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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE DE RIBEIRÃO PRETO

Escola Clássica Francesa:


economia e estado

Fabio Barbieri

Ribeirão Preto

2019
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Barbieri, Fabio

Escola clássica francesa: teoria e estado. Ribeirão Preto,


2019.

415 p. : il. ; 30 cm

Tese de Livre Docência, apresentada à Faculdade de


Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto/USP.
Área de concentração: Teoria Econômica.

1. Escola clássica francesa. 2. Utilidade. 3. Economia da


política.

2
Em primeiro lugar, estou convencido de que a teoria dos salários que adotei em 1871,
sob a impressão de que era até certo ponto nova, não é realmente nova, salvo para
aqueles cuja visão é limitada pelo labirinto da Economia ricardiana. A teoria
verdadeira pode ser mais ou menos claramente esboçada mediante os escritos de uma
série de grandes economistas franceses, de Condillac, Baudeau e Le Trosne, através de
J.-B. Say, Destutt de Tracy, Storch e outros até Bastiat e Courcelle-Seneuil. A
conclusão a que estou chegando, cada vez mais claramente, é a de que a única
esperança de atingir um verdadeiro sistema de Economia é deixar de lado, de uma vez
por todas, as suposições confusas e absurdas da escola ricardiana. Nossos economistas
ingleses têm vivido numa felicidade ilusória. A verdade está com a escola francesa;
quanto antes reconhecermos o fato, melhor será para todo o mundo ...

W. S. Jevons, prefácio de A Teoria da Economia Política

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Resumo:

Este trabalho investiga o desenvolvimento no século dezenove da teoria econômica clássica em


sua negligenciada vertente francesa, privilegiando o estudo da teoria do valor e da análise
econômica do estado. Adotando como referencial o contraste entre as perspectivas plutológica e
catalática, argumentamos que embora os economistas franceses se situem na primeira tradição,
existem elementos que os aproximam da segunda, como a ênfase no estudo das relações entre
meios e fins e o desenvolvimento da teoria do valor utilidade. Partindo de uma perspectiva
gradualista sobre a evolução científica, este trabalho traça a evolução da escola a partir da obra
de seus principais precursores, Cantillon, Quesnay e Turgot. Depois de argumentar como
Garnier e Say sistematizam a economia de Smith e como Destutt de Tracy utiliza a filosofia de
Condillac para fundamentar a teoria em termos da lógica da ação, mostramos como esse
referencial fornece a base para Storch e Rossi desenvolverem a teoria subjetiva do valor e
Comte, Dunoyer e Blanqui criarem uma interpretação econômica da história, baseada no
conflito entre produtores e exploradores. Bastiat, por sua vez, reúne essa interpretação da
história com a praxiologia de Tracy para comparar os sistemas econômicos liberal, protecionista
e socialista, a partir de uma perspectiva teórica que enfatiza o estudo das inter-relações entre
setores. Na geração seguinte, Courcelle-Seneuil refina essa comparação institucional em termos
do apelo aos princípios de autoridade e liberdade, aplicando-a ao estudo da liberdade bancária.
Molinari, em seguida, usa a teoria de competição e monopólio para estudar modos de provisão
de serviços públicos e Leroy-Beaulieu efetua uma das primeiras análises sistemáticas do estado
sob a ótica da lógica da ação coletiva.

Palavras-chave: escola clássica francesa, utilidade, economia da política

4
Abstract:
This work investigates the development of classical economic theory in its neglected French branch,
emphasizing the theory of value and the economics of politics. From the contrast between plutological
and catallactic perspectives, we argue that although the French classical economists were plutologists,
there are elements that bring them closer to the catalectic tradition, especially in their emphasis on the
study of the relations between means and ends and the development of the theory of value based on
utility. Starting from a gradualist perspective on the evolution of economics, this work traces the
evolution of the school, beginning with the work of its main precursors; namely, Cantillon, Quesnay and
Turgot. In the first generation of the school, we argue that Garnier and Say systematized Smith's thought
and how Destutt de Tracy used the philosophy of Condillac to substantiate the theory in terms of the logic
of action. In the second generation, we show how this framework provided the basis for the development
of the subjectivist theory of value in the works of Storch and Rossi and the creation of an economic
interpretation of history, based on the conflict between producers and exploiters, in the works of Comte,
Dunoyer, and Blanqui. Bastiat then fuses this interpretation of history with Tracy's praxeology to compare
different economic systems (socialism, protectionism and liberalism) from a theoretical perspective that
emphasizes the study of the interdependency between sectors. In the last generation, Courcelle-Seneuil
reframes this institutional comparison as a choice between the principles of freedom and authority,
applying it to the study of free banking; Molinari uses the theories of competition and monopoly to study
different modes of provision of public services and Leroy-Beaulieu undertake one of the early systematic
analysis of the state from the point of view of the logic of collective action.

Key-words: French classical school, utility, economics of politics

Résumé:
Ce ouvrage examine le développement de la version française de la théorie économique classique, en se concentrant
sur la théorie de la valeur et l'économie de la politique. Nous prenons comme point de départ le contraste entre les
perspectives plutologique et catalatique, en affirmant que, bien que les économistes classiques français soient des
plutologues, certains éléments les rapprochent de la tradition catalactique, notamment en mettant l’accent sur l’étude
des relations entre fins et moyens et le développement de la théorie de la valeur basée sur l'utilité. Partant d’une
perspective gradualiste de l’évolution de la science économique, cette thèse retrace l’évolution de l’école à partir du
travail de ses principaux précurseurs; à savoir Cantillon, Quesnay et Turgot. Après avoir expliqué comment Garnier
et Say avaient systématisé la pensée de Smith et comment Destutt de Tracy avait utilisé la philosophie de Condillac
pour fonder la théorie en termes de la logique d'action, nous montrons comment cette théorie a fourni la base à Storch
et Rossi pour développer la théorie subjective de la valeur et Comte, Dunoyer et Blanqui développer une
interprétation économique de l'histoire, basée sur le conflit entre producteurs et explorateurs. Bastiat fusionne ensuite
cette interprétation de l'histoire avec la praxéologie de Tracy pour comparer différents systèmes économiques
(socialisme, protectionnisme et libéralisme) d'un point de vue théorique qui met l'accent sur l'étude de
l'interdépendance de tous les secteurs de l'économie. Dans la dernière génération, Courcelle-Seneuil reformule cette
comparaison institutionnelle comme un choix entre les principes de liberté et d’autorité et l’applique à l’étude de la
banque libre; Molinari utilise les théories de la concurrence et du monopole pour étudier les moyens de fournir des
services publics et Leroy-Beaulieu s’engage dans l’une des premières analyses systématiques de l’État sous l’angle de
la logique de l’action collective.

Mots-clés: école classique française, utilité, économie de la politique

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Conteúdo

1. Introdução ............................................................................................................................. 9
1.1. Apresentação da escola clássica francesa ..................................................................... 9
1.2. Uma interpretação sobre a evolução da escola .......................................................... 21
1.3. Questões de método ................................................................................................... 25
1.4. Roteiro dos capítulos................................................................................................... 32
2. Metodologia da Economia nos Clássicos Franceses ........................................................... 35
2.1. J.-B. Say: empirismo e realismo................................................................................... 37
2.2. Destutt de Tracy: a praxiologia empirista ................................................................... 49
2.3. Storch e Rossi: a consolidação da metodologia clássica ............................................. 58
2.4. Wolowski e Leroy-Beaulieu: teoria, história e formalismo matemático .................... 67
3. Precursores.......................................................................................................................... 79
3.1. Cantillon: o alicerce da teoria econômica ................................................................... 81
3.2. Quesnay e Turgot: a consolidação da plutologia ........................................................ 87
3.3. Condillac: pioneiro da cataláxia .................................................................................. 99
4. A Primeira Geração da Escola Clássica Francesa: o industrialismo ................................... 109
4.1. O ambiente intelectual: a ideologia .......................................................................... 111
4.2. Os Condes Roederer e Garnier: entre a fisiocracia e o classicismo .......................... 119
4.3. Jean-Baptiste Say: o patrono da escola clássica francesa ......................................... 132
4.3.1. Olbie .............................................................................................................. 135
4.3.2. Os Textos Econômicos de Say ....................................................................... 139
4.3.2.1. A Teoria Econômica Geral em Say: o industrialismo ................................. 141
4.3.2.2. Economia e Estado em Say: governantes auto-interessados.................... 159
4.4. Destutt de Tracy: herdeiro de Condillac ................................................................... 168
4.4.1. Comentários a Montesquieu ......................................................................... 169
4.4.2. Tratado de Economia Política ....................................................................... 173
4.4.2.1. A teoria econômica geral em Destutt de Tracy ......................................... 173
4.4.2.2. Economia e Estado em Destutt de Tracy .................................................. 180
5. Segunda Geração: estado e exploração ............................................................................ 187
5.1. A Economia de Say e a formação de uma tradição de pesquisa ............................... 187
5.2. Storch: utilidade e bens imateriais............................................................................ 194
5.2.1. A Teoria Econômica Geral em Storch: utilidade e valor subjetivo ................ 195
5.2.2. Economia e Estado em Storch: bens imateriais e a teoria da civilização ...... 201

6
5.3. Rossi: valor e preço sob monopólio .......................................................................... 208
5.4. Comte e Dunoyer: a teoria da exploração ................................................................ 217
5.5. Blanqui: economia aplicada e história do pensamento econômico ......................... 237
5.6. Bastiat: meios, fins e as conexões entre setores ...................................................... 243
5.6.1. A Teoria Econômica Geral em Bastiat: harmonias econômicas .................... 247
5.6.2. Economia e Estado em Bastiat: a espoliação legal ....................................... 270
6. Terceira geração: liberalismo, intervencionismo e socialismo ......................................... 289
6.1. Chevalier e a comunidade acadêmica: patentes ...................................................... 290
6.2. Courcelle-Seneuil: descentralização e competição bancária .................................... 300
6.2.1. Teoria Econômica Geral em Courcelle-Seneuil: plutologia e utilitarismo..... 303
6.2.2. Economia e Estado em Courcelle-Seneuil: instituições e centralização ....... 319
6.3. Molinari: concorrência governamental..................................................................... 335
6.3.1. Teoria Econômica Geral em Molinari: as leis naturais da economia ............ 340
6.3.2. Economia e Estado em Molinari: competição de serviços públicos ............. 353
6.4. Leroy-Beaulieu: o estado moderno ........................................................................... 364
6.4.1. Teoria Econômica em Leroy-Beaulieu: a inovação empresarial ................... 367
6.4.2. Economia e Estado em Leroy-Beaulieu: o cálculo econômico no socialismo e a
análise positiva do estado ................................................................................................. 378
7. Conclusão: o fim de uma tradição..................................................................................... 391
7.1. A dissolução da escola............................................................................................... 391
7.2. Recapitulação das teses principais ............................................................................ 394
8. Referências ........................................................................................................................ 401

7
1. Introdução
O presente trabalho trata das teorias econômicas desenvolvidas por um conjunto pouco
estudado de autores que viveram no século dezenove. Esses economistas podem ser
classificados como membros de uma vertente francesa da escola clássica. Partidários de
Adam Smith, se contrapunham, no entanto, ao ricardianismo e sua abordagem agregada,
voltando a atenção ao estudo do funcionamento dos mercados e instituições.
A figura central dessa tradição de pesquisa foi Jean-Baptiste Say, cuja obra influenciou
os demais membros da escola. Além de desenvolver uma teoria econômica calcada nas
escolhas, privilegiando aspectos como inovação empresarial e adaptação à mudança, os
clássicos franceses elaboraram uma vertente de economia institucional que compara os
incentivos para as atividades produtiva e exploradora sob diferentes sistemas
econômicos, ampliando dessa forma a aplicação da análise econômica ao estudo da
lógica da ação na esfera estatal.
Neste capítulo introdutório, apresentaremos a escola clássica francesa, discutindo
porque é pouco estudada. Em seguida, forneceremos uma análise geral do seu potencial
e limitações, que será utilizada ao longo do trabalho para avaliar sua evolução. Por fim,
apresentamos um roteiro dos capítulos subsequentes.

1.1. Apresentação da escola clássica francesa


Quando se pensa na escola clássica de Economia, vem imediatamente à mente as teorias
do valor trabalho, da população e da renda da terra, combinadas em modelo de produção
e distribuição de riqueza material que enfatiza os limites ao crescimento do produto
total.
A Economia clássica, porém, nem na Inglaterra foi uma tradição homogênea centrada
nas doutrinas de David Ricardo. Classificações por escolas têm sua utilidade, mas são
limitadas se contemplarmos o elemento convencional implicado pela adoção de
fronteiras rígidas. Tanto o anglocentrismo, comum na teoria econômica, quando o
interesse pelo desenvolvimento da teoria do valor trabalho e ainda a popularidade de
uma concepção sobre o progresso da ciência que atribui avanços científicos ao gênio
criativo de poucos indivíduos, colaboram para a representação da evolução da tradição
clássica como se fosse composta em sua essência pelos trabalhos dos autores da
sequência composta por Smith –Malthus – Ricardo – Mill – Marx.
Nessa concepção pré-evolucionária da ciência, o progresso não ocorreria pela
contribuição gradual de muitos pesquisadores, que copiam e modificam contribuições
prévias, mas pelas invenções revolucionárias de poucos. Mas, se abandonando o mito de
Adão como criador da teoria econômica, a tradição clássica tem origem mais remota e
desenvolvimento que transcende fronteiras. Autores de diversos países, como Petty,
Galiani e Cantillon contribuem para a formação da primeira tradição teórica na França,
a fisiocracia, que em conjunto com os demais autores do iluminismo escocês inspiram
as idéias de Smith, que por sua vez retornam à França via Garnier e Say. Estes últimos
organizam e sistematizam a obra de Smith. Say, por sua vez, influência Ricardo e Mill,
que também modificam a forma de pensar dos autores franceses, em interações
sucessivas.
A coevolução das tradições de pesquisa desenvolvidas nos dois lados do canal resulta
em muitos elementos comuns, a ponto de classificarmos ambas como uma mesma
tradição clássica. A presença de características próprias, porém, justifica o tratamento de
ambas como vertentes distintas. A história do pensamento econômico centrada no
desenvolvimento da teoria do valor trabalho, porém, resultou na negligência da vertente
francesa, objeto de poucos estudos. Esse desconhecimento relativo justifica iniciarmos
com uma breve introdução dessa escola, seus autores e idéias.
Este trabalho enfatizará dois aspectos centrais da teoria econômica desenvolvida pelos
franceses. Em termos dos fundamentos da análise, os franceses enfatizarão a relação
entre os meios e os fins da atividade econômica. Além disso, os economistas dessa
tradição aplicarão esses fundamentos ao estudo do funcionamento do estado. Vejamos
cada um desses aspectos na sequência.
Em Cantillon, Turgot e Quesnay encontramos o teorizar agregado característico da
abordagem clássica como um todo, que utiliza a teoria do valor primariamente para
gerar uma medida de riqueza. Mas, além disso, encontramos nos dois primeiros autores
a presença mais acentuada de elementos que farão parte da vertente francesa. Em suas
obras, assim como na economia francesa subsequente, aspectos do problema alocativo
assumem importância maior. Como na concepção desses autores a produção requer
tempo, os agentes têm que tomar decisões sob incerteza, ajustando continuamente suas
decisões ao contínuo fluxo de mudanças no ambiente.
Um elemento importante da vertente francesa será então o estudo da atividade
empresarial. Ao contrário da ênfase inglesa nos juros do capital em equilíbrio, os
franceses enfatizavam os lucros empresariais, resultantes de antecipação das condições
futuras do mercado e que emergem no processo competitivo caracterizado pela
rivalidade empresarial. Tratando de conhecimento imperfeito, atividade empresarial,
aprendizado e adaptação, a abordagem francesa se baseou mais firmemente no estudo
da ação dos indivíduos.
Quanto à teoria do valor, essa ênfase no estudo dos elementos da ação sugere outra
aproximação com a teoria moderna. Os franceses rejeitaram a teoria do valor dada pelos
custos em favor da teoria baseada na utilidade. Embora Say não desenvolva o elemento
marginal, sua descrição da demanda se aproxima da moderna teoria da escolha do
consumidor. Storch e Rossi, por sua vez, avançaram na interpretação subjetiva do valor,
explorando a relação entre utilidade e escassez. Este último aplica ainda essa ferramenta
ao estudo da determinação de preços sob monopólio. Bastiat, por seu turno, privilegia a
relação entre meios e fins, explora as inter-relações entre mercados e enfatiza a
importância de custos prospectivos, não passados. Courcelle-Seneuil discute
mecanismos de incentivos sob informação assimétrica. Molinari lida com o problema
do carona na provisão privada de bens públicos. Leroy-Beaulieu, por fim, gera uma das

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primeiras versões do argumento sobre a impossibilidade do cálculo econômico no
socialismo. Essas considerações indicam que a Economia dos clássicos franceses
enfatiza uma perspectiva “microeconômica”, em contraste com o caráter agregado da
vertente inglesa.
Aproveitando a menção aos nomes dos autores no parágrafo anterior, dos quais apenas
Say e Bastiat são reconhecidos pela maioria dos economistas, representamos abaixo
uma linha do tempo contendo os nomes dos principais autores da escola francesa, o
período em que viveram e, para situá-los historicamente, os governos da França no
período.

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Nota-se pelo diagrama que os escritores da primeira geração de economistas da escola
viveram seus anos de formação ainda no século dezoito, caracterizado tanto pela
filosofia iluminista quanto pelos eventos associados à Revolução Francesa. Say, a figura
central dessa tradição, publica seu tratado originalmente em 1803 e Leroy-Beaulieu, um
dos seus últimos representantes, escreve até sua morte, em 1916. Nosso trabalho tratará,
portanto, de mais de um século de desenvolvimento da teoria.
O exame da lista de autores também revela que a escola francesa não se limita a autores
dessa nacionalidade. Paris, como polo atrator da intelectualidade do período, reuniu
comunidade de economistas originários da Bélgica, Itália, Suíça, Polônia e até da
Rússia, cuja elite de fato falava francês, além evidentemente de economistas franceses.
Tanto o ambiente filosófico quanto político do país do final do século dezoito são
determinantes para nosso esboço inicial dos clássicos franceses do século seguinte.
Tomando inicialmente o aspecto filosófico, os economistas franceses foram
influenciados pelo empirismo inglês, que explica o conhecimento humano a partir da
experiência. Dentre os filósofos franceses que abraçam a perspectiva de Locke,
Condillac desempenha papel de destaque. Sua versão do empirismo, conhecido como
sensacionalismo, buscava reduzir todo fenômeno mental às impressões sensoriais.
Partindo da filosofia de Condillac, Destutt de Tracy procura fundamentar a teoria
econômica a partir da forma como os agentes percebem o mundo externo e o modifica.
Os fenômenos econômicos são descritos como percepção de necessidades e ações
tomadas com o propósito de satisfazê-las. A filosofia utilitarista de Helvétius, partindo
da mesma base empirista, explica as ações como envolvendo comparações de
alternativas, avaliadas em última análise em termos de sensações agradáveis ou não.
Partindo da lógica da escolha, os economistas franceses não se limitaram ao fenômeno
da produção, entendendo a análise para dar conta da relação entre produção e satisfação
de necessidades, algo que os aproxima, em certo sentido, da valorização do problema
alocativo. Dentre os economistas franceses, Bastiat será aquele cuja teoria mais de perto
segue essa perspectiva, colocando o consumidor, ou seja, os fins da atividade produtiva,
no centro da análise.
Isso conclui nosso esboço do primeiro aspecto da escola que enfatizaremos neste
trabalho: a fundamentação da análise econômica na lógica da escolha dos indivíduos.
Passemos agora ao segundo elemento, a aplicação dessa análise econômica ao estado.
Além das influências filosóficas, os economistas franceses foram influenciados pelo
ambiente político turbulento de seu país. Os precursores da escola clássica francesa
escreveram no século dezoito sob despotismo, censura rígida e economia marcada pelos
privilégios monopolistas que caracterizam o mercantilismo. Já os primeiros autores da
escola clássica, escrevendo após a revolução francesa, se deparavam tanto com o
problema da escolha de instituições formais que substituiriam aquelas existentes no
antigo regime, quanto as questões relativas à volta de governos centralizadores a partir
de Napoleão e, mais tarde, com o advento do pensamento socialista.

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Sendo assim, não surpreende que os clássicos franceses privilegiassem o estudo do
funcionamento do estado e da discussão de sistemas econômicos comparados. Sob o
impacto do fato de que mudanças de pessoas e instituições formais não bastaram para a
extinção ou diminuição de práticas que condenavam na política, os autores da vertente
francesa da economia clássica investigaram mais de perto a lógica de funcionamento da
ação coletiva.
Desde Gournay e Turgot no século dezoito até Molinari e Leroy-Beaulieu no final do
dezenove, os economistas franceses não trataram o estado como se fosse uma entidade
abstrata, veículo potencial para implementação de soluções tecnicamente eficientes para
os problemas sociais, mas como um conjunto de instituições cuja lógica de operação
gera incentivos para que os agentes se comportem de determinadas maneiras e portanto
sujeito à regularidades empíricas e consequências não intencionais. Esses economistas
estudaram temas como burocracia, regulação, expansão de gastos, déficit público
crônico e os efeitos da centralização política. Em particular, utilizando a hipótese de
auto-interesse na esfera política, esses economistas examinaram os efeitos da ação de
grupos de interesse no estabelecimento de privilégios legais, algo que a moderna escola
da escolha pública denomina atividade de rent-seeking, além de outros fenômenos hoje
descritos como pertencentes à economia da política.
Ainda influenciados pela grande importância que a discussão política desempenha na
França, os economistas desse país escreveram bastante sobre sistemas econômicos
comparados, contrapondo livre-mercado com intervencionismo e socialismo. Charles
Comte, Dunoyer e Bastiat desenvolvem uma teoria da exploração que foi utilizada para
interpretar a evolução da história em termos do conflito entre as atividades de produção
e espoliação de riqueza. Durante a evolução dessa teoria, a origem da espoliação é
associada à própria lógica da ação política ou coletiva, em contraste com a teoria da
exploração marxista, baseada em categorias econômica. Courcelle-Seneuil generaliza a
análise francesa de sistemas comparados em termos do grau de centralização
instituições e seus impactos sobre as atividades econômicas.
Os economistas que estudaremos se caracterizam pela prática de escrever extensos
tratados, que sistematizam o corpo da doutrina econômica. Sendo assim, naturalmente
trataram de diversos temas. Nesta tese, como afirmamos, concentraremos nossa análise
na evolução da perspectiva teórica mais ampla, que invariavelmente inclui a discussão
da teoria do valor e das teses sobre a economia da política, que versam sobre sistemas
comparados. Quando tratarmos de Say, o fundador da escola francesa, nos ocuparemos
de seu sistema teórico como um todo. Mas, ao passarmos para os autores seguintes, que
tomam como ponto de partida a obra de Say, concentraremos nossa atenção apenas em
aspectos particulares das teorias desses autores, em especial no que se refere aos dois
aspectos que salientamos.
Os economistas cuja obra estudaremos, apesar de trabalharem na formação da tradição
clássica e não na criação de uma perspectiva teórica radicalmente diferente,
desenvolveram diversos temas relativamente negligenciados na época e que foram
retomadas mais tarde por diversas tradições modernas de pesquisa. A despeito do

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conjunto de contribuições pioneiras no desenvolvimento da teoria econômica como um
todo, a escola clássica francesa tem merecido pouca atenção por parte dos estudiosos da
história do pensamento econômico. Poucos trabalhos desta última disciplina são
dedicados ao tema e, dentre esses, boa parte é bastante hostil em suas avaliações,
restando raras obras que levam à sério os autores pertencentes a essa tradição.
Os motivos dessa falta de interesse não são difíceis de identificar. Os trabalhos dos
franceses do século dezenove estavam fora de sintonia com os historiadores do século
vinte tanto em termos políticos quanto metodológicos. O anti-estatismo dos franceses
contrasta com a subsequente valorização do crescimento do estado e o modo verbal de
expressão contrasta com a moderna valorização do formalismo matemático.
A partir do último quarto do século vinte, porém, a parte oculta, menos valorizada, do
acervo teórico desenvolvido pela escola clássica passa a ser gradualmente recuperada.
Características das instituições, como garantias de direitos de propriedade,
descentralização, estabilidade de regras e incentivos voltam a ser associadas à
prosperidade e estudadas por diversas tradições modernas, como o neoinstitucionalismo
e a economia da informação. A escola da escolha pública, por seu turno, recupera o
estudo da lógica da ação coletiva, aplicando o pressuposto de auto-interesse ao estudo
do estado, que deixa de ser tratado como entidade abstrata não modelada. Os
neoaustríacos, por fim, recuperam temas como incerteza, competição como processo
que envolve rivalidade empresarial e aprendizado por tentativas e erros, bem como a
ênfase do aspecto temporal da produção.
A recuperação dos temas estudados pelos clássicos franceses por tradições de pesquisa
contemporâneas não implica que devemos abordar a história do desenvolvimento da
disciplina como um processo acumulativo de teorias que antecipam e se aproximam da
ciência moderna, prática conhecida como whig history. Os clássicos franceses, de fato,
foram alvo precisamente dessa prática: suas teorias foram criticadas ou desconsideradas
precisamente por não antecipar as características das teorias favorecidas pelos analistas
das idéias entre o fim do século dezenove e os três primeiros quartos do século vinte.
Acreditamos que esse é o caso no que diz respeito as observações de Marx, Keynes,
Schumpeter e outros autores sobre os clássicos franceses, observações essas que
contribuíram significativamente com a apreciação negativa atribuída durante esse
período aos trabalhos dessa escola. Vejamos uma amostra dessas observações na obra
mais conhecida de cada um desses autores.
Por representar uma vertente anti-ricardiana da escola clássica, os franceses atraíram a
antipatia de Marx, sendo classificados por este como “economistas vulgares”. Vejamos
inicialmente o que Marx (1909, p. 93) entende por esse conceito:
De uma vez por todas, posso afirmar aqui que, pela economia política clássica,
compreendo a economia que, desde a época de W. Petty, investigou as relações reais
de produção na sociedade burguesa, em contraposição à economia vulgar, que lida
apenas com aparências, rumina sem cessar nos materiais há muito providos pela
economia científica, e busca explicações plausíveis dos fenômenos mais
inoportunos, para o uso diário burguês, mas que de resto, limita-se a sistematizar de
maneira pedante, e proclamar verdades eternas, as ideias triviais mantidas pela

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burguesia auto-complacente em relação ao seu próprio mundo, a eles o melhor de
todos os mundos possíveis.1
Essa definição contrapõe uma concepção de Economia tida como correta, a ciência da
produção, com uma alternativa que simultaneamente trataria de fenômenos acidentais,
proclamaria erroneamente sua aplicabilidade universal, representaria os interesses de
uma classe e defenderia o estado de coisas prevalecente.
Sobre cada um desses elementos, podemos dizer que os franceses em linhas gerais
comungam com Marx a concepção de Economia como a ciência da produção; mas,
como enfatizam em suas teses a relação entre meios e fins da atividade econômica,
divergem desse autor em relação à teoria do valor e significado e importância do
sistema de preços. Acreditam, ao contrário de Marx, que todo sistema econômico é
sujeito as mesmas leis econômicas fundamentais. Não compartilham das noções de
classe do autor alemão, nem de sua classificação de sistemas econômicos. O sistema
prevalecente no período é classificado pelos franceses como mercantilismo ou
intervencionismo, se usarmos termo mais recente. Esse sistema, por fim, é criticado
pelos autores franceses e, portanto, não é visto como o melhor possível.
Em cada um dos pontos apontados acima ocorre uma divergência entre os referenciais
analíticos empregados pelos clássicos franceses e por Marx. Em vez de abordar
criticamente as doutrinas esposadas pelos economistas franceses, a atribuição de
vulgaridade por parte de Marx efetivamente se limita a insultos que dizem pouco sobre
as teses examinadas além de que elas seriam diferentes da concepção do próprio Marx.
Vejamos algumas ilustrações.
No primeiro volume do Capital, Marx (1909) caracteriza Say como mero vulgarizador
de Smith (p. 572), um autor insípido (p. 481) que se ocupa de trivialidades (p. 92).
Destutt de Tracy, caracterizado como “doutrinário burguês com sangue de peixe” (p.
711), também seria vulgar por suas observações sobre valor diferirem da concepção
ricardiana (p. 92). Molinari (p. 462, 655 e 844), tido como otimista defensor do livre-
comércio, tampouco escapa da atribuição de vulgaridade. As qualificações mais
desdenhosas, porém, são reservadas a Bastiat, “o mais superficial e portanto o
representante mais adequado da economia vulgar e apologética” (p. 20). Este último é
classificado ainda como “economista pigmeu” (p. 93).
Os impropérios, nos casos apontados, não são acompanhados de críticas que
efetivamente façam referências às idéias dos autores citados. A teoria da exploração
desenvolvida por Bastiat, por exemplo, é dispensada por Marx (1909, p. 93) através da
alegação de que o autor francês acreditaria que a espoliação na Antiguidade pudesse ser
feita sem que houvesse um sistema produtivo.

1
Once for all I may here state, that by classical political economy, I understand that economy which,
since the time of W. Petty, has investigated the real relations of production in bourgeois society, in
contradistinction to vulgar economy, which deals with appearances only, ruminates without ceasing on
the materials long since provided by scientific economy, and there seeks plausible explanations of the
most obtrusive phenomena, for bourgeois daily use, but for the rest, confines itself to systematizing in a
pedantic way, and proclaiming for everlasting truths, the trite ideas held by the self-complacent
bourgeoisie with regard to their own world, to them the best of all possible worlds.

15
Mas, além de não fazer referência efetivamente às teses de Bastiat propriamente ditas,
tal alegação não concebe que se possa falar de produção sem utilizar o conceito
marxista de modo de produção.
O mesmo ocorre com a teoria subjetiva do valor desenvolvida por Condillac, que é mal
representada e julgada apenas por não coincidir com a explicação adotada por Marx.
Condillac, como veremos no terceiro capítulo deste trabalho, afirma que o valor varia
com a escassez e com o indivíduo considerado. Essa explicação, que na verdade tornou
obsoleta a distinção entre valor de uso e valor de troca, não é vista por Marx (p. 177)
como uma teoria rival, mas como mera confusão entre valores de uso e troca. Como
Condillac utiliza uma ilustração na qual dois indivíduos trocam seus excedentes de
produção, considerados em termos da utilidade que teriam para si mesmos, Marx
conclui ainda que Condillac teria “infantilmente suposto” que cada produtor gere seu
próprio sustento. A leitura desse autor, no entanto, revela que esse suposto na verdade é
mero acidente da ilustração proposta e não característica da teoria exposta. Neste caso,
nenhuma objeção substancial é mencionada além do fato de que se trata de explanação
diferente da própria. As menções aos demais autores franceses tidos como vulgares
seguem esse mesmo padrão.
Duas características do tratamento dado por Marx aos autores franceses permanecem e,
boa parte da literatura subsequente sobre a história da disciplina. Examina-se um
conjunto de idéias econômicas apenas na medida em que seus autores se aproximam ou
desviam de uma determinada teoria posterior e avalia-se esse conjunto de idéias em
termos de supostos interesses econômicos que representariam.
Essas características se manifestam em outro rótulo depreciativo utilizado para
identificar a escola francesa, que é por vezes retratada como a escola otimista. Esse
retrato ocorre no livro de história do pensamento econômico de Guide e Rist (1909),
que contrapõe o otimismo francês com a escola pessimista inglesa de Malthus e
Ricardo. Para Guide e Rist, os franceses acreditariam na capacidade dos problemas
serem resolvidos por si mesmos, crença relacionada à fé metafísica na existência de
harmonias sociais.
A distinção entre escola otimista e pessimista a princípio faria sentido, já que para os
autores franceses a prosperidade depende mais do ambiente institucional do que de
considerações demográficas. As instituições poderiam, para eles, fomentar ou inibir as
inovações que contornam os limites ao crescimento impostos por questões
populacionais e pelos retornos marginais decrescentes dos fatores sob tecnologia
constante.
O que Guide e Rist (1909, p. 373) têm em mente, no entanto, é algo diferente, pois
associam otimismo com a fé na liberdade como solução para os males sociais.
Logicamente falando, o qualificativo sob essa definição não seria muito informativo,
pois esse mesmo otimismo implica em pessimismo sobre a eficácia das intervenções
estatais, ao passo que os defensores destas últimas são otimistas sobre estas e
pessimistas em relação à primeira. De todo modo, tomando novamente Bastiat como

16
alvo, a objeção na verdade diz respeito ao que consideram excessos de liberalismo,
otimismo, fé em causas finais e moralismo (p. 377).
Bastiat, um autor religioso, sem dúvida peca ao intercalar seus argumentos econômicos
sobre harmonia de interesses, condicional ao tipo de instituições adotadas, com
observações sobre harmonias concebidas em plano divino. Entretanto, a insinuação de
que sua argumentação econômica dependa de crenças religiosas é claramente refutada
pela leitura de seus textos. No plano científico, Bastiat utiliza teoria econômica para
argumentar que sob instituições que preservem direitos de propriedade, estimula-se
produção e comércio e, portanto, cooperação, ao passo que expansão de poder irrestrito
propicia atividade de espoliação, e o conflito domina. No plano religioso, a
possibilidade de existência da primeira alternativa, para o autor, corrobora suas crenças
sobre natureza não maligna da criação. Os argumentos utilizados no primeiro plano,
contudo, não utilizam premissas retiradas do segundo.
A alegação de que Bastiat seria um otimista ingênuo, por seu turno, tampouco sobrevive
à leitura, mesmo desatenta, de seu tratado econômico. Além de efetivamente enfatizar
no início dessa obra que harmonia ou desarmonia social são resultados condicionais,
dependente do tipo de instituições prevalecentes, podemos afirmar que Bastiat é o
economista que menos poderia ser qualificado como otimista na história da disciplina,
já que coloca a atividade de espoliação ao lado da atividade produtiva, como duas
manifestações do auto-interesse, derivadas da própria natureza humana e portanto
inerradicáveis. Para Bastiat, os economistas não deveriam tratar apenas da produção,
deixando a espoliação de fora do modelo econômico sobre a ação humana.
Não apenas Bastiat, como também os demais autores filiados à escola clássica francesa,
são de fato bastante céticos em relação à capacidade dos seres humanos resolverem
problemas através da política e organizações políticas centralizadas. Foram de fato
pioneiros da análise econômica do estado, que descarta a hipótese implícita de que
políticos e agentes públicos não são sujeitos ao mesmo auto-interesse que é aplicado ao
estudo dos mercados.
O rótulo de escola otimista só se sustentaria então se esse ceticismo for definido como
otimismo, tal como fazem Guide e Rist ou ainda se as economias reais forem
automaticamente identificadas com o sistema defendido pelos autores criticados, algo
que apenas faz sentido se adotarmos as concepções de Marx sobre sistemas econômicos,
notadamente o conceito de “capitalismo”, como as únicas possíveis. Mas, como
mencionamos acima, na concepção alternativa de Bastiat os males de seu tempo são
atribuídos ao sistema intervencionista, criticado em sua obra.
Além de economistas vulgares e apologéticos na visão marxista, os clássicos franceses
são associados a uma visão mecanicista e fundamentalmente errônea de economia na
visão keynesiana. Essa visão é descrita no prefácio à edição francesa da Teoria Geral de
Keynes (1996, p. 40):
Acredito que a economia em toda parte, até recentemente, tenha sido dominada,
muito mais do que compreendida, pelas doutrinas associadas ao nome de J.-B. Say.
É verdade que a “lei dos mercados” dele já foi abandonada há tempo pela maioria

17
dos economistas, mas eles não se livraram de seus postulados básicos,
particularmente de sua idéia errônea de que a demanda é criada pela oferta. Say
estava supondo implicitamente que o sistema econômico está sempre operando com
sua capacidade máxima, de forma que uma atividade nova apareceria sempre em
substituição e não em suplementação a alguma outra atividade. Quase toda a teoria
econômica subseqüente tem defendido, no sentido de que ela tem exigido, esse
mesmo pressuposto.
Desde o surgimento dos manuais de macroeconomia até hoje, os estudantes de
economia associam Say à crença de que “a oferta cria sua própria demanda”. Segundo
os manuais de macroeconomia, o que Say teria dito em seu tratado no capítulo sobre os
mercados foi criticado por Keynes, que mostrou que a introdução da moeda faz com que
vendas não impliquem em aquisições.
O texto de Keynes, contudo, não se ocupa em retratar o que Say teria de fato dito. Mas,
logo após o capítulo sobre os mercados, o autor francês trata da importância da rápida
circulação de mercadorias, identificando a possibilidade de entesouramento do dinheiro
e indicando a importância das expectativas para que ocorram desembolsos. Embora
efetivamente não desenvolva uma teoria sobre flutuações econômicas, Say associa nesse
capítulo expectativas com fatores institucionais e políticas prévias que fariam com que
os agentes retenham moeda e escondam seus ativos para protegê-los de expropriação.
De qualquer modo, a volumosa literatura sobre a “lei de Say” trata efetivamente de
questões pertencentes à temática keynesiana, raramente fazendo referência aos
problemas abordados por Say. Como subproduto da retórica keynesiana, a discussão das
idéias propriamente ditas de Say é deixada de lado. Como resultado, para um
economista moderno, o nome de Say se reduz à interpretação que os macroeconomistas
dão à lei dos mercados, algo que dificilmente desperta a curiosidade sobre as teorias
desenvolvidas por esse autor e seus seguidores.
Por fim, a escola clássica francesa é desdenhada no texto mais influente de história do
pensamento econômico. Schumpeter (2006), autor desse texto, examina a evolução da
disciplina em função da proximidade dos autores em relação à teoria do equilíbrio geral
formulada por Walras, visto como o coroamento dessa evolução. Nessa perspectiva,
apenas Say dentre os autores franceses que estudaremos seria merecedor de atenção.
O mesmo capítulo de Say criticado por Keynes é elogiado por Schumpeter (2006, p.
587). Por tratar da interdependência dos mercados e do sistema de preços como
mecanismo equilibrador, Say teria um papel importante na emergência do conceito de
equilíbrio geral. Por isso, Schumpeter (p. 467) rejeita o rótulo de popularizador de
Smith para situar Say na tradição francesa composta pela progressão Cantillon – Turgot
– Say – Walras.
Depois de observar que a escola clássica francesa seria hostilizada pelos críticos
modernos em função de seu anti-estatismo, Schumpeter (p.472) elogia os sucessores de
Say como bons economistas práticos, voltados à discussões de política econômica, mas
afirma que “eles careciam de interesse por questões puramente científicas e eram em
consequência quase totalmente estéreis em relação a conquistas analíticas”.

18
Destutt de Tracy, para Schumpeter (2006, p. 474), teria rigor analítico por sua formação
de filósofo, mas careceria de originalidade (p. 474). Sobre Dunoyer, dispensado como
autor apologético, Schumpeter (p. 473) afirma que seu “livro não adiciona nada ao
nosso conhecimento ou ao nosso controle dos fatos”. Chevalier, curiosamente o autor da
escola com menos inclinação à teoria, é o que recebe tratamento mais favorável (p.
473). Courcelle-Seneuil, apesar de bom economista, não seria na concepção de
Schumpeter um teórico, assim como Adolphe Blanqui e Joseph Garnier.
Pela quarta vez nesta nossa revisão, Bastiat é o mais duramente criticado. Se ele se
limitasse ao jornalismo, afirma Schumpeter, poderia passar para a história como o maior
jornalista econômico de todos os tempos. Mas, ao escrever um tratado teórico, revelaria
falta de capacidade de raciocínio e domínio do aparato teórico. O julgamento de
Schumpeter (p. 475) termina do seguinte modo: “Eu não mantenho que Bastiat fosse um
mau teórico. Eu afirmo que ele não era um teórico”.
O leitor não familiarizado com a obra de Bastiat, ou que conhece apenas seus artigos
satíricos mais conhecidos, poderia ceder ao peso da autoridade dos autores citados
acima. No entanto, na epígrafe deste trabalho, Jevons cita Bastiat, bem como vários dos
autores que estudaremos neste trabalho, como superiores aos clássicos ingleses e
defensores da abordagem correta. McLeod, como veremos na próxima seção, considera
Bastiat o maior gênio entre os economistas. Hayek, por sua vez, demonstra algum
interesse pelos textos de Bastiat, que antecipam características da sua própria
abordagem, como a ênfase nas limitações do conhecimento e nas consequências não
intencionais da ação humana.
O ponto que desejamos enfatizar com essas avaliações díspares é que, além de atração
ou repulsa ideológica, essas opiniões indicam quanto certos autores do passado de fato
antecipam ou não o referencial analítico preferido pelo analista. Mas, no caso de
Schumpeter, a rejeição a Bastiat é surpreendente, visto que entre os economistas
clássicos, ele é um dos autores que mais se aproximou do espírito da teoria do equilíbrio
geral, tanto por sua ênfase na relação entre meios e fins, em contraste com o foco
clássico nos meios, quanto pela sua ênfase na interdependência entre setores da
economia. A análise econômica de Bastiat, ancorada na importância central das
necessidades do consumidor e no reconhecimento da escassez dos recursos produtivos,
rastreia sistematicamente custos de oportunidades das ações no sistema econômico
como um todo, fornecendo um referencial que detecta falácias derivadas de
generalizações indevidas dos efeitos de políticas em um único mercado. Sendo assim, a
obra de Bastiat é afinada como o espírito da abordagem de equilíbrio geral.
Podemos conjecturar que a avaliação de Schumpeter privilegia o aparato técnico formal
dessa teoria em detrimento do seu conteúdo. A obra de Bastiat, por outro lado, apresenta
algumas falhas técnicas, como a distorção da teoria do valor de outros autores e a
negação, de forma insustentável, da existência de monopólios locacionais. Mesmo
assim, as acusações de que Bastiat não seria nem teórico nem original ainda são
surpreendentes, pois as contribuições à Economia que hoje associamos ao próprio
Schumpeter aparecem na obra de Bastiat mais do que em qualquer outro autor. O

19
capítulo das Harmonias Econômicas dedicado à competição nos mercados enfatiza o
caráter dinâmico da competição, que o leitor moderno associaria ao próprio
Schumpeter. Para Bastiat, a competição é caracterizada pela adaptação, mudança de
padrões de produção e inovações empresariais que perturbam um equilíbrio, seguidas
por imitações que, por concorrência de preços, reduz custos.
As avaliações de Marx, Guide, Rist, Keynes e Schumpeter ilustram o modo como as
contribuições dos economistas clássicos franceses foram avaliadas desfavoravelmente e
em larga medida ignoradas pelos historiadores subsequentes da disciplina. Ao mesmo
tempo, o contraste dessas avaliações negativas com o elogio de Jevons atestam como as
avaliações efetivamente dependem da afinidade entre as teorias dos autores analisados e
aquelas defendidas pelos analistas. A evolução recente da teoria, portanto, abre espaço
para mudanças nesse padrão de julgamento e a recuperação do trabalho dos clássicos
franceses.
Nesta seção afirmamos que os economistas da escola clássica francesa desenvolveram
temas interessantes, que posteriormente deixaram de ser considerados como tal, mas
que foram recuperados pela teoria recente. Existe, portanto, espaço para que as
contribuições desses autores sejam resgatadas pela história do pensamento econômico,
tarefa com a qual este trabalho pretende contribuir.
A falta inicial de interesse por esses problemas, entretanto, não pode ser corrigida por
estudos que apenas examinem em que medida as discussões antigas antecipam o que já
sabemos hoje. Se nesta seção inicial tivemos que defender os autores franceses de
críticas inapropriadas, aspiramos neste trabalho reconstruir o que esses autores
escreveram da forma menos distorcida possível. Apenas assim poderemos apreciar tanto
o valor dessas idéias quanto apresentar críticas pertinentes.
Mais adiante neste capítulo, na seção 1.3, buscaremos uma perspectiva metodológica
que evite dois erros de apreciação sobre a evolução das idéias. Em primeiro lugar, a
originalidade atribuída a alguns autores em particular com frequência é ilusão causada
pelo estudo desses autores considerados por si sós. O exame dos “autores menores”, ou
do processo competitivo no mercado das idéias, por outro lado, resulta em um quadro
muito mais gradual sobre a evolução do pensamento, com contribuições individuais
muito mais fragmentadas. Em segundo lugar, uma avaliação mais acurada da história
das idéias deve buscar examinar as situações problemas dos autores estudados, expondo
as teorias da época sem desconsiderar esses problemas, evitando apreciar a contribuição
de um autor apenas em relação a grau que antecipa alguma teoria preferida.
Antes de detalhar como pretendemos fugir desses dois erros, em uma seção dedicada a
metodologia adotada neste trabalho, apresentaremos em seguida uma interpretação da
evolução da escola clássica francesa.

20
1.2. Uma interpretação sobre a evolução da escola
O poder explanatório e também as limitações do sistema teórico desenvolvido pelos
clássicos franceses podem ser avaliados a partir do exame de uma tensão existente entre
elementos centrais desse sistema. Mostraremos neste trabalho como a obra de todos os
autores filiados a essa tradição é marcada por incompatibilidades entre dois modos de
definir o problema fundamental tratado pela teoria econômica; a saber, a perspectiva
plutológica, que define Economia como a ciência da produção e distribuição de riqueza
material e a perspectiva catalática, que a define como a ciência das trocas induzidas
pelas escolhas entre usos alternativos de recursos escassos.
A tensão entre elementos pertencentes a essas duas interpretações dos fenômenos
econômicos se manifesta com toda força na obra do mais influente economista da escola
francesa, Jean-Baptiste Say e se propaga nos trabalhos de seus seguidores.
A tensão aludida acima se manifesta, especificamente, no ponto nevrálgico da
disciplina, a teoria do valor. Por um lado, ao se contrapor à tese fisiocrata de que a
agricultura seria a fonte da geração de riqueza, Say adota uma perspectiva subjetivista
sobre o valor. Em sua obra, o valor não é explicado por alguma propriedade física dos
bens ou pela quantidade de trabalho empregado em sua produção, mas pela sua utilidade
para a satisfação de necessidades. O subjetivismo do autor avança ainda na rejeição da
classificação smithiana de trabalho produtivo como aquele aplicado aos bens materiais.
Say inclui assim os serviços imateriais na categoria de trabalho produtivo. Todo
trabalho útil seria produtivo.
Por outro lado, Say efetivamente trabalha no referencial clássico. Coisas úteis são
produzidas e sua teoria econômica gira em torno das discussões sobre o fenômeno da
produção. A teoria do valor desempenha apenas o papel preliminar de gerar uma forma
de expressar o montante de riqueza produzida. Alegando motivo metodológico – a
ciência requer medição – Say preserva o pressuposto aristotélico de que uma troca
sempre envolve valores iguais, um preço de mercado em princípio observável.
Sendo assim, uma consequência potencial da ótica subjetiva sobre o valor é
explicitamente negada. Say enfaticamente rejeita a abordagem de Condillac, que pouco
antes de Smith publica tratado defendendo a tese de que o valor não seria propriedade
dos objetos, mais conceito subjetivo, associado à importância que cada um dos
envolvidos nas trocas atribui à propriedade alheia. Esse filósofo fornece, como veremos,
não apena os fundamentos da teoria subjetiva do valor, ao basear sua teoria nos ganhos
mútuos em potencial derivados das trocas, na medida em que a valoração depende do
agente e da disponibilidade dos objetos de troca, como também uma base filosófica para
modelar o comportamento econômico dos indivíduos. Destutt de Tracy, contemporâneo
de Say, utiliza a filosofia sensacionalista de Condillac para fundamentar a lógica da
escolha dos agentes. Say, Tracy e os demais economistas subsequentes, porém, rejeitam
a base catalática dessa teoria existente na teoria econômica de Condillac.
A tensão entre essas duas perspectivas rivais se manifesta do seguinte modo:
contribuições teóricas dos franceses que destacamos no início da seção anterior, como

21
as noções de atividade empresarial, inovação, os determinantes das escolhas dos
consumidores, expectativas, rejeição de noção retrospectiva sobre preços, relação entre
valoração subjetiva e escassez ou ainda relação entre demanda e preço em monopólio
são desenvolvidas pelos autores da escola francesa, mas esses avanços são em seguida
descartados, pois explorar seu potencial envolve a substituição da plutologia pela
catalática. Esses conceitos gerariam a conclusão de que as trocas geram valor, algo
negado por Say.
Novamente a tensão se manifesta de forma mais patente na teoria do valor. Bastiat
claramente rejeita a teoria objetiva do valor pelos seus defeitos, mas a adesão ao
pressuposto de igualdade de valor nas trocas o impede de vislumbrar uma alternativa
adequada. Sua teoria do valor serviço vacila então entre fundamentos subjetivos e
objetivos. Como ocorre com os demais autores da mesma corrente, a causa do valor é
atribuída originalmente à utilidade, mas no longo prazo os preços tendem, sob o efeito
da competição, aos custos, interpretados como esforços e não como apreciação da
utilidade das alternativas. Mesmo o último autor cuja obra examinaremos, Leroy-
Beaulieu, incorpora em seus textos a teoria subjetiva do valor, mas essa é restrita ao seu
uso antigo, como algo subsidiário à discussão da produção de riqueza.
A corroboração dessa tese depende, naturalmente, do exame da obra dos economistas
sob estudo. Mas, devido a sua importância, dedicaremos o restante desta seção ao
contraste mais detalhado entre plutologia e catalática na literatura de história do
pensamento econômico.
McLeod (1887, 1896) foi um dos primeiros autores a interpretar a evolução da história
da teoria econômica em termos desses dois modelos. Embora rejeite as sugestões de
utilização dos termos Catalática, Plutologia e Crematologia como substitutos de
Economia, McLeod (1887, p. 111) adere ao primeiro como definidor do verdadeiro
objeto de investigação da disciplina: “a ciência que trata das leis que governam as
relações de quantidades trocáveis”.
O progresso da disciplina é então avaliado a partir dessa definição. Para McLeod (1887,
p. 85), desde a Antiguidade, como atestariam os escritos de Demóstenes, Aristóteles e o
direito romano, prevaleceria a concepção de que riqueza seria definida pela
trocabilidade. A troca de coisas úteis não restringiria a noção de riqueza a objetos
materiais, incluindo serviços e direitos abstratos, como instrumentos financeiros, que
desempenham função econômica.
A alternativa plutológica, porém, surge com os fisiocratas (p. 91), que restringem a
riqueza aos produtos materiais da terra e estabelecem o modelo que divide a disciplina
em produção, distribuição e consumo de riqueza, sendo o consumo definido como
destruição de riqueza. Para o autor (p. 92), substituir trocabilidade, isto é, o estudo da
oferta e da demanda pela análise separada da produção, distribuição e consumo
redundaria em perda de generalidade, pois produção sempre implica oferta e consumo
em demanda. Por outro lado, embora possamos falar em oferta e demanda por terra, não
teria sentido falar em produção e consumo da mesma. Outro erro dos fisiocratas

22
consistiria na hipótese de que trocas envolveriam valores iguais (p. 93), algo que
impede o desenvolvimento pleno da noção de ganhos mútuos com as trocas.
O ano de 1776 nos coloca a escolha entre o modelo plutológico e catalático. A Riqueza
das Nações de Smith, embora corrija o erro fundamental fisiocrata, avança a alternativa
plutológica com o estudo do produto da terra e do trabalho, ênfase em bens materiais e a
doutrina errônea de que o trabalho forneceria a base do fenômeno do valor. Para
McLeod (1887, p. 97)
Sem dúvida, Smith prestou um serviço imenso à Economia ao demonstrar que, no
comércio, ambos os lados ganham e estendendo seu domínio; mas o defeito fatal de
sua obra é que a primeira parte é inteiramente fundada sobre o trabalho e a
materialidade como sendo a essência da riqueza, e a segunda metade adota a
permutabilidade pura e simples. É também totalmente desprovida de unidade de
princípio e coerência doutrinária. Como já foi dito, carece de espinha dorsal.2
Também em 1776, pouco antes de Smith, Condillac publica seu Comércio e Governo,
que oferece fundamentos cataláticos para a disciplina, propondo portanto a volta à
doutrina original. Para McLeod (1896, p. 70), “Condillac, afinado com os antigos e
todos os economistas italianos, coloca a origem e fonte do valor na mente humana e não
no trabalho, que é a ruína da economia inglesa”.
Além de rejeitar Ricardo e Marx pelo motivo apontado acima, McLeod também critica
Say pela forma como este sistematiza a doutrina clássica em termos plutológicos.
Notando a importância crucial que a rejeição de Condillac desempenha na obra de Say,
McLeod (1896, p. 112) nos lembra como no longo prazo a opinião do primeiro
prevaleceu sobre a do segundo:
Este julgamento de Say sobre Condillac é muito desafortunado, porque Condillac
entendeu a natureza da Economia muito melhor do que Say; e seu sistema, de
comércio ou trocas, predominante na época, agora suplantou o de Say entre todos os
economistas mais avançados do presente.3
Apesar de rejeitar a economia clássica, moldada pelo texto de Say, McLeod (1896, p.
135) elogia seu mais conhecido seguidor, Bastiat, “o gênio mais brilhante que já
adornou a ciência da economia”. Essa avaliação é derivada do fato de que tal autor
baseia sua doutrina no trio necessidade – esforço – satisfação, de natureza catalática,
não no trio produção – distribuição – consumo, que caracteriza a plutologia.
O contraste entre plutologia e catalática se torna mais nítido conforme os economistas
gradualmente articularam a definição do problema econômico fundamental utilizada a
partir da revolução marginalista. No conhecido ensaio metodológico escrito por Lionel
Robbins (1932), que sintetiza as contribuições dos austríacos sobre o método até o

2
No doubt Smith did immense service to economics by demonstrating that in commerce both sides gain,
and by extending its domain; but the fatal defect of his work is that the former part is entirely founded
upon labour and materiality as being the essence of wealth, and the latter half adopts exchangeability
pure and simple. It is also totally wanting in unity of principle and consistency of doctrine. As has been
said, it is wanting in backbone.
3
This judgment of Say's on Condillac is most unfortunate, because Condillac understood the nature of
Economics far better than Say himself did; and his system, which is that of Commerce or Exchanges,
according to the prevalent idea of the age, has now superseded that of Say among all the most advanced
Economists of the present day.

23
momento, a definição antiga de economia, materialista, é comparada com a definição
moderna, subjetiva, segundo a qual (p. 15) a economia estuda “o comportamento
humano como uma relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos”.
Um elemento central da crítica à concepção clássica consiste em mostrar que escolhas
econômicas não se confundem com escolhas técnicas. Reproduzindo a forma como
Hans Meyer coloca a questão, Robbins (1932, p. 35) aponta que escolhas técnicas
envolvem vários meios e um único fim, ao passo que escolhas econômicas ocorrem
diante de multiplicidade de meios e de fins. Sendo assim, escolhas econômicas sobre
produção seriam dependentes das apreciações sobre a importância de alternativas,
manifestas nos preços e a discussão sobre produção separada do funcionamento do
sistema de preços se torna inadequada.
O segundo elemento central do contraste entre as duas perspectivas diz respeito aos
pressupostos comportamentais adotados por elas. Criticando o que denomina a
“mitologia do Homo œconomicus”, Robbins contrasta a atribuição do termo econômico
à busca por riqueza material com a ideia de que a Economia seria efetivamente uma
ciência de meios, não de fins, de modo que não interessa em absoluto quais são os
propósitos dos agentes ou quão nobres estes seriam, mas sim a relação entre eles e os
meios escassos de alcançá-los.
Esse ponto é bem explorado por Kirzner (1975), que examina em sua tese de doutorado
duas classes de definições de economia. A primeira envolve definições baseadas no
conceito de riqueza material e bem-estar, que atribuem o qualificativo econômico a um
tipo particular de atividade humana, como a busca por riqueza material ou dinheiro.
Essa classe de definições, alvo constante de críticas daqueles que identificam o
comportamento econômico com avareza, egoísmo ou até hedonismo, deve ser
contrastada com as definições de Economia que atribuem o mesmo termo a um aspecto
particular de toda atividade, desde que a escassez relativa imponha a necessidade de
realizar escolhas.
Essa segunda perspectiva, que torna o pressuposto comportamental utilizado pela teoria
econômica completamente independente de questões morais, assume para Kirzner uma
expressão acabada na obra de Mises (2011), que define Economia com a ciência geral
da ação humana, que pressupõe apenas a existência de agentes capazes de imaginar um
estado de coisas alternativo mais desejável, além de obstáculos para sua concretização e
também incerteza sobre o futuro.
Hicks (1976), por sua vez, também interpreta a revolução marginalista como uma
transição da plutologia para a catalática. Para Hicks (p. 215), essa mudança seria o
melhor exemplo do modelo de ciência descrito por Lakatos, embora, curiosamente, sua
análise efetivamente seja mais compatível com o modelo kuhniano, já que trata de
revoluções na disciplina.
De todo modo, Hicks (p. 211) nota que o uso principal da teoria do valor entre os
clássicos não é explicar o funcionamento do sistema de preços de mercado, mas
encontrar uma forma de ponderar os bens heterogêneos que compõem a produção de

24
bens, com o propósito de obter uma medida de riqueza, ao passo que a partir da
revolução marginalista as trocas e o problema alocativo se tornam centrais.
Também empregando os termos plutologia e catalática, Hicks (1976, p. 212) representa
a teoria econômica moderna como uma mudança de “visão” ou perspectiva sobre os
fenômenos econômicos:
A novidade essencial no trabalho desses economistas foi que, em vez de basear sua
Economia na produção e distribuição, eles a basearam na troca. Proponho, portanto,
fazer uso de um termo que às vezes era usado, na época em questão, para representar
a teoria da troca, a catalática. Então, eu devo nomear os chamados marginalistas
como catalatistas.
É claro que não há dúvida de que a troca é uma característica básica da vida
econômica, pelo menos em uma economia "livre", ou o que Marx chamaria de
economia "capitalista". Isso teria sido negado por nenhum dos economistas
clássicos. Mas enquanto os clássicos olhavam para o sistema econômico
essencialmente do ponto de vista da produção, os catalatistas olhavam
essencialmente pelo lado da troca. Era possível, eles descobriram, construir uma
"visão" da vida econômica a partir da teoria da troca, como os clássicos haviam feito
com o produto social. Era uma visão completamente diferente.4
No presente trabalho, adotaremos o contraste entre plutologia e catalática para
interpretar a teoria econômica desenvolvida pelos clássicos da vertente francesa.
Mostraremos como tais economistas, embora firmemente ancorados na tradição
plutológica, procuram se diferenciar da tradição clássica britânica através de elementos
que se acomodam melhor na tradição catalática, embora os autores franceses
explicitamente rejeitem o fundamento alternativo, catalático, já disponível na época.
Como resultado, observamos a tensão aludida no início desta seção.

1.3. Questões de método


Em relação à metodologia de análise, o presente estudo da escola clássica francesa
buscará evitar alguns vícios que comumente acometem os trabalhos de história do
pensamento econômico. Por um lado, ambiciona-se não incorrer em whig history, erro
responsável pelos problemas existentes nas avaliações mais conhecidas dos clássicos
franceses. Nossa preocupação principal não consiste em saber em que medida as teses
dos economistas franceses antecipam determinada concepção econômica moderna. O
exame de teorias que negligencia as situações problemas de seus criadores, além de
tecnicamente impróprio em termos do entendimento do significado da teoria
investigada, por distorcer os argumentos dos autores estudados, também trai a utilidade

4
The essential novelty in the work of these economists was that instead of basing their economics on
production and distribution, they based it on exchange. I therefore propose to make use of a term which
was sometimes used, at the time in question, to mean the theory of exchange; it was called catallactics. So
I shall re-name the so-called marginalists as catallactist. There is of course no doubt that exchange is a
basic feature of economic life, at least in a 'free', or what Marx would have called a 'capitalist' economy.
By none of the classical economists would that have been denied. But while the classics looked at the
economic system primarily from the production angle, the catallactists looked at it primarily from the
side of exchange. It was possible, they found, to construct a 'vision' of economic life out of the theory of
exchange, as the classics had done out of the social product. It was quite a different vision.

