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Antonio Florentino Neto

Algumas questões sobre as


interpretações ocidentais do
pensamento oriental

Introdução

A filosofia japonesa contemporânea está diretamente vinculada


à escola de Kyoto, quer seja na forma de continuidade, de crítica
ou na tentativa de superação. Por sua vez, a escola de Kyoto, ou
seja, o pensamento filosófico predominante no Japão a partir da
reabertura para o mundo ocidental na década de 1860, se des-
envolve como expressão de um diálogo intensivo com a filosofia
americana e europeia, tendo por base, as referências orientais,
principalmente o budismo neoconfucionista e o Zen-budismo.
A escola de Kyoto não só repensa a tradição filosófica ocidental,
mas também se posiciona de maneira radicalmente crítica em
relação à própria tradição zen-budista. O complexo universo
da escola de Kyoto e sua repercussão no mundo ocidental do
século 20 têm como base, principalmente, elementos centrais do
budismo indiano e do Zen-budismo. Este, por sua vez, surge na
China, sendo decisivamente influenciado pelo Taoísmo, e dialoga
com a história da filosofia ocidental: dos gregos a Heidegger,
do utilitarismo inglês à fenomenologia, passando por Plotino,
Antonio Floretino Neto

Mestre Eckhart, Kant, Fichte, Hegel e, a meu ver, em sua fase


mais fecunda, dialoga com Nietzsche.
Porém, antes de entrar diretamente nas questões referen-
tes ao diálogo que abordarei na última parte deste artigo, analiso
alguns itens que considero como precondição para comparar
elementos do pensamento ocidental e do pensamento oriental.
Propor-se a tratar da relação entre questões filosóficas funda-
mentais destas duas visões de mundo, como me proponho aqui,
significa recorrer à possibilidade de comparar esses dois universos
aparentemente tão distintos, que, de acordo com a tradição
filosófica ocidental, teriam se desenvolvido em perspectivas que
se distanciam progressivamente. Diante disso, abordarei alguns
pontos que considero básicos, formadores do alicerce no qual
a filosofia ocidental erigiu sua concepção sobre o pensamento
oriental. Ainda mais especificamente, tratarei da concepção que
alguns filósofos ocidentais criaram sobre o Oriente.
O objetivo deste retorno não é, de maneira nenhuma,
apontar anacronicamente absurdos cometidos por filósofos tais
como Leibniz, Hegel, Nietzsche e Jaspers em relação ao Oriente.
Recorrerei, de modo geral e rápido, a alguns elementos histórico-
filosóficos básicos para uma compreensão mínima dos elementos
que nos permitem entender, por um lado, o surgimento do
pensamento japonês moderno, como diálogo com a filosofia
ocidental, e por outro, a tardia abertura da filosofia ocidental
para o diálogo com o pensamento japonês. Farei um retorno ao
início da malograda campanha de evangelização cristã no Japão
e na China,1 nos séculos 16 e 17, e a repercussão desta tentativa

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Sobre a relação entre as missões católicas no Oriente, principalmente na
China, e a filosofia, destaco as obras: Gernet (1984) e Li (2000).

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na filosofia moderna, que marcou decisivamente a nossa con-


cepção sobre o pensamento oriental, deixando vestígios que
permanecem fortemente presentes até hoje.

Leibniz e a Europa do Oriente

O processo de evangelização do Extremo Oriente inicia-se no


Japão, onde é interrompido bruscamente em poucas décadas,
e tem continuidade ainda por quase um século na China, onde
também é encerrado na segunda década do século 18. Os pri-
meiros missionários católicos chegam ao Japão em meados do
século 16 e permanecem até 1606, quando o Cristianismo é
então proibido. Esta proibição marca também o início de um
período de isolamento total do Japão, com referência ao mundo
ocidental, que dura até o final da década de 1860. Com a proi-
bição do Cristianismo no Japão, os missionários, principalmente
jesuítas, transferem todo seu potencial evangelizador para a
China. Com isso, inicia-se um período de intenso intercâmbio
entre o mundo ocidental e o oriental, que dura até meados do
século 18, quando a China também proíbe, incondicionalmente,
o Cristianismo e expulsa todos os europeus de seu território.
As missões cristãs desencadeiam na Europa um debate
acirrado sobre o mundo oriental entre os intelectuais da época,
que envolve diretamente, entre outros, Leibniz, Malebranche,
Christian Wolff e posteriormente Hegel. Leibniz correspondeu-
se durante vários anos com padres jesuítas e tomou parte direta
em uma discussão interna da igreja católica sobre a conversi-
bilidade dos chineses ao Cristianismo.2 A controvérsia que se

2
A principal parte da correspondência de Leibniz com os padres jesuítas
sobre a China já está disponível em Wiedmaier (1990).

