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implicadas nas mudancas e também os processos culturais de refaccdo erudita de formas tradicionais com base no étimo la- tino. RELATIVISMO LINGUISTICO [LINGUISTIC RELATIVITY] Embora em portugués tenha se consagrado o termo relativismo linguistico, a expressio originalmente cunhada por Edward Sapir — linguistic relativity, literalmente “rela- tividade linguistica” — tentava conectar suas teses acerca da relacdo pensamento- cultura-linguagem com a teoria da relati- vidade, postulada na mesma época (década de 1930) por Albert Einstein. Orelativismo linguistico sustenta a tese de que as diferentes linguas humanas forne- cem diferentes descricdes do mundo, uti- lizando parametros conceituais diferentes que, por sua vez, podem influenciar os processamentos cognitivos de seus falan- tes. A tese do relativismo linguistico — sem esse nome, é claro — remonta a pensadores tao antigos quanto Aristéte- les (Retérica, livro III), mas ganhou novo impulso com fildsofos do periodo roman- tico como Giambattista Vico (Ciéncia nova, 1744), Johann Gottfried Herder (Tratado sobre a origem da linguagem, 1772) e sobre- tudo Wilhelm von Humboldt (1767-1835). Humboldt argumentava que a estrutura de uma lingua se correlaciona com o conhe- cimento e a vida intima de seus falantes. Seus estudos sincrénicos comparativos de diversas linguas (sobretudo o basco e o kawi, isto é, o javanés antigo) o levaram a postular que as diferencas linguisticas espelhavam diferengas cognitivas entre os povos. Para Humboldt, a lingua é o meio pelo qual os membros de uma sociedade criam sua concep¢io da realidade objetiva (Weltanschauung, “visio de mundo”). No entanto, numa concepcdo marcadamente racista, Humboldt deduziu que as diferen- ¢as entre as linguas e as visédes de mundo acarretavam diferencas de inteligéncia e de “desenvolvimento” intelectual. Ao pro- por sua classica tipologia das linguas, se- parando-as em flexionais, polissintéticas, aglutinantes e isolantes, também propés que as flexionais — no por acaso, otipoem que se enquadram as linguas das grandes poténcias europeias — eram as mais “avan- cadas”, refletindo, portanto, uma inteligén- cia “superior” de seus falantes, ao contrario das linguas dos outros tipos, faladas por populacées “atrasadas” (»lingua “primi- tiva”). Assim, acerca do tupi, ele escreveu, em 1822: “A nacao que utiliza essa lingua pode, sob muitos aspectos, ser inteligente, habil, cheia de sentido pratico para coisas da vida; entretanto, o livre e puro desen- volvimento das ideias, o prazer pelo pen- samento abstrato nao poderiam surgir de uma lingua semelhante. Ao contrario, sua constitui¢ao se encontraria na absoluta ne- cessidade de sofrer violentas mudangas se acontecesse de outras causas produzirem na nagdo uma grande transformagao inte- lectual” (Humboldt, 2001: 84). O antropdélogo Franz Boas (1858-1942), nascido na Alemanha e, mais tarde, emi- grado para os Estados Unidos, sem duvida sofreu grande influéncia de Humboldt, mas também se empenhou em combater noges etnocéntricas e racistas acerca de povos e idiomas “primitivos”. Por exemplo, embora algumas linguas parecam carecer de nomes abstratos e de sistemas numéri- cos extensos, Boas negava que os falantes dessas linguas fossem incapazes de formu- lar conceitos abstratos ou de contar para além de cinco. Ao contrario, argumentava que tais povos nao tiveram a oportunidade ou a necessidade de se valer dessas abs- tracdes e dessas contagens mas que, se a necessidade assim exigisse, os recursos de suas linguas se provariam 4 altura da exi- géncia. Acreditava que a “forma intima” de uma lingua era uma chave importante para © pensamento nativo, embora a lingua nao fosse de modo algum um determinante ab- soluto da cognicaéo ou do comportamento. Ao fim e ao cabo, Boas acreditava que a influéncia da cultura sobre a lingua era maior do que a da lingua sobre a cultura. Edward Sapir (1884-1939), que estudou com Boas, também rejeitava a visdo etno- céntrica da suposta superioridade de lin- guas e culturas. Sua posicao tedrica era a de que os falantes de linguas diferentes neces- sariamente adotam conceitos diferentes da realidade. Tal como Boas, Sapir ressaltava a importancia de ultrapassar os aspectos superficiais de