25
precípua da atividade do historiador da Economia; a saber, a procura de ideias
negligenciadas, potencialmente úteis e não a confirmação de nossas crenças atuais.
Por outro lado, não se deseja adotar perspectiva relativista, que negligencia o mérito e
relevância das teorias em favor de considerações sobre retórica, contexto histórico ou
origens psicológicas ou sociais dos argumentos. Muitos trabalhos em história do
pensamento econômico tratam do contexto e influências sofridas pelos economistas sem
jamais expor ou examinar as teorias que estes últimos desenvolveram.
Neste trabalho, focaremos nossa atenção nas doutrinas econômicas em si, evitando ao
máximo incursões em Sociologia do Conhecimento, que buscam explicar porque essas
doutrinas seriam formuladas e defendidas. Contextos históricos são mencionados
apenas quando forem úteis na descrição das situações problema enfrentadas pelos
autores. A ênfase nas teorias e não no contexto da sua descoberta requer tanto a intenção
de expor idéias de forma fidedigna quanto analisar sua relevância e mérito.
Quanto à exposição, como trataremos de um conjunto relativamente desconhecido de
autores, é necessário dedicar espaço considerável ao relato de suas idéias. Aspirando
fidelidade ao original, utilizaremos extensivamente citações dos textos dos próprios
autores.
Quanto à análise das idéias, por sua vez, se quisermos evitar os vícios mencionados
acima, devemos, além de expor as doutrinas, considerar em que medida as explanações
oferecidas respondem adequadamente aos problemas propostos. Isso torna inevitável a
comparação com explanações rivais. Estas, porém, são invocadas quando forem úteis
para avaliar em que medida a teoria sob investigação deixa de contemplar aspecto
relevante do objeto de investigação. Isso deve ser feito sem perder de vista aspectos
interessantes desse objeto contemplados pela teoria antiga e negligenciados pelas teorias
modernas.
Afirmamos na seção 1.1 que a tradição clássica francesa, por suas características
metodológicas e teóricas, inclui entre seus temas problemas que mais tarde foram
retomados pelas escolas da escolha pública, austríaca, schumpeteriana, neoinstitucional
e neoclássica. Ao mesmo tempo, afirmamos que as escolhas teóricas feitas por Say e
adotadas pelos autores por ele influenciados os impeliram a buscar uma teoria do valor
diferente da teoria clássica, mas que os impediram de desenvolver aquela proposta pela
teoria neoclássica. Sendo assim, nossa tarefa consiste em retratar o referencial teórico
original desenvolvido pelos franceses e expor seu potencial e limitações, tendo em vista
outras teorias que abordam problemas relacionados. Proposições sobre competição e
monopólio, por exemplo, serão expostas e em seguida analisadas tendo em vista a teoria
atual sobre o tema. Vejamos isso em mais detalhes.
A lógica situacional definida pela preservação do referencial plutológico, que diminui a
importância do problema alocativo, convivendo com a busca por uma teoria do valor
subjetivo, que levaria à valorização desse mesmo problema, coloca situações problemas
únicos. Tomando como exemplo as teorias específicas sobre as estruturas de mercado,

26
embora os economistas da escola clássica francesa tenham desenvolvido aspectos
importantes da moderna teoria da determinação de preços sob monopólio, o tratamento
dado ao fenômeno competitivo não pode ser visto como um mero precursor da teoria da
competição perfeita, que pecaria por desconsiderar questões de eficiência alocativa. Os
problemas abordados pelos franceses e, portanto, os usos por eles dados à teoria do
valor, são diferentes. De fato, os economistas clássicos abordam aspectos cruciais dos
fenômenos da competição e monopólio, como inovação e rivalidade empresarial, que
não são contemplados no tratamento moderno da competição, devido ao foco exclusivo
deste em estados de equilíbrio e sua otimalidade.
Pelos mesmos motivos, não é exato afirmar que a escola clássica francesa teria
meramente antecipado a análise da escola da escolha pública. Trata-se de abordagem
própria, que embora apresente afinidades e pontos em comum, como por exemplo o
pressuposto de auto-interesse aplicado aos agentes que atuam no setor público, não é
meramente versão embrionária da teoria moderna: os clássicos franceses desenvolvem
temas como consequências não intencionais e exame de preferências ideológicas,
assuntos esses mais próximos da abordagem austríaca do que da escola da escolha
pública.
Adicionalmente, o caminho para uma análise que não seja whig history passa pela
leitura da maior quantidade possível de textos completos dos autores analisados. É fácil
encontrar citações isoladas em uma obra que aparentemente corroboram pontos de vista
diferentes daqueles tratados pelo autor. Considere a teoria do valor. É fácil encontrar
passagens nos textos dos economistas aqui estudadas que soam como evidências
inequívocas de que seus autores seriam defensores das teorias objetiva ou subjetiva do
valor. Tomando como exemplo o caso de Destutt de Tracy, podemos encontrar em seu
tratado econômico (TRACY, 1970 [1817], p. 73) tanto passagens que falam da
“primeira e única causa de todo valor, o trabalho” quanto afirmações (p. 86) de que os
“valores são medidas do grau de utilidade”.
Diante da prática de atribuir peso indevido a trechos isolados, apenas a consideração do
livro como um todo permite vislumbrar a intenção do autor, a partir do exame das
situações problema expostas nas obras. No exemplo em questão, sobre a obra de Destutt
de Tracy, essas situações problema passam longe de preocupações ricardianas com
agregação do valor em modelo de crescimento, sendo motivadas pelo duplo objetivo de
fundamentar a teoria econômica na filosofia sensacionalista de Condillac e de negar a
tese fisiocrata de exclusividade da agricultura na geração de excedentes de riqueza. Ao
tomar ciência dos usos que o autor faz da teoria ao logo de sua obra, teremos condições
de formular um julgamento mais adequado sobre o seu posicionamento sobre a teoria
em questão.
O perigo de generalização indevida a partir de fragmentos pode, porém, ser minimizado
no caso da escola clássica francesa. Seus membros mantinham a prática de escrever
tratados gerais de teoria econômica, que apresentavam de forma sistematizada o corpo
completo da doutrina existente. Além da tradição de escrever tratados, que em geral
27
eram bastante extensos, os economistas da escola faziam acompanhar essas obras de
versões resumidas (précis ou abregés), destinadas aos não especialistas, mas que
abordavam os mesmos temas. A leitura desses tratados e resumos reduz
significativamente o risco de inferências indevidas a partir de citações particulares.
Além de evitar apoio apenas em fragmentos de obras, o historiador do pensamento
econômico que estiver investigando a evolução de uma tradição de pesquisa deve incluir
em seu estudo as obras dos autores menos conhecidos, sob o risco de atribuir
originalidade indevida a determinadas contribuições individuais. No campo das ideias, o
lema natura non facit saltum também se aplica. Quanto mais autores de certo período
forem contemplados em um estudo, mais evidente se torna o caráter gradual do
crescimento do conhecimento, conforme descobrimos “elos perdidos” entre as obras dos
autores mais proeminentes e conhecidos. Contemplando mais autores, menor será o
risco de atribuirmos indevidamente uma ideia, já comum em uma época, a algum
escritor particular que faça uso dessa ideia em seu esquema explanatório.
Essa ilusão é especialmente relevante para o estudo dos economistas clássicos franceses,
acusados com frequência de falta de originalidade. Say é descrito como mero
divulgador de Smith, McLeod (1887, p, 104) classifica as obras dos autores
subsequentes como cópias umas das outras e, como vimos, Schumpeter trata esses
autores apenas como jornalistas, sem contribuições originais.
Esse tipo de julgamento, além de depender do que no presente se classifica como teoria,
erro associado à prática de whig history, decorre naturalmente da desconsideração do
ambiente intelectual no qual as obras dos autores mais conhecidos estão inseridas.
Levando esse ambiente em conta, o progresso das teorias se revela muito mais gradual e
dependente de um número maior de autores do que normalmente retratado. Boa parte
das teses metodológicas que os economistas normalmente associam a John Stuart Mill e
outros economistas ingleses, por exemplo, já era discutida por Say e Destutt de Tracy,
como mostraremos no próximo capítulo. O utilitarismo benthamita introduzido por
Courcelle-Seneuil via Mill, por sua vez, já estava muito antes presente na tradição
francesa pela influência indireta de Helvétius e direta da praxiologia de Destutt de
Tracy, derivada da filosofia sensacionalista de Condillac. A relação entre população e
salários que associamos a Malthus está do mesmo modo presente, entre outros, em
Cantillon. Exemplos como esses não pretendem sugerir alterações sobre precedência
intelectual, mas contestar a crença de que o progresso intelectual se dá por contribuições
novas de uns poucos autores e não por um lento processo de aprendizado ocorrido em
uma comunidade intelectual composta por inúmeros pesquisadores.
Essas considerações exigem uma pausa para explicitarmos brevemente a perspectiva
evolucionária sobre o progresso do conhecimento que adotamos neste trabalho. Partindo
do racionalismo crítico popperiano5, que associa o progresso da ciência a ambientes que
ao mesmo tempo permitem a diversidade de conjecturas e promovam o espírito crítico,

5
Bartley (1964).

28
a epistemologia evolucionária6 descreve mecanismos de aprendizado em diversos
contextos, que são modelados como processos de solução de problemas por variação e
seleção. Segundo essa tradição, o mesmo padrão de aprendizado por variação e seleção
estaria presente tanto em um organismo buscando nutrientes quanto em um cientista
procurando resolver um problema teórico, passando por um empresário lidando com um
problema mercadológico.
Nesses ambientes, o aprendizado por tentativas e erros se faz necessário devido à
conjunção da complexidade do problema a ser resolvido com a falibilidade do
conhecimento dos agentes cognoscentes. Se a estrutura do problema é complexa o
bastante, de modo a tornar improvável que um indivíduo o resolva satisfatoriamente de
forma isolada, ainda assim o conhecimento pode avançar se houver ambiente que
possibilite a coexistência de tentativas diferentes de solução e de um processo de
seleção de alternativas. A multiplicidade de tentativas testadas, cada qual partindo de
perspectiva própria, permite a exploração de mais possibilidades no espaço de soluções
possíveis. Soluções parciais ou inadequadas em contextos diferentes, nessa perspectiva,
não são descartadas, mas modificadas e recombinadas durante o desenrolar do processo
de aprendizado.
Esse conceito de ecologia de tentativas rivais de solução de problemas implica em
consequências importantes para o presente trabalho. Segundo essa concepção, a ciência
evolui como um fenômeno emergente, fruto não intencional da interação de diversos
indivíduos em uma comunidade acadêmica. Soluções criativas para problemas
científicos surgem a partir da existência da multiplicidade de explicações, modificadas
sob a pressão de crítica mútua, reformuladas a partir de contribuições de outros autores,
recombinadas com ferramentas originárias de outros campos de pesquisa, preservadas e
modificadas por textos originais e manuais de ensino.
Ridley (2010), no espírito da epistemologia evolucionária, combina as teorias
econômica e biológica para afirmar que o progresso em diversos campos depende de
fato da recombinação ou “comércio” entre idéias, que ganham nova produtividade
quando aplicadas a problemas em contextos diferentes daqueles para os quais foram
concebidas.
Os elementos dessa descrição, como veremos, estão presentes no desenvolvimento da
escola clássica francesa: polêmicas entre autores da própria escola, controvérsias com as
tradições ricardiana e socialista, conceitos abandonados em certa época sendo
retomados na geração seguinte pela influência de outros economistas e aproveitamento
de noções jurídicas, filosóficas e históricas nas tentativas modificadas de resolver
problemas econômicos e conceber novas questões.
Ridley (2015) contrasta ainda esse ponto de vista, segundo o qual o conhecimento
evolui gradualmente a partir da interação de inúmeras pessoas, com a opinião rival, que
atribui avanços a iniciativas centralizadas, implementadas hierarquicamente. Utilizando
6
Bartley e Radnitsky (1987) e Popper (1972).

29
os termos desse autor, o modelo evolucionário se contrapõe a uma espécie de
criacionismo intelectual, que atribui à criatividade de pensadores isolados a descoberta
das soluções dos problemas.
Se considerarmos ainda que uma teoria ou aspecto da mesma não surge acabada em um
momento, mas se modifica gradualmente, a noção de que a tradição clássica teria sido
concebida por economistas ingleses e apenas divulgada pelos franceses se torna menos
defensável ainda. Doutrinas específicas sobre valor, preço, produção, comércio,
população e demais temas não surgem acabadas na obra de certos autores, como
revelações. Na verdade, os conceitos são frequentemente modificados, aplicados a
novos usos ou interpretados de novas maneiras e a ferramenta evolui.
O criacionismo intelectual, pré-evolucionário, está sujeita a ilusão essencialista que
Dawkins (2011) denomina de “tirania da mente discreta”. Assim como o conceito de
uma espécie se torna arbitrário quando aplicado a um indivíduo intermediário entre essa
espécie e seus ancestrais, não existe algo como “a” teoria clássica sobre um assunto,
mas uma sucessão de versões modificadas da mesma, que se manifesta nas obras de
inúmeros economistas.
O contraste entre as concepções evolutiva e criacionista sobre o progresso do
conhecimento se manifesta claramente em termos das implicações divergentes sobre o
progresso técnico. Sob a segunda ótica, sendo o progresso descontínuo, faz sentido
estimular inovações por patentes, ao passo que sob o ponto de vista evolutivo as
descobertas não surgem acabadas em pontos específicos do tempo e têm sempre
múltiplos originadores com contribuições graduais, tornando proibitivos os custos de
transação associados à atribuição de direitos de propriedade intelectual. Separados por
cento e trinta e sete anos, tanto Ridley (2015) quanto Chevalier (1878), um dos
economistas do século dezenove que estudaremos, argumentam que o caráter contínuo
do crescimento do conhecimento torna arbitrário a concessão de privilégios
monopolistas a algum subconjunto pequeno dos responsáveis pelas inovações, como
atestaria a existência generalizada de múltiplos descobridores em constantes litígios sem
solução sobre quem teria criado aquilo que na verdade evoluiu gradualmente a partir do
trabalho de muitos colaboradores.
Sob a ótica evolutiva, a descrição de McLeod (1887, p. 104) dos textos dos economistas
da escola francesa, segundo a qual eles seriam “pouco mais do que adaptações com
poucas variações” do tratado de Say, descreve de fato com precisão a evolução dessa
escola, assim como do crescimento do conhecimento em geral. Na origem da escola
clássica francesa, a despeito de Say alegar ruptura com a tradição fisiocrata,
mostraremos o quanto as doutrinas por ele defendidas dependem de Cantillon, Quesnay
e Turgot, via reutilização de certas concepções fundamentais desses autores que foram
incorporadas na obra de Smith. Durante a maturação da escola, por sua vez,
estudaremos uma longa sequência de autores que promovem recombinações de idéias
que implicam na transformação gradual da doutrina de Say, inclusive em direções
desaprovadas por esse autor. No estágio de declínio da escola, por fim, veremos como
30
seus últimos membros também introduzem lenta e gradualmente alguns elementos
marginalistas no referencial plutológico clássico.
Como o objeto de estudo deste trabalho é a evolução da tradição clássica francesa ao
longo do século dezenove, interpretada à luz da concepção metodológica exposta acima,
escolhemos tratar de diversos autores em vez de nos concentrarmos em apenas alguns
deles. Organizaremos então o trabalho por capítulos que tratam das sucessivas gerações
de economistas da escola, de seus precursores até seu desaparecimento.
Depois de expor a visão metodológica geral adotada do trabalho, ainda é necessário
explicitarmos alguns detalhes mais concretos relativos ao método de análise. Em
primeiro lugar, é necessário dizer algo sobre as escolhas dos textos examinados. As
obras escritas pelos economistas clássicos franceses no século dezenove, já em domínio
público, podem ser facilmente encontradas em arquivos digitalizados e disponibilizados
por diferentes sítios na internet. Utilizamos neste trabalho três dessas fontes: Gallica,
especializado em textos em francês, Google Books e Internet Archives7.
Para cada obra estudada, optamos preferencialmente pela última edição modificada pelo
autor ou pela primeira edição póstuma, se esta conter alguma correção ou adição de
material por parte de descendentes ou editores.
Como esses arquivos contêm digitalizações inalteradas dos livros, nas referências
bibliográficas ao final do trabalho optamos por citá-los segundo as edições originais,
omitindo as fontes digitais listadas acima. Apenas quando uma edição original é
reformatada, de modo que a edição eletrônica envolve renumeração de páginas,
mencionamos a origem do documento na internet.
Com poucas exceções, utilizamos os originais em francês, pois este se aproxima mais
do português do que traduções originárias de versões em inglês. De todo modo, poucas
obras foram de fato traduzidas para esta última língua. Para que o leitor não seja
distraído por mudanças de idioma, optamos por apresentar no corpo do texto citações
traduzidas para o português. As passagens originais em francês ou as eventuais
traduções em inglês utilizadas aparecem, no entanto, em notas de rodapé. A presença do
original para comparação nos permite adotar maior liberdade para se desviar da
tradução literal de alguns termos, embora tenhamos como meta desviar o mínimo
possível do original.

7 Os endereços dessas fontes são, respectivamente, https://gallica.bnf.fr,


https://books.google.com e https://archive.org.

31
1.4. Roteiro dos capítulos
Além de apresentar a escola, oferecer uma tese sobre sua evolução e discutir questões
metodológicas, este capítulo introdutório apresenta na sequência o roteiro do restante do
trabalho.
Assim como tratamos de questões de ordem metodológica no início de nosso trabalho,
reservaremos o próximo capítulo para o exame das teses sobre Metodologia da
Economia contidas nas obras dos economistas que estudaremos. Com isso, teremos a
liberdade de nos concentrar no restante do texto nas teorias econômicas propriamente
ditas desses autores, tomando como dada a perspectiva metodológica adotada por eles.
Argumentaremos nesse capítulo que boa parte da metodologia comumente associada à
escola clássica britânica, notadamente John Stuart Mill, já aparece entre os clássicos
franceses a partir de Say.
Depois de estudar a metodologia empirista defendida por Say e a sua oposição ao estilo
de teoria desenvolvido por Ricardo, veremos como Destutt de Tracy utiliza a filosofia
empirista de Condillac para fundamentar a teoria econômica em bases praxiológicas;
isto é, explicar os fenômenos econômicos em termos da lógica da ação humana.
Ainda nesse capítulo, trataremos da distinção adotada por Storch e Rossi entre a teoria
pura, mais abstrata, baseada em fatos gerais e a teoria aplicada, dependente de fatos
contingentes. Essa distinção, aliada à defesa de perspectiva realista, nos leva na seção
seguinte ao contraste com o historicismo alemão, defendido por Wolowski e rejeitado
por Leroy-Beaulieu.
Antes de abordar a fundação da escola clássica francesa a partir da obra de Say,
trataremos no terceiro capítulo dos principais precursores do tipo de teoria econômica
desenvolvida por esse autor. Em acordo com a tese exposta acima a respeito do caráter
gradual da evolução da ciência, rejeitaremos a percepção do próprio Say de que Smith
teria fundado a disciplina a partir da adoção do método empírico.
Tomaremos como ponto de partida desse capítulo a perspectiva teórica plutológica tal
como manifesta na teoria de Cantillon e mostramos como esse referencial teórico guia
tanto a fisiocracia de Quesnay quanto a obra de Turgot. Por fim, antes de mostrar no
capítulo seguinte como essa evolução teórica chega à Say via Smith, trataremos da
economia de Condillac, herdeiro da mesma tradição, mas cuja obra oferece
fundamentos filosóficos e econômicos para a perspectiva catalática rejeitada por Say.
Munidos das discussões metodológicas (capítulo 2) e de uma interpretação da evolução
da ciência econômica até o final do século dezoito (capítulo 3), trataremos no quarto
capítulo da primeira geração de autores da escola clássica francesa. Iniciamos o capítulo
com o estudo da “ideologia”, ou ciência das idéias proposta por Destutt de Tracy. O
conjunto de crenças dos “ideólogos” compõe o ambiente intelectual no qual os
economistas do período se inserem.
A transição entre a teoria de Cantillon, baseada na agricultura e a economia geral de
Smith, que contempla a indústria, é descrita na sequência através do exame de textos

32
dos condes Garnier e Roederer. A despeito dos esforços iniciais de Garnier, a
consolidação da tradição clássica na França se deve à Say. Depois de examinar em
detalhes os escritos desse autor, que fornecem os fundamentos da escola clássica
francesa, trataremos ainda no mesmo capítulo dos esforços de Destutt de Tracy para
fundamentar as doutrinas de Say em uma praxiologia derivada de Condillac.
Além de examinar a teoria econômica “industrialista” desses autores, que procura
investigar as causas do crescimento em todos os ramos de atividade econômica,
mostraremos como eles tratam em suas obras da ação dos agentes na esfera pública,
com o propósito de criticar as políticas mercantilistas de favorecimento político a
determinados setores industriais.
O quinto capítulo do trabalho aborda a segunda geração de economistas da escola
francesa, que desenvolve o programa de pesquisa proposto por Say. Em termos de teoria
pura, Storch acrescenta o elemento marginalista na teoria subjetiva do valor e amplia a
crítica de Say ao materialismo smithiano ao adicionar no escopo da teoria econômica,
além dos bens materiais, não apenas os serviços, mas também os próprios bens
imateriais que afetam o bem-estar dos agentes, mesmo aqueles não trocados em
mercados. Essa extensão compõe a “teoria da civilização” do autor, que mostra como a
riqueza e os demais fatores que afetam o bem-estar coevoluem: mais riqueza promove
civilização, que auxilia a produção de riqueza.
Pellegrino Rossi, sucessor de Say na cadeira de economia política no College de
France, utiliza o mesmo desenvolvimento da teoria subjetiva do valor desenvolvida por
Storch para explicar a formação de preços sob monopólio.
Adolphe Blanqui, da mesma geração de autores, desenvolve uma vertente aplicada da
teoria de Say, examinando o desenvolvimento da indústria em setores particulares, bem
como a história do progresso industrial.
Charles Comte e Dunoyer, por sua vez, utilizam o industrialismo de Say para gerar uma
interpretação da história em termos institucionais. O desenrolar da história seria
marcado por um gradual processo de expansão dos direitos de propriedade, que
resultaria em progressiva liberdade do trabalho em relação as restrições impostas por
aqueles que vivem do trabalho alheio.
Essa teoria da exploração é desenvolvida por Bastiat, que fundamenta tanto a atividade
produtiva quanto a atividade espoliadora na lógica da ação humana, examinando os
incentivos para os dois modos de atividade sob diferentes regimes institucionais. Sua
teoria econômica geral, por outro lado, ao privilegiar a relação entre esforços e
satisfação de necessidades, privilegia a comparação de vias alternativas de ação,
examinando políticas econômicas em termos dos seus efeitos, favoráveis ou não, em
todos os setores da economia.
Essa abordagem, que permite tratar das consequências não intencionais da ação
humana, é por sua vez utilizada por Bastiat para comparar os sistemas econômicos
mercantilista, socialista e liberal. Essa comparação, central na política francesa na

33
metade do século dezenove, marca as obras dos economistas da geração seguinte,
estudadas no sexto capítulo.
O capítulo inicia com menção aos autores menos conhecidos da escola, cuja obra não
será examinada neste trabalho. Por sua importância política, dedicaremos algum espaço
a Chevalier, responsável pelo tratado de comércio entre Inglaterra e França que reduziu
barreiras comerciais. De suas idéias, trataremos apenas de um texto sobre patentes, que
são criticadas sob a mesma ótica gradualista a respeito da evolução do conhecimento
que mencionamos neste capítulo introdutório.
Dentre os autores da terceira geração cuja obra examinaremos em mais detalhes,
Courcelle-Seneuil, o primeiro deles, amplia a distinção entre teoria pura e aplicada. Na
primeira dessas disciplinas, adiciona elementos do utilitarismo benthamita na tradição
francesa. Na segunda, emprega a análise de estruturas de mercado ao setor bancário,
sendo um dos primeiros advogados da competição bancária (free banking), além de
escrever um tratado pioneiro na área de administração de empresas. Sua análise de
sistemas comparados, por fim, é centrada em termos do grau de centralização das
instituições e os efeitos econômicos dessa centralização.
Molinari, o autor estudado na sequência, explora a tese da similitude formal entre
sistemas econômicos: depois de argumentar que existem leis econômicas universais,
que implicam na presença dos mesmos problemas econômicos em qualquer ambiente,
indaga em particular como os problemas resolvidos pelo sistema de preços seriam
resolvidos em um regime socialista. Ainda sob a mesma perspectiva analítica, veremos
como o autor aplica a análise de competição e monopólio ao estudo do funcionamento
da oferta privada e pública de bens públicos. Cético em relação a receitas particulares de
instituições governamentais, prefere examinar os fatores econômicos que poderiam
impor pressões competitivas a organismos estatais, como a descentralização ou direito a
secessão.
Ainda no sexto capítulo examinaremos como Leroy-Beaulieu, embora adote a teoria
subjetiva do valor desenvolvida pelos autores marginalistas, preserva ainda o arcabouço
analítico plutológico. Estudaremos duas contribuições particulares desse autor: sua
formulação do problema do cálculo econômico sob planejamento central e sua análise
da economia do setor público, que pretende estudar empiricamente o estado moderno,
tratando da lógica de funcionamento da ação coletiva para investigar as vantagens e as
falhas da ação na esfera estatal.
O sétimo capítulo, por fim, tece considerações sobre o fim da escola clássica francesa e
sobre suas contribuições à economia, além de recapitular as principais teses
desenvolvidas neste trabalho.

34
2. Metodologia da Economia nos Clássicos Franceses
Ao longo da história da Economia, é prática entre os autores iniciar seus tratados por
considerações metodológicas. Alguns motivos contribuem para esse fenômeno, como a
relativa juventude da teoria econômica sistematizada, datada no final do século dezoito,
que naturalmente convida a discussões sobre qual seria o método adequado para a nova
disciplina. Junta-se a isso o interesse geral pelo assunto e as decorrentes controvérsias
sobre questões econômicos. A natureza mesma da disciplina, como ciência social,
convida ao debate em torno da questão que indaga se tal disciplina seria sujeita a
métodos próprios ou deveria utilizar os métodos atribuídos às ciências naturais. Por fim,
temos ainda os problemas colocados pelas relações com as demais disciplinas, como
Filosofia, Psicologia, Direito, História, Matemática e Estatística.
Sendo assim, é natural que os autores iniciem suas obras com considerações
metodológicas. Neste trabalho, adotamos o mesmo procedimento: além de reservar
espaço significativo na nossa introdução a observações de cunho metodológico,
dedicamos o presente capítulo ao exame das contribuições ao tema desenvolvidas pelos
autores da vertente francesa da escola clássica.
Esse procedimento se justifica se considerarmos que as crenças metodológicas
esposadas por J-B. Say formam um modelo que é seguido fielmente pelos economistas
subsequentes na evolução da escola francesa. Sendo assim, não precisaremos repetir
seguidamente tais crenças quando examinarmos cada autor. Neste capítulo, dedicaremos
espaço para os autores que mais escreveram sobre o tema.
Na primeira seção, trataremos da metodologia esposada por Jean-Baptiste Say. Esse
autor, além de organizar em seu tratado a estrutura do pensamento econômico clássico,
faz o mesmo no que diz respeito a questões metodológicas. Boa parte das teses sobre
metodologia da economia desenvolvidas no período clássico, comumente associada aos
trabalhos de Senior (1965 [1836]), J. S. Mill (2000 [1844]), J. N. Keynes (1999 [1890])
e Cairnes (2001 [1888]) já aparecem na obra de Say1.
As posições metodológicas de Say são inspiradas pelo empirismo baconiano,
privilegiando a observação e atacando a construção de sistemas a priori. A partir dessa
postura, temos em Say o desenvolvimento de uma vertente realista da Economia. Os
livros desse autor e de seus seguidores são marcados pela exposição de princípios e
teoremas prontamente ilustrados por exemplos concretos e históricos. Nesse sentido, o
autor se distingue da vertente ricardiana da escola, cuja teorização utiliza com mais
frequência simplificações extremas, o “vício ricardiano” identificado por Schumpeter2.

1
Para um exame das teses metodológicas desses autores, ver Barbieri e Feijó (2013).
2
Schumpeter (2006, p. 627) define vício ricardiano como “o hábito de estabelecer relações simples entre
agregados que então adquirem um halo espúrio de importância causal, ao passo que todas as coisas
realmente importantes (e, infelizmente, complicadas) estão sendo agrupadas dentro ou por trás desses
agregados.” Schumpeter, entretanto, atribui a Say o mesmo erro (p. 588).
Quanto a definição do problema fundamental da Economia, Say contribui para a
consolidação da resposta clássica, plutológica, a essa questão, que divide a disciplina
em produção, distribuição e consumo de riqueza.
A segunda seção do capítulo é dedicada a um contemporâneo de Say, Destutt de Tracy.
As contribuições metodológicas desse autor são as mais sofisticadas da escola clássica
francesa. Partindo do sensacionalismo de Condillac, derivado do empirismo inglês,
Destutt de Tracy propõe uma fundamentação para a teoria econômica calcada na lógica
da ação humana, ou praxiologia.
Aprofundando o distanciamento em relação ao materialismo plutológico que marca a
versão inglesa da economia clássica, esse autor fornece bases para uma fundamentação
subjetivista para os princípios da disciplina. Como mostraremos, embora parta de uma
base filosófica diferente, a praxiologia de Destutt de Tracy se assemelha àquela
desenvolvida por Ludwig von Mises (2011 [1949]) mais de um século depois.
Na terceira seção deste capítulo, veremos com a Metodologia da Economia é
desenvolvida por Storch e Rossi. Esses autores aprofundam as idéias de Say sobre a
natureza das leis econômicas. Em particular, diante da complexidade dos fenômenos
econômicos; isto é, diante do grande número de variáveis que precisariam ser
controladas para que pudéssemos derivar alguma lei empírica na área, surge a
necessidade de separação entre os ramos teórico e prático da disciplina. O primeiro
supõe relações abstratas entre variáveis atuantes na ausência de fatores perturbadores,
enquanto o ramo aplicado requer identificação de quais fatores atuam em dada
circunstância particular. Para eles, os dois ramos da Economia podem fazer uso de
métodos diferentes. Em particular, no que diz respeito à discussão do escopo da
disciplina, os dois autores estudados tratam o pressuposto de auto-interesse como uma
simplificação pertencente ao ramo abstrato, deixando claro que ele não implica
inexistência de motivações diferentes daquela definida pela busca por riqueza. Storch,
além disso, procura expandir o escopo da disciplina, incluindo nela qualquer coisa que
afete o bem-estar, tentando assim transcender as amarras impostas pela definição
plutológica de Say, que restringe a disciplina a bens e serviços trocáveis em mercados.
Na quarta seção, trataremos da relação entre teoria, história e formalismo matemático.
Iniciemos com a relação entre teoria e história. Estabelecidos os fundamentos teóricos
corretos da disciplina, obtidos por observação, restaria a mesma expandir suas fronteiras
por aplicações particulares, de natureza histórica. De fato, como ocorre em geral com os
adeptos do empirismo em várias das suas vertentes, Say acredita que os preceitos
teóricos da teoria, pretensamente derivados diretamente da observação, seriam dados,
restando aos pesquisadores subsequentes apenas a tarefa de aplicar a teoria. Embora
Storch e Rossi tenham continuado o desenvolvimento da teoria pura, o próprio Say,
Blanqui, Comte e Dunoyer, além dos próprios Storch e Rossi, dedicaram boa parte de
sua obra ao trabalho aplicado.
Em especial na obra de Blanqui, Comte e Dunoyer, a teoria econômica passa a um
segundo plano e a ilustração do desenvolvimento da indústria em vários locais e épocas
assume papel proeminente. Isso poderia sugerir ao leitor moderno a impressão de que a

36
escola francesa teria se aproximado do historicismo alemão. Embora Wolowski sugira
de fato o emprego do método histórico, as concepções metodológicas dos economistas
franceses se aproximam de fato da postura de Menger no methodenstreit, que defende a
existência de teoria pura que comporte leis abstratas válidas universalmente,
convivendo com os demais métodos utilizados nos demais ramos da disciplina. Na
seção dedicada a esses autores, estudaremos a defesa da existência de leis econômicas
nas obras de Bastiat, Molinari e Leroy-Beaulieu.
Por fim, abordaremos ainda na última seção a relação entre teoria econômica e
matemática. Os últimos representantes da escola francesa, como Molinari, Leroy-
Beaulieu, Passy e Guyot escreveram já no início do século vinte. Sendo assim, de uma
forma ou outra conviveram com a transformação da Economia ocorrida a partir da
revolução marginalista, embora esta seja de fato uma evolução gradual, não uma
revolução propriamente dita. Torna-se assim inevitável o choque entre o estilo verbal de
exposição dos clássicos franceses e o então novo modo de expressão formalizado da
nova Economia. No final do capítulo, estudaremos a interação entre Leroy-Beaulieu e
Walras, dois pretendentes ao cargo de professor de economia no College de France, que
divergiram a respeito da utilidade da matemática na Economia.

2.1. J.-B. Say: empirismo e realismo


Uma das características do Tratado de Say foi a sistematização das teses de Smith,
explicitando e modificando alguns de seus princípios, explorando ordenadamente suas
relações mais fundamentais e as ilustrando com evidência concreta. Esse programa de
sistematização fundamentalmente inclui a identificação do objeto de investigação da
disciplina e do método apropriado para ela. Considerando que a primeira edição do
tratado de Say surgiu ainda em 1803, essa tarefa não é trivial. De fato, segundo a feliz
metáfora empregada por Mill (2000), assim como uma cidade é cercada por muros
apenas depois de crescer, a identificação do escopo e método da Economia deve esperar
a maturação dessa ciência. A despeito disso, parte não desprezível da metodologia
associada à escola clássica e ao próprio Mill se manifesta nos trabalhos de Say.
Nesta seção trataremos inicialmente do fundamento filosófico que informa as
contribuições do autor à Metodologia da Economia, para em seguida examinar o
conteúdo dessa metodologia e por fim discutir a relação entre ela e a teoria econômica
desenvolvida pelo autor e pela escola clássica francesa.
Como homem prático, Say não dedica muito espaço à justificação de suas crenças
metodológicas em termos de debates de natureza puramente filosófica. A despeito do
entusiasmo dos intelectuais franceses desde o Iluminismo com o empirismo inglês e da
influência do sensacionalismo de Condillac sobre os ideólogos – o círculo intelectual ao
qual Say pertencia – o único filósofo empirista efetivamente citado por Say em seus
escritos econômicos é Francis Bacon.

37
Podemos dizer quer a metodologia de Say é aplicação direta do credo baconiano: a
Economia, para que se desenvolva a contento, deveria buscar inspiração na Física
newtoniana e rejeitar os “sistemas” meramente metafísicos em favor de pesquisa
baseada em fatos provados pela observação direta.
As afirmações metodológicas de Say refletem, como veremos em seguida, as qualidades
e limitações inerentes à concepção baconiana de ciência, tal como identificadas pela
filosofia da ciência moderna. A crença na existência de observações independentes de
pressupostos teóricos anteriores, por exemplo, se manifesta constantemente na
argumentação de Say.
Já no início do “discurso preliminar” de seu Tratado de Economia Política, Say (1841,
p. 3) revela sua aderência à interpretação baconiana sobre a causa da revolução
científica, recomendando que a nova ciência econômica siga o mesmo caminho:
Na economia política, como na física, como em tudo, criaram-se sistemas antes de
estabelecer verdades; isto é, foram tomadas como verdades concepções gratuitas e
meras opiniões. Mais tarde, foi aplicado a essa ciência os métodos que tanto
contribuíram, a partir de Bacon, para o progresso de todas as outras; isto é, o método
experimental, que consiste essencialmente em admitir como verdade apenas fatos
cuja observação e experiência demostraram sua realidade, e como verdades
constantes apenas as conclusões que deles se pode obter naturalmente; o que exclui
totalmente aqueles preconceitos e autoridades que, tanto na ciência quanto na moral,
literatura e administração, se interpõem entre o homem e a verdade.3
Antes de esmiuçar o método que considera correto, tratemos do procedimento
condenado pelo autor; a saber, a construção de “sistemas”. No Curso Completo, Say
(1840, p. 14) define um sistema como um conjunto de proposições inventadas que se
sustentam entre si, mas que não é conectado com a realidade. Nessa definição, a palavra
“inventada” se refere pressupostos apenas hipotéticos, não derivados da observação.
Para Say (1840, p. 13) seria “errado afirmar que a economia política é uma ciência
baseada em hipóteses e não na experiência: pelo contrário, baseia-se inteiramente na
experiência”4.
Dois desenvolvimentos teóricos na Economia são considerados sistemas imaginários
pelo autor: a fisiocracia e o ricardianismo; ou, usando os termos preferidos pelo autor,
respectivamente “os economistas do século dezoito” e a “escola inglesa”. Ambas
pecariam por privilegiar abstrações no lugar de observações. O uso de princípios no

3
En économie politique, comme en physique, comme en tout, on a fait des systèmes avant d'établir des
vérités; c'est-à-dire qu'on a donné pour la vérité des conceptions gratuites, de pures assertions. Plus tard,
on a appliqué à cette science les méthodes qui ont tant contribué, depuis Bacon, aux progrès de toutes les
autres; c'est-à-dire la méthode expérimentale, qui consiste essentiellement à n'admettre comme vrais que
les faits dont l'observation et l'expérience ont démontré la réalité, et comme des vérités constantes que les
conclusions qu'on en peut tirer naturellement; ce qui exclut totalement ces préjugés, ces autorités qui, en
science comme en morale, en littérature comme en administration, viennent s'interposer entre l'homme et
la vérité.
4
C'est donc à tort qu'on a dit que l'économie politique était une science fondée sur des hypothèses et non
sur l'expérience: elle est au contraire tout entière fondée sur l'experience, ...

38
lugar de fatos, para Say (1940, p.15), implicaria no risco de relapso em uma forma de
escolasticismo. O refúgio em um mundo imaginário, apartado da realidade observável,
daria conta do dogmatismo comumente atribuído aos fisiocratas. Say (1940, p. 24) de
fato caracteriza a fisiocracia como “seita dogmática”:
Em vez de observar primeiro a natureza das coisas, isto é, a maneira pela qual as
coisas acontecem, de classificar suas observações e de deduzir delas generalidades,
elas começaram apresentando generalidades abstratas, que eles qualificavam pelo
nome de axiomas e nos quais eles acreditavam ver brilhar por si mesma a evidência.
Eles procuraram em seguida associar a eles fatos particulares e, deles deduzindo
regras; foram envolvidos na defesa de máximas evidentemente contrárias ao bom
senso e experiência dos séculos5.
Say (1841, p.26) recrimina ainda Condorcet, Turgot e Condillac por se associarem aos
fisiocratas, acusando o último desses autores de construir em seu livro6 sobre Economia
um sistema arbitrário sobre assunto de que nada entenderia.
David Ricardo, por sua vez, é acusado do mesmo pecado de irrealismo, resultante da
adesão a pressupostos abstratos meramente hipotéticos, como aqueles utilizados em seu
modelo de crescimento. Lembremos novamente que o abuso das simplificações
utilizadas pelo autor será condenado por Malthus, pelas diversas abordagens históricas
da Economia, além de receber mais tarde o rótulo “vício ricardiano”. Essa rejeição
indica que a opinião de Say não era algo isolado.
Em diversos pontos da obra do economista francês, encontramos uma oposição
metodológica à escola de Ricardo. Em uma nota de rodapé do Tratado, Say (1841, p.
278) acusa os economistas ingleses de “transformarem a economia em uma metafísica
obscura, incapaz de servir como guia na prática”. No seu ensaio sobre Economia na
Enciclopédia Progressiva, Say (1826, p. 57-8) invoca as teorias do valor trabalho e da
renda da terra como exemplo de explanações descoladas da realidade, colocando
Ricardo ao lado de Quesnay como construtor de sistemas imaginários:
Pretender que a quantidade de produtos agrícolas exigidos pelas necessidades da
sociedade não tem influência sobre seu valor é negar a experiência. Fingir que o
trabalho é a única fonte de toda riqueza é negá-la igualmente; é a contrapartida de
Quesnay, que alegou, pelo contrário, que o trabalho não produziu nada e que a terra
produziu tudo. É lamentável que a ciência introduza argumentos escolásticos para
substituir as induções sugeridas pelo senso comum à natureza das coisas. Nas
ciências físicas, um princípio é baseado em experimentos e observações e não em
silogismos. Tudo indica que as ciências morais e políticas não progredirão enquanto
não aplicarem o método experimental, indicado por Bacon, aperfeiçoado por
Galileu, Newton, e à qual as ciências naturais devem o espantoso progresso que elas
têm feito hoje em dia.7

5
Au lieu d'observer d'abord la nature des choses, c'est-à dire la manière dont les choses se passent, de
classer leurs observations, et d'en déduire des généralités , ils commencèrent par poser des généralités
abstraites, qu'ils qualifiaient du nom d'axiomes, et où ils croyaient voir briller par elle-même l'évidence.
Ils cherchaient ensuite à y ramener les faits particuliers, et en déduisaient des règles; ce qui les engagea
dans la défense de maximes évidemment contraires au bon sens et à l'expérience des siècles, ainsi qu'on
le verra dans plusieurs endroits de ce livre.
6
Condillac (1997).
7
Prétendre que la quantité des produits agricoles que réclament les besoins de la société, n’exerce
aucune influence sur leur valeur, c’est démentir l’expérience. Prétendre que le travail est l’unique source

39
Em contraste com os construtores de sistemas, Say elege Adam Smith como o modelo a
ser seguido, distante tanto das falácias mercantilistas quanto das fisiocratas. Em uma
das Cartas a Malthus, Say (1821, p. 19) revela sua admiração pelo economista escocês:
Eu reverencio Adam Smith - ele é meu mestre. Quando dei os primeiros passos na
economia política, e quando ainda estava cambaleando, fui empurrado pelos
defensores do superávit comercial de um lado, e os defensores do produto líquido do
outro, eu tropecei em cada movimento - ele me mostrou o caminho verdadeiro.
Apoiado por sua Riqueza das Nações, que mostra ao mesmo tempo sua própria
riqueza intelectual, aprendi a ir sozinho. Agora deixei de pertencer a qualquer
escola, e escaparei do tipo de ridículo que acompanhava padres jesuítas que
traduziam os Elementos de Newton com anotações.8
Em termos metodológicos, é interessante notar em Say a crença, típica da visão de
mundo empirista em várias épocas, de que seria possível se guiar apenas pelos fatos,
livres de pressuposições. Como vimos pelo exemplo de Say, isso naturalmente leva o
cientista a acreditar que as próprias opiniões seriam unicamente científicas, em contraste
com o caráter ideológico das opiniões alheias.
Mas em que diferiria o método de Smith em relação aos procedimentos encontrados nas
obras dos demais economistas? Segundo Say, Smith adota uma perspectiva concreta,
realista: as afirmações econômicas deste último poderiam ser facilmente verificadas
pela observação e jamais foram derivadas de preceitos puramente metafísicos. Para Say
(1841, p. 37), “[a]ssim como Bacon revelou a vacuidade da filosofia de Aristóteles,
Smith mostrou a falsidade de todos os sistemas em Economia”. Say pretende nessas
bases construir o edifício apenas esboçado por Smith, em cada passo evitando
abstrações em favor de análise que sempre tenha aplicações práticas. Say (1841, p. 38)
afirma que leu tudo em Economia para esquecer em seguida, para não ser influenciado
por preceitos metafísicos.
Como ciência, também a Economia deveria ter suas proposições justificadas ou
provadas a partir de fatos incontestes, fazendo com que as proposições dessa ciência
tenham caráter de verdades definitivas: “A economia política, ... é estabelecida em bases
inabaláveis, desde que os princípios que servem de base sejam deduções rigorosas de
fatos gerais incontestáveis” (SAY, 1841, p.6). No Curso Completo, Say (1840, p. 8)

de toute richesse, c’est la démentir également ; c’est faire la contrepartie de Quesnay, qui prétendait, au
contraire, que le travail ne produisait rien et que la terre produisait tout. Il est fâcheux pour la science
qu’on y introduise des argumentations scolastiques pour remplacer les inductions que suggère au bon
sens la nature des choses. Dans les sciences physiques on fonde un principe sur des expériences et des
observations et non sur des syllogismes ; tout porte à croire que les sciences morales et politiques ne
feront des pas assurés que lorsqu’on leur appliquera cette méthode expérimentale, indiquée par Bacon,
perfectionnée par Galilée, par Newton, et à laquelle les sciences naturelles doivent les étonnans progrès
qu’elles ont faits de nos jours.
8
I revere Adam Smith—he is my master. When I took the first steps in political economy, and when still
tottering I was pushed by the advocates of the balance of commerce on the one side, and the advocates of
net produce on the other, I stumbled at every move—he shewed me the true path. Supported by his Wealth
of Nations, which shews at the same time his own intellectual wealth, I learned to go alone. Now I have
ceased to belong to any school, and I shall escape the sort of ridicule which attached to the reverend
father Jesuits who translated the Elements of Newton with annotations.

40
reforça sua adesão ao justificacionismo filosófico9, afirmando que a Economia requer
provas e que estas são fornecidas pela experiência e experimentação, conforme os
eventos observáveis ocorram.
Mais adiante, nessa última obra (p. 15) encontramos uma manifestação de que mais
tarde será conhecido como o critério de demarcação verificacionista entre ciência e não
ciência: a gravitação seria uma lei da natureza e não parte de um sistema, pois teria sido
verificada por todas as observações até o momento.
Chegamos com isso em um ponto crucial da metodologia do autor, que se relaciona com
o conteúdo de sua teoria econômica. Para Say (1826, p. 50), a ciência requer medida e,
em Economia, esta é fornecida pela noção de igualdade de valor entre dois objetos
trocados. O fato de que os objetos que compõem a riqueza nacional possuem um valor
identificável nos mercados, passível de aumento e diminuição, forneceria a base
científica para a Economia, o que a “tiraria do domínio da fantasia”.
Como teria sido Smith a estabelecer que a riqueza é identificável com o valor de troca
das coisas úteis, valor esse passível de criação, conservação, acúmulo e consumo, Say
(1841, p. 28) conclui que a ciência econômica verdadeira só seria possível a partir de
Smith. Disso deriva-se também a definição do objeto da investigação de tal disciplina,
que Say (1826, p. 3; 1840, p. 1) prefere chamar de “economia social”.
Tal definição é objeto da primeira pergunta do Catecismo de Say (1826, p. 35), obra de
popularização científica do autor: “O que a economia política nos ensina? Ensina-nos
como a riqueza é produzida, distribuída e consumida na sociedade”.10
Por conseguinte, a Economia científica estaria restrita à produção de riqueza cujo valor
é determinado posteriormente nos mercados:
Acrescentarei que só eles podem se tornar objeto de um estudo social, porque
somente eles são rigorosamente apreciáveis; só eles seguem, em sua formação, sua
distribuição na sociedade e seu consumo, regras invariáveis, nas quais as mesmas
causas são sempre seguidas pelos mesmos efeitos. (SAY, 1840, p. 67)11
Depois de tratar do modelo da ciência em geral e da definição do objeto de pesquisa da
ciência econômica em particular, devemos abordar as peculiaridades metodológicas
dessa disciplina, que farão parte do cânone da metodologia da escola clássica.
Diante da complexidade dos fenômenos econômicos, com cada grandeza sendo
influenciada por miríades de fatores heterogêneos que interagem entre si, modificando-
se continuamente, sendo ainda em larga medida inobserváveis, como aquelas de
natureza mental e ainda não passíveis de controle, o economista se depara com o desafio

9
Bartley (1964).
10
Qu'est-ce que nous enseigne l'économie politique? Elle nous enseigne comment les richesses sont
produites, distribuées et consommées dans la société. Ver também Say (1840, p. 4)
11
J'ajouterai qu'elles peuvent seules devenir l'objet d'une étude socientifique, car elles seules sont
appréciables rigoureusement; seules elles suivent, dans leur formation, leur distribuition das la société,
et leur consommation, des règles invariables, où les mêmes causes sont touojours suivies des mêmes
effets.

41
de aplicar o programa empirista defendido acima. Diante das dificuldades listadas,
como gerar conhecimento sólido, provado, baseado na observação? O pensamento
mercantilista, por exemplo, também seria conhecido pelo apelo à observação (de fluxos
comerciais) e por fazer uso da “aritmética política” de Petty (extrapolação de tendências
a partir dos dados disponíveis), embora seja considerado por Say como um “sistema” e
não como ciência.
Para lidar com esse problema o autor utiliza a distinção entre fatos gerais e fatos
particulares, calcada na separação entre relações constantes e regularidades observadas
que estão sujeitas aos efeitos da presença simultânea de causas perturbadoras.
Utilizando a interessante metáfora empregada por Say (1841, p. 5), a existência de
chafarizes não contrariaria a lei da gravidade:
A economia política, tal como é estudada no presente, é inteiramente fundamentada
em fatos; pois a natureza das coisas é um fato, assim como o evento que resulta
disso. Os fenômenos dos quais busca dar a conhecer as causas e os resultados,
podem ser considerados como fatos gerais e constantes, que são sempre os mesmos
em todos os casos semelhantes, ou como fatos particulares que também ocorrem em
virtude de leis gerais, mas onde várias leis agem ao mesmo tempo e modificam
umas às outras sem se destruir; como nos jatos d’água de nossos jardins, onde
vemos as leis da gravidade modificadas pelas leis de equilíbrio, sem que por isso
deixem de existir. A ciência não pode pretender tornar conhecidas todas essas
modificações que são renovadas a cada dia e variam infinitamente; mas expõe as leis
gerais e as esclarece através de exemplos, a partir dos quais todo leitor pode
constatar a realidade12.
Essa distinção leva Say (1841, p. 7; 1840, p. 5) a separar a teoria econômica pura,
preocupada com fatos gerais, da Estatística e História, que lidam com os fenômenos
referentes a locais e épocas específicas, com todos os fatores atuando simultaneamente.
Como não é possível observar todos as causas atuantes em uma dada situação, fatos
particulares isolados não seriam capazes de refutar uma lei científica que identifica uma
relação empírica entre um subconjunto de fatores, pois não é possível determinar se
algum outro fator seria responsável pelos fenômenos observáveis que aparentemente
contrariam uma lei.
Com isso, Say (1841, p. 5) separa ciência genuína dos sistemas. A presença simultânea
de múltiplas causas faz com que não haja opinião extravagante que não tenha sido
apoiada em fatos concretos, como seria o caso das opiniões mercantilistas sobre os
efeitos dos superávits comerciais. A abordagem científica, por outro lado, apela não a
um grande número de fatos, mas a fatos “essenciais e verdadeiramente influentes”. O

12
L’économie politique, telle qu’on l’étudie à présent entière fondée sur des faits ; car la nature des
choses est un fait, aussi bien que l'événement qui en résulte. Les phénomènes dont elle cherche à faire
connaître les causes et les résultats, peuvent être considérés ou comme des faits généraux et constans qui
sont toujours les mêmes dans tous les cas semblables, ou comme des faits particuliers qui arrivent bien
aussi en vertu de lois générales, mais où plusieurs lois agissent à la fois et se modifient l'une par l'autre
sans se détruire; comme dans les jets-d'eau de nos jardins, où l'on voit les lois de la pesanteur modifiées
par celles de l'équilibre, sans pour cela cesser d'exister. La science ne peut prétendre à faire connaître
toutes ces modifications qui se renouvellent chaque jour et varient à l'infini ; mais elle en expose les lois
générales et les éclaircit par des exemples dont chaque lecteur peut constater la réalité.

42
método de Bacon recomenda o gradual estabelecimento de correlações reais e descarte
de relações espúrias, até que se chegue à essência das coisas.
Para Say, os poucos princípios fundamentais da Economia “derivam naturalmente” da
observação, pois todos reconhecem tais princípios assim que são enunciados. Say,
porém, nunca forneceu uma lista completa de pressupostos básicos, como mais tarde
faria Senior (1965). Como vimos, o único fundamento apontado é o argumento
encontrado em Smith segundo o qual a mensuração da riqueza decorre da igualdade de
valores em trocas nos mercados.
Sejam quais forem os pressupostos básicos utilizados, desde que reflitam a realidade por
serem derivados da observação, a ciência utiliza esses pressupostos para deles deduzir
consequências. Para Say (1840, p. 14), esse processo envolve leis, ou proposições
condicionais, como por exemplo “se houver economias de custos, então os preços são
reduzidos” se o caso examinado for plausível e frequente.
De todo modo, para Say (1841, p. 12), o modelo básico de ciência é aplicável à
Economia e pode ser condensado no processo com duas etapas, indução de pressupostos
e dedução de resultados:
Da mesma forma, as leis gerais das quais as ciências políticas e morais são
compostas existem apesar das disputas. Tanto melhor para aqueles que sabem
descobrir essas leis através de observações judiciosas e múltiplas, mostrar sua
conexão e deduzir as conseqüências. Eles derivam da natureza das coisas, tão
seguramente quanto as leis do mundo físico; nós não as imaginamos, nós as
encontramos.13
Se a lógica dedutiva transmite a verdade das premissas para as conclusões e as
premissas forem verdadeiras, já que fruto de observação, podemos dizer que a
existência de controvérsias se torna de fato problemática sob a perspectiva
justificacionista, que condiciona a racionalidade científica à capacidade de obtenção de
verdades incontestes.
Say (1841, p.12) minimiza a dificuldade apontando que as ciências físicas também
foram expostas a controvérsias em sua infância e que, apesar das dificuldades maiores14,
ainda assim a Economia seria capaz de gerar resultados indubitáveis. Nas palavras de
Say (1841, p. 44):
As ciências morais e políticas oferecem verdades igualmente incontestáveis, embora
de uma demonstração mais difícil; e entre essas ciências, a economia política talvez

13
De même, les lois générales dont se composent les sciences politiques et morales existent en dépit des
disputes. Tant mieux pour qui saura découvrir ces lois par des observations judicieuses et multipliées, en
montrer la liaison, en déduire les conséquences. Elles dérivent de la nature des choses, tout aussi
sûrement que les lois du monde physique; on, ne les imagine pas, on les trouve.
14
Segundo Say (1840, p. 40), a Economia mostra que o ouro vale mais do que o ferro, do mesmo modo
que a Física mostra que é mais pesado, a despeito do fato de que a categoria valor dizer respeito a uma
grandeza mental.

43
seja aquela em que conseguimos estabelecer o maior número desses princípios que
têm o caráter de certeza.15
Apesar de tomar a Física como modelo, Say (1841, p. 13-14) é cético sobre a utilidade
do uso da Matemática em Economia. Tal ceticismo é derivado da complexidade do
fenômeno econômico. Embora o valor da riqueza seja passível de quantificação, os
valores são influenciados por variáveis de natureza subjetiva. Devido à natureza dos
fatores que influenciam cada fenômeno econômico, pode-se saber a direção dos efeitos,
mas não sua magnitude, por mais detalhados que sejam os dados. Mais adiante (p. 364),
Say sumariza sua posição a respeito do tema:
Além disso, uma exatidão muito minuciosa nas avaliações da economia política é
inútil, sendo freqüentemente desmentida pelos fatos devido à influência de
considerações morais sobre fatos desse tipo, considerações que não admitem uma
precisão matemática. É por isso que a aplicação de fórmulas algébricas a essa
ciência é totalmente supérflua, e serve apenas para enchê-la de dificuldades sem
objeto. Smith não as usou uma única vez.16
Da complexidade superior dos fenômenos econômicos e consequente impossibilidade
de cálculos exatos deriva-se na Economia clássica a preferência pelo uso da linguagem
corrente. As relações científicas são tratadas em termos puramente abstratos, ou seja,
sem mencionar magnitudes específicas.
Esse argumento, que afirma que o uso da Matemática implica em capacidade de
mensuração de magnitudes concretas será contestada por Walras, como veremos mais
adiante, no final deste capítulo, quando tratarmos do mesmo tema nos escritos de Leroy-
Beaulieu.
A objeção ao uso da matemática exposto acima nos revela ainda a adesão de Say a outro
princípio, o subjetivismo metodológico; ou seja, a crença de que entre os dados
fundamentais da Economia estão aqueles de natureza mental ou psicológica. Nos termos
de Say (1826, p. 4), “o primeiro elemento das sociedades é o homem, tal como nos
mostra a observação, com suas faculdades e necessidades.” Tal fundamento se
manifesta de forma mais evidente em sua teoria do valor. Novamente utilizando as
palavras do próprio autor (1840, p.8), “... o valor é uma qualidade puramente moral e
parece depender da vontade fugidia e cambiante dos homens”17.
Se “o primeiro elemento das sociedades humanas” for de fato o homem, podemos
identificar a adesão, em algum grau, ao princípio do individualismo metodológico, que
pretende fornecer explicações emergentes dos fenômenos sociais, ou seja, explicações

15
Les sciences morales et politiques offrent des vérités tout aussi incontestables, quoique d'une
démonstration plus difficile; et parmi ces sciences , l'économie politique est peut-être celle où l'on est
parvenu à établir le plus de ces principes qui ont le caractère de la certitude.
16
Au surplus, une trop minutieuse exactitude dans les appréciations de l'économie politique est sans
utilité, et se trouve fréquemment démentie par les faits, à cause de l'influence des considérations morales
dans les faits de ce genre, considérations qui n'admettent pas une précision mathématique. C'est
pourquoi l'application des formules algébriques à cette science est tout-à-fait superflue, et ne sert qu'à la
hérisser de difficultés sans objet. Smith ne les a pas employées une seule fois.
17
Ver também Say (1841, p. 14).

44
que partem dos indivíduos, suas ações e relações mútuas para explicar fenômenos
sociais.
O último elemento metodológico da obra do autor que abordaremos diz respeito a
relação entre teoria econômica e as instituições. Say acredita que as sociedades se
desenvolvem, tal como os organismos. Embora as condições econômicas das sociedades
antigas, menos prósperas, fossem outras, a teoria econômica deveria, para Say (1826, p.
3), focar sua atenção nas economias modernas, em estágio mais avançado de
desenvolvimento. Isso não implica, na obra do autor, em postura historicista, segundo a
qual as leis da Economia seriam específicas a cada estágio de evolução da sociedade.
Pelo contrário, Say (1841, p. 381) é partidário da tese de que as leis da Economia são
universais:
A economia política sempre foi a mesma em todos os tempos. Mesmo nos
momentos em que seus princípios eram desconhecidos, eles agiam da maneira
exposta nesta obra; causas semelhantes foram sempre seguidas por resultados
semelhantes: Tiro foi enriquecido pelos mesmos meios que Amsterdã. 18
O institucionalismo adotado por Say, portanto, se assemelha mais ao
neoinstitucionalismo modero do que o institucionalismo alemão e americano.
Ainda sobre o contraste entre leis universais e manifestações históricas particulares, Say
(1840, p. 2) distingue as leis naturais da sociedade, estudadas pela teoria econômica e
que valem para todas as épocas, das organizações artificiais ou normas particulares
prevalecentes em cada situação:
O organismo artificial das nações muda com tempos e lugares. As leis naturais que
governam sua manutenção e operam sua conservação são as mesmas em todos os
países e em todos os momentos. Elas estavam presentes entre os antigos assim como
hoje em dia, só elas são mais conhecidas agora. Os capitais alimentaram a indústria
dos fenícios da mesma forma que alimentam a dos ingleses ... A natureza é antiga, a
ciência é nova.19
Tendo em vista essa distinção, a abordagem de Say é compatível com o estudo do
desempenho econômico de sociedades sob diferentes arranjos institucionais, que podem
ser comparados tomando como ponto de vista um mesmo conjunto de ferramentas
analíticas.
Depois de expor as teses metodológicas de Say, devemos listar alguns comentários
interpretativos e críticos a seu respeito. Forget (2001) nota que, a despeito da influência
smithiana sobre Say, este dá pouca ênfase ao conceito de ordem espontânea. Fazendo a
distinção entre ordem espontânea nos mercados e evolução espontânea das instituições,
a autora nota que em Say podemos encontrar esse elemento, por implicação, no

18
L’économie politique a été la même dans tous le temps. Même aux époques où les principes en étaient
méconnus, ils agissaient de la manière exposée dans cet ouvrage ; des causes pareilles étaient toujours
suivies derésultats semblables: Tyr s'enrichissait par les mêmes moyens qu'Amsterdam.
19
L'organization artificielle des nations change avec les temps et avec les lieux. Les lois naturelles qui
président à leur entretien et opérent leur conservation, sont les mêmes dans tous les pays et à toutes les
époques. Elles étaient chez les anciens, ce qu'elles sont de nos jours; seulement elles sont mieux connues
maitenant. ... Les capitaux alimenntaient l'industrie des Phéniciens de la même manière qu'ils alimentent
celle des Anglais... La nature est ancienne, la science est nouvelle.

45
primeiro caso. Já no que tange às instituições, o ambiente francês em geral e a
influência dos ideólogos20 em particular implicariam em maior espaço conferido ao
legislador. Encontraríamos em Say algo mais próximo a sugestão de criação deliberada
de instituições conducentes à prosperidade do que explicações evolutivas sobre
mudanças institucionais, como seria de se esperar de um adepto de Smith.
Passamos agora a considerar o que são fatos gerais para Say. Whatmore (1998) os
associa às concepções teóricas amplas, concernentes a visão de mundo dos ideólogos,
em particular Condorcet e Cabanis. Para Whatmore, a visão de mundo empirista dos
ideólogos, aplicada ao problema de desenho de instituições apropriadas a uma república
francesa pós-revolução, determinaria o que deva ser considerado como fato geral.
No nosso exame da metodologia do autor, porém, mostramos o que o autor entende por
fatos gerais. Relatamos acima como Say lida com a multiplicidade de opiniões diante da
mesma realidade observada. Para Say, a distinção entre ciência e sistemas é efetuada
com o auxílio da separação entre fatos gerais e fatos particulares. Say explicitamente
menciona a observação de dados sobre a balança comercial como exemplo de
preocupação mercantilista com fatos particulares, descolados do quadro mais amplo de
funcionamento das economias. Fatos gerais, pelo contrário, seriam aqueles associados
aos conceitos econômicos presentes na obra de Smith e utilizados no próprio tratado de
Say.
Examinemos ainda outra tese que diz respeito à metodologia em Say. Salerno (1985)
procura identificar a influência de Cantillon sobre Say no que diz respeito ao tema. Em
primeiro lugar, para esse comentarista, Say seria influenciado em matéria de teoria por
Cantillon, Quesnay, Turgot e Condillac. Além disso (p. 312), a metodologia de
Cantillon influenciaria Say por meio da crítica que este último faz ao método de Smith:
a economia seria um corpo de estrutura integrada de princípios gerais abstratos, ao
passo que a obra de Smith careceria de método.
Ora, tendo em vista nosso detalhado exame das crenças metodológicas de Say, é fácil
perceber que essa tese não se sustenta. Say se coloca como seguidor do método
empírico de Smith, não como seu crítico.
Além disso, não existe nos Ensaios de Cantillon nenhuma discussão sobre metodologia.
Mas, se por metodologia for entendido algo derivado da prática científica, influência
indireta de fato existe, a despeito da crença contrária por parte do próprio Say, que
afirma ter lido e esquecido tudo que qualquer autor exceto Smith teria escrito. Em
termos teóricos, Say foi influenciado principalmente por Smith, cuja obra por sua vez
reflete de fato as contribuições de Cantillon, Quesnay e Turgot. Como veremos no
próximo capítulo, a influência de Cantillon sobre a fisiocracia e desta sobre a economia
clássica é fundamental.