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referia ao Extremo Oriente como um todo se concretizava na


discussão sobre a existência ou não de elementos na tradição
cultural filosófica chinesa que correspondessem aos conceitos de
Deus, de Alma e de Anjos. Parte da igreja católica defendia a
tese de que os chineses convertidos deveriam abdicar de todos
os seus elementos culturais e ritos religiosos. A outra parte,
composta fundamentalmente pelos jesuítas, defendia a tese
de que alguns elementos da cultura chinesa, principalmente o
confucionismo tradicional, não eram completamente incompa-
tíveis com o Evangelho. Este debate ficou conhecido, entre os
intelectuais da época, como o conflito dos ritos. É justamente
neste contexto que Leibniz escreve seus dois únicos textos sobre
a China: o prefácio da Novissima Sinica (Leibniz, 1979), uma
coletânea de textos diversos sobre a China; e o Discours sur la
Théologie naturelle des chinois (Leibniz, 2002), só publicado no
final do século 20.
A importância principal do prefácio da Novissima sinica
é, sobretudo, que ele representa o início da relação intelectual
entre Europa e Oriente. A abertura para o diálogo em Leibniz
e a repercussão desta abertura no fechado universo cristão
desta época é, a meu ver, o ponto mais importante desta obra
para a discussão sobre o início do debate entre o pensamento
do Extremo Oriente e o europeu. Assim, concentrar-me-ei
nesta disponibilidade inicial de Leibniz para o diálogo com o
pensamento chinês, a partir de alguns dos seus pensamentos
filosófico-cristãos, na tentativa de extrair a consequência de um
possível diálogo entre a visão de mundo cristã no século 17 e o
pensamento chinês.
Leibniz expõe, no seu prefácio da Novissima sinica, o pri-
meiro reconhecimento de outra cultura, da cultura chinesa como

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

igualitária à visão de mundo europeia no primeiro parágrafo


do texto, ao designar a China como a “Europa do Oriente” e
salienta seu alto nível de desenvolvimento tecnológico (Leibniz,
1979, p. 9). Com a Novissima Sinica, pela primeira vez um pen-
sador europeu concede a outro povo, fora da Europa, a condição
de igualdade, em determinados aspectos, com o mundo cristão.
Como resultado de sua comparação entre Europa e China,
Leibniz reconhece a paridade de desenvolvimento entre as
duas culturas no âmbito da técnica, do cotidiano e “no debate
experimental com a natureza”. Ele estava informado de que há
séculos já se usavam cotidianamente, na China, papel, pólvora,
tecidos de seda e outras descobertas desconhecidas na Europa.
Entretanto, os chineses estariam, no que diz respeito às disci-
plinas teóricas, em situação de inferioridade, já que estas não
encontrariam aplicações práticas diretas.

Mas quem poderia pensar que na terra existisse um povo que nos
superasse em vários aspectos da vida cultivada? Se formos iguais nas
manufaturas, habilidades manuais e práticas, somos superiores a eles
no que diz respeito às ciências teóricas, mas somos inferiores no que
concerne ao domínio da filosofia prática. Quero dizer, somos inferio-
res no campo da Ética, Política e da vida dos costumes cotidianos.
(Leibniz, 1979, p. 11)3

Leibniz destacou o caráter predominante e prático do


Confucionismo, assim como o reflexo dele em todos os âmbitos
da cultura chinesa, especialmente na matemática. Segundo
ele, a ciência teórica superior da Europa não levou a nenhum
resultado adequado no campo da Ética e da Política. Os chi-
neses, com seu conhecimento prático e orientado, estariam, no

3
Todas as citações deste artigo foram traduzidas pelo autor.

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campo da vida normativa, em melhor posição do que os cristãos


europeus, o que levaria a uma superioridade no comportamento
moral.
Depois de sua constatação de que os chineses estavam
mais desenvolvidos e melhor preparados no ensino da Ética e
da Política do que os europeus cristãos, Leibniz sugeriu que eles
deveriam mandar, para a Europa, missionários que pudessem
ensinar aos europeus a Teologia Natural.

Em todo caso, me parece que diante da enorme decadência moral da


Europa, quase seria necessário que os chineses nos enviassem missio-
nários que nos ensinassem o uso e a prática da teologia natural, assim
como nós enviamos pessoas que lhes ensinam a teologia da revelação.
(Leibniz, 1979, p. 19).

Nesta proposta, vejo o cerne da disposição de Leibniz


para o diálogo entre o pensamento europeu e o chinês. O que
não é, a meu ver, o seu reconhecimento da superioridade dos
chineses em âmbitos específicos, mas sim sua oferta, atrelada a
uma condição, para que alguns missionários chineses fossem à
Europa com o intuito de ensinar outra e melhor ética. Assim,
se por um lado os chineses deveriam ensinar a Teologia Natu-
ral aos europeus, estes, por sua vez, ensinariam aos primeiros
a Teologia da Revelação, o que, sabidamente, não seria nada
simples diante dos limites teóricos do Cristianismo em lidar
com a diferença.
Mas como teria sido se os chineses tivessem, de fato,
enviado sábios para a Europa, na intenção de ajudar os euro-
peus a deter a sua “decadência moral”, como sugeriu Leibniz?
O convite hipotético de Leibniz foi provavelmente apenas um
lance estratégico, visto que a moral cristã da Teologia da Reve-
lação excluía todas as perspectivas éticas que estivessem fora da

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orientação bíblica, e que a Teologia Racional, em Leibniz, só


era imaginada em conexão com a ciência ocidental, em especial
com a matemática.

