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E TERROR, 1947; SENTIDO E NAO.SENTIDO, 1948; AS CIENCIAS DO HOMEM © A FENOMENOLOGIA, 1950; AS RELACOES COM © OUTRO NA CRIANCA, 1950; 10 DA. FILOSOFIA,. 1953; AVENTURAS DA DIALE INAIS, 1960), descobrir-si-fo imerosas indicagoes 8 © questOes que seriam desenvoleidos aprofundados na. prom ntese. Fi Nao seria, portanto, exagéro, servinde-nos da férmul afirmar que a filosofia de Merleau-Ponty assemelhacse 4. uin de fato, inconeluso, do Inncabado, do eiramente-pensado, mas que certamente viria a sélo, e que mao pide ej nao se como 0 titulo de um dos seus livros, © camo ele proprio dizi, mio poet sard de SINAIS, Isto 6, nao seri um alfabeto completo, nem sieaonn Aiseurso seguido, mas, antes, “ses. subitos sinais como um olan, que Feeehemos dos acontecimentos, dos livros « das cosas" © OLHO E © ESFIRITO (1961), que tivemos o praser de traduzit Por 0 leitor brasileiro em contato com um dos miais below uid o Aificeis textos de Merleau-Ponty. © itulo conde Que em tda a sua obra éle pretendew ofereee © mundo (“o dlio) © de nos vermos (“0 espirito?) Im os outros, ou, se se prefere, uma leit mundo, Filosot or incrivel que pareca, go u ver ea dizer? juvindo os pinfores — especialmente Céza e Klee — foi que Merleau-Ponty descobrit, que a visio > enen como numa eneruzithads, de’ todos os aspectos do ser, ¢ que, peronte @ Visivel s6 tem sentido com o seu forro de invisivels’ quele posed aminho para nunca allt pensadas que 0s Séres ¢ as colsas ene see Nal verdade, unta simples fenomenologia da. visio. era insufic aru dar conta da totalidade do ato filosotieo. Afinal, & proprio de Ser mediaeio, tornar presente, certa a nvisivel as coisas, isto & relévo e profundeza Da_ sua Inetivel descober aribola, um tanto hermétiea, confesso, porém sobretudo fecunda, £0 relate de como’a pintura intervelo nay reflecees de um filésofo que, no dominio da estétca, talver mais do que em aaoae quer outro, estava, por certo, chamado anos dizet alge de essences Aefinitvo. Por vézes selvagem, “bruto”, cam wivas aresias luelioeenten & obseuris que apontam para cimos despojados e inatlngivels, lemine, fe mais de um momento, o sibiline e tenebroso Herdclito e toaae ue, por coincidirem demasiadamente com claro-eseure fore did aes Bo conseguem Sendo proferir gritos inarticulados, mas, que’ purecens & vor da luz, como tio bem assinalou Hermes ‘Trmeuist, Av proporcionar ao teitor brasileiro, através de © OLHO EO ESPIRITO, algumas das mais Belas © profundas paginas da fllosotie ceuropéla eontemporanea — escrits Tinguagem que recebera 0 dom da lin ges GRIFO sente-se como quem pH um dever GERARDO DANTAS BARRETTO, ujos iltimos escrito estudara lone jue ov reculhera em Louvain, © ponte ‘Merlean-Ponty & voles no contre, esate ee apie ects se ae que 0 fiGsoto & um simples inérprete do. Ser, aod cae Piracho deve pensir¢ exereer,proctrou le eta pros naments idalistas do. Mestre’ da Fenomenclogi, Para Merleat-Ponty, a volta a0 concreto, longe de. ser ens facing sgiichva mein ue ero Propris colss, ao mediate, 40 nos corpo eh tee fontcbnda, © heme it at oyna? £8 om ‘nomen Precisamente em tomo dessa experiencia fundesonet dia unidade originria de homem e mundo. € ue tle texte Alsenvolver sua Fenomenologia existent. ‘Segundo éle, toda percepeio exterior 6 imediatamente sindnimo de cert percepeao de'um corpo, come toda pore 0 se explicta na linguagem da percepeio extcsion, Posey ‘conceptuais. Mesmo A filosofia nao ser4 munca 0 ditimo acontec mento do Ser, Reagindo contra as doutrinas que encaram a percepeio como simples resultado da acio das colsas exteriores. bine ‘hosso corpo, mas também contra os que privilegiam o pens ‘mento critico, a autonomia da consciencializagao, pols a cons. nade, Oehoatin, ebro e ive, outros, inslrao wa So login ei fislologin modernas, Merkea.-Posty eeenfen ‘mostrar, através das relagdes entre 0 organismo wus pores #0 seu meio, a inseredo compares do cptaton A ESIRUTURA. DO "COMPORTAMENTO (942) 6 wade ¢ ct nied anbien We mantemos com o corpo e- com ay demi ca Spree Co ee pec $00 dea os Srktagies © as operacées do. meu corpo entre outros coc ‘ movimentos que me permitem fate Ge oo ‘alem do behavioriamo e da “Gestion ‘ue, em relacho a MEU corpo, 4 sine posses, 2 suas conversdes sucesnvas, que faders fm mim ¢ fora de iim, Seu propéste"G pos we tsclirecer e resiuir, nos seus devides trmos o"eunais Seu exalocontrbuto na prospecgie epitem, iia ‘do verdade; por’ outa lado, 9 parts comportamento.« da” pereepgto, traduoir ade fundamental da existence Aentativa prossegue. ainda mais vigorosamente na nt, intuladnA" FENOMENOLOGIA DA FER (0948). AGH familarzndo. com as contutas per © como que deniro delay, fle aprotunda’ a andice isogular rel entre'o sujeito, seu corpo e seu mundo, 0 OLHO E O ESPIRITO Maurice MERLEAU-PONTY O OLHO E O ESP{RITO Tradugio de Gerardo Dantas Barretto Prefiicio de Grigore Dobrinesco Gnfi Cilipoes | 1969 ‘Tiragem desta edigio: 1.500 exemplares 13 exemplares em papel especial ‘numersdos de 1 a 13, lo do original LOcuil ef PEsprit Galimard, 1963, Copyright © by GRIFO EDICOES Rua do Lavradio, 184 — Rio de Janeiro — GB 1969 Impresso 90 Bris ‘O que tento traduzir-vos é mais misterioso, emaranhase nas préprias raizes do ser, na fonte impalpavel das sensagées.” J. Gasquet, Cézanne. PREFACIO ‘A obra de Merleau-Ponty € quase inteira- mente dedicada & descrigfio da percepgao, um dos temas delicados da Filosofia, mas que ainda nfo se fizera centro de uma teoria filos6fica. Scmelhante tarefa reclama instrumentos de pensamento adequados ¢ vinculados a experién- cia vivida; foi assim que surgiu em sua obra, paralelo ao de percepedo — e tio importante quanto éste — 0 conceito de corpo. No livro Phénoménologie de la Perception, diz Merleau- -Ponty que 0 corpo humano se assemelha a uma obra de arte, De fato, ésse corpo, que nao parece mais que uma céisa entre as outras, ¢ também aa sede em que se articulam todos os significados. Base corpo, iluminado diseretamente pela subje- tividade, apresenta-se como tecido de coisas e de 7 espitito, de sentido ¢ de nio-sentido, como en- contro de experiéncias vivas “et non pas la loi dun certain nombre de terines covariantes”. Con- cebido assim, é natural que seja mais comparavel uma obra de arte do que a um objeto fisico. , mesmo fazendo déle o mediador das coisas, Seu correlativo, o dificil problema da oposigio entre um e outro nio se esgota, porque, em tiltima andlise, a percepgfo nfo atinge as coisas sendo para reencontrar uma presenga familiar “et pas assez pour redécouvrir ce gui s'y cache d'inhu- main. Mais la chose nous ignore, elle repose en soi”. A Phénoménologie de la Perception dé admirdvel resposta a Gsse problema ou a essa oposigéo; porém a interrogaedo persiste parcial- mente aberta: por um lado, o corpo proporciona a comunieago com as coisas; por outro, fica ma- nifesta a surda resisténcia que elas oferecem, a sua inumanidade, o seu “em-si”. Alias, mesmo a comparagiio do corpo a uma obra de arte deixa algo em suspenso e envolye uma conclusio em sentido metaférico, que parece aguardar outros comentérios. Estes chegam mais tarde, com o ensaio O Olho e 0 Espirito, publicado em livro em 1963, dois anos depois da morte do autor. A nosso ver, Ge divide a obra de Merleau- Ponty em duas partes. A primeira 6 composta dos seguintes livros La Structure du comportement, 1942, PUF: Phénoménologie de la Perception, 1945, Galli- mard: Les Aventures de Ja dialectique, 1955 Gallimard; Humanisme et terreur, 1947, Galli Sens et non-sens, 1948, Nagel; Signes, Gallimard. A segunda parte inclui: L’Oeuil et lesprit, 1963, Gallimard)le Le Visible et Pinvisible, 1963, Gallimard. Algumas paginas do livro inacabado ¢ abandonado, Introduction a la prose du monde, publicadas na “Revue de Métaphysique et de 8 9 Morale”, n.’ 2, de 1967. O resumo das aulas na Sorbona, que saiu no “Bulletin de psychologic” de 1964, n.” 