20
No capítulo 4 trataremos do conjunto de crença do grupo conhecido como os ideólogos.

46
Quando às influências diretas, em parte alguma Say cita Cantillon, seja nas breves
descrições sobre a evolução da Economia ou mesmo nas notas de rodapé que listam
inúmeros autores menos conhecidos. Como veremos, Cantillon, assim como Smith,
influencia diretamente G. Garnier e Roederer. Mas por algum motivo Cantillon foi cada
vez menos lembrado a partir do início do século dezenove, a despeito de sua
importância para a economia clássica, até ser redescoberto por Jevons.
Quanto à crítica que Say dirige ao método de Smith, esta se refere à organização pobre
da estrutura da Riqueza das Nações. Os Ensaios de Cantillon e o Tratado de Say, em
contraste com o texto de Smith, se distinguem precisamente por apresentarem uma
estrutura integrada de princípios gerais dos quais se derivam resultados que são
ilustrados historicamente, de maneira lógica e ordenada. Se uma obra for bem
organizada, terá essa estrutura, pois é a estrutura mesma dos tratados científicos. Não se
pode a partir disso concluir por influência da metodologia de um autor sobre o outro.
Pelo contrário, como vimos acima, Say atribui a Smith a criação da teoria econômica
justamente por introduzir nessa disciplina o método empírico que considera correto,
inspirado no empirismo baconiano.
Embora em termos filosóficos a concepção de ciência de Say seja ultrapassada, ainda
assim vale a pena empreendermos uma análise crítica devido a importância que terá
para o desenvolvimento posterior da escola clássica francesa.
Como afirmamos acima, os problemas com a metodologia de Say são os mesmos que
dizem respeito à filosofia baconiana: os ídolos descritos por este último autor são
inexorcizáveis: em outros termos, não existe observação livre de teoria. No caso de Say,
não é possível, como quer o autor, utilizar-se de observação pura, livre de hipóteses. Seu
ponto de partida, Adam Smith, utiliza pressupostos cruciais tomados dos mesmos
autores pertencentes à “seita dogmática” de Quesnay. A concepção plutológica de
economia, que define Economia como o estudo do processo de reprodução de um ciclo
composto de produção, distribuição e consumo de riqueza, tem origem que remonta
pelo menos a Cantillon e passa por Quesnay e Turgot, antes de dar título ao primeiro
livro da Riqueza da Nações. As observações econômicas de Smith, portanto, não são
primitivas, retiradas diretamente da observação, mas dependem crucialmente das teorias
que esses autores utilizaram para interpretar o mundo.
A interpretação da economia dada por Say, além disso, não é única ou sua superioridade
revelada pela observação. Tomemos a concepção rival desenvolvida por Condillac. Esse
último enxerga os fenômenos econômicos sob o ponto de vista catalático, interpretando
relações econômicas como trocas. Ao adotar o pressuposto de que o valor é subjetivo,
uma avaliação individual da importância que os bens trocados têm para cada um,
Condillac conclui que uma troca envolve valores diferentes, com cada pessoa abdicando
de algo que vale menos por algo que vale mais. Isso se choca com a tese adotada por
Say de que os valores trocados são os mesmos.

47
Sem levar em conta diferenças de significado das definições e o exame das inúmeras
consequências lógicas e empíricas das duas teorias, não há como decidir de forma
inconteste, pela observação, qual concepção seria metafísica e qual refletiria a realidade.
De todo modo, ao longo da evolução da disciplina, o pressuposto adotado por Say deu
lugar a partir da revolução marginalista ao pressuposto adotado por Condillac. De todo
modo, seria fácil inverter o argumento de Say, acusando a tese de igualdade de valor
como preconceito metafísico: afinal, encontramos essa tese em Aristóteles, o próprio
vilão da filosofia de Bacon.
A acusação de que Condillac não entenderia nada de economia, por sua vez, revela uma
consequência não intencional importante do empirismo ingênuo de Say. Como mostrou
Hayek (1979) em sua crítica ao positivismo, as filosofias que pretendem combater o
dogmatismo utilizando o pressuposto de que a ciência seria capaz de estabelecer
verdades definitivas acabam recaindo no próprio dogmatismo que condenam, pois não
valoriza a diversidade de opiniões e o pluralismo, necessários para lidar com o caráter
falível do conhecimento e portanto com os mecanismos de correção de erros
responsáveis pelo progresso científico. Já para toda forma de positivismo e também para
Say, a existência de diversidade de opiniões é um embaraço, um sinal de
subdesenvolvimento científico. O tom dogmático presente no discurso metodológico de
Say, ilustrado em alguma das citações ao longo desta seção, corroboram o argumento de
Hayek.
De todo modo, em termos da história do pensamento econômico, a crença errônea de
Say de que Smith teria partido da observação empírica e não das teorias econômicas
prévias ajudou a consolidar a crença de que Smith seria um pai fundador da disciplina
(o mito do criacionismo intelectual que discutimos na introdução deste trabalho),
reforçando ainda a percepção de que Say seria apenas um popularizador francês das
ideias de Smith, a despeito das mudanças (necessariamente incrementais) que efetuou
no corpo da doutrina econômica.
Na prática, o desprezo de Say pela tradição teórica anterior a Smith apenas fez com que
essa tradição marcasse a disciplina de forma indireta, por intermédio de sua influência
na obra do economista escocês. A perda de riqueza intelectual na disciplina causada
pela desconsideração desses primeiros economistas, porém, será remediada aos poucos
ao longo da evolução da escola clássica francesa, conforme os autores progressivamente
passam a recuperar a influência direta dos autores desprezados por Say.
Por fim, devemos analisar a relação entre a metodologia de Say e sua teoria econômica.
A despeito da crença de que os economistas raramente seguem suas próprias prescrições
metodológicas, podemos dizer que a rejeição dos sistemas e das abstrações que não
possam ser ilustradas historicamente de fato caracterizam a obra do autor. Ao contrário
dos textos de Ricardo, cuja leitura sempre invoca dúvidas sobre o que está sendo dito
exatamente, a leitura de Say é sempre clara. Cada relação teórica exposta é seguida por
ilustrações concretas, muitas vezes tiradas do setor de algodão, mercado no qual o autor
atuara como empresário.

48
Se diversos autores, ao avaliar a obra de Say, associam clareza com superficialidade,
associamos aqui essa clareza com as escolhas metodológicas do autor. Assim como o
manifesto do positivismo lógico21 rejeita o discurso metafísico e conhecimento
pretensamente profundo, o empirismo de Say também procura cultivar clareza de
exposição.
Além dos preceitos metodológicos que naturalmente o inclinavam para uma abordagem
realista, a clareza dos textos de Say se relaciona com a crença comum aos ideólogos
sobre a necessidade de instruir a população sobre os princípios básicos da Economia,
para que a opinião pública pressione o poder público na direção de políticas voltadas ao
interesse geral.
Por fim, a presença constante de ilustrações práticas nos trabalhos de Say se relaciona a
uma consequência de sua metodologia. Se a teoria for de fato revestida do status de
verdades finais, como quer o autor, restaria a quem vem depois apenas a tarefa de
ilustrar os princípios teóricos conhecidos através de casos concretos.
Tudo isso colabora para que a escola clássica francesa investisse bastante recursos em
economia aplicada, com frequência voltada à história econômica, como veremos mais
adiante.

2.2. Destutt de Tracy: a praxiologia empirista


Se Jean-Baptiste Say é a figura central entre os economistas da escola clássica francesa,
seu contemporâneo Antoine Destutt de Tracy é sem dúvida o principal autor no que diz
respeito às questões de Metodologia da Economia. As contribuições deste último a esse
campo de investigação serão aqui divididas em três tópicos. Em primeiro lugar,
trataremos da Epistemologia adotada pelo autor, derivada da filosofia sensacionalista de
Condillac. Em segundo lugar examinaremos como ele procura estabelecer os
fundamentos da teoria econômica nessa base filosófica. Ao realizar essa tarefa, Destutt
de Tracy propõe pela primeira vez, mais de um século antes de Mises [1949], que a
Economia seja vista como ramo da praxiologia, ou ciência geral da ação humana. Em
terceiro lugar mostraremos como o autor foi um pioneiro negligenciado do pensamento
metodológico da escola clássica. Destutt de Tracy, como Mill depois dele, fará da
Economia uma exceção à sua filosofia empirista, defendendo a tese da dualidade do
método, segundo a qual a complexidade do fenômeno social exige da Economia uma
abordagem dedutiva e baseada em argumentação verbal.
Iniciemos com os fundamentos filosóficos. Como é sabido, o Iluminismo foi
caracterizado pelo entusiasmo pelo racionalismo científico. Na geração seguinte, entre
os economistas franceses do início do século dezenove, esse racionalismo adota como
fundamento o empirismo inglês, para o qual o conhecimento sobre o mundo exterior é
obtido apenas pelos sentidos e não por ideias inatas. Na França, Condillac desenvolve o

21
Neurath, Carnap e Hahn (1973).

49
empirismo de Locke na direção do sensacionalismo, segundo o qual todo fenômeno
mental se reduz a percepções sensoriais. Partindo do experimento mental de imaginar
um ser humano como uma estátua desprovida de sentidos, Condillac investiga a
natureza do conhecimento a partir da gradual reintrodução nessa estátua de cada um dos
sentidos e especulando qual seriam seus possíveis atributos intelectuais a partir de cada
combinação de órgãos sensoriais considerados. Que noções, por exemplo, poderiam ser
concebidas por um indivíduo provido apenas de olfato? Como isso seria modificado se
o tato fosse acrescentado?
Embora a teoria econômica de Condillac expressa em Comércio e Governo [1776] não
influencie de forma significativa o Tratado de Economia Política [1817] de Destutt de
Tracy, a filosofia do primeiro é fundamental para a teoria econômica do segundo, pois
serve de base para a fundamentação filosófica em seu tratado e essa fundamentação é
seu aspecto mais notável. De fato, o livro de Destutt de Tracy não pretende ser uma obra
completa de Economia, mas apenas uma parte do seu projeto editorial mais amplo, que
trata da ideologia, a ciências das ideias. Dessa obra mais geral, o volume que trata de
Economia é apresentado como um estudo sobre as consequências sociais da vontade
(volonté), que por sua vez seria um atributo mental passível de análise a partir do
sensacionalismo de Condillac.
O Tratado de Destutt de Tracy (1970, p. 40) se inicia com um resumo da ciência das
ideias. A perspectiva é inteiramente tomada de Condillac, com a redução dos fenômenos
mentais às sensações:
Penso, então, que podemos considerar as palavras percepção e ideia como sinônimos
em sua significação mais extensa, e pelas mesmas razões as palavras pensamento e
sentimento também como equivalentes quando tomadas em toda a sua generalidade:
pois todos os nossos pensamentos são coisas sentidas; e se não fossem sentidas, não
seriam nada.22
Utilizando a metáfora da estátua, um ser exposto às impressões sensoriais pode
preservar essas sensações na forma de memória, o que dá origem a julgamentos sobre
bem-estar proporcionado por essas diferentes sensações, o que por sua vez dá origem à
vontade, faculdade mental a partir da qual o autor pretende derivar sua teoria
econômica. Odores associados a alimentos, por exemplo, são sensações que se fixam na
memória, dando origem ao entendimento sobre o nexo causal entre ingestão do alimento
e sensação de saciedade, gerando por sua vez ao conceito de vontade. Dessa maneira,
sensação, memória, julgamento e vontade seriam as quatro “faculdades primordiais do
entendimento humano” (p. 37), derivadas inicialmente da capacidade sensorial.
Estabelecida a perspectiva empirista a respeito da natureza da cognição humana,
passamos para as questões fundamentais da Filosofia da Ciência, acerca das formas de
aprendizado. Destutt de Tracy segue o padrão do racionalismo de sua época, adotando o
que mais tarde Bartley (1964) chamará de perspectiva justificacionista sobre a

22
I think then, that we may regard the words perception and idea as synonymous in their most extensive
signification, and for the same reasons the words think and feel as equivalent also when taken in all their
generality: For all our thoughts are things felt; and if they were not felt they would be nothing.

50
racionalidade. Como já observamos na seção anterior, nessa perspectiva o caráter
racional do conhecimento se identifica com a capacidade de justificá-lo ou prová-lo a
partir de alguma autoridade inconteste. No caso, tal autoridade é fornecida pela
observação, de forma que o conhecimento racional é definido como aquele justificado
empiricamente.
Na perspectiva sensacionalista do autor, o ponto de partida que não requer justificação é
dado pela observação sensorial. Essa crença é expressa por Destutt de Tracy (1970, p. 2)
em termos de duas proposições, tratadas como fatos básicos: i) estamos “perfeitamente,
completamente e necessariamente certos” sobre nossos sentimentos, que é nosso dado
último e ii) nenhum julgamento isolado pode ser errôneo, pois nossa percepção é a
realidade última.
Se tomarmos como fundamento os dados sensoriais dos quais não seria possível
duvidar, o emprego da lógica dedutiva transmite a verdade para qualquer conclusão
baseada em inferência logicamente válida. O autor nomina “justo” um argumento válido
que se utiliza de premissas corretas. Utilizando argumentos justos, o conhecimento se
torna sólido, indubitável.
Isso nos coloca imediatamente a questão da origem de ideias falsas. Para o autor, erros
advêm de uso em contexto inadequado de signos previamente usados. Uma nova
observação pode ser interpretada erroneamente como membro de classe previamente
definida e que na verdade não se aplica ao caso. A certeza atribuída por Destutt de
Tracy (1970, p. 16-17) ao conhecimento depende então da compreensão cuidadosa dos
elementos que compõem uma ideia que esteja sob avaliação:
Este é o último e mais essencial dos princípios lógicos; pois, ao segui-lo, podemos
permanecer na ignorância, mas nunca podemos cair no erro; todos os nossos erros
surgiram sempre da admissão naquilo que conhecemos de elementos que não estão
realmente lá e que nos conduzem a consequências que não deveriam seguir daqueles
que efetivamente estão presentes.
Com efeito, se de nossas primeiras impressões, das ideias mais simples as mais
gerais e suas combinações mais complicadas, nunca reconhecêssemos em nossas
percepções sucessivas senão o que lá existe, nossas últimas combinações seriam tão
irrepreensíveis como o primeiro ato de nossa sensibilidade. Assim, em rigor lógico,
é muito certo que nunca devemos formar um julgamento a não ser quando vemos
claramente que o assunto inclui os atributos: isto é, que o julgamento é justo.23
Quando faltam os elementos para que alguma proposição seja avaliada, devemos
suspender o julgamento até que mais informações sejam obtidas ou empreguemos
métodos estatísticos. Discutiremos essas questões quando tratarmos de questões

23
This is the last and most essential of logical principles; for in following it we may possibly remain in
ignorance, but we can never fall into error; all our errors arising always from admitting into that which
we know elements which are not really there, and which lead us to consequences which ought not to
follow from those that are there effectively.
In effect, if from our first impressions the most simple to our most general ideas, and their most
complicated combinations, we have never recognized in our successive perceptions but what is there, our
last combinations would be as irreproachable as the first act of our sensibility. Thus, in logical rigour, it
is very certain that we ought never to form a judgment but when we see clearly that the subject includes
the attributes: that is to say, that the judgment is just.

51
específicas ao método da Economia. Antes, porém, examinaremos como o autor aplica
o programa metodológico aqui esboçado para fundamentar a teoria econômica.
Na execução dessa tarefa nos deparamos com o aspecto mais peculiar do pensamento
metodológico de Destutt de Tracy; a saber, sua tentativa de colocar ordem ao corpo
doutrinário da teoria econômica.
Embora reconhecendo a importância da nova economia de Adam Smith, sobretudo em
relação à superação dos problemas inerentes ao pensamento fisiocrático, os economistas
franceses se depararam com o problema posto pelo caráter não sistemático do texto
smithiano. Entre os autores franceses, Germain Garnier e J.- B. Say procuraram antes de
Tracy fornecer uma síntese do pensamento de Smith e dos demais economistas, síntese
essa que fosse exposta de maneira lógica e ordenada, tal como ocorre nos trabalhos
econômicos de Cantillon e Condillac.
Destutt de Tracy procurou realizar essa tarefa a partir da fundamentação da teoria
econômica na filosofia sensacionalista, de maneira que a disciplina pudesse ser exposta
de forma mais lógica, partindo de princípios, derivando resultados e ilustrando estes
últimos com exemplos concretos. O resultado foi uma concepção de economia
surpreendentemente parecida com aquela proposta no século vinte por Ludwig von
Mises [1949] em Ação Humana.
Como Mises, Destutt de Tracy organiza a Economia como uma ciência voltada ao
estudo das implicações da noção de ação humana, ou praxiologia, se utilizarmos o
termo adotado por Mises. De fato, Destutt de Tracy denomina “De Nossas Ações” o
título da parte do Tratado da Vontade dedicado à teoria econômica propriamente dita,
que segue a exposição da fundamentação filosófica de sua própria versão de
praxiologia. Novamente como Mises, Destutt de Tracy dedica cerca de noventa páginas
para considerações filosóficas e metodológicas, antes de iniciar a exposição de sua
teoria econômica. Como Mises, Destutt de Tracy expõe essa teoria sob uma perspectiva
subjetivista, ou seja, partindo da lógica situacional dos indivíduos, em vez de objetos
físicos definidos como riqueza. Os dois autores ambicionam ainda gerar a teoria
verdadeira, solidamente assentada sobre pressupostos irrefutáveis. Eles divergem, no
entanto, em relação ao tipo de fundamentação filosófica escolhida. Se Mises assenta sua
praxiologia em bases kantianas, com a lógica da ação derivada da própria natureza da
mente humana e as categorias praxiológicas constituiriam conhecimento sintético a
priori, na obra de Destutt de Tracy a lógica da ação humana é tomada de uma tradição
filosófica rival, o sensacionalismo empirista.
Esses pontos de partida díspares, no entanto, não serão responsáveis pela maioria das
diferenças de substância entre as duas teorias econômicas. Como costuma acontecer na
história da análise econômica, os economistas não seguem à risca suas prescrições
metodológicas. Serão hipóteses não derivadas de seus sistemas filosóficos aquelas
responsáveis pelas principais diferenças. Examinemos então a maneira como Destutt de
Tracy deriva sua praxiologia pioneira.

52
Utilizando o quarto modo de sensibilidade, a vontade, vista como a faculdade de
considerar algo preferível à outra coisa (p. xi), Destutt de Tracy deriva inicialmente as
noções de individualidade, personalidade, propriedade individual das próprias
faculdades do ser e de coisas exteriores. A observação dos efeitos dos estímulos
sensoriais externos sobre um ser sensível e dos efeitos dos estímulos gerados pelo
funcionamento do próprio organismo permite, mediante a passagem do tempo, que um
indivíduo tome consciência de sua existência e do mundo exterior. Esta é a parte mais
metafísica e menos convincente do argumento.
No que diz respeito mais diretamente à Economia, a vontade dá origem ao conceito de
ação humana, que supõe os conceitos de meios e fins: “Quando nosso sistema sensível
reage no nosso sistema muscular, esses desejos têm a propriedade de dirigir nossas
ações e portanto de produzir todos os nossos meios” (p. xii). Dessa maneira, a
Economia deve ser calcada na relação entre meios e fins para a satisfação das nossas
necessidades.
Isso convida ao uso de algum pressuposto comportamental, tal como a maximização de
felicidade líquida utilizada pelo utilitarismo. Na França, a filosofia empirista dá origem
a uma forma de utilitarismo, manifesta no Da Mente de Helvétius (1758). Como toda
forma de utilitarismo, a obra desse autor suscitou reações moralistas. Tal obra foi
condenada pelo governo e igreja na França, de forma que não é citada por Destutt de
Tracy. Este, porém, utiliza a noção de que a ação humana envolve o emprego de meios
para atingir fins. A forma como essa noção é expressa por Destutt de Tracy (1970, p.
88-9), porém, merece citação devido ao emprego dos termos “direitos” e “deveres” com
significados diferentes daqueles normalmente empregados:
Disso resulta que todo ser animado, em virtude das leis de sua natureza, tem o
direito de satisfazer todos os seus desejos, que são suas necessidades, e o único
dever de empregar seus meios da melhor maneira possível para a realização desse
objetivo; pois dotado de paixão, ele não pode ser condenado a sofrer senão o menos
possível, e dotado de ação, ele deve fazer uso disso para esse fim.24
Nota-se que o pressuposto comportamental, puramente positivo, é expresso com termos
que hoje soariam como normativos: como direitos e deveres. Aqui, “melhor maneira”
naturalmente implica em escassez e necessidade de escolha, não obrigação de fazer
algo.
Embora use como ponto de partida filosofia sensacionalista, aqui tampouco o
pressuposto comportamental implica adesão a hedonismo, como costumam sugerir os
críticos da Economia. Destutt de Tracy (p. 59), com efeito, descreve o conceito de fim
em termos bastante abstratos, próximos a formulação de Mises: o desejo de que a ação
implique na passagem de um estado de coisas atual que gera desconforto ou inquietude
(uneasiness) para outro estado avaliado como superior. O caráter subjetivista do

24
It follows from this, that every animated being, in virtue of the laws of his nature, has the right of
satisfying all his desires, which are his wants, and the sole duty of employing his means in the best
possible manner for the attainment of this object; for endowed with passion, he cannot be condemned to
suffer but as little as possible, and endowed with action, he ought to avail himself of it to this end.

53
argumento do autor é reforçado ainda pela ressalva (p. 56) de que os fins não precisam
refletir “necessidades reais”, mas também necessidades apenas imaginadas. Além disso,
o autor (p. 59) explicitamente inclui o saber, uma necessidade intelectual, como um dos
objetivos da ação.
Também como Mises, Destutt de Tracy contrasta ação humana propositada com ação
reflexa, indicando o caráter geral ou abstrato de sua concepção a respeito da ação: ação
proposital se aplica a qualquer área na qual alternativas são sujeitas à comparação.
Quanto aos objetos da ação, Destutt de Tracy (1970, p. xiii) define bens como tudo
aquilo que direta ou indiretamente contribui para a satisfação da vontade. A liberdade,
definida positivamente como poder de exercício da vontade, é vista então como o
“primeiro bem”, ao passo que os obstáculos à vontade são classificados como males.
Os meios também têm sua origem na filosofia sensacionalista: a fonte primária de
riqueza, para o autor, consiste no emprego da força humana, ou de forma mais geral, no
emprego de todas as nossas faculdades, inclusive mentais. Calcada na noção de ação
humana, o conceito de riqueza na obra de Destutt de Tracy (1970, p. 61) também tem
origem subjetiva, na utilidade dos bens para a satisfação da vontade:
E se não tivéssemos desejos, não teríamos as noções de riquezas e pobreza; porque
ser rico é possuir os meios de suprir nossos desejos, e ser pobre é ser privado desses
meios. Uma coisa útil ou agradável, ou seja, uma coisa cuja posse o torna um artigo
de riqueza, nunca é senão um meio próximo ou remoto de satisfazer uma vontade ou
um desejo de algum tipo.25
Para fins de discussão metodológica, o que expusemos até agora é o suficiente para que
tenhamos noção de como Destutt de Tracy pretende organizar a teoria econômica como
um sistema dedutivo a partir de primeiros princípios evidentes. No quarto capítulo deste
estudo, no qual examinaremos a teoria econômica do autor, veremos como ele utiliza
essas noções praxiológicas.
Depois de expor como a filosofia de Condillac é usada como ferramenta da teoria
econômica exposta por Destutt de Tracy, nos resta abordar as opiniões deste último a
respeito da metodologia dessa disciplina. Assim como ocorre com Say, boa parte das
teses metodológicas atribuídas à escola clássica inglesa, expostas por autores como
Senior, J.S. Mill, Cairnes e J. N. Keynes já aparecem no Tratado de Economia Política
de Destutt de Tracy, que por sua vez segue os fundamentos oferecidos por Condillac.
Este último, embora renomado filósofo empirista, dedica apenas um parágrafo a
questões do método da Economia, na penúltima página de seu livro dedicado a essa
ciência. Como em toda a tradição clássica que se segue, a complexidade do fenômeno
econômico é invocada para justificar a preferência pelo método dedutivo empregado na

25
And if we had not wants, we should not have the ideas of riches and of poverty; because to be rich is to
possess the means of supplying our wants, and to be poor is to be deprived of these means. An useful or
agreeable thing, that is to say a thing of which the possession is an article of riches, is never but a means
proximate or remote, of satisfying a want or a desire of some kind;

54
obra, que parte de conjunto pequeno de definições e proposições básicos dos quais
resultados são derivados e exemplificados historicamente. Nas palavras de Condillac
(1776, p. 326):
Nós conseguimos ver na primeira parte deste trabalho que a Ciência Econômica, que
é difícil porque é naturalmente complicada, torna-se fácil quando simplificada, isto
é, quando reduzida a algumas proposições elementares que, sendo determinadas com
precisão, se apresentam como verdades triviais. Então, essa ciência se desenvolve
por si só. As proposições surgem umas das outras, assim como muitas
consequências ou como proposições que são por sua vez idênticas; e a exposição da
questão revela sua solução de forma tão visível, que se pode achá-la sem a
necessidade de raciocinar.26
As opiniões sobre método da Economia no texto de Destutt de Tracy, que lembram
aquelas de Condillac27, surgem na discussão do primeiro sobre o uso da Estatística
quando não existem dados suficientes para verdades definitivas sejam determinadas pela
observação. Neste caso, a estatística seria aplicável com sucesso apenas a assuntos que
tratam de fenômenos simples. Condorcet e demais matemáticos, ilustra Destutt de Tracy
(p. 21), se ocupam com assuntos como jogos, loterias e empréstimos, assuntos sobre os
quais seria relativamente fácil determinar quais dados relevantes são desconhecidos.
A utilidade da Estatística, porém, seria substancialmente reduzida quando os dados são
“numerosos, sutis e complicados” (p. 22). Quando Condorcet aplica seus métodos ao
estudo de tribunais e assembleias, por exemplo, o tipo de pesquisa necessariamente é
confinado ao uso de hipóteses imaginárias, pouco relevantes para instituições concretas.
As ciências sociais, que fazem parte do que Destutt de Tracy denomina ideologia ou
ciência do entendimento humano, teriam pouco a ganhar com a aplicação desses
métodos. Os motivos que Destutt de Tracy apresenta para a ineficácia de métodos
formais e estatísticos em assuntos sociais serão os mesmos listados mais tarde por J. S.
Mill. As causas da impossibilidade de realização de cálculos úteis para situações
concretas são: a quantidade de variáveis que deve ser levada em conta, a
impossibilidade de observação de grande número delas, a natureza subjetiva dos dados
econômicos, como preferências, os problemas de quantificar instituições, as diversas
maneiras como as diferentes causas interagem uma com as outras, a frequência com a
qual os dados se alteram e a heterogeneidade dos fenômenos cujas diferenças relevantes
desaparecem em procedimentos de agregação.
Assim como mais tarde farão os economistas clássicos ingleses, Destutt de Tracy (1970,
p. 25) acredita que a maior complexidade dos fenômenos sociais, em comparação com
fenômenos físicos, aconselha ceticismo a respeito do poder de métodos estatísticos
empregados para avançar as ciências sociais:

26
We have been able to see in the first part of this work that Economic Science, which is difficult because
it is naturally complicated, becomes easy when it has been simplified, that is to say when one has reduced
it to some elementary propositions which, being determined with precision, appear trivial truths. Then
this science develops by itself. Propositions arise one from the other, as so many consequences or as
propositions that are in turn identical; and the statement of the question shows its solution so visibly, that
one finds it in some fashion, without the need to reason.
27
Para uma análise das semelhanças entre a metodologia dos dois economistas, ver Klein (1985).

55
Certamente, os graus da capacidade, da probidade dos homens, da energia e do
poder de suas paixões, preconceitos e hábitos, não podem ser estimados em
números. O mesmo ocorre com os graus de influência de certas instituições, ou de
certas funções, dos graus de importância de certos estabelecimentos, dos graus de
dificuldade de certas descobertas, dos graus de utilidade de certas invenções ou
processos. Eu sei que dessas quantidades, verdadeiramente inapreciáveis e
inumeráveis em todo o rigor da palavra, buscamos e até chegamos a certo ponto,
determinando os limites, por meio do número, freqüência e extensão de seus efeitos;
mas também sei que nesses efeitos ao quais somos obrigados a somar e agregar
como se fossem coisas perfeitamente semelhantes, para deduzir resultados, é quase
sempre e posso dizer sempre impossível desvendar as alterações e variações
tributáveis a causas simultâneas, de circunstâncias que interferem e de mil
considerações essenciais, de modo que somos forçados a classificar como iguais
uma multidão de coisas muito diferentes, para chegar apenas aqueles resultados
preparatórios que, posteriormente, levam a outros que não podem deixar de se tornar
inteiramente fantásticos.28
A ação simultânea de múltiplas causas, aliada à interação entre grandezas submersas por
agregações, caracterizam os fenômenos sociais. Desse modo, as ciências sociais
abordariam os objetos de pesquisa mais refratários ao emprego de métodos estatísticos.
Aqui, a despeito de seu pendor empirista, Destutt de Tracy recomenda o uso da teoria,
no caso a Ideologia, como ferramenta crucial para determinar quais são os elementos
chave para a compreensão dos fenômenos nessa área do saber.
Isso não implica que o autor seja completamente contrário ao uso da Estatística nesse
ramo do saber. Embora afirme (p. 26) que o uso da teoria “exercerá um serviço
inestimável à mente humana, impedindo que no futuro ela faça um uso pernicioso de
um de seus mais excelentes instrumentos [i.e., a Estatística]”, existiria algum espaço
para medição em Economia. Comentando Condorcet, Destutt de Tracy (1970, p. 27) se
revela descrente no que diz respeito a mensuração de variáveis psicológicas, nutrindo
esperanças que sejam aplicáveis aos fatores externos a mente que influenciam os
fenômenos econômicos:
Finalmente, como já anunciei, esta observação não destrói as grandes esperanças
que o gênio penetrante de Condorcet o fez conceber a partir do emprego do cálculo
em geral, e da probabilidade em particular, no avanço das ciências morais; pois se as
diferentes sombras de nossas idéias morais não podem ser expressas em números, e
se há muitas outras coisas relativas à ciência social, que são igualmente incapazes de
serem estimadas e calculadas diretamente, essas coisas dependem de outras que
geralmente as tornam redutíveis a quantidades calculáveis, se pudermos usar essa
expressão. Assim, por exemplo, os graus do valor de todas as coisas úteis e

28
Assuredly the degrees of the capacity, of the probity of men, those of the energy and the power of their
passions, prejudices and habits, cannot possibly be estimated in numbers. It is the same as to the degrees
of influence of certain institutions, or of certain functions, of the degrees of importance of certain
establishments, of the degrees of difficulty of certain discoveries, of the degrees of utility of certain
inventions, or of certain processes. I know that of these quantities, truly inappreciable and innumerable
in all the rigour of the word, we seek and even attain to a certain point, in determining the limits, by
means of number, of the frequency and extent of their effects; but I also know that in these effects which
we are obliged to sum and number together as things perfectly similar, in order to deduce results, it is
almost always and I may say always impossible to unravel the alterations and variations of concurrent
causes, of influencing circumstances, and of a thousand essential considerations, so that we are
necessitated to arrange together as similar a multitude of things very different, to arrive only at those
preparatory results which are afterwards to lead to others which cannot fail to become entirely
fantastical.

56
agradáveis, isto é, os graus de interesse que atribuímos à sua posse não podem ser
observados diretamente por números, mas todos aqueles que podem ser
representados por quantidades de peso ou extensão de uma coisa particular, se
tornam calculáveis e até comparáveis a uma com a outra. (p.27)29
Devido à importância para as discussões metodológicas que aflorarão mais tarde, a
partir da revolução marginalista, devemos destacar que essa opinião do autor a respeito
da não mensurabilidade da utilidade se assemelha com a futura opinião de Jevons:
embora não possa ser medida diretamente, seria possível medi-la indiretamente via seus
efeitos sobre entes quantificáveis, como preços e quantidades de bens.
Mas, em geral, quando tratamos de dimensões não quantificáveis, a Economia deveria
“empregar apenas os instrumentos ordinários de raciocínio, isto é, nossas linguagens
vulgares, suas formas e as palavras que a compõem” (p. 29). A defesa do emprego da
linguagem corrente será também parte da metodologia clássica inglesa, que por sua vez
será combatida por Edgeworth (1881), seguidor de Jevons, que empregará a expressão
desdenhosa “economia literária” para se referir à Economia que não emprega métodos
matemáticos.
O que expomos acima basta para estabelecermos a tese de que a metodologia da
Economia desenvolvida pelos clássicos ingleses repete os argumentos sobre o assunto
discutidos por Destutt de Tracy, que desenvolve o trabalho de Say sobre o assunto. No
entanto, seria exagero afirmar, como faz Klein (1985), que o autor possa ser classificado
na tradição clássica dedutivista. Como Mill, Destutt de Tracy é um empirista que
defende a dualidade do método. Mas, ao contrário de Mill e dos demais autores
clássicos da Metodologia da Economia, Destutt de Tracy (1870, p. 51) não pretende
partir de axiomas gerados por “observação e introspecção”, como Nassau Senior ou de
axiomas sintéticos a priori, como Ludwig von Mises, mas almeja construir os princípios
da Economia a partir da aplicação do método empírico aos fundamentos da teoria das
idéias, ou ideologia. Tal projeto, se seus resultados forem vistos como convincentes,
manteriam a consistência filosófica do empirismo do autor.
Antes de passar para os próximos autores, é necessário dizermos algo a respeito da
compatibilidade entre as praxiologias propostas por Destutt de Tracy e por Mises.
Coincidem em seu propósito geral – explicar fenômenos econômicos em termos da
lógica das escolhas individuais. Divergem, no entanto, no seu real emprego: enquanto a
a versão de Mises efetivamente funciona como fundamento do tipo de teoria que esse

29
Finally, as I have before announced, this observation does not destroy the great hopes which the
piercing genius of Condorcet had made him conceive from the employment of calculation in general, and
from that of probability in particular, in the advancement of the moral sciences; for if the different shades
of our moral ideas cannot be expressed in numbers, and if there are many other things relative to social
science, which are equally incapable of being estimated and calculated directly, these things depend on
others which often render them reducible to calculable quantities, if we may use the expression. Thus for
example, the degrees of the value of all things useful and agreeable, that is to say, the degrees of interest
we attach to their possession cannot be noted directly by figures, but all those which can be represented
by quantities of weight or extension of a particular thing, become calculable and even comparable the
one with the other.

57
autor desenvolve, em Destutt de Tracy seu uso é limitado, pois a teoria básica é a
plutologia de Say.
Quanto ao tipo de filosofia empregada para a fundamentação da praxiologia, o contraste
entre apriorismo e empirismo não implica necessariamente que as duas versões seriam
irreconciliáveis em um sentido prático. Para Mises (2011), as categorias meios e fins
fazem parte da própria estrutura da mente humana: nós sequer conseguiríamos conceber
uma ação que não seja propositada ou reflexa. Um hipotético organismo de outro
planeta, entretanto, com histórico evolutivo diferente, poderia concebivelmente ter uma
mente estruturada de forma diversa. Sendo assim, o modo de funcionamento da mente
humana não exclui necessariamente uma explicação de origem empirista. Para Destutt
de Tracy, em particular, as noções de meios e fins decorrem da categoria denominada
“vontade”, um dos modos de sensibilidade, ou seja, originário da percepção sensorial.
Embora exclua predisposições e idéias inatas, o empirismo não seria incompatível com
a hipótese de evolução de aparato cognitivo que aprenderia via ação continuada das
sensações. Como o autor escreve antes do advento da teoria da evolução, porém, seria
ocioso especular sobre essa hipótese. De todo modo, a vontade é apresentada como uma
característica de um ser humano normal, não como uma consequência de um processo
particular de aprendizado. Assim, para os dois economistas, o homem visto como um
agente é o dado último sobre o qual a teoria econômica deveria ser fundada.

2.3. Storch e Rossi: a consolidação da metodologia clássica


Como Jean-Baptiste Say tornou-se o líder da escola clássica francesa e sua obra serve
como o molde teórico empregado pelos economistas filiados a essa escola, é natural que
suas crenças metodológicas, embora menos sofisticadas que as de Destutt de Tracy,
também sejam tomadas como referência pelos economistas que o sucederam. Nesta
seção mostraremos que este de fato é o caso. Isso não significa que os autores que
examinaremos em seguida não bebam de outras fontes ou que eles não discordem de
aspectos da metodologia de Say. Pelo contrário, a observação tem apenas o propósito de
indicar a formação de uma tradição comum de análise, em torno de certas teses
metodológicas.

O primeiro autor que examinaremos será Heinrich Friedrich von Storch, um autor russo,
mas que publicou em francês e cujo pensamento econômico é bastante influenciado por
Say. No início de seu Curso de Economia Política estão concentradas suas observações
metodológicas.
Nessa seção, intitulada “fundamentos e utilidade da economia”, encontramos uma
reexposição das crenças metodológicas de Say e, em menor grau, Sismondi. A
concordância com a opinião de Say é grande, tanto que o russo utiliza longas citações de
trechos desse último autor, referências que ocupam várias páginas de seu texto.

58
Quanto à definição do objeto de investigação da Economia, Storch (1823, p. 21) afirma
que essa ciência trata “das leis naturais que determinam a prosperidade das nações, ou
seja, sua riqueza e civilização”. Além da definição plutológica usual, centrada na
riqueza, o termo civilização é adicionado para dar conta da extensão do escopo da
disciplina pretendida pelo autor. Na parte final de seu livro, Storch trata dos bens
imateriais, como a saúde, o conhecimento, a moral, o gosto, a religiosidade e outros
bens que seriam produzidos, acumulados e consumidos com o auxílio de recursos
naturais e do trabalho, do mesmo modo como ocorre com a produção de riqueza
material. Como consequência de uma perspectiva mais subjetivista do que aquela
encontrada em Say, Storch inclui na teoria econômica tudo o que é considerado
desejável pelos agentes, ou seja, aquilo que chama de bens imateriais e não apenas as
coisas úteis que são sujeitas a trocas, como no caso de Say.
Isso implica em uma significativa ampliação do escopo da Economia, que só será
retomada plenamente com a metodologia desenvolvida pelos autores austríacos,
notadamente Mises (2011) e Robbins (1932), que tratam a disciplina como a lógica da
escolha sob escassez, uma ciência que diz respeito à relação entre meios e fins,
independente da natureza destes últimos. Na abordagem de Storch, assim como ocorrera
antes nos escritos de Destutt de Tracy, a Economia trata das formas como os meios são
empregados para satisfazer os fins almejados pelos agentes.
Essa ampliação de escopo observada na definição de Economia defendida por Storch,
porém, não se reflete em radical reformulação na estrutura da disciplina, que preservará
a formulação plutológica clássica. De fato, a despeito da inovação de Storch, mais
adiante em seu texto (p. 132) reconhecemos uma ligeira modificação da classificação
então usual das subdivisões da disciplina: “produção, acumulação, distribuição e
consumo de riqueza”. A Economia continua sendo a ciência da produção e distribuição
de riqueza, agora ampliada para formas mais abstratas contempladas pelo conceito de
civilização.
Da definição do objeto de estudo, passamos ao método de investigação, segundo as
opiniões do mesmo autor. Como Say, Storch é um empirista, que afirma que as ciências
partem da observação pura e a partir delas estabelecem leis de caráter indubitável. Os
fenômenos econômicos, em particular, por estarem sujeitos a regularidades empíricas,
estariam sujeitas a leis naturais que devem ser descobertas, não estabelecidas.
A descoberta dessas leis, porém, se depara com as peculiaridades inerentes a essa
disciplina, notadamente a complexidade maior de seu objeto de estudo, que impede que
obtenhamos relações satisfatórias entre um número reduzido de variáveis que possam
ser isoladas e controladas.
Para Storch, assim como para Say, ao tratar de fenômenos econômicos, devemos
separar fatos gerais constantes de fatos particulares variáveis. Os últimos são sujeitos à
ação simultânea de diversas causas particulares que se modificam continuamente e
influenciam umas às outras. O reconhecimento da disposição humana a poupar para o
futuro, por exemplo, não é algo que possa ser descartado pela constatação da existência

59
de esbanjadores e pródigos (p. 22). As leis econômicas dizem respeito aos fatos do
primeiro tipo. Essa distinção será crucial para a Metodologia da Economia, repetida
tanto na caracterização milliana das leis de tendência, válidas na ausência de causas
perturbadoras, quanto na distinção mengeriana entre os ramos exato e realista da teoria
econômica.
Como Say, Storch (p. 25) crê que depois de estabelecer fundamentos sólidos a partir de
observações dos fatos gerais apropriados, por sua vez obtidos por meio de uma maior
quantidade e variedade de fatos particulares, os princípios fundamentais assim obtidos
serviriam de base para a dedução de fatos gerais incontestáveis.
A operacionalização dessa doutrina, contudo, nos leva ao problema da unidade do
método. Storch (1823, p. 23), como Say, salienta a natureza subjetiva de boa parte dos
dados com os quais as ciências sociais devem lidar:
Os primeiros, baseados em fatos físicos, suscetíveis de avaliação rigorosa,
pertencem ao domínio das ciências exatas; a economia política, por outro lado,
baseando-se em fatos morais, isto é, em fatos produzidos pelas faculdades,
necessidades e vontade do homem, não está sujeita a cálculos e situa-se no campo
das ciências morais.30
Além da origem moral ou psicológica das variáveis econômicas, acrescenta-se ainda a
dificuldade de controlá-las. Como é mais difícil observar causas psicológicas e fazer
experimento por meio do isolamento de causas perturbadoras, o uso da Matemática na
teoria econômica pura é rejeitada por Storch, assim como nas opiniões de Say e Destutt
de Tracy.
Mais adiante em sua obra, depois de examinar o mecanismo de determinação dos preços
em um mercado competitivo, Storch (1823, p. 457) ilustra a inconveniência que atribui
ao uso da Matemática:
Estas são as leis gerais sobre as quais as mudanças no valor de troca são reguladas.
Mas cuidado com o erro de atribuir-lhes um efeito uniforme e constante, ou de
acreditar, a exemplo de alguns autores, que esse efeito é suscetível de cálculo
rigoroso. Os problemas da economia política não são da mesma natureza que os das
ciências exatas: para resolver o primeiro, devemos levar em conta uma série de
circunstâncias morais capazes de perturbar todas as proporções expressas pelos
números.31
Essa rejeição da Matemática na teoria pura é também notada por Backhaus (2000), que
lembra, contudo, que o autor não é um apriorista, descrente do valor do trabalho
empírico. No início de sua vida acadêmica, Storch de fato trabalha com estatísticas

30
Les premières étant fondées sur des faits physiques, qui sont susceptibles d'une appréciation
rigoureuse, appartiennent au domaine des sciences exactes; l'économie politique, au contraire, étant
basée sur des faits moraux, c'est-à-dire sur des faits produits par les facultés, les besoins et la volonté de
l'homme, n'est point soumise au calcul, et rentre dans le domaine des sciences morales
31
Telles sont les lois générales sur lesquelles se règlent les variations de la valeur échangeable. Mais
qu'on soit en garde contre l'erreur de leur attribuer un effet uniforme et constant, ou de croire, à
l'exemple de quelques auteurs, que cet effet est susceptible d'un calcul rigoureux. Les problêmes de
l'économie politique ne sont pas de la même nature que ceux des sciences exactes: pour résoudre les
premières, il faut tenir compte d'une foule de circonstances morales, capables de déranger toutes les
proportions que les chiffres expriment.

60
relativas ao império russo. Além disso, depois de caracterizar a ciência pura, recomenda
o emprego de estatísticas e exame histórico aos ramos aplicados dessa ciência.
Isso nos leva a uma contribuição importante de Storch à Metodologia da Economia. A
constatação de diferentes graus de abstração dos fenômenos estudados pela ciência dá
origem a uma classificação entre seus ramos. Setenta anos depois, Carl Menger utilizará
na Batalha dos Métodos com Gustav Schmoller uma tipologia de subdisciplinas
semelhante àquela desenvolvida por Storch, com cada ramo possuindo peculiaridades
metodológicas. Cada ramo, adicionalmente, varia em relação ao seu caráter ou universal
ou dependente de instituições específicas. Em Menger (1996) temos uma ciência pura,
outra realista, dependente de situações particulares e ainda um terceiro ramo aplicado,
dedicado a políticas públicas. Na Inglaterra, por sua vez, Nassau Senior (1965) e outros
autores estabelecem classificação relacionada, separando a Economia positiva, sem
juízo de valores, da normativa, prescritiva.
Em Storch (1823, p. 11-17) encontramos um mapa de subdisciplinas construído no
mesmo espírito dessas distinções. A forma como o autor organiza sua classificação,
porém, contém peculiaridades que possivelmente se relacionam com seu ambiente.
Talvez pelo fato de que tenha estudado na Alemanha, com sua tradição cameralista, ou
pelo ambiente marcado pelo funcionalismo público de São Petersburgo, onde viveu, ou
pelo motivo mais proverbial que o Curso foi destinado a instrução dos filhos do czar,
Storch situa a Economia como parte de uma ciência mais ampla, denominada “ciência
do estado”. A tabela a seguir reproduz suas ramificações:

Ciência do Estado
• Ciência social (teórica)
o Economia política (prosperidade: como satisfazer necessidades)
o Direito universal (justiça)
• Ciência política (prática)
o Política constitutiva (constituição do estado)
o Política exterior (segurança externa)
o Política interior (segurança interior e prosperidade)
▪ Legislação civil e penal (direito privado)
▪ Legislação econômica e financeira (finanças públicas)

Essa classificação separa a teoria econômica, mais abstrata, voltada à investigação das
causas da prosperidade, da ciência prática, que trata de aplicações por parte dos
governantes. Estes deveriam, além de se familiarizar com essas disciplinas, consultar a
experiência histórica de legislação e práticas comerciais e políticas das demais nações,
compondo a parte aplicada das ciências do estado.
Embora seja apenas parte da ciência do estado, a Economia teria um status privilegiado,
derivado possivelmente do fato de que existiriam leis econômicas, independentes da

61
vontade humana: Storch (p. 21) afirma que a Economia está para ciência do estado
assim como a Física para as demais ciências naturais.

As discussões metodológicas de Storch influenciaram outro economista que podemos


classificar como membro da escola clássica francesa, Pellegrino Rossi, o sucessor de
Say no College de France. A Metodologia da Economia é assunto da segunda lição do
primeiro volume de seu Curso de Economia Política (1865), ministrado na década de
trinta do século dezenove naquela instituição.
O primeiro problema tratado por Rossi é a definição do escopo da Economia, tema de
debate entre Say e Storch32. Para Rossi, uma definição satisfatória deve evitar os
extremos de uma definição muito estreita ou ampla. A definição smithiana, em termos
de riqueza, seria muito restrita, sujeita à acusação de que trata apenas de algo vulgar
como a riqueza material. No outro extremo, aquele preferido por Storch, a Economia se
identificaria com toda a ciência social. Uma definição adequada a colocaria apenas
como um dos ramos desta última (1865, vol.1, p. 19).
Aparentemente Rossi aprova o ponto de vista de Say, que prefere utilizar a expressão
“economia social” para a disciplina, pois inclui a discussão dos sistemas econômicos.
Quanto a Sismondi, Rossi opina que embora esse autor transite corretamente da riqueza
para a análise do bem-estar, ele teria restringido o escopo de forma desnecessária ao
limitar tal análise ao estudo da intervenção estatal. Finalmente, a inclusão de Storch da
civilização no conjunto dos fenômenos estudados pela Economia pecaria por tornar a
disciplina muito ampla. Para Rossi, a Economia seria uma disciplina sui generis, com
objeto de estudo próprio e bem definido, não podendo abarcar toda a ciência da
sociedade.
Embora revele simpatia pela postura de Say, na prática a solução encontrada por Rossi
foi continuar adotando a definição corrente, mas complementando a análise dos
problemas econômicos com considerações derivadas das demais ciências sociais.
Concretamente, para Rossi (p. 25), o homem, considerado tanto em isolamento ou em
sociedade, pode ser estudado sob o ponto de vista da riqueza, do bem-estar material e do
desenvolvimento moral. Dessa forma, Rossi não nega a importância dos temas que
Storch buscou incorporar na disciplina, mantendo-os, porém, fora da definição estrita
dessa disciplina. Por conseguinte, a riqueza é vista como causa necessária, mas não
suficiente para o bem-estar, reconhecendo-se ainda as duas primeiras como causas
indiretas ou secundárias para o desenvolvimento moral.
Essa solução, porém, pode ter contribuído inadvertidamente para a associação da
economia clássica ao conceito de Homo economicus. É natural que intelectuais
antipáticos à ciência econômica, tais como Thomas Carlyle, tenham mais tarde
associado a disciplina à pig-philosophy. Já Rossi (p. 28), embora tenha em vista fins

32
Say rejeita de forma veemente e até pouco elegante a sugestão de Storch de incluir bens imateriais no
escopo da disciplina. Ver controvérsia na seção dedicada as idéias econômicas de Storch.

62
explicitamente classificatórios, pretendendo que a Economia não inclua disciplinas
como Higiene, Medicina, Moral, Arquitetura ou Política, de qualquer modo reforça o
preconceito aristocrático que associa a riqueza a objetivos inferiores ou mesmo
condenáveis. De fato, Rossi (1865, vol. 1, p. 26) contrapõe necessidades materiais por
um lado e intelectuais e morais do outro: “Perguntaremos se, em vez de ficar satisfeito e
resignado em sua vida material, como um cão bem alimentado e não muito castigado, o
homem não deseja ir para uma região mais alta, se não se sentir o estímulo das
necessidades intelectuais e morais.”33
Mas a essência da riqueza, para Rossi, não é por outro lado identificada diretamente
com a busca por bens materiais. Subjetivista como Say e Storch, Rossi associa riqueza
aos meios de satisfação das necessidades humanas em geral, sem especificar quão
nobres ou vis estas seriam. Para Rossi (p. 30), a riqueza “... é essencialmente subjetiva;
a matéria possui, sem dúvida, certas propriedades; mas os objetos não se tornam riqueza
até que sejam postos em contato, pelo trabalho ou pelo menos por apropriação, com as
necessidades do homem”. A despeito de não especificar a natureza dos fins dos agentes,
Rossi ainda assim expõe o flanco da teoria econômica clássica a ataque quando fala de
apropriação e trabalho, pois restringe os fenômenos econômicos apenas a fins cujos
meios requerem produção e troca. Ao rejeitar definições mais amplas do escopo da
disciplina, como a de Storch, Rossi não escapa da associação usual entre Economia e
riqueza em sua concepção mais estreita, material.

De qualquer maneira, o próprio Rossi não está completamente isento da crítica


moralista ao Homo economicus, como é ilustrado algumas páginas mais adiante em seu
discurso metodológico (p. 36). Rossi afirma que, dada a hipótese de que submeter uma
criança a uma jornada de trabalho de quinze horas diárias fosse algo bom para a
produção de riqueza, então considerações morais e legais sobrepujariam considerações
econômicas, e uma intervenção seria indicada.

Por implicação, tal afirmação excluiria os interesses de tal criança do campo de


considerações econômicas. De fato, a aceitação dos termos do exemplo implica em
aceitar, em uma falácia da pergunta complexa, a existência de gritante diferença moral
atribuída a economistas e legisladores, reduzindo a questão ao simples conflito entre o
bem e o mal. O moralismo cede lugar a uma abordagem científica em Economia,
porém, apenas quando esta se torna explicitamente uma ciência que trata da relação
entre meios e fins, e não uma comparação entre fins. Sob tal perspectiva, ganha
importância o estudo das consequências não intencionais e possivelmente opostas ao
almejado de diferentes ações e políticas, o que permite a comparação da eficácia das
políticas alternativas e não a comparação de quão nobres são as intenções dos
proponentes de políticas diferentes.

33
Nous demanderons si, au lieu de se renfermer content et résigné dans sa vie matérielle, comme un
chien bien nourri et pas trop souvent fustigé, l'homme n'y désire pas s'élancer dans une région
supérieure, s'il ne ressent pas l'aiguillon des besoins intellectuels et moraux.

63
Passando para a formulação da definição de Economia, Rossi substitui a fórmula usual
– produção, distribuição e consumo de riqueza – por outra mais enxuta, a ciência da
riqueza. A modificação se reflete em seu Curso, que é estruturado em apenas duas
partes, produção e distribuição, já que a discussão clássica do consumo já estaria
embutida na primeira ao lidar com os usos do capital e dos impostos (p. 11). Para os
clássicos, consumo é definido como destruição de riqueza e, sendo assim, discussões
sobre consumo na verdade tratam da poupança e investimento e seus efeitos.

Dito isso, enunciamos a definição de Economia de Rossi (p. 34): “A economia política
racional é a ciência que busca a natureza, as causas e o movimento da riqueza com base
nos fatos gerais e constantes da natureza humana e do mundo exterior.”34

Ao longo de seu Curso, aprendemos que o termo “natureza” encontrado nessa definição
se refere à utilidade dos bens para satisfazer as necessidades, regulada pela
indisponibilidade desses bens, isto é, considerando a intensidade, a extensão e a
gradação da utilidade diante da escassez. O termo “causas”, por seu turno, diz respeito a
como os recursos naturais e o trabalho, incluindo o trabalho intelectual dos empresários,
são empregados na produção de coisas úteis. “Movimento”, por fim, trata da
distribuição da riqueza.

Essa definição mostra novamente como os economistas franceses que mencionamos -


Say, Tracy, Storch e Rossi – adotam uma perspectiva híbrida de Economia, que reúne
elementos da tradição clássica e neoclássica, ao desenvolver a teoria da utilidade e
demanda, ou seja, um elemento subjetivo que trata da relação entre meios e fins, mas
aplicado na estrutura materialista da plutologia clássica, derivada do processo de
maturação do ciclo de vida dos bens.

Uma qualidade da definição acima é a menção em pé de igualdade dos elementos


subjetivos (natureza humana) e objetivos (mundo exterior). Ao longo da história do
desenvolvimento da Economia, podemos detectar abusos nas duas direções, em
abordagens que lidam quase exclusivamente com elementos psicológicos ou materiais,
sendo que o problema real da economia deve lidar com a interação entre esses
elementos.

Devemos explorar ainda o significado do termo “racional” na definição de Rossi, o que


nos leva a problema relativo ao método apropriado a essa disciplina. Assim como Say,
Tracy e Storch, Rossi também se depara com as dificuldades de aplicar aos fenômenos
sociais a concepção empirista sobre qual seria o método das ciências naturais.

A solução dada por Rossi repete a estratégia de seus predecessores, atribuindo


procedimentos metodológicos próprios aos diferentes ramos da disciplina, procedimento
este que, nessa pré-história do methodenstreit, situa Rossi, juntamente com Storch, ao
lado da postura metodológica mais tarde identificada com Menger.

34
L'économie politique rationnelle, c'est science qui recherche la nature, les causes et le movement de la
richesse en se fondant sur les faits généraux et constants de la nature humaine et du monde extérieur.

64
Documentemos no texto do autor elementos da postura metodológica clássica que
encontramos até aqui. Rossi (p. 29), assim como Say e Storch, separa a teoria pura de
suas aplicações. A primeira, denominada “economia política racional”, aborda fatos
gerais (p. 31), que se referem tanto a características inerentes à natureza humana, como
a propensão a trocar e poupar, quanto aspectos relativos à relação do ser humano com o
mundo exterior, como a capacidade do trabalho modificar a natureza para produzir bens
úteis.
Contrariando a postura historicista, a ciência pura associada aos fatos gerais diz respeito
a qualquer local e época. Para Rossi (p. 31), “[e]ssa ciência, assim imaginada, tem como
palco o universo”. Essa ciência pura seria racional, no sentido de utilizar como método a
dedução a partir de princípios gerais básicos. Em outros termos, a teoria pura seria mais
abstrata, operando com hipóteses mais gerais e não com hipóteses sobre circunstâncias
concretas.
Considerado o caráter especial, mais abstrato, da ciência econômica racional, Rossi (p.
32) se opõe à crença de Say de que a teoria pura seria eminentemente empírica: “Daí eu
concluo corajosamente que a ciência da economia política, considerada assim em seu
caráter geral e invariável, é antes uma ciência de raciocínio do que uma ciência da
observação”.35
As deduções da Economia racional, porém, teriam caráter de verdades estabelecidas
apenas na esfera abstrata, que exclui por definição fatores perturbadores. A constatação
empírica de existência de uma diferença salarial entre locais, associada ao fato de que
um determinado agente não mudou seu emprego, por exemplo, não necessariamente
contrariaria pressupostos sobre o comportamento econômico. A desconsideração de
fatores como custos de deslocamento ou ainda provenientes de outras disciplinas, como
barreiras legais à imigração poderiam ser responsáveis pelos resultados diferentes do
esperado.
Antecipando a crítica de Menger (1996) a Schmoller no methodenstreit, Rossi afirma
que a rejeição da economia racional seria derivada da confusão entre os ramos teórico e
aplicado da teoria, ou uma confusão entre ciência e arte. Não se sustenta, portanto, a
tese de que Rossi seria um precursor da escola histórica alemã36, a menos que
consideremos a versão mais branda das teses metodológicas dessa escola, presentes na
sua primeira geração. A abundância de material histórico existente no texto de Rossi e o
exame concomitante de fatores econômicos, históricos e legais que encontramos em sua
obra não contrariam sua defesa da existência de uma teoria pura de caráter dedutivo.
Evidência adicional dessa tese é fornecida na última lição do Curso (vol. 4, lição 11).
Embora rejeite a inclusão storchiana da civilização entre os temas estritamente

35
D'où je conclus hardiment que la science de l'économie politique, envisagée ainsi dans ce qu'elle a de
général et d'invariable, est plutôt une science de raisonnement qu'une science d'observation.
36
Marco (1988) afirma que o biógrafo de Rossi, L. Ledermann, trata Rossi como precursor do
historicismo alemão. Ver também Gray (1931).

65
econômicos, a parte final do livro de Rossi é dedicado ao estudo de temas análogos,
vistos pelo autor como assunto pertencente à interação entre Economia e demais
ciências sociais. Nesse estudo, Rossi contrasta duas perspectivas sobre a evolução da
sociedade, uma teórica e outra histórica, associada a autores alemães. Rossi, depois de
descrevê-las, explicitamente nega filiação a qualquer uma das duas opções.
Para o autor, a concepção historicista de sociedade, segundo a qual cada povo tem
desenvolvimento dado por leis próprias, derivadas da combinação dos fatores de
diversas disciplinas que atuam simultaneamente e interagem, implicaria em uma espécie
de fatalismo: “Cada povo, de acordo com esse movimento espontâneo, é em todas as
épocas o que pode ser” (vol. 4, p. 501). Segundo essa concepção, restaria ao indivíduo,
ao governo ou ao legislador apenas a observação do desenrolar da história (anotar fatos
passados) ou na melhor hipótese o papel de facilitador, reduzindo conflitos de transição.
A concepção derivada da teoria pura, por sua vez, é criticada pelo excesso de
racionalismo construtivista. Esse ponto de vista pretende aplicar a razão ao estudo de
diferentes sistemas sociais presentes no mundo e, como a verdade seria uma só,
modificar o mundo segundo a melhor concepção que a mente conseguir conceber: “Por
que subordinar a razão humana ao instinto e a ação premeditada à ação irrefletida e
espontânea?”, perguntaria um defensor desse ponto de vista (p. 503). O resultado, para
Rossi, seria uma espécie de construtivismo, que pretende aplicar a teoria na construção
de modelos ideais de sociedade em pequena escala.
Rossi pretende se distanciar desses dois extremos, determinismo passivo e liberdade
absoluta de criação de instituições ou fatalismo e construtivismo ingênuo, sem que, no
entanto, ele próprio ofereça uma alternativa intermediária. Rossi (1865, vol. 4, p. 515),
apenas manifesta sua rejeição das posições polares:
Por ora, certamente tenho muita fé no poder, nos benefícios da organização, mas
também tenho grande confiança na individualidade, em sua liberdade, em suas
variedades. Acredito na unidade, mas ao mesmo tempo acredito na eficácia do livre
desenvolvimento, ainda mais do que no poder da simetria. Admito que por mais que
eu queira da minha parte que as forças individuais estejam organizadas, quando elas
são por elas mesmas impotentes, tenho dificuldade em conceber uma sociedade na
qual todas as coisas teriam compartimentos feitos com antecedência e arranjados
simetricamente; e que, para o próprio futuro da natureza humana (se dependesse de
alguém), eu preferiria ter mais liberdade de ação e de movimento do que uma regra
estabelecida, uma rotina traçada para tudo. Eu prefiro o campo livre aos corredores
esculpidos de um jardim, um riacho que serpenteia à vontade ao jato regular de uma
fonte.37

37
Pour la moment, j'ai certainement beaucoup de foi dans la puissance, dans les avantages de
l'organization, mais j'ai aussi une grande confiance dans l'individualité, dans sa liberté, dans ses
variétés. Je crois à l'unité, mais je crois en même temps à l'efficacité du livre dévelppement, plus encore
qu'à la puissance de la symétrie. J'avoue qu'autant je désire pour ma parte que les forces individuelles
s'organisent, lorsqu'elles sont par elles-mêmes impuissantes, autant j'ai peine à me faire une idée d'une
société qui pour toutes choses aurait ses cases faites d'avance et symétriquement disposées; et que, pour
l'avenir même de la nature humaine (s'il dépendait de qualqu'un) j'aimerais mieux plus de liberté dans
l'action, dans le mouvement qu'une règle établie, une ornière tracée pour tout. Je préfère la libre
campagne aux allées taillées d'un jardin, un ruisseau qui serpente à son gré au jet régulier d'une
fontaine.