Todavia não se deve exercitar a matemática como um artesão e como


o filósofo puro. Virtude jorra da fonte da sabedoria e a alma da sabe-
doria é a verdade, e aqueles que se exercitaram nas demonstrações
matemáticas apreenderam a essência das verdades eternas e podem
discernir o certo do incerto, enquanto que o restante das pessoas
pende para lá e para cá em opiniões, assim como Pilatos, que afirma
não saber o que é a verdade. (Leibniz, 1979, p. 17).

Esta é a passagem mais densa do prefácio e ela contém


a objeção decisiva em relação à possibilidade de um convite
real aos sábios chineses para ensinarem moral aos europeus,
quando se observa a perspectiva moral de Leibniz em relação
às ciências e, em primeiro lugar, à matemática.
Estar em posição inferior, no que tange ao conheci-
mento teórico, poderia ser um impedimento decisivo para a
realização do intercâmbio e poderia ser visto, portanto, como
uma deficiência dos missionários chineses. Ao contrário disso,
a matemática, como instrumento de conversão, deveria ser
então o método mais eficiente, na medida em que ela aponta
para o comportamento moral correto. O sucesso do empreen-
dimento astronômico europeu na China,4 que conseguiu prever

4
Os padres jesuítas enviados à China eram principalmente astrônomos
e matemáticos, que deveriam usar seus conhecimentos técnicos e cien-
tíficos como método de evangelização. Esta estratégia de conversão
designada como propagatio fidei per scientias teve seu auge com a nomeação
do astrônomo alemão e padre jesuíta Johann Adam Schall von Bell ao
cargo de chefe do departamento de astronomia do império chinês, e
posteriormente mandarim.

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eclipses com precisão até então desconhecida pelos chineses, foi


a prova de que os missionários do Ocidente detinham melhores
conhecimentos sobre os acontecimentos no céu. Isto não deve
ter permanecido sem maiores consequências para o avanço das
intenções dos europeus cristãos, já que o elemento que carac-
teriza o polo oposto à terra, ou seja, o céu, é um componente
central na visão chinesa de mundo.
A superioridade do conhecimento ocidental e seu signifi-
cado para a formação do caráter humano, em Leibniz, surgem
como prova de que o uso do subjuntivo na penúltima citação
não foi ao acaso, mas sim necessário, quando se considera que
os chineses não tinham uma ciência semelhante. Como é que
os sábios chineses poderiam ajudar os cristãos sobre o “declínio
moral” europeu, sem o conhecimento científico do Ocidente? De
fato, a Novissima Sinica indica apenas uma possível direção para
o intercâmbio cultural: os missionários chineses que deveriam
ser enviados à Europa tinham primeiro que obter uma grande
familiaridade com a ciência ocidental, para poderem, assim,
ajudar realmente os europeus.
Esta perspectiva aparentemente positiva diante do mundo
oriental, em Leibniz permanece predominante, no meio filosófico
ocidental, até Hegel, que inverte por completo a direção desta
abertura inicial.

Hegel e a escrita chinesa

Hegel, nas Conferências sobre a história da filosofia, explicita clara-


mente, como nenhum outro filósofo anterior, sua concepção de
filosofia, excluindo ao mesmo tempo o pensamento oriental da
história da filosofia (Hegel, 1995a, p. 121). A filosofia seria, em

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sua origem, exclusivamente grega. Para Hegel, a filosofia tem


seu início no mundo pré-socrático, com Parmênides e Heráclito.
Que a filosofia ocidental teria seu início no mundo grego, isso
já era conhecido, porém, a interpretação de Hegel sobre seu
começo se dá de modo a excluir outros pensamentos da esfera
do que seja a filosofia. A filosofia só pode surgir na Grécia, onde
o homem da antiguidade experimentara, pela primeira vez,
a liberdade, alega Hegel. “A filosofia em seu sentido próprio
começa no Ocidente. Somente no mundo ocidental emerge a
liberdade da autoconsciência” (Hegel, 1995a, p. 121).
Só e unicamente no mundo grego, ou seja, no Ocidente,
teria havido as condições imprescindíveis para o surgimento
do pensamento filosófico. Os gregos, e somente eles, segundo
Hegel, conheciam os fundamentos do Ser ocidental e a liberdade
individual (Hegel, 1995a, p. 121). O homem que criou o início
da filosofia tinha que ser necessariamente livre. O significado de
homem livre para a filosofia de Hegel não é simples de definir
e também não é decisivo para meus propósitos, neste trabalho.
Ao contrário, o significado, porém, de um homem não livre é
claro: “O homem é, em si, livre; o africano, o asiático, todavia,
não o são, porque eles não têm a consciência do que forma o
conceito de homem” (Hegel, 1995c, p. 252). O homem na
filosofia hegeliana experimenta a liberdade em sua totalidade;
ele tem que ser livre em todos os níveis e somente lá, onde há
liberdade política, pode surgir também a filosofia.
Africanos e asiáticos nunca teriam experimentado a
condição de indivíduo como consciência política, e a liberdade,
como fundamento da autoconsciência. Somente os gregos
teriam conhecido a condição principal para a manifestação
do pensamento, em sua mais completa forma, como filosofia.

