento urbano, no
experim entação e afirmação de novas sentido de asseg urar a articulação
fo rm as de p la n e jam e n to e a d m in is ­ das dimensões am biental e social, e
tração pública. Apesar da cultura da sua integração ao conjunto das po­
com petição, os excluídos da produção líticas e planos para o País, suas re­
formal vão criando laços de coopera­ giões e cidades.
ção, articulando e estruturando na prá­ - Para viabilizar a execução deste pro­
tica a economia popular, pressionando jeto nacional de desenvolvimento, no
por políticas públicas que interfiram no que se refere à política urbana, im ­
mercado e que possam garantir traba­ põe-se a reversão do panorama atual
lho e renda. relativo à alocação de recursos, in­
VIII - Para reverter o processo crescente da clusive do BN D ES e FINAME, para ha­
produção da pobreza, desigualdade e bitação, saneamento, transporte pú­
exclusão social, bem como de degra­ blico de massas e infra-estrutura ur­
dação hum ana e am biental, é neces­ bana. É necessária a previsão - e
sário adotar metas claras, visando a l­ efetiva aplicação - nas leis orçam en­
can ça r reform as estruturais para um tárias dos três níveis de governo de
novo modelo de desenvolvimento, como um volume significativamente maior
já é apontado por vários documentos do de recursos a fundo perdido.
movimento popular e democrático, entre Mesm o ad m itin d o a re le vân cia da
e le s o M anifesto do M ovim ento em participação dos recursos privados,
Defesa do Brasil, da Democracia e do cum pre-nos e vid e n cia r o h istó rico
Trabalho, construindo uma ação comum papel alavancador do desenvolvim en­
de e n tid a d e s, sin d ica to s e p artid o s to urbano representado pelos recur­
políticos, na perspectiva da edificação sos públicos, exigindo-se tam b ém
da unidade no curso das lutas. melhor utilização dos recursos orça-
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mentários, mediante a sua conjuga­ - O apoio irrestrito à luta pela Reforma


ção com outras fontes (FGTS, recur­ Agrária como parte integrante do e s­
sos do BN D ES, da C EF e de organis­ forço voltado para o desenvolvim ento
mos m ultilaterais), voltadas em e s­ nacional, ao lado da Reforma Urba­
pecial para financiamento das clas­ na, e à oferta de serviços públicos
ses e cam adas de baixa renda da às vilas e às pequenas localidades
sociedade. rurais, a exemplo da eletrificação ru­
- R e a firm a ç ã o da R efo rm a U rb an a, ral, saneam ento e outros instrumen­
substrato e garantia do direito à ci­ tos de conforto, saúde e estímulo à
dade, à função social da propriedade cidadania, oferecendo consistência a
e à m oradia, como direitos funda­ uma política de emprego e elevação
m entais das populações urbanas e da qualidade de vida dos trabalha­
dos indivíduos, contribuindo para a dores rurais - protagonistas da pro­
promoção do desenvolvimento mate­ dução de alim entos crescentem ente
rial, social e cultural de uma pátria de importados -, tornando mais atraen­
brasileiros e, assim, promovendo a te a vida no campo e gerando conse­
efetiva melhora da qualidade de vida. qüente impacto positivo nas cidades.
- O estabelecimento de um novo pacto - A am pliação da política de preser­
Federativo, que vede a centralização vação urbana, refo rçand o o papel
e concentração de recursos financei­ dos organismos federais, estaduais e
ros pela União, restabelecen do os municipais do setor, como instância
recursos e as prerrogativas dos Esta­ de proposição, im plem entação e arti­
dos e Municípios e a plena retomada culação de políticas públicas, desen­
das atividades de interesse local, as­ volvendo seus instrum en to s finan-
segurando às cidades o direito ina­ ceiros-urbano em ações que fomen­
lienável de formular e executar suas tem e articulem os diversos aspectos
políticas públicas, tornando disponí­ relativos à defesa do patrimônio cul­
veis, ainda, os program as federais tural (históricos, artísticos, educacio­
nais, etc.). A realização de um sem i­
de desenvolvimento urbano para efe­
nário nacional para discussão e ela­
tiva aplicação municipal.
boração do Sistem a Nacional de Pre­
A democratização do planejamento e
servação do Patrimônio Cultural, com
da gestão das cidades, com ênfase
a participação de representantes dos
nos mecanismos que garantam o in­
três poderes da República, dos m o­
teresse público, o acesso à inform a­
vim entos sociais afins, Ongs e em ­
ção e o controle social sobre os pro­
presas interessadas.
cessos decisorios das políticas e dos
recursos públicos, nos vários níveis, No plano legislativo, a aprovação defi­
assegurando a participação popular nitiva do Estatuto da Cidade foi uma grande
em geral, mediante a realização de vitória. Sua longa trajetória se inicia com o
orçam entos participativos, entre ou­ encam inham ento do PL 5.788/90, do Senado,
tros instrumentos e, em âmbito na­ aprovado p o sterio rm en te, nas co m issõ e s de
cional, a criação do Conselho Nacio­ mérito da Câmara dos Deputados. Ficou pen­
nal de Desenvolvimento Urbano, com dente de manifestação da Com issão de Cons­
efetiva participação da sociedade. tituição e Justiça e do Senado; da PEC 601/98,
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 23

que introduziu o direito à m oradia na C o n s­ O advento do espaço técnico científico in-


tituição Federal; do PL 2.710/92, de iniciativa po­ form acional, segundo SANTOS (1985), perm ite
pular, que cria o Fundo nacional de Moradia Po­ uma rediscussão da cidade quanto ao teor de
pular e o Conselho nacional de Moradia popular; tecnologia investido nela e a repercussão deste
da PEC 169/93, que trata dos recursos do SUS; a investimento em sua posição hierárquica regional,
inserção na proposta de Reforma Tributária da nacional e internacional. O estabelecim ento de
destinação de recursos vinculados do Imposto redes in fo rm a c io n a is in d e p e n d e n te m e n te da
Seletivo para o transporte urbano; regulam en­ hierarquia urbana tradicional, coloca em xeque o
tação dos artigos do Decreto-Lei n ° 25, de 30/11/ papel so cial das in versõ es te cn o ló g ica s c o n ­
1937. que trata da preservação do patrimonio centradas em setores modernos das cidades.
cultural brasileiro e define as atribuições do A com plexidade do urbano com te rri­
IPH An. Apresentou-se com o urna exigencia o tórios mais aquinhoados que outros revela um
cumprimento da Lei n .° 8.899/94, que concede intenso processo de mundialização que acelera
passe livre às pessoas portadoras de deficiência esta dupla extensão da cidade, tanto de suas
no sistema de transporte coletivo interestadual. dim ensões físicas quanto de suas p o ten ciali­
A Agência Habitat, da Onu, já iniciou o dades econômicas. As demandas sociais deslo­
processo preparatório do encontro de avaliação cam-se do campo, passam pelas cidades m é­
da Conferência de Istam bul, a realizar-se em dias, e ampliam-se na direção da m etrópole.
2001. Os compromissos firmados pelo governo Esse am álgam a de carências X reivindicações
brasileiro, como signatário da Agenda Habitat, não faz nascer novos modos de gestão da cidade,
foram implementados e nem sequer planejados.
objetivando uma m elhor m obilização do co n ­
A I Conferência das Cidades exige que a
junto de atores sociais que a compõe. As es­
sociedade civil seja chamada para a retomada
truturas urbanas, por sua vez, galvanizam -se
im ediata da Agenda Habitat.
nos espaços, formas e objetos. No seu entorno,
A Comissão de Desenvolvimento Urbano
coexistem formas espaciais e estruturas repre­
e Interior estabelece o compromisso de realizar
sentativas de distintos grupos, processos e pe­
a n u a lm e n te a C o n ferê n cia n a cio n a l das C i­
ríodos histórico-sociais, estabelecendo-se rela­
dades, precedida por conferências organizadas
ções que vão desde a harmonia e tolerância, à
nos Estados e Municípios pelas assem bléias le­
exclusão. Nesta direção, a história das cidades
g is la tiv a s e câm ara s m u n icip ais, articu la d a s
está posta na perspectiva do enfrentam ento
com as entidades e movimentos da sociedade
dessas relações que se expressam no seu en ­
civil. A III Conferência das Cidades será re a­
torno natural e construído.
lizada em outubro, na cidade de São Paulo.
A Reforma Urbana e todo seu corolário
A I Conferência das Cidades conclama à
buscam e dão sentido à cidade, mesmo quando
a m p la m o b iliz a ç ã o p o p u la r em d e fesa de
discutida no âm bito de sua gestão e perm a­
Reforma Urbana, do direito à moradia, ao trans­
nência enquanto unidade co n creta, fluida e
porte, ao saneamento, à infra-estrutura, enfim,
dinâmica. A cidade, o sentido de existência e de
do direito à cidade.
resistência permeiam a questão dos interesses
Ess e d o cu m en to , com o se vê, é um dos diversos grupos que a com põem e que
m arco histórico na insistente luta do cidadão provocam o surgim ento de novas form as de
pelo acesso pleno à cidade. gestão urbana democrática nos seus antigos e
A dim ensão do direito à cidade, assume novos territórios. Este processo leva em conta,
forma de uma "revolução urbana" pelo controle de um lado, vários tipos de expansão do espaço
da "vida quotidiana" dentro da estrutura territo­ da cidade que perm item diversas form as de
rial do Estado capitalista10 a p re en são na sua a d m in istra ç ã o . De ou tro,
24 Revista GEOUSP, M° 10 Jo s é Borzacchiello da Silva

deve-se sempre levar em consideração os níveis cada caso, observa-se que vários são os níveis
impostos pela mundialização da economia e da im postos pelo avan ço da so cied ad e no que
identidade, isto porque a m etropolização n e­ concerne ao direito a uma cidade concebida e
c essária para a captação de fluxos, repousa construída como um meio am biente saudável.
sobre uma política de afirmação de identidade Ma conjuntura em que se insere a Constituição
do pólo urbano na circulação mundial. Em con­ de 1988, favorece toda mobilização popular em
traponto, as enorm es franjas periféricas com prol da Reforma Urbana. Acresce as conquistas
baixo ou nenhum componente globalizado, com decorrentes da rápida circulação de idéias e
suas formas mais precárias que tomam e bus­ propagação dos m ovim entos em virtude dos
cam estas conquistas de margens, tornam-se, ava n ço s té c n ic o s - c ie n tífic o s in fo rm a c io n a is ,
cada vez mais importantes para sua imagem de extrapolando a própria globalização da econo­
espaço de conflito. mia, perm itindo a construção, cada vez mais
acelerada, de vínculos identitários que ultrapas­
A luta pela Reforma Urbana e o advento
do Estatu to da Cidade em ergiram dentre os sam os limites do local.
O quadro de conjuntura reforça a idéia
vários modos de gestão democrática da cidade,
de escassez face aos vários processos viven-
m uitos surgidos de uma verdadeira revolução
ciados neste final do século com o recrudesci-
m olecular no seio das organizações e m obili­
m ento da vid a m e tro p o lita n a , in tim a m e n te
zações populares que foram experimentados no
comprometida com condições ambientais insa­
Brasil, em especial, o da implantação de políticas
tisfatórias para a maioria da população. Mas úl­
p ú b licas de m icro-urbanização em form a de
timas décadas, o surgim ento das grandes cida­
"mutirão", que pretendiam integrar à cidade as­
des e uma nova configuração m etropolitana,
sentamentos humanos irregulares, como favelas
dominada pela pobreza urbana, modificou so­
e áreas de habitação subequipadas, socialmente
bremaneira a dinâmica demográfica interna das
m arcadas pela precariedade. Mo quadro adm i­
cidades brasileiras, enquadradas num processo
nistrativo, a progressiva mistura de gestões pú­
de formação de anéis periféricos e expansão de
blicas e privadas de serviços urbanos que foram
bacias metropolitanas nos moldes do que ocorre
m unicipalizados ou com prados pelas m ultina­ em outros países do Terceiro Mundo. Aqui, essa
cionais, conduzem à necessidade de se estabe­ configuração adquire feições sem elhantes ao
lecer políticas de proteção às populações margi­ processo ocorrido na Europa do pós-guerra com
nalizadas dos bairros informais da metrópole. A uma dinâmica que evidencia e proporciona uma
busca do sentido da cidade, neste contexto de fluidez populacional para as periferias urbanas,
globalização e gestão social urbana, como do­ e sp e cia lm e n te as m e tro p o lita n a s, revelan d o
m ínio de segm entos m arcados pela pobreza, toda a trama da gestão urbana oVrde interesses
permite verificar os níveis de complementaridade em conflito resvalam pela lógica da especulação
existentes entre a cidade e os modos inovadores imobiliária.
de gestão. Esses vínculos agregados ao urbano que
O surgimento dessas formas inovadoras estende o sentido da cidade, ultrapassando seus
de g e s tã o u rb a n a d e m o c rá tic a nos novos limites, ampliando sua influência e importância,
territó rio s de conflitos da cidade tem várias sugerem a com preensão da cidade como uni­
c o n s e q ü ê n c ia s. De um lado, leva em conta dade social complexa, conforme os preceitos de
vários tipos de expansão do espaço da cidade uma gestão urbana particip ativa. Ao m esm o
que provocam diversas form as de confronto tempo, reforça a partir dessa concepção a pre-
entre povo e poder e impõem um desafio à sua mência da discussão do Estatuto da Cidade, no
administração. Por outro lado, na discussão de contexto da Reforma Urbana no Brasil.
O Estatuto da Cidade e a Reforma Urbana no Brasil 25

Vil - C o n sid eraçõ es finais Ainda no que tange à participação popular, os


instrumentos legais expressam o reconhecimento
O Estatuto da Cidade contém uma série formal das necessidades e direitos da população
de instrumentos legais inovadores voltados para pobre das áreas urbanas, evidenciando-se a
a melhora da qualidade de vida das cidades. Mo questão do acesso à m oradia que pressupõe
seu conjunto, trata-se de uma Lei que se destaca Urbanização e regularização fundiária das áreas
por induzir mais que normalizar as mais diversas faveladas e loteamentos ilegais; program as de
formas de uso do solo e o controle das iniciativas construção de moradias populares por parte dos
públicas e privadas sobre o urbano. A Lei pri­ estados e municípios; e utilização das terras pú­
vilegia, fundamentalmente, os aspectos fundiá­ blicas ociosas para assentamentos da população
rios urbanos. Os instrumentos urbanísticos con­ de baixa renda.
tidos no Estatuto são: os tributários - IPTU - Im ­ Mossa história urbana registra um extre­
posto Predial e Territorial Urbano progressivo no mo maltrato de nossas cidades. A Lei do Esta­
tempo para as áreas ociosas; os juríd icos - edi­ tuto da Cidade é uma grande conquista e sinal
ficação compulsória, desapropriação, discrimina­ de novos tempos na construção de cidades mais
ção das terras públicas e regularização de lotea- justas, humanas e bonitas - dignas de seu povo.
mentos ilegais e áreas faveladas; e os urbanís­ O Estatuto da Cidade constitui o ponto de par­
ticos - criação de zonas especiais de investimen­ tida, um passo im portante na pesquisa pela
tos públicos e maiores exigências para aprova­ solução dos problem as urbanos. Há, contudo,
ção dos loteamentos. Culmina com a Participa­ necessidade não apenas do aparato legal, mas
ção Popular, com m ecanism os como emendas também de substancial disposição para aplicá-lo
populares que podem ser apresentadas no âm ­ às cidades brasileiras. Mo mais, parece que o
bito do Legislativo e dos Conselhos Municipais principal consiste na satisfação das exp ecta­
instituídos em várias prefeituras do país. Aí a tivas, as mais gerais da sociedade. Dito de ou­
sociedade civil participa, por meio de seus re­ tro modo, de um Brasil social e econom icam en­
presentantes, na definição dos Planos Diretores. te desenvolvido.

N o ta s

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