66
Uma alternativa “entre o instinto e a razão”, se empregarmos a forma como Hayek
(1991) coloca a questão, surge justamente a partir de abordagens institucionalistas que
não neguem a existência de regularidades econômicas uniformes. A economia clássica,
para a qual os economistas aqui estudados contribuíram, podem ser vistos justamente
como precursores dessa alternativa.
Devemos considerar ainda um último elemento da Metodologia da Economia discutida
pelo autor. Durante seu estudo da teoria do valor, Rossi faz uso do instrumentalismo
metodológico. A causa última do valor, para o autor, é dada pela utilidade dos bens,
considerando sua intensidade, extensão e gradação, ou seja, variação conforme a
escassez. Embora contenha todos os elementos para explicar a causa dos bens, Rossi
considera que o apelo às demandas recíprocas dos agentes que efetuam trocas, ou seja,
explicações em termos de oferta e demanda, não seriam úteis em termos práticos (vol. 1,
p. 74), visto que não seria possível determinar os valores da demanda e oferta. Por essa
razão, a alternativa ricardiana, que explica preços em termos dos custos de produção dos
bens, não é descartada, mas defendida como instrumento útil para análise prática. Como
custos seriam grandezas observáveis, a teoria do valor determinado pelo custo seria útil
em comparações históricas entre períodos ou ainda entre países em um mesmo
momento. Essa comparação seria baseada na quantidade de horas de trabalho
necessárias para que uma pessoa com renda média consiga adquirir um determinado
bem em certo local e época.
O instrumentalismo rossiano, no entanto, não é completo, identificável com a postura
friedmaniana. Como afirmamos, Rossi crê na existência de causas reais do valor.
Portanto, a realidade dos pressupostos importaria. Seu instrumentalismo diz respeito
apenas ao uso de uma explicação inferior, porém mais prática, operacional. O uso da
teoria do valor trabalho seria capaz de “salvar os fenômenos”, se utilizarmos a
expressão empregada no antigo debate entre heliocentrismo e geocentrismo.
Curiosamente, a opinião de Rossi é exatamente inversa daquela adotada mais tarde por
Marx. Para Rossi (vol. 1, lição 5), afirmar que o valor dependeria do trabalho seria
confundir instrumento (medida aproximada) com suas causas determinantes. Sendo
assim, a teoria do valor trabalho consistiria em interpretação superficial do fenômeno do
valor, que não menciona suas causas reais.

2.4. Wolowski e Leroy-Beaulieu: teoria, história e formalismo matemático


Se a primeira metade do século dezenove testemunhou a formação dos conceitos
metodológicos da escola clássica na França, a segunda metade presenciou a crítica a
essas idéias. A Batalha dos Métodos que ocorreria na fronteira entre a Alemanha e
Áustria na verdade faz parte de uma guerra metodológica mais ampla, com frentes de
batalha na Inglaterra, Estados Unidos e também na França.

67
Assim como nos demais países citados, na França os economistas se depararam com
diversas críticas, como a acusação de que a hipótese de auto-interesse redundaria em
defesa de comportamento egoísta, de que a busca por riqueza suporia materialismo, de
que o método de isolar variáveis e estudar seus efeitos em abstrato ignoraria influências
de natureza histórica, institucional e moral e de que os resultados da teoria pura, em
especial no que diz respeito ao livre comércio, não seriam aplicáveis universalmente.
As conexões entre as teses metodológicas das escolas francesa e alemã, porém, não são
triviais. Se tomarmos a controvérsia entre Menger e Schmoller, que não foi um embate
entre teoria e história, mas sim entre, por um lado, a coexistência de diferentes ramos
com métodos próprios e por outro a negação de possibilidade de existência, naquele
momento, de teoria pura, os economistas franceses se juntariam a Menger. De fato, os
economistas franceses eram defensores da existência de leis econômicas universais e do
individualismo metodológico. Por outro lado, se tomarmos a primeira geração da escola
alemã, podemos encontrar algumas semelhanças entre os discursos de Roscher e dos
franceses. Afinal, estes últimos, como veremos ao longo deste trabalho, com frequência
mesclavam teoria pura com concepções históricas e escreviam monografias sobre
condições econômicas específicas a certos lugares e épocas.
Nesta seção, veremos inicialmente como os autores da escola clássica francesa na
segunda metade do século dezenove lidaram com a negação da existência de leis gerais.
Em seguida, examinaremos a proposta de adoção do método histórico defendida por
Wolowski. Por fim, estudaremos como Leroy-Beaulieu trata dessas mesmas questões e
diverge de Walras a respeito da utilidade da Matemática para o desenvolvimento da
teoria econômica.
O primeiro desses tópicos envolve uma ironia. As opiniões metodológicas de Say
contrapunham sua própria teoria, pretensamente calcada na observação do mundo real,
com os sistemas dogmáticos imaginados pelos fisiocratas. Quando Say e seus
seguidores argumentaram que o livre-comércio seria superior ao protecionismo, no
entanto, seus opositores criticaram os economistas justamente por defenderem um
sistema, composto por princípios absolutos, em detrimento da observação da realidade.
O discurso metodológico de Say volta-se contra si mesmo.
Vejamos como Rossi e Bastiat reagem a esse tipo de acusação pouco antes da metade
do século dezenove. No seu curso no College de France, Rossi argumenta que a teoria
econômica ataca os interesses particulares e legislação que criam privilégios. Os
defensores desses privilégios, por sua vez, sempre apelariam para argumentos baseados
na contemplação de aspectos parciais do fenômeno econômico. Da confusão entre fatos
gerais e fatos particulares teríamos para Rossi (1865, vol. 1, p.15) a hostilidade em
relação à teoria econômica:
Enquanto foi possível, eles negavam a ciência. Quando isso não era mais possível,
todos quiseram usar a ciência em benefício próprio. Todos demandavam um
princípio para si, consequências para si; e, para obter este princípio, a fim de
extorquir-lhe estas consequências, cada um queria impor seus próprios fatos
particulares e transformá-los em fatos gerais. Cada um disse: "Estes são os fatos, os

68
únicos que você tem que argumentar. Para mim portanto um princípio, para mim as
deduções. Portanto, seria de se admirar que, em meio a este ruído, essas demandas
opostas, dessa mistura inextricável de verdades e erros, a ciência tenha hesitado,
experimentado e sua marcha tenha se tornado instável, incerta?38
Esse mesmo tema ressurge com frequência na crítica de Bastiat às falácias econômicas.
Por trás da denúncia por parte dos práticos homens de negócio contra os economistas
meramente teóricos e da negação de que não existiriam princípios em Economia39 se
encontrariam falácias da composição, que procuram extrapolar para a sociedade como
um todo os benefícios conferidos a um setor particular por alguma legislação, ignorando
os custos que essa legislação impõe aos demais setores. Essas falácias, porém, não
resistiriam ao teste de consistência. Em seu artigo que defende que uma medida deve ser
avaliada não apenas pelos seus benefícios imediatos, mas também pelos seus custos
posteriores, menos identificáveis, Bastiat (1863b, p. 370-371) afirma que: “Em um
caminho falso, há sempre inconsistência; se assim não fosse, a humanidade seria
destruída. Nós nunca vimos e nunca veremos um falso princípio realizado
completamente. Eu já disse em outro lugar: a inconsistência é o limite do absurdo.40
Tanto na obra de Bastiat (1864a) quanto na de Molinari (1863) na geração seguinte,
encontramos recorrentemente a afirmação da existência de leis econômicas “naturais”,
no sentido de que elas não dependeriam da vontade do legislador. Este, além da
bondade de suas intenções, deveria levar em conta as consequências econômicas não
intencionais de suas propostas de políticas econômicas, impostas pela própria existência
das regularidades estudadas pela teoria.
As leis econômicas, para os autores da escola francesa, são derivadas tanto de
considerações sobre a natureza humana quanto sobre o mundo exterior. Como dizem
respeito em última análise às maneiras como os homens buscam atender suas
necessidades, as leis mais fundamentais da Economia se fazem presentes em qualquer
situação. Tomando esses fatos constantes, a teoria trata de como o desempenho
econômico varia sob arranjos institucionais diferentes. Além disso, indivíduo e cultura
coevoluem, como enfatiza Storch em sua teoria da civilização. Entre os franceses,
porém, nada disso nega a existência de leis universais. Para Bastiat (1964a, p. 228),
“[a]s leis econômicas agem de acordo com o mesmo princípio, quer se apliquem a

38
Tant que cela a été possible, ils ont nié la science. Quand cela n'a plus été possible, chacun a voulu se
servir de la science dans son propre intérêt. Chacun lui a demandé um principe pour soi, des
conséquences pour soi; et, pour obtenir ce principe, pour lui arracher ces conséquences, chacun a voulu
lui imposer ses propres faits particuliers et les transformer en faits généraux. Chacun lui a dit: "Voilà les
faits, les seuls dont tu doives argumenter; à moi donc un principe, à moi les déductions. Dès lors faut-il
s'étonner si, au milieu de ce bruit, de ces exigences opposées, de ce mélange inextricable de vérités et
d'erreurs, la science a hésité, si elle a tâtonné, si la marche est devenue chancelante, incertaine?
39
A tese de que não existiriam princípios em Economia é alvo frequente das críticas do autor. Ver por
exemplo o ensaio intitulado “Não existem princípios absolutos” em Bastiat (1863a, p. 94).
40
Dans une fausse voie on est toujours inconséquent, sans quoi on tuerait l’humanité. Jamais on n’a vu
ni on ne verra un principe faux poussé jusqu’au bout. J’ai dit ailleurs: l’inconséquence est la limite de
l’absurdité.

69
grandes massas de homens, a dois indivíduos, ou mesmo a um único indivíduo
condenado pelas circunstâncias a viver em isolamento”41.
Na segunda metade do século dezenove, o descrédito sobre a existência de leis
econômicas universais ou “naturais”, comumente nutrido por políticos e empresários, se
expande para os economistas das diferentes vertentes do institucionalismo antigo. Surge
então nos textos dos autores franceses referências a essa nova oposição, como atesta a
seguinte observação de Courcelle-Seneuil (1858a, p. 10):
É necessário dizer que a economia política não pode ter um caráter nacional? Deve
ser assim, uma vez que alguns escritores norte-americanos e alemães levantaram a
pretensão de formar uma economia política nacional, como se as ciências pudessem
ter outro país além da verdade! Como se as leis que variam de acordo com o tempo e
o lugar pudessem ter um caráter científico! Quem já pensou em projetar uma física
nacional ou matemática nacional?42
A despeito da oposição dos economistas franceses à maioria das teses historicistas, a
rejeição de Say de modelos abstratos tais como aqueles encontrados na obra de Ricardo
e a defesa de metodologia empirista e realista aproximam os franceses da tradição
alemã. Nada indicaria que o seguinte parágrafo não tenha sido escrito por algum
membro da escola histórica alemã, em vez de Molinari (1849, p. 49):
Não é mais a observação que domina a ciência moderna, é a hipótese. Por quê?
Porque construímos uma hipótese mais rapidamente do que observamos uma lei.
Porque nós fazemos livros mais facilmente com hipóteses do que podemos fazer
com observações.43
Entre os membros da escola francesa, um autor menos conhecido, Louis Wolowski,
defendeu a tese de que a Economia deveria adotar o método histórico. Wolowski (1857)
traduziu para o francês os Princípios de Economia Política de Roscher, principal autor
da primeira geração da escola histórica alemã. Wolowski acrescenta a essa tradução
uma introdução de oitenta páginas, na qual defende o método histórico.
Nesse texto, Wolowski apresenta várias idéias típicas da crítica metodológica associada
à escola histórica. Entre elas, encontramos a rejeição da filosofia utilitarista e dos
métodos abstratos comumente empregados pela teoria econômica. Essa última é
justificada pela crença de que não seria possível separar a Economia das demais
ciências sociais. Além disso, o autor critica o uso de métodos matemáticos, que
reduziriam o homem à figura do Homo economicus. Por fim, Wolowski elege Smith

41
Les lois économiques agissent sur le même principe, qu’il s’agisse d’une nombreuse agglomération
d’hommes, de deux individus, ou même d’un seul, condamné par les circonstances à vivre dans
l’isolement.
42
Est-il besoin de dire que l'économie politique ne saurait avoir un caractère national ? Il le faut bien ,
puisque certains écrivains Nord-Américains et Allemands ont élevé la prétention de former une économie
politique nationale, comme si les sciences pouvaient avoir une autre patrie que la vérité ! Comme si des
lois qui varient selon les temps et les lieux pouvaient avoir un caractère scientifique! Qui jamais a songé
à concevoir une physique nationale ou des mathématiques nationales?
43
Ce n’est plus l’observatgion qui domine dans La science moderne, c’este l’hypothese. Pourquoi? Parce
qu’on bâtit une hypothèse plus vite qu’on n’observe une loi. Parce qu’on fait plus facilemente des livres
avec des hypothèses qu’on n’em peut faire avec des observatgions.

70
como modelo a ser seguido, novamente em sintonia com a primeira geração da escola
histórica.
A argumentação de Wolowski raramente se refere a algum autor ou tese específica, de
modo que não é possível reproduzir ou avaliar mais de perto sua argumentação. Resta-
nos, portanto, documentar o espírito geral de seu texto. A leitura do mesmo revela o
propósito de utilizar o método histórico como antídoto contra reformistas que
pretendem utilizar “sistemas” para alterar radicalmente a estrutura da sociedade. O uso
do método histórico, ao desnudar a evolução da sociedade como um organismo vivo,
dependente de miríades de influências sociais, revelaria a futilidade do construtivismo
que comumente segue os modelos abstratos.
De fato, Wolowski (1857, p. x) afirma que a ciência social deve seguir “a progressão
viva dos eventos e do desenvolvimento orgânico das instituições” e que “a história nos
coloca em guarda contra a sedução fácil das idéias concebidas a priori”, nos
preservando (p. xiii) das “fórmulas ambiciosas e quimeras destrutivas” ou (p. xxx) dos
“alquimistas do pensamento, que imaginam que a sociedade possa se transformar de um
dia para outro”.
O emprego do método histórico nos proveria enfim uma saudável prudência contra
reformadores sociais. Segundo Wolowski (1857, p. xvi), para os reformadores que
ignoram a história a humanidade se torna massa passiva, pronta para ser moldada:
O mundo não é mais do que um vasto laboratório no qual se acredita ser chamado a
multiplicar as experiências mais imprudentes: a humanidade é apenas uma massa
flexível que todo suposto pensador quer amassar como lhe agrada, manipulando-a
arbitrariamente sob a falsa saída de emancipação e independência.
E, de fato, se a vontade humana é todo-poderosa, se os Estados são distinguidos
apenas por suas fronteiras, se tudo pode ser mudado como um cenário de ópera, sob
a varinha mágica de um sistema, se o homem constitui arbitrariamente o direito, se o
povo for manobrado como um regimento, que campo imenso para a aplicação dos
sonhos mais ousados e que tentação de tomar o governo das coisas humanas, tão
flexíveis e maleáveis!44
O apelo à prudência, extraído da filosofia política conservadora, não implica que o autor
seja reacionário. Em seu texto, Wolowski (p. xix) procura conciliar conservação e
progresso para fugir tanto do dogmatismo revolucionário quanto da irracional volta ao
passado, como ocorre com aqueles que incorrem em idealização romântica das
condições medievais.

44
Le monde n’est plus qu’um vaste laboratoire dans lequel on se croit appelé à multiplier les expériences
les plus téméraires: l’humanité n’est qu’une pâte flexible que chaque prétendu penseur veut pétrir à son
gré, en la maniant arbitrairemente, sous les faux dehors d’émancipation et d’indépendance.
Et, en effet, si la volonté humaine est toute-puissante, si les Etats ne se distinguent que par leurs
frontières, si tout peut changert comme un décor d’opéra, sous la baguette magique d’un système, si
l’homme constitue arbitrairement le droit, si l’on fait manoeuvrer les peuples comme un régiment, quel
champ immense pour l’application des rêves les plus audacieux, et quelle tentation pour s’emparer du
gouvernement des choses humaines, si flexibles et si malléables!

71
Depois de uma longa digressão sobre as vantagens do método histórico aplicado ao
estudo do Direito, Wolowski argumenta pela sua adoção na Economia. Esta deveria
buscar uma abordagem multidisciplinar. O autor (p. xxx) emprega a teoria do comércio
para defender essa postura: as ciências sociais seriam vivificadas pelo comércio
intelectual ou interação entre diferentes disciplinas, de sorte que as barreiras
alfandegárias entre as mesmas deveriam ser abolidas. Para Wolowski (1857, p. xxxviii),
a Economia não poderia ser isolada, pois suas fronteiras se justapõem com várias
disciplinas: “[a]ssim, para nós, a economia política não pode prescindir da ajuda da
filosofia, moral, história e direito; eles são os ramos de um tronco comum, no qual uma
mesma seiva deve fluir”.
Sendo a Economia subdisciplina da Filosofia Moral, tal como Smith a teria concebido,
não seria adequado tratar o homem como força material, sem considerar a moral. Além
de ignorar dimensão moral, a especulação matemática tornaria o homem uma constante.
O homem, para o autor (p. lxii), não seria um mecanismo, que segue instintos
cegamente. Embora reconheça que o interesse pessoal seja poderoso, o homem não
viveria em isolamento, sendo sujeito à simpatia, a preocupação com o bem-estar alheio.
Diante desse tipo de alegação, Wolowski parece efetivamente identificar auto-interesse
com egoísmo e preocupação exclusiva com necessidades materiais. Como evidência
dessa alegação, indicamos que o autor (p. lxv) coloca como adversários do conceito
smithiano de simpatia as idéias de Mandeville e Helvétius.
Quanto ao método abstrato da “economia política racional” de Rossi, Wolowski rejeita
a distinção entre ciência e arte, entre fatos gerais e particulares. Essa distinção faria com
que a Economia teórica renunciasse aos afazeres do mundo, o que eclipsaria seus
princípios gerais ao deixar ao ramo aplicado a tarefa de desenvolver fórmulas aplicáveis
à realidade. Assim, pergunta Wolowski (1857, p. liv):
Os adversários das doutrinas econômicas não estariam dispostos a reconhecer todos
os princípios, desde que se abandone para eles as consequências, e não virão, cheios
de argumentos extraídos da nacionalidade, do tempo e do espaço, recusar a
possibilidade de aplicar a ciência pura?45
Embora de fato o isolamento da teoria implique em perda de sua relevância prática, essa
acusação seria injusta no que diz respeito a Rossi ou qualquer outro economista da
escola francesa, pois estes raramente em seus textos confinam a análise a considerações
puramente teóricas.
Se a inspiração para essa alegação de Wolowski for a alegada impossibilidade de
descoberta de princípios teóricos sem o emprego do método histórico, não encontramos
em seu texto nenhuma indicação de procedimento alternativo, que contorne os
problemas que motivaram Say, Storch e Rossi a formular a distinção entre fatos gerais e
particulares.

45
Les adversaires des doctrines économiques ne seront-ils pas disposés à reconnaître tous les principes,
pourvu qu'on leur abandonne les conséquences, et ne viendront-ils pas, tout bardés d'arguments puisés
dans la nationalité, dans le temps et dans l'espace, récuser la possibilité d'appliquer la science pure?

72
É possível que Wolowski tivesse em mente em sua crítica o ramo ricardiano do
classicismo. Se examinarmos o conteúdo da Economia praticada pelos autores
franceses, porém, se torna evidente que esses sempre se dedicaram tanto à teoria pura
quanto à economia aplicada. A sugestão de Breton (1988) de que o ensaio de Wolowski
e a reação que ele suscitou pudesse indicar uma aproximação das escolas francesa e
alemã perde força se considerarmos o caráter multidisciplinar dos trabalhos da primeira.
Por outro lado, se a aproximação se referir à rejeição da hipótese de auto-interesse,
confundida com egoísmo e materialismo, tampouco encontramos afinidades, pois as
obras de Molinari e Leroy-Beaulieu explicitamente rejeitam a alegação de que a
hipótese de auto-interesse deva ser interpretada dessa forma estreita.
Breton (1988) relata algumas reações ao texto de Wolowski na comunidade de
economistas franceses. Aqui, examinaremos apenas as teses metodológicas defendidas
por Paul Leroy-Beaulieu, um dos últimos representantes da escola clássica francesa.
Nos escritos desse autor podemos capturar a reação às críticas colocadas tanto pelas
escolas históricas quanto pelos autores neoclássicos, que associavam o avanço da
disciplina com a adoção do formalismo matemático.
Antes de prosseguir, devemos justificar a escolha desse autor. Entre os principais
economistas da última geração da escola clássica francesa, Leroy-Beaulieu é o
economista que mais escreveu sobre metodologia. De fato, as introduções das seis
edições e os quatro primeiros capítulos de seu Tratado Teórico e Prático de Economia
Política são dedicados ao assunto.
Em um de seus prefácios, Leroy-Beaulieu (1914, vol. 1, p. xxx) nos revela que
compartilha com Say de suas crenças filosóficas, utilizando-se da metáfora de Bacon no
Novum Organum, segundo a qual o investigador que usa apenas razão e não a
observação se assemelharia a uma aranha, cuja teia é originada inteiramente de seu
interior:
depois de trinta anos, [fizeram da Economia] um assunto exclusivo para o ensino, e
professores sutis gastam uma dose prodigiosa de engenhosidade em transformá-la
em um novo escolasticismo, algo assustadoramente complicado e desesperadamente
vazio; teias de aranha infinitas, tecidas com uma arte maravilhosa, e que não pode
ser usada para nenhum propósito.46
Como os críticos alemães, Leroy-Beaulieu crê que os economistas deixariam passar
diante de seus olhos os mais importantes fatos, se apegando a teses, como a teoria
ricardiana da renda da terra, que embora não fossem logicamente incoerentes, não
seriam aplicáveis ao mundo real, devido à falta de consideração por fatos relevantes,
como o progresso técnico.

46
Il pense ainsi avoir restitué à l'économie, politique son 'vrai caractère, trop oublié depuis longtemps.
On en a fait, depuis trente ans, une pure matière à enseignement, et des professeurs subtils dépensent une
prodigieuse dose d'ingéniosité à la transformer en une nouvelle scolastique, quelque chose
d'effroyablement compliqué et de désespérément-vide, des toiles d'araignée infiniès, tissées, avec un art
merveilleux, et dont on ne peut se servir à aucun usage.

73
O primeiro capítulo do Tratado se ocupa com a definição do objeto de investigação da
Economia. Em sua definição da disciplina, que prefere chamar de L’Économique,
Leroy-Beaulieu (1914, vol. 1, p. 11) insere o conceito de escassez, ao mesmo tempo que
omite a palavra riqueza: “A Economia é a ciência que estabelece as leis gerais que
determinam a atividade e a eficiência dos esforços humanos para a produção e o
desfrute dos diferentes bens que a natureza não concede gratuita e espontaneamente ao
homem.47
A mudança em relação à definição clássica encontrada em Say, porém, é apenas
aparente. A omissão das divisões clássicas da disciplina; a saber, produção, distribuição,
circulação e consumo de riqueza é justificada pelo autor (p. 13) pelo fato de essa seria
uma divisão apenas didática. Em sua obra, o fenômeno fundamental continua a ser a
produção de riqueza e as quatro categorias que fazem referência a ela.
Dessa maneira, como confirma a inspeção da obra como um todo, a perspectiva teórica
adotada é plutológica. Porém, denominações propostas para substituir “Economia
Política”, como plutologia, crematística e catalática são rejeitados por serem parciais.
Esta última alternativa, em particular, associada a Condillac (1997) e defendida por
McLeod (1887), é rejeitada, pois a teoria seria também aplicável a um indivíduo
isolado, que não realiza trocas. Essa argumentação revela que apesar de adotar a teoria
do valor utilizada desde a revolução marginalista, o termo troca de fato não possui a
conotação moderna, que associa os fenômenos de produção e trocas em mercados como
formas da categoria mais geral de “trocas”, ou escolhas diante da escassez.
Ainda no primeiro capítulo são discutidas questões de método. Devido à complexidade
do fenômeno econômico, a ciência que o estuda é caracterizada como uma disciplina
empírica, mas não experimental, já que nem mesmo um soberano absoluto poderia
controlar as variáveis necessárias para experimentos sociais.
A partir da perspectiva empirista, contudo, Leroy-Beaulieu afirma a possibilidade de
previsão econômica, em contraste com a opinião mais circunspecta de J. S. Mill sobre
leis empíricas de tendência. Para o primeiro autor, como existiriam leis econômicas
verdadeiras, como atestariam as fracassadas tentativas governamentais de adulterar a
moeda sem inflação ou mesmo as tentativas religiosas de abolir o fenômeno dos juros, o
economista poderia ir além de meras leis de tendência quando tratam de fenômenos
muito “acentuados, importantes e circunscritos” (p. 23), que permitam prever desastre
econômicos, assim como meteorologistas podem prever ciclones.
No segundo e terceiro capítulos dedicados à Metodologia da Economia, encontramos as
objeções do autor à escola histórica. Em primeiro lugar, Leroy-Beaulieu protesta contra
a acusação de que economistas seriam dogmáticos construtores de sistemas, que, como
vimos, se choca com a imagem que os economistas franceses faziam de si como

47
L’Économique est la science qui constate les lois générales déterminant l'activité et l'efficacité des
efforts humains pour la production et la jouissance des différents biens que la nature n'accorde pas
gratuitement et spontanément à l'homme.

74
empiristas seguidores do método de Smith. Contrariando a acusação de ortodoxia
imputada à Economia por Sidgwick, Leroy-Beaulieu (p. 32) afirma que “uma ciência é
uma ciência; ela não é nem ortodoxa nem herética”.
Embora conceda que o ricardianismo tenha transformado a Economia em uma
disciplina dedutiva, o que faz com que se atenham a conclusões logicamente
verdadeiras, mas inaplicáveis ao mundo real, Leroy-Beaulieu reafirma a existência de
leis. Essas leis teriam aplicação universal. O exame histórico de outras civilizações ou
viagens a outras sociedades não forneceriam nada que negue a existência das leis
básicas da disciplina. A legislação romana sobre crédito revela a uniformidade dos
fenômenos econômicos, bem como os efeitos das intervenções nos mercados de
alimentos (p. 41). Os impulsos econômicos descritos pelo pressuposto de busca pelo
melhor possível a partir do menor sacrifício, por sua vez, seriam observáveis entre todos
os povos (p. 48). Em culturas bem diferentes, como nos mercados africanos que o
próprio autor observara, os preços se comportariam segundo as mesmas leis descritas
pela teoria.
A crítica moral ao Homo economicus também é rejeitada. Para Leroy-Beaulieu (p. 61),
“espíritos irrefletidos” como Carlyle que caracterizam a Economia como a dismal
science, ignorariam que esse ramo do saber, como qualquer ciência, efetua análises que
abstraem da presença de outros fatores. Isso não significaria em absoluto que tais fatores
não existiriam.
Vários autores da tradição francesa, como Storch, Bastiat ou Molinari enfatizam que o
pressuposto comportamental adotado pela Economia não diz respeito à natureza dos
objetivos escolhidos pelos homens. Mas Leroy-Beaulieu, assim como Courcelle-
Seneuil, aceita a caracterização da Economia como a disciplina que estuda o objetivo de
atender necessidades materiais. Para Leroy-Beaulieu (p. 70), porém, o instinto de
conservação não seria um sentimento vulgar, mas algo legítimo.
O argumento mais interessante, porém, distingue auto-interesse de egoísmo (p. 76),
segundo suas respectivas esferas de aplicação: enquanto o auto-interesse seria
relacionado com a atividade econômica de produção de riqueza, a dicotomia egoísmo -
altruísmo diria respeito aos usos da riqueza. Ricos altruístas, ilustra o autor,
administrariam seus negócios da forma mais econômica possível.
Embora rejeite várias das críticas esposadas pelo historicismo alemão, Leroy-Beaulieu,
assim como Wolowski, rejeita a divisão da disciplina em ciência e arte. A Economia
seria simultaneamente ciência, por descobrir leis, e arte, por combinar causas
simultâneas nas explicações. Remover um desses dois aspectos seria equivalente a
mutilar a ciência (p. 62). Essa opinião encontra eco tanto nos procedimentos analíticos
adotados na obra, que efetivamente misturam teoria e história, quanto próprio título da
obra – Tratado Teórico e Prático de Economia Política.
O caráter científico da Economia, para o autor, seria ilustrado pela existência de
progresso científico. Um exemplo desse progresso seria a própria teoria do valor.

75
Segundo Leroy-Beaulieu (1914, vol. 1, p. 67-68), a nova teoria do valor traria mais
precisão à teoria estabelecida:
Sob um ponto de vista teórico, as recentes dissertações da Escola Austríaca sobre
valor marginal (Grenzwerth) e, sobre a utilidade decrescente de cada acréscimo de
satisfação da mesma ordem no que diz respeito à saciabilidade das necessidades, da
mesma forma o que tem sido chamado de lei da substituição, seja bens ou serviços,
de acordo com os preços e resultados, são mais uma questão de precisão do que de
inovação, mas é assim que uma ciência verdadeira se desenvolve, tornando-se mais
precisa. Os diferentes casos emergem melhor um do outro, os vários fenômenos
aparecem mais claramente.48
É curioso notar que a nova teoria do valor não é vista pelo autor como algo
revolucionário, em contraste com a opinião de Jevons. Na obra de Leroy-Beaulieu, a
nova teoria do valor substitui a antiga, mas a estrutura do pensamento clássico do
restante da obra não é afetada.
Isso nos leva ao quarto capítulo dedicado a temas metodológicos. Nele, seu autor rejeita
o emprego de métodos matemáticos, citando Cournot, Walras e Jevons como
representantes da escola matemática. As objeções são as mesmas utilizadas por Say e
J.S. Mill.
O emprego desses métodos seria, para o autor (p. 85), ineficaz e enganador. Como parte
das leis econômicas dizem respeito ao ser humano, tais leis não teriam caráter
matemático. Não seria possível medir, por exemplo, a magnitude das variações nos
preços causadas por variações na oferta e demanda. Leroy-Beaulieu, assim como Mill,
condiciona implicitamente o uso da Matemática à possibilidade de mensuração das
grandezas relacionadas por leis.
Depois de invocar variáveis de natureza psicológica, Leroy-Beaulieu chama atenção
para a complexidade do fenômeno econômico. Especial importância é atribuída àquilo
que ele denomina Lei da Substituição. Cada necessidade pode ser atendida por diversos
bens, além de cada necessidade competir entre si pela preferência dos homens (p. 87).
Essa lei de substituição, mencionada na citação anterior, tornaria inaplicável os métodos
matemáticos. Variações de preço não se relacionariam com variações específicas de
quantidades demandadas devido ao fato de que bens substitutos passariam a ser
considerados mediante tais alterações no preço.
Por fim, Leroy-Beaulieu afirma (p.90) que o uso da Matemática confere uma ilusão de
precisão onde ela não existe.
O segundo argumento de Leroy-Beaulieu é mencionado por Walras (1983, p. 4) no
prefácio da versão resumida de seus Elementos. Para Walras, a ideia de substituição
invocada por Leroy-Beaulieu exigiria apenas a substituição de funções de uma variável

48
A un point de vue plus doctrinal, les dissertations récentes de l'École austrichienne sur la valeur
marginale (Grenzwerth) et, sur l'utilité décroissante de chaque, surcroît, de satisfactions d'un même
ordre eu égard à la satiabilité des besoins; de même ce que l'on a appelé la loi de substiuition soit des
denrées, soit des services, suivant les prix et les résultats il s'agit là plutôt de précisions que
d'innovations, mais c'est ainsi qu'une véritable science se développe elle se précisé; les différents cas se
dégagent mieux les uns des autres, les divers phénomènes apparaissent avec plus de netteté.

76
por funções de várias variáveis e derivadas parciais. Partindo da mesma distinção entre
teoria pura e arte, comum entre os economistas franceses, Walras afirma que o
propósito da teoria pura dos preços não seria em absoluto prever a magnitude das
variações nos valores, mas explicar o funcionamento do sistema de preços. Em outros
termos, para Walras, assim como para Cournot (1897) e Edgeworth (1881), o uso da
matemática não requer medição. O emprego da “matemática sem números”, utilizando a
expressão de Edgeworth, seria, no entanto, necessária para o avanço da teoria. Já para o
empirista Leroy-Beaulieu, uma teoria pura abstrata teria pouca serventia.

Neste capítulo, passamos em revista as doutrinas metodológicas desenvolvidas pelos


economistas franceses. O exame dessas idéias obedece a três propósitos. Em primeiro
lugar, pudemos constatar que o pensamento metodológico comumente associado à John
Stuart Mill e outros autores clássicos ingleses têm pelo menos parte significativa de sua
origem na vertente francesa dessa escola. Em segundo lugar, o estudo das crenças
metodológicas dos autores franceses nos será útil para que possamos nos concentrar na
evolução da teoria econômica desenvolvida pelos autores dessa escola, sem termos que
expor suas crenças metodológicas diversas vezes. Por fim, as teses metodológicas aqui
expostas nos ajudarão a compreender o tipo de pesquisa econômica desenvolvida pelos
autores franceses, em contraste com a escola ricardiana. Especificamente, a presença
frequente de exemplos concretos e históricos e o caráter desagregado e realista da
economia de Say e de seus seguidores estão intimamente atrelados ao tipo peculiar de
empirismo adotado por esses autores.

77
3. Precursores
Rejeitamos na introdução deste trabalho o criacionismo intelectual, segundo o qual
economistas talentosos teriam criado praticamente ex nihilo teorias originais, em favor
do evolucionismo intelectual, que acredita que a originalidade consiste em recombinar
material já existente na obra de outros autores com o propósito de tratar de novos
problemas.
Nesse espírito, o preconceito segundo o qual os economistas da escola clássica francesa
seriam meros popularizadores de Adam Smith é combatido, na medida em que a obra
deste último não é autônoma, mas também dependente de conjunto de precursores,
muitas vezes os mesmos que influenciam os franceses. Sabe-se que o autor escocês
visitou o continente antes da publicação de sua obra, travando contato com Quesnay e
Turgot. Assim, os economistas da vertente francesa da escola clássica sofrem influência
direta dos precursores, via conhecimento de suas obras, mas também indireta, via
influência que estes exerceram sobre a obra de Smith, que por sua vez é vista como a
principal arma utilizada pelos economistas franceses no combate à ortodoxia fisiocrata
prevalecente no final do século dezoito.
Na tarefa de mapeamento de influências, ou historiografia da gradual evolução das
ideias, alguns limites devem ser estabelecidos. Em primeiro lugar, não cabe aqui análise
detalhado das contribuições teóricas desses precursores ou da literatura secundária
dedicada a eles. Contentar-nos-emos em selecionar os principais autores e salientar
aqueles aspectos teóricos de suas obras que ajudaram a moldar as teorias dos
economistas franceses que estudaremos neste trabalho. Em segundo lugar, de forma
consistente com nosso evolucionismo, devemos tornar explícita a existência de um
elemento arbitrário na escolha dos precursores, já que em nossa genealogia intelectual
esses economistas são influenciados por ainda outros autores e assim sucessivamente
até que cada conceito econômico se perca na obra de escritores dedicados a outros
ramos do saber, nas tradições orais provenientes de ambientes acadêmicos e não
acadêmicos do período ou mesmo nos escritos de outras épocas e locais. Mas, assim
como ocorre com os organismos do passado, observamos apenas alguns conjuntos de
ideias que “fossilizam” em livros de certos escritores, de forma que muitas influências
são impossíveis ou pelo menos difíceis de rastrear. Este é o caso de Gournay, que
embora não tenha publicado nada, influenciou de forma significativa o pensamento dos
autores que estudaremos. Outras influências, como as opiniões de Locke sobre moeda e
justificação da propriedade privada, embora importantes para o nosso trabalho, serão
apenas reconhecidas, sem que nos detenhamos para examinar textos particulares. Em
terceiro lugar, seria fora de propósito dedicar espaço significativo aos autores
amplamente conhecidos, como o próprio Adam Smith. Dessa maneira, focaremos nossa
atenção em precursores diretamente associados ao cenário intelectual francês, a saber,
Cantillon, Quesnay, Turgot e Condillac, que influenciaram de uma maneira significativa
os economistas da escola clássica francesa.
Cantillon será peça fundamental na formatação da abordagem plutológica que
caracteriza a economia clássica. Nessa perspectiva, a análise econômica parte do
fenômeno da produção como algo separado, algumas vezes anterior, à distribuição e
destruição (ou consumo) de riqueza material, em sistema que se reproduz anualmente. A
importância dada à agricultura no sistema de Cantillon fornecerá também a base para o
pensamento fisiocrata, que dominará o ambiente intelectual francês antes do
desenvolvimento da escola clássica francesa. De fato, lembraremos como o quadro
econômico de Quesnay tem sua origem na obra de Cantillon. Ainda deste último autor
notaremos o esboço de um modelo de alocação de recursos, na medida em que a
quantidade fixa de riqueza, expressa pela quantidade de terra, impõe o exame de seus
usos alternativos e de como mudanças nos padrões de preferências influenciam decisões
alocativas. Finalmente, notaremos como diversas ideias contidas no livro de Cantillon
também aparecem em Smith, tal como a explicação de como o auto-interesse faz com
que os preços de mercado gravitem em torno dos custos de produção em ambiente de
competição.
Turgot, por sua vez, herdará não apenas a teoria econômica que Quesnay e seus
seguidores construíram a partir de Cantillon e outros pioneiros. Sua obra ecoará
Cantillon no que diz respeito à importância da incerteza e da atividade empresarial para
o funcionamento dos mercados. Turgot também desenvolverá a crítica feita pelos
fisiocratas aos entraves à produção de riqueza derivados da existência de concessões de
privilégios legais conferidos a certos produtores. Por fim, o conceito de adiantamento à
atividade produtiva, central aos fisiocratas, assumirá em Turgot a forma de uma teoria
do capital, que possibilitará transcender o mundo agrícola com riqueza constante tratado
pela teoria econômica antes de Smith.
Por fim, Condillac inverte Cantillon e reconstrói a teoria econômica sob uma
perspectiva catalática, colocando as trocas no centro da análise econômica e
desenvolvendo a teoria subjetiva do valor. Seu livro, publicado pouco antes da Riqueza
das Nações, aborda em essência os mesmos temas deste último, só que de maneira mais
sistemática. O ponto de vista catalático e a teoria do valor subjetivo adotados por
Condillac, combinados com a descrição do problema alocativo proposta por Cantillon,
contêm a base da teoria econômica desenvolvida um século depois, a partir da revolução
marginalista. A falta de consideração pela teoria do capital de Turgot, porém, fez com
que Condillac não enfatizasse o fenômeno do crescimento econômico e a importância
crescente da atividade manufatureira. Isso fez com que as inovações de seu referencial
teórico não fossem apreciadas como deviam na época e fossem eclipsadas pela obra de
Smith.
A não percepção das inovações de Condillac, como argumentamos na introdução deste
trabalho, resultou em uma tensão que marca o desenvolvimento da escola francesa. Por
um lado, os franceses adotam a perspectiva plutológica de Cantillon e Quesnay,
80
presente na obra de Smith. Por outro, preservam elementos da perspectiva catalática que
marca o pensamento continental, como a ênfase na utilidade, embora combatam a
perspectiva subjetiva sobre valor desenvolvida por Condillac. Essa tensão se
manifestará na forma de uma vertente da economia clássica anti-ricardiana, como pode
ser atestado inúmeras vezes ao longo deste estudo.
Depois desse exame mais geral sobre o encadeamento das idéias dos precursores,
examinemos em mais detalhes as ideias econômicas de Cantillon, Quesnay, Turgot e
Condillac.

3.1. Cantillon: o alicerce da teoria econômica

A comunidade intelectual parisiense atraia intelectuais de diversas origens e


acompanhava novidades surgidas em outras partes da Europa. Desse modo, nosso
estudo da formação da escola clássica francesa não se limita efetivamente a autores
dessa nacionalidade. O abade italiano Ferdinando Galiani (1728-1787), por exemplo,
passa parte de sua vida intelectual em Paris, participando das discussões sobre o
principal problema econômico percebido nessa capital, relativo ao elevado preço do
pão, problema esse que trataremos mais adiante. Não seria, portanto, de forma alguma
implausível que o emprego simultâneo que Galiani (2000) faz, em um mesmo livro, das
teorias do valor trabalho e valor utilidade com escassez tenha influenciado no convívio
dessas duas teorias na obra de alguns autores da escola clássica francesa.
Richard Cantillon (168?-1734), por sua vez, embora nascido na Irlanda, faz parte de sua
fortuna na França, durante a vigência do esquema de John Law (1971-1729) de
financiamento do estado francês com títulos da Companhia do Mississipi. Também
nesse país que é publicado postumamente, em francês, seu Ensaios sobre a Natureza do
Comércio em Geral [1755], um dos primeiros tratados sistemáticos de teoria
econômica.
Embora tal obra tenha sido de fato negligenciada ao longo do século dezenove, até sua
redescoberta por Jevons, o exame de seu conteúdo revela sua importância fundamental
para o desenvolvimento inicial da Economia. Porém, em vez de apresentarmos um
retrato sistemático desse livro e suas contribuições, salientaremos aquelas que são
importantes para o estudo da escola clássica francesa.
O primeiro aspecto a ser salientado é a presença no livro da estrutura analítica que
identificamos na introdução deste trabalho, a plutologia. Nessa concepção a Economia
tem como objeto o estudo da riqueza, sendo o exame dos determinantes de sua produção
anterior ao estudo da sua distribuição entre classes, quando moeda e trocas são
contempladas. Esse padrão produção-distribuição de riqueza está presente nas obras e
até mesmo em títulos ou subtítulos dos trabalhos de Cantillon, Quesnay, Turgot e
Smith, até ser sistematizado por Jean-Baptiste Say na forma mais extensa produção-

81
distribuição-consumo de riqueza que se reproduz anualmente. Say organiza seu livro em
torno dessa sequência de conceitos, também usada em sua definição de Economia.
Cantillon (1959, p.1) inicia sua obra definindo riqueza por enumeração, como “o
alimento, as comodidades e os prazeres da vida”. Essa riqueza tem a terra como sua
fonte e o trabalho como o elemento que lhe dá forma. Como a origem da riqueza é a
terra, serão seus proprietários os indivíduos economicamente independentes, que
determinam na teoria de Cantillon os usos dos recursos. A diferenciação entre
proprietários e não proprietários, por sua vez, seria fruto da própria evolução das
sociedades, pois esta implica em posse desigual da terra mesmo se partirmos de uma
distribuição igualitária da mesma, devido a heranças, diferenças de talento, força ou
vontade.
Guiada pelas vontades dos proprietários, a produção de riqueza impõe uma lógica
econômica a diversos fenômenos sociais. As características técnicas do processo de
produção da riqueza derivada da terra regulam, por exemplo, tanto a quantidade e
proporção entre os diversos tipos de trabalho existentes na sociedade, como fazendeiros
e artesãos, quanto sua distribuição espacial nas aldeias próximas às fazendas, nas feiras
locais, nas cidades, onde vivem proprietários e nas capitais, onde vive o chefe de estado
e ocorre a maioria da produção manufatureira.
Cantillon constrói uma interpretação da economia centrada na agricultura, assim como
ocorrerá logo depois com os fisiocratas. Apesar do fato de que todos trabalhadores
prestem serviços uns aos outros, Cantillon afirma que todos são sustentados pelos
proprietários de terra, detentores da fonte última de riqueza. Vejamos como funciona
essa preponderância do proprietário.
A teoria de Cantillon estabelece três classes econômicas: proprietários de terra, artesãos
e trabalhadores. Os primeiros determinam o que deve ser produzido. O autor, com
frequência, utiliza cavalos em seus exercícios de “estática comparativa”: se os
proprietários demandam serviços de equitação, mais terra deve ser alocada a pastos e
menos à agricultura, o que implica que parte da população deve migrar. “Quanto mais
cavalos houver num país, menos subsistência haverá para os habitantes” (p. 74). De
maneira semelhante, a quantidade de lavradores e artesãos é proporcional à necessidade
deles: se uma cidade comporta quatro alfaiates, a chegada de um quinto implica em
diminuição de lucro, o que faz com que o número de profissionais seja novamente
reduzido.
A população como um todo é também regulada pelos hábitos de consumo dos
proprietários de terra, que determina a demanda pelo trabalho de artesãos e
comerciantes. Sem essa restrição oriunda da demanda por trabalho por parte dos
proprietários, teríamos crescimento populacional. De maneira menos elegante do que
aquela exposta mais tarde por Malthus, Cantillon (p. 82) supõe que “os homens se
multiplicam como ratos num celeiro se têm meios de subsistência sem limitação”.

82
Além de descrever como mercados se ajustam mediante o funcionamento do sistema de
preços, é evidente em Cantillon a consciência do problema alocativo, que esboça o
núcleo do problema econômico fundamental, tal como visto pela teoria neoclássica
moderna. No caso de Cantillon, a terra é o elemento escasso, de forma que seus usos
alternativos devem ser avaliados segundo as diferentes necessidades da classe
possuidora de riqueza. Para o autor (p. 24), por exemplo, seriam inúteis programas
governamentais que promovessem a formação de artesãos além de sua necessidade,
determinada em termos da quantidade de terra e da demanda dos proprietários. Ainda
sob influência de crenças mercantilistas, o autor prefere que esse excesso de população
aprenda a confeccionar manufaturas comumente adquiridas no exterior, já que a
aquisição dessas manufaturas estrangeiras implicaria no envio ao exterior de meios de
sustento de uma população local maior.
A forma pelo qual o trabalho é dirigido para cada tipo de atividade produtiva
demandada pelos proprietários requer o uso da atividade empresarial, desempenhada
pelos fazendeiros arrendatários da terra. Nos mercados de fatores produtivos, o
pagamento é feito continuamente, desde o início do empreendimento, a preços
combinados contratualmente. Mas, como a produção agrícola envolve tempo, a
demanda futura pelos produtos cujo processo de manufatura se inicia em um dado
instante é incerta. Mas se as decisões de produção são tomadas antes das decisões de
consumo, também os preços serão incertos:
O preço desses produtos dependerá parcialmente do clima, parcialmente do
consumo; se houver abundância de trigo relativamente ao consumo, ele será barato;
se existir escassez, será caro. Quem pode prever o número de nascimentos e mortes
dos habitantes do Estado no ano corrente? Quem pode prever os aumentos ou
reduções das despesas que podem ocorrer nas famílias? No entanto o preço dos
produtos do fazendeiro depende naturalmente desses eventos que ele não saberá
prever e consequentemente ele administra sua fazenda com incerteza. (p. 48)1

Como a receita será incerta, o lucro do empresário é definido como um resíduo, a


diferença entre receita incerta e custos pré-determinados. Essa atividade empresarial
requerida pela incerteza tal como discutida por Cantillon, ampliada para além do
contexto agrícola, será importante para o desenvolvimento da escola clássica no
continente, a partir da de Say, a tal ponto que é comum atribuir a esse último autor o uso
do termo entrepreneur em Economia. A atividade empresarial ganhará importância
progressivamente maior nos trabalhos posteriores de Bastiat, Courcelle-Seneuil e
Leroy-Beaulieu.
Descritas as funções das classes econômicas, é necessário dizermos algo a respeito da
medida do valor da riqueza proposta no livro. Nesse e em outros assuntos, podemos

1
Ce prix dês denrées dépendra em partie des Saisons & en partie de la consommation; s’il y a
abondance de blé par rapport à la consommation, il será à vil prix, s’il y a rareté, il sera cher. Qui est
celui qui peut prévoir le nombre des naissances & morts des Habitans de l’Etat, dans le courant de
l’année? Qui peut prévoir l’augmentation ou la diminution de dépense qui peut survenir dans les
Familles? Cependant le prix des denrées du Fermier dpepend naturellement de ces événements qu’il ne
sauroit prevoir, & parconséquent il coduit l’entreprise de sa ferme avec incertitude.

83
inferir da leitura de Cantillon a influência de William Petty (1623-2687). Em termos
metodológicos, as estimativas a respeito dos valores de variáveis econômicas usadas na
argumentação de Cantillon, que promete detalhar no apêndice estatístico perdido da
obra, lembram a “aritmética política” de Petty. Em termos teóricos, Cantillon também
buscará uma equivalência entre o valor da terra e do trabalho empregados na produção
dos bens, que comporão o valor intrínseco de longo prazo das mercadorias, em contraste
com o valor corrente de mercado (p. 28):
... o preço ou o valor intrínseco de uma coisa tem como medida a quantidade de terra
e trabalho que entram na sua produção, levando-se em conta a qualidade ou
rendimento da terra e a qualidade do trabalho.
Freqüentemente ocorre que muitas coisas que de fato têm esse valor intrínseco não é
vendido no mercado a esse valor: isso irá depender dos humores e das fantasias dos
homens e do consumo que eles farão.2
Devemos efetuar alguns comentários sobre essas noções. Em primeiro lugar, nota-se
que a mesma distinção entre valor intrínseco e de mercado será repetida por Smith com
outros termos (valor natural e de mercado). Em segundo lugar, é importante lembrar que
o preço de mercado é explicado em termos de ajustes entre oferta e demanda mediante o
uso do sistema de preços. Em terceiro lugar, Cantillon acredita que os valores de
mercado, que gravitam em torno do valor intrínseco via competição, não se afastariam
de forma significativa deste último. Tanto é assim que o autor (p. 30) afirma que essa
estabilidade dos preços em torno dos custos permitiria que prefeitos tenham condições
de fixar os preços da carne e do pão sem que ninguém reclame. Por fim, em estimativa
que lembra a aritmética política, Cantillon acredita (p. 34) que a paridade entre trabalho
e terra é de dois para um, isto é, “o trabalho diário do mais vil escravo corresponde, em
valor, ao dobro do produto da terra de onde ele tira sua subsistência”, levando-se em
conta o padrão de consumo e o sustento da família de um trabalhador não qualificado
típico.
Estabelecida a régua com a qual a riqueza é em última análise medida, expressa em
termos de metais preciosos que possibilitam a troca indireta, estamos em condições de
apresentar o modelo de circulação de riqueza apresentado por Cantillon (cap. 12). Esse
modelo tem como propósito ilustrar a tese, mais tarde modificada por Quesnay, segundo
a qual toda a sociedade vive à custa dos proprietários de terra. De fato, o quadro
econômico de Quesnay lembra bastante modelo de Cantillon que esboçamos a seguir.
Do valor total do produto da terra, o empresário obtém “três rendas”: uma delas sendo o
que os fisiocratas chamarão de renda da terra propriamente dita, paga aos proprietários,
a segunda é utilizada para o pagamento dos custos da empresa agrícola e a terceira é
composta pelo lucro do empreendimento.

2
... le prix ou la valeur intrinseque d’une chose est la mesure de la quantité de terre & du travail qui
entre dans sa production, eu égard à la bonté ou produit de la terre, & à la qualité du travail. Mais il
arrive souvent que plusieurs choses qui ont actuellement cette valeur intrinseque, ne se vendent pas au
Marché, suivant cette valeur: cela dépendra des humeurs & des fantasies des hommes, & de la
consommation qu’ils feront.

84
Metade dos custos de produção (um sexto do valor total do produto da terra) é gasta
com os artesãos, nas cidades. Somados aos dois sextos que os proprietários gastam na
cidade, obtemos que metade do produto é gasto nas cidades. Na verdade, como o
trabalho do artesão envolve especialização, sua remuneração tem que ser superior
àquela obtida caso trabalhe como agricultor, que se supõe ser trabalho não qualificado.
Sendo assim, dado esse ajuste por “capital humano”, uma fração pouco maior do que a
metade do produto total é gasto na cidade, como ilustra a figura a seguir.

Padrão de Ajuste pelos


Três rendas
gastos custos

Renda dos
2/6 >½
proprietários

Cidades
Valor do Custos da 1/6
produto produção
da terra

Lucros do 3/6
empreendimento Campo

Da população total, Cantillon (cap. 16) estima que um quarto apenas é composta de
adultos que trabalham no campo para produzir o sustento de todos. Um terço seria
composta por jovens e velhos. Um sexto, por proprietários, empresários e doentes, que
não efetuam trabalhos braçais. Somando-se com o terço anterior, teríamos que metade
da população não trabalha. O quarto restante da população dá conta dos trabalhos que
Quesnay chamará de estéreis, incluindo artesãos, militares e clérigos. Na opinião de
Cantillon (p. 94), os monges seriam menos produtivos ainda que os militares: “Ao passo
que os monges não são, como se diz, de qualquer utilidade ou decoração na paz nem na
guerra, a não ser no paraíso”.

Para Cantillon, formas úteis de emprego para esse contingente da população seria a
produção de bens de capital e bens industriais com fins de exportação, que seriam
trocados por metais. Ainda para o autor, a grandeza comparativa dos estados seria dada
(p. 90) pelas reservas de riqueza acima do consumo anual, úteis para suprir necessidades
contingenciais. Como bens para suprir essas necessidades podem ser adquiridos com
dinheiro, as reservas em ouro e prata forneceria a verdadeira medida relativa de
grandeza da nação.
Da segunda parte do livro, dedicada aos assuntos que no período clássico serão
relacionados à distribuição da riqueza, como o dinheiro e as trocas indiretas,
mencionaremos apenas duas contribuições do autor, o estudo dos impactos de um
aumento na quantidade de moeda na economia e a determinação da taxa de juros de
mercado.

85
Quanto ao primeiro tópico, Cantillon segue Locke na identificação dos aumentos de
preços como consequência de um aumento na quantidade de moeda. A contribuição
original do autor, porém, consiste naquilo que ficará conhecido como Efeito Cantillon
na literatura dedicada à teoria austríaca dos ciclos econômicos. Tal efeito trata da não
neutralidade da moeda conforme injeções monetárias sejam iniciadas em diferentes
pontos do sistema econômico e os aumentos de preços se sucedem em instantes
diferentes e em montantes diferentes.
No caso particular descrito por Cantillon, os donos de minas de metais preciosos
enriquecem antes, seguidos de seus clientes e assim sucessivamente, até os
proprietários, que reajustam o arrendamento da terra apenas anualmente. Conforme a
nova moeda se espalha, sua velocidade de circulação se altera, novos hábitos de gasto
são alterados e trocas que não envolviam dinheiro passam a fazê-lo. Segundo a metáfora
do autor, em um rio sinuoso o dobro de água não implicará no dobro da velocidade de
escoamento:
Concluo que um aumento efetivo de dinheiro em um Estado sempre introduz um
aumento no consumo e o hábito de uma maior despesa. Mas os aumentos de preços
que esse dinheiro causa não se espalham igualmente em todos os tipos de bens e
mercadorias, proporcionalmente à quantidade deste dinheiro; a menos que o
dinheiro novo seja introduzido nos mesmos canais de circulação que o dinheiro
original. (p. 176)3

Assim, comparando com a teoria moderna, temos algo que lembra uma descrição
microeconômica dos efeitos da expansão ou contração monetária, no sentido de que se
trata de uma descrição de como vários preços relativos são sucessivamente alterados,
afetando o lado real da economia, sem que se postule uma relação rígida entre
quantidade total de moeda e nível de preços.
Por fim, os juros são explicados por Cantillon no mercado de fundos emprestáveis:
Da mesma forma que o preço das coisas é estabelecido nas altercações dos mercados
pelas quantidades expostas à venda proporcionalmente à quantidade de dinheiro que
se oferece; ou, o que é a mesma coisa, pela proporção numérica entre vendedores e
compradores, do mesmo modo o juro do dinheiro em um Estado se estabelece pela
proporção numérica entre ofertantes e demandantes de empréstimos. (p. 198)4

Os juros não seriam proporcionais apenas à escassez de dinheiro. Citando o esquema do


Mar do Sul na Inglaterra e não o esquema da Companhia do Mississipi na França, do
qual participou, Cantillon argumenta que mesmo com novo crédito aumentando a oferta

3
Je conclus qu’une augmentation d’argent effectif dans un État y introduit toujours une augmentation de
consommation & l’habitude d’une plus grande dépense. Mais la cherté que cet argent cause, ne se
répand pas égualement sur toutes les especes de denrées & de marchandises, proportionnément à la
quantité de cet argent; à moins que celui que est introduit ne soit continué dans les mêmes canaux de
circulation que l’argent primitif.
4
Comme lês prix dês choses se fixent dans lês altercations des marchés par les quantités des choses
exposées en vente proportionnellement à la quantité d’argent qu’on en offre, ou ce qui este la même
chose, par la proportion numerique des Vendeurs & des Acheteurs ; de même l’interêt de l’argent dans
un Etat se fixe par la proportion numérique des Prêteurs & des Emprunteurs. (p. 198)

86
por fundos emprestáveis, a taxa de juros pode se elevar, pois a expectativa dos
empresários de realização de lucros extraordinários eleva a demanda por fundos.
Vejamos como as teses econômicas que encontramos em Cantillon também ocorrem nas
obras de autores posteriores.

3.2. Quesnay e Turgot: a consolidação da plutologia

A ênfase na agricultura como fonte última de riqueza e a apresentação de um modelo de


como essa riqueza flui da agricultura para outras classes econômicas que encontramos
nos Ensaios de Cantillon ressurgirão de forma modificada na obra de François Quesnay
(1694-1874) e seus seguidores, conhecidos como fisiocratas ou “os economistas”. A
fisiocracia surge na França como a primeira escola de pensamento econômico.
O estudo da escola clássica francesa requer o exame da fisiocracia por vários motivos.
Como a fisiocracia se consolidou como o modo de explicação dominante no país, seus
teóricos inevitavelmente fornecem elementos que influenciarão o modo de pensar da
geração seguinte de economistas franceses. Por outro lado, boa parte do
desenvolvimento da vertente francesa da escola clássica é caracterizada pela oposição
ao pensamento fisiocrata. Assim, encontramos em J.-B. Say e seus seguidores o eco de
como os fisiocratas criticam o conjunto de regulações estatais, percebidas como entrave
à economia. Podemos também encontrar na obra desses autores o uso de vários
conceitos fisiocratas, como o investimento como adiantamento, as noções de consumo
produtivo e improdutivo e a concepção de economia como ciência da produção e
distribuição de riqueza.
Por outro lado, o combate à tese da exclusividade da agricultura na geração de um
excedente de valor em relação aos custos, acompanhado da rejeição de políticas que
privilegiam o setor agrícola, tais como a estabilização do preço do trigo, marcará boa
parte dos esforços teóricos iniciais dos economistas franceses. Nesse contexto de
distanciamento de uma visão de mundo centrada na agricultura, dois avanços teóricos
foram importantes: o desenvolvimento da teoria do capital nas mãos de Turgot e a
descrição de Smith do progresso da indústria manufatureira.
Levando em conta o que foi dito nos últimos dois últimos parágrafos, os economistas
que estudaremos neste trabalho, ao mesmo tempo herdeiros e críticos dos fisiocratas,
devem ser estudados à luz da herança de Quesnay.
Iniciemos com uma breve revisão do modelo fisiocrata antes de abordar Turgot em mais
detalhes. Quesnay (1888) inicia sua explicação do Quadro Econômico supondo uma
economia agrícola na qual existe respeito à propriedade privada e liberdade de
comércio. Nessa economia, temos três classes: proprietários de terra, a classe produtiva
(os empresários agrícolas de Cantillon) e a classe estéril dos artesãos.
Tanto artesãos quanto fazendeiros são obrigados a investir em seus empreendimentos. O
investimento, na fisiocracia e entre os clássicos, assume a forma de adiantamentos

87
anuais, ou quantidades de dinheiro em reserva utilizada para adquirir bens requeridos
para o preparo do processo produtivo e pagamento dos fatores empregados. Isso é
necessário porque a receita gerada pelo empreendimento ocorre no final da produção, ao
passo que os custos devem ser pagos durante toda duração do empreendimento, como
os salários. Dessa maneira, supõe-se que os processos produtivos requerem tempo para
maturação.