uma lingua a fim de com- preender sua estrutura interna inconsci- ente, pois somente nesse nivel seria pos- sivel descobrir importantes relacdes com a cultura (incluindo a visao de mundo). Para ele, a linguagem era primordialmente uma “organizacdo criativa e simbdlica con- tida em si mesma, que nao sé se refere a experiéncia (...), como de fato define a experiéncia para nds em virtude de sua completude formal e por causa de nossa projecdo inconsciente de suas expectativas implicitas no campo da experiéncia” (Sapir, 1931; 578). Além disso, uma vez que as categorias gramaticais (como tempo verbal ou caso sintatico) sao abstraidas da expe- riéncia, elas podem ser sistematicamente elaboradas na lingua e na filosofia e, entdo, impostas 4 experiéncia (em vez de desco- bertas pela experiéncia) por causa da “do- minac&o tiranica que a forma linguistica tem sobre nossa orientacdo no mundo” (Sa- pir, 1931; 578), uma formulacdo que se converteria numa citacao famosa. Sao raros os exemplos na obra de Sapir da relacdéo da lingua com a viséo de mundo, talvez por ele acreditar que linguagem e pensamento sao “em certo sentido, uma e a mesma coisa” e que, sendo a lingua um “como particular de pensamento” [“a parti- cular how of thought”, torna-se “dificil ver que relac6es causais particulares podemos esperar que subsistam entre um seletivo inventario de experiéncias [cultura] ea ma- neira particular como a sociedade expressa toda a experiéncia” (Sapir, 1921: 218). Foi, no entanto, um discipulo de Sapir, Ben- jamin Lee Whorf (1897-1941), quem nao s6 refinou 0 conceito de relativismo linguis- tico como também elaborou seus postula- dos mais radicais. Para ele, “os usuarios de gramaticas marcadamente diferentes séo direcionados por suas gramaticas rumo a tipos diferentes de observacGes e avalia- cées diferentes de atos de observacao ex- ternamente semelhantes e, portanto, nao sao equivalentes como observadores, mas tém de chegar a visGes do mundo diferen- tes de algum modo” (Whorf, 1956: 221). Seu interesse nessas questGes deu uma gui- nada mais radical na década de 1930, ao conhecer Ernest Naquayouma, um falante nativo da lingua hopi que entao vivia na cidade de Nova York. Com ele, Whorf pas- sou a se dedicar ao estudo do hopi. Levou a pesquisa adiante por meio de trabalho de campo na reserva hopi do Arizona, em 1938. Com base nesse trabalho, Whorf de- clarou: “Verifica-se que a lingua hopi nao contém quaisquer palavras, formas grama- ticais, construcdes ou expressdes que se refiram diretamente ao que nés chamamos ‘tempo’, ou a passado, presente ou futuro, ou a duragéo ou permanéncia (...). Por- tanto, a lingua hopi nado contém nenhuma referéncia a ‘tempo’, seja explicita, seja im- plicita. Ao mesmo tempo, a lingua hopi é capaz de aperceber ou descrever correta- mente, num sentido pragmatico ou opera- cional, todos os fendmenos observaveis do universo” (Whorf, 1956: 57-58). A partir dessas descobertas, Whorf se en- tregou a uma série de ilacdes e extra- polagées que viriam a constituir o que se passaria a chamar de hipotese Sapir- Whorf. Nessa visdo das relacées entre lin- guagem e pensamento, a gramatica “nao é simplesmente um instrumento reprodutor para expressar ideias, porém, bem mais, ela mesma é moldadora de ideias, o pro- grama e o guia para a atividade mental do individuo, para sua andlise de impres- sdes... Nés dissecamos a natureza ao longo de linhas tracadas por nossas linguas nati- vas” (Whorf, 1956: 58). No entanto, como explica N. Evans (2010: 162), os postulados de Whorf falham em dois planos: o plano empirico eo plano pro- cedimental. As falhas empiricas de Whorf foram exibidas décadas depois, quando Ek- kehart Malotki (1983) publicou um tratado pormenorizado sobre as multiplas formas de se falar do tempo em hopi. Ele abre seu trabalho com a seguinte citacéo em hopi: pu'antsa pay qavongvaqw pay su’its talavay kuyvansat, paasatham pu’pam piw maanat taatayna (“Entao, de fato, no dia seguinte, bem cedo pela manha, na hora em que as pessoas oram ao sol, por volta desse momento entdo, ele acordou novamente a menina”), repleta de elementos linguis- ticos que fazem referéncias ao tempo e que, segundo Whorf, simplesmente nao existiriam na lingua. A pesquisa de Malotki 1983) retira o véu de exotismo do hopi ao