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Nenhum outro povo, sequer os chineses, teria conhecido as


condições imprescindíveis à filosofia. Quando Hegel procura nos
mostrar que na China as condições fundamentais para a filosofia
não existiam, o faz nos apontando exemplos preconceituosos,
impregnando-nos a imagem, em todas as esferas, de uma cultura
chinesa inferior, imprópria para a filosofia e para a ciência.
Na China não há grande diferença entre escravidão e liberdade, visto
que diante do imperador todos são iguais, ou seja, todos são igualmente
degradados. Não existindo honra nenhuma, e sendo que ninguém tem
algum direito especial diante do outro, a consciência da degradação
se torna predominante e se transforma facilmente em consciência da
depravação. E a esta depravação está vinculada a grande imoralidade
dos chineses. Eles são conhecidos por trapacear onde puderem. O
amigo engana o amigo e ninguém leva a mal quando alguma trapaça
não dá certo ou é descoberta. (Hegel, 1995b, p. 165).

No mundo oriental, somente o déspota era livre, para


Hegel, o que teria sido um obstáculo para o surgimento da
filosofia. Mesmo Confúcio, até então reconhecido por filósofos
tais como Leibniz e Wolff 5 como sendo um grande filósofo da
moral e da política, será considerado por Hegel como um “sábio
prático”. Hegel alega que seu ensinamento moral não poderia
trazer nada de novo para o mundo ocidental, visto que Cícero
já apresentava uma moral com uma qualidade melhor. “De
suas obras, pode-se dizer somente que teria sido melhor para a

5
Christian Wolff, ao repassar o cargo de pró-reitor da Universidade de
Halle ao seu sucessor, proferiu um discurso ressaltando as ideias ilumi-
nistas de separação entre fé e razão, recorrendo à tradição chinesa. Em
seu discurso, Wolff afirma que a prova mais contundente desta separação
estaria no fato de que os chineses não possuíam conhecimento de teologia,
mas mesmo assim dispunham de uma teoria moral inquestionável.

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fama de Confúcio, se elas não tivessem sido traduzidas” (Hegel,


1995b, pp. 142-143).
Para ele, na Grécia alguns homens eram livres, o que já
era a condição básica para as primeiras manifestações do filo-
sofar. Porém, será somente mais tarde, no mundo germânico,
que as condições satisfatórias para a filosofia em sua forma
completa serão preenchidas. A filosofia ocidental alcança com
Hegel o ponto mais alto de sua determinação como o único
pensamento verdadeiramente filosófico e, com isso, apresenta a
cultura europeia como garantia única das condições necessárias
para sua realização.
As considerações de Hegel sobre a liberdade humana são,
de certo modo, suas principais contribuições para a filosofia
alemã, e o pensamento ocidental sem elas teria permanecido
incompleto; entretanto, algumas de suas afirmações sobre a
liberdade do homem, especialmente no que diz respeito aos
chineses, não podem ser totalmente aceitas. Que o homem
livre como condição para o surgimento da filosofia europeia
represente um aspecto importante para seu pensamento, não
significa, necessariamente, que em outro lugar não tenha
havido homem livre, ou que a filosofia não tenha tido lá outras
referências iniciais.
Paralelo à afirmação de que o pensamento oriental não
seria filosofia, outro ponto não pouco polêmico defendido por
Hegel é que na China também não teria se desenvolvido uma
ciência. Numa sociedade onde ainda não teria se constituído o
indivíduo livre, da mesma forma não teria sido possível a concre-
tização do conhecimento técnico em ciência. A ausência de uma
“subjetividade particular” e o papel do imperador como o maior
cientista impediram, para Hegel, que o espírito livre buscasse a

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ocupação teórica, ou seja, buscasse a ciência em sua amplitude


(Hegel, 1995c, p. 169). A existência de uma estrutura despótica
no império chinês não teria sido, contudo, o único empecilho
para o surgimento do conhecimento científico na China. Tão
decisivo quanto a ausência de subjetividade para o surgimento
do pensamento científico na China, segundo Hegel, teria sido
a estrutura da língua chinesa que seria, também, inapropriada
para um pensamento sistemático.

Até mesmo a língua escrita é um grande obstáculo para a formação


da ciência, ou mesmo o contrário, visto que o verdadeiro interesse
científico nunca esteve presente, por isso os chineses não teriam um
instrumento melhor para a exposição e a propagação do pensamento
(Hegel, 1995c, pp. 169-170).

A língua dos chineses não seria apropriada para a ciência,


e reciprocamente a língua chinesa não teria avançado em seu
desenvolvimento, por não haver na China interesse científico.
As reflexões de Hegel sobre as propriedades da língua chinesa
se diferenciam muito das considerações sobre o pensamento
chinês, apresentadas acima, ao relacionar estrutura da língua e
pensamento. Porém, uma dedicação intensiva e sistemática com
a língua chinesa não se pode perceber em Hegel. Mesmo assim,
suas considerações sobre a língua chinesa, apresentada na citação
acima como inapropriada para a ciência, permanecem como uma
das afirmações mais difundidas sobre o pensamento chinês, no
meio acadêmico ocidental, que marcou decisivamente a nossa
concepção sobre o que seja o Oriente, pois ainda é comum a
repetição destes argumentos de Hegel.

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

Jaspers e o “início” da filosofia oriental

Somente um século após os comentários de Hegel sobre o


pensamento oriental, ressurge na filosofia ocidental, com Karl
Jaspers, uma abordagem significativa sobre o Oriente, que
pode ser considerada como um momento decisivo para o diá-
logo com o mundo não-ocidental e para o desenvolvimento de
uma análise comparativa entre a filosofia ocidental e oriental.
Entre Hegel e Jaspers existem vários outros pensadores signi-
ficativos tais como Schopenhauer, Marx, Nietzsche, Husserl
e outros. Todavia, nenhum deles se ocupou intensamente
com o pensamento oriental. Em Schopenhauer pode-se per-
ceber uma clara influência do budismo indiano,6 mas, sobre o
pensamento chinês, só escreve um pequeno artigo intitulado
Sinologia (Schopenhauer, 1988, pp. 305-314). Em Nietzsche
encontram-se passagens rápidas que se referem também ao
budismo indiano. Seus comentários sobre o Oriente poderiam
passar despercebidos se não fosse a intensidade da recepção
que suas obras encontraram na filosofia japonesa do século
20. Vários filósofos da Escola de Kyoto abordaram de modo
comparativo elementos centrais do pensamento de Nietzsche
em relação ao Zen-budismo. Por este motivo tratarei da relação
de Nietzsche com o Oriente, especificamente de algumas pas-
sagens do Zaratustra e de alguns aspectos do Zen-budismo, na

6
Considero a relação de Schopenhauer com o Oriente um caso particu-
lar a ser tratado em um texto específico, visto que não se percebe em
seus escritos referências diretas ao Zen-budismo, e que a recepção do
budismo indiano em suas obras não encontrou interlocutores orientais
contemporâneos. Uma análise crítica da influência do budismo indiano
na obra principal de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação,
foi feita por Wenchao Li (1996, pp. 119-124).

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Antonio Floretino Neto

última parte deste artigo. Sobre a relação de Heidegger com o


pensamento oriental já apontei, de maneira introdutória, em
um artigo intitulado Recepção e diálogo – Heidegger e a filosofia
japonesa contemporânea (cf. Florentino Neto, 2008, pp. 147-159),
os pontos que considero centrais para este tema.
A mudança de perspectiva na reflexão europeia sobre
outras culturas tradicionais e a conseqüente abertura para o
diálogo filosófico intercultural com o Oriente toma consistência
com a introdução do conceito de “tempo-eixo”7 (Achsenzeit) na
história mundial, feito por Jaspers. Esta nova forma de conside-
rar a história do pensamento, que parte de uma perspectiva da
busca de evidências de igualdade entre Índia, China e Grécia,
possibilita o surgimento de condições favoráveis ao início do
futuro diálogo entre o pensamento europeu e oriental. Com
Jaspers, diametralmente oposto a Hegel – contudo, um século
e meio mais tarde – surge, pela primeira vez na historia da
filosofia ocidental, a possibilidade de uma interpretação não
eurocêntrica da origem do pensamento filosófico.
Para ele a filosofia não surge na Grécia, como afirmara
Hegel. Ela tem início em diferentes lugares no mesmo período
histórico. Jaspers considera o “tempo-eixo” como o período
intelectual mais produtivo, que teria determinado o futuro da
humanidade.

Foi um tempo de uma densidade extraordinária. Na China viviam


Confúcio e Lao-Tse e surgiram também todas as correntes da filosofia
chinesa, com pensadores como Mo-Ti, Tschuang-Tse e outros tantos
inumeráveis. Buda nascia na Índia, sugiram as Upanishads, e se des-
envolviam as mais diferentes escolas filosóficas possíveis, tais como na

7
Com este conceito Jaspers designa o período entre os anos 800 e 200
a.C., que ele considera o momento mais produtivo da humanidade.

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

China: o ceticismo, o materialismo, a sofística e o niilismo. No Iran,


Zaratustra difundia seus ensinamentos, que reivindicavam uma visão
de mundo baseada na luta entre o bem e o mal. Na Palestina surgiam
os profetas: de Elias, passando por Jeremias, até Deuterojesaia. Na
Grécia vemos Homero, os filósofos Parmênides e Heráclito, e os
trágicos Tucídides e Arquimedes. Tudo que se referir a esses nomes
se desenvolveu nestes poucos séculos, ao mesmo tempo na China, na
Índia e no Ocidente, sem que houvesse entre si, conhecimento mútuo
(Jaspers, 1949, p. 20).

Jaspers não foi o primeiro a utilizar o conceito “tempo-


eixo”, mas ele o emprega pela primeira vez em seu sentido
mais amplo, e com isso instaura um marco na interpretação
europeia do pensamento oriental (Jaspers, 1949, p. 28). Para
ele, o homem do “tempo-eixo”, na China, Índia e Grécia, se
depara, ao mesmo tempo, com problemas semelhantes, e isto
não seria um mero acaso e sim um indício de que o homem tem
uma mesma origem (Jaspers, 1949, p. 32) e elementos culturais
originariamente comuns. Para Jaspers, a filosofia tem inícios
diferentes em três lugares distintos no mundo. Ele procura os
fundamentos e motivos do surgimento da filosofia em necessi-
dades comuns a todos os homens, e não em condições políticas
objetivas intimamente vinculadas à concepção ocidental de
liberdade, como em Hegel.
O caráter inovador da leitura que Jaspers faz do pensa-
mento oriental concentra-se fundamentalmente em sua aná-
lise de alguns elementos do Taoísmo e em sua classificação de
pensadores chineses como filósofos, mas na verdade ela pode
ser estendida a toda tradição não-ocidental, sendo assim um
impulso significativo para a consolidação do método compara-
tivo na filosofia. Jaspers supera a distinção entre “pensamento”
e “filosofia” ao designar, pela primeira vez na história da filosofia

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Antonio Floretino Neto

alemã, Lao-Tse como um dos grandes metafísicos da história


da filosofia, colocando-o no mesmo patamar de Anaximandro,
Heráclito, Parmênides e Espinosa. A designação corrente de
“pensamento oriental” em lugar de “filosofia oriental” parece,
à primeira vista, uma simples questão terminológica, porém
ela é, na verdade, a continuação da perspectiva hegeliana, que
em última instância restringe a “filosofia” ao mundo ocidental.
E é justamente a superação da distinção entre “pensamento” e
“filosofia”, aparentemente neutra, que chamo de “preconceito
hegeliano”, a grande contribuição dada por Jaspers ao início do
diálogo entre Ocidente e Oriente.
Com Jaspers o pensamento chinês se torna filosofia e Lao-
Tse ganha status de grande mestre da metafísica (Jaspers, 1957,
p. 291). Jaspers é o primeiro filósofo europeu contemporâneo
que reconhece a extrema complexidade do Tao Te King e suas
completas considerações sobre os principais temas da filosofia. As
distintas formas sistemático-metodológicas de filosofar são, para
Jaspers, elementos secundários, visto que obras tais como o Tao
Te King expressaram em seu conjunto as questões fundamentais
da humanidade. Para Jaspers o livro de Lao-Tse seria a expressão
máxima de uma obra hermeticamente harmônica que contém
em poucas páginas uma conexão perfeita entre metafísica, cos-
mologia, ética e política (Jaspers, 1957, p. 292).

Nietzsche e o Zen-budismo da Escola de Kyoto

A relação de Nietzsche com o Oriente pode ser classificada


como um momento particular que se contrapõe à perspectiva
eurocêntrica radical que se encerra com Hegel, mas que ainda
não apresenta a clara abertura para o diálogo, como em Jaspers.

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

Os escritos de Nietzsche que fazem referências ao Budismo


são, naturalmente, anteriores a Jaspers, mas optei por tratar da
relação de Nietzsche com o Oriente na última parte do texto,
por considerá-la uma das mais particulares e mais significativas
para o início do diálogo entre Ocidente e Oriente. Nietzsche
é um dos filósofos ocidentais que permite ao mesmo tempo
comparações que apontam tanto incompatibilidades extremas
quanto proximidades viscerais entre Ocidente e Oriente, o que
o torna ainda mais atrativo para tal discussão. Porém, tratarei
somente de algumas proximidades elementares entre Nietzsche
com o Oriente, especificamente com a Escola de Kyoto, com o
intuito de indicar, nesta relação, apenas as perspectivas que se
abrem com uma análise comparativa entre estes dois universos
filosóficos.8
Nietzsche já está suficientemente distante tanto da
“chinoiserie”, do período de Leibniz, quanto da “chinofobia”
de Hegel. A China não é mais o centro das discussões sobre o
Oriente, o Japão nem sequer é mencionado em suas obras. O
universo oriental de Nietzsche é o budismo de Schopenhauer,
de Paul Deussen,9 e a Pérsia de Zaratustra. As considerações
esparsas e ambivalentes de Nietzsche sobre o Budismo não serão
consideradas neste texto, pois o objetivo principal desta segunda
parte de minha exposição é comparar as proximidades entre um
momento particular da filosofia alemã, com outro momento
específico da Escola de Kyoto: O anúncio da morte de Deus no

8
O livro de Graham Parkes (1996), Nietzsche and asian thought, trás uma
coletânea de textos sobre Nietzsche e o Oriente, com as discussões mais
significavas sobre este tema.
9
Paul Deussen foi um dos amigos mais próximos de Nietzsche desde os
tempos de juventude, e um dos mais importantes estudiosos do budismo
indiano e tradutor do sânscrito para o alemão.

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Zaratustra e a morte do Buda em Hisamatsu. São dois momen-


tos extremamente radicais para estas duas perspectivas filosóficas
e compará-los só se torna possível a partir da recepção criativa
e particular de Nietzsche pelos filósofos japoneses do século
20. Tal recepção tem início com o chamado Conflito-Nietzsche
(cf. Becker, 1983) desencadeado pela publicação de um artigo
sobre estética no Japão em 1901, e se intensifica e toma corpo
com os escritos de Nishitani sobre Nietzsche. Posteriormente,
tanto Shinichi Hisamatsu quanto Ueda se dedicam à relação
entre Nietzsche e o Zen-budismo.
Tomo como referência para minhas considerações apenas
o prólogo do Zaratustra de Nietzsche que, a meu ver, condensa
os elementos mais importantes que podem ser comparados com
o Zen-budismo, e algumas passagens do artigo de Hisamatsu,
Philosophie des Erwachens – Satori und Atheismus (Hisamatsu,
1990). Assim como Buda, o Zaratustra de Nietzsche se retira
do convívio com os homens, vai para as montanhas e busca
na solidão que desfruta e na proximidade com a natureza, o
verdadeiro sentido da vida. Após dez anos, tendo seu coração
se transformado completamente (Nietzsche, 1999, p. 11), ele
decide voltar e anunciar aos homens as transformações pelas
quais passara. Após ter descido a montanha em direção à cidade
mais próxima, Zaratustra se encontra com um velho eremita que
o reconhece e que percebe imediatamente que Zaratustra não
era mais o mesmo. Entre os dois ocorre um pequeno diálogo,
do qual citarei aqui algumas partes:

Não vás ao encontro dos homens! Fica na floresta! Prefira a companhia


dos animais! Por que não queres ser como eu – um urso entre os ursos,
um pássaro entre os pássaros?
E o que faz o santo-velho na floresta? Perguntou Zaratustra.

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

O santo respondeu: “Eu faço canções e as canto, e quando eu as faço


rio, choro e murmuro. Assim louvo a Deus. Com canções, lágrimas,
risos e murmúrios louvo ao Deus, que é meu Deus. Mas que presente
nos trazes?
Ao ouvir estas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse-lhe:
Que teria eu para vos dar? O que tens a fazer é deixar-me caminhar,
correndo, para não vos tirar coisa nenhuma. Separaram-se um do
outro, o velho e o homem, rindo como dois garotos. Zaratustra,
porém, quando estava só, falou assim ao seu coração: “será possível
que este santo ancião ainda não tenha ouvido em sua vida que Deus
morreu?. (Nietzsche, 1999, pp. 13-14)

O anúncio da morte de Deus precede outro anúncio


que, juntos, compõem, a meu ver, uma das mais intensas
e enigmáticas passagens dos textos de Nietzsche. Após ter
deixado a floresta, Zaratustra chega à cidade mais próxima
onde se encontrava uma aglomeração de pessoas, na praça do
mercado, que esperavam por um espetáculo: a apresentação
de um malabarista na corda bamba. Zaratustra se dirige a eles
e diz: “Eu vos anuncio o Super-homem. O homem é algo que
deve ser superado” (Nietzsche, 1999, pp. 14). Um parágrafo
adiante Zaratustra diz: “Eu vos apresento o Super-homem! O
Super-homem é o sentido da terra!” Ao dar continuidade ao
seu anúncio do Super-homem e ao abordar as possibilidades
de superação do homem, Zaratustra é ridicularizado pelas
pessoas que esperam pelo espetáculo e inicia, então, seu último
anúncio, dizendo:

O homem é uma corda ligada entre o animal e o Super-homem: uma


corda sobre um abismo.
Uma travessia perigosa, um estar a caminho perigoso; um olhar para
trás perigoso, um estremecer e um parar perigoso.
O que é grandioso no homem é ele ser uma ponte e não um fim; o
que se pode amar no homem é ele ser uma passagem, um declínio.
(Nietzsche, 1999, pp. 16-17)

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Antonio Floretino Neto

Após este último anúncio temos a passagem mais trágica


e emblemática do prólogo. As pessoas reunidas na praça zom-
bam de Zaratustra e gritam, se referindo à sua última alegoria.
O malabarista da corda bamba, estendida entre duas torres
altas, se apressa em apresentar o seu entretenimento, mas se
desequilibra e cai. Nesse momento todos fogem e Zaratustra
o toma nos braços, fala com ele no momento da agonia, e
ele morre.
Essa passagem do Nietzsche nos remete uma história zen-
budista semelhante: um jovem procura por um mestre da arte
das espadas e diz que gostaria de ser seu aluno. Depois de muita
insistência o futuro aluno e discípulo é conduzido ao topo de
uma montanha, onde o caminho é interrompido por um abismo,
restando como única possibilidade de passagem pelo precipício
um tronco de madeira. O mestre condiciona seus ensinamentos
à travessia do abismo. O jovem hesita, treme, até que aparece
um velho cego, e tateando com um pedaço de pau ele atravessa
o abismo, serenamente, o que encoraja decisivamente o futuro
aluno, que também atravessa o abismo. Certamente, se o mala-
barista do Zaratustra fosse o velho cego da história zen ele teria
sido aplaudido no final.
O anúncio da morte de Deus é interpretado em sua
forma corrente como consequência da modernidade ocidental,
como resultado de uma atividade culturalmente situada na
Europa de Nietzsche na qual reinavam os valores morais do
Cristianismo e as referências metafísicas do idealismo alemão.
Valores e referências que não encontravam mais nenhuma
correspondência com a terra. Neste sentido, a privação do
convívio com os homens por dez anos, a reclusão total e uma
relação permanente consigo mesmo e com a natureza significa o

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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

distanciamento de todas as categorias teológicas, morais e com


qualquer tipo de dualismo maniqueísta do mundo moderno.
Mas não é completamente insustentável interpretar o anúncio
da morte de Deus como o primeiro momento, o primeiro passo
dado após o despertar, de uma consciência que vivera até então
em função de determinações exteriores e percebera finalmente
o verdadeiro si-mesmo.
Zaratustra não só anuncia a morte de Deus. Pelo contrá-
rio, tal anúncio é só o início da descida da montanha em direção
aos homens, aos quais serão destinados os outros anúncios. Ele
não anuncia uma misantropia extrema que despreza os homens,
em detrimento do amor à natureza ou a Deus. Zaratustra não
se torna um eremita que opta pela contemplação pura. O des-
frutar de sua solidão e o convívio com seres que não habitam
o universo da dualidade é somente uma pré-condição para a
verdadeira percepção das coisas como são elas e o momento que
antecede o anúncio da necessidade da superação do homem:
do Super-homem.
O anúncio da morte de Deus no Zaratustra estimula
uma interessante comparação com a indicação do iconoclasta
mestre chinês Lin-chi que diz: “Se você encontrar o Buda,
mate-o; se você encontrar o patriarca, mate-o”. Hisamatsu, ao
analisar estas afirmações de Lin-chi, compara-as ao Zaratustra
de Nietzsche. As palavras de Nietzsche “Deus morreu” não são
somente familiares ao homem moderno, elas devem também
ser designadas como o verdadeiro grito do homem moderno.
“Eu ouço estas palavras com simpatia. O dizer ‘Eu sou o ser
sem Deus’” (Hisamatsu, 1990a, p. 50).
Hisamatsu toma como partida para analisar questões
básicas do Zen-budismo a sua própria condição de ateu;

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Antonio Floretino Neto

define o que significa seu ateísmo e, ao mesmo tempo, analisa


diversas perspectivas e concepções distintas do próprio ateísmo,
contrapondo-as às perspectivas teístas, tais como o Cristianismo
e algumas vertentes do Budismo. Pode-se dizer que o ponto
fundamental que norteia as reflexões de Hisamatsu é a opo-
sição entre a autonomia e a heteronomia, entre a verdadeira
consciência de si-mesmo e qualquer determinação externa a
ele mesmo.

Ele é “um homem da liberdade maior” ou “do despertar maior que leva
ao homem completo”. O homem que como Lin-chi diz “mate o Buda
quando o encontrar, e mate o patriarca, quando o encontra”, em tal
libertação do vínculo com Buda e com os patriarcas, ele desperta para
seu verdadeiro si-mesmo, ele já não seria sequer preso ao seu próprio
despertar. (Hisamatsu, 1990b, p. 234)

Para Hisamatsu, Deus e Buda não podem ser outra


coisa para o homem senão um Deus e um Buda heterônimo.
A heteronomia pode se tornar, por meio da crença, as próprias
determinações do sujeito, mas ainda assim elas permanecerão
como sendo dadas exteriormente. Até mesmo uma provável
aceitação externa como consequência da liberdade humana
seria uma determinação externa. Ou seja, para Hisamatsu a
afirmação da possibilidade de seguir livremente Deus, Buda ou
qualquer outra exterioridade seria uma forma de negação da
autonomia. Neste sentido, pode-se compreender o significado
da postura radical de Lin-chi, ao afirmar: “Se você encontrar
o Buda mate-o; se você encontrar o mestre, mate-o” repetida
por Hisamatsu, e a afirmação de Zaratustra de que “Deus esta-
ria morto”, como negação de qualquer exterioridade e assim,
qualquer heteronomia que se apresente como sendo verdadeira,
além do si-mesmo, deve ser abandonada.
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Algumas questões sobre as interpretações ocidentais do pensamento oriental

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