CLASSE DOS
CLASSE PRODUTIVA PROPRIETÁRIOS CLASSE ESTÉRIL

ADIANTAMENTOS RENDA ADIANTAMENTOS

anuais desta classe, no de dois bilhões para esta desta classe na soma de
montante de dois classe, gasta um bilhão um bilhão que é gasto
bilhões, que produziram em compras junto à pela classe estéril na
cinco bilhões, dos quais classe produtiva e outro compra de matérias-
dois bilhões são produto bilhão em compras primas da classe
líquido ou renda. junto à classe estéril. produtiva.

No esquema proposto por Quesnay reproduzido acima, tanto a classe produtiva quanto a
estéril realizam adiantamentos. Na ilustração, a produção anual assume um valor de
cinco bilhões de francos. O que distingue os empreendimentos das duas classes é a
capacidade de gerar um excedente de valor sobre custos, denominado produto líquido,
que só ocorreria no caso da classe produtiva, que tem seu nome derivado dessa tese.
Nos termos do autor (p. 306), “a classe produtiva é aquela que faz renascer pela cultura
do território a riqueza anual da nação”, ao passo que os avanços da classe estéril, por
competição, não geram excedentes, pois suas receitas apenas repõem seus custos.
Novamente nas palavras do autor (p.310), “seus avanços não produzem nada; Ela [a
classe estéril] os gasta, eles são devolvidos a ela e sempre permanecem em reserva de
ano para ano”.
No esquema agregado de circulação
Classe dos Proprietários
anual representado em seguida,
comum para ilustrar o esquema do
autor, cada flecha fina representa
um bilhão de unidades monetárias e
as flechas largas dois bilhões. O
Classe Estéril
adiantamento de dois bilhões
empregados na agricultura (na
figura, a flecha curva que sai e
retorna ao mesmo setor) dá origem
aos cinco bilhões no total, devido à Classe Produtiva
produtividade natural do solo.
Descontados o bilhão utilizado com

88
bens adquiridos juntos à classe estéril, como bens de capital e bens industrializados de
consumo, temos um excedente de dois bilhões, pagos à classe dos proprietários na
forma de renda da terra.
Esses dois bilhões recebidos pelos proprietários são divididos igualmente entre compras
de bens industrializados junto à classe estéril e bens agrícolas junto à classe produtiva.
A classe estéril, além de vender um bilhão aos proprietários, produz igual montante para
a classe produtiva, que consome bens industrializados e bens de capital. Assim, dois
bilhões de unidades monetárias entram como receita dessa classe, sendo metade dela
gasta na aquisição de matérias primas e outra metade gasta em consumo de bens
agrícolas. Com isso, o esquema se completa, sendo replicado a cada ano.
Esse fluxo mostra que a classe estéril apenas transformaria insumos em produto, sem
geração de excedentes. Estes seriam gerados exclusivamente na classe produtiva. Como
em Cantillon, a agricultura seria a fonte de valor que sustenta o restante da economia.
Sofisticando o esquema, Quesnay leva em conta o estado, que requer financiamento por
impostos, o que por sua vez reduz o excedente líquido e a capacidade de reprodução do
sistema. Reconhecida a necessidade desses impostos, seria preferível para os fisiocratas
que estes incidam diretamente sobre a renda da terra, subtraindo diretamente parte do
produto líquido, pois a existência de diversos impostos sobre outras fontes implicaria na
cobrança de impostos sobre impostos, atrapalhado a circulação e reprodução do sistema.
Considerando ainda a depreciação do capital, que requer manutenção a partir de um
fundo de reserva de recursos, adiciona-se ao quadro a cobrança de juros sobre o capital
total, maior do que o valor da reprodução anual de cinco bilhões de francos.
Finalmente, devemos notar que o modelo é utilizado para explicar variações no tamanho
da economia. A reprodução anual será maior caso os proprietários gastem mais com a
classe produtiva, aumentando os avanços anuais e reduzindo as despesas de luxo,
improdutivas:
... suas despesas supérfluas adquiridas junto a classe estéril seriam despesas de luxo,
prejudicando sua opulência e a prosperidade da nação; pois tudo o que é
desvantajoso para a agricultura é prejudicial para a nação e ao Estado, e qualquer
coisa que favorece a agricultura beneficia o Estado e a nação. (p. 318)5

A distinção entre gastos produtivos e improdutivos, ainda que dissociada da crença na


existência de um produto líquido gerado exclusivamente na agricultura, permanecerá
nas obras de Smith, Say e seus seguidores, como ferramenta útil para o estudo dos
fatores que elevam ou reduzem o produto total, tanto no que diz respeito aos padrões de
gastos da população em geral quanto na avaliação das atividades exercidas pelo estado.

5
... leurs dépenses superflues à la classe stérile seraient des dépenses de luxe, préjudiciables à leur
opulence et à la prospérité de la nation; car tout ce qui est désavantageux à l'agriculture est
préjudiciable à la nation et à l'État, et tout ce qui favorise l'agriculture est profitable à l'État et à la
nation.

89
Consideremos agora outro autor importante nesse ponto na evolução da teoria
econômica. No ambiente intelectual dominado pela fisiocracia, Anne-Robert-Jacques
Turgot (1727-1781) se destaca não apenas pela transição entre essa tradição e o
pensamento clássico, mas também pelo estudo comparativo dos mercados sob
condições de livre competição e privilégios monopolísticos conferidos pelo estado. No
que diz respeito ao primeiro assunto, suas contribuições à teoria do capital serão
incorporadas à tradição smithiana, que por sua vez influenciará os franceses, ao passo
que suas contribuições ao segundo tema influenciarão diretamente os mesmos autores
no que diz respeito à crítica das restrições ao comércio.
Turgot, que administrou a região de Limoges entre 1761 e 1774 e a partir deste último
ano ocupou o cargo de ministro das finanças (contrôleur général des finances), até sua
demissão em 1776, tentou colocar em prática reformas baseadas em sua concepção
econômica. Embora a experiência política e administrativa de Turgot possa explicar a
brevidade de seus escritos teóricos, pela falta de tempo para escrever, sem dúvida essa
experiência contribuiu para a relevância dessas contribuições teóricas do autor.
Examinaremos aqui dois de seus trabalhos, cada um deles dedicado aos dois temas
mencionados no parágrafo anterior.
Em seu texto econômico mais conhecido, Reflexões sobre a Formação e a Distribuição
de Riquezas [1766], Turgot desenvolve a teoria do capital a partir do sistema fisiocrata.
O ponto de partida da obra claramente segue a tradição Cantillon-Quesnay descrita
neste capítulo. O próprio título da obra revela essa tradição e reforça a concepção
clássica de Economia como plutologia. A estrutura do texto, de fato segue o padrão que
caracteriza a tradição clássica: inicia-se com exame do sistema produtivo, descrito em
termos fisiocratas tradicionais, seguido de considerações sobre distribuição, voltadas ao
exame do valor, da troca e da moeda. A inovação principal surge na parte final da obra,
que desenvolve a teoria do capital.
Quanto à produção, Turgot (1844) inicia sua exposição da teoria com uma justificação
da existência de trocas a partir dos conceitos de especialização da terra ( que diferem em
termos de fertilidade e das culturas que podem ser desenvolvidas em cada tipo) e de
divisão do trabalho, esta última justificada por fatores como indivisibilidade: “Deveria
ele matar um boi para fazer um par de sapatos? ” (p.8).
O estabelecimento da atividade produtiva baseada na especialização é em seguida visto
em termos fisiocratas, com a agricultura sendo o único setor a gerar excedente, o
produto líquido que consiste em “presente puro da natureza”, ao passo que
trabalhadores, por competição, recebem apenas o suficiente para a própria subsistência.
A agricultura gera então um fundo de riqueza que sustenta os outros ramos de atividade:
Nesta circulação, que, por uma troca recíproca de desejos, torna os homens
necessários uns aos outros e constitui o vínculo da sociedade, é, portanto, o trabalho
do fazendeiro que fornece o primeiro ímpeto. O que seu trabalho faz com que a terra
produza além de suas necessidades pessoais é o único fundo para o pagamento de

90
salários que os outros membros da sociedade recebem em troca de seu trabalho. (p.
10) 6
Embora adote perspectiva fisiocrata, essa passagem ilustra um deslocamento de foco
que marcará a Economia francesa posterior, centrada na satisfação das necessidades. A
identificação das trocas como o aspecto econômico fundamental da vida em sociedade,
por exemplo, também será um tema importante na obra de Destutt de Tracy.
A atividade agrícola, para Turgot, passa por estágios durante a evolução das sociedades:
envolvendo desde cultivo da terra por assalariados, escravos, servos, vassalos, até as
formas contratuais mais modernas, como a divisão de porcentagens da renda derivada
da safra (colonage partiaire) e o arrendamento da terra. Nesse último estágio, mais
desenvolvido, as classes econômicas em Turgot serão as mesmas encontradas em
Quesnay: proprietários, artesãos e cultivadores.
Quanto ao fenômeno da distribuição, os preços de mercado são fruto da avaliação que
demandantes e ofertantes fazem a respeito da estima (attachement) que possuem por
aquilo que eles obtêm e cedem em uma troca. O preço real de uma mercadoria, porém,
não seria aquele determinado em transações isoladas, mas aqueles formados em
mercados com vários participantes:
O preço médio entre as diferentes ofertas e as diferentes demandas se tornará o
preço corrente em que todos os compradores e vendedores cumprirão em suas
trocas, e será verdade dizer que sete litros de vinho serão para todos o equivalente a
um alqueire de trigo, se este for o preço médio, até que a diminuição da oferta de um
lado ou da demanda, por outro lado, alterem essa avaliação. (p.24)7
A despeito da origem subjetiva do valor, essa avaliação comum dos bens nos mercados
confere ao preço um caráter objetivo: os preços são vistos por Turgot (p. 25) como uma
régua universal de medição de valor. Com isso, chegamos a um aspecto central do
pensamento da escola clássica: a tese aristotélica de que as trocas envolvem valores
iguais.
Essa crença, contestada apenas por Condillac, será defendida, por motivos diferentes,
por Say e Bastiat. Como mencionamos na introdução, isso será crucial para o nosso
entendimento da escola clássica francesa: embora entendam que o valor seja
determinado pela utilidade (Say) ou serviço (Bastiat), os clássicos franceses rejeitarão a
natureza subjetiva do valor implicada pela tese de Condillac, o que contribuiu com o
impasse no que diz respeito ao desenvolvimento da teoria moderna do valor e sua
conexão com o problema alocativo.

6
Dans cette circulation, qui, par l'échange des objets de besoin, rend les hommes nécessaires les uns aux
autres et forme le lien de la société, c'est donc le travail du laboureur qui donne le premier mouvement.
Ce que son travail fait produire à la terre au delà de ses besoins personnels est l'unique fonds des
salaires que reçoivent tous les autres membres de la société en échange de leur travail.
7
Le prix mitoyen entre les différentes offres et les différentes demandes deviendra le prix courant auquel
tous les acheteurs et les vendeurs se conformeront dans leurs échanges, et il sera vrai de dire que six
pintes de vin seront pour tout le monde l'équivalent d'un boisseau de blé, si c'est là le prix mitoyen,
jusqu'à ce que la diminution de l'offre d'un côté ou de la demande de l'autre fasse changer cette
évaluation.

91
Ao comentar sobre a emergência da moeda como meio de troca, porém, Turgot talvez
forneça a inspiração para o ponto de vista esposado por Condillac. Como já
mencionamos no primeiro capítulo, para Condillac um mesmo bem pode ter valores
diferentes para pessoas diferentes: no exemplo fornecido pelo autor, os produtores
trocam o excedente daquilo que produzem, sem utilidade para eles, por bens úteis para
si. Turgot afirma o mesmo quando comenta a respeito do surgimento da distinção entre
comprador e vendedor, que ocorre quando as trocas passam a ser mediadas por moeda:
À medida que os homens se acostumaram com o hábito de avaliar tudo em dinheiro,
a trocar todos seus bens supérfluos por dinheiro e trocar dinheiro apenas por coisas
que eram úteis ou agradáveis para eles no momento, eles se acostumaram a ver as
trocas comerciais de um novo ponto de vista. (p. 32, ênfase adicionada) 8
A oposição de Condillac à tese aristotélica de proporcionalidade entre os valores
trocados será assunto da próxima seção. Consideremos agora a principal contribuição
das Reflexões de Turgot: sua teoria do capital.
Como a análise do capital é feita após a discussão das trocas indiretas, com a moeda
utilizada como medida de valor, retornamos ao referencial agregado dos fisiocratas.
Embora os adiantamentos no modelo fisiocratas ou “acúmulo anual de produtos não
consumidos” (p. 32), denominados ainda de riqueza móvel (richesses mobiliaires, em
contraste com propriedade de terra) sejam compostos de bens físicos, como móveis,
bens estocados, ferramentas e animais, o capital é sempre expresso em termos de um
montante de recursos monetários acumulados (amas d'argent), cuja posse gera
rendimentos.
Capital é definido por Turgot (p. 37) como o acúmulo de valores recebidos acima do
gasto anual. O conceito, nota-se, não se restringe ao setor “produtivo”, no sentido
fisiocrata do termo. A despeito da indústria não gerar produto líquido, a imperfeição da
competição na indústria possibilita estender o conceito de acúmulo de capital para
empresas nesse ramo:
Não eram apenas os proprietários de terra que, assim, acumulavam seus excedentes
de produção. Embora os lucros da indústria não sejam, como a receita do solo, um
presente da natureza, e o trabalhador retire do seu trabalho apenas o preço que lhe é
dado pelas pessoas que lhe pagam o salário; embora este último economize o
máximo que puder desse salário, e a concorrência obrigue o trabalhador a se
contentar com um preço inferior ao que ele gostaria, é certo que essa competição
nunca foi suficientemente ampla ou suficientemente forte em qualquer tipo de
trabalho, para evitar que eventualmente um homem mais experiente, mais ativo e,
acima de tudo, mais econômico do que outros em seu consumo pessoal, ganhe um
pouco mais do que o necessário para a subsistência de si mesmo e de sua família, e
de deixar de lado esse excedente para criar com isso uma pequena poupança. (p. 32-
33)9

8
A mesure que les hommes se sont familiarisés avec l'habitude de tout évaluer en argent, d'échanger tout
leur superflu contre de l'argent et de n'échanger l'argent que contre les choses qui leur étaient utiles ou
agréables pour le moment, ils se sont accoutumés à considérer les échanges du commerce sous un
nouveau point de vue.
9
Ce ne furent pas seulement les propriétaires des terres qui accumulèrent ainsi de leur superflu. Quoique
les profits de l'industrie ne soient pas, comme les revenus de la terre, un don de la nature ', et que
l'homme industrieux ne retire de son travail que le prix que lui en donne celui qui lui paye son salaire;

92
Os investimentos provenientes dessas economias, no trabalho de Turgot, têm a função
de viabilizar empreendimentos: “o uso do dinheiro facilitou muito a separação dos
diversos trabalhos entre os diversos membros da sociedade” (p. 32). O investimento
funciona assim como um pré-requisito à atividade produtiva. Em ponto algum do texto,
porém, encontramos alguma indicação explícita de que o uso de equipamentos aumenta
a produtividade do trabalho.
O conceito de retornos decrescentes dos fatores, por sua vez, é descrito em outro texto,
no qual critica a extrapolação de dados tirados de um modelo fisiocrata. Nesse texto,
Turgot (2011b) mostra que aumentos dos adiantamentos não resultam em aumentos
proporcionais do produto: os retornos do trabalho aplicados a uma quantidade de terra
seriam, para Turgot, decrescentes, chegando até mesmo ao ponto no qual o produto
marginal se anula. O conceito de retornos decrescentes de fatores móveis é ilustrado por
Turgot (2011b, p. 133) pela metáfora da compressão de uma mola:
A fecundidade do solo pode ser comparada neste caso com uma mola que é
comprimida carregando-a sucessivamente com pesos iguais. Se os pesos forem leves
e a mola for bastante rígida, o efeito dos primeiros pesos pode ser quase
insignificante. Quando o peso total é suficientemente grande para superar a
resistência inicial, a mola cederá visivelmente e comprimirá; mas quando foi
comprimida até certo ponto, ela oferecerá mais resistência à força que a comprime, e
os pesos que a teriam comprimido uma polegada, podem comprimi-lo não mais do
que uma fração de polegada.10
Voltando à análise das Reflexões, cinco diferentes empregos para o capital são listados:
a compra de terra, que gera renda, o aluguel de terra para realizar empreendimentos
agrícolas, o investimento em firmas industriais, em firmas comerciais e, finalmente, o
empréstimo de dinheiro.
Em cada um desses empregos temos adiantamentos úteis à atividade produtiva: o
empréstimo a juros, por exemplo, é benéfico a ambas as partes contratantes se realizado
como uma troca voluntária. O investimento no comércio, por sua vez, é útil por
coordenar as atividades de compradores e vendedores, pois produtores não devem se
preocupar com os momentos nos quais seus clientes pretendem realizar as compras. Ele
deveria manter seu foco apenas na geração contínua de bens. Além da coordenação
temporal das ações de produtores e consumidores, Turgot (p. 44) lista a função alocativa
do comerciante na dimensão espacial: o comerciante, em suas especulações, arbitra

quoique ce dernier économise le plus qu'il peut sur ce salaire, et que la concurrence oblige l'homme
industrieux à se contenter d'un prix moindre qu'il ne voudrait, il est certain cependant que cette
concurrence n'a jamais été assez nombreuse , assez animée dans tous les genres de travaux pour qu'un
homme plus adroit, plus actif, et surtout plus économe que les autres pour sa consommation personnelle,
n'ait pu, dans tous les temps, gagner un peu plus qu'il ne faut pour le faire subsister lui et sa famille, et
réserver ce surplus pour s'en faire un petit pécule.
10
The fruitfulness of the soil may be compared in this case with a spring which is compressed by loading
it successively with equal weights. If the weights are light and the spring is rather stiff, the effect of the
first few weights may be almost negligible. When the total weight is heavy enough to overcome the initial
resistance, the spring will yield visibly and will compress; but when it has been compressed to a certain
point, it will offer more resistance to the force which compresses it, and such weights as would have
compressed it an inch, can compress it no more than a fraction of an inch.

93
diferenças de preços de mercadorias em locais nos quais a escassez relativa desses bens
difere.
Os retornos dos investimentos em cada um desses empregos, embora desiguais, mantém
relações entre si (p. 57): a compra de terra gera menor retorno, seguida de empréstimo a
juros, até o investimento em empresas agrícolas, comerciais e industriais, que exigem
retorno maior do investimento.
Os juros, como em Cantillon, é determinado no mercado de fundos emprestáveis, não
dependendo apenas da quantidade de moeda. O aumento do “espírito da poupança” e a
correspondente contenção dos gastos de luxo reduzem a taxa de juros e viabilizam
novos adiantamentos (p. 55). Estes, por sua vez, dão conta de explicar os diferentes
graus de opulência observados em diferentes países.
Com esse desenvolvimento da teoria do capital efetuada por Turgot, a teoria econômica
adquire condições de transcender a centralidade da agricultura existente na fisiocracia e
passar a considerar o fenômeno do crescimento econômico:
Pelo que acaba de ser dito, vemos como o cultivo da terra, as fábricas de todos os
tipos e todos os ramos do comércio avançam por uma massa de capital ou riqueza
acumulada que, tendo sido em primeiro lugar antecipada pela os empresários em
cada uma dessas diferentes classes de trabalho, devem retornar a elas anualmente
com um lucro constante; ou seja, o capital a ser reembolsado e avançado novamente
na continuação das mesmas empresas, e o lucro para a subsistência mais ou menos
fácil dos empreendedores. É esse avanço e esse retorno contínuo de capital que
constitui o que deve ser chamado de circulação de dinheiro, esta circulação útil e
frutífera que anima todas as obras da sociedade, que mantém o movimento e a vida
no corpo político, e esse tem uma ótima razão para se comparar com a circulação do
sangue no corpo animal. (p. 45)11
A ênfase na representação do capital em termos de valores monetários, por outro lado,
induzirá a abordagem agregada que encontramos na concepção clássica sobre o tema.
Nessa perspectiva, o capital é representado quase como uma entidade autônoma, um
fundo que gera rendimentos por si mesmo, sem considerações sobre decisões
empresariais que coordenem os diversos planos intertemporais de produção e consumo.
Essa concepção agregada do capital, que marca a vertente inglesa dos clássicos, por
outro lado, pode ser contrastada com o quadro comparativo que Turgot desenha sobre a
operação das firmas em ambientes marcados pela liberdade de concorrência ou pela
existência de privilégios monopolísticos. Esse quadro, representativo da tradição
francesa de análise econômica da burocracia e regulação, pode ser ilustrado pelo Elogio
a Gournay que Turgot (2011a) escreveu na ocasião da morte de Jacques Claude Marie

11
On voit, par ce qui vient d'être dit, comment la culture des terres, les fabriques de tout genre, et toutes
les branches de commerce roulent sur une masse de capitaux ou de richesses mobiliaires accumulées qui,
ayant été d'abord avancées par les entrepreneurs dans chacune de ces différentes classes de travaux,
doivent leur rentrer chaque année avec un profit constant; savoir, le capital pour être reversé et avancé
de nouveau dans la continuation des mêmes entre prises, et le profit pour la subsistance plus ou moins
aisée des entrepreneurs. C'est cette avance et cette rentrée continuelle des capitaux qui constituent ce
qu'on doit appeler la circulation de l'argent , cette circulation utile et féconde qui anime tous les travaux
de la société, qui entretient le mouvement et la vie dans le corps politique, et qu'on a grande raison de
comparer à la circulation du sang dans le corps animal.

94
Vincent, Marquês de Gournay (1712-1759), amigo de Turgot. Nesse texto, podemos
explorar a relação entre economia e estado em Turgot.
Gournay é reconhecido como um intelectual que exerceu grande influência no
pensamento econômico francês, embora não tenha escrito nada de sua própria pena
sobre o assunto. Sua influência é derivada do contato pessoal com a intelectualidade do
período e de suas atividades administrativas como intendente do comércio, cargo que
ocupou a partir de 1751. Em ambas frentes, ficou conhecido pela sua oposição a
privilégios legais que limitam o comércio.
O exame do Elogio a Gournay de Turgot leva o analista a inevitavelmente se deparar
com um problema similar ao existente no estudo de Sócrates e Platão: em que medida
os textos daquele que escreve refletem o pensamento daquele que se exprimiu
oralmente? Mas, como estamos interessados na influência intelectual sobre a escola
clássica francesa, é legítimo tratamos das ideias dos dois economistas como um legado
conjunto, sem se preocupar em que medida Turgot altera o pensamento de Gournay.
O texto se inicia com a afirmação da existência de regularidades econômicas e em
particular de fatores que explicam o progresso ou declínio comercial das nações. Entre
os fatores pertencentes à esfera da administração pública, Turgot acredita que a adoção
de princípios conducentes à prosperidade depende do surgimento de ideias apropriadas
no campo intelectual. Assim como a riqueza holandesa e inglesa teria dependido de leis
inspiradas pelas doutrinas de homens que compreenderam os princípios do comércio,
como Johan de Witt (1623–1672) e Josiah Child (1630–1699), a prosperidade futura da
França dependeria da possibilidade de fazer valer as reformas defendidas por Gournay.
O texto trata então da comparação entre dois arranjos institucionais: um baseado na
livre competição, derivada da igualdade perante a lei e o outro baseado na concessão
estatal de privilégios monopolísticos, tal como ocorre no mercantilismo. Surge aqui a
mesma distinção que aparecerá mais tarde em Smith entre o “sistema de liberdades
naturais” e o sistema mercantilista. Embora esse contraste também faça parte do
pensamento fisiocrata, em Gournay e Turgot a distinção assume uma forma de princípio
geral, no sentido de excluir do primeiro sistema os privilégios à agricultura encontrados
no discurso dos fisiocratas.
A comparação entre regras que excluam ou fomentem privilégios monopolísticos,
central em Turgot, será tema recorrente na análise institucional da escola clássica
francesa, de Say a Molinari, passando por Bastiat. Não é por acaso que historiadores das
ideias com frequência enxergam nos economistas da escola precursores das ideias
trabalhadas no século vinte pela escola da escolha pública.
Vejamos como Turgot contrasta os dois sistemas. A regulação estatal das atividades
econômicas, na opinião de Gournay, tal como retratada por Turgot, teria pouca relação
com os motivos empregados em sua defesa, mas refletiria o “espírito de monopólio” (p.
104), a tentativa de restringir a competição e concentrar o comércio na mão de poucos.

95
Vejamos uma lista de regulações que Gournay e Turgot (p. 104-105) viam sob a ótica
da restrição do comércio: a existência de guildas que exigem filiação onerosa para que
se tenha o direito de fabricar e vender; a existência de custos judiciais para saber se,
mesmo dentro da guilda, um produtor teria direito de produzir certo bem; a imposição
de padrões de qualidade, que impedem que fabricantes busquem clientes dispostos a
pagar menos por produto inferior; regulação de dimensões e número de tramas na fiação
de tecido, sob risco de pena por descumprimento; custos judiciais para determinar se
certa produção atende normas; exigência de curso para aprendizes, que requerem anos
para ensinar algo que na verdade exigiria dez dias; proibição de mulheres na fabricação
de tecidos; exclusão de pessoas de outras categorias ou filhos de não artesãos como
aprendizes; proibição de comércio e transporte de manufaturas provenientes de cidades
francesas vizinhas; regulação estatal da circulação de bens; fomento a industrias
particulares; limites à venda de bens essenciais e proibição de formação de estoques de
bens agrícolas cuja safra anual flutue.
Satirizando o sistema proibitivo, Turgot contrasta de maneira hayekiana o conhecimento
prático do agente com o conhecimento abstrato do regulador:
Ele [Gournay] não podia ver a utilidade de estabelecer que um pedaço de tecido
fabricado deva envolver procedimentos legais e discussões tediosas para determinar
se ele está de acordo com um sistema extensivo de regulação, muitas vezes difícil de
entender, nem pensou ele que tais discussões deveriam a ser realizadas entre um
fabricante que não sabe ler e um inspetor que não sabe fabricar, nem que esse
inspetor ainda seja o juiz final da fortuna do desafortunado homem, etc. (p. 104)12
De fato, questões que hoje identificamos como pertencentes à escola da escolha pública,
que dizem respeito ao auto-interesse de políticos e reguladores, se misturam
naturalmente com questões que hoje identificamos como pertencentes à escola
austríaca, que dizem respeito ao conhecimento disperso entre os agentes e o mercado
visto como mecanismo de aprendizado:
Não há necessidade de provar que cada indivíduo é o único juiz competente deste
uso mais vantajoso de suas terras e de seu trabalho. Ele sozinho tem o conhecimento
particular sem o qual o homem mais iluminado só poderia argumentar cegamente.
Ele sozinho tem uma experiência que é ainda mais confiável, uma vez que se limita
a um único objeto. Ele aprende por ensaios repetidos, por seus sucessos, por suas
perdas, e ele adquire um sentimento por isso que é muito mais engenhoso do que o
conhecimento teórico do observador indiferente porque é estimulado pela vontade.
(p. 109-110)13

12
He could not see of what use it might be that a manufactured piece of cloth should involve legal
procedures and tedious discussions in order to establish whether it conformed to an extensive system of
regulation, often difficult to understand, nor did he think that such discussions ought to be held between a
manufacturer who cannot read and an inspector who cannot manufacture, nor that that inspector should
yet be the final judge of the fortune of the unlucky man, etc.
13
There is no need to prove that each individual is the only competent judge of this most advantageous
use of his lands and of his labor. He alone has the particular knowledge without which the most
enlightened man could only argue blindly. He alone has an experience which is all the more reliable
since it is limited to a single object. He learns by repeated trials, by his successes, by his losses, and he
acquires a feeling for it which is much more ingenious than the theoretical knowledge of the indifferent
observer because it is stimulated by want. 109-110

96
A combinação desses dois temas, relativos à motivação e ao conhecimento do
regulador, levam Gournay - Turgot a preferirem um sistema de normas que promova a
competição, através da proteção do direito de escolha do vendedor e do comprador, que,
movidos por auto-interesse, estão em melhores condições de explorar alternativas do
que um regulador.
A abordagem de Turgot sempre faz referência à comparação das alternativas
institucionais. Ele não nega, por exemplo, que consumidores possam ser enganados sob
competição livre. Porém, a substituição de um processo de aprendizado por tentativas e
erros pela regulação seria sacrificar o progresso da indústria em favor de uma perfeição
quimérica, algo como obrigar crianças a usarem travesseiros para impedir sua queda (p.
107). O regime restritivo levado às últimas consequências restringiria a inovação dos
fabricantes, restritos ao já conhecido, impedindo a experimentação e competição com
firmas estrangeiras, pois os artesãos locais ficariam impedidos de experimentar com
soluções estrangeiras sem permissão prévia. Além disso, os custos de inspeção
tornariam a produção local onerosa. Quanto à comparação entre regimes de competição
e monopólio, Turgot (p. 107) é da opinião de que “se o governo limita o número de
ofertantes, através privilégios exclusivos ou de outro modo, é certo que o consumidor
será enganado e que o vendedor, certo da venda, irá compeli-lo a comprar artigos ruins
a um preço elevado”.
Como ministro das finanças de Luís XVI entre 1774 e 1776, Turgot teve a oportunidade
de colocar em prática reformas condizentes com o diagnóstico que acabamos de expor
sobre regulação de mercados. Em particular, o mercado de trigo, crucial para a
alimentação da população, estava no centro das discussões políticas da época. A
elevação do preço do pão era responsável por descontentamento na população, dando
origem a diversas revoltas. O governo, que tomava para si a obrigação de alimentar
Paris, controlava preços e regulava os mercados.
Condillac (1997, p. 293) lista o conjunto de proibições existentes nesses mercados.
Segundo esse autor, seria proibido na França:
1. Atuar no mercado de grãos sem permissão de funcionários nomeados para essa
atividade;
2. Formação de associação entre mercadores de grãos sem autorização;
3. Comércio de grão ainda não colhido;
4. Venda de grão fora dos mercados designados;
5. Estoque de grãos;
6. Transporte de grãos entre províncias, sem autorização prévia.
Esse conjunto de proibições, em conformidade com o diagnóstico comum de Turgot e
Condillac, teria resultado na exploração de consumidores e produtores por grupos de
mercadores que detinham privilégios monopolísticos: o produtor só pode vender para
certos mercadores licenciados, nas condições ditadas por esses últimos. O produtor, por
exemplo, não poderia vender quando quisesse, segundo as flutuações do preço, mas

97
eram forçados a vender em datas específicas, quando os preços se reduziam. Segundo
Condillac (1997, p. 295):
Os pequenos agricultores são obrigados a vender no início do mês de setembro,
outubro ou novembro, a fim de pagar os proprietários [de terra], a tributação e as
despesas de cultivo. Então, o preço do grão cai pelo aumento do número de
vendedores. Esse é o momento que os monopolistas aproveitam para assegurar seus
estoques; e eles ditam as leis aos agricultores, que só podem vender para eles. (p.
295)14
Diante desse cenário, Turgot convence Luiz XVI a liberar em 1774 o comércio de
grãos, permitindo o comércio em qualquer local ou período, sem interferência dos
funcionários e intermediários licenciados. Dois anos depois, Turgot (2011c) elabora
plano mais amplo de desregulamentação da economia, que se concretiza na forma de
seis éditos reais. Esses éditos determinavam a:
1. Supressão da corveia (obrigação de trabalhar certo número de dias do ano em
obras públicas) e construção de estradas cobradas por valor em dinheiro, pago
por imposto sobre propriedade de terra;
2. Supressão das guildas de produtores;
3. Supressão de impostos sobre certos gêneros alimentícios e modificações de
outros impostos.
4. Supressão da Caisse de Poissy, instituição financeira criada para assegurar a
provisão de carne em Paris, que financiava açougues e cobrava taxas sobre as
operações nos mercados de carne;
5. Modificações nos impostos sobre banha animal;
6. Supressão de cargos associados à administração de portos, cais, depósitos e
mercados de Paris.
As reformas empreendidas por Turgot não se sustentaram, devido à oposição dos grupos
de interesse que lucravam com a regulação dos mercados e também da população, que
viu o preço do pão subir logo após a tentativa de desregulação dos mercados. Incapaz de
resistir a pressão, Luiz XVI demite Turgot e a maioria de suas medidas são revertidas
pelo seu sucessor, garantindo a permanência do problema original até a Revolução
Francesa.
A tentativa de Turgot de desregular os mercados de grãos foi um dos temas centrais do
livro de Condillac dedicado à teoria econômica, publicando ainda antes de Turgot
deixar o cargo. Sua análise da lógica da desregulação transcende o caso francês,
mantendo seu interesse até hoje. De fato, Eltis (1993) utiliza a mesma abordagem de
Condillac no exame da transição russa para uma economia de mercado.
Os fundamentos teóricos encontrados no livro de Condillac, por outro lado, ganham
uma importância maior se considerarmos sua relação com a formação da escola clássica

14
Small farmers are forced to sell early from the month of September, October or November in order to
pay the landowners, taxation, and the expenses of cultivation. So then the price of grain falls through the
surge of sellers. That is the time that the monopolists seize on to fill their stores; and they dictate to the
farmers, who can only sell to them.

98
francesa. Por um lado, a abordagem de Condillac influenciará diretamente a Economia
de Destutt de Tracy e, via este último, Bastiat. Por outro, Condillac é um precursor da
teoria moderna, ao desenvolver uma perspectiva subjetivista sobre a causa do valor dos
bens. Os economistas da escola clássica francesa, apesar de basearem sua teoria do
valor na noção de utilidade, rejeitarão explicitamente a solução dada por Condillac ao
problema do valor, e essa oposição dará forma ao tipo de teoria que encontraremos nos
autores franceses. Todos esses motivos justificam conjuntamente a atenção que daremos
ao autor na próxima seção.

3.3. Condillac: pioneiro da cataláxia

Étienne Bonnot, Abade de Condillac (1714– 1780), foi um dos filósofos iluministas
franceses. Sua filosofia, como mencionamos na introdução deste trabalho, baseada no
empirismo lockeano, procura explicar os fenômenos mentais em termos de reações a
estímulos sensoriais. Provavelmente um dos fatores que tenha levado um filósofo de
reputação a escrever sobre temas econômicos tenha sido sua experiência entre 1758 e
1768 como tutor do príncipe de Parma, Don Philippe, filho do rei Bourbon da Espanha e
marido da filha mais velha de Luiz XV, pois a instrução de um futuro monarca
naturalmente envolve assuntos econômicos. Aliado ao objetivo de defender as reformas
de Turgot, essa experiência resultou na publicação do Comércio e Governo
Considerados em Relação Um ao Outro, no mesmo ano que a veio à luz a Riqueza das
Nações de Smith.
Uma das diferenças marcantes entre essas duas obras diz respeito ao caráter sistemático
da primeira, que expõe princípios dos quais resultados são deduzidos e ilustrados na
sequência. O livro de Condillac (1997) é divido em duas partes, a primeira dedicada ao
funcionamento dos mercados supondo liberdade do comércio e a segunda introduzindo
o governo. No início da obra são expostos os princípios analíticos fundamentais
utilizados pelo autor; a saber, uma teoria do valor subjetivo aplicada a um modelo de
trocas, de modo que todo fenômeno econômico é avaliado em termos de realização ou
não dos ganhos mútuos gerados pela diferença de apreciação da utilidade dos bens por
parte de diferentes pessoas. Condillac adota desse modo uma perspectiva catalática em
vez de plutológica, a despeito da influência do pensamento fisiocrata em sua obra.
Depois de expor o referencial analítico, este é utilizado para explicar fenômenos como
formação de preços em competição, moeda, especialização na produção, monopólio,
bancos, mercados de fundos emprestáveis e comércio exterior. Na segunda parte são
discutidas restrições ao comércio de diferentes naturezas, como protecionismo, guerra
ou concessão de privilégios monopolísticos, sempre sob o ponto de vista de variações
nos ganhos de troca. Devido à censura existente no período, o livro trata de agentes
pertencentes a tribos hipotéticas na discussão dos mercados e de quatro monarquias
igualmente hipotéticas na discussão do estado. Problemas particularmente franceses são
discutidos como se fossem de uma monarquia na Ásia Menor.

99
Iniciemos com o primeiro capítulo, dedicado aos fundamentos do valor. Encontramos
aqui explicação que se assemelha em diversos aspectos à teoria moderna. O valor, para
Condillac (1997, p. 99), é dado pela utilidade das coisas, ou seja, sua capacidade de
suprir necessidades, sejam elas naturais (fisiológicas) ou artificiais (derivadas dos
costumes). O valor dos bens deve considerar tanto a importância da necessidade
atendida quanto a sua disponibilidade:
Agora, devido ao fato que o valor das coisas é baseado na necessidade, é natural que
uma necessidade percebida mais fortemente confira as coisas maior valor, e que
necessidades menos sentidas gerem menor valor. O valor das coisas portanto
aumenta com a escassez (rareté) e diminui com a abundância. O valor pode até se
reduzir a nada com a abundância. (p.100)15
Essa observação é suficiente para a solução do paradoxo do valor:
Digo, portanto, que, mesmo nas margens de um rio, a água tem valor, mas o menor
possível, porque ela é infinitamente superabundante em relação a nossas
necessidades. Em um lugar árido, ao contrário, tem um grande valor, que é avaliado
de acordo com a distância e a dificuldade de se apossar dele. (p. 101)16
Dois aspectos dessas citações requerem detalhamento. Em primeiro lugar, a natureza
subjetiva do valor. Para Condillac (p. 101), “... o valor não está no objeto, mas em como
nós o estimamos, e essa estimativa é relativa às nossas necessidades: cresce e diminui,
assim como a nossa própria necessidade cresce e diminui.” O autor enfatiza então que o
valor depende da opinião dos agentes sobre a escassez de um bem. Expectativas, por
conseguinte, podem gerar profecias autorrealizáveis, pois a percepção de maior escassez
eleva a demanda, confirmando o cenário de escassez. A utilidade, além disso, depende da
perspectiva temporal: um bem útil hoje vale mais do que um bem útil alocado para
necessidades futuras, devido à incerteza sobre sua disponibilidade futura.
Considerando em seguida a ação do agente dirigida para a satisfação de suas necessidades,
Condillac (p. 102) nota que o valor coincide com o trabalho necessário para a obtenção do
bem. O valor da água, desse modo, seria proporcional à distância que o agente se encontra
da fonte e a decisão de contratar de outro agente por um salário o serviço de transporte
ocorrerá se esse custo for inferior ao valor da água segundo a avaliação subjetiva do
primeiro. Se desconsiderarmos a natureza subjetiva do valor e a variação da utilidade com a
escassez, esse mesmo exemplo será utilizado mais tarde como exemplo da teoria do valor-
serviço desenvolvida por Bastiat em Harmonias Econômicas.
Mas este último autor, assim como Say, rejeitará de fato a natureza subjetiva do valor
defendida por Condillac. Para este, o valor é dado por opiniões de agentes particulares sobre
a utilidade esperada de quantidades específicas de um bem, disponíveis em um dado
momento. Se o valor for subjetivo, tal como definido na última frase, isto é, se for uma
relação entre cada indivíduo e a coisa valorada, esta pode ter diferentes valores, conforme o

15
Now, because the value of things is based on need, it is natural that a more strongly felt need gives
things a greater value, and that a less pressing need gives them less value. The value of things therefore
grows with scarcity and decreases with abundance.
16
I say therefore that, even on the banks of a river, water has value, but the smallest possible, because
there it is infinitely surplus to our needs. In an arid place by contrast it has a huge value, which one
assesses according to how far away it is and the difficulty of getting hold of it.

100
avaliador e conforme o momento da avaliação. Esta será a base da teoria de trocas e preços
desenvolvida no capítulo dois de Governo e Comércio.
Partindo de uma situação inicial com um produtor de vinho e outro de trigo, que possuem
mais de seus produtos do que poderiam consumir, Condillac afirma que a troca envolve a
troca de dois excedentes, de maneira que ambos ganham; ou seja, cada um abdica de algo
que não tem valor para si em troca de algo valoroso, sendo valor definido como a utilidade
de porções concretas de bens obtidas pela pessoa.
A barganha entre os dois faz com que um preço seja estabelecido. Quando mais pessoas
participam do processo de trocas, os preços praticados passam a refletir as estimativas a
respeito do valor relativo dos bens. Em linguagem moderna, dizemos que em equilíbrio as
taxas marginais de substituição coincidem com os preços relativos. Condillac enfatiza ainda
que não se deve confundir valor com preço. O valor antecede o preço e as trocas só ocorrem
se houver diferença de valoração por parte dos indivíduos engajados na troca.
Com isso chegamos ao ponto do sistema de Condillac rejeitado pelos economistas da escola
francesa, que por motivos diferentes seguem a tese segundo a qual trocas sempre envolvem
valores iguais, de forma que preços funcionam como uma espécie de medida de valor.
Embora Condillac não tenha sobrevivido para observar a rejeição de sua tese por parte dos
economistas do século dezenove, o mesmo tipo de crença oposta a sua estava presente na
tradição fisiocrata, o que tornou possível Condillac se contrapor a essa opinião.
Condillac oferece duas explicações para a persistência desse ponto de vista. A primeira (p.
120) é de natureza moral: existiria uma noção de justiça por trás da ideia de que trocas
devam envolver valores equivalentes. A segunda explicação (p. 144), por sua vez, é
derivada da evolução da moeda. O emprego de uma unidade de conta geraria a ilusão de
que o valor seria algo objetivo e mensurável, diferente da utilidade da coisa trocada para
vendedores e compradores. Até mesmo os economistas teriam sido induzidos ao
equívoco de que trocas implicam valores iguais diante do fato de que bens são trocados
pela mesma quantidade de dinheiro.
Como vimos na introdução deste trabalho, as teorias do valor subjetivo e objetivo estão
associadas respectivamente aos pontos de vista catalático e plutológico. Se o valor for
subjetivo, a detecção e exploração das sempre cambiantes oportunidades de trocas é o
que garante a prosperidade de uma sociedade, ao passo que se o valor for algo objetivo
e relativamente estável, a discussão da produção passa para o primeiro plano, sendo as
trocas restritas ao problema da “distribuição”. No livro de Condillac, que adota
perspectiva catalática, o contraste é nítido: a troca é vista como fonte de criação de
riqueza, associada à solução do problema alocativo, ao passo que na concepção
plutológica clássica o comércio é visto como a indústria de transporte de valores, como
veremos na obra de J.-B. Say.
No sexto capítulo de Comércio e Governo, dedicado a mostrar como o comércio cria
riqueza (por trocar de mãos bens concretos com utilidades diferentes para pessoas
diversas), a diferença entre as duas concepções se manifesta através de uma metáfora:

101
Uma fonte que desaparece nas rochas e areia para mim não é riqueza; mas nela se
transforma se eu construir um aqueduto para atraí-lo para os meus prados. Essa fonte
representa os produtos excedentes pelos quais estamos em dívida com os
agricultores e o aqueduto representa os comerciantes. (p.121)17
Avançando para as aplicações da teoria, Condillac afirma que os preços de mercado
variam constantemente conforme se alterem as necessidades, a escassez dos bens, o
número de concorrentes e a qualidade dos bens. Embora não existam preços absolutos,
estáveis, as ações de compradores e vendedores são coordenadas nos mercados
mediante o uso do sistema de preço, que afetam as expectativas e ações das partes
envolvidas. O funcionamento adequado desse sistema, por sua vez, requer liberdade de
oferta e demanda.
No modelo de troca de excedentes agrícolas, a especialização leva ao surgimento de
comerciantes que tornam possível a criação de valor pela atividade de trocas. Os
produtores, desse modo, se beneficiam com o desenvolvimento do comércio. A
atividade comercial se expande, diversificando produtos e ligando locais cada vez mais
afastados, como regiões agrícolas, cidades e países. Os comerciantes são vistos nessa
ótica como agentes que permitem a comunicação entre pessoas entre as quais existe a
potencial de realizar trocas vantajosas: “[e]les são como canais de comunicação entre
produtores e consumidores pelos quais o comércio circula, e pela sua intervenção, os
colonos mais amplamente separados uns dos outros se comunicam entre si. Tal é a
utilidade do comércio realizado pelos mercadores.” (p. 116-117). O comércio, dessa
forma, está associado à riqueza, definida como abundância de coisas com valor, úteis
para satisfazer necessidades.
Essa descrição do processo de multiplicação da riqueza marca mais nitidamente a
separação de Condillac da tese central do pensamento fisiocrata. Embora o processo de
especialização implique que as novas atividades devam usar recursos do setor agrícola,
que em um certo sentido consiste em “riqueza primária” (p. 124), o reconhecimento de
que a base do valor consiste na utilidade faz com que os comerciantes e os outros
setores produtivos, em competição no comércio, sejam corresponsáveis pelo aumento
de riqueza. O surgimento da atividade bancária, por exemplo, é explicado (p. 163) pelo
mesmo princípio: a exploração, via comércio, de oportunidades de poupar transporte de
ouro e prata, gerando ganhos de utilidade para todas as partes envolvidas, quando
contemplamos os fluxos comerciais entre diferentes cidades e países. “Portanto”, afirma
Condillac (p. 226), “eu peço que não perguntem se devemos preferir agricultura a
manufatura ou manufatura à agricultura. Não se deve preferir nada: deve-se considerar
ambos”.
A despeito disso, o exame de vários capítulos da parte teórica do livro de Condillac
revela de forma inequívoca a influência dos autores que abordamos neste capítulo:
Cantillon, Quesnay e Turgot. Sobre salários dos artesãos, a competição tenderia a

17
A spring which disappears into rocks and sand is not wealth for me; but it becomes such, if I build an
aqueduct to draw it to my meadows. This spring represents the surplus products for which we are
indebted to the settlers, and the aqueduct represents the merchants.

102
eliminar ganhos em relação aos custos de reprodução, como em Cantillon e Turgot. A
sequência produção-distribuição-preservação de riqueza encontrada na obra desses dois
autores aparece no livro de Condillac em capítulo dedicado aos diferentes tipos de
trabalho. A moeda, por sua vez, também é analisada em termos da evolução do uso de
metais a partir de sua utilidade como bens, depois do que é examinado o impacto do
aumento de seu estoque nos preços, tal como exposto por Locke. A circulação da
moeda, por seu turno, ecoa o modelo de fluxo circular de Quesnay: Condillac (p. 153)
utiliza uma metáfora de reservatórios e canais de circulação, com entraves ao comércio
diminuindo a circulação e, no sentido oposto, produtos deslocados da agricultura para
os demais setores. Repetindo Cantillon, para Condillac a riqueza também é limitada
pela escassez de terra e o tamanho da população varia de acordo. Seguindo a tradição
desses autores, a quantidade de riqueza produzida depende do padrão de gastos,
conforme se expanda ou não a aquisição de bens de luxo. Os investimentos, do mesmo
modo, representam adiantamentos e são possibilitados pela existência de poupança.
Se a centralidade das trocas, o desenvolvimento de uma teoria do valor subjetivo e a
rejeição da tese central da exclusividade da agricultura na geração de excedentes
afastaram Condillac da fisiocracia, os pontos em comuns listados no parágrafo acima e a
crítica aos entraves ao comércio o aproximaram dessa tradição. Como resultado, a
influência da teoria econômica de Condillac foi menor do que poderia ter sido, pois ele
não era fiel o bastante para ser considerado um membro dos fisiocratas nem distinto o
bastante para despertar a simpatia daqueles que buscavam uma alternativa teórica não
centrada na agricultura, como aquela oferecida por Smith.
Herdeiros da mesma tradição de pensamento econômico, Condillac e Smith publicam
quase simultaneamente livros com diversas características técnicas em comum, embora
divirjam de forma mais notável no que diz respeito à teoria do valor. A despeito dessa
diferença, a mensagem central das duas obras é a mesma: a prosperidade das nações
depende da natureza das leis. Instituições que garantam a liberdade de comércio fazem
com que o auto-interesse seja canalizado para ações que promovem ganhos mútuos, ao
passo que instituições que permitam tratamento diferenciado fazem com que esse
mesmo auto-interesse se volte para a disputa por privilégios monopolísticos que geram
exploração e entraves ao comércio, que reduzem o processo de formação de riqueza.
Em Smith, a comparação entre o “sistema de liberdades naturais” e o sistema
mercantilista aparece na quarta parte de seu livro, em Condillac eles aparecem
respectivamente na primeira e segunda parte de seu livro.
Se na primeira parte da obra a riqueza é associada aos ganhos de utilidade subjetiva
implicados nas trocas comerciais, é natural utilizar o mesmo arcabouço na segunda
parte para mostrar como restrições as trocas reduzem o bem-estar. Cada capítulo da
segunda parte é dedicado a uma afronta ao comércio (atteintes portées au commerce),
sejam elas causadas pela ação de agentes governamentais ou não. Eis a lista completa de
tópicos estudados: guerras, tarifas aduaneiras, taxação à indústria, empresas
privilegiadas ou monopolistas, taxação do consumo, depreciação da moeda, exploração

103
de minas de metais preciosos, financiamento público por títulos (crítica ao esquema de
John Law), controle do comercio exterior de grãos, controle do comercio interno de
grãos, manobras dos monopolistas, resistência a reformas liberalizantes no mercado de
grãos, luxo na capital, rivalidade entre nações (mercantilismo, argumento da indústria
nascente) e especulação de mercadores. Vejamos alguns desses tópicos.
O sexto capítulo da segunda parte trata das regulações que resultam na concessão de
monopólios, descritas como transação mutuamente vantajosa para estado e firmas
reguladas a partir da exploração do consumidor. O autor utiliza o imposto do sal para
ilustrar os ganhos de troca entre reguladores e regulados:
Portanto, haveria grande lucro em exercer um monopólio do sal. O projeto foi feito e
para isso foi criada uma empresa privilegiada e exclusiva. A empresa deu ao
soberano uma quantia considerável e deu aos grandes homens que o protegeram uma
parcela de seu lucro. ... O primeiro rei que encontrou essa fonte de riqueza fez os
olhos dos outros se abrirem e ele foi copiado. (p. 265)18
A despeito de causar aumento significativo do preço do sal, algo que favorece os
governos que concedem esse tipo de privilégio, Condillac afirma que a renda do
governo com a exploração do consumidor deveria também considerar os custos de
fiscalização da garantia dos privilégios e os custos da remuneração da firma
privilegiada: nos termos modernos, ceder parte dos ganhos para o pagamento dos
retornos da atividade de rent-seeking da firma que adquire o monopólio.
No quinto capítulo, que trata de tarifas alfandegárias, Condillac descreve uma sequência
de intervenções governamentais que desencadeiam consequências não intencionais
contrárias ao desejado, que requerem novas intervenções, em um processo que lembra o
padrão descrito por Mises (2010) em sua crítica ao intervencionismo. O governo de um
dos quatro reinos fictícios taxa importações e exportações para aumentar renda do
estado, sendo imitado pelos demais, desencadeando aumentos de preços e diminuição
do comércio e do respectivo fluxo de excedentes, causando redução de bem-estar. A
redução da atividade produtiva local, por sua vez, induz os monarcas a estimular a
indústria aumentando imposto de importação e reduzindo o de exportação, causando
aumento de contrabando e preços mais elevados devido aos riscos do comércio. O
contrabando requer a presença de tropas nas fronteiras, desencadeando corrupção e
arbitrariedade na alfândega, reduzindo novamente o comércio e a riqueza.
Outros aspectos do ciclo de intervenções são explorados em capítulo dedicado ao
controle do comércio exterior de grãos. O medo de que flutuações na safra impliquem
em oscilações no preço do trigo induz um dos reinos a proibir o comércio exterior, outro
a proibir apenas as exportações e ainda outro as importações. O resultado, para
Condillac, foi o próprio problema que se queria evitar: a instabilidade. No primeiro
reino, por exemplo, safras abundantes reduziram o preço, gerando redução do plantio e

18
There was thus bound to be great profit in exercising a salt monopoly. The project for it was made and
to that end a privileged and exclusive company was created. The company gave the sovereign a
considerable sum, and it gave the great men who protected it a share in its profit. … The first king who
found this source of wealth caused the others’ eyes to open, and he was copied.

104
subsequentes aumentos de preços. Para Condillac, restrições ao comércio, ao reduzir o
número de participantes dos mercados, geram instabilidade. O controle consciente do
processo por parte do governo, por outro lado, sofre do problema causado pelo intervalo
de tempo transcorrido entre a percepção do problema, a implementação da medida
corretiva e os efeitos desejados, quando talvez a situação tenha se invertido. A
instabilidade de regras, adicionalmente, reduz os incentivos aos investimentos.
Os problemas causados pela tentativa de controlar o fluxo externo de grãos, por sua vez,
induzem os governos ao controle interno, ampliando problema: “então, para curar os
males que eles produzirem, colocam-se na posição de cometer novos, por meio de
regulações na circulação interna de grãos”. (p. 290). Dessa forma, a redução do
comércio externo causado pela interferência induz o governo a agir como empresário,
estabelecendo estoques públicos de regulação, obrigando produtores a vender seus
estoques, além de induzir os governos a fixar preços.
A ineficácia dos controles de preços é explicada por Condillac pela impossibilidade do
governo centralizar as informações necessárias para coordenar as atividades
econômicas:
Estava errado colocar-se na posição de ter que prover a subsistência do povo; e
cometeu um segundo erro ainda maior, consequência do primeiro, ao forçar a
abertura dos celeiros e pretender fixar o preço do grão.
Não conhecia a população, a produção ou o consumo. Portanto, não tinha a menor
ideia de qual era a proporção entre a quantidade de grãos em relação à necessidade.
A desproporção poderia ser maior ou menor. Havia uma província onde, às vezes,
poderia ser enorme: às vezes também poderia ser quase insignificante em toda parte.
Que regra deveria seguir ao avaliar a quantidade exata de grãos necessária?
Mas teria o governo sabido a relação entre a quantidade e a necessidade, calculado
todos os custos de cultivo, de armazenamento, de transporte para exigir que os
cultivadores e os comerciantes cedessem o grão ao preço fixo?
Forçado a cometer ações injustas para consertar seus erros, o governo pensou que
por esses atos de autoridade pudesse corrigir os distúrbios que causou, provocando
outros ainda maiores. (p. 291)19
Com isso Condillac se junta a Cantillon e Turgot no grupo de economistas que
explicitamente fazem referência ao problema da dispersão do conhecimento enfatizado
por Hayek no século vinte.
Além do problema do conhecimento disperso, Condillac trata de problemas de
incentivos. A tentativa de obtenção de informação a respeito do estoque existente de

19
It had been wrong to place itself in the position of itself having to provide for the people ’s subsistence;
and it made a second, even greater mistake, a consequence of the first, that of forcing open the granaries
and claiming to fix the price of grain. It did not know either the population, the production or the
consumption. So it did not have the slightest idea in what ratio the quantity of corn stood with regard to
the need. The disproportion could be stronger or weaker. There was such a province where on occasion it
could be huge: sometimes too it could be almost negligible everywhere. What rule should one follow to
assess the exact amount of corn one needed? But should the government have known the relationship
between the quantity and need, had it calculated all the costs of cultivation, of storage, of transport to
require the cultivators and the merchants to give up the corn at the price fixed? Forced to commit unjust
actions to put right its mistakes, the government thought by these acts of authority to set right the
disturbance it had caused, and it caused even greater ones

105
grãos por meio de pesquisas levaria os produtores a mentir sobre as quantidades reais,
devido ao medo de serem forçados a vender a preço baixo. Falsas declarações, por sua
vez, levariam a acusações e ordens de busca.
Ainda outro elemento presente na descrição misesiana das cadeias de intervenções se
manifesta no texto de Condillac: a atribuição aos mercados dos distúrbios causados
pelas próprias intervenções, quando se examina um problema sem levar em conta o
histórico de intervenções prévias: o governo “se convenceu de que o preço elevado ou
escassez resultou do resíduo de liberdade. Por conseguinte, era proibido para todas as
pessoas atuar no comércio de grãos sem permissão dos oficiais designados para essa
função” (p. 292).
A atribuição aos mercados dos problemas causados pela regulação é ilustrada ainda pela
análise da gestão de Turgot como ministro das finanças. Essa análise consiste em um
estudo de caso sobre desregulação, explorando em última análise o trade-off entre
gradualismo e terapia de choque no que diz respeito à estratégia de mudança
institucional. Como vimos no final da seção anterior, a regulação do setor impunha
controles de preços, requisição de estoques e estabelecimento de companhias que
monopolizavam o comércio de grão em cada localidade. A escassez de pão nas cidades,
resultado dessa estrutura, gerava protestos e ameaçava a estabilidade política do país.
As reformas de Turgot, que permitiram que produtores negociassem livremente suas
safras, gerou pouco depois ainda outros aumentos no preço do pão. A população se
junta então aos vários grupos de interesse que perderam renda com as reformas
(reguladores, firmas com exclusividade de comércio e proprietários que passaram a
arcar com impostos) e aos intelectuais que atribuíam a culpa pela escassez ao egoísmo
dos comerciantes e à própria desregulação. A pressão resultou na demissão de Turgot
em 1776, que teria dito20 ao monarca para “nunca esquecer que foi a fraqueza que
colocou a cabeça de Charles I no cepo”, antecipando o que de fato ocorreria com o
monarca francês.
Condillac, que publicou seu livro antes da demissão de Turgot e reversão de suas
reformas, fornece em seu livro uma explicação para o fracasso. Embora não utilize esses
termos, a explicação de Condillac pode ser exposta em termos da própria teoria do
capital de Turgot: a substituição do sistema centralizado por mercados livres requer
tempo para a formação de mercados nas várias etapas da cadeia produtiva. Essa
formação implica em estabelecimento de contatos comerciais e aprendizado
empresarial, que ocorre por tentativas e erros ao longo do tempo:
De fato, para ter sucesso em qualquer tipo de comércio, não basta ter a liberdade de
exercê-lo; é preciso, já observamos, ter obtido contatos, e esses contatos só podem
ser fruto da experiência, que muitas vezes é lenta. É preciso também ter capital,
lojas, transportadores, agentes, correspondentes: em uma palavra, é preciso ter
tomado muitas precauções e muitas medidas.

20
Ver introdução de W. Eltis em Condillac (1997, p. 55).

106
Assim, a liberdade restaurada ao comércio de grãos era um benefício que não podia
ser desfrutado. Uma palavra do monarca foi suficiente para acabar com essa
liberdade; uma palavra não a restaurou e preços altos ocorreram alguns meses
depois. (p. 298)21
Segundo Condillac, os aumentos de preços que se seguiram as reformas foram
politicamente atribuídos à própria reforma, esquecendo-se a origem do problema nos
controles prévios.
Essa discussão transcende o episódio francês, sendo relevante para a discussão qualquer
reforma institucional. A terapia de choque, desde que liberte as restrições em todos os
pontos da cadeia, traz a vantagem de possibilitar adaptações necessárias não antecipadas
e impede o reagrupamento daqueles que perdem com o conjunto de reformas, mas
requer um período de tempo para que seus efeitos sejam sentidos, nem sempre
suportáveis politicamente. As vantagens e desvantagens do gradualismo são por sua vez
simétricos.
Terminamos com isso o exame da evolução do pensamento econômico na França
anterior a publicação da Riqueza das Nações de Smith. Esta última obra, nota-se, bebe
nas mesmas fontes aqui apresentadas. Em um ambiente intelectual dominado pela
fisiocracia, que prescrevia atenção central à agricultura e em um ambiente institucional
dominado pelo mercantilismo, que resultava em privilégios monopolista, os intelectuais
franceses buscavam uma alternativa, que foi encontrada da obra de Smith. No próximo
capítulo estudaremos como o pensamento desse último autor se firmou em solo francês,
gerando a vertente francesa da escola clássica. Esta, porém, não será cópia do
desenvolvimento da vertente inglesa: a influência dos precursores aqui estudados e de
demais autores continentais, bem como as preferências filosóficas e metodológicas
dominantes do país darão origem a uma variante de Economia clássica que diverge dos
rumos pouco depois dados à disciplina por David Ricardo. No próximo capítulo,
examinemos o surgimento da escola clássica francesa.

21
Indeed, to succeed in any type of trade it is not enough to have the freedom to carry it on; one must, as
we have already noted, have obtained contacts, and these contacts can only be the fruits of experience,
which is often slow. One must also have capital, stores, carters, agents, correspondents: in a word one
must have taken many precautions and many measures. So the freedom returned to the grain trade was a
benefit that could not be enjoyed the moment it was granted. A word from the monarch had been enough
to wipe out this freedom; a word did not restore it, and there was high price a few months later.