apresentar uma gama de estruturas gra- maticais perfeitamente familiares: distin- cao de futuro e de nao futuro pelo tempo verbal, além de advérbios que denotam o tempo de modo mais preciso. No entanto, prossegue Evans, a falha mais grave e mais profunda de Whorf é metodolégica: “Para falar sobre a influéncia da lingua sobre © pensamento, precisamos de um metro independente para cada um. Do contrario, acabaremos abusando dos exemplos de lin- guas exdticas para que exercam duas fun- Gées: linguisticamente, eles mostram como a lingua funciona e, psicologicamente, também sao considerados como um indi- cador direto do pensamento em si mesmo. Esse procedimento circular faz da alegada correlacdo entre linguagem e pensamento um simples artefato para medir duas vezes amesma coisa” (Malotki, 1983: 162). A influéncia do relativismo linguistico foi nada menos do que gigantesca: linguistas, mas também antropdlogos, psicdlogos, so- cidlogos entre outros estudiosos, se deixa- ram levar pelo fascinio da nogao de que “a lingua molda o pensamento e a visio de mundo”, Essas nocées também se pro- pagaram amplamente fora do meio acadé- mico e se impregnaram no senso comum linguistico da sociedade estadunidense e outras. Com o advento do gerativismo, no entanto, e dos postulados cognitivistas as- sociados a ele — principalmente a tese do inatismo —, 0 relativismo linguistico pas- sou a ser duramente criticado. Segundo o paradigma gerativista, todas as variacées culturais nas linguas ou outros aspectos da cognicao sao, de fato, superficiais (epi- fenédmenos), variacdes despreziveis num conjunto subjacente de universais cogni- tivos. Uma opiniao amplamente aceita, enunciada claramente por Jerry Fodor 1975), foi a de que todos os conceitos humanos possiveis sao extraidos de uma “lingua do pensamento” inata e de que os conceitos semanticos das linguas natu- rais sio meras projegGes desses conceitos subjacentes sobre a lingua — uma ideia, por sinal, ja expressa no século XVII pelo fildsofo alemao G. W. Leibniz. Nessa pro- posta, o problema da aquisicdo da lingua pela crianca se reduz simplesmente a en- contrar a correlacdo local entre os sons da lingua e os significados universais (Pinker, 1994). Além disso, wma importante des- coberta pareceu sepultar a hipdtese Sapir- Whorf: a de que a aparente relatividade da discriminac&o das cores entre as linguas pode ser reduzida de fato a uma tipologia ordenada de reconhecimento crescente de apenas onze cores focais basicas (Berlin e Kay, 1969). Considerou-se que esse achado empirico era uma demonstracao cabal de que todos os dominios conceituais seriam, numa analise mais atenta, universalmente estruturados. No entanto, conforme analisa S. Levinson (2003: 460), “parece dbvio o bastante que as linguas podem desenvolver conceitos es- peciais em resposta a presses culturais e que tais conceitos exercem entdo um papel causal no pensamento”. O autor menci- ona experiéncias cotidianas de tradutores, aprendizes de segunda lingua ou diploma- tas que se veem muitas vezes diante de impasses criados pela dessemelhanga ra- dical entre linguas. Além disso, prossegue ele, ja existe um actimulo de comprovacées que sustentam a visdo de senso comum de que as linguas diferem nos conceitos que veiculam e que isso cria uma diferenca cog- nitiva, e que uma lingua especifica oferece a seus usuarios conceitos dificilmente as- similaveis por falantes de algumas outras linguas. Por exemplo, algumas linguas — como o tzeltal (México) e o guugu yimithirr (Aus- tralia) — nao dispdem de palavras para expressar relacGes espaciais como “Aa es- querda de”, “a direita de”, “diante de”, “atras de”. No lugar delas, os falantes dessas lin- guas se valem dos pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste. Assim, por exemplo, em vez de dizer “empurre essa mesa mais para tras”, se dira “empurre essa mesa mais para o [sul][norte][leste][oeste]”. Os pesquisado- res revelam que, mesmo em ambientes fechados, os falantes dessas linguas tem pleno dominio dos pontos cardeais. Isso sem dtivida exige que, desde muito cedo, a competéncia linguistico-comunicativa da crianga se configure para se valer desses re- cursos gramaticais. A lingua dos matis, populacaéo indigena que vive na regiao fronteirica entre o Brasil eo Peru, dispée