236, E 0 resumo das aulas no “Co- lige de France”, publicado em 1968 pela Galli- mard, sob o titulo Résumés de Cours. De uma para a outra parte, nota-se em seu pensamento uma mudanga quase dramética. To- dayia, nfo ha possibilidade de se determinar tal evolucio, porque, achando-se inconcluso o tilti- mo livro, Le Visible et U'Invisible, a maioria dos is conceitos nao se revestiram da s princips Pees palera, Qual teria sido a forma definitiva de algumas idéias basicas, da reflexdo ndo-tética, da natureza, do mundo onirico e mesmo da poli tica? Diffcil presumir ¢ desaconselhével tentar semelhante tarefa. © ensaio O Olho e o Espirito dedicase a um tinico tema, a visibilidade, e aos seus corre- latos: profundidade, perspectiva, cbr, movimento, 10, linha, que, alias, sféo todos “ramos do Ser, po- dendo cada um déles reproduzir téda a rama- gem...” Concentra-se, pois, 0 livro na pintura, que € expressio muda. Mas que teria dito Mer- leau-Ponty sobre a linguagem e sobre a palavra, tema predileto da sua obra, varias vézes estudado ¢ discutido por le, com excepcional habilidade? Em 0 Glho e o Espirito, o estilo aleanga a ca- pacidade maxima de expresso ¢ dificil sera opi- nar se é a linguagem ou o contetido de idéias que da a ésse ensaio a categoria de obra-prima do pensamento cantemporaneo A bela © inspirada itaduetio, ora apresentada, do Professor Gerardo Dantas Barretto, dard ao leitor a possibilidade de apreciar os excepcionais recursos expressivos dés- se escrito. Alids, para um filésofo cuja meta era descrever uma experiéneia mais fundamental que a “conversio reflpxiva”, o fato de expressar-se numa linguagem de sutil significagao jé nfo era uma necessidade literdria, mas um método que movimenta o proprio pensamento. Em certo lugar al de O Gtho e 0 Espirito, diz 0 autor que a pin- tura é um “possuir & distancia”, em francés “avoir a distance”. Mas, se a propria linguagem muda da pintura é um possuir, um ver a distincia, em outras palavras uma reflexdo, qual teria sido sua Gltima teoria sdbre a linguagem que, por si mes- ma, € também ver a distancia, € reflexio, ainda quando sua fungao seja extrair as coisas do inv sivel; da fonte, diria Heidegger ? A sede dessa muda operacao € 0 corpo hu- mano ¢ sdbre éle 0 ensaio traz realmente algu- mas idéias decididamente novas: “O enigma re- side nisto: em que meu corpo &, ao mesmo tempo, vidente e visivel. Ele, que olha tédas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer, no que se esta vendo, 0 “outro lado” do seu poder vidente. Bile se vé vidente, toca-se tateante, ¢ visivel ¢ sen- sivel por éle mesmo. E um si, no por transpa- réncia, como o pensamento, que s6 pensa, 0 que quer que seja, assimilando-o, constituindo-o, trans- 12 formando-o em pensamento, — mas um si por confusio, por narcisismo”. . . Esse estranho siste- ma de cimbio, que se faz notar por uma espécie de “recruzamento” entre “vidente e visivel, entre tateante ¢ tocado, entre um 6lho e o outro, entre a mio e a mio”; isto significa que 0 corpo pos- sui, por éle mesmo, a capacidade de ver, que a visibilidade o precede © que 0 universo da expe- rigneia perceptiva € um campo aberto € 0 corpo um espelho no qual flutuam continuamente os aspectos das coisas. Essa transformagio das coi- sas em espeticulos e dos espetiiculos em coisas; essa flutuabilidade ¢ reflexibilidade do sensfvel 6 uma operago inerente ao corpo. Seu simbolo é © fenémeno do espelho, que “figura e amplia a es- trutura metafisica da nossa carne”, Assim, a filo- sofia do corpo, reforcada e inspirada pela filosofia do espelho, leva a formulagio do conceito de “carne” e, a0 mesmg tempo, a metafisicn da pin- tura fig) As aulas dadas na Sorbona, com varios aspectos da psicanillise, e os cursos no College de France — alguns tratando do corpo, da meméria, do inconsciente, da natureza, da pa: lavra, deram a Merleau-Ponty a oportunidade de examinar minuciosamente os iiltimos resultados relacionadas as iiltimas pesquisas nesse dominio, especialmente as contribuigdes de Lacan e de Melanie Klein e, dessarte, relaciona-las com sua filosofia e com os estudos de psicologia e de ciéncias humanas que sempre o preocuparam. Numa aula sébre “Natu- re et Logos”, no College de France em 1960, diz: “Une philosophie de la chair est 4 Yopposé des interpretations de Vinconscient en termes de eprésentations inconscientes”, tribut payé par Freud a la psychologie de son temps” (Résumés de Cours, pag. 178). Esta citagdo é significativa em relagio ao conceito de “carne” que, especial- mente no livro Le Visible et Invisible, ocupa um lugar tio decisivo e, por outro lado, sugere o que 4 teria sido a psicandilise de Freud em térmos de filosofia. Com referéncia ao conceito de “espelho”, que articula 0 corpo como se fésse uma pré- -pilavra, encontramos comentirios nas aulas mi- nistradas na Sorbona em 1951, nas quais tratava de “Les relations avec l'autrui chez T'enfant”. Lacan ocupou-se varias vézes dos efeitos produ- zidos na imaginacao da crianga, surgidos quando, pela primeira vez, entra em contato com a sua prépria imagem e se reconhece no espelho. Pisce contato proporcionathe a visio do seu proprio corpo; ela percebe que é visivel e capaz de ser espeticulo para si mesma. “Le passage, comenta Merleau-Ponty rfesse curso, du moi intéroceptif au moi visible, le passage du moi intéroceptif au Je spéculai passage d'un état de Ja personnalité a un autre” (apud Critique, n.° 211, pag. 1058). As idéias de forma ¢ de estrutura, interpretadas de acérdo , comme dit encore Lacan, c'est le 15 com © seu pensamento, tiveram parte ativa na elaboragio dos seus primeiros livros; as recentes pesquisas de psicandlise participaram na clabo- rago das obras da segunda fase. Désse modo se configurou a idéia de visibilidade, como inerente © precedente 20 corpo, ¢ o fendmeno do espelho que retine, em imagem, o mundo sensivel ¢ 0 eu. A pintura nio é, entao, uma atividade; é um mo- do de ser, 6 possuir a distancia, & deixar a visibi lidade se manifestar. Aquela comunicagio muda com as coisas; aquéle simples desejo de ver é, de fato, um caminho que leva & filosofia, Em que medida 0 yer do pintor ¢ 0 do fil6sofo se asseme- Iham ou se distanciam, é assunto ignorado em O Otho ¢ 0 Espirito, porque tal problema é te6- rico, pertence ao universo das idéias. O que real- mente pertence 4 experiéncia original € somente © encontro das duas modalidades de ver; por tal motivo, nada se diz ali sObre a experiéncia da beleza. Pela mesma razio, o tiltimo livro, Le Vi- sible et Vnvisible, indica uma vez mais que o 16 contato tacito com as coisas, incapar de se tor- nar explicito, incapaz de se tornar nem mesmo idéia, é contudo capaz de alterar o universo das proprias idéias. A pintura 6 pois, possfvel, sim- plesmente porque é o fenémeno em que as coisas se manifestam em estado de continuo nascimento. “Le philosophe parle, diz neste tiltimo livro, mais c’est une faiblesse en lui et une faiblesse inexplicable; il devrait se taire, coinci- der en silence et rejoindre dans Etre une philo- sophie qui y est déja faite.” Essa fraqueza do homem € a da ontologia, justamente pelo fato de estar cla, em todo momento, ameagada de vola- lizarse em reflexao, isto 6, na linguagem direta ¢ explicita do homem. E a filosofia Mas entdéo como é que aparecem as coisas numa filosofia empenhada na descrigao do cogito pré-reflexivo? f'ste tema relaciona Merleau-Ponty. com 0 cartesianismo, isto é com a filosofia que mais solicita seu Bensamento, pela insistente ne- 7 cessidade de se Ihe opor. A “coisa” cartesiana resulta da inspecgao do cogito e, sendo ela visi- tada por essa reflexio metédica, aparece como algo “distinto” e “claro”. Concebida pela mente, separase de téda aparéncia duvidosa ou fantis- tica: liberada do realismo da simples coincidén- cia com a percepgdo, arma-se, uma vez mais, de solidez ¢ claridade. Por outro lado, tal ago do cogito 6 duas vézes reforcada: primeiro, porque € operagao do ego, um ego transcendental, que no se deixa perturbar por fantasias e paixdes; depois, porque é operacio vinculada ao espirita da matematica. As duas operagées, a do espirito do método ¢ a do espirito da matematica, distintas e, se ndo fora assim, a coisa cartesiana ja nao seria mais o que ela é ésse cogito nio marearia 0 infcio da época da ciéncia, do domi nio do homem sobre a natureza. A meditagio de Descartes sobre o pedaco de céra diz algo sobre 4 transformagio do mundo sensivel, enquanto inspecionado pelo cogito: io in- 18 “Prenons pour exemple ce morceau de cire qui vient e’étre tiré de 1a ruche,.. il retient en- core quelque chose de Vodeur des fleurs dont il a 6té recucilli... il est dur, il est froid... Mais voici que, cependant que je parle, on I'approche » © pedago de céra perde progressiv: mente a sua luz e o seu universo natural, para substitué-los pela luz e solidez da reflexio. © que entio resta do pedago de céra & sdmente algo de extenso, qualidade diferente déle, mas capaz de du feu sugerit © caminho para os claros simbolos da matematica Para Merleau-Ponty a coisa configura-se dis- cretamente na experiéneia original, na ambigui- dade do didlogo que envolve 0 eu e 0 mundo. ‘A dimensio da “coisa” pensada por éle j4 nao ¢ extensio cartesiana, mas dimensio de signifi A que esta sempre para ser feita, O lu- 10; pint gar de téda essa comunicagio genuina é 0 corpo; 19 ih € af que se debate ¢ flutua, como no espelho, 0 / encontro do universo sensivel ¢ do eu. © corpo nao é algo situado fora, ou como { diz, Descartes interpretado por Merleau-Ponty, “na ponta das nossas mos”, mas a sede de t6- das as operagdes € a fonte do cogito pré-reflexivo. Ele é também a sede dos sonhos, das paixdes, das fantasias, que Descartes eliminava, por perturba- rem a clatidade. De fato, as paixdes perturbam as coisas, porque enriquecem os contetidos, em lugar de deposité-los em tragos concluidos. “Co mo tudo seria mais Iimpido em nossa filosofia, se se pudessem exorcizar ésses espectros, fazer déles ilusoes ou percepgoes definidas, & margem de um mundo sem equivocos!” Assim comentada por Merleau-Ponty, a tentativa da Didptrica poderia ser substituida, em O Olho ¢ 0 Espirito, por uma atitude diferente e, entio, “se se pudessem apro- veitar ésses espectros”, a filosofia seria mais filo- sofia, 20 ‘A “coisa” do pensamento de Merleau-Ponty tem configuragtio cénica, 6 espeticulo de trans- formagiio, isto é de continua penetracio do invi- sivel em nosso préprio mundo. A pintura é 0 auténtico debate, a comuni- cago muda com as coisas. Mas essa atitude anti- intelectual de Merleau-Ponty exprime também a posig&io de varios pensadores contemporaneos nGo deve ser entendida como radical reagio ao prestigio, cada vez mais dominante, dos métodos cientificos. © pensamento moderno, tanto cienti- fico como filoséfico, supera as duas atitudes, nao querendo vincular 0 homem nem a conceitos, nem a absolutos. A prioridade dada ao cogito pré- -teflexivo, ao cogito situado antes do universo dos valores constituidos, no significa mover-se ignifica uma critica a0 racionalismo © & filosofia, com 0 propdsito de aleangar uma posigdo mais expressiva no tradi- cional debate de ser © pensar. “Pode um carte- a siano crer que o mundo existente nao é visivel, que a Gnica luz € do espirito, que t6da visio se faz em Deus. Um pintor ndo pode consentir em que a nossa abertura a0 mundo seja iluséria ou ” Assim como Merleau-Ponty faz da visio 0 encontro de “todos os aspectos do Ser” e considera a pintura uma comunicago mais auténtica com as coisas, assim também Heidegger considera a poesia uma revelagdo metafisica, um miodo original, em que o ente & descoberto e a yerdade instaurada. Mas, quando Heidegger pen- indiret: sa sébre ciéncia, éle a relaciona com as iiltimas possibilidades do saber. Se a ciéncia resulta da técnica, esta deve ser entendida no sentido ori- ginal da palavra, como ato de conhecimento — em térmos de Merleau-Ponty, como “abertura ao mundo” —, como modalidade pela qual 0 mun- do se nos torna manifesto, De resto, a posi¢o de Gabriel Marcel nao ¢ muito diferente. Se, por um lado, afirma que 0 22 drama seria a modalidade mais auténtica para expressar 0 pensamento metafisico, por outro 1a- do destaca 0 caréter antintelectual da ciéncia moderna e, se fosse necesséirio dar nome & sabe- doria contemporanea, em iiltima anélise, dever- ia denominé-la Novo Orfismo. Como ja dissemos, as criticas de Merleau- Ponty nfo visam 2 substituiggo do pensamento racional por métodos contririos nem, menos ain- da, 20 nfo reconhecimento do valor do pensa- mento cientifico, Manifesta, isto sim, a tentativa de vincular a filosofia 4 experiéncia vivida e, déste modo, insinuar um racionalismo tanto mais significative quanto mais sutil. Por seu contetido, fonte de inesgotdveis in- terrogagées para fildsofos ¢ criticos, surge 0 en- saio O Olho ¢ o Espirito, a0 lado do Der Urs- prung des Kunstwerkes, de Heidegger, como o li- vro mais expressivo dos tempos modernos, no ia do fendmeno artistico. que tange 2 filosol Grigore Dobrinesco. 23 A ciéncia manipula as coisas e renuncia a habité-las. Fabrica para si modelos internos delas ©, operando sObre ésses indices ou varidveis as transformagdes permitidas por sua definicio, 56 de longe em longe se defronta com o mundo atual, Ela é, sempre foi, ésse pensamento admiravel- mente ativo, engenhoso, desenvolto, ésse “parti pris” de tratar todo ser como “objeto em geral”, isto 6, a um tempo como se éle nada fésse para nés, e, no entanto, se achasse predestinado aos nossos artificios. ‘Mas a ciéncia clissica guardava o sentimento da opacidade do mundo, era a éste que ela preten- dia juntarse por suas construgdes, e por isto é que se acreditava obrigada a procurar para suas operagdes um fundamento transcendente ou trans- 25 cendental. Ha, hoje em dia — nao na ciéncia, sendio numa filosofia das ciéncias assaz difundida — isto de inteiramente ndvo: que a prética cons- trutiva se toma ¢ se dé por auténoma, ¢ que 0 pensamento deliberadamente se reduz ao conjunto das téenicas, de tomada ou de captagdo, que éle inventa. Pensar 6 ensaiar, operar, transformar, sob a tiniea reserva de um contréle experimental onde s6 intervenham fendmenos altamente “tra- balhados”, que os nossos aparelhos produzam, de preferéncia a registré-los. Daf t6da sorte de tentativas desordenadas. Nunca, como hoje. a iéncia foi sensivel As modas intelectuais. Quando um modélo foi bem sucedido numa ordem de pro- blemas, ela o experimenta em t6da parte, A nossa embriologia, a nossa biologia esto agora repletas de gradientes, sem que se veja bem como se dis- tinguem daquilo que os cldssicos chamavam ordem ou totalidade; todavia, esta questo nao é formu- Jada, ndo deve sé-o. O gradiente € uma réde que se langa ao mar sem se saber o que ela recolherd. 