107
4. A Primeira Geração da Escola Clássica Francesa: o
industrialismo
O capítulo precedente tratou do desenvolvimento inicial da teoria econômica em solo
francês. Os trabalhos de Cantillon, Quesnay, Turgot e Condillac, juntamente com as
contribuições de outros autores que não abordamos, deram origem a um programa de
pesquisa particular. Esse corpo de explicação teórica foi efetivamente utilizado nas
discussões políticas subsequentes, em um momento crucial da história francesa. Tanto o
Iluminismo quanto a Revolução Francesa estimularam as discussões sobre quais
arranjos institucionais seriam mais adequados para o país e, em particular, sobre quais
seriam os impactos desses diversos arranjos sobre a prosperidade econômica das
sociedades. Com a revolução, essas questões adquirem um aspecto eminentemente
prático e urgente.
A teoria econômica disponível no momento era suficiente para embasar inúmeras
críticas às instituições e políticas comumente adotadas pelos governos, como pudemos
averiguar no capítulo anterior, em especial no que diz respeito ao comércio exterior,
regulação de mercados, sistema monetário e estrutura de impostos. Entretanto, tal teoria
era calcada em uma visão de mundo centrada na agricultura, em um momento no qual o
desenvolvimento econômico era marcado pela crescente industrialização.
Desse modo, independente da qualidade técnica da teoria econômica disponível no
período, havia uma demanda da parte dos intelectuais por uma alternativa que
transcendesse a preocupação com a agricultura, mas sem voltar às práticas
mercantilistas de estímulos a determinados setores, política cujo insucesso fora
registrado por Gournay e também pelos fisiocratas. A alternativa foi encontrada na obra
de Adam Smith, cuja explicação para a riqueza das nações reconhecia a importância da
indústria sem que isso envolva favorecer setores específicos.
Embora certos aspectos técnicos das teorias de Cantillon e Condillac superem Smith e
se aproximem da teoria moderna, a obra deste último se destaca em termos de sua
pergunta central: enquanto Smith procura explicar o crescimento econômico, Cantillon
e Condillac ignoram tal fenômeno, construindo teoria na qual existe apenas uma
capacidade produtiva potencial dada, que pode ou não ser atingida conforme a
qualidade das políticas adotadas. A riqueza potencial, porém, seria em última análise
restrita pela quantidade de terra disponível.
A economia smithiana, porém, não entra da França de forma inalterada. Além do
próprio pensamento de Smith utilizar diversas ideias desenvolvidas pelos precursores
que estudamos no capítulo anterior, estes influenciarão diretamente os economistas da
escola clássica francesa, assim como as circunstâncias intelectuais, políticas e
econômicas locais. A fusão da tradição local com os elementos característicos da
economia smithiana fará com que a economia clássica tenha características próprias na

109
França. O contraste entre o classicismo francês e inglês se revelará nitidamente
conforme avançarmos no estudo da evolução do primeiro. Por hora, devemos nos
ocupar apenas das origens dessa tradição.
Na próxima seção deste capítulo examinaremos o ambiente intelectual no qual se
desenvolve a escola clássica francesa. Este é mercado pela influência de diversos
pensadores, como os filósofos iluministas e, em particular, pela filosofia empirista de
Condillac. A obra deste último estabelece a plataforma a partir da qual se configura um
ponto de vista utilizado para abordar questões científicas e políticas. Esse ponto de vista
é identificado com o movimento conhecido como Ideologia, termo que Destutt de Tracy
utiliza para se referir à ciência geral dedicada ao estudo do entendimento humano,
derivado das percepções sensoriais. O grupo de intelectuais associados a esse conjunto
de idéias, conhecidos como os ideólogos, reúne tanto médicos e psicólogos interessados
em questões científicas e de saúde pública quanto reformistas preocupados com
modelos para as instituições pós-revolução e com projetos educacionais, além, é claro,
dos economistas, preocupados com a industrialização francesa.
Tendo em vista essa base intelectual, a seção seguinte deste capítulo examinará a
introdução e modificação do pensamento smithiano na França. Este não foi trabalho de
um único homem. Entre os primeiros economistas a considerar os pontos de vista
encontrados na Riqueza das Nações, destacaremos dois intelectuais e homens públicos,
ambos influentes no desenrolar dos turbulentos eventos políticos durante e depois da
revolução: os condes Roederer e Garnier. O exame dos textos sobre teoria econômica
escritos por esses dois senadores nos fornecerá a ocasião de observar a transição do
pensamento fisiocrata para o clássico, sob perspectiva de pessoas com condições de
influenciar o desenvolvimento político do país.
Depois desse exame, voltar-nos-emos ao estudo da obra dos autores mais importantes
do período inicial da escola clássica francesa, Say e Destutt de Tracy. Dos dois, o
primeiro é reconhecido como a figura central dessa escola: seu Tratado de Economia
Política, publicado pela primeira vez em 1803, sistematiza a obra de Smith e fornece o
modelo que servirá de referência para a obra dos autores subsequentes da referida
tradição de pesquisa. Essa obra antecede e influencia os trabalhos de Ricardo e demais
economistas ingleses. Além disso, diferirá desses últimos no que se refere ao tratamento
que Ricardo dá ao legado smithiano. Em contraste com o caráter abstrato e agregado do
pensamento ricardiano, a abordagem de Say é bastante influenciada por sua experiência
como empresário e por suas crenças filosóficas empiristas. Seus livros são
caracterizados pela abundância de ilustrações concretas dos princípios teóricos
enunciados. Isso fará com que a escola clássica na França se ocupe menos com modelos
agregados de crescimento e com as simplificações necessárias para esses modelos e
mais com questões relativas ao funcionamento dos mercados e o papel das inovações,
além de conferir um papel maior a questões históricas e institucionais.
O segundo autor, menos conhecido, segue a autoridade de Say no que diz respeito aos
pontos centrais da doutrina teórica. Sua originalidade, porém, se refere à tentativa de
110
basear os princípios fundamentais da teoria econômica na filosofia de Condillac. Como
vimos no capítulo anterior, em sua obra os conceitos econômicos são derivados da
noção fundamental de ação humana, vista como uma relação entre meios e fins. Com
isso, seu autor se aproxima em termos de método e substância da teoria econômica que
prevaleceria um século mais tarde. Como já tratamos desses fundamentos, aqui nos
ocuparemos da teoria econômica em si desenvolvida pelo autor.

4.1. O ambiente intelectual: a ideologia


Os primeiros economistas da escola clássica francesa, como Germain Garnier, Jean-
Baptiste Say e Claude Destutt de Tracy escreveram suas obras entre o fim do século
dezoito e início do século dezenove. Para que possamos compreender a situação
problema de suas teorias, é necessário dedicarmos algum espaço ao ambiente intelectual
no qual viveram.
Esse ambiente é marcado pelo cenário político francês pós revolucionário. No período
anterior à Revolução Francesa, os iluministas nutriam um otimismo a respeito do futuro
da humanidade, em especial quando os privilégios e arbitrariedades do antigo regime
fossem suprimidos. A obra clássica associada a esse otimismo é o Ensaio de um Quadro
Histórico do Progressos do Espírito Humano escrito pelo Marquês de Condorcet (1743-
1794), publicado logo após sua morte, em 1784. Nessa conhecida obra, Condorcet
afirma a inevitabilidade do progresso, conforme a razão é aplicada à contínua
descoberta de novos conhecimentos, resultando em significativa melhora do padrão de
vida e desenvolvimento civilizacional.
Esse cenário foi desafiado no plano intelectual pelo ceticismo apresentado por Malthus
em sua crítica a Condorcet e na história pelos eventos ocorridos logo após a revolução.
Tanto a fase do terror quanto com a centralização política e o belicismo adotados por
Napoleão apontavam para a tenacidade das forças que se opunham ao progresso.
Esses eventos colocaram uma série de desafios para os intelectuais da geração seguinte
aos iluministas. Como coloca Keiser (1980, p. 144), os atores políticos foram
substituídos, mas as antigas práticas políticas não, não bastando, portanto, mudar as
regras. Sendo assim, o entusiasmo com a razão se contrapõe ao desencanto com a
política.
O problema enfrentado se torna então mais complexo: não apenas deve-se buscar
instituições mais robustas aos efeitos nocivos da atividade política, mas a própria
mentalidade da população deve se alterar caso se queira estabelecer um ambiente
favorável ao progresso. Utilizando termos modernos, não apenas devemos considerar a
estrutura de instituições formais, mas também as instituições informais, que incluem os
costumes. Estes devem ser alteradas caso se queira estabelecer ambiente propício ao
desenvolvimento econômico.
Os intelectuais deveriam, portanto, combinar em suas discussões as preocupações com
instituições políticas adequadas, reforma educacional e causas da prosperidade de um

111
país. Isso, na prática, requer o desenvolvimento de um referencial analítico que envolva
diversas disciplinas, como Filosofia, Direito, Política, Economia e História. As
discussões políticas de Montesquieu sobre como limitar o poder deveriam ser
aprofundadas, as discussões econômicas de Cantillon e Quesnay deveriam ser
modificadas para tratar da prosperidade em todos os setores, sem privilégios a
agricultura, o empirismo de Condillac e Helvétius deveria ser estendido para fornecer
tanto uma base para essa nova economia como um referencial para construir reformas
nos setores de educação e saúde.
Esse referencial é buscado por um grupo de intelectuais conhecidos como ideólogos,
termo derivado da ciência das idéias imaginada por Destutt de Tracy. No que diz
respeito a temas econômicos, autores como Roederer, Garnier, Say e Destutt de Tracy
são associados ao “industrialismo”, que, como nota James (1977), substitui o termo
trabalho pelo conceito mais amplo de indústria, que se refere a toda atividade produtiva,
seja qual for o ramo de atividade. Antes de estudar a economia industrialista,
precisamos situar sua origem no pensamento dos ideólogos.
O movimento dos ideólogos e sua relação com as teorias de Say são estudados em
detalhe por Forget (1999). Essa autora examina em seu livro as instituições, formais e
informais, que moldam a ideologia. Em primeiro lugar, temos os encontros nos salões
sociais que promoviam discussões entre os intelectuais do período. Em seguida,
examina o veículo que publicava textos de vários ideólogos, o jornal A Década
Filosófica, Literária e Política, publicado entre 1794 e 1807 e que tinha Say como
editor entre 1794 e 1800. Por fim, Forget cita o Instituto Nacional, instituição que
abrigou alguns dos membros do grupo.
Dada a sua importância para a vida intelectual francesa e para os economistas em
particular, digamos algo sobre o Instituto. Essa organização, estabelecida em 1795 para
substituir as extintas academias reais, tinha como objetivo promover as ciências e as
artes por meio de pesquisas, publicações e encontros científicos. Originalmente, o
Instituto era dividido em três “classes”, uma para ciências físicas e matemáticas, outra
para ciências morais e políticas e outra para artes. A classe de ciências morais era
dividida em seções, dedicadas ao estudo das sensações e idéias, moralidade, ciências
sociais e legislação, economia, história e geografia. Hoje, a classe de ciências morais
permanece como uma das cinco academias do Instituto da França, além das academias
dedicadas a letras, humanidades, artes e ciências. Como sugere seu nome, a seção
dedicada a sensações e idéias reflete o programa de pesquisa desenvolvido por Tracy.
Este último, juntamente como Cabanis, lecionavam no Instituto a partir da tradição
filosófica do sensacionalismo de Condillac.
Das instituições associadas ao movimento, passemos aos nomes. Como as doutrinas dos
ideólogos se desenvolveu em debates informais em salões de discussão, não existe um
grupo bem circunscrito de membros. Portanto, as listas de participantes apresentadas
por comentadores, como Forget (1999), Keiser (1980) e Terrel (2009) não coincidem
exatamente. A despeito disso, podemos citar entre os membros Cabanis, Condorcet,

112
Benjamin Constant, Germaine de Staël, Destutt de Tracy, J. B. Say, Roederer, Pinel,
Garat e Daunou.
Dentre as crenças dos ideólogos, iniciemos por suas convicções filosóficas. Estas fazem
parte da tradição do empirismo inglês, em particular do sensacionalismo de Condillac.
O desenvolvimento dessa tradição filosófica no grupo dos ideólogos é bem resumido
por um de seus membros, Cabanis (1815, p. ix-x):
Helvétius resumiu a doutrina de Locke, apresentando-a com grande clareza,
simplicidade e elegância. Condillac desenvolveu-a, ampliou-a, aperfeiçoou-a, ele
demonstra a verdade através de novas análises, mais profundas e mais capazes de
direcionar sua aplicação. Os discípulos de Condillac, cultivando diferentes ramos do
conhecimento humano, melhoraram ainda mais, alguns até corrigiram em vários
pontos sua imagem dos processos do entendimento.1
Cabanis acrescenta, em nota na mesma página, a observação de que: “Os Elementos de
Ideologia de meu colega Tracy é o único livro verdadeiramente completo sobre esse
assunto.”
Por ser um dos primeiros autores utilitaristas, cuja obra contribui indiretamente para o
desenvolvimento do pressuposto de auto-interesse na teoria econômica, devemos dizer
algo a mais sobre Helvétius além das breves menções a esse autor feitas nos capítulos
anteriores. Claude-Adrien Helvétius (1715 - 1771), por ser filho do médico da rainha, é
indicado por essa a um cargo público relacionado à arrecadação de impostos. Com o
alto salário derivado desse posto, se aposenta dez anos depois, se dedicando à vida
intelectual e filantropia.
Seu livro, Da Mente, contém uma das primeiras versões da filosofia utilitarista. Como
costuma ocorrer em geral com o utilitarismo, o livro provocou violenta reação
moralista. Condenada pela monarquia e pela igreja católica como um livro que defende
imoralidades e ateísmo, a obra foi condenado às chamas, tendo seu autor se retratado
três vezes.
O conteúdo do livro, por sua, vez, pode ser resumido da seguinte maneira: partindo da
crença empirista de que os estímulos ambientais imprimem sensações na mente,
formando as idéias, emoções e memórias, como em uma tabula rasa, as diferenças entre
indivíduos são explicadas pelo conjunto de estímulos aos quais cada um é exposto, em
particular no que diz respeito à capacidade de despertar emoções que atiçam a
curiosidade. Não existiriam, portanto, diferenças significativas de inteligência entre as
pessoas, sendo as diferenças de ordem ambiental. Um sistema educacional apropriado,
por conseguinte, seria a chave para o desenvolvimento dos indivíduos e para o
progresso da sociedade.
O livro é divido em quadro discursos. No primeiro, as faculdades mentais são
explicadas a partir de estímulos sensoriais e memórias. Ignorância de fatos relevantes
1
Helvétius a résumé la doctrine de Locke: il la présente avec beaucoup de clarté, de simplicité,
d'élégance. Coudillac l'a développée , étendue, perfectionnée: il en démontre la vérité par des analyses
toutes nouvelles, plus profondes et plus capables de diriger son application. Les disciples de Coridillac,
en cultivant différentes branches des connaissances humaines, ont encore amélioré, quelques-uns même
ont corrigé, dans plusieurs points, son tableau des procédés de l'entendement. .... Les Èlémens
d'Idéologie de mon collègue Tracy, sont le seul ouvrage vraiment complet sur cette matière.

113
respondem por julgamentos errôneos. No segundo discurso, a lógica imposta pela
impressão de estímulos que desencadeiam reações é aplicada aos julgamentos humanos,
intelectuais ou morais. O autor discute o auto-interesse em termos de um modelo de
comparação entre benefícios e custos ou, na linguagem utilitarista, prazeres e dores.
Tanto no universo moral quanto físico, o ser humano se caracteriza por um único
princípio – o princípio utilitarista de busca por prazer e fuga da dor. Helvétius (1758, p.
322) coloca o princípio do utilitarismo na voz divina, que se dirige ao homem:
Eu te dou a sensibilidade; é através dela que o cego instrumento da minha vontade,
incapaz de conhecer a profundidade das minhas visões, você deve, sem saber,
cumprir todos os meus desígnios. Eu te coloco sob os cuidados do prazer e da dor:
um e o outro velarão seus pensamentos, gerando tuas paixões; excitando suas
aversões, suas amizades, sua ternura, sua fúria; iluminando seus desejos, teus medos,
suas esperanças; revelando verdades, te mergulhando nos erros e, depois de ter feito
nascer muitos milhares de sistemas absurdos e diferentes de moralidade e legislação,
descobrirás os princípios simples, cujo desenvolvimento está ligado à ordem e
felicidade do mundo moral.2
Prezes e dores têm, naturalmente, sentido amplo: o auto sacrifício é interpretado como
um julgamento no qual a avaliação dos benefícios da escolha superam seus custos.
Como ocorre com todo pensador que reflita sobre temas humanos, a adoção de uma
teoria que explique o comportamento inevitavelmente nos leva à discussão do livre-
arbítrio. Ampliando o poder explanatório do mecanismo de escolha, recai-se em
determinismo. Mas, se as escolhas são determinadas por fatores conhecidos, reduz-se o
papel das noções de bem e mal.
O terceiro discurso é uma manifestação do debate entre natureza versus ambiente.
Defendendo a segunda alternativa, Helvétius crê na igualdade de intelectos. A paixão
por aprendizado é algo suscitado pela exposição adequada a estímulos. O indivíduo que
não desenvolve a paixão não se mantém atento ao mundo e se tornaria estúpido.
O quarto discurso, depois de tratar de várias formas de sentimentos, como aqueles
derivados da natureza ou provocados pela sociedade, discute a imposição de um sistema
educacional universal que respeite a teoria sobre aprendizado gerado no restante da
obra. Deve-se enfatizar que o autor atribui grande peso ao papel do legislador e a
necessidade de reforma de cima para baixo.
O escândalo provocado pelo livro fez com que Helvétius não fosse diretamente citado
pelos economistas franceses, que voltaram a fazer alusão a conceitos utilitaristas apenas
na segunda metade do século dezenove, sob a influência de John Stuart Mill. Antes
desse, a fundamentação explícita da teoria econômica em um modelo de escolha
individual que contemple custos e benefícios se faz presente desde o início da escola,

2
Je te doue de la sensibilité; c’est par elle qu’aveugle instrument de mes volontés, incapable de connoître
la profondeur de mes vues, tu dois, sans le saboir, remplir tous mes desseins. Je te mets sous la garde du
plaisir & de la douleur: l’un & l’autre veilleront à tes pensées, à tes actions; engendreront tes passions;
exciteront tes aversions, tes amitiés, tes tendresses, tes fureurs; allumeront tes desirs, tes craites, tes
espérances ; te dévoileront des vérités, te plongeront dans des erreurs, &, après t’avoir fait enfanter mille
systêmes absurdes & différents de morale & de législation, te découvriront un jour les principes simples,
au développement desquels est attaché l’ordre & le bonheur du monde moral.

114
sobretudo a partir de Destutt de Tracy, sujeito a influência indireta de Helvétius e
explícita de Condillac.
O nome Helvétius também se relaciona aos ideólogos pela atuação da esposa do
filósofo, Anne-Catherine de Ligniville, Madame Helvétius (1722 -1800), também
conhecida como Minette. A fortuna obtida por seu marido permitiu que ela mantivesse
por mais de cinco décadas em seu salão eventos que contaram com a presença de
filósofos como Diderot, Condillac e Condorcet, mais tarde ideólogos como Cabanis e
Destutt de Tracy, economistas como Turgot e Galiani ou ainda políticos como Thomas
Jefferson, Benjamin Franklin e Napoleão Bonaparte.
Entre os visitantes da viúva de Helvétius se encontrava Étienne Bonnot (1714-1780), o
abade de Condillac. Este nasceu no ano anterior a Helvétius e divide com este seus
preceitos filosóficos básicos. Condillac foi o filósofo mais importante para as doutrinas
dos ideólogos. Já tratamos no capítulo sobre Metodologia da Economia um espaço para
tratar da filosofia sensacionalista desse autor, de modo que neste ponto apenas
repetiremos o ponto central de sua filosofia. Como Helvétius, Condillac parte do
empirismo de Locke, que acredita que as idéias e os conceitos são derivados do
acúmulo de impressões sensoriais, por sua vez impressas na mente humana. Condillac
(1746), em seus Ensaios sobre a Origem do Conhecimento Humano, pretende expandir
essa análise ao tentar explicar a formação dos próprios processos mentais a partir das
sensações. Conceitos como a classificação de algo como agradável ou desagradável,
bem como a atenção, memória e cálculo seriam todos frutos de processos de
aprendizado derivado da ação continuada das sensações. Como indicamos
anteriormente, através do experimento mental da suposição de uma estátua que recebe
sucessivamente cada sentido, como olfato, tato ou visão, Condillac (1754) busca em seu
Tratado sobre as Sensações isolar que tipo de processo mental e que categoria de idéias
poderiam surgir a partir de cada um desses sentidos e da combinação entre eles.
Assim como Helvétius, a filosofia de Condillac reforça a importância da educação na
tradição dos ideólogos, inspirando ainda os trabalhos de Cabanis e Pinel em saúde, além
de fornecer a base para a economia de Destutt de Tracy, como vimos no nosso capítulo
sobre Metodologia da Economia.
Dentre os ideólogos, Claude Destutt de Tracy (1754-1836) ocupa um papel central.
Embora para a ciência econômica a obra de J.-B. Say tenha sido mais importante do que
a de Destutt de Tracy, este último teve um papel central na composição da visão de
mundo do grupo, ao articular as diversas áreas de interesse de seus membros em um
referencial comum, a ideologia, ou ciência das idéias, construída a partir do
sensacionalismo de Condillac.
Cabanis e Pinel se preocupam com o aspecto físico da teoria empirista da mente
desenvolvida por Condillac. Tracy, pelo contrário, se interessa mais pelas idéias em si
em sua obra em múltiplos volumes, os Elementos de Ideologia, que trata da origem das
idéias, da gramática, da lógica e da vontade. Como parte do Tratado da Vontade o autor
desenvolve sua teoria econômica, que busca instalar o referencial teórico desenvolvido

115
por Say em um alicerce composto por um modelo de ação derivado da sua ciência das
idéias.
Depois da morte da Madame Helvétius, Pierre Jean Georges Cabanis (1757 - 1808)
assume a função de organizar os encontros do grupo dos ideólogos. Embora tenha
estudado medicina e se tornado administrador de hospitais e professor de higiene da
Escola de Medicina de Paris, Cabanis não trabalhou como médico, ocupando-se em seu
lugar do trabalho intelectual.
Em sua principal obra, Relações entre os Aspectos Físico e Moral do Homem, Cabanis
(1815) desenvolve uma psicologia com base materialista, fisiológica, derivada das
sensações. Destutt de Tracy escreve para a introdução da obra um sumário dos
argumentos de cada capítulo ou “memória”, que Cabanis apresenta no Instituto
Nacional.
Na introdução dessa obra, Cabanis afirma que tanto o estudante de medicina quanto o
da moral devem olhar o homem sob o mesmo ponto de vista. A base metafísica usual da
moral, de acordo com seu argumento, deveria ser abandonada em favor de uma
perspectiva materialista, que examina os efeitos das sensações no organismo.
A tese central, materialista, é enunciada na primeira memória. Todo fenômeno psíquico
é derivado de sensações, que variam com indivíduo, idade, sexo, saúde e clima. As
sensações fornecem tanto a base para o estudo da moral como para o estudo da
diferença entre saúde e doenças. Nesse capítulo, o cérebro é comparado com o
estômago, digerindo sensações e excretando pensamentos. As demais memórias,
tomando a mesma base, abordam fenômenos psicológicos como o inconsciente, o
envelhecimento, diferenças entre sexos, diferenças de temperamentos, causas das
doenças psíquicas, influência de fatores ambientais, influência dos fenômenos mentais
nos fenômenos fisiológicos e, ao discutir as diferenças entre homens e animais, trata de
mutações e na última memória a aquisição de disposições adquiridas, resvalando assim
em temas evolucionários.
Embora estude o homem sob ponto de vista biológico, Cabanis é, como todo ideólogo,
preocupado com o desenvolvimento do ser humano pela educação. Atuando brevemente
como senador, foi crítico de Napoleão, que se torna antipático aos ideólogos após sua
ascensão ao poder.
Além de Cabanis, outro seguidor de Condillac desenvolve a dimensão biológica do
pensamento dos ideólogos, o médico Philippe Pinel (1745–1826). Pioneiro do
tratamento psiquiátrico, é conhecido por tentativa de classificar doenças de origem
mental e pela introdução de tratamentos humanitários dados aos pacientes desse tipo de
doença, abolindo castigos físicos.
Além dos ideólogos voltados à filosofia e medicina, devemos mencionar os autores que
centraram seus estudos em temas políticos e históricos. Entre estes, podemos citar
Dominique Joseph Garat (1749 - 1833) e Pierre Claude François Daunou (1761–1840),
que escreveram sobre a história da revolução francesa. Sobre teoria política, se
destacam os trabalhos de Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767 –1830).

116
Benjamin Constant foi um intelectual suíço naturalizado francês com importante
participação nos assuntos políticos da época. Notabilizou-se pela defesa da liberdade de
imprensa e garantia das demais liberdades civis, além de se opor ao comércio de
escravos e à expansão do poder político, em particular por Napoleão. As teses sobre
teoria política de Constant (2003), marcadas pelo problema da expansão do poder, são
sistematizadas em seus Princípios de Política.
Entre as idéias políticas de Constant (1874b), é central sua distinção entre as noções
antiga e moderna de liberdade. Entre os povos da Antiguidade a palavra liberdade
estaria associada à participação nas decisões políticas. Os cidadãos, mas não os
escravos, partilhavam do direito de decidir questões militares, fazer alianças com outros
povos, votar leis, participar da administração da justiça e fiscalizar atos administrativos.
Por outro lado, afirma Constant (1874b, p. 261), os antigos “admitiam, como
compatíveis com essa liberdade coletiva, a completa sujeição do indivíduo à autoridade
do todo”.
Por outro lado, entre os modernos, a noção de liberdade se relaciona ao sentido negativo
de ausência de coerção. Constant (1874b, p. 261-262) descreve nos seguintes termos o
que seria a liberdade para um norte-americano ou europeu contemporâneo:
É para cada um o direito de se submeter apenas às leis, de não ser preso, nem detido,
nem condenado à morte, nem maltratado de forma alguma, pelo efeito da vontade
arbitrária de uma ou mais indivíduos. É para cada um o direito de expressar sua
opinião, escolher sua indústria e exercê-la; dispor de sua propriedade, mesmo abusar
da mesma; ir, vir sem obter permissão e sem dar conta de seus motivos ou de seus
passos. É para cada um o direito de se reunir com outras pessoas, seja para
conferenciar sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus
associados preferem, ou simplesmente para preencher seus dias e horas de uma
maneira compatível com suas inclinações e fantasias. Finalmente, é o direito de
todos influenciarem a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou
alguns funcionários, ou por representações, petições e solicitações que a autoridade
é mais ou menos obrigada a levar em consideração.3
Comparando as duas noções (p. 262), teríamos que “entre os antigos, o indivíduo, quase
sempre soberano nos assuntos públicos, é escravo em todas as suas relações privadas.”
A principal explicação oferecida pelo autor para a transição entre os dois tipos de
liberdade diria respeito ao tamanho das sociedades. Com populações maiores, a
liberdade antiga se dissolve mediante a importância nula de cada cidadão particular nas
decisões coletivas (p. 266).
Outro fator listado, que será importante no desenvolvimento da escola clássica francesa
de economistas, é o contraste entre a guerra e o comércio, vistos como modos

3
C'est pour chacun le droit de n'être soumis qu'aux lois, de ne pouvoir être ni arrêté, ni détenu, ni mis à
mort, ni maltraité d'aucune manière, par l'effet de la volonté arbitraire d'un ou de plusieurs individus.
C'est pour chacun le droit de dire son opinion, de choisir son industrie et de l'exercer ; de disposer de sa
propriété, d'en abuser même; d'aller, de venir, sans en obtenir la permission, et sans rendre compte de
ses motifs ou de ses démarches. C'est, pour chacun, le droit de se réunir à d'autres individus, soit pour
conférer sur ses intérêts, soit pour professer le culte que lui et ses associés préfèrent, soit simplement
pour remplir ses jours et ses heures d'une manière plus conforme à ses inclinations, à ses fantaisies.
Enfin, c'est le droit, pour chacun, d'influer sur l'administration du gouvernement, soit par la nomination
de tous ou de certains fonctionnaires, soit par des représentations, des pétitions, des demandes, que
l'autorité est plus ou moins obligée de prendre en considération.

117
concorrentes de ação. Para Constant, em sociedades antigas, menores, os espólios
pilhados em uma guerra, como bens materiais e escravos, compensavam os riscos e
perdas envolvidas. Mais tarde, porém, o comércio seria “uma homenagem à força do
possuidor pelo aspirante à posse”, que faz com que cada um considere mais vantajoso
obter por acordo mútuo o que previamente era obtido pela violência. A redução da
influência política de cada pessoa, aliado à necessidade de tempo ocioso, não mais
disponível com a abolição da escravidão e dedicação a atividades produtivas,
contribuem para a transição do passado guerreiro para o futuro comercial.
Trazendo essa análise para a discussão da política de seu tempo, Constant interpreta a
expansão do estado como um anacronismo, uma volta ao passado guerreiro. Rousseau,
embora amante da liberdade, fornece com suas doutrinas pretextos para justificar a
tirania (p. 271). Ao mesmo tempo, o desprezo pela liberdade no sentido moderno se
torna explícito em autores como o abade de Mably (1709 - 1785), historiador e irmão de
Condillac, que desprezava Atenas, a sociedade mais próxima na Antiguidade do sentido
moderno de liberdade. Mably, segundo Constant, pretendia sujeitar completamente a
população aos governantes.
A causa mais importante defendida por Constant, de acordo com seu diagnóstico, era a
garantia das liberdades individuais. As garantias políticas, que ele denomina liberdade
dos antigos, devem preservar as liberdades modernas. De fato, para Constant (1874b, p.
283): “O perigo da liberdade moderna consiste em, estando absorvido no gozo de nossa
independência privada, e na busca de nossos interesses particulares, renunciemos com
demasiada facilidade a nosso direito de partilha do poder político.”4 Por outro lado, o
sacrifício da liberdade individual acarretaria em última análise a perda das liberdades
políticas.
Guiado pelo seu propósito de garantir a liberdade moderna, Constant com frequência se
opôs ao centralismo e tendência bélica de Napoleão. Na crítica às pretensões políticas
de Napoleão, Constant se aliou a uma conhecida oponente do imperador, Anne Louise
Germaine de Staël-Holstein (1766 – 1817), conhecida como Madame de Staël, a filha
de Jacques Necker (1732 - 1804), o banqueiro suíço que atuou como ministro das
finanças de Luiz XVI pouco depois da demissão de Turgot. Constant e Staël formaram
um casal por vários anos, ambos conhecidos pela oposição ao regime. Banida da capital,
Madame de Staël mantinha em Coppet, na Suíça, um salão que promovia discussões
políticas e filosóficas.
Por fim, devemos citar os economistas pertencentes ao grupo dos ideólogos, entre eles
Jean-Baptiste Say, outro intelectual cortejado e depois censurado por Napoleão. As
idéias desses economistas, porém, são exploradas mais adiante, no restante deste
capítulo. Aqui, nos ocupamos apenas do ambiente intelectual no qual viveram esses
economistas, que influencia os problemas que abordarão em suas obras. Como
afirmamos acima, esses economistas tinham diante de si o problema de pensar como

4
Le danger de la liberté moderne, c'est qu'absorbés dans la jouissance de notre indépendance privée, et
dans la poursuite de nos intérêts particuliers, nous ne renoncions trop facilement à notre droit de partage
dans le pouvoir politique.

118
estabelecer instituições e promover reformas que induzam a prosperidade ao seu país,
mudando não apenas as pessoas e as normas, mas também os costumes. Valorizando a
generalização da educação formal como ferramenta e cuidando de restrições
institucionais ao poder, esses autores desenvolveram uma teoria econômica que contesta
a eficácia de privilégios concedidos a setores favorecidos como forma de gerar
prosperidade. As bases filosóficas dessa teoria, ao mesmo tempo, será o mesmo
sensacionalismo que justifica a importância da educação e da saúde no programa dos
ideólogos.
O esboço do clima intelectual francês do período que fizemos nesta seção, aliado ao
retrato da teoria econômica desenvolvida até então, que estudamos no capítulo anterior,
fornecerá o pano de fundo para nosso estudo do surgimento da escola clássica francesa.
Como afirmamos no início deste trabalho, a evolução das idéias é gradual. A introdução
das doutrinas de Smith na França, que por sua vez dependem dos precursores que já
estudamos, não ocorre inicialmente a partir dos trabalhos de Jean-Baptiste Say, mas dos
esforços de dois condes que efetuam uma transição da teoria econômica centrada em
Cantillon para outra, centrada em Smith.

4.2. Os Condes Roederer e Garnier: entre a fisiocracia e o


classicismo
O Conde Pierre Louis Roederer (1754 – 1835) foi um dos primeiros autores franceses a
considerar em seus escritos econômicos as relações entre a tradição fisiocrata e Adam
Smith. Além de acadêmico, Roederer atuou na política. Formado em direito em
Strasbourg, trabalha no início de sua carreira como conselheiro da prefeitura em Metz.
No período revolucionário, foi eleito deputado na Assembleia dos Estados Gerais e, na
Assembleia Constituinte, fazia parte da comissão de impostos. Como político
moderado, teve que se esconder durante o período do Terror. Tendo participado do
golpe de Napoleão, é nomeado senador do império em 1802 e ministro das finanças em
Nápoles quatro anos depois. Em 1832 recebe o título de Pair de France. No plano
acadêmico, em 1796 tornou-se membro da Academia Francesa e do Instituto Nacional
na Classe de Ciências Morais e Políticas. Em 1800, ministra um curso de Economia no
Liceu de Paris5.
Com suas atividades políticas e acadêmicas, Roederer contribuiu para a promoção do
desenvolvimento das ciências sociais e da Economia em particular, sempre tendo em
vista a utilidade dessas disciplinas para, via ação política, contribuir com o
desenvolvimento francês. Rademacher (2001, p. 27), que examina as contribuições do
autor para as ciências sociais, reporta uma afirmação de Roederer na véspera da
revolução francesa, que lembra a relação de Lênin com as ideias de Marx na véspera da
revolução russa: “Há quarenta anos, cem mil franceses conversam com Locke,

5
Para mais informações biográficas, ver Coquelin e Guillaumin (1852), Leon Say (1900) e Rademacher
(2001).

119
Rousseau, Montesquieu [...]. O momento de colocar em prática [as suas lições]
chegou”.

Nosso interesse, contudo, repousa em suas crenças econômicas. Essas podem ser
constatadas pela leitura dos discursos de Roederer (1859) que compõem suas aulas,
lidas em 1800 e 1801 no Liceu de Paris. Essas aulas versam sobre direito de
propriedade (o que é, sua função, influência sobre riqueza e relação com direitos
políticos) e impostos. Como atesta Lentz (1994), nesses discursos Roederer se mostra
um porta-voz do pensamento smithiano, afirmando ser o trabalho a medida do valor,
tratando da repartição do produto entre salários, rendas e lucros e fazendo menção à
auto-organização dos mercados. Sabemos, porém, que esses temas não se manifestam
apenas no texto smithiano, de sorte que a demonstração da influência de Smith requer
mais evidências. De fato, para estabelecer sua tese, Lentz (1994, p. 322) relata que em
um discurso sobre barreiras aduaneiras, Roederer teria dito que o significado da Riqueza
das Nações de Smith para a Economia seria paralelo ao significado de O Espírito das
Leis de Montesquieu para a Política.
Encontramos também nesses discursos elementos que estão na base de algumas
diferenças entre as concepções teóricas de Smith e Say, em particular na rejeição do uso
do termo trabalho em favor do conceito mais amplo de indústria (industrie), que
incorpora outros tipos de atividade humana além de esforço físico.
Para rejeitar a tese fisiocrata de exclusividade da agricultura na geração de excedente de
valor, Roederer, como Turgot, estende o conceito de investimento para os demais
setores. A propriedade móvel se divide em três tipos de emprego, dando origem aos
proprietários de terra (propriétaires fonciers), capitalistas (propriétaires mobiliers) e
proprietários da indústria humana (propriétaires d’industrie). Estes últimos, como os
demais, investem fundos na aquisição de um negócio ou no aprendizado de uma
profissão. O adiantamento na forma de um curso de medicina é dado como exemplo
dessa preocupação com o capital humano.
Segundo James (1977, p. 246), Roederer se opõe ao argumento aristocrático ecoado
pela fisiocracia de que os direitos políticos privilegiados dos proprietários de terra
seriam justificáveis pelo interesse único destes em preservar o território. Roederer não
negaria a lógica de embasar direitos políticos nos interesses relativos à propriedade, mas
estende o argumento aos demais proprietários de fundos mobiliários. Se um proprietário
perde a renda de uma safra, um profissional liberal perderia o próprio estoque de sua
riqueza (capital humano) diante de uma agressão externa.
Para averiguarmos quais crenças econômicas são esposadas por esse autor,
examinaremos mais de perto um artigo de Roederer (1858) a respeito das causas da
prosperidade dos países. Embora esse texto revele mais a influência de Cantillon do que
de Smith, sua leitura nos mostra a valorização da atividade industrial, em contraste com
a ênfase na agricultura. Podemos dizer que a contribuição do autor consiste em

120
modificar as ideias de Cantillon para chegar a uma conclusão oposta àquela mantida por
esse último, colocando a indústria manufatureira em primeiro plano.
Para Roederer (1858, p. 600), a prosperidade de um país consiste da existência de uma
população grande e feliz. Vejamos cada um desses dois aspectos. A expansão da
população, nos mostra Cantillon, é limitada pela quantidade e fertilidade da terra. Mas,
se houver adiantamentos (poupança e investimento), é possível que o proprietário
sustente um grande número de atividades. Até esse ponto temos a repetição da
ortodoxia fisiocrata. Mas, como Cantillon e os fisiocratas observaram, o padrão de
gastos dos proprietários tem impacto sobre a produção total e aí surge a brecha para a
valorização da indústria manufatureira. A população de um país poderia aumentar se
houver desenvolvimento industrial (no sentido presente desse termo), pois os
estrangeiros passariam a demandar mais produtos industrializados, o que implica na
entrada de meios de subsistência no país (recursos da terra e trabalho), o que viabiliza o
aumento da população. Surge desse modo crenças heterodoxas (sob o ponto de vista
fisiocrata) sobre a pujança industrial como medida da opulência de um país:
Não apenas as manufaturas de coisas úteis têm uma influência imediata no cultivo
das terras, mas até mesmo as artes mais frívolas possuem propriedades por sua
sedução, e muitas vezes os arados trabalham para os chocalhos. (p. 600)6
A primeira vista isso parece implicar em uma volta ao mercantilismo. Mas o receituário
mercantilista de incentivar indústrias específicas através de subsídios e privilégios
monopolísticos é rejeitado. A “existência forçada” de certas indústrias promovida pelos
governos seria um equívoco, pois o objetivo da atividade produtiva seria o consumo,
não tendo sentido deslocar recursos de setores nos quais os capitais teriam maior
retorno, gerariam mais trabalho e produziriam algo mais útil sob o ponto de vista dos
consumidores. Tais políticas seriam como o sacrifício dos fins aos meios.
O único meio de evitar que subsistência saia do país seria então manter a indústria lado
a lado com a agricultura:
Assim, para se apropriar da subsistência de outro Estado, há apenas um caminho:
não deixar ser igualado na indústria, ter manufaturas mais ativas e inteligentes, que
sejam mais capazes que as deles de excitar, multiplicar e satisfazer os desejos e
fantasias dos consumidores. (p. 601)7
A primazia da terra é ainda contestada em termos da discussão sobre a causa do valor.
Para o autor, as instituições humanas não seriam capazes de subverter a “lei geral da
natureza” segundo a qual, em última análise, ninguém possuiria a terra, sendo seus
produtos posse de todos. Embora a terra seja fonte de riqueza, o valor desta é atribuído
por Roederer ao trabalho:

6
Non-seulement les manufactures de choses utiles ont une influence immédiate sur la culture des terres,
mais même les arts les plus frivoles disposent des proprietés par leur séduction, et souvent les charrues
travaillent pour des hochets.
7
Ainsi, pour s'approprier les subsistances d'un autre Etat, il n'y a plus qu'un moyen: c'est de ne pas le
laisser égaler par lui en industrie, d'avoir des manufactures plus actives, plus intelligentes, qui sechent
mieu que les siennes exciter, multiplier, satisfaire les sésirs et les fantasies des consommateurs.

121
E, na realidade, [a terra] pertence apenas ao trabalho do homem; ela é apenas um
depósito nas mãos daquele denominado seu proprietário; a retribuição que lhe é paga
é apenas o preço de sua guarda e, às vezes, de seus primeiros trabalhos ou o de seus
pais no desmatamento. Ela também não admite ao capitalista o produto de suas
ações anuais além do capital, formado de economias obtidas dela por trabalho
passado, seja empregado para avançar a subsistência daqueles que estão engajados
em um trabalho presente. Finalmente, pertence a todos os trabalhos porque os
trabalhos artesanais, como os da terra, são apenas o emprego de serviços recíprocos
dos homens, são apenas uma troca de seus esforços, e que é o esforço do homem que
gera seu título aos benefícios da terra. (p. 602)8
Essa passagem é destacada aqui porque tanto a tese de que o valor envolve troca de
serviços equivalentes quanto a negação de que exista valor da terra independente desses
serviços reaparecerão nas Harmonias Econômicas de Bastiat, que estudaremos no
próximo capítulo.
Passamos agora a considerar brevemente, na concepção de Roederer, o segundo
elemento constituinte da prosperidade de um país, a felicidade ou bem-estar do mesmo.
Essa preocupação revela o interesse pelo fenômeno do crescimento econômico, que
marca a economia smithiana. Para o autor, a indústria manufatureira também tem sua
responsabilidade na geração de bem-estar, pois o aumento de produtividade
proporcionado por ela é responsável pela melhora da qualidade de vida, que se
manifesta em produtos melhores e mais duráveis e obtidos com menos esforço,
possibilitando que luxos do passado se tornem comodidades para a maioria no presente,
além de aumentar a sensibilidade moral da população. Como conservador, Roederer
teme os vícios derivados tanto da opulência quanto da pobreza, preferindo um nível
intermediário de riqueza como adequado ao desenvolvimento moral da humanidade.
Essa mesma crença, como veremos, também será característica do pensamento de J.-B.
Say.
O texto de Roederer que acabamos de examinar testemunha a transição de Cantillon
para Smith, por meio de uma modificação das teses do primeiro para acomodar o
progresso industrial que se manifesta na obra do segundo. Algo semelhante ocorre na
obra de outro conde francês do período que escreveu sobre teoria econômica: Germain
Garnier (1754-1821), cuja carreira se assemelha em diversos pontos a de Roederer.
Também com formação jurídica, Germain Garnier9 foi secretário da filha de Luiz XV
no início de sua vida pública. Na revolução, foi delegado suplente na Assembleia dos
Estados Gerais em 1789 e três anos depois se tornou prefeito da região de Paris. Depois

8
Et dans la réalité elle n'appartient qu'au travail de l'homme; elle n'est qu'un dépôt entre les mains de
celui qui en est appelé propriétaire; la rétribuition qu'elle lui paye n'est que le prix de la garde qu'il en a
, et qualquefois de ses premiers travaux ou de ceux de seus pères en défrichement. Elle n'admet non plus
le capitaliste au produit de ses partages annuels qu'autant que les capitaux, tous formés d'épargnes des
dons obtenus d'elle par un ancien travail, sont employès à avancer la subsistance de ceux quis'occupet
d'un travail actuel. Enfin elle appartient à tous les travaux parce que les travaux des arts, comme ceux
des terres, ne sont que des services réciproques des hommes qui s'y emploient, ne sont qu'un échange de
leurs peines, et que c'est la peine de l'homme qui fait son titre aux bienfaits de la terra.
9
Não se deve confundir Germain Garnier com Joseph Clement Garnier, também economista filiado à
escola clássica francesa. Para mais informações biográficas sobre Gernain Garnier, ver Coquelin e
Guillaumin (1852) e Leon Say (1900).

122
de passar alguns anos estudando na Suíça, retorna à prefeitura após o golpe de
Napoleão, que o nomeia senador em 1804, vindo a presidir essa casa entre 1809 e 1811.
Tornou-se conde em 1808 e marquês em 1817. A despeito disso, em 1814 vota pela
destituição de Napoleão, continuando sua atuação pública depois da restauração
Bourbon, quando Luiz XVIII lhe concede o título de Pair de France. No plano
acadêmico, publica em 1792 um livro sobre ciência política, dedicado à relação entre
direitos de propriedade e direitos políticos. Quatro anos depois, publica um manual de
teoria econômica, com o objetivo de instruir a juventude francesa nessa ciência. Em
1802, traduz a Riqueza das Nações para o francês. Sua tradução, acompanhada de uma
introdução e notas, ajuda a estabelecer sua reputação como pioneiro na divulgação de
Adam Smith em território francês. Como Roederer, mistura conceitos de Cantillon e
Smith em sua obra.
Conforme reporta Allix (2012b, p. 318), o livro de Smith tivera duas traduções
francesas de má qualidade, publicadas em 1780 e 1790 quando, em 1802, surge a
tradução de Garnier, cuja qualidade é atestada pela reprodução de sua introdução em
edições em outras línguas. Embora a existência dessa tradução promova no país as
ideias do economista escocês, Garnier não as replica de forma acrítica. As introduções
que ele escreve para duas edições dessa obra, bem como os comentários encontrados no
início de seu livro-texto, o Resumo Básico dos Princípios de Economia Política,
mostram uma particular combinação das ideias de Smith com aquelas dos quatro
precursores que estudamos no capítulo anterior. Em particular, Cantillon será uma
referência importante, assim como ocorrera com Roederer.
Allix (1912b, p. 317), fiel à tradição marxista, interpreta como reflexo de conflitos de
classes a transição da fisiocracia para o classicismo e a posterior atitude anti-fisiocrata
dos economistas da escola clássica francesa. Na visão marxista sobre a Revolução
Francesa, os deputados eleitos pelos três estados da Assembleia Nacional
representariam de fato interesses de classe de proprietários de terra, capitalistas e
trabalhadores. Fazendo uso do reducionismo inerente à sociologia do conhecimento
derivada dessa doutrina, Allix (p. 322) acredita que Garnier, como representante dos
nobres, teria adotado a estratégia de pegar carona na crescente popularidade das ideias
de Smith para divulgar os princípios fisiocratas que refletiriam os interesses de sua
classe.
As crenças econômicas de Garnier, porém, requerem uma interpretação menos
simplista. Seu ataque à instituição da servidão de camponeses na Rússia, por exemplo,
não parece algo escrito por um mero sicofanta dos proprietários de terra:
Esse tipo de comércio é baseado na constituição política desses dois países [Polônia
e Rússia], onde a grande maioria da nação se encontra em estado de servidão, e sob
a opressão de um pequeno número de nobres que arbitrariamente dispõem de seu

123
trabalho, e os reduzem a consumir apenas o alimento mais rude. (GARNIER, 1896,
p. 107)10
Para que possamos esboçar um quadro mais acurado a respeito das ideias de Garnier,
vamos examinar brevemente os prefácios de Smith antes de abordar seu manual de
Economia.
Garnier escreve duas introduções à Riqueza das Nações11. Na primeira, compara as
doutrinas de Smith e Quesnay, constrói um guia de estudo dos princípios básicos do
livro prefaciado e compara o desempenho econômico da França e Inglaterra tendo em
vista as doutrinas de Smith. Na segunda edição de sua tradução, essa última comparação
é substituída por uma história dos “sistemas de economia política” adotados pelos
governos ao longo da história.
A respeito da comparação entre Quesnay e Smith, Garnier não nega a validade da lógica
do argumento fisiocrata, mas apenas sua relevância para as economias da época, o que
seria responsável pelo seu descrédito. Embora aceite que a terra seja fonte última de
riqueza, que apenas ela gere produto líquido e que os impostos recaem em última
análise sobre seus proprietários, a distinção entre trabalho agrícola e os demais seria
ociosa, pois todo artigo de riqueza é sempre fruto dos dois tipos de trabalho
simultaneamente, de modo que a contribuição de cada tipo não seria separável: “Não é
como se estivéssemos discutindo se o pé direito ou o esquerdo é mais útil na ação de
caminhar?”, pergunta Garnier (1802, p. 6), em metáfora que lembra o uso que Alfred
Marshall fará da imagem de uma tesoura na discussão da teoria do valor.
Garnier utiliza as teorias econômicas disponíveis na época de forma eclética. Ele repete
no espaço de poucas páginas a tese de Cantillon de que terra e trabalho em conjunto
constituem a fonte do valor, reafirma a validade das principais teses de Quesnay, nega a
utilidade prática dessas doutrinas, usa Condillac para negar que exista um valor absoluto
dos bens independente das necessidades e demandas dos consumidores e que, ao
permitir a troca de excedentes, o comércio confere valor aos bens e, finalmente, presta
homenagens a Smith, “[e]sse grande homem [que] reconheceu que o agente universal da
criação de riqueza era o trabalho” (p. xvii).
A despeito dessa união de conceitos provenientes de diferentes autores, Garnier não tem
dúvidas sobre a relevância maior de Smith. Para ele, a fisiocracia teria feito com que a
Economia fosse vista como uma ciência natural, pois nada se pode fazer de substancial
a respeito da terra, ao passo que Smith teria transformado a disciplina em uma
verdadeira ciência social, no sentido de que ela abre espaço para a inteligência humana
atuar no sentido de aumento da produtividade do trabalho. Nesse sentido, devem-se
considerar duas dimensões do trabalho, sua energia e extensão: a energia dependendo da
divisão do trabalho e invenção de máquinas e a extensão, que se relaciona com a razão

10
Ce genre de commerce eil fondé sur la constituition politique de ces deux pays, où la très-grande
majorité de la nation est dans un état de servitude et sous l’oppression d’un petit nombre de nobles qui
disposent arbitrairement de son travail et la réduisent à ne consommer que les alimens les plus grossiers.
11
Garnier (1802) e (1959).

124
entre o número de trabalhadores e consumidores conectados pelo comércio, sendo esta
última também dependente do acúmulo de capital.
Em termos institucionais, a tese central de Smith também é preservada: instituições que
favorecem a liberdade levam à ampliação do comércio, competição e uso crescente de
bens de capital, ao passo que sistemas proibitivos de comércio exterior levam a
resultados opostos. Na segunda edição de sua introdução, escrita em 1821, Garnier
(1859) lista a sucessão de sistemas restritivos adotados não pelos governos franceses,
mas pelos ingleses. A escolha de criticar governos estrangeiros talvez se relacione a
restrições de natureza política em país de forte tradição de censura ou a problemas
relacionados ao fato de que era um homem público.
De todo modo, o primeiro sistema proibitivo descrito, o sistema comercial (p. XXVII),
busca o enriquecimento via comércio marítimo, por meio de companhias com
privilégios monopolísticos. Além dos males advindos dos monopólios, tal sistema
resultou em guerras pela disputa de rotas comerciais. Como todos os economistas da
escola clássica francesa, com exceção de Leroy-Beaulieu, Garnier (1859, p. XXX)
rejeita o colonialismo:
Quando se observa que, por mais de dois séculos, tantas correntes de sangue
derramadas em diferentes partes do globo tiveram por principal razão apenas a
manutenção de alguns monopólios contrários aos verdadeiros interesses da nação
armada para defendê-los, percebe-se a grande importância do serviço prestado à
humanidade pelo ilustre autor da Riqueza das Nações, quando escreveu para lutar
vitoriosamente contra preconceitos tão poderosos e fatais. 12
O segundo sistema descrito por Garnier (1859, p. XXX), o sistema manufatureiro, ao
proibir importação de manufaturas estrangeiras e exportação de matérias primas,
empobreceu os parceiros comerciais, pelo mesmo mecanismo de transferência de meios
de subsistência descrito acima por Roederer. Finalmente, o sistema agrícola (p.
XXXVI), que privilegia a atividade rural, provoca apenas deslocamento de capital de
setores cuja produção é demandada para os setores favorecidos pelos governantes,
distorcendo a alocação de capital. Para Garnier (1859, p. XXXVI):
Depois de ter seguido por muito tempo o sistema comercial e o sistema de
manufatura, a legislação inglesa adere ao sistema agrícola. Como todos esses
diferentes sistemas consistem em sacrificar uma porção da liberdade e fortuna dos
súditos, para favorecer uma classe particular de agentes da indústria, eles
necessariamente se excluem mutuamente. Não se pode atrair pela força, para um
tipo de trabalho, mais capital daquele existente no estado natural das coisas, sem
arrancar esta porção de capital das espécies de indústria que a demandam, porque
todas estas medidas sistemáticas não aumentam a massa do capital nacional, até
mesmo porque como se supõem que seja insuficiente, que se tenta mudar sua
direção e fixar outras proporções diferentes daquelas que teriam ocorrido se o
governo permitisse liberdade de ação.

12
Quand on observe que, depuis plus de deux siècles, tant de flots de sang versé dans les différentes
parties du globe n'ont eu pour principal motif que le maintien de quelques monopoles contraires même
aux véritables intérêts de la nation armée pour les défendre, on sent toute l'importance du service qu'a
voulu rendre à l'humanité l'illustre auteur de la Richesse des nations, quand il a e'crit pour combattre
'victorieusement des préjugés aussi puissants et aussi funestes.

125
Assim, adotar o sistema agrícola era querer atrair para o cultivo e o melhoramento
das terras uma parte do capital empregado nas empresas de comércio e manufaturas;
e isso implica, até certo ponto, abandonar os outros dois sistemas.13
Esses fragmentos dos comentários introdutórios à tradução francesa da Riqueza das
Nações bastam para afirmarmos que, a despeito do apelo a outros autores no que diz
respeito a aspectos técnicos de teoria econômica, os elementos principais da teoria
smithiana, bem como as principais implicações de política econômica derivadas dessa
obra são defendidas de forma inequívoca por Garnier.
Depois de tratar de seu papel como divulgador de Smith, devemos nos dedicar ao estudo
do manual de Economia de Garnier (1796) que, no espírito da Ideologia, pretende
instruir a juventude pós-revolucionária francesa nos princípios básicos da disciplina, já
que o conhecimento dessa matéria faria parte importante do dever civil dos cidadãos de
uma república livre. Essa empreitada pedagógica resulta no que talvez seja o primeiro
livro-texto dessa disciplina. A própria Riqueza das Nações não serviria a esse fim. Em
sua introdução (p. v), Garnier elogia tal obra, mas reconhece que ela carece de “ordem e
método”, de sorte que o seu próprio manual forneceria um curso sistemático sobre o
assunto.
De fato, o exame da obra nos mostra um texto conciso, com definições seguidas de
discussões de resultados e breves ilustrações dos pontos discutidos, em uma ordem que
segue uma estrutura bem definida. O livro é organizado em três partes, sendo a primeira
dedicada à produção e distribuição de riqueza individual; a segundo dedicada a riqueza
nacional, com discussões dos tópicos que hoje associamos ao estudo das contas
nacionais precedendo a análise da prosperidade ou declínio das nações e por fim a
terceira parte é dedicada à relação entre economia e estado, discutindo os diferentes
sistemas de economia política, incluindo nessa discussão os tópicos de tributação e
endividamento público. Quanto a seu conteúdo, este não reflete apenas doutrinas
smithianas, como seria de se esperar do “divulgador de Smith na França”: Garnier
utiliza com frequência conceitos e discussões retiradas diretamente de Cantillon, Turgot
e Condillac, entre outros.
Dada a abrangência de tópicos abordados nessa obra, nos resta salientar apenas alguns
deles. A primeira parte tem a mesma estrutura plutológica que encontramos em
Cantillon-Turgot-Smith: capítulos dedicados à riqueza, terra e trabalho, com produção

13
Après avoir suivi pendant longtemps le système commercial et le système manufacturier, la législation
anglaise s'attacha au système agricole. Comme tous ces différents systèmes consistent à sacrifier une
portion de la liberté et de la fortune des sujets, pour favoriser une classe particulière d'agents de
l'industrie, ils s'excluent nécessairement l'un l'autre. On ne peut pas attirer par force, vers un genre de
travail, plus de capital qu'il ne s'y en fût porté dans l'état naturel des choses, sans arracher cette portion
de capital à l'espèce d'industrie qui l'aurait appelée, car toutes ces mesures systématiques n'augmentent
pas la masse du capital national, et c'est même parce qu'elles en supposent l'insuffisance, qu'elles
s'efforcent de changer sa direction et de la déterminer dans d'autres proportions que celles qui eussent eu
lieu si le gouvernement eût laissé faire.
Ainsi, adopter le système agricole, c'était vouloir attirer à la culture et à l'amélioration des terres une
portion du capital employé dans les entreprises de commerce et de manufactures; c'était, jusques à un
certain point, abandonner les deux autres systèmes.

126
discutida antes da distribuição via moeda e comércio. Economia é definida como a
ciência que estuda as leis da organização das sociedades, tendo em vista os meios de
torna-las poderosas e felizes. Duas condições necessárias para esse objetivo são
apontadas: a) a distribuição sábia de poder e produção e b) distribuição de riqueza de
modo a maximizar a população em relação ao tamanho do território. Essa forma de
colocar o objeto da ciência não difere, portanto, daquela encontrada em Roederer. E,
como na obra deste, o estudo dessas questões é dividido em dois ramos: a política ou
ciência social (formação e distribuição de poder) e economia política (formação e
distribuição de riqueza). E, como Roederer, Garnier dedica um livro para cada ramo.
Em seu livro sobre política, Garnier (1792) aborda questões relativas à liberdade,
direitos políticos constitucionais e sua usurpação, além do sentido do conceito de
propriedade e a relação entre classes. Nesse texto, tais questões são estudadas sob uma
visão de mudo fisiocrata. Por seu turno, em seu livro sobre economia, Garnier (1796)
discute, como acabamos de apontar, a produção e a distribuição de riqueza tendo em
vista a evolução da teoria econômica na época.
O estudo da produção é feito em dois capítulos, dedicados respectivamente à terra e
trabalho, notando-se novamente que quanto ao primeiro desses fatores, quase nada se
pode fazer para aumentar a prosperidade. Sobre a terra, a exposição é inteiramente
baseada em Cantillon, inclusive pelo emprego do exemplo deste autor a respeito da
demanda dos proprietários por cavalos reduzindo a população possível de ser mantida
no país (p. 22). Ao expor a teoria do capital de Turgot, digno de nota é o apelo à
abstinência, ao lado do risco, como justificativa para a existência de juros dos
adiantamentos do capitalista. A privação de satisfação presente induzindo o tomador de
empréstimo a oferecer compensação será mais tarde associada a Nassau Senior (1790-
1864).
Inspirado por Smith, o fator trabalho ganha maior importância. Seus retornos
dependeriam da sua quantidade e qualidade, que refletem outra maneira de expor os
fatores que afetam a divisão do trabalho em Smith, incluindo a extensão dos mercados.
A explicação dos salários, por sua vez, invoca vários elementos familiares. Quanto à
oferta de trabalho, como o trabalho envolve desutilidade, a quantidade ofertada depende
naturalmente do nível de salários. Quanto à demanda, a população economicamente
ativa depende da massa de adiantamentos a ser distribuída (aquilo denominado mais
tarde de fundo de salários) e reflete em última instância a demanda pelos produtos de
consumo. Garnier (1796, p. 31-32) expõe a relação entre os mercados de bens finais e
de trabalho de forma bem parecida com a teoria neoclássica dos preços dos fatores
produtivos:
Os salários, em geral, serão maiores ou menores, conforme o trabalho seja mais ou
menos demandado; porque, em um caso, os consumidores irão disputar o trabalho, e
competirão entre si para ter o produto; no outro, os trabalhadores competirão pelo
trabalho e se oferecerão com desconto.
O salário de um determinado tipo de trabalho será maior ou menor conforme o
produto desse tipo de trabalho será mais ou menos demandado: daí os altos salários

127
dos artistas nos países ricos, de modo que haja muito consumidores deste tipo de
indústria.14
Quanto ao equilibro no longo prazo, o salário tende ao nível de subsistência, devido ao
mecanismo cantilloniano de dinâmica populacional. A produtividade crescente do
trabalho que acompanha a especialização, por outro lado, implica em elevação do nível
de salários.
Modernizando o aparato teórico de Cantillon, a atividade empresarial é utilizada por
Garnier (p. 35) fora do referencial agrícola original. Empresários do trabalho
(entrepreneurs d’ouvrages) buscam, sob incerteza, antecipar oportunidades de lucro em
qualquer atividade econômica que envolve a demanda pelo fator trabalho. Em termos
alocativos (p. 46-47), os diferentes tipos de trabalho são distribuídos, sob competição
livre, em proporção condizente com a demanda pelos diferentes bens de consumo final e
as diferenças salariais consideram a desutilidade relativa de cada ocupação, de maneira
que tenhamos um equilíbrio nesse mercado. Nesse equilíbrio, a alocação é ditada pelas
necessidades e gostos dos consumidores.
Finalmente, no que diz respeito à relação entre emprego e aumento da produtividade
derivada da divisão do trabalho, Garnier (51-52) mostra que o desemprego gerado pelo
progresso técnico é local e temporário. A mudança tecnológica seria benéfica, pois o
aumento de produtividade seria permanente, os perdedores seriam poucos comparados
com os ganhadores, os preços dos gêneros produzidos seriam menores e por fim as
inovações, caso proibidas, entrariam de todo modo via importação.
Seguindo a estrutura plutológica, as trocas são discutidas na sequência da produção. No
caso, no final do capítulo sobre trabalho. Embora o manual de Garnier em geral siga
essa estrutura, e a despeito do uso constante de Condillac na discussão do comércio, na
segunda edição da obra em discussão introduz mais um elemento que lembra a teoria
moderna. No caso, Garnier usa um triângulo acompanhado por uma escala de preços de
um bem para representar a demanda em função do preço cobrado e da renda dos
indivíduos. O triângulo de Garnier é reproduzido na figura abaixo.