de recursos morfossintati- cos para localizar separadamente no tempo tanto o evento relatado quanto o calculo da evidéncia, com balizadores independen- tes para cada um. Por exemplo: suponha- se que um cacador esta voltando da selva para sua aldeia e relata que um bando de caititus (shéktenamé em matis) passou por um determinado lugar, baseando-se na in- feréncia da viséo de suas pegadas. O verbo para “passar” é kuen e o final da palavra adquire um sufixo que significa “eles”, que é sh ou k, A depender de quanto tempo transcorreu entre o evento e a deteccao da evidéncia, o falante escolhe o sufixo ak (um periodo curto), nédak (um longo periodo) ou ampik (um periodo muito longo). Ea de- pender de quanto tempo se passou entre a deteccdo da evidéncia e o relato, o falante escolhe o (um periodo curto), onda (um pe- riodo longo) ou denne (um periodo muito longo). O sufixo de tempo-de-deteccao vem primeiro e, em seguida, o sufixo de tempo- do-relato. Isso produz enunciados como: (1) skéktenamé kuenakosh. Caititus (evi- dentemente) passaram por la. (Pegadas frescas foram descobertas ha pouco tempo.) (2) skéktenamé kuenakondash. Caititus (evidentemente) passaram por la. (Pegadas frescas foram descobertas ha muito tempo.) (3) skéktenamé kuennédakosh. Caititus (evidentemente) passaram por la. (Pegadas antigas foram descobertas ha pouco tempo.) (4) skéktenamé kuenakdennek. Caititus (evidentemente) passaram por la. (Pegadas antigas foram descobertas ha muito tempo.) Diante de tais distincdes, Evans (2010: 76) comenta: “Como tantas descobertas empi- ricas, a possibilidade de um sistema como esse é Obvia a posteriori: se os matis nao existissem, algum filosofo da lingua- gem precisaria té-los inventado. E agora que sabemos do sistema matis, podemos ir adiante para nos assegurar de que as lé- gicas representacionais desenvolvidas para sistemas evidenciais e, de modo mais geral, os modelos cognitivos do raciocinio so- cial nao classificam simplesmente os jui- zos evidenciais por tipo, mas os localizam no tempo também. Mas a questao é que, tanto quanto eu saiba, nenhum linguista ou filésofo TINHA realmente postulado um sistema semelhante. Ha muito mais coisas nas linguas deste mundo do que jamais sonhou nossa filosofia”. E Evans (2010: 79-80) conclui: “Nao se pode falar [essas linguas] sem prestar atencdo constante aos conjuntos particulares de categorias que elas forcam seus falantes a no silenciar. Para cada uma dessas linguas, as cultu- ras de fala que gradualmente as moldaram ao longo dos milénios tém que ter feito essas distingdes com frequéncia suficiente no passado para que elas se instalassem em seu aparato gramatical nuclear. (...) Uma crianca que vem ao mundo tem de ter uma mente capaz de apreender tudo dessas gra- miaticas e de aprender a prestar atencdo rotineira a cada uma dessas categorias no curso da aquisicado de sua lingua materna. E (...) para mapear o conjunto total das possibilidades humanas, precisamos nos engajar numa ousada e ampla integracdéo daquilo que as sensibilidades cumulativas das linguas do mundo nos contam”. Apos décadas de rejeigdo e de quase aban- dono total da hipstese Sapir-Whorf, uma nova corrente de investigacéo, chamada precisamente neowhorfiana, se vale de me- todologias empiricas confiaveis e coerentes para comprovar as inter-relacdes de lingua, cultura e cognicdo. Os postulados centrais dessa nova corrente sao (Levinson, 2003: 460): (1) Embora todas as linguas usem os mes- mos primitivos semanticos, elas diferem no modo como os combinam para mol- dar complexos conceitos gramaticais ou lexicais. (2) Conceitos universais sao articulados em combinacées moleculares cultural- mente especificas, correspondentes aos significados das palavras, que podem de- sempenhar um papel no pensamento. (3) Usuarios de linguas diferentes tém uma “unidade psiquica” subjacente, mas tém conceitos diferentes 4 sua disposi- cdo para pensar. Levinson (2003: 462) retoma a questao dos termos para cores. As pesquisas iniciais de Berlin e Kay pareceram, num primeiro mo- mento, negar os postulados do relativismo linguistico. No entanto, desdobramentos recentes sugerem que 0 esquema original proposto por aqueles autores simplificou demasiadamente a diversidade linguistica. Algumas linguas ja nao se encaixam muito bem no esquema. Além disso, ha fortes evidéncias de que dispor de termos de cores diferentes faz, sim, uma diferenca no julgamento perceptual. Winawer e sua equipe (2007) mostraram experimental- mente que a existéncia de duas palavras distintas em russo para o que se chamaem portugués de azul-claro (goluboy) e azul- escuro (sinyi) leva os falantes de russo a reagir mais prontamente no momento de identificar as cores do que falantes de outra lingua. De igual modo, Boroditsky, Schmidt e Phillips (2003) comprovaram o impacto do género gramatical sobre os falantes das linguas que dispdem dessa categoria gra- matical. Sintetizando essas reflexées, Bagno (2014; 13-14) propde considerar a linguagem como um fenédmeno de ordem sociocogni- tiva, isto é, ao mesmo tempo em que é uma capacidade bioldgica da espécie humana (e exclusiva da espécie humana) de adqui- rir/produzir/transmitir conhecimento por meio de representacées/simbolizagées do mundo, elatambém é uma forca motora de coesGo social, é preservada e transformada pelos membros de uma comunidade hu- mana, como tal, sujeita aos fluxos, influ- xos e contrafluxos politicos, econdmicos e sobretudo culturais dessa comunidade. Nesse sentido, escreve o autor, é certo dizer que a lingua é um trabalho social empreendido coletivamente por todos os membros da comunidade que a utilizam. A principal conclusao a que chega é a de que as mudancas que ocorrem na lingua, na cultura e na cognic&o sao tao intima- mente entrelacadas que, na pratica, é im- possivel estabelecer qualquer vinculo de causa e efeito entre elas, de maneira que a ideia de coevolucdo é a que melhor da conta, até o momento, dessas transformacées: “Se as coisas realmente sao assim, o estudo da linguagem nao pode ser dissociado do estudo simultdneo dos fenédmenos cognitivos e cul- turais. As teorias sobre o funcionamento da linguagem humana que se concentra- vam exclusivamente no aspecto cognitivo (individual) ou no aspecto cultural (social) sempre acabaram topando em becos sem saida, exatamente porque nao levaram em consideracao o carater indissociavel de lin- gua, processamento cognitivo e relacdes socioculturais” (Bagno, 2014: 15). Em suas criticas e reavaliagdes da hipo- tese Sapir-Whorf, Guy Deutscher (2010: 150) propée uma nova formula, que de- nomina principio Boas-Jakobson. Nele se fundiriam o postulado boasiano de que “a gramatica determina os aspectos de cada experiéncia que tém de ser expressos” com. o jakobsoniano de que “as linguas dife- rem essencialmente naquilo que elas tém de expressar e nao naquilo que podem ex- pressar”. Um exemplo muito simples deste principio é a impossibilidade, para falantes de portugués, alem&o e russo — e outras linguas que apresentam morfologia de gé- nero gramatical — de nao especificar o gé- nero de uma palavra no momento exato de sua enunciacio: um falante de inglés pode dizer “I spent yesterday evening with a neigh- bor” e manter em siléncio 0 sexo da pessoa a que se refere — um falante de portugués, alemAo ou russo é obrigado a escolher entre vizinho/vizinha, Nachbar/Nachbarin, sosed/ sosedka (Deutscher, 2010: 151), Segundo Deutscher, nenhum dos dois grandes pensadores estava enfatizando as diferencas gramaticais entre linguas no to- cante a influéncia que exercem sobre o pensamento. Boas se preocupava funda- mentalmente com o papel que a gramatica exerce na lingua, enquanto Jakobson lidava com os desafios que as diferencas entre as linguas levantam para a traducao. No en- tanto, “parece-me que o principio Boas-Ja- kobson é a chave para desvendar os reais efeitos de uma lingua particular sobre 0 pensamento. Se linguas diferentes influen- ciam as mentes de seus falantes de modos variados, nao é por causa daquilo que cada lingua permite as pessoas pensar mas, sim, por causa dos tipos de informacgao sobre os quais cada lingua habitualmente obriga as pessoas a pensar. Quando uma lingua obriga seus falantes a prestar atencdo a certos aspectos do mundo a cada vez que abrem a boca ou apuram os ouvidos, tais habitos de fala podem, ao fim e ao cabo, se fixar como habitos mentais com con- sequéncias para a memoria, a percep¢ao, as associagées ou mesmo para habilidades praticas” (Deutscher, 2010: 152). 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