26 Gu ainda, € 9 magrd-ramo sobre o qual se fardo cristalizagées imprevisiveis. Esta liberdade de operacdo certamente esté em situagdo de superar muitos dilemas vaos, contanto que, de quando em vez, se faca 0 ajustamento, pergunte-se por que © instrumento funciona aqui e fracassa alhures; em suma, contanto que essa ciéncia fluente se compreenda a si mesma, se veja como construgio sGbre a base de um mundo bruto ou existente, © nao reivindique para operagdes cegas o valor constituinte que os “conceitos da natureza” po- diam ter numa filosofia idealista. Dizer que o mundo é, por definigdo nominal, 0 objeto X das nossas operagdes € levar ao absoluto a situagio de conhecimento do sibio, como se tudo 0 que foi ou é nunca hou laboratério, © pensamento “operatrio” torna-se se sido senfio para entrar no uma espécie de artificialismo absoluto, como se yé na ideologia cibernética, onde as criagdes hu- manas so derivadas de um processo natural de informacao, porém concebido, por sua vez, segun- 27 do 0 modélo das maquinas humanas, Se éste géne- ro de pensamento toma a seu cargo o Homem e a Historia, se, fingindo ignorar 0 que déles sabe- mos por contato e por posi¢&o, empreende cons- ttuislos a partir de alguns indicios abstratos, como © fizeram nos Estados Unidos uma psicanilise um culturalismo decadentes, visto que 0 homem se tora verdadeiramente © manipulandum que dle pensa ser, entrase num regime de cultura onde j& nfo h4 nem verdadeiro nem falso no tocante a0 Homem ¢ a Histéria, num sono ou num pesa- délo do qual nada poderia acordé-fo. Mister se faz que o pensamento de ciéncia — pensamento de sobrev6o, pensamento do objeto em geral — torne a colocar-se num “ha” prévio, no lugar, no solo do mundo sensivel e do mundo layrado tais como so em nossa vida, para nosso corpo, nao ésse corpo possivel do qual € licito sustentar que é uma maquina de informagiio, mas sim @sse corpo atual que digo meu, a sentinela 28 que se posta silenciosamente por sob minhas pala- vras e por sob meus atos. B preciso que, com meu corpo, despertem os corpos associados, os “ou- tros”, que no siio meus congéneres, como diz. a Zoologia, mas que me assediam, que eu assedio, com quem eu assedio um sé Ser atual, presente, como jamais animal assediou os de sua espécie, seu territério ou seu meio, Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciéncia aprenderd a insistir nas proprias coisas ¢ em si mesmo, tornard a ser filosofia Ora, a arte, © notadamente a pintura, nu- trem-se nesse lengol de sentido bruto do qual o ativismo nada quer saber. Elas sio mesmo as Ginicas a faz8-lo com téda inocéncia. Ao escritor, a0 fildsofo, pede-se conselho ou opinitio; nfio se admite que mantenham 0 mundo em suspenso; quer-se que tomem posigdo, e éles nfio podem de- clinar as responsabilidades do’ homem que fala, A miisica, inyersamente, est4 por demais aquém 29 do mundo e do designavel, para figurar outra coisa a no ser épuras do Ser, seu fluxo ¢ seu refluxo, seu crescimento, suas explosdes, seus turbilhdes. © pintor ¢ 0 tinico que tem direito de olhar para tOdas as coisas sem nenhum dever de apreciagao. Dir-se-ia que, diante déle, as palavras-de-ordem do conhecimento ¢ da ago perdem sua virtude. Os regimes que invectivam contra a pintura “dege- nerada” raramente destroem os quadros: escon- dem-nos, e hé nisso um “nunca se sabe” que é guase um reconhecimento; a censura de evasdo raramente & dirigida ao pintor. Nao se quer mal a Cézanne por ter vivido oculto no Estaque du- rante a guerra de 1870; téda gente cita com res- peito o seu “é espantosa a vida”, quando o mais reles estudante, desde Nietzsche, repudiaria redon- damente a filosofia se féra dito que ela nfo nos ensina a sermos grandes viventes. Como se hou- vesse na ocupacao do pintor uma urgéncia que excede qualquer outra urgéncia. Ele af esta, forte ou fraco na vida, porém soberano incontestavel 30, na sua ruminaciio do mundo, sem outra “técnica” a nio ser a que seus olhos e suas méos se dio, & forga de ver, & fdrca de pintar, obstinado em tirar, désse mundo onde soam os escdndalos eas glé- ias da Historia, felas que quase nada acrescenta- to As coleras nem as esperangas dos homens, ¢ ninguém murmura. Que ciéneia secreta é, pois, essa que éle tem ou procura? Essa dimensio se- gundo a qual Van Gogh quer ir “mais Jonge”? Esse fundamental da pintura, e quied de toda a cultura? 3L i Na pintura 0 pintor “entra com seu corpo”, iz Valéry. E, com efeito, no se vé como um Espirito pudesse pintar. Emprestando seu corpo a0 mundo € que o pintor transforma o mundo em pintura, Para compreender estas transubstan- ciagdes, hé que reencontrar 0 corpo operante € atual. aquéle que nfo é um pedaco de espaco. um feixe de fungdes, mas um entrelagado de visio e de movimento. Basta que eu veja alguma coisa, para saber ir até ela © atingi-la, mesmo se nao sei como isso se faz na maquina nervosa. Meu corpo mével conta no mundo visivel, faz parte déle, e & por isto que eu posso dirigi-lo no visivel. Por outro lado, também 6 verdade que a visio pende do movimento. S6 se vé aquilo que se olha. Que r 33 seria a visio sem nenhum movimento dos olhos, € como 0 movimento déstes no haveria de baralhar as coisas se, por sua vez, fosse reflexo ou cogo, se no tivesse suas antenas, sua clarivi- déncia, se a visio nao se precedesse néle? Todos os meus deslocamentos por principio figuram num canto da minha paisagem, so transladados no mapa do visivel. Tudo o que vejo por princi pio esta a meu alcance, pelo menos ao alcance do meu olhar, assinalado no mapa do “eu pos- so”. Cada um dos dois mapas € completo. © mundo visivel e 0 mundo dos meus projetos- ‘motores sao partes totais do mesmo Ser. Esta extraordindria superposigio, na qual nfo se pensa bastante, impede concebermos a visio como uma operagao de pensamento que ergueria diante do espirito um quadro ou uma represen- tagio do mundo, um mundo da imanéncia e da idealidade, Tmerso no visivel por seu corpo, em- bora éle préprio visivel, o vidente nao se apro- 34 pria daquilo que vé: s6 se aproxima pelo othar, abre-se para o mundo. E, por seu lado, ésse mundo, de que éle faz parte, nao é em si ou matéria. Meu movimento ndo é uma deci so de espirito, um fazer absoluto, que, do fundo do retiro subjetivo, decretasse alguma mudanga de lugar miraculosamente executada na extensio. Ele é a seqiiéncia natural e 0 amadurecimento de uma visio. De uma coisa digo que ela é mo- vida, porém meu corpo, éste, se move, meu mo- vimento se desdobra. Fle ndo esti na ignorincia de si, nfio é cego para si, irradia de um i. © enigma reside nisto: em que meu corpo ao mesmo tempo vidente e visivel. Ble, que otha tédas as coisas, também pode olhar a si ¢ reconhecer no que esté vendo entdo 0 “outro lado” do seu poder vidente, fle se vé vidente, toca-se taieante, & visivel e sensivel por mo. E. um si, nfo por transparéneia, como o pen- samento, que s6 pensa o que quer que seja assi- \ mes- 35 milando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento, — mas um si por confuséio, por nar- cisismo, por ineréncia daquele que ve naquilo que éle vé, daquele que toca naquilo que éle toca, do senciente no sentido —, um si, portanto, que 6 tomado entre coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro Este primeiro paradoxo nao cessaré de pro- duzir outros. Visivel ¢ mével, meu corpo esta no niimero das coisas, 6 uma delas; 6 captado no tecido do mundo, e sua coesao é a de uma coisa. Mas, jé que vé © se move, éle mantém as coisas em circulo & volta de si; elas so um anexo ou um prolongamento déle mesmo, esto incrusta- das na sua carne, fazem parte da sua definigao plena, e 0 mundo € feito do proprio estdfo do corpo. maneiras diversas de dizer que a visio é tomada stes reviramentos, estas antinomias sio ou se faz do meio das coisas, de 14 onde um visi- vel se poe a ver, torna-se visivel por si e pela 36 io de todas as coisas, de 14 onde, qual a égua- fe no cristal, a indivisio do senciente e do vis sentido persiste. Essa interioridade nao precede 0 arranjo material do corpo humano, e tampouco déle re- sulta, Se nossos olhos féssem feitos de tal sorte que nenhuma parte do nosso corpo nos incidisse sob 0 olhar, ou se algum maligno dispositivo, deixan- do-nos livres de passcar as maos sdbre as coisas, nos impedisse de tocar 0 corpo — ou simples- mente se, como certos animais, tivéssemos olhos laterais, sem sobreposigdo dos campos visuais —, ésse corpo que se nfo refletisse, que se niio sen- tisse; ésse corpo quase adamantino, que inteira- mente nao fésse carne, também, nao seria um corpo de homem, ¢ nfo haveria humanidade. Porém a humanidade nao € produzida como um efeito por nossas articulagdes, pela implantaco dos nossos othos (¢ ainda menos pela existéneia dos espelhos que, no entanto, siio s6 0 que torna ’ 37 y sivel para ns nosso corpo inteiro). Estas con- tingéncias ¢ outras semelhantes, sem as quais no haveria homem, por simples soma nio fazem que haja um s6 homem. A animagio do corpo nao 6 a reunido, uma contra a outra, de suas partes — nem, aliés, a descida no autémato, de um espirito vindo de outro lugar, 0 que ainda supotia que o préprio corpo é sem interior e sem “si”. Um corpo humano af esta quando, entre vidente e visivel, entre tateante e tocado, entre um 6tho e © outro, entre a mao e a mio, faz-se uma espécie de recruzamento, quando se acende a centelha do senciente-sensfvel, quando ésse fogo que nfo mais cessaré de arder pega, até que tal acidente do corpo desfaca aquilo que nenhum acidente teria bastado para fazer Ora, desde que se da ésse estranho sistema de trocas, todos os problemas da pintura ai estio. Eles ilustram o enigma do corpo, e ela justifi- ca-08. Visto que as coisas ¢ meu corpo sao feitos 38 do mesmo estéfo, cumpre que a sua visdo se faga de alguma maneira nelas, ou, ainda, que a mani- festa visibilidade delas se forre néle de uma visi- bilidade secreta: “a natureza esta no interior”, diz Cézanne, Qualidade, luz, c6r, profundidade, que esto ai diante de nés, ai sé estio porque despertam um eco em nosso corpo, porque éste Thes faz acolhida, Bste equivalente interno, esta {6rmula carnal da sua presenga que as coisas suscitam em mim, por que no haveriam de, por seu turno, suscitar um tracado, visivel ainda, onde qualquer outro olhar reencontrara os moti- vos que sustentam a sua inspecgéio do mundo? Entdo aparece um visivel na segunda poténcia, esséncia carnal ou fcone do primeiro. Nao é um duplo enfraquecido, um “trompe-oeil”, uma outra coisa. Os animais pintados na parede de Lascaux ali nfo estio como la esta a fenda ou © empolamento do calcério. Mas também nfo esto alhures. Um pouco para adiante, um pouco para atrés, sustentados por sua massa da qual 39 se seryem habilmente, les irradiam em t6rn0 dela sem jamais romperem a sua inapreensivel amarra. Achar-me-ia em grande dificuldade para dizer onde est 0 quadro que eu olho. Porquanto nao 0 olho como se olha uma coisa, nfo o fixo em seu lugar; meu olhar vagueia néle como nos nimbos do Ser e eu vejo, segundo éle ou com éle, mais do que 0 vejo. A palavra imagem é mal reputada porque inconsideradamente se acreditou que um desenho era um decalque, uma cépia, uma segunda coisa, a imagem mental era um desenho désse género no nosso “bric-’-brac” privado. Mas, se, com efeito, ela nfo é nada de semelhante, 0 desenho © 0 quadro, da mesma maneira que ela, nao perten- com ao em-si. S40 o interior do exterior & 0 exte- rior do interior, que a duplicidade do sentir possi- bilita, ¢ sem os quais nunca se compreenderé a quase-presenga e visibilidade iminente que consti- tuem todo © problema do imagindrio. O quadro, 40 1 mimiea do comediante nfo sio os meios que eu tomaria emprestados ao mundo _verda- deiro para, através déles, visar coisas prosaicas na auséneia delas. O imaginério esté muito mais perto e muito mais Longe do atual; mais perto, visto ser o diagrama da sua vida em meu corpo, @ sua polpa ou o seu avésso carnal expostos pela primeira vez aos olhares, e porque, nesse sentido, como enérgicamente 0 diz Giacometti t: “o que me interessa em tédas as pinturas é a semelhanga, isto é, aquile que para mim é a semelhanca: aquilo que me faz descobrir um pouco 0 mundo exterior”. Muito mais longe, visto o quadro 1g0 segundo © corpo, visto éle nao ser um andi oferecer ao espitito ocasiio de repensar as rela- ges constitutivas das coisas, mas ao olhar, para gue éste os espose, os vestigios da visio do inte- rior, ¢ & visio aquilo que a atapeta interiormente, ‘a textura imagindria do real. ee x 1. G, CHARBONNIER, Le Monologue di peinire, Paris, 1959, p17, 41 Diremos, entéo, que hé um olhar do inte- rior, um terceiro Otho que vé os quadros e mesmo as imagens mentais, como se falou de um terceiro ouvido que capta as mensagens de fora atrayés do rumor que elas suseitam em nés? Para qué, quan- do tudo esta em compreender que nossos olhos de carne ja so muito mais do que receptores para as luzes, para as céres e para as linhas: sio compu- tadores do mundo, que tém 0 dom do visivel como se diz que o homem inspirado tem 0 dom das lin- guas? Certamente, ésse dom se merece pelo exer- cicio, ¢ no é em alguns meses, nfo é, tampouco, na solidao, que um pintor entra na posse de sua visio. Nao esti nisso a questiio: precoce ou tar- dia, espontinea ou formada no museu, em todo 6 caso a sua visto s6 aprende vendo, s6 aprende por si mesma, O dtho vé o mundo, e o que falta a0 mundo para ser quadro, e 0 que falta ao qua- dro para ser éle mesmo, e, na palhéta, a cér que © quadro aguarda; e, uma vez feito, vé 0 quadro que responde a tédas essas faltas, vé os quadros 2 dos outros, as respostas outras a outras faltas. E to impossivel fazer um inventério limitativo do visivel quanto dos usos possiveis de uma lin- gua, on apenas do seu vocabulario e dos seus estilos. Instrumento que se move por si mes- mo, meio que inventa seus préprios fins, o dlho & aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo, ¢ que o restitui ao visivel pelos tragos da malo. Seja qual for a civilizagdo em que nasca, sojam quais forem as crengas, os motives, os pen- samentos, as ceriménias de que se cerque, e mes- mo quando parece fadada a outra coisa, desde Laseaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou no, a pintura jamais celebra outro enigma a nao ser o da visibilidade. Isso que af dizemos equivale a um truismo: © mundo do pintor é um mundo visivel, simples- mente visivel, um mundo quase louco, pois que & completo sendo, entretanto, meramepte parcial. A pintura desperta e eleva A sua dltima poténcia 43 um detirio que € a propria visio, ja que ver ¢ ter a disténcia, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que de alguma maneira devem fazerse visiveis para en- trar nela, Quando, a propésito da pintura ita- liana, 0 joyem Berenson falava de uma evoca- Go dos val6res técteis, nfo poderia enganar- -se mais: a pintura nfo evoca coisa alguma, espe- cialmente o téctil. Ela faz coisa totalmente dife- rente, quase o inverso: d4 existéncia visivel aquilo que « visio profana acredita invisivel, faz que no tenhamos necessidade de “sentido muscular” para térmos a voluminosidade do mundo. Esta visio devoradora, para além dos “dados visuais”, abre para uma textura do Ser cujas mensagens sensoriais discretas sfio apenas as pontuagdes ou 88 cesuras, e que o dlho habita como o homem habita sua casa, Fiquemos no visivel em sentido estrito prosaico: enquanto pinta, o pintor, qualquer que 44 seja, pratica uma teoria magica da visio, Ble tem que admitir que as coisas entram néle ou que, consoante o dilema sarcdstico de Malebran: che, o espirito sai pelos olhos para ir passear pelas coisas, visto que nfo cessa de ajustar a elas a sui vidéncia, (Nada é mudado se éle nao pinta apo do no motivo: em todo caso, pinta porque viu, porque, ao menos uma vez, 0 mundo gravou néle as cifras do visivel.) Cumpre que éle confesse, co- mo diz um filésofo, que a visio é espelho ou con centragio do universo, ou que, como diz outro, 0 (Gus viswos, abre, por si, para um xis wionos enfim que a mesma coisa esta 14 no coragio do mundo e c4 no coragio da visio, a mesma ou, se se fizer questo, uma coisa semelhante, porém segundo uma similitude eficaz, que é parenta, génese, metamorfose do ser em sua visio. E a propria montanha que, 14 de longe, se faz ver do pintor, é a ela que éle interroga com o olhar. Que Ihe pede éle exatamentg? Pede-the des- velar os meios, apenas visiveis, pelos quais ela se 45 faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminagio, sombras, reflexos, cér, todos ésses objetos da pesquisa no sao inteiramente séres reais: como os fantasmas, s6 tém existéncia visual. Nao esto, mesmo, senfio no limiar da visto profana, ¢ comu- mente nao sfo vistos, O oihar do pintor pergun- tales como 6 que éles se arranjam para fazer que haja sibitamente alguma coisa, ¢ essa coisa, para compor ésse talisma que 6 0 mundo, para nos fazer ver o visfvel. A mao que aponta para n6s em a Ronda Noturna est verdadeiramente ali, quando a sua sombra no corpo do capitiio no-la apresenta simulténeamente de perfil. No eruzamento das duas vistas incompossiveis, ¢ que no entanto esto juntas, fica a espacialidade do capitio. Désse jégo de sombras, ou de outros semelhantes, todos os homens que tém olhos foram, algum dia, testemunhas. Era éle que Ihes fazia ver coisas e um espago. Mas operava 3 sem éles, dissimulayz para mostrar a Para véla, a ela, niio era preciso vé-lo, a éle, © visivel no sentido profano esquece as stias premissas, assenta numa visibilidade inteira que 6 de recriar, © que liberta os fantasmas cati- vos néle. Como se sabe, os modernos tém liber- tado muitos outros, tém aditado muitas notas surdas gama off Mas, em todo caso, a interrogagiio da pintura visa essa génese secreta e febril das coisas em nosso corpo. dos nossos meios de ver. Nao se trata, pois, da pergunta daquele que sabe Aquele que ignora, pergunta do mestre-escola; mas sim da pergunta daquele que no sabe a uma visio que tudo sabe, que nés nfo fazemos, que se faz em nds, Max Ernst (¢ 0 surrealismo) diz com razio: “Assim como o papel do poeta, desde a eélebre carta do vidente, consiste em escre- ver sob a inspirago do que néle se pensa, do que se articula néle, 0 papel do pintor ¢ cerear e proj tar o que néle se vé*, O pintor vive Ha fascina- 2, G, CHARHONNIER, i, p. 34 ). Suas agdes as mais propria aquéles tragados de que para os outros sero revelagdo, porque nio tém as mesmas caréncias que éle —, parecelhe que emanam das proprias coisas, como 0 desenho das constelagdes. Entre éle ¢ 0 visivel, os papéis incvitavelmente se invertem, B por isto que tantos pintores disseram que as coisas olham para éles, © que André Marchand, depois de Kice, afirmou “Numa floresta, repetidas vézes senti que ndo era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti ag © pintor é capaz, e que es gestos, que eram as arvores que olhavam para mim, que me falavam. Eu 14 estava, escutando Creio que o pintor deve ser traspassado pelo uni- verso, ¢ no querer traspassélo... Aguardo ser interiormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir.® Isso a que se chama inspirago deveria ser tomado ao pé da letra: hé deveras inspiracdo ¢ expiraghio do Ser, respi- Tago no Ser, ago e paixdo tio pouco discerni- 3. G. CHARBONNIER, id, pp. 143-145, 48 Retrato de homer. Desenbo Estidio Galeria Maeght Cézanne: A Montanta Santa-Vitria, Aquarels. Weis, que ja nao se sabe mais quem vé e quem 6 visto, quem pinta e quem é pintado. Dizse que um homem nasceu no momento em que aquilo que, no fundo do corpo materno, nfo passava de um visivel virtual torna-se a0 mesmo tempo vist vel para nés e para si. A visto do pintor é um nascimento continuado, Poder-se-ia procurar nos proprios quadros uma filosofia figurada da visio, e como que a sua iconografia. Nao € acaso, por exemplo, se freqilentemente, na pintura holandesa (e em mui- tas outras), um interior deserto é “digerido” pelo “6lho redondo do espelho” +, Esse olhar pré- -humano é 0 emblema do olhar do pintor. Mais completamente do que as luzes, as sombras, os reflexos, a imagem especular esboga nas coisas 0 trabalho de visto. Como todos os outros objetos téenicos, como os instrumentos, como os sinais, 4 CLAUDEL, Inroduction Ia pelmture hollandaise, Pati, 1935, reed, em 1946, 49 © espelho surgiu no circuito aberto do corpo vidente ao corpo visivel. Téda técnica é “técnica do corpo”, Ela figura e amplia a estrutura meta- fisica da nossa carne, O espelho aparece porque eu sou vidente-visivel, porque ha uma reflexivi- dade do sensivel; éle tradua ¢ redobra-a, Gragas a éle, 0 meu exterior se completa, tudo 0 que cu tenho de mais secreto passa a ésse rosto, ésse ser plano e fechado que meu reflexo na agua ja me fazia suspeitar. Schilder® observa: fumando ca- chimbo diante do espelho, sinto a superficie lisa e ardente da madeira ndo sdmente 14 onde esto meus dedos, mas também nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visiveis que estio no fundo do espelho, O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e, do mesmo passo, todo o invisivel de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode com- portar segmentos extrafdos dos dos outros como “5. P, SCHILDER, The Imoge and appearance of the human bovly, New York, 1935, reed. em 1950, 50 minha substincia se transfere para éles: © homem € espelho para o homem. Quanto ao espelho, We € o instrumento de uma universal magia que Wwansforma coisas em espeticulos, os espeticulos em coisas, eu no outro € © outro em mim, Os pin- ores muitas vézes refletiram sdbre os espelhos porque, por sob ésse “truque mecdnico” como por sob o truque da perspectiva®, reconhe- ciam a metamorfose do vidente e do visivel, que € 4 defini¢do da nossa carne e a da vocagio déles. Bis af também por que muitas vézes éles gosta vam (@ ainda gostam: vejam-sa as desenhos de Matisse) de figurar-se a si mesmos no ato de pintar, acrescentando ao que entio viam aquilo que as coisas viam déles, como que para atestar que h4 uma viséo total ou absoluta, fora da qual nada permanece, e que torna a se fechar sObre éles mesmos. Como denominar, onde colo- car no mundo do entendimento essas operagées 6. ROBERT DELAUNAY, Du cubisme a Fart absiral, cader- nos publicados por Pierre Francastel, Paris, 1987. Sd ocultas, ¢ os filtros, os idolos que elas preparam? sorriso de um monarca morto hd tantos anos, do qual a Nausée falava, ¢ que-continua a pro- duzirse e a reproduzir-se & superficie de uma tela, pouquissimo & dizer que éle ai esté em ima- gem ou om esséncia: éle proprio ai esti no que teve de mais vivo, desde que eu olho para o qua dro. O “instante do mundo” que Cézanne que- ria pintar, ¢ que muito ha que passou, suas telas continuam a no-lo lancar, ¢ sua montanha Santa- Vitoria faz-se © refaz-se de um extremo a outro do mundo, de outro modo, mas ndo menos enér- gicamente, do que na rocha dura acima de Aix. Esséncia ¢ existéncia, imagindrio e real, visivel isivel, a pintura baralha tédas as nossas cate- gorias ao desdobrar © seu universo onirico de esséneias carnais, de semelhangas eficazes, de mudas significagdes, op) il Como tudo seria mais limpido em nossa filo- sofia se se pudessem exorcizar ésses espectros, fazer déles ilusdes ou percepgées sem objeto, a margem de um mundo sem equivoco! A Didp- trica de Descartes € essa tentativa. E 0 breviario de um pensamento que ndo mais quer assediar o visivel, e que decide reconstruf-lo segundo 0 mo- délo que ela déle se proporciona. Vale a pena relembrar 0 que foi ésse ensaio e ésse fracasso, Nenhuma preocupacio, pois, de coincidir perfeitamente com a visio, Tratase de saber “como 6 que ela se faz”, porém na medida nece: siria para, se fOr preciso, inventar alguns “6rgios aitificiais” 7 que a corrijam, Nao se raciocinara 1. Diopirique, Diwurv VM, edigho Adam et Tannery, VI, p. 165. a tanto sObre a luz que vemos, como sdbre a que de fora nos entra pelos olhos ¢ comanda a visdo; €, sobre isso, limitar-nos-emos a “duas ou trés comparagdes que ajudem a concebéa” de uma maneira que Ihe explique as propriedades conhe- cidas e permita, destas, deduzir outras ®, A tomar assim as coisas, 0 melhor é pensar a luz como uma ago por contato, tal como a aco das coi- sas sobre a bengala do cego, Os cegos, diz Des- cartes, “véem com as mios” ®, O modelo carte- siamo da visto € 0 tato. Para logo éle nos desvencilha da ago a dis- taneia e dessa ubigtiidade que constitui téda a ficuldade da visio (¢ também t6da a sua vir- tude). Por que divagar agora sdbre os reflexos, sObre os espelhos? Esses duplos irreais sio uma variedade de coisas, so efeitos reais como 0 rico- chéte de uma bal: . Se 0 reflexo se parece com a 8, DESCARTES, Discours 1, ed. city p. 83, 9, Ibid, p84 54 é propria coisa, € que age mais ou menos sébre (0s olhos como o faria uma coisa, Ele engana o Olho, gera uma percepgdo sem objeto, mas que niio afeta a nossa idéia do mundo. No mundo, ha a propria coisa, e fora dela hd estoutra coisa, que & 0 raio de luz refletido, e que tem com a primeira uma correspondéncia regulada, dois individuos, portanto, ligados de fora pela causa- lidade, A semelhanga entre a coisa ¢ a sua ima- gem especular ndo é, para clas, senfio uma deno- minagdo exterior, pertence ao pensamento. A am- bigua relacio de semelhanga é nas coisas uma clara relagdo de projecio. Um cartesiano nio se yé no espelho: vé um manequim, um “exterior” do qual tem tédas as razGes de pensar que os outros igualmente 0 véem, mas que, nem para si mesmo nem para éles, é uma carne. A sua “ima- gem” no espelho € um efeito da mecdnica das coisas; se éle se reconhece nela, se a acha “pare- cida”, € seu pensamento que tece ésse vinculo, ‘a imagem especular nada é d’éle. 55 Ja nao ha mais o poder dos fcones. Por mais vivamente que “nos represente” as. florestas, as cidades, os homens, as batalhas, as tempesta- des, o talho-doce nao se Ihes assemelha: nfo passa de um pouco de tinta posta aqui e acolé sbre papel. Retém das coisas apenas a sna figura, uma figura achatada sobre um s6 plano, deformada, e que deve ser deformada — 0 quadrado em losango, o cfrculo em oval — para representar © objeto. Ele s6 & a “imagem” das coisas com a condigiio de “ Se no & por semelhanga, como 6 entdo que éle age? Ele “excita 0 nosso pensamento” a “con- ceber”, tal como o fazem os sinais e¢ as palavras “que de modo nenhum se parecem com as coisas que significam” 1, A gravura dé-nos_indicios suficientes, “meios” sem equivoco para formar uma idéia da coisa que niio vem do icone, que nasce em nos por “ocasifo” déste. A magia das om clas no se parecer” 10, 10, fbi. TV, pp. 112-118 11, Thi, pp. 112-144 56 espécies intencionais, a velha idéia da semelhanga efieaz, imposta pelos espelhos ¢ pelos quadros, perde o seu tiltimo argumento se todo o poder do quadro é 0 de um texto proposto & nossa Iei- tura, sem nenhuma promiscuidade do vidente e do visivel. Estamos dispensados de compreender como a pintura das coisas no corpo poderia fazé- clas sentir & alma, tarefa imposstvel, pois que a semelhanga desta pintura com as coisas teria, por sua vez, necesssidade de ser vista, e precisa- riamos “de outros olhos em nosso cérebro com os quais pudéssemos enxergd-la” ", além de que o problema da visio persiste inteiro quando nos proporcionamos ésses simulucros errantes entre as coisas & nds. Tanto quanto os talhos-doces, aquilo que a luz traca em nossos alhos, e, dali, em nosso cérebro, nao se parece com © mundo visivel. Das coisas aos olhos ¢ dos olhos & visio nao passa nada mais que das coi as maos do cego e, das 12 Tbid, Vi, p. 130, tf suas mfos, a0 seu pensamento. A visio nfo & a metamorfose das prdprias coisas na sua visio, a dupla pertenga das coisas ao grande mundo ¢ a um pequeno mundo privado. E um pensamento que decifra estritamente os sinais dados no corpo ‘A semelhanga € 0 resultado da percepeio, e nao a sua mola, Com maioria de razio, a imagem mental, a vidéncia que nos torna presente aquilo que esta ausente, néo é nada parecido com ume abertura a0 coragao do Ser: é ainda um pensa- mento apoiado em indfcios corporais, desta vez insuficientes, aos quais ela faz dizer mais do que éles significam. No resta coisa alguma do mun- do onirico da analogia. . © que nos interessa nessas célebres andlises 6 que elas tornam perceptivel que t6da teoria da pintura € uma metaffsica, Descartes nfo falou muito da pintura, e poder-se-ia achar abu- sivo 0 levar em conta o que diz, em duas paginas dos talhosdoces, Entretanto, j4 € significative 58 que s6 fale déles de passage: a pintura nao para éle uma operagio central que con- tribua para definir 0 nosso acesso ao ser; é um modo ou uma variante do pensamento canénica- mente definido pela posse intelectual e pela evi déncia. No pouco que dela éle diz, € esta opcio que se exprime, ¢ um estudo mais atento da pin- tura delinearia uma outra filosofia. Significativo é também que, tendo de falar dos “quadros”, éle tome como tipico o desenho, Veremos que a pin- tura inteira esta presente em cada um dos seus meios de expressfio: hd um desenho, uma linha, que encerram tdas as ousadias dela. Mas 0 que agrada a Descartes nos talhos-doces € conservarem éstes a forma dos objetos, ou pelo menos nos oferecerem dela sinais suficientes. Eles nos dio uma apresentagio do objeto pelo seu exterior ou envoltério, Se houvesse examinado esta outra © mais profunda abertura as coisas que as quali- dades segundas nos proporcionam, notadamente a cér, como n&o hA relacio regulada ou proje- 59 tiva entre clas ¢ as propriedades verdadeiras das coisas, e como, no entanto, a mensagem delas ¢ compreendida por nés, Descartes ter-se-ia achado diante do problema de uma universalidade e de uma abertura-as-coisas sem conceito, terse-ia visto obrigado a indagar como o murmtirio inde- ciso das cores pode apresentar-nos coisas, flores- tas, tempestades, enfim o mundo, € talvez a inte- grar a perspectiva, como caso particular, num poder ontolégico mais amplo. Mas, para éle, é fora de diivida que a cr ¢ ornamento, colorado; que toda © poder da pintura assenta no poder do desenho, e 0 poder do desenho, na relacio regulada que existe entre éle © 0 espago em si, tal como o ensina a projegio em perspectiva. famoso dito de Pascal s6bre a frivolidade da pintura, que nos prende a imagens cujo original nfio. nos sensibilizaria, 6 um dito cartesiano. Para Descartes, é uma evidéncia que nao se pode pintar senfio coisas existentes, que a existéncia delas é serem extensas, ¢ que o desenho possibi- 60 Jita & pintura ao tornar possivel a representacdo da extensfio. Nao é, entio, a pintura sengo um ar ficio que apresenta aos nossos olhos uma proj go semelhante & que as coisas nela inscreveriam © nela inscrevem na percepgo comum, que, na auséneia do objeto verdadeiro, faz-nos ver como se vé 0 objeto verdadeiro na vida, e que especial- mente nos faz ver espago onde nao ha '. O qua- dro é uma coisa plana, que nos proporciona arti- ficiosamente aquilo que veriamos em presenga de coisas “diversamente salientadas”, porque éle nos di segundo a altura e a largura sinais diacriticos suficientes da dimensio que Ihe falta. A profun- didade € uma terceira dimensdo. derivada das outras duas, Detenhamo-nos nela, que vale a pena, Ela tem, primeiramente, algo de paradoxal: eu vejo 15. 0 sistema dos meios pelos quais la nos faz ver € objeto de cidnca. Por que entio nfo haverlamos de produit, me Taicamente, perfetas imagens do mundo, uma. pinfura unk versal iberfa da arte pesscal que, como lingua universal, nos Tivrasse de tddas as relagoes confusis quo se arraslam nas Tinguas existentes? 61 objetos que reciprocamente se escondem, e que portanto néo vejo, por estarem um detrés do ou- tro. Vejo-a, © ela nao é visivel, visto que ela se conta do nosso corpo as coisas, e nés estamos colados a éle... Este mistério € um falso misté- rio, eu nao a vejo deveras, ou, se a vejo, é uma outra largura. Na linha que une meus olhos a0 horizonte, 0 primeiro plano esconde para sempre 05 outros, e, se lateralmente eu creio ver os objetos escalonados, é que éles no se mascaram comple- tamente: vejo-os, pois, um fora do outro, segundo uma largura diversamente computada. Sempre se esté aquém da profundidade, ou além. Nunca as coisas estdo uma por trés da outra. A superposigdo © a laténcia das coisas nao entram na sua definigao, apenas exprimem a minha incompreensivel solida- riedade com uma delas, meu corpo, e, em tudo © que elas tém de positive, sio pensamentos que eu formo, © nao atributos das coisas: sei que, esse mesmo momento, outro homem colocado de outro modo — ainda melhor Deus, que esté em 62 da parte — poderia penetrar 0 esconderijo de- las, e vélas-ia desdobradas. Isso a que eu chamo profundidade no é nada, ou é a minha partici- pacio num Ser sem restrigao, e, primeiramente, no ser do espago, para além de todo ponto de vista. As coisas embricam-se umas nas ou- tras porque estéo uma fora da outra. A prova disto é que eu posso ver profundidade ao olhat um quadro que, todos concordario, no a tem, € que apronta para mim a ilusio de uma ilu- sfio... Esse ser de duas dimensdes, que me faz ver uma outra dimensio, é um ser furado, como diziam os homens do Renascimento, 6 uma janela... Mas, no final das contas, a janela s6 abre para o partes extra partes, para a altura e a largura que s6 so vistas de outro Angulo, para ‘a absoluta positividade do Ser. E ésse espago sem esconderijo que, em cada um de seus pontos 6, nem mais nem menos 0 que dle é, € essa identidade do Ser que sustenta a 63 antilise dos talhos-doces. O espago existe em si, ou, antes, € 0 emsi por exceléncia, sua definigio & ser em si. Cada ponto do espaco existe, ¢ 6 pen- sado af onde existe, um aqui, outro ali; o espaco € a evidencia do onde. Orientagio, polaridade, envolvimento sfo néle fendmenos derivados, liga- dos minha presenga. Fle repousa absolutamenti em si, em t6da parte € igual a si, homogéneo, e: suas dimensdes, por exemplo, por defini¢ao so _ substituiveis, Como tédas as ontologias clissicas, esta erige cm estrutura do Ser certas propriedades dos s@res, 64 Henri Matisse: Desento, ponto de vista e transporta por inteito sObre trés cixos retangulares, para que se pudessem um dia achar os limites da construgio, compreender que © espaco niio tem trés dimensdes, nem mais nem menos como um animal tem quatro ou duas patas; que as dimensées siio tomadas de antemio, pelas diversas métricas, sdbre uma dimensionatidade, sobre um Ser polimosfo, que as justifica tédas sem ser completamente expresso por nenhuma. Razdo “tinha Deseartes de liberar 0 espago. O seu érro “estava em efigilo num ser inteiramente positivo, para além de todo ponto de vista, de téda latén cia, de téda profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira, Razfo também tinha éle de se inspirar nas téenicas de perspectives do Renascimento: elas incentivaram a pintura a produzir livremente ex- perigneias de profundidade, e, em geral, apresen- tages do Ser. Elas s6 eram falsas se pretendiam encerrar a investigagdo ¢ a historia da pintura, 65 fundar uma pintura exata ¢ infalivel. Panofsky mostrou isso a propésito dos homens do Renas- cimento '4; ésse entusiasmo nao era sem méa-fé. s te6ricos tentavam esquecer 0 campo visual esférico dos Antigos, a sua perspectiva angular, que liga a grandeza aparente nao a distancia, mas a0 Angulo sob o qual vemos o objeto, coisa a que éles desdenhosamente chamavam de pers- pectiva naturalis ou communis, em proveito de uma perspectiva artificialis, capaz, em principio, de fundamentar uma construgio exata; e, para acreditar ésse mito, chegavam até a expurgar Euclides, omitindo das suas tradugdes o teore- ma VIII, que os incomodava, Os pintores, éstes sabiam, por experiéncia, que nenhuma das técni- cas da perspectiva € uma solugao exata; que nao ha projegfio do mundo existente que © respeite em todos os pontos e mereca tornarse a lei fun- 14. B. PANOFSKY, Die Perspektive als symbolische Form, em Vortrge der Hibliotek Warburg, WV (1924-1925), 66 dumental da pintura; © que a perspectiva linear € to pouco um ponto de chegada que, ao contré- tio, abre A pintura varios caminhos: com os Ita- anos, o da representagiio do objeto, mas, com os pintores do Norte, 0 do Hochraum, do Nahram, do Schriigraum... Assim, a projecdo plana nem sempre excita 0 nosso pensamento a reencontrar 4 forma verdadeira das coisas, como o acreditava Descartes: passado um certo grau de deformagio, 6, a0 contrario, a0 nosso ponto de vista que ela encaminha; quanto as coisas, estas fogem para uuma distancia que nenhum pensamento transpée, Algo no espago escapa as nossas_tentativas de sobrevéo. A verdade é que nenhum meio de ex- pressio adquirido resolve os problemas da pin- ura, transforma-a em técnica, porque nenhuma forma simbolica funciona jamais como um esti- mulo: onde quer que ela operou ¢ agiu, foi con- juntamente com todo o contexto da obra, ¢ de modo algum pelos meios do “trompe-l’oeil”. 67 O Stilmoment nunca dispensa do Wermoment ¥. A linguagem da pintura, esta nfo foi “instituida pela Natureza”: tem de ser feita e refeita, A pers- pectiva do Renascimento nfo é um “truque” infa- livel: 6 mero caso particular, uma data, um mo- mento numa informaco poética do mundo que continua depois dela. Entretanto, Descartes nfo seria Descartes se houvesse pensado eliminar o enigma da visio. Nao ha visio sem pensamento. Mas néo basta pensar para ver: a visio é um pensamento condi- cionado; nasce “ocasionalmente” daquilo que sucede no corpo, é “excitada” a pensar por éle. Nao escolhe nem ser ou nfio ser, nem pensar isto ou aquilo, Deve trazer em seu coragio ésse piso, essa dependéncia que nao podem advir-lhe por uma intromissiio de fora. Tais acontecimentos do “institufdos pela natureza” para nos darem a ver isto ou aquilo. O pensamento da corpo sio 15, Bid 68 Visio funciona segundo um programa ¢ uma lei que éle nfo se deu; nfo est’ de posse de suas pré- prias premissas; nfo é pensamento todo presente, {odo atual; h4 em seu centro um mistério de pas- sividade. £, portanto, esta a situagio: tudo o que se diz.e se pensa da visio faz dela um pensamento Quando, por exemplo, se quer compreender como. € que vemos a situagdo dos objetos, no hé outro recurso seno supor a alma, que sabe onde esto fas partes de seu corpo, eapaz de “transferir dat sua atenc&io” a todos os pontos do espago que ‘estiio no protongamento dos membros 16. Mas isto finda nado passa de um “modélo” do aconteci- mento. Porquanto ésse espago de seu corpo que a alma estende ds coisas, ésse primeiro aqui de onde virdo todos os ali, como é que ela o sabe? Aquéle no 6, como éstes, um modo qualquer, uma amos- ira da extensfo; é 0 lugar do corpo a que a alma chama “seu”, é um lugar que el habita. O corpo: 16. DESCARTES, op. cit, Vi, p. 135 69 {ie anima nio & para ela um objeto entre os objets, © ela no subtrai déle todo o resto do espago @ titulo de premissa implicada, A alma jpensa segundo o corpo, ¢ nao segundo ela prdpria; 6, no pacto natural que a une a éle, so estipulados também. 0 espago, a distancia exterior. Se, para (al grau de acomodagio e de convergéncia do Otho, a alma enxerga tal distancia, 0 pensamento que tira do primeiro a segunda relago ¢ como um pensamento imemorial inserito na nossa fabri- ca interna: “E isto acontece-nos ordinariamente sem que reflitamos nisso assim como quando apertamos alguma coisa com a mao, nés a con- formamos & grossura e a figura désse corpo ¢ 0 sentimos por meio dela, sem que para tal seja necessario pensarmos nos seus movimentos !7, © corpo € para a alma o seu espaco natal ¢ a matriz de qualquer outro espago existente. Des- sarte a visio se desdobra: hé a visio sObre a qual cu rellito, e no posso penséla de outro modo 7, Wid, p. 137. 70 que como pensamento, inspeceio do Espirito, juizo, leitura de sinais, E hd a visio que tem tu- gar, pensamento honorério ou institufdo, esma- gado num corpo seu, cuja idéia nao se pode ter sendo exercendo-a, e que entre o espago ¢ o pen- samento introduz a ordem auténoma do com: posto de alma ¢ de corpo. © enigma da visio nao 6 eliminado: éle ¢ reenviado do “pensamento de ver” 4 visio em ato. Esta visio de fato, e o “ha” que ela contém, nfio transtornam, entretanto, a filosofia de Descar- tes. Sendo pensamento unido a um corpo, por defi- nigdo ela ndo pode ser verdadeiramente pensamen- to. Pode-se praticéla, exercéla e, por assim dizer, existi-la, mas nao se pode tirar dela nada que me- reca ser dito verdadeiro. Se, como a rainha Eliza- beth, se quiser, a t6da forca, pensar disso alguma coisa, nfo hé sendo que retomar Arist6teles © a Escolistica, e conceber 0 pensamento como cor- poral, coisa que se no concebe, mas € essa a n

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