14
Le salaire, en général, fera plus ou moins fort , félon que le travail fera plus ou moins demandé ; parce
que, dans un cas, les consommateurs se disputeront le travail, et enchériront les uns sur les autres pour
en avoir le produit ; dans l’autre, les travailleurs se disputeront l’ouvrage, et s’offriront au rabais.
Le salaire d’un genre particulier de travail sera plus ou moins fort sélon que le produit de ce genre de
travail sera plus ou moins demandé: de-là le haut salaire des artistes dans les pays assez riches pour
qu’il y ait beaucoup de consommateurs de ce genre d’industrie.

128
Theocharis (1983, p 82-83)
reporta15 que Garnier dá duas
interpretações à sua pirâmide. 125
Na primeira, para cada preço,
a intersecção entre o triângulo 100
e a linha pontilhada que se
inicia nesse preço representa a 75
quantidade de consumidores
dispostos a demandar o bem.
50
Na segunda, a mesma coisa
representa a fração da riqueza
25
que os demandantes estariam
dispostos a sacrificar pelo
0
bem. Conforme o preço se
eleva, menor será a demanda pelo produto, até que para preços superiores a 100 o bem
se torna proibitivo para todos.
Da demanda, passemos ao estudo do preço de mercado dos bens produzidos, segundo o
manual de Garnier. Este utiliza a teoria do valor de Cantillon, mas sob novo termo:
“subsistências”. Embora a utilidade real ou imaginária dos bens seja apontada como a
causa primeira do valor, o preço de equilíbrio de longo prazo (Garnier utiliza a
expressão “valor ordinário” para se referir ao valor intrínseco de Cantillon) seria dado
pela quantidade de subsistências, ou terra e trabalho, empregados na fabricação dos
bens. Citando o paradoxo do valor, Garnier (p. 58) nega então que a utilidade determine
valores e preços de mercado.
Porém, depois de apresentar a teoria clássica do valor, em termos de custos de
produção, Garnier (p. 63) expõe a doutrina rival de Condillac, mais próxima à doutrina
moderna: “A troca é um contrato pelo qual cada uma das partes reciprocamente dá
menos para receber mais, isto é, renuncia a algo supérfluo ou superabundante para
receber uma coisa útil ou necessária”.

Não existem elementos para especularmos sobre as causas da presença simultânea em


uma obra de teorias incompatíveis entre si. Uma hipótese seria o desejo de reportar em
manual tudo o que foi escrito sobre o assunto ou ainda a não percepção dessa
incompatibilidade por parte do autor. De todo modo, o contraste entre as duas
explicações assumirá importância crucial logo em seguida, a partir da economia de Say.
Quanto a Garnier, podemos apenas reportar que logo após expor a teoria de Condillac
ele atribui ao comércio apenas a função de estimular a indústria produtiva, sem menção
aos demais usos da teoria subjetiva, o que revela proximidade maior com a concepção
plutológica de Economia.

15
Utiizamos a descrição de Theocharis (1983) porque não tivemos acesso a segunda edição do manual de
Garnier, na qual a figura aparece pela primeira vez.

129
Fenômenos monetários, como a discussão da inflação, do bimetalismo, dos bancos de
depósitos, casas de câmbio e empréstimos a juros, do mesmo modo, são tratados apenas
como facilitadores do comércio, ou novas tecnologias na indústria de transporte de
valor, cujo efeito seria o estímulo à produção. Consolida-se então no primeiro manual
de Economia a tradição Cantillon-Quesnay-Turgot-Smith de tratar a moeda entre as
discussões da produção e da distribuição da riqueza, como facilitador da troca de bens
produzidos. A exposição dos detalhes desses temas segue em linhas gerais as
exposições de Turgot e Condillac e não será detalhada aqui. Destacaremos apenas a
manifestação no manual de Garnier de uma característica típica da concepção
plutológica de Economia. Quando tratamos de Turgot, afirmamos que a agregação em
termos monetários conferiu ao capital uma espécie de existência autônoma,
independente das decisões dos agentes. Como riqueza autônoma, o capital seria capaz
de se reproduzir de forma automática. Sendo assim, a fisiocracia transfere ao
classicismo a crença em geração de riqueza dada apenas pela posse de algum recurso,
sem que funções econômicas significativas acompanhem essa posse:
Os capitalistas, ou meros proprietários de dinheiro, são, como os proprietários do
terra, homens ociosos que possuem os mais úteis instrumentos de trabalho, e que
dele derivam um lucro gratuito, isto é, um lucro que não é comprado por algum
trabalho nem qualquer risco real - assim eles podem suportar uma grande queda na
taxa de juros pagos a eles. (p. 104)16
Depois de descrever na primeira parte do manual os processos individuais de produção,
distribuição e consumo, a segunda parte trata de sua agregação, com fins de gerar
indicadores de crescimento do país como um todo. Esses indicadores poderiam ser
extraídos do exame da circulação ou da produção de riqueza, da ótica da renda nacional,
incluindo o exame do comércio internacional. Vários tópicos relevantes ao tema são
abordados, como a exclusão de dupla contagem e ilusão monetária no computo do
produto. Destacaremos apenas a observação de que o modelo de fluxo anual adotado, ou
circulação de riqueza, utiliza a teoria fisiocrata-clássica do capital, para a qual a
dimensão temporal do processo produtivo é predominante, em contraste com a hipótese
de sincronização perfeita da economia moderna. Assim, os diversos processos
produtivos podem demorar diferentes períodos de tempo desde os avanços iniciais até
sua maturação na forma de bens de consumo final.
Mas, independentemente da duração dos processos produtivos, ou seja, da quantidade
de capital circulante que entra e sai do sistema de circulação, em Garnier os indicadores
dessa circulação devem considerar o montante de bem finais produzidos e demandados
a partir da renda anual:
No entanto, a produção anual deve naturalmente procurar ser regulada pelo consumo
anual; e por mais longo que seja o período de circulação de uma determinada
riqueza, é provável que a quantidade distribuída anualmente pelos produtores

16
Les capitalistes ou simples proprîetaîres d’argent sont , comme les propriétaires des terres , des
hommes oisifs qui posiedent les instrumens les plus utiles du travail, et qui en retirent gratuitement un
bénéfice, c’est-à-dire, un bénéfice qui n’est acheté par aucun travail ni aucun risque réel - ainsi ils
peuvent supporter une grande diminution dans le taux de l’intérêt qui leur est payé.

130
corresponda à quantidade que também é anualmente retirada pelos consumidores. (p.
130)17
Depois de examinar os indicadores de produção de riqueza, a terceira e última parte do
manual de Garnier trata dos sistemas de economia política. O desempenho da economia
em termos dos indicadores dependerá por um lado da adoção dos diferentes sistemas,
que descrevem a natureza das políticas econômicas e regras que regulam o comércio
interno e externo e por outro da maneira como o estado se financia.
Quanto ao primeiro tópico, Garnier expõe de maneira smithiana o contraste entre o
sistema baseados no livre comércio e o sistema que faz uso de restrições e concessões
de monopólios. Esse contraste nós já abordamos por ocasião da exposição da introdução
de Garnier ao livro de Smith. Resta-nos então a tarefa de comentar algo sobre as
funções do estado e seus modos de financiamento.
Quanto às funções, além de atribuir ao estado a construção de estradas, manutenção do
valor da moeda e garantia de obediência aos contratos (p. 200), Garnier inclui o
estímulo a criação de novas indústrias (p.202). Quanto aos impostos, a análise do autor,
de cunho fisiocrata, compara os efeitos dos impostos diretos e indiretos; ou seja,
conforme incidam ou não sobre o produto líquido na forma da renda da terra.
A outra fonte de receitas estatais, o financiamento por endividamento, testemunha em
Garnier a diferenciação entre as abordagens normativas e positivas sobre o
funcionamento do estado, que discutimos na introdução deste trabalho. Depois de
descrever como obras públicas financiadas dessa maneira, tais como abrir canais ou
secar pântanos, resultariam em aumentos de produtividade da atividade privada, o que
permitiria a posterior arrecadação de impostos para pagar os empréstimos, Garnier
utiliza o pressuposto de auto-interesse no setor público (as paixões governamentais)
para concluir que, na prática, essa fonte de financiamento será usada para financiar
guerras:
Mas nenhum governo fez tal uso de seu crédito, e não podemos compará-los senão
ao pródigo que toma emprestado sem se garantir dos meios para o pagamento,
interessado em satisfazer suas paixões. Infelizmente, entre as paixões dos governos,
aquelas que alimentam esse poder funesto de tomar empréstimos são as mais
destrutivas e as mais mortíferas. (p. 235)18
Além do desvio dos recursos para atividades improdutivas, o endividamento público
adiciona ainda outra categoria à lista de indivíduos que vivem de renda sem realizar
trabalhos, além dos proprietários de terra e capitalistas:
Nesse estado de coisas, o efeito da dívida pública é criar uma nova classe de
consumidores que, em troca dos serviços prestados ao Estado pelo capital que lhes

17
Néanmoins la production annuelle doit naturellement chercher à se régler sur la consommation
annuelle ; et quelque longue que soit la période de circulation d’une richesse particulière, il est
vraisemblable que la quantité qui en est remise annuellement dans la circulation par les producteurs,
répond à la quantité qui en est aussi annuellement retirée par les consommateurs.
18
Mais aucun gouvernement n'a fait un pareil usage de son crédit, et on ne peut les comparer tous qu’au
prodigue qui emprunte sans trop s’assurer des moyens de rendre, et dans la feule vue de satisfaire ses
passions. Malheureusement encore, parmi les passions des gouvernemens, celles qu’alimente cette
funeste puissance d’emprunter, sont les plus destructives et les plus meurtrières.

131
emprestaram, cobram anualmente a renda dos proprietários uma quantidade de
subsistências proporcional à extensão desses serviços.
Esta nova classe, naturalmente ociosa, como os proprietários, consagra às suas
comodidades e aos seus prazeres o excedente de subsistência que recebe; e, como
eles, distribui esse excedente na classe industriosa e laboriosa que se decida aos
diferentes tipos de trabalho. (p. 238)19
A emergência da classe de rentistas que vivem do financiamento do estado será alvo de
uma proposta radical de mudança institucional por parte de Destutt de Tracy, como
veremos no final deste capítulo. De todo modo, essas observações situam Garnier entre
os autores da escola clássica francesa que desenvolverão a tradição de aplicar ao setor
público as mesmas ferramentas analíticas aplicadas ao setor privado.
Se Roederer e Garnier infundem ideias smithianas diretamente no sistema de Cantillon
e podemos reconhecer em seus textos explicitamente a herança dos precursores
estudados no capítulo anterior, o próximo autor que abordaremos, J.-B. Say, pretende
abandonar toda teoria econômica prévia e reiniciar sob novas bases a partir da obra de
Adam Smith.

4.3. Jean-Baptiste Say: o patrono da escola clássica francesa


Jean-Baptiste Say (1767 – 1832) se propõe a realizar a mesma tarefa empreendida por
G. Garnier: escrever um manual que sistematize essa disciplina tendo em vista as
contribuições de Adam Smith, enfatizando a importância do desenvolvimento industrial.
Essa tarefa se concretiza no seu Tratado de Economia Política. A esse manual, porém,
foi reservado um destino maior. Além de se tornar a obra central da escola clássica
francesa, transcendeu as fronteiras nacionais para se tornar um livro-texto empregado
em universidades de diversos países, até dar lugar ao manual de J. S. Mill, que mantém
a estrutura de exposição da disciplina consagrada por Say, em termos da sequência
plutológica de produção, distribuição e consumo de riqueza.
O sucesso da obra como manual, porém, contribuiu para que a apreciação sobre a
importância de seu autor para a história do pensamento econômico fosse diminuída.
Say, que deu importantes passos para consolidar a estrutura da teoria clássica, é com
frequência retratado como um mero divulgador de Smith na França ou no máximo como
o autor da tese insustentável de que a moeda nunca afeta a produção, segundo a
representação feita por J. M. Keynes.
Como observou Teilhac (1927, p. 1) quase um século atrás, mas que se mantém verdade
até hoje, “de Say se fala muito sem que se tenha lido nada”. Uma apreciação mais

19
Dans cet état de choses, l’effet de la dette publique est de créer une classe nouvelle de consommateurs
qui, en échange des services par eux rendus à l’Etat par les capitaux qu ils lui ont prêtés, prélèvent
annuellement sur le revenu des propriétaires une quantité de subsistances proportionnée à l’étendue de
ces services. Cette class nouvelle, naturellement oisive, comme les propriétaires, consacre à ses
commodités et à ses jouissances le superflu de subsistances qu’elle reçoit; et, comme eux, elle distribue
ce superflu dans la classe laborieuse et industrieuse qui remplit les divers emplois du travail.

132
qualificada, no entanto, deve considerar que a primeira edição do Tratado data de 1803,
anterior às contribuições dos economistas clássicos ingleses posteriores a Smith, autores
esses que sofreram influência de Say. No nosso capítulo dedicado à Metodologia da
Economia nos deparamos com um exemplo desse fenômeno, quando encontramos em
Say teses comumente associadas à J. S. Mill.
Parte da crença de que Say seria mero divulgador de Smith, no entanto, pode ser
creditada ao próprio comportamento do autor. Ao contrário de Garnier, que buscou
integrar Smith na história da evolução da Economia, Say rejeita a tradição teórica
anterior a Smith, contribuindo para a crença que sobrevive até ao presente de que Smith
seria o pai fundador da disciplina. Essa rejeição tem bases metodológicas e práticas. Em
termos metodológicos, Say crê que Smith seria o primeiro economista a usar o método
empírico, ao contrário dos fisiocratas, que teriam construído sistemas metafísicos a
partir de pressupostos hipotéticos, descolados da realidade. Em termos práticos, dado
seu envolvimento no círculo dos ideólogos, Say acreditava na importância da
industrialização de seu país. Rejeitava por isso tanto o mercantilismo, que buscava
fomentar a indústria via protecionismo e concessão de privilégios monopolísticos,
políticas cujos efeitos Say pôde testemunhar na França, quanto a fisiocracia, que reagia
ao mercantilismo através da defesa da importância maior da agricultura e da
manutenção de preços dos bens agrícolas, a despeito do alegado liberalismo de seus
defensores. Smith, por outro lado, oferecia a opção de industrialização sem
favorecimento a setor algum.
Se fosse possível a construção de teorias a partir de hipóteses inteiramente baseadas em
observação, a afirmação de Say (1841, p. 38) de que teria “lido tudo para esquecer em
seguida” poderia ser levada a sério e poderíamos descartar completamente o nosso
capítulo sobre precursores. No entanto, a economia smithiana é ela própria em larga
medida baseada nos mesmos precursores rejeitados e cujas ideias se fazem presentes,
como teremos a oportunidade de verificar nesta seção, também na obra de Say.
Se por um lado o uso de livros-texto aumenta sobremaneira a difusão das ideias de uma
disciplina, devido à sua condensação em uma mesma fonte, a instrução baseada
exclusivamente nos mesmos gera ao mesmo tempo um empobrecimento cultural, na
medida em que reduz a exposição à diversidade de opiniões e até mesmo aos contextos
dos autores cujas ideias são retratadas nos manuais. Na escola clássica francesa, a
adoção do Tratado de Say não foge a regra: a despeito de ajudar a formar de fato uma
tradição de pesquisa, encontraremos no desenvolvimento da escola uma maior
uniformidade de opiniões, tal como descreve Kuhn em sua caracterização de ciência
normal.
A despeito disso, Say e seus seguidores continuam desenvolvendo a tradição analítica
francesa cuja evolução nós temos descrito até aqui. Em particular, encontramos nos
clássicos franceses, em contraste com os ingleses, uma importância maior dada ao
estudo do funcionamento dos mercados em termos microeconômicos, com ênfase nos
propósitos da atividade produtiva, na demanda, utilidade e também no tipo de análise do
133
funcionamento econômico do estado, no contexto de análise institucional comparada.
Ao construir um quadro que reflete a estrutura da análise econômica de Say, teremos
condições de identificar os elementos distintivos da escola clássica francesa que serão
desenvolvidos pelos autores subsequentes.
Iniciemos esse quadro com algumas informações bibliográficas. Jean-Baptiste Say20
nasceu em 1767 em Lyon, em uma família de refugiados em Genebra após o Édito de
Fontainebleau de Luiz XIV, que revogava em 1685 o Édito de Nantes, reestabelecendo
a perseguição aos protestantes na França. Depois de passar a infância em Lyon, a
família de Say muda em 1780 para Paris, onde aos quinze anos o futuro economista
começa a trabalhar. Aos 19 anos, a educação comercial sua e de seu irmão Horace
continua em uma viagem de dois anos à Inglaterra, onde pode observar os efeitos da
industrialização. É desse período a conhecida história sobre o imposto das janelas, que
levou o proprietário do local onde Say se hospedava a bloquear uma das janelas. A
observação de Say sobre o fato é reproduzida no dicionário editado por seu neto, Leon
Say (1900, p. 783):
o Parlamento, ou melhor, o Ministro, acabara de decretar o imposto sobre portas e
janelas, e o locador, tendo calculado que uma janela era suficiente para nosso
cômodo e banheiro, murou a outra. Refleti então que eu teria uma comodidade a
menos e que minha janela murada não traria nada para o Tesouro. Este pode ter sido
o primeiro dos meus pensamentos sobre economia política. 21
De volta à França, trabalha em uma empresa de seguros, cujo dono o introduz a obra de
A. Smith. Depois de se casar em 1793, foge durante o Terror para uma vila perto de
Paris e no ano seguinte se torna redator chefe do novo jornal La Décade pilosophique,
littéraire et politique, par une société des républicains, dedicado às ideias dos
ideólogos. Entre 1799 e 1803 atua na seção de finanças do Tribunat, uma das
assembleias do período bonapartista.
Depois da publicação de seu Tratado de Economia Política em 1803, Say se encontra
com Napoleão e recusa a solicitação do imperador para que fosse acrescentada na obra
justificação para o protecionismo e regulações durante períodos de guerra. Expulso do
Tribunat e sem poder exercer o jornalismo, embarca a partir de 1804 em uma carreira de
industrial do ramo de algodão, estabelecendo uma fábrica no vale do Oise e no ano
seguinte uma planta maior em Auchy-les-Hesdins, que empregava mais de quatrocentas
pessoas.
No ano que Napoleão invade a Rússia, Say vende a fábrica para seu sócio e se muda
para Paris. Depois da abdicação do imperador, publica uma segunda edição do Tratado.

20
Para dados bibliográficos mais detalhados, consulte L. Say (ed.) (1900), Coquelin e Guillaumin (ed.)
(1852), Teilhac (1927) e Forget (2000).
21
Segundo o Nouveau Dictionnaire D’Économie Politique: «le Parlement ou plutôt le ministre venait de
décréter l'impôt des portes et fenêtres, et mon hote ayant calculé qu'une fenêtre suffisait pour notre
travail et notre toilette, il fit murer l'autre. Je réfléchis alors que j'aurais une jouissance de moins et que
ma fenêtre murée ne rapporterait rien à la Trésorerie. Cést peut-être la première de mes réflexions sur
l'économie politique.». Teilhac (1927, p.8), por sua vez, atribui a Say a frase: “J'ai perdu une fenêtre, se
disait-il, et le trésor n'y a rien gagné. Evidemment il n'y a en tout ceci que des dupes ”.

134
Enviado pelo novo governo em 1815 a uma missão na Inglaterra, estuda as condições
econômicas desse país depois do isolamento imposto pelo bloqueio naval. Do outro lado
do canal, já estabelecida sua fama, se encontra com Ricardo e Bentham, além de sentar-
se na cadeira de Smith em Glasgow. No retorno dessa viagem, publica Da Inglaterra e
dos Ingleses (1815), livro no qual relata tanto o endividamento do estado e os efeitos
dos altos impostos sobre os preços quanto os progressos da indústria inglesa.
Como nota Theilhac (1927, p. 31), Say, como entusiasta pelo progresso industrial, se
impressiona com as ferrovias inglesas. Inspirado pelo que observara, Say (1840, p. 286-
7) especula até sobre o uso de veículos motorizados nas cidades:
É sem dúvida, escreveu ele, uma aplicação maravilhosa dos motores cegos que esses
carros a vapor vistos em algumas partes da Inglaterra arrastam em sua esteira uma
longa fila de carros carregados. Há algo de mágico nessas caravanas artificiais que
atravessam o país como se fossem movidas por um princípio vital. É superar uma
dificuldade muito grande que ter conseguido por em movimento o motor com a
resistência. Nunca, talvez, a inteligência do homem se aproxime tanto do poder do
Criador. Estamos até a ponto de transportar passageiros em ferrovias por meio de
motores a vapor, com surpreendente rapidez. Não sei até onde poderemos superar os
acidentes que as localidades apresentam, e especialmente as subidas e descidas; e
assumindo que superemos essas dificuldades, nenhuma máquina nunca vai fazer,
como os piores cavalos, o serviço transmitir pessoas e bens no meio da multidão e
confusão de uma cidade grande.22
Na parte final de sua vida, Say se dedica à atividade docente. Ocupa em 1819 a cadeira
de economia industrial no Conservatoire National des Arts et Metiers. Dessa atividade
docente surge em 1828 seu extenso Curso Completo de Economia Política Prática. No
ano anterior a sua morte ocupa ainda a primeira cadeira de economia política no College
de France.

4.3.1. Olbie
Convém iniciar o exame da obra de Say com um texto submetido a um concurso no
início de sua carreira intelectual, já que tal texto revela alguns aspectos importantes de
seu pensamento econômico e político. Em 1797 a classe de Ciências Políticas e Morais
do Instituto Nacional oferece um prêmio para quem desse uma resposta adequada a
questão: “Quais são as melhores instituições sobre as quais se deve embasar a
moralidade de um povo?” Como observamos antes, entre os intelectuais franceses do
período, a esperança de que a partir da Revolução Francesa a razão prevaleça em
assuntos políticos cede lugar ao ceticismo. A frustração das esperanças revolucionárias
22
C'est sans doute une merveilleuse application des moteurs aveugles que ces chariots à vapeur que l'on
voit à certains endroits de l'Angleterre traîner à leur suite une longue file de voitures chargées. Il y a
quelque chose de magique dans ces caravanes factices qui traversent le pays comme si elles étaient mues
par un principe de vie. C'est avoir vaincu une fort grande difficulté que d'être parvenu à faire marcher le
moteur avec la résistance. Jamais peutêtre l'intelligence de l'homme ne s'est approchée de plus près de la
puissance du Créateur. On est même à la veille de transporter sur des chemins de fer par des machines à
vapeur les voyageurs avec une rapidité surprenante. Je ne sais jusqu'à quel point on pourra vaincre les
accidents que présentent les localités, et surtout les montées et les descentes; et en supposant qu'on
surmonte ces difficultés,nulle machine ne fera jamais, comme les plus mauvais chevaux, le service de
voiturer les personnes et les marchandises au milieu de la foule et des embarras d'une grande ville.

135
convida naturalmente a questionamentos sobre a eficácia de meras mudanças de regime
que não contemplem questões mais amplas, como considerações sobre a natureza
humana e problemas morais.
O prêmio do concurso não foi concedido a nenhum dos candidatos inscritos, visto que
as respostas não refletiram exatamente o que os organizadores tinham em mente. De
fato, em uma nota de esclarecimento reproduzida em Foget (1999, p. 192-195),
Roederer deixa claro que a pergunta seria mais moral do que econômica. Esse autor
esclarece que a moralidade é influenciada por todas as instituições. Estas são
classificadas por ele em instituições civis, dedicadas à relação entre cidadãos;
instituições políticas, que tratam da relação entre o estado e os cidadãos e instituições
religiosas, voltadas à relação entre cidadãos e um ser superior. Instituições morais, por
sua vez, dizem respeito apenas a um subconjunto dos três tipos anteriores, já que as
instituições em sua totalidade, além da moral, influenciam fatores como segurança,
prosperidade e bem-estar da população. A pergunta do concurso, porém, se referiria
apenas a questões de ordem moral.
O texto apresentado por Say (2014) é escrito na forma de uma utopia intitulada Olbie, o
nome de uma sociedade fictícia que apresenta as instituições adequadas solicitadas no
concurso. Embora não seja um texto sobre teoria econômica, ele aborda temas dessa
área, que revelam elementos da visão de mundo do autor.
A escolha de Say de expressar suas opiniões na forma de uma utopia sofre do problema
fundamental inerente a esse gênero. Criticar aspectos da sociedade presente através da
criação de uma alternativa idealizada traz consigo sempre uma dúvida: as instituições
utilizadas na descrição dos aspectos louváveis do modelo servem apenas para fazer o
contraste com o mal existente no mundo real ou refletiriam a crença de seu autor na
viabilidade do arranjo institucional proposto? É impossível não indagar se a bem-
aventurança descrita nesse tipo de texto resistiria ao teste de robustez dado pela
indagação sobre o que ocorreria caso os habitantes do mundo ideal rejeitem as regras
estabelecidas ou se comportem de forma diferente daquela imaginada pelo idealizador
da utopia.
Essa ambiguidade alimenta, por exemplo, a controvérsia em torno da tese popperiana a
respeito do caráter totalitário da República de Platão, quando os defensores deste último
afirmam que a utopia seria apenas uma metáfora para questões não políticas. De
qualquer modo, imaginar o que ocorreria no falanstério de Fourier se o time lilás se
recusasse a competir pelas melhores formas de cultivar crisântemos nos conduz
imediatamente ao universo distópico de Zamiátin, Orwell e Huxley, nos quais a
pretensa harmonia social é perseguida sempre por meios totalitários.
Essa ambiguidade se manifesta também em Olbie, utopia na qual todos os cidadãos se
dedicam a atividades econômicas produtivas, não parasitárias, mas cuja virtude
individual é vigiada de perto por tribunais morais. Façamos um esboço da obra.

136
Say é influenciado pela preocupação iluminista com a instrução, que é reforçada pela
importância central que esse tema assume nos escritos dos ideólogos. É, portanto,
natural que a educação ocupe papel central no ensaio de Say submetido ao concurso. De
fato, sua proposta de aperfeiçoamento moral envolve a reforma dos adultos e a educação
dos jovens, sendo que essa última implica tanto instruir ou ensinar coisas úteis quanto
moldar as faculdades morais e físicas do estudante. A educação, para Say (2014, p. 33),
tem o efeito de nos civilizar, induzindo o comportamento produtivo:
O homem que estudou a agricultura, e que sabe o que é necessário para cultivar uma
planta, para fazer crescer uma árvore, aquele que conhece seus usos econômicos,
tem menos probabilidade de destruí-las do que os ignorantes que não fazem ideia
desses bens preciosos. Da mesma forma, o homem que estudou as fundações nas
quais a ordem social e a felicidade das nações são fundadas, nunca as solapa sem se
repugnar.23

Dentre todos os conhecimentos benéficos para a sociedade, o mais importante seria a


compreensão geral dos princípios básicos da ciência econômica. De fato, para Say
(2014, p. 36, n.r. 24), “Qualquer pessoa que produza um tratado elementar sobre
economia política adequado para ser ensinado em escolas públicas, e a ser ouvido pelos
funcionários públicos mais subalternos, pelos camponeses e pelos artesãos, seria um
benfeitor de seu país.” Evidentemente, o próprio Say procurou ser tal benfeitor. Não é
de surpreender que o conteúdo de seu tratado tenha sido apresentado em diversas obras,
constantemente revisadas, direcionadas a diferentes públicos.
Mas qual seria essa importância fundamental para a sociedade que o estudo da
Economia teria? Say não oferece uma resposta explícita, mas seus comentários
econômicos ao longo do texto nos permite inferir que, além de considerar a disciplina
útil para o fomento da atividade produtiva e adoção e preservação do arcabouço
institucional favorável a essa atividade, o conhecimento econômico tem a função de
ensinar o valor da poupança necessária para o desenvolvimento pessoal e nacional,
como ficará explicito em toda sua obra econômica. No Olbie, parcimônia maior é obtida
mediante redução da desigualdade econômica. Na tradição fisiocrata e smithiana, os
gastos em “luxos de decoração” ou gastos improdutivos são desfavoráveis ao
mecanismo de reprodução da riqueza. No plano moral, tema do concurso, Say repete o
argumento que vimos em Roederer de que tanto a pobreza quanto a riqueza extrema
seriam prejudiciais. Os pobres são sujeitos a crimes e prostituição e ricos são propensos
à ociosidade e dissipação de recursos.
Os olbianos, por outro lado, de posse de seu tratado de economia política, que
funcionaria como um primeiro livro de moralidade, se encontravam no meio termo
saudável. Embora o comportamento industrioso, não dissipativo, seja de fato

23
L’homme qui a étudié l’agriculture, et qui sait ce qu’il faut de soins pour faire pousser une plante,
pour élever un arbre, celui qui connaît leurs usages économiques, sont moins près de les détruire, que
l’ignorant chez qui ces précieuses productions ne réveillent aucune idée. De même, l’homme qui a étudié
les bases sur lesquelles se fondent l’ordre social et le bonheur des nations, ne les sape jamais sans
répugnance.

137
relacionado na teoria econômica às maneiras pelas quais a poupança e o investimento
levam ao crescimento, esse texto da juventude revela fortes convicções conservadoras e
até mesmo paternalistas. A população deveria ser ensinada a melhor administrar seus
recursos futuros. Esse moralismo, que destoa do liberalismo do autor sobre outros
temas, permanecerá ao longo de toda sua obra. Como veremos mais adiante, a decisão
relativa a consumo e investimento estará pouco conectada na obra de Say a preferências,
mercados e sistemas de preços, refletindo em vez disso qualidades morais.
Como nota Forget (1999, p. 109), a leitura de Olbie revela adicionalmente um papel
muito mais ativo para o legislador do que seria de se esperar se aplicarmos a noção
smithiana de auto-organização ao processo de evolução institucional. Para Say, elites
governamentais ilustradas devem se preocupar com o estabelecimento da moral de um
povo. Say foge da tradição desenvolvida no iluminismo escocês também no que diz
respeito à relação entre moralidade individual e resultados coletivos, tal como
desenvolvido por Mandeville. Say (p.44-45), por exemplo, contrasta o espírito nobre e
altruísta das pessoas com moral elevada com os povos “dedicados em demasia ao
comércio”, como os fenícios e os cartaginenses na antiguidade e os venezianos e
holandeses mais recentemente, desejando ainda que a riqueza norte-americana não
desvie seus habitantes da virtude. Nada mais distante da Fábula das Abelhas do que o
seguinte quadro desenhado por Say (p. 46) a respeito da rotina dos olbianos:
Os prazeres que são apreciados em família são os menos dispendiosos; eles
preferiram assim aumentar suas economias; e quando chega o dia de descanso,
ninguém podia ver em Olbie, como antes, cabarés cheios de bêbados que se revezam
em cantar e praguejar: mas pode-se encontrar com frequência na zona rural perto da
cidade, um pai, uma mãe e seus filhos, todos animados por uma alegria tranquila,
advinda da felicidade, e que caminhavam em direção a algum encontro campestre
com colegas do mesmo ramo de atividades que eles.24

Os detalhes institucionais para o advento desse estado de coisas não são discutidos
explicitamente, mas encontramos indícios, como permissão aos cidadãos para a
realização de depósitos periódicos para fins providenciais, banimento de loterias e
ausência de autorização para a publicação de livros sobre magia.
Depois de ter destruído as causas da corrupção por medidas punitivas, com podemos
concluir pelos exemplos utilizados pelo autor, os olbianos seriam estimulados ao
comportamento virtuoso através do exemplo. Haveria em Olbie prêmios para toda sorte
de atividade recomendável e estátuas e celebrações para grandes feitos. Say (p. 49)
também elogia o comportamento dos imperadores chineses que uma vez por ano dariam
o exemplo de “colocar sua mão no arado”.

24
Les plaisirs qu’on goûte en famille sont les moins dispendieux ; aussi les préféraient-ils pour grossir
leur épargne; et lorsque le jour du repos venait, on ne voyait plus, comme auparavant, à Olbie, les
cabarets pleins d’ivrognes abrutis, chantant et jurant tour à tour : mais on rencontrait fréquemment dans
les campagnes qui en-tourent la ville, un père, une mère et leurs enfants, tous animés d’une gaîté
tranquille, celle du bonheur, et qui marchaient vers quelque rendez-vous champêtre pour s’y réunir avec
d’autres amis de même état qu’eux.

138
O elemento mais perturbador da utopia de Say, porém, diz respeito à instituição de um
tribunal de censores (p. 58). Seus membros seriam guardiões da moral, composto por
nove idosos eleitos cuja carreira teria sido honrosa e que na velhice não teriam
interesses pessoais a não ser sua própria memória. Esses juízes da moral teriam o poder
tanto de multar desvios de conduta quanto premiar exemplos construtivos.
Olbie nos revela algumas características do pensamento de Say que são permanentes e
outros passageiros, tributáveis a juventude do autor. Dentre as primeiras, presente em
toda a obra do autor, se encontra a defesa do industrialismo, a crença de que a
prosperidade das nações depende do estabelecimento de instituições sob as quais o
desenvolvimento industrial possa florescer, pela promoção do comportamento
industrioso e poupador.
Entre as fontes desse industrialismo, podemos citar a origem comercial da família do
autor e a defesa de uma filosofia empirista, que induz a ânsia por aplicar métodos
racionais à atividade econômica. Essa ânsia, que se manifesta também entre os
seguidores de Saint-Simon, é bem explicada por Hayek (1979), que associa o
racionalismo empirista francês ao desejo de controle consciente da atividade produtiva.
Os meios sugeridos para a promoção da indústria na tradição saint-simoniana, baseados
no uso de hierarquias (conselhos de Newton de Saint-Simon), contrastam com a
experiência de Say com a centralização napoleônica e com a tradição econômica e
política de comparação entre arranjos institucionais centralizados e descentralizados.
Sendo assim, teremos em Say um industrialismo liberal, com educação e instituições
fomentando o desenvolvimento industrial de forma descentralizada.

4.3.2. Os Textos Econômicos de Say


A instrução da população sobre os princípios da teoria economia é um objetivo de
destaque no pensamento de Say, seja pela influência das crenças dos ideólogos a
respeito do valor da educação para o destino das instituições pós-revolucionárias, seja
pelas crenças filosóficas do autor sobre as possibilidades de aplicação da ciência à
indústria ou ainda pela formação religiosa que recomenda moderação de gastos e
provisão de fundos para a velhice, tal como encontramos em Olbie [1800]. Não é de
surpreender então que além do Tratado de Economia Política [1803], sistemático e
didático a ponto de se tornar por muitas décadas o principal manual de instrução da
disciplina, Say tenha reapresentado em essência o mesmo conjunto de ideias em
diversas obras, modificadas por diversas edições. As ideias do Tratado foram
condensadas em um artigo de enciclopédia intitulado Economia Política [1826],
explicadas em linguagem acessível em um livro curto, o Catecismo de Economia
Política [1815], escrito na forma de perguntas e respostas para o leigo e também no
volumoso Curso Completo de Economia Política Prática [1828], voltado aos homens
de estado, produtores e intelectuais em geral. Como todas essas obras tratam da mesma

139
doutrina, na exposição que faremos da economia de Say utilizaremos o Tratado como
fonte principal, mas com apoio de todas essas fontes citadas acima.
Antes de examinar o conteúdo do Tratado, devemos observar que durante a vida de seu
autor ele foi publicado em cinco edições, com um espaço maior entre a primeira e a
segunda, devido à censura imposta por Napoleão. Sendo assim, as edições mais recentes
incorporam material resultante da interação com autores como Malthus, Ricardo,
Sismondi e outros, o dificulta a apreciação a respeito de quem influenciou quem em
relações a alguns assuntos25.
Ao contrário do manual de Germain Garnier, que dividia a análise em indivíduos,
nações e governos, a estrutura que Say dá ao Tratado segue diretamente a concepção
plutológica de economia, que nos é familiar desde nosso estudo de Cantillon e os
fisiocratas. Como a Economia diz respeito à riqueza, e esta passa por um ciclo de vida,
o livro é dividido em três partes, de acordo com o esquema herdado pelos precursores:
produção, distribuição e consumo de riqueza. O foco da análise, que ocupa a maior
parte do livro, é na produção. Contrariando os fisiocratas, Say toma o cuidado de não
atribuir a nenhum setor específico o status de fonte original de riqueza. Contudo, dá
atenção especial à indústria manufatureira, seguindo os passos de Smith.
Say difere deste último, porém, no que diz respeito à natureza da riqueza: se para o
escocês a riqueza se manifesta em bens materiais, o francês dá um passo rumo a uma
concepção mais subjetivista, definindo riqueza como produção de utilidade, o que inclui
os serviços imateriais. Isso não implica que Say adote a teoria subjetiva do valor. Seu
tratamento dessa questão é eclético, próximo à concepção marshalliana de equilíbrio
parcial, pois o valor não é reduzido a uma única causa, no caso, utilidades. Listam-se
em vez disso os diversos fatores determinantes do preço de um bem.
Além disso, embora saliente a importância da utilidade para o valor e sua análise da
teoria da demanda seja próxima à abordagem moderna, exceto pela ausência do
elemento marginal, Say utiliza o conceito de utilidade para fins plutológicos, não
cataláticos: o valor serve fundamentalmente para agregar riqueza, que em seguida
assume vida própria, passando pelo ciclo de criação, distribuição e destruição. As trocas
em si não gerariam valor, sendo o comércio visto apenas como a indústria de transporte
de bens. O exame da produção se encerra com a discussão da moeda, o bem que facilita
as trocas daquilo que é produzido.
Os fenômenos de mercado, por sua vez, são na sequência associados somente ao
problema da distribuição da riqueza entre as classes dos produtores. Por fim, por mais
que Say repita que a razão de ser da riqueza é satisfazer necessidades, a concepção
plutológica de Say identifica consumo com destruição de riqueza, que é condenada
moralmente. O paternalismo sobre a escolha entre consumo presente e futuro domina a

25
Neste trabalho optamos pela sexta edição francesa, publicada em 1841, que contém notas e
correções feitas pelo filho do autor, Horace Say.Não faremos, portanto, uma análise da evolução do
texto ao longo das edições.

140
análise rival, na qual as preferências atuariam sobre o sistema de preços na
determinação dessa escolha, como seria enfatizado na concepção catalática.
Apresentada a estrutura geral, passamos aos elementos particulares importantes para
nossa análise, separadas em teoria econômica geral e teoria econômica relativa ao
estado, conforme a nossa proposta de análise enunciada no primeiro capítulo.

4.3.2.1. A Teoria Econômica Geral em Say: o industrialismo


No primeiro capítulo do Tratado a utilidade, definida por Say (1941, p. 57) como a
“faculdade que certas coisas têm de satisfazer as várias necessidades dos homens”, é
apresentada como o primeiro fundamento do valor dos bens. A utilidade destes
determina em última análise quanto o consumidor está disposto a pagar por eles.
O valor, porém, não é noção estritamente subjetiva. Em seu Catecismo, Say (1836, p.
30) aponta que a utilidade das coisas varia conforme o local e país, mas deixa de
mencionar as variações entre pessoas ou ainda conforme a escassez, excluindo a criação
de valor pela troca entre pessoas com preferências diferentes. No Curso Completo, por
sua vez, Say (1840, p. 70) argumenta que se um consumidor avalia sua casa em cem mil
francos, isso não implica que esse seja o seu valor: “Para um valor ser riqueza, deve ser
um valor reconhecido, não apenas pelo possuidor, mas por qualquer outra pessoa”.
A circunscrição da categoria valor ao preço de equilíbrio (valores de trocas
reconhecidos e efetivamente pagos nos mercados) tem em Say a motivação dada pela
necessidade de definir a riqueza em termos de uma medida única, expressa em valores
monetários: a produção é definida como criação de utilidade e a riqueza produzida é
representada pelo seu valor objetivado no momento da troca.
Encontramos no autor duas justificativas para que o valor, embora derivado da utilidade,
seja objetivo: um metodológico e outro relativo à justiça. Como vimos no capítulo
dedicado à metodologia, Say acredita que ciência requer medição. A mesma idéia se
repete em suas Cartas a Malthus (1821, p. 49): a riqueza não seria objeto de análise
científica se o valor fosse algo impossível de ser definido de forma precisa. Quanto ao
segundo argumento, o autor acredita que trocas com valores diferentes do preço de
equilíbrio seriam injustas. Um viajante forçado a trocar seu cavalo cansado por outro
descansado a um preço diferente seria vítima de fraude. Em termos mais gerais, o
argumento de justiça é aplicável à exploração de situações de monopólio (1840, p. 82):
Aquele que tenha trazido para minha cidade ou vila um suprimento de sal pode me
subtrair qualquer outro meio de provisão desse bem e então me vender sua
mercadoria ao preço que quiser. Isso não indica que o valor do sal tenha realmente
aumentado. Isso apenas indica que esse homem está abusando da minha situação e
me faz pagar pelo sal além de seu valor. Isso é uma espoliação.26

26
Celui que a apporté dans ma ville ou dans mon village une provision de sel, peut me ravir tout autre
moyen de m'en pourvoir, et il me vendra alors sa merchandise le prix qu'il voudra. Cela n'indique pas

141
A teoria objetiva do valor utilidade, como revela o segundo capítulo do Tratado, tem a
função de contrariar a doutrina fisiocrata que confere exclusividade à agricultura na
geração de excedente de valor. Se produção for criação de utilidade e o valor se
manifesta nas trocas como igualdade entre o recebido e o abdicado, todas as atividades
produtivas teriam igual importância em termos de geração de riqueza. Pela mesma
razão, os serviços ou “bens imateriais” não devem ser excluídos pelo conceito de
riqueza. Para Say (1841, p. 124) não seria razoável que o talento do pintor seja
produtivo e o do músico não.
Say classifica as atividades produtivas em três ramos: agricultura, dedicada a extrair
objetos úteis da natureza; manufatura, dedicada a transformar algo para adaptá-lo às
nossas necessidades e o comércio, que coloca utilidades à disposição do consumidor.
Se tomarmos a produção como geração de utilidade, o trabalho (chamado por Say de
“indústria”) realizado nos dois últimos setores seria tão produtivo quanto aquele
aplicado na agricultura, ao contrário do que pensavam os “economistas do século
XVIII”. Para Say (1841, p. 62):
A indústria comercial contribui para a produção tanto quanto a indústria
manufatureira, ao aumentar o valor de um produto transportando-o de um lugar para
outro. Um quintal de algodão do Brasil adquiriu a faculdade de poder servir, e vale
mais em uma loja da Europa do que em uma loja de Pernambuco.27.
O comércio é, portanto, visto essencialmente como a indústria de transporte de bens, um
componente dos custos produtivos. Qualquer valor recebido que não tenha sido fruto de
alguma atividade produtiva seria ilegítimo para Say (1841, p. 353): “uma espoliação da
qual é culpado: não há meio termo”.
Isso entra em choque direto com a concepção catalática de Condillac, que, como vimos,
ao adotar uma teoria subjetiva do valor, acredita que a troca em si gera utilidade, visto
que os bens trocados teriam valores diferentes para pessoas diferentes.
A objeção a Condillac apresentada por Say consiste em restringir por definição o
conceito de valor ao preço de equilíbrio, uma propriedade objetiva do bem ou serviço
que é definido como riqueza, barrando por princípio a possibilidade de valores
subjetivos diferentes para agentes diferentes. De fato, para Say (1841, p. 63) a tese de
Condillac seria errônea...
... pois sendo uma venda uma troca na qual se recebe uma mercadoria, dinheiro, por
exemplo, em troca de outra mercadoria, a perda que cada um dos contratantes teria
com uma compensaria o ganho que ele teria com a outra, e não haveria na sociedade
valor produzido pelo comércio.28

que la valeur du sel ait réellement haussé; cela indique seulement que cet homme abuse de ma situation,
et me fait payer le sel au'delà de sa valeur. Cést une spoliation.
27
L'industrie commerciale concourt à la production de même que l'industrie manufacturière, en élevant
la valeur d'un produit par son transport d'un lieu dans un autre. Un quintal de coton du Brésil a acquis la
faculté de pouvoir servir, et vaut davantage dans un magasin d'Europe que dans un magasin de
Pernambouc.
28
C'est une erreur; car une vente étant un échange où l'on reçoit une marchandise, de l'argent, par
exemple, en retour d'une autre marchandise, la perte que chacun des contractans ferait sur l'une des

142
É curioso recordarmos que o próprio Condillac antecipara que essa objeção seria devida
à confusão induzida pela existência da moeda, pois cotações efetivamente pagas em
moeda, objetivas, mascaram o fato de que trocas envolvem valorações subjetivas
diferentes, conforme cada um dos participantes nas trocas.
De todo modo, a rejeição do referencial de Condillac por Say marca daqui em diante a
consolidação da perspectiva plutológica nos escritos da maioria dos economistas da
escola clássica francesa. A despeito do papel maior que a utilidade desempenha em suas
teorias, os clássicos franceses a partir de Say fazem parte da longa tradição de autores
que atribuem igualdade de valor nas trocas, concepção que os aproxima dos clássicos
ingleses e os distingue de outros precursores continentais da revolução marginalista.
Depois de classificar os tipos de produção e estabelecer que todos eles constituem
formas de riqueza, o autor passa ao exame dos três fatores utilizados na produção de
riqueza: a indústria humana, o capital e os agentes naturais.
O primeiro fator, a indústria, é por sua vez classificado em três categorias: os trabalhos
do cientista, do empresário e do executor. O Catecismo (1836, p. 44) resume bem a
função de cada tipo de indústria:
1 As pesquisas do cientista; 2 a aplicação do conhecimento adquirido às
necessidades dos homens, incluindo a coleta dos meios de execução e a direção da
execução em si; que forma a tarefa dos empresários da indústria; 3 o trabalho de
agentes secundários, como os trabalhadores, que vendem seu tempo e trabalho sem
se interessar pelo resultado.29
Alguns aspectos dessa classificação devem ser salientados. Em primeiro lugar, Say trata
os diferentes tipos de agentes em cada indústria como categorias analíticas e não como
classes sociais: um mesmo indivíduo pode desempenhar simultaneamente várias dessas
funções. Em segundo lugar, a obra do autor revela a crença no modelo industrialista
francês segundo o qual a ciência pura antecede e é principal fator causal das inovações
industriais, em contraste com a concepção alternativa que prioriza os incentivos a
inovação derivados de arranjos institucionais adequados para tal. A própria experiência
de Say como empresário no setor de algodão ilustra essa concepção. Segundo Teilhac
(1927, p. 24), Say, antes de montar sua fábrica, aprendeu sobre novas máquinas
agrícolas em uma exposição no Conservatoire des Arts et Métiers. Em terceiro lugar, o
espaço maior para a utilidade na definição de produção induz o autor a não se limitar ao
trabalho físico, incluindo na categoria de indústria também o trabalho intelectual e
empresarial.
Devemos agora tratar do papel da atividade empresarial nos textos de Say. Say (1841, p.
79) especula que os economistas ingleses não foram capazes de separar as funções do

deux, compenserait le gain qu'il ferait sur l'autre, et il n'y aurait point dans la société de valeur produite
par le commerce.
29
1° Les recherches du savant; 2° l'application des connaissances acquises aux besoins des hommes , en
y comprenant le rassemblement des moyens d'exécution et la direction de l'exécution elle-même; ce qui
forme la tâche des entrepreneurs d'industrie; 3° le travail des agens secondaires, tels que les ouvriers,
qui vendent leur temps et leurs peines, sans être intéressés dans le résultat.

143
capitalista e do empresário por sequer possuírem em inglês um termo para este último.
Ao destacar a importância da atividade empresarial, o autor é tido como precursor da
análise austríaca sobre o tema. O empresário de Say (1841, p. 79; 1826, p. 7) é de fato o
trabalhador ativo, que assume riscos, cria produtos novos e reduz custos por meio de
novos métodos produtivos.
O uso da perspectiva plutológica, no entanto, fez com que o empresário seja tratado em
essência como um administrador de empresas. Em contraste com Cantillon, cuja obra
atribui importância maior ao problema alocativo, a essência da atividade empresarial
para Say não é antecipar condições futuras cambiantes, mas organizar a produção. O
lucro empresarial, desse modo, não seria fenômeno de desequilíbrio que reflete
capacidade de antecipar o futuro, como na concepção austríaca moderna, mas se
manifesta como um custo de um tipo específico de trabalho ou indústria.
Como os três fatores empregados nos três tipos de atividades produtivas têm como
objetivo gerar utilidade, as diferenças entre eles assumem importância menor: o capital
seria apenas uma forma complicada de tirar partido de forças da natureza, assim como a
terra pode ser considerada como um tipo de máquina. O conceito de capital humano, por
exemplo, aparece claramente no Tratado (p. 126): habilidade produtiva é fruto de
estudo, que depende de adiantamentos, o que caracteriza o fenômeno como capital.
Por não perder de vista o propósito da indústria, a satisfação de necessidades, Say vê
com bons olhos a introdução de inovações empresariais, que reduzem a quantidade de
trabalho necessária para obter uma mesma coisa útil. O progresso técnico seria então
parte central do fenômeno competitivo, como elaborará mais tarde Bastiat. Como
veremos no próximo capítulo, um aspecto importante da economia deste último autor é
derivado da noção de que de que o uso de capital e o progresso técnico envolvem
substituição de trabalho oneroso pelos serviços gratuitos de forças naturais. Como
elabora Say em seu Catecismo (1836, p. 78):
Não há outra maneira de aproveitar mais os instrumentos da indústria? Sim, consiste
em substituir instrumentos caros por outros que nos são oferecidos gratuitamente
pela natureza: como quando o grão é moído pela força da água ou do vento, em vez
de ter esse trabalho realizado por braço dos homens. Esta é a vantagem geralmente
obtida pelo serviço de máquinas.30
Uma inovação barateia a produção, liberando recursos produtivos. O preço menor
possibilita o atendimento de novas demandas e a liberação de recursos, por sua vez,
permite que estes sejam ofertados.
Say (1841, p; 89) descreve o processo competitivo em duas fases: na primeira os
inventores ganham com a redução de custos, mas logo são imitados pelos competidores,
beneficiando em última análise os consumidores através da redução nos preços. A

30
N'y a-t-il pas une autre manière de tirer plus de parti des instrumens de L’industrie? Oui: elle consiste
à remplacer des instrumens coûteux par d'autres qui nous sont offerts gratuitement par la nature : comme
lorsqu'on fait moudre le grain par la force de l'eau ou du vent, au lieu de faire exécuter ce travail par des
bras d'hommes. C'est l'avantage qu'on obtient ordinairement par le service des machines.

144
evidente semelhança com a descrição schumpeteriana dos mercados não é casual: como
nota Machovec (1995), o conceito de competição passou por significativa
transformação ao longo da evolução da Economia: antes da consolidação do modelo de
competição perfeita, em particular entre os economistas clássicos, a competição enfatiza
inovação, tal como na descrição posterior de Schumpeter.
O processo de “destruição criativa” descrito por Say, por sua vez, contrasta com as
opiniões de Sismondi (1819). Para Say, o desemprego causado por novas máquinas não
gera problemas significativos devidos a uma série de razões: a mudança tecnológica
seria gradual; a instalação de novas máquinas requer trabalho; os consumidores se
deparam com preços menores, deslocando a demanda para outros bens; no próprio setor
em geral cria-se maior demanda por trabalho, como ilustra a indústria moderna de
material impresso e, por fim, a proibição da inovação seria inútil, uma vez que seria
adotada em outro lugar, fazendo com que a competição acabe por deslocar a tecnologia
antiga de qualquer modo. Say (1841, p. 90) ilustra o efeito final do processo por meio
do exemplo da introdução de moinhos:
Os antigos não conheciam os moinhos: em seus dias eram os homens que trituravam
o trigo do qual o pão era feito; estima-se que a água que move um moinho seja
equivalente à força de cento e cinquenta homens. Agora, os cento e cinquenta
homens que os antigos foram obrigados a empregar a mais do que nós, no lugar de
cada um de nossos moinhos, podem tanto hoje quanto antigamente encontrar
sustento, já que o moinho não diminuiu os produtos da sociedade; e, ao mesmo
tempo, sua indústria pode ser aplicada à criação de outros produtos que se dá em
troca pelo produto do moinho e, assim, multiplicando assim a massa das riquezas.31
Os capítulos que explicam como o capital aumenta a capacidade de produção de riqueza
seguem a tradição dos precursores que estudamos no capítulo anterior: o capital é um
fundo expresso em termos monetários, independente da depreciação dos bens de capital
concretos, esse fundo é utilizado como um adiantamento para pagar fatores produtivos
antes da maturação da produção, a formação do capital é derivada da poupança aplicada
de forma produtiva, os produtores conhecem as alternativas de uso do capital melhor do
que as autoridades e, por fim, o lucro seria proporcional ao tempo de produção.
Um elemento característico do pensamento de Say (1841, p. 122) sobre capital é a
ênfase no aspecto moral associado à decisão de poupar em vez de dissipar riqueza em
gastos improdutivos:
As Madonas, os santos dos países supersticiosos, os ídolos generosamente
adornados e pomposamente servidos pelos povos do Oriente, não fertilizam
empreendimentos agrícolas ou manufatureiros. Com as riquezas que os cobrem e o

31
Les anciens ne connaissaient pas les moulins : de leur temps c'étaient des hommes qui broyaient le
froment dont on fesait le pain; on estime que la chute d'eau qui fait aller un moulin, équivaut à la force de
cent cinquante hommes. Or, les cent cinquante hommes que les anciens étaient forcés d'employer de plus
que nous, en place de chacun de nos moulins, peuvent de nos jours trouver à subsister comme autrefois ,
puisque le moulin n'a pas diminué les produits de la société; et en même temps leur industrie peut
s'appliquer à créer d'autres produits qu'elle donne en échange du produit du moulin, et multiplie ainsi la
masse des richesses.

145
tempo que se perde em solicitar favores, poder-se-ia realmente obter os bens que
essas imagens não concedem a preces estéreis.32
É importante ainda apontar a causa pela qual riqueza permaneceria ociosa. Para Say
(1841, p. 121-122), a riqueza é escondida dos “olhares ávidos do poder” em países sem
garantias de direitos de propriedade. A incerteza no que diz respeito aos investimentos,
na concepção do autor, tem causas institucionais.
Assim como ocorre com Smith, a economia em Say privilegia a análise institucional.
No capítulo dedicado aos direitos de propriedade, encontramos uma diferença
significativa em relação aos fisiocratas e a defesa destes da propriedade privada como
um direito natural. Say deixa aos filósofos, juristas e cientistas políticos a discussão
sobre os fundamentos dos direitos de propriedade, se concentrando no lugar em seu
efeito econômico. Quando tal direito é garantido de fato e não apenas nominalmente, ele
seria “o mais poderoso encorajamento à multiplicação de riquezas” (1841, p. 133), seja
pela certeza de fruição dos rendimentos dos fatores possuídos, pelo conhecimento maior
que os agentes possuem a respeito de seu emprego ou ainda pelo interesse maior em sua
conservação, em relação a terceiros.
A violação dos direitos de propriedade, em contraste, ocorre mediante confisco,
estabelecimento de normas que ditam usos obrigatórios da propriedade, proibições de
comércio ou impostos extorsivos que inviabilizem a produção. O uso legítimo da
intervenção, por sua vez, se restringe a alguns casos que hoje associamos às
externalidades, como o temor com esgotamento de rios e florestas. A maneira como a
propriedade é garantida ou violada faz parte da análise de comparação institucional
empreendida por Say e demais economistas franceses. Entretanto, o exame desse tópico
será adiado até a próxima seção, dedicada ao estudo da relação entre economia e estado.
O Catecismo (1836, p. 76) resume bem a importância dos fatores institucionais e físicos
que levam a um aumento da prosperidade das nações, livre dos limites imaginados pelos
fisiocratas:
Quais são as causas do progresso da indústria? Entre essas causas, há aqueles que
agem de maneira geral, como o progresso do conhecimento humano, as boas leis, a
boa administração do país. Outros agem mais imediatamente: como a divisão do
trabalho, um melhor uso dos instrumentos utilizados pela indústria e, especialmente,
os agentes naturais cuja ajuda é livre.33
Devemos tratar agora do famoso capítulo 15 do Tratado, intitulado Os Mercados. O
exame completo da controvérsia em torno da “lei de Say”, porém, fugiria ao escopo
deste trabalho. Em primeiro lugar, pela sua extensão: como nota Sowell (1972), o tema

32
Les madones, les saintes des pays superstitieux , les idoles richement ornées et pompeusement servies
des peuples de l'Orient , ne fécondent point d'entreprises agricoles ou manufacturières. Avec les richesses
qui les couvrent, et le temps qu'on perd à les solliciter, on se procurerait en réalité les biens que ces
images n'ont garde d'accorder à de stériles prières.
33
Quelles sont les causes auxquelles il faut attribuer les progrès de l'industrie? Parmi ces causes , il s'en
trouve qui agissent d'une manière générale, comme les progrès des connaissances humaines, les bonnes
lois, la bonne administration du pays. D'eutres agissent plus immédiatement : telles que la division du
travail, un emploi mieux entendu des instrumens dont se sert l'industrie, et particulièrement des agens
naturels dont le secours est gratuit.

146
envolve dois debates distintos. O primeiro no século dezenove em torno da
possibilidade de superprodução (general glut controversy) que opunha Say, Ricardo e
James Mill a Sismondi e Malthus e o segundo, no século vinte, iniciado por J. M.
Keynes, em torno da proposição segundo a qual “a oferta gera sua própria demanda”.
Examinar e interpretar o que cada autor disse a respeito exigiria centenas de páginas 34.
Em segundo lugar, tal exame tem pouca relação com a Economia de Say, que é nosso
objeto de estudo. De fato, como nota Baumol (1999, págs. 195 e 200), a característica
mais notória sobre a discussão da “lei de Say” é a falta de concordância sobre o seu
significado, ao mesmo tempo em que é consensual na literatura que a caracterização
feita por Keynes não reflete as ideias de Say de forma acurada. Com efeito, boa parte da
discussão do assunto se refere a temas tratados pela teoria macroeconômica do século
vinte, não abordados por Say no capítulo em questão. Por isso, centraremos nossa
atenção no que o autor pretende discutir, fornecendo ao mesmo tempo somente algumas
evidências que contrariam afirmações comumente atribuídas ao autor.
A leitura do curto capítulo 15 revela claramente seu objetivo: criticar crenças
mercantilistas sobre causas da prosperidade dos países. O texto inicia com menção aos
empresários que demandam proteção e abundância de dinheiro como soluções para o
aumento de suas vendas.
Ambiguidades sobre o contexto da crítica para leitores do século seguinte
desapareceriam se o autor utilizasse a distinção entre curto e longo prazo. Essa
distinção, porém, não é feita, pois os argumentos criticados não são expostos como se
aplicáveis ao curto prazo apenas e, além disso, observações do autor a respeito das
crises se encontram espalhadas ao longo da obra, não existindo nenhum capítulo
dedicado à discussão das causas das flutuações econômicas. Apenas a partir da obra de
Courcelle-Seneuil os livros dos economistas da escola passam a conter capítulo sobre
esse tema.
Voltando à exposição do capítulo, a crítica à crença de que a moeda possa ser fonte de
riqueza, porém, é ilustrada por Say (1841, p. 139) pela comparação entre a prosperidade
da França na época de Say com o “miserável reinado de Carlos VI”, apontando desse
modo o contexto próprio do argumento: a discussão das causas da prosperidade das
nações. Todos os demais exemplos oferecidos, adicionalmente, dizem respeito ao
contraste entre livre comércio e protecionismo em geral ou sobre a definição de
produção em termos de geração de utilidade. A impressão de que a discussão se aplica
em qualquer horizonte temporal e que, portanto, exclui teoricamente a existência de
flutuações decorre da ambiguidade inerente às frases escolhidas pelo autor para retratar
a tese criticada, como “a venda vai mal porque o dinheiro é raro” (p. 139), que pode ser
interpretada em termos de conjuntura de curto prazo.

34
Para uma análise dos debates, ver Sowell (1973), Baumol (1999), Thweatt (1979) e para uma avaliação
em português da controvérsia entre Say e Sismondi, simpática a este último, ver Arthmar (2009).

147
O argumento central de Say contra a tese de que a moeda geraria prosperidade é
baseado no mesmo esquema que já nos é familiar: um bem ou serviço útil é produzido,
assume status de riqueza a partir da aquisição de valor nos mercados, se tornando assim
fonte de renda real para aquisição de outras coisas úteis. No que tange ao poder de
compra em uma sociedade, este depende da capacidade de ofertar outros bens em troca,
não da quantidade de dinheiro envolvido nas transações. Adiemos por um instante a
discussão de Say sobre o dinheiro não colocado em circulação.
Dessa tese Say deriva quatro conclusões, que revelam de fato o que está sendo
discutido. A primeira afirma que em uma dada nação a facilidade das vendas depende
da prosperidade dos demais membros da sociedade. Dessa maneira, a dificuldade de
vender seria derivada de fatores que geram empobrecimento, ou seja, que subtraem
poder real de compra. Além de desastres naturais, “avidez e imperícia” dos governos
são listadas como causa (1841, p. 143). Uma intervenção do governo que restringe o
processo de produção de riqueza em um setor bloqueia a criação de renda, que poderia
ser utilizada no setor que reclama de falta de demanda.
Uma ilustração dessa explicação pode ser encontrada nas Cartas a Malthus, nas quais
Say (1821, p. 13) argumenta que as restrições empobrecem e ao mesmo tempo geram a
demanda por outras restrições para remediar o mal original, como um doente que
amaldiçoa sua doença, mas se recusa a abandonar os excessos que o causaram. Como
acontece com alguma frequência na obra de Say, o exemplo menciona o Brasil:
Brasil, esse vasto país, tão favorecido pela natureza, poderia absorver cem vezes
mais mercadoria inglesa do que agora é em vão prá lá enviado sem encontrar um
mercado; mas para isso primeiro seria necessário que o Brasil produzisse tudo o que
é capaz de produzir. Mas como esse desventurado país poderia atingir esse objetivo?
Todos os esforços dos cidadãos estão paralisados pelo governo. Se algum ramo de
sua indústria oferece perspectiva de ganho, ele é imediatamente apreendido e
sufocado pela mão do poder. Alguém encontra uma pedra preciosa, ela é tirada dele.
Belo encorajamento para o exercício de indústria produtiva com a finalidade de
comprar com seus produtos as mercadorias europeias!35
A segunda conclusão é igual a primeira, só que aplicada à relação entre setores. Assim
como um homem de talento que não se desenvolve em região em declínio encontraria
muitos empregos em uma região próspera, também os setores agrícolas, industrial e
comercial prosperam quando os demais prosperam. Isso mostraria a futilidade em tratar
uma nação como agrícola, manufatureira ou comercial, como ocorre com aqueles que
confundem as simplificações adotadas no argumento sobre vantagens comparativas com
o argumento em si, como se tais vantagens pudessem ser identificadas pelo analista e
fossem homogêneas dentro de setores arbitrariamente definidos.

35
Brazil, that vast country, so favoured by nature, might absorb a hundred times as much English
merchandize as is now vainly sent there without finding a market; but it would first be requisite that
Brazil should produce all that it is capable of producing; and how is that wretched country to attain that
desirable object? All the efforts of the citizens are paralyzed by the government. If any branch of industry
offers there the prospect of gain, it is instantly seized and stifled by the hand of power. Does any one find
a precious stone, it is taken from him. Fine encouragement this to exert productive industry for the
purpose of buying with its produce European merchandize!

148
A terceira conclusão volta a tratar do comércio internacional: assim como a venda de
um setor depende da produção real dos demais, as nações se beneficiam mutuamente do
comércio internacional. Say coloca isso em termos provocativos para o pensamento
mercantilista: a importação de produtos estrangeiros favoreceria a venda de produtos
nativos.
Finalmente, na quarta conclusão Say se mostra contrário a políticas de estímulo a um
setor específico. A condenação é feita em termos do mesmo princípio explanatório
explicitado acima, que requer a geração de utilidade para que algo seja vista como
riqueza. Para ilustrar o que o autor tem em mente, a exigência napoleônica de que
visitas à corte devam usar trajes rendados apenas faz com que os ganhos dos bordadores
sejam compensados pela perda dos cortesões, apenas um deslocamento entre atividades.
A argumentação de Say ignora a possibilidade de entesouramento? No capítulo
imediatamente seguinte aquele no qual a “lei de Say” é exposta, o autor trata das
vantagens da rápida circulação do dinheiro. Quanto mais tempo o dinheiro de uma
venda ficar retido em um empreendimento, menos esse capital pode ser investido em
algum uso produtivo, de forma que todos têm o interesse em fazer o dinheiro circular
rapidamente. O processo é novamente ilustrado através do comércio de algodão entre
Brasil e Europa, do qual se descreve as diversas etapas nas quais o dinheiro poderia sair
de circulação.
Se a circulação rápida é vantajosa, por que então alguém deixaria seu capital ocioso?
Vários fatores são listados como empecilhos, entre os quais a incerteza a qual
empreendedores estão sujeitos. Esta, por sua vez, é associada explicitamente a fatores
institucionais, como guerras, embargos, dificuldades de quitação de valores e impostos
altos e numerosos, que fazem com que as faculdades individuais sejam escondidas de
espoliação e os empresários sejam forçados a abdicar dos juros obtidos com empregos
produtivos de seus recursos. Em vez de incapacidade de se obter conhecimento certo
sobre futuro em mercados financeiros, como na tese de Keynes, temos uma explicação
alternativa, em termos dos efeitos de intervenções prévias sobre o ambiente de negócios
e, portanto, sobre as expectativas.
Quanto a possíveis efeitos da moeda sobre o produto no curto prazo, tampouco Say
adere à tese da neutralidade da moeda ou silencia a respeito. Antes de constatar essa
afirmação, passamos a discussão da moeda em geral, que encerra a parte dedicada à
produção de riqueza do Tratado.
Na obra de Say, assim como ocorre nos textos de seus precursores e seguidores, a
moeda é discutida entre produção e distribuição da riqueza. No referencial plutológico
empregado por Say, a discussão do tema se inicia com a reafirmação da preponderância
da produção sobre as trocas, estas últimas desempenhando o papel subsidiário de
favorecer a expansão da primeira. Para que essa função seja realizada, seria necessária
uma mercadoria divisível que servisse como intermediária nas trocas, para que a
igualdade de valores seja preservada.

149
Contrariando a crença de que a moeda seria criação consciente dos governantes, porém
sem explicitar a tese oposta sobre a evolução da moeda, Say (1841, p. 243) afirma que
seria o costume e não a autoridade que determina a mercadoria que é aceita como
moeda. O costume, por seu turno, se fixa tendo em vista as vantagens do uso dos metais
preciosos.
A análise das funções da moeda é seguida pela investigação de seu valor. Assim como a
moeda não é criação consciente de governantes, tampouco seu valor é arbitrário,
dependendo, pelo contrário, da interação entre oferta e demanda em um mercado
monopolizado pelo estado. Esse valor, para Say (1841, p. 248) diminuiria com o
aumento da quantidade de moeda em circulação e também com o aumento da produção
de riqueza. Por mais que ocorram abusos governamentais derivado desse monopólio,
com ganhos superiores à senhoriagem necessária para cobrir os custos de produção de
moeda, a provisão estatal da moeda é defendida em termos da confiança gerada pela
fabricação de um bem homogêneo.
O estudo dos determinantes do valor da moeda por sua vez leva ao exame da
depreciação desse valor pela ação dos governos. Depois de historiar a busca pro receitas
não tributárias que dão origem a depreciação do valor da moeda, Say (1841, p. 248)
assinala o caráter fraudulento de tais operações: “É impossível ver em todos os
príncipes que recorreram a esses recursos miseráveis outra coisa além de falsários
armados com o poder público”.
Sobre as tentativas de controle do valor da moeda, Say discute a Lei de Gresham,
segundo a qual a moeda subvalorizada internamente é reservada para pagamentos
externos, permanecendo a moeda sobrevalorizada internamente para pagamentos locais.
O estabelecimento de taxa fixa de conversão entre ouro e prata no bimetalismo em
ambiente no qual a quantidade de ambos os metais varia continuamente é condenado
por Say (1841, p. 259): “a natureza das coisas é mais forte do que as leis”.
Como o papel moeda é empiricamente aceito pela população e Say estabelece que é o
costume que dita a natureza monetária de um bem, Say conclui (cap. 26) que o papel
moeda é moeda genuína e não apenas um signo representativo da mesma, como seriam
notas promissórias e letras de câmbio.
Dado o caráter alegadamente empírico e realista de sua Economia, Say enfatiza o
caráter necessariamente volátil da moeda, que o leva a rejeitar seu uso como medida de
valor. O autor é cético e recomenda cuidado em relação a comparações de valores
monetários em épocas e locais distintos. Say rejeita então a busca ricardiana por uma
medida invariável de valor: nem a moeda, nem o trabalho forneceriam base estável que
permitam a comparação de valores fora do contexto de trocas concretas. Sua abordagem
não emprega, dessa forma, discussões de relações entre agregados, preferindo no lugar o
uso de ilustrações históricas concretas e desagregadas dos princípios teóricos estudados.
A aderência à tese que atribui aumentos de preços à expansão monetária, aliada a
antipatia por abordagens agregadas, o levam a investigar efeitos da moeda sobre a

150
economia real. Em especial com o advento do papel moeda, Say (1841, p. 271) descreve
o impulso inicial sobre os negócios provocado pela facilidade de criar nova moeda, já
que as pessoas não guardariam dinheiro, não hesitariam em fazer compras e iniciar
novos negócios:
O período inicial de vigência do sistema de Law, sob a regência, foi brilhante. O
mesmo pode ser dito dos primeiros dias dos assignats [moeda fiduciária] na
Revolução Francesa. E a agricultura, a manufatura e comércio da Grã-Bretanha
aumentaram muito nos anos seguintes à suspensão dos pagamentos em espécie pelo
Banco da Inglaterra.36
Novamente, levando-se em conta os contextos originais dos argumentos do autor, a
atribuição a Say de crença na neutralidade da moeda por parte dos macroeconomistas do
século vinte não se sustenta.
Se para o autor a moeda não é neutra, tampouco seria ferramenta eficaz de estímulo. O
estímulo causado pela moeda, na opinião do autor, seria passageiro, mediante a falta de
confiança no poder público diante da continua desvalorização da moeda. Agentes
racionais, movidos pelo auto-interesse, modificam suas expectativas de acordo,
neutralizando desse modo os efeitos da expansão inicial. Para Say (1841, p. 267),
considerando o processo como um todo, a expansão monetária gera mais malefícios que
vantagens:
E não se deve pensar que os governos perdem uma vantagem valiosa ao perder o
prazer de enganar. A astúcia só lhes serve por um período de tempo bem curto, e
acaba causando-lhes mais mal do que qualquer lucro obtido. Nenhum sentimento no
homem mantém sua inteligência tão desperta quanto o interesse pessoal; até das
pessoas mais simples. De todos os atos da administração, aqueles que
consequentemente menos conseguem enganar são aqueles que afetam o interesse
pessoal. Se esses atos tendem sutilmente a propiciar recursos à autoridade, os
indivíduos não se deixarão levar; se fazem um mal do qual os indivíduos não podem
se proteger, como quando implicam em uma quebra de confiança, por mais
artisticamente disfarçados que forem, logo serão notados; da opinião se que formará
de tal governo, a imagem de trapaça se unirá à da infidelidade, e perderá a confiança
com a qual se faz coisas muito maiores do que com um pouco de dinheiro adquirido
através de fraude. Muitas vezes apenas os agentes do governo que se aproveitam da
injustiça cometida contra o povo. O governo perde a confiança e são esses agentes
que lucram; que coletam o fruto da vergonha que eles fizeram recair sobre a
autoridade.37

36
Les commencemens du système de Law, sous la régence , furent brillans ; on en put dire autant des
premiers temps des assignats dans la révolution française; et l'agriculture, les manufactures et le
commerce de la Grande-Bretagne, prirent un grand essor dans les années qui suivirent la suspension des
paiemens en espèces de la banque de d’Angleterre.
37
Et qu'on ne s’imagine pas que les gouvernemens perdent un avantage précieux en perdant le plaisir de
tromper. L'astuce ne leur sert que pendant un temps bien court, et finit par leur causer plus de préjudice
qu'elle ne leur a fait de profit. Nul sentiment dans l'homme ne tient son intelligence éveillée autant que
l'intérêt personnel; il donne de l'esprit aux plus simples. De tous les actes de l'administration, ceux en
conséquence dont on est le moins la dupe, sont ceux qui touchent à l'intérêt personnel. S'ils tendent à
procurer, par la finesse, des ressources à l'autorité, les particuliers ne s'y laisseront pas prendre; s'ils
font un tort dont les particuliers ne puissent se garantir, comme lorsqu'ils renferment un manquement de
foi, quelque artistement déguisé qu'on le suppose, on s'en apercevra bientôt; dans l'opinion qu'on se
formera d'un tel gouvernement, l'idée de la ruse se joindra à celle de l'infidélité, et il perdra la confiance,
avec laquelle on fait de bien plus grandes choses qu'avec un peu d'argent acquis par la fraude. Souvent
même ce sont les seuls agens du gouvernement qui tirent parti de l'injustice qu'on a commise envers les

151
Além das mudanças de expectativas subtraírem a capacidade dos governos obter
recursos via expansão monetária, para Say essa expansão atrapalha as avaliações dos
valores e afetam a moral do povo, favorecendo os espertos em detrimento dos honestos
e estimula o roubo e a fraude.
Estamos em condições agora a passar para o segundo elemento do esquema
explanatório de Say, relativo à distribuição da riqueza. Como afirmamos na introdução
do nosso trabalho, a perspectiva plutológica nas mãos de Say consolida a prática, mais
tarde repetida por J. S. Mill, de tratar da teoria dos preços apenas depois da discussão da
produção, com o objetivo de estudar como a produção é repartida entre os indivíduos
que exercem diferentes funções econômicas, sem tratar como a produção e distribuição
se relacionam com o problema alocativo. A tensão entre a estrutura plutológica e os
elementos subjetivos caracteriza a forma e os usos da teoria dos preços na obra de Say.
Embora trate em essência da distribuição de riqueza, Say estuda os fatores
determinantes do preço de um bem de modo bem próximo ao modelo de escolha do
consumidor, excetuando o elemento marginalista.
Vejamos como o autor contorna as dificuldades inerentes a desconsideração do
elemento marginalista. Say (1841, p. 315) distingue inicialmente entre riquezas naturais
(bens livres) e riquezas sociais (fruto da produção), sendo estas compostas por objetos
aos quais se atribuem preços de mercado. Sobre os preços destes últimos, como o
método científico exigiria mensuração e a justiça requereria a igualdade de valor
(comprar uma casa e não conseguir revendê-la ao mesmo preço implicaria em
pagamento inicial acima do valor justo), Say (1840, p. 356) é forçado a identificar preço
de reserva com preço de equilíbrio:
Em nossas considerações sobre o preço atual, devemos supor, a fim de simplificar as
questões, que o preço atual é um preço médio entre a maior e a menor taxa. Vamos
supor que o preço atual é o preço pelo qual o vendedor é indiferente entre vender e
não vender e o comprador entre comprar ou não comprar: este é o termo médio de
dois preços que são geralmente muito próximos uns dos outros.38
Na teoria moderna, as taxas marginais de substituição, decrescentes, de fato convergem
para o preço relativo praticado no mercado. Já no modelo usado por Say, como as
preferências variam conforme as famílias, é possível falar em preço de equilíbrio
intermediário entre preços de reservas diferentes, que coincidiriam em par marginal que
determina preço. Isso, naturalmente, não dispensaria a análise dos ganhos mútuos nas
unidades inframarginais. Say, no entanto, preserva a crença em valores iguais nas
trocas, mesmo tendo derivado a demanda como uma função dos preços a partir de um
ordenamento de alternativas.

peuples. Le gouvernement perd la confiance, et ce sont eux qui font le profit ; ils recueillent le fruit de la
honte qu’ils ont fait rejaillir sur l’autorité.
38
Dans nos considérations sur le prix courant, nous supposerons, pour simplifier les question, que le prix
courant est un prix moyen entre le taux le plus élevé du cours, et le taux le plus bas; nous supposerons
que le prix courant est le prix où il est indifférent au vendeur de vendre ou de ne vendre pas; à l'acheteur
d'acheter ou de n'acheter pas: cést le terme moyen de deux prix qui pour l'ordinaire sont fort rapprochés
l'un de l'autre.

152
Na análise de Say, o equilíbrio é determinado pela demanda e oferta. Entre os elementos
que influenciam a primeira, Say menciona em primeiro lugar as necessidades, cujas
causas não são investigadas pela teoria econômica. A riqueza individual, segundo fator
listado, se encaixa no esquema desenvolvido no capítulo sobre os mercados: os
indivíduos produzem coisas úteis que adquirem valor nos mercados, determinando o
poder de compra de cada um. Quanto às preferências, Say (1841, p. 317) não apenas
assinala que os indivíduos “são obrigados a fazer um tipo de classificação de suas
necessidades para satisfazer aqueles que ele atribui mais importância em preferência
aquelas que atribuem menos”, como também afirma que as escolhas refletem tanto
planejamento prévio quanto a força do hábito (1841, 317; 1840, p. 359). As escolhas
são feitas sucessivamente ao longo do tempo, até que o consumidor esgote seu
orçamento e pare de gastar.
O ordenamento, por sua vez, é comparado com o preço corrente de cada bem. A
suposição a respeito dos ordenamentos serve para derivar a demanda. Esta, para Say
(1841, p. 319), deve ser vista como uma função dependente dos preços:
E como essa quantidade varia de acordo com o preço pelo qual ela pode ser
oferecida, vemos que nunca devemos falar da quantidade demandada sem expressar
ou supor que essa restrição seja aceita: pelo preço pelo qual ela pode ser obtida.39
Além dos preços, a demanda varia conforme o número de pessoas e as rendas de cada
um. A relação entre demandantes, renda e preços é representada graficamente pela
“pirâmide das fortunas” mencionada no Tratado (p. 317) e desenhado no Curso
Completo (p. 361), segundo o modelo que já encontramos no livro de Garnier.

25

B B 20

15

10

A A 5

39
Et comme cette quantité varie suivant le prix auquel elle peut être offerte, on voit que l'on ne doit
jamais parler de quantité demandée sans exprimer ou supposer convenue cette restriction: au prix où l'on
peut se la procurer.

153
A escala à direita na figura representa o preço do bem e as linhas verticais do triângulo a
renda de cada indivíduo. Os segmentos AA e BB representam o tamanho da demanda
aos preços $5 e $20, respectivamente. Pirâmides com lados convexos, ou seja, com
rendas menos desiguais, seriam os mais felizes do que países com lados côncavos, pelos
motivos listados em Olbie e elaborados na terceira parte do Tratado, dedicado ao
consumo de riqueza.
Continuando a análise da demanda, preços maiores implicam em menos consumidores e
ao mesmo tempo redução da quantidade demanda de cada um deles. Bens
imprescindíveis e bens que facilmente encontram substitutos teriam sua demanda
reduzidas segundo taxas distintas. Essa menção ao que será tratado mais tarde como
elasticidades é utiliza por Say para a análise dos impostos. Finalmente, a expectativa
sobre preço de revenda também é apontada como fator que influi na demanda.
Do lado da oferta, os fatores que induzem um agente a “colocar em circulação”, ou seja,
ofertar uma mercadoria seriam seu preço, a expectativa de variação nesse preço e os
custos, entendidos como o gasto com os fatores produtivos, que se alteram conforme o
período, a localização e a qualidade do produto.
Embora sob competição os preços convirjam para os custos no longo prazo, Say rejeita
a teoria do valor dada pelos custos apenas. No Tratado, Say (1841, p. 322) se contrapõe
a Ricardo:
Assim, quando alguns autores, como David Ricardo, disseram que eram os custos de
produção que regulavam o valor dos produtos, estavam certos no sentido de que os
produtos nunca são vendidos de forma contínua a um preço inferior aos seus custos
de produção; mas quando disseram que a demanda pelos produtos não afeta seu
valor, me parece que eles incorrem em erro, pois a demanda influencia o valor dos
serviços produtivos, e aumentando os custos de produção, eleva o valor dos produtos
sem exceder o custo de produção.40
No Curso Completo, Say (1840, p. 363-364) detalha o argumento, deixando claro que
demanda mais elevada pelo bem eleva o valor dos insumos. Temos, portanto, suposição
compatível com estrutura de mercado não competitiva nos mercados de fatores. Não se
trata, pois, de consideração por elevação de custo de oportunidade gerado pela elevação
da demanda por outros produtos que utilizariam o mesmo insumo, explicação
compatível com a perspectiva catalática de equilíbrio geral.
Se fizermos uma pausa para avaliar a teoria do valor na obra do autor, fica evidente a
presença de inovações comumente atribuídas a Mill e expressas em termos gráficos a
partir de Marshall. O pendor empirista de Say e o contexto de equilíbrio parcial
contribuem com que Say adote o mesmo tipo de ecletismo de Marshall a respeito dos
determinantes do valor (o argumento da tesoura marshalliana), já que o foco é a

40
Ainsi, lorsque quelques auteurs, comme David Ricardo, ont dit que c'étaient les frais de production qui
réglaient la valeur des produits, ils ont eu raison en ce sens, que jamais les produits ne sont vendus d'une
manière suivie à un prix inférieur à leurs frais de production ; mais quand ils ont dit que la demande
qu'on fait des produits n'influait pas sur leur valeur, ils ont eu, ce me semble, tort en ceci, que la demande
influe sur la valeur des services productifs, et, en augmentant les frais de production, élève la valeur des
produits sans pour cela qu'elle dépasse les frais de production.

154
determinação do preço e não a busca de um fator único que explique os fenômenos
associados ao valor. Esse ecletismo de Say se reproduz nas obras de todos os autores da
escola francesa, que atribuirão o valor a fatores subjetivos como utilidade e
expectativas, mas fazendo o preço convergir em última análise para custos objetivos.
O referencial plutológico, por seu turno, faz com que a teoria de preços seja utilizada
apenas na identificação dos fatores determinantes das rendas dos fatores produtivos; ou
seja, no estudo da “distribuição” de riqueza, sem que ocorram discussões significativas
a respeito de como alocar os recursos em diferentes usos. No sexto capítulo da segunda
parte do tratado de Say encontramos breves referências indiretas a esse problema,
inspiradas pela preocupação com a equalização dos retornos dos fatores em diferentes
empregos, tendência contraposta por fricções de diferentes naturezas, como solo
inadequado para cultivo de bens desejados e especificidades do capital. Essas
considerações, porém, logo cedem espaço (1841, p. 359) para a condenação dos gastos
de luxo das pessoas mais sujeitas “aos ditames ridículos da moda do que as leis eternas
da natureza, em que certas pessoas se privam de jantar para poder exibir punhos
bordados”. A discussão da distribuição é de fato pautada pela justiça das diferentes
formas de remuneração.
Vejamos algumas observações do autor a respeito da distribuição. A indústria dos
cientistas seria mal remunerada devido ao baixo custo de replicar descobertas. A
recompensa a esse tipo de trabalho seria complementada por honrarias não monetárias.
Já o rendimento do empresário, cuja função é essencialmente administrativa, é
explicado em termos de oferta e demanda por esse tipo de serviço.
Essa última explicação é algo problemática. Se a atividade empresarial for vista como
um fator produtivo com valor determinável, ainda assim seria difícil falar em demanda
por esse tipo de serviço, já que aos empresários Say atribui a organização da atividade
produtiva e apenas o consumidor “demanda”, indiretamente, seus serviços. Se a
atividade empresarial for interpretada como remuneração derivada de conjectura
empresarial, como descreve Cantillon, o conceito de demanda por atividade empresarial
teria menos sentido ainda. Talvez por esses problemas Say liste apenas as restrições da
oferta de empresários, como o talento administrativo, o risco e a conveniência de
possuir algum capital.
Este último fator, analiticamente distinto da atividade empresarial, tem seu rendimento
(juros) determinado no mercado de fundos emprestáveis, embora não se faça menção à
relação entre preço e oferta, mas apenas as questões morais sobre parcimônia.
A teoria ricardiana da renda da terra, por sua vez, é criticada em termos do foco
exclusivo na diminuição da produtividade física, sem consideração pela demanda, ou
seja, pelo valor dos produtos agrícolas.
Por fim, o salário dos operários é limitado pelo nível de subsistência, segundo a teoria
sobre a dinâmica populacional. A discussão de temas malthusianos é um local propício
para mencionarmos um pequeno enigma na evolução da teoria econômica desenvolvida

155
na França: o desaparecimento das menções a Cantillon. Como vimos no capítulo
anterior, este último é crucial para o desenvolvimento da economia clássica, e sua
influência direta é evidente nos fisiocratas, em Smith e nas obras dos condes Roederer e
Garnier, embora estes dois últimos não o citem explicitamente. Apesar de Say
retoricamente renegar as obras dos autores anteriores a Smith, seus nomes aparecem em
eventuais menções em rodapés. Mas não existe evidência de influência direta de
Cantillon ou mesmo algum indício de que Say esteja familiarizado com a existência de
seu livro. A explicitação da teoria dos salários gravitando em torno do nível de
subsistência é elemento de destaque no livro de Cantillon. Porém, ao discutir Malthus,
Say lista em rodapé41 uma relação considerável de autores que também abordaram o
problema, relação essa que não menciona Cantillon. Embora não se possa dizer se Say
desconhece ou apenas ignora Cantillon, é certo que o primeiro poderia se beneficiar
com diversos aspectos da obra do segundo, em especial no que diz respeito a atividade
empresarial.
Passemos agora ao terceiro elemento da perspectiva plutológica: o consumo. Como a
plutologia é essencialmente materialista, já que a ênfase é na riqueza e não na ação, o
consumo adquire conotação negativa: a destruição de riqueza. Mesmo na obra de Say,
que enfatiza a utilidade, o consumo será definido como destruição de riqueza. Como
afirmamos anteriormente, não se trata apenas de diferentes convenções sobre o uso dos
termos. A despeito do reconhecimento por parte de Say de que o consumo seja a
atividade fim da produção e de que o investimento envolva escolha entre consumo
presente e futuro, na verdade encontramos na terceira parte do Tratado algo além de
uma exposição positiva do fenômeno de crescimento econômico e das escolhas
envolvidas. Essa exposição é misturada no texto de Say com uma discussão
essencialmente normativa sobre como aumentar o valor da riqueza reproduzida.
Assim como produção é criação de utilidade, o consumo é definido por Say como sua
destruição. Mesmo os bens de capital em algum momento são consumidos. A despeito
disso, o capital pode aumentar porque seu valor não depende dos bens materiais que
necessariamente desaparecem, pois seu valor se reproduz na forma de outros bens. A
soda, por exemplo, é consumida, mas seu valor é preservado no sabão. Essa concepção
remonta a Turgot, em cuja obra o capital, visto como riqueza expressa em termos
monetários, ganha vida própria42.
A riqueza total consumida em um ano, por sua vez, é classificada por Say (1841, p. 439)
de duas formas: por um lado, conforme sejam consumos realizados pelo setor público
ou pelo setor privado e por outro conforme seja destruído para realizar alguma
necessidade ou para produzir outros bens. Desse modo, a noção moderna de consumo é

41
Os autores citados por Say (1841, p. 426, n.r. 4) são: Steuart, Quesnay, Montesquieu, Forbonnais,
Buffon, Hume, Condillac, Verri, Mirabeau, Raynal, Chastellux, Necker, Condorcet, Smith, Garnier,
Herrcnschwand, Godwin, Bentham, Clavière, Browne-Dignan, Beccaria, Gorani e Sismondi.
42
Idéia semelhante se manifestará mais tarde na obra de J.B. Clark, que concebe o capital como um fundo
homogêneo, independente da forma material dos bens particulares que o compõe.

156
chamada de consumo improdutivo ou estéril e o conceito atual de investimento é
chamado de consumo produtivo ou reprodutivo. Temos então:
CTotal= CPrivadoProdutivo+ CPrivadoEstéril + CPúblicoProdutivo + CPúblicoEstéril
Como a razão de ser do consumo é satisfazer necessidades, o consumo estéril atende
satisfações imediatas e o consumo produtivo satisfações futuras. Como o consumo é
destruição de riqueza, Say (1841, p. 441) utiliza a metáfora de uma fogueira: a queima
de madeira para se aquecer seria consumo improdutivo e para cozinhar seria consumo
reprodutivo, ao passo que queima sem ninguém perto ou sem cozinhar nada seria puro
desperdício.
Como o consumo reprodutivo (investimento) já foi examinado na discussão da
produção, Say se concentra nos efeitos do consumo estéril. Como o consumo é visto
como destruição de riqueza, um custo, deve ser comparado com a satisfação obtida pelo
agente. O consumo voltado apenas a estimular uma indústria, portanto, equivale à
madeira queimando na lareira em uma casa vazia do parágrafo anterior. Como já
assinalamos antes, em vez de tratar como nos mercados se manifestam as escolhas entre
satisfações presentes e futuras, Say adota no capítulo quatro da terceira parte do Tratado
a abordagem paternalista que já nos deparamos no exame do Olbie. Consumos presentes
tais como “prazeres da mesa”, dos jogos e fogos de artifício são condenados. No lugar
desses “consumos de luxo”, Say recomenda “consumos esclarecidos” que satisfaçam
necessidades reais, além de consumos lentos, consumos aprovados pela moral e
consumos feitos em comum, pois um cozinheiro faria refeições para muitos de forma
mais econômica que para poucos.
O desprezo de Say (1881, p. 448-449) pelo consumismo, curiosamente, lembra aquele
que encontramos em Thorsten Veblen:
O luxo da ostentação só dá uma satisfação vazia, enquanto o luxo de comodidade, se
assim posso me exprimir, proporciona satisfação real. O último é mais barato e,
portanto, consome menos. O outro não conhece limites; cresce em um indivíduo sem
qualquer outro motivo além de seu aumento em outra pessoa. Ele pode assim ir
progressivamente ao infinito.43
A moda, para o autor (p. 449), consistiria “no privilégio de gastar as coisas antes que
elas tenham perdido sua utilidade. A ostentação, associada à desigualdade de rendas, é
do mesmo modo classificada (p. 451) como necessidade artificial, não real:
Deve-se notar que a excessiva desigualdade de fortunas é contrária a todos esses
tipos de consumo que devem ser considerados como os mais esclarecidos. A medida
que as fortunas são mais desproporcionais em uma nação, existem mais
necessidades artificiais e menos necessidades reais satisfeitas; 44

43
Le luxe d’oestentation ne procure qu’une satisfation creuse; le luxe de commodité, si je peux
m'exprimer ainsi, procure une satisfaction réelle. Ce dernier est moins cher, et par conséquent il
consomme moins. L'autre ne connaît point de bornes; il s'accroît chez un particulier sans autre motif,
sinon qu'il s'accroît chez un autre; il peut aller ainsi progressivement à l'infini.
44
Il est à remarquer que la trop grande inégalité des fortunes est contraire à tous ces genres de
consommations qu'on doit regarder comme les mieux entendues. A mesure que les fortunes sont plus
disproportionnées, il y a dans une nation plus de besoins factices, et moins de besoins réels satisfaits ;

157
O moralismo, associado à valorização do futuro em relação ao presente, determinam
assim um afastamento do subjetivismo que encontramos inicialmente no tratamento de
Say ao fenômeno do valor.
O consumo público, que encerra o Tratado, assim como o privado, é discutido nos
mesmos termos; a saber, condenação do consumo “desnecessário” tendo em vista o
objetivo de gerar poupança para o financiamento das indústrias e consequente
reprodução da riqueza em valores cada vez maiores. Os detalhes do consumo público
serão deixados para a próxima seção, dedicada ao estado. Aqui nos resta concluir com
breve comentário sobre a forma como Say estrutura a exposição da teoria econômica.
Say consolida entre os economistas clássicos a adoção da sequência produção -
distribuição - consumo de riqueza. Essa organização do pensamento plutológico contém
algumas tensões. Ao rejeitar os “economistas do século dezoito” devido ao privilégio
que estes conferiam à agricultura, Say condena metodologicamente a construção de
sistemas metafísicos descolados da observação empírica da realidade. No entanto, sua
teoria reflete exatamente a essência do pensamento fisiocrata, construindo um modelo
de riqueza quase autônoma em relação às decisões individuais, que percorre um circuito
em um novo quadro econômico: geração, distribuição, destruição e reprodução da
entidade denominada riqueza. O uso de um elemento subjetivo, a utilidade, embora
sirva, em conjunto com suas opções metodológicas para afastar a vertente francesa da
teoria dos excessos derivados do ricardianismo, ainda desempenha função plutológica –
definir riqueza como entidade autônoma, só que independentemente do tipo do ramo de
atividade produtiva. Mas, por outro lado, uma vez definida a riqueza em termos de
valores monetários de equilíbrio, o esquema teórico barra o desenvolvimento da teoria
subjetiva do valor, devido à adoção da tese de igualdade de valores trocados.
Essas escolhas talvez tenham ajudado a explicar o relativo isolamento da escola
formada pelos seguidores de Say no debate teórico posterior: a rejeição da solução
subjetivista de Condillac ao problema do valor afasta os franceses da escola neoclássica
e dos precursores desta última e ao mesmo tempo a presença de algum subjetivismo
aliena os franceses da ortodoxia ricardiana, e sua preocupação com análise agregada.
Esse isolamento facilitou o rótulo de Say como mero divulgador de Smith, fama
facilitada pela própria atitude do autor, que rejeitou a tradição teórica desenvolvida
pelos precursores, que, no entanto, influenciam seu pensamento.
Como não existem dados sem teoria, esses precursores franceses também imprimem sua
marca na obra de Say no que diz respeito à tradição de análise da regulação do estado na
economia. Como os economistas da primeira metade do século vinte negligenciaram a
análise econômica da ação coletiva, não perceberam em sua apreciação de Say os
elementos teóricos originais desenvolvidos por esse e outros autores nessa área. Se o
que é considerado teoria for restrito apenas ao estudo de equilíbrio geral e determinantes
da produção agregada no curto prazo, Say e seu seguidores soam de fato como autores
não originais. Na seção seguinte combatemos esse equívoco salientando as
contribuições de Say à economia da política, contribuições que o colocam como
158
precursor da análise desenvolvida a partir de meados do século seguinte pela escola da
escolha pública.

4.3.2.2. Economia e Estado em Say: governantes auto-interessados


Como nota Faccarello (2010), Say avança o entendimento sobre a natureza do estado e
seu impacto econômico, pois sua época é caracterizada por debates sobre o tema. O
estado era visto de forma diferente por liberais, conservadores e socialistas de diversas
matizes. De fato, considerando a situação problema dos ideólogos, é natural a
preocupação de Say pelo conjunto de instituições adequadas para o país após a queda do
antigo regime, como podemos constatar deste o concurso que motivou a escrita de
Olbie.
A análise econômica do estado na obra de Say se encontra dispersa em diferentes pontos
de seus livros. O exame mais convencional das funções consideradas legítimas do
estado e quais são suas formas de financiamento situa-se na parte dedicada ao consumo
do Tratado (parte 3, caps. 6 a 11). A abordagem institucional, de origem smithiana, a
respeito de sistemas econômicos comparados, por sua vez, é detalhada na quarta parte
do Curso Completo, dedicada ao estudo da influência das instituições sobre a economia.
O mesmo tipo de questão de encontra no capítulo dezessete da primeira parte do
Tratado – o capítulo mais longo da obra – no qual se estuda os efeitos das intervenções
estatais na economia. Esse capítulo desenvolve os temas expostos no Elogio a Gournay
de Turgot. Especificamente, aparece nesse capítulo de forma frequente o exame
positivo, não idealizado, da economia do setor público, que aplica também nessa esfera
a hipótese de auto-interesse dos agentes. Essa aplicação faz parte da base da explicação
da escola clássica francesa sobre a exploração econômica fundada na lógica da ação
política.
Iniciemos com o estudo do que Say denomina consumos públicos. O leitor não deve se
confundir com as conotações normativas implícitas na nomenclatura escolhida pelo
autor. Como vimos, todo consumo é definido como destruição de riqueza, que ocorre
tanto no setor privado quanto público. Say (1841, p. 267) aplica, de acordo, a mesma
análise aos dois tipos de consumo estéril:
Se a despesa pública afeta a soma da riqueza exatamente da mesma forma que a
despesa privada, os mesmos princípios de economia devem presidir a ambos. Não há
dois tipos de economia como não existem dois tipos de moralidade. Se um governo,
como um indivíduo, efetua um consumo do qual resulta uma produção de valor
maior que o valor consumido, ele exerce uma indústria produtiva; se o valor
consumido não tiver deixado nenhum produto, é um valor perdido para um como
para o outro; mas que, ao se dissipar, poderia muito bem ter prestado o serviço dele
esperado.45

45
Si les dépenses publiques affectent la somme de richesses précisément de la même manière que les
dépenses privées, les mêmes principes d'économie doivent présider aux unes et aux autres. Il n'y a pas
plus deux sortes d'économie, qu'il n'y a deux sortes de probité , deux sortes de morale. Si un
gouvernement comme un particulier font des consommations desquelles il doive résulter une production

159
Essa citação estabelece, para o autor, a possibilidade de existência de consumos
públicos produtivos. A preocupação do autor ao estudar os gastos públicos será a
mesma que o motiva em toda sua obra: a determinação dos fatores que aumentam a
produção de riqueza. Assim como o gasto de luxo privado é condenado, também o será
o desperdício de recursos públicos.
Para Say (p. 471), aquilo que deveria ser o o princípio norteador da administração
pública, evitar o desperdício, requer a comparação contínua e judiciosa dos sacrifícios
envolvidos em um gasto estéril, ou seja, consumos de riqueza, com os ganhos
proporcionados por esse gasto, que consistem na utilidade gerada para a população.
Assim como nos consumos privados, a utilidade de gastos públicos não é passível de
avaliação rigorosa (p. 497). Quanto aos custos, ou parcela de riqueza consumida, o autor
(1841, p. 472-473) tem algo a dizer a respeito, derivado dos incentivos enfrentados
pelos agentes no setor público, diferentes daqueles existentes no setor privado:
Um indivíduo sente todo o valor da coisa que ele consome; muitas vezes é o
doloroso fruto do seu suor, de uma longa assiduidade, de uma poupança contínua.
Ele é facilmente capaz de medir a vantagem que ele deve obter de um consumo, e a
privação que resultará dele. Um governo não está tão diretamente interessado em
ordem e economia. Ele não sente tão agudamente, tão próximo, o inconveniente da
ausência desses fatores. Acrescente que um indivíduo se inclina a poupar, não
apenas por seu próprio interesse, mas pelos sentimentos do coração, pois sua
economia assegura recursos a seus entes queridos. Mas um governo parcimonioso
economiza para os cidadãos que mal conhece e os recursos que ele fornece podem
servir apenas aos seus sucessores.46
Na primeira edição de seu Catecismo (1821, p. 83), Say condensa os motivos pelos
quais os serviços públicos tendem a ser mais caros que os privados: o número e salário
dos funcionários públicos são determinados por razões políticas e não estritamente
econômicas e os administradores públicos não são econômicos ao lidar com dinheiro
que não é deles, inexistindo interesse pessoal na supervisão das obras públicas.
Ao discutir o gasto público em geral, Say adota como alvo ao longo de todo seu livro
aqueles que argumentam que tais gastos, independentemente de seu uso, geram
benefícios para a economia. Tornar a legislação mais complicada, por exemplo, pode
gerar estímulos à demanda por recursos produtivos em alguns setores particulares, mas
não resulta em benefícios adicionais para a população, se contemplarmos todos os
benefícios e custos envolvidos. Sobre a criação de postos supérfluos na administração
pública, Say (p. 125) afirma que: “[a]dministrar o que deve ser deixado a sim mesmo é

de valeur supérieure à la valeur consommée, ils exercent une industrie productive; si la valeur
consommée n'a laissé aucun produit, c'est une valeur perdue pour l'un comme pour l'autre ; mais qui, en
se dissipant, a fort bien pu rendre le service qu'on en attendait.
46
Un particulier sent toute la valeur de la chose qu'il consomme; souvent c'est le fruit pénible de ses
sueurs, d'une longue assiduité, d'une épargne soutenue; il mesure aisément l'avantage qu'il doit recueillir
d'une consommation , et la privation qui en résultera pour lui. Un gouvernement n’est pas si directement
intéressé à l’ordre et à l’économie; il ne sent pas si vivement, si prochainement, l'inconvénient d'en
manquer. Ajoutez qu'un particulier est excité à l'épargne , non-seulement par son propre intérêt, mais par
les sentimens du coeur: son économie assure des ressources aux êtres qui lui sont chers; un
gouvernement économe épargne pour des citoyens qu'il connaît à peine, et les ressources qu'il ménage ne
serviront peut-être qu’à ses successeurs.

160
prejudicar as pessoas e fazê-las pagar pelos danos causados a elas como se fossem
bens”.
Para Say (1841, parte 3, cap 7), os gastos públicos são em grande parte compostos por
bens imateriais (serviços) voltados seja à administração civil e judiciária, garantindo os
direitos de propriedades nas nações; à manutenção da paz pelo exército, possibilitando o
enriquecimento mútuo das nações pelo comércio, em contraste com os prejuízos
causados pelo colonialismo; ao ensino público, que no espírito da ideologia educa
cidadãos e espalha o progresso científico; à manutenção de instituições de caridade para
desafortunados ou a despesas exigidas pelas obras públicas.
Depois de listar os bens e serviços providos pelo estado, Say passa a analisar questões
tributárias, relativas ao seu financiamento. Além de dissipar equívocos derivados da
crença de que benefícios gerados pelos impostos seriam gratuitos, apontando a origem
dos recursos em termos de riqueza subtraída de usos alternativos, Say trata dos efeitos
gerais dos impostos, que consistem no aumento de preços e redução de demanda pelos
bens, tópico ao qual se acrescenta a discussão sobre incidência tributária: o rapasse de
um imposto depende da existência ou não de alternativas ao bem ou serviço tributado.
Como princípios para a legislação tributária, Say defende impostos com alíquota
pequena, equitativos, que prejudiquem menos a reprodução de riqueza e que sejam
favoráveis à moral. Estes últimos, como nós pudemos observar ao longo de toda sua
obra, em linhas gerais dizem respeito à parcimônia. Por fim, Say trata da dívida pública,
notando que enquanto particulares tomam empréstimos para empregos produtivos, o
estado tende a dissipar os fundos obtidos.
A parte mais interessante da análise de Say sobre o tema, porém, diz respeito ao exame
das intervenções do estado na economia. Como notam Euzent e Martin (1984, p. 256),
Say é influenciado nesse assunto por Smith, mas vai além deste autor na identificação
dos custos para a sociedade da atividade de busca por privilégios legais. Esses autores
defendem a tese de que Say é precursor da escola da escolha pública, comparando
citações deste último com o trabalho de Gordon Tullock.

De nossa parte, notaremos a influência da tradição Gournay-Turgot no capítulo, cujo


efeito prático é a detecção não apenas de temas associados à escolha pública (auto-
interesse dos agentes públicos), mas também temas desenvolvidos pela escola austríaca
(conhecimento disperso e falível dos agentes públicos). Temos presentes desse modo as
duas grandes fontes das falhas de governo, o que permite que a análise de Say se torne
peça importante para o desenvolvimento da economia da política dos autores da escola
clássica francesa.

Na tradição francesa, o estado não é tratado como uma entidade incorpórea, cuja análise
poderia prescindir do exame do comportamento dos agentes no setor público. Para Say
(1841, p. 220), pelo contrário, “[u]m governo só pode agir por procuradores, isto é, por
pessoas que têm um interesse particular diferente do seu e que lhes é muito mais caro”.

161
Vejamos como a economia do setor público é modificada pela consideração do
conhecimento limitado e existência de auto-interesse de seus agentes.

Ao examinar os efeitos das regulações estatais sobre o que deve ser produzido, Say
compara essas regulações com o mecanismo descentralizado dos mercados. Nestes, uma
demanda maior por um bem eleva o lucro do emprego de mais fatores produtivos no
setor. Repetindo Turgot, a comparação é feita em termos do contraste entre o
conhecimento disperso dos agentes e o conhecimento centralizado dos agentes do
estado. Tomando como exemplo uma porção de terra, Say (1841, p. 154) compara
empresários e legisladores em termos da capacidade de escolher que emprego desse
recurso geraria mais riqueza:

Não resta portanto nada a saber além de se a administração ou o cultivador sabe


melhor que tipo de cultura renderá mais; e é admissível supor que o fazendeiro que
vive no campo, o estuda, o questiona, mais do que ninguém está interessado em
fazer o melhor possível, sabe mais a esse respeito do que a administração.47
A nossa afirmação de que Say desenvolve tanto as consequências dos problemas
derivados de conhecimento quanto de motivação não implica que esses temas estejam
separados. Vejamos em seguida como a descrição da atividade de rent-seeking inclui
considerações sobre conhecimento dos agentes, inclusive sobre o funcionamento da
atividade política, de modo que as duas fontes de falhas de governo fazem parte de uma
perspectiva institucional ampla sobre as consequências do sistema mercantilista (ou
intervencionista) estudado pelos economistas franceses.

Seguindo o exemplo de Smith, Say (1841, p. 157) compara os efeitos da ação auto-
interessada em ambiente institucional caracterizado pela impessoalidade ou igualdade
perante à lei com o ambiente do mercantilismo, no qual privilégios monopolísticos
podem ser fornecidos pelo poder público e adquiridos competitivamente por grupos de
produtores, que direcionam seu auto-interesse para a aquisição de um modo mais fácil
de obter renda:

Mas o interesse pessoal não oferece mais nenhuma indicação, quando os interesses
particulares não servem de contrapeso entre si. Do momento em que um indivíduo
ou uma classe de indivíduos puder confiar na autoridade para se libertar da
competição, eles adquirirão um privilégio à custa da sociedade; eles podem garantir
a obtenção de lucros que não derivam inteiramente dos serviços produtivos que
prestaram, mas parte dos quais é um imposto real para seus consumidores; imposto,
do qual eles quase sempre compartilham alguma porção com a autoridade que lhes
emprestou seu apoio injusto.48

47
Il ne reste donc plus qu'à savoir qui, de l'administration ou du cultivateur , sait le mieux quel genre de
culture rapportera davantage ; et il est permis de supposer que le cultivateur qui vit sur le terrain,
l'étudie, l'interroge, qui plus que personne est intéressé à en tirer le meilleur parti, en sait à cet égard
plus que l’administration.
48
Mais l'intérêt personnel n'offre plus aucune indication, lorsque les intérêts particuliers ne servent pas
de contre-poids les uns pour les autres. Du moment qu'un particulier, une classe de particuliers peuvent
s'étayer de l'autorité pour s'affranchir d'une concurrence , ils acquièrent un privilège aux dépens de la
société ; ils peuvent s'assurer des profits qui ne dérivent pas entièrement des services productifs qu'ils ont
rendus, mais dont une partie est un véritable impôt mis à leur profit sur les consommateurs ; impôt dont
ils partagent presque toujours quelque portion avec l'autorité, qui leur a prêté son injuste appui.

162
Esse tipo de citação não é algo isolado. Vários elementos da explicação da atividade de
rent-seeking se manifestam na análise de Say. Para corroborar essa afirmação, será
necessário empregar um número maior do que o normal de citações do livro do autor.
Os custos do rent-seeking, por exemplo, são compostos tanto pelo desvio de recursos
produtivos para a busca de privilégio, quanto pelos efeitos nocivos da imposição de
monopólios. Os dois custos estão presentes na explicação de Say, embora, naturalmente,
dada a teoria do valor empregada pelo autor, estes últimos custos não são expressos em
termos de perdas alocativas.

Quanto ao primeiro elemento dos custos relativos às perdas com a atividade de


espoliação mútua, Say (1841, p. 181) contrasta o auto-interesse de curto prazo dos
buscadores de renda com os interesses reais dessas mesmas pessoas no longo prazo,
revelados pela teoria econômica:

... mesmo naquelas partes do globo nas quais as pessoas acreditam ser iluminadas,
elas gastam muito do seu tempo e usam parte de suas faculdades para destruir uma
porção de seus recursos ao invés de multiplicá-los, e pilhando um ao outro em vez
de ajudar uns aos outros; tudo por falta de esclarecimento, por falta de saber quais
são seus reais interesses49.
Além da perda com o emprego de talentos para obtenção de privilégios, temos ainda as
perdas associadas ao monopólio, que geram lucros que o produtor privilegiado divide
com o legislador. A ambos Say (1841, p. 173) atribui a hipótese de auto-interesse,
empregando a expressão “paixões governamentais” para se referir ao pressuposto
comportamental aplicado ao segundo:

É, pode-se dizer, porque os primeiros princípios da economia política ainda são


geralmente ignorados; porque se estabelecem em bases erradas raciocínios
engenhosos que facilmente se aproveitam, por um lado, das paixões dos governos
(que empregam proibições como uma arma ofensiva ou como um recurso fiscal) e
por outro lado a ganância de várias classes de comerciantes e fabricantes que
encontram nos privilégios uma vantagem particular, e se importam pouco se seus
lucros são o resultado de uma produção real ou uma perda suportada por outras
classes da nação.50
Say descreve uma troca na qual os produtores demandam regulações junto ao estado (p.
175), cujos agentes ficam felizes em providenciá-las em troca de recursos (p. 191). Os
consumidores, por sua vez, arcam com os custos. Mas como estes não são capazes de
associar os custos que arcam com sua causa, não reclamam. Pelo contrário, Say (p. 157,
n.r.) afirma que os consumidores “às vezes são os primeiros a insultar as pessoas

49
même dans les parties du globe où ils se croient éclairés, passent une grande partie de leur temps et
usent une partie de leurs facultés à détruire une portion de leurs ressources au lieu de les multiplier, et à
se piller les uns les autres au lieu de s'aider mutuellement ; le tout faute de lumières, faute de savoir en
quoi consistent leurs vrais interets.
50
C'est , disons-le , parce que les premiers principes de l'économie politique sont encore presque
généralement ignorés; parce qu'on élève sur de mauvaises bases des raisonnemens ingénieux dont se
paient trop aisément, d'une part, les passions des gouvernemens (qui emploient les prohibitions comme
une arme offensive ou comme une ressource fiscale), et d'une autre part l'avidité de plusieurs classes de
négocians et de manufacturiers qui trouvent dans les privilèges un avantage particulier, et s'inquiètent
peu de savoir si leurs profits sont le résultat d'une production réelle ou d'une perte supportée par d'autres
classes de la nation.

163
esclarecidas que levantam suas vozes em seu favor”. Os governos, por fim, dificilmente
são esclarecidos e firmes o bastante para resistir a oferta de privilégios.
A consequência dessa troca é o empobrecimento. Ao comentar os efeitos do
protecionismo comercial em particular, Say (p. 180) invoca uma expressão de Fénelon
(1651-1715), segundo a qual o comércio seria como “as fontes naturais que muitas
vezes secam quando se quer alterar seu curso”.

O mesmo vale para regulações que ditam como os bens devam ser produzidos. Guildas
apelam para garantias de qualidade do produto e requerem longos treinamentos para
seus aprendizes. Esse tipo de regulação faz com que se perca de vista a percepção de
que a produção poderia ser organizada de outra forma. Segundo Say (1841, p. 193):

Se houvesse alguma maneira de formar uma corporação de agricultores, logo


teríamos sido persuadidos de que é impossível ter alfaces bem desenvolvidas e
pêssegos saborosos sem muitos regulamentos compostos de várias centenas de
artigos.51
A regulação dos mercados funcionaria ainda como uma barreira à entrada nos
mercados, ao reduzir o número de produtores competindo, devido às restrições impostas
ao modo como os bens deveriam ser produzidos.

Note que a presença de práticas que empobreceriam a nação, como o protecionismo


comercial e a regulação dos mercados internos, é explicada em termos de
desconhecimento dos agentes em relação aos efeitos gerais dessas práticas, a despeito
da presença da hipótese de auto-interesse na explicação. A fusão dos elementos de auto-
interesse e conhecimento limitado permite que Say e mais tarde Bastiat explicitamente
desenvolvam uma explicação do processo interventor em termos de consequências não
intencionais e indesejáveis da ação bem-intencionada. Evita-se com isso uma explicação
maniqueísta, segundo a qual a exploração seria fruto de intenções explicitamente
antissociais.

A explicação do porquê um sistema econômico que gera resultados inferiores perduraria


faz uso do contraste entre os interesses concentrados do produtor e os interesses difusos
dos consumidores. Para Say (1841, p. 178), isso faz com que os primeiros tenham
interesse em investir na obtenção de um privilégio ao passo que os segundos, a despeito
de seu maior número, não se organizam da mesma maneira. Novamente, temos aqui um
elemento central da abordagem contemporânea da escolha pública:
E é bom notar que cada um se acha mais enganador do que enganado; pois, embora
cada um seja um consumidor ao mesmo tempo que produtor, os lucros excessivos
feitos em uma única espécie de mercadoria, aquela que ele produz, são muito mais
sensíveis do que as perdas múltiplas, mas pequenas, feitas em mil mercadorias
diferentes que se consome.52

51
S'il y avait un moyen de former une corporation de cultivateurs, on nous aurait bientêt persuadé qu'il
est impossible d'avoir des laitues bien pommées et des pèches savoureuses, sans de nombreux réglemens
composés de plusieurs centaines d’articles.
52
Et il est bon de remarquer que chacun se croit plutôt dupeur que dupé; car, quoique chacun soit
consommateur en même temps qu'il est producteur, les profits excessifs qu'on fait sur une seule espèce de

164
A própria população, nota Say (1841, p. 133), demonstra pouca resistência contra
propostas de lei cujos custos acreditam-se que sejam arcados pelos outros:
Mas, ao mesmo tempo, quanto na prática não se desvia deste respeito pelas
propriedades que consideramos tão vantajoso em teoria! Por quantos motivos frágeis
não se propõem com frequência sua violação! E esta violação, que deveria
naturalmente suscitar alguma indignação, é facilmente defendida por aqueles que
não são vítimas!53
Essa assimetria entre benefícios concentrados e custos difusos se manifesta também no
debate político. Como fazem parte do país, os que se beneficiam de regulações retratam
os favores obtidos como ganhos para a sociedade como um todo (p. 157). Ao mesmo
tempo, seus defensores argumentam que o protecionismo se manifesta com mais
frequência em países prósperos (p. 181). Say, por sua vez, acredita que investidas
protecionistas ocorram com mais frequência em países ricos porque esses são os únicos
capazes de suportar tais ataques. O rent-seeking dependeria desse modo do parasitismo
da riqueza existente.
Depois de notar como novas restrições comerciais são utilizadas para procurar sanar
males causados por medidas prévias de mesma natureza, Say manifesta sua preferência
pela remoção dos obstáculos (p. 183), ao invés de alimentar um espiral de legislação
corretivas. Aqui o autor se depara com a mesma situação problema vivida por Turgot
como ministro e analisada por Condillac, que diz respeito à velocidade e amplitude das
reformas necessárias para desmantelar um sistema de restrição ao comércio. Say se
revela nesse aspecto um defensor do gradualismo, utilizando o mesmo tipo de
argumento empregado por Condillac. Para Say, “não se cura um doente em um dia”,
pois só pouco a pouco o capital e a indústria encontram empregos mais vantajosos.
Para Say (1841, p. 185) as regulações, fáceis de serem adotadas, são difíceis de serem
abolidas:
Talvez não baste toda a habilidade de um grande estadista para curar as feridas
ocasionadas pela extirpação desse lobo devorador que é o sistema regulador e
exclusivo; e quando se considera cuidadosamente o dano que ele causa quando é
estabelecido, e os males causados pela sua abolição, somos levados naturalmente a
essa reflexão: se é tão difícil devolver a liberdade à indústria, quanto não se deve ser
cauteloso quando se trata de removê-la!54
As discussões que descrevemos até aqui nesta seção fundamentam a análise
comparativa de instituições ou de sistemas econômicos existente na obra do autor. A

denrée, celle qu'on produit, sont bien plus sensibles que les pertes multipliées, mais petites, qu'on fait sur
mille denrées différentes que l'on consomme.
53
Mais en même temps combien, dans la pratique, ne s'écarte-t-on pas de ce respect des propriétés qu'on
juge si avantageux en théorie! Sur quels faibles motifs n'en propose-t-on pas souvent la violation ! Et
cette violation , qui devrait exciter naturellement quelque indignation, qu'elle est facilement excusée par
ceux qui n'en sont pas victimes.

54
Peut-être n'est-ce pas trop de toute l'habileté d'un grand homme d'état pour cicatriser les plaies
qu'occasionne l'extirpation de cette loupe dévorante du système réglementaire et exclusif; et quand on
considère mûrement le tort qu'il cause quand il est établi , et les maux auxquels ou peut être exposé en
l'abolissant , on est conduit naturellement à cette réflexion: s'il est si difficile de rendre la liberté à
l'industrie, combien ne doit-on pas être réservé lorsqu'il s'agit de l'ôter!

165
garantia dos direitos de propriedade, que na primeira parte do Tratado é identificado
com o principal estímulo à produção de riqueza, seria efetiva em um sistema no qual
fosse tratada como um princípio, mas cede lugar à exploração da população em um
sistema no qual o governo promove a “pilhagem organizada” (p. 156).
A possibilidade do estado se transformar no principal agente de exploração na sociedade
ocorre em diversos momentos na análise do autor. Na análise dos recursos produtivos,
por exemplo, Say (1841, p. 407) afirma que a terra é vista como mais expostas aos
abusos do poder por ser difícil de ser escondida ou movida, ao passo que os capitais (p.
419) desaparecem em meio a empecilhos e prosperam em ambientes livres.
Como Say (1840, p. 543) sumariza em seu Curso Completo, diferentes sistemas de
legislação resultam em diferentes desempenhos econômicos e o melhor deles é aquele
que coloca menos obstáculos ao desenvolvimento dos fatores produtivos responsáveis
pela produção de riqueza. Isso é obtido por leis que garantam a liberdade e ambiente
com menos incerteza para pessoas e capitais. Nessa obra, Say (1840, p. 518) reafirma as
causas institucionais da incerteza e da ociosidade dos recursos:
Onde a propriedade não é assegurada, o capital deixa de ser produtivo, permanece
ocioso e decai, bem como a terra e as faculdades industriais. Um capital não pode
ser usado de forma oculta. Para produzir, é necessário pô-lo em evidência,
transforma-lo em instalações, ferramentas e ofícios, em mão de obra que alimenta
um grande número de trabalhadores. Todos esses trabalhos só podem ser feitos em
plena luz do dia; eles saltam aos olhos; eles mostram aos governos ruins onde suas
depredações devem ser direcionadas, e aos ladrões onde eles podem direcionar seus
ataques com proveito.55
A transformação no estado em um agente espoliador sob certos arranjos institucionais
será tema recorrente na obra de vários autores da escola clássica francesa, em especial
nos trabalhos de Charles Comte, Charles Dunoyer, Frédéric Bastiat e Gustave de
Molinari, tal como teremos oportunidade de examinar nos capítulos seguintes.
No Tratado, o contraste entre sistemas econômicos baseados predominantemente em
produção ou espoliação aparece também na discussão do colonialismo. Say classifica as
colônias em dois tipos: dos antigos e dos modernos. O primeiro seria composto por
locais habitados por indivíduos industriosos, que pretendem se estabelecer no local em
vez de retornar à metrópole. Nesses locais, imigrantes almejam o estabelecimento de
por governos voltados aos interesses locais. O sistema colonial dos modernos, em
contraste, seria caracterizado pela ação de aventureiros que desejam fazer fortuna
rapidamente para usufruí-la na metrópole.
Esse segundo tipo, para Say, induz o emprego de violência em atividade exploradora,
em particular a escravidão. O autor se junta então ao debate entre os economistas
55
Là où la propriété n'est pas assurée, les capitaux cessente d'être productifs, demeurent oisifs et
dépérissent de même que les terres, de même que les facultés industrielles. Un capital ne peut pas servir
obscurément. Pour le faire produire il fraut le metre en évidence, le transformer en bátiments
d'exploitation, em outils et métiers pour les arts, en main-d'oeuvre que alimente un grand nombre
d'ouvriers. Tous ces emplois ne peuvent s'effectuer qu'au grand jour; ils frappent les regards; ils
montrent aux mauvais gouvernemens où doivent s'adresser leurs déprédations, et aux brigands où ils
peuvent, avec profit, diriger leurs attaques.

166
clássicos sobre esse último tema. Ao contrário de autores como Turgot e Smith, Say
revela um ceticismo em relação ao argumento segundo o qual o trabalho escravo seria
mais caro que o trabalho livre por causa da falta de incentivos ao trabalho. A fonte do
ceticismo é de natureza empírica: Say argumenta que o custo dos escravos nas Antilhas
não seria superior ao do trabalhador livre.
Reconhecendo, a partir da discussão do tema com outros autores56, que esse cálculo de
custo não consiste em evidência conclusiva, Say (1841, p. 229) prefere basear sua
rejeição da escravidão nos efeitos de longo prazo de um sistema econômico baseado em
exploração do homem, que gera resultados inferiores a interação voluntária:
Não há maneira duradoura e segura de produzir senão aquela que é legítima, e só
existe uma maneira pela qual as vantagens de um não são adquiridas à custa do
outro. Esse modo de prosperidade é o único que não tem resultados desagradáveis a
serem temidos; e os eventos que aconteceram me dariam razões de sobra, se eu
quisesse comparar o declínio e os desastres dos países cuja indústria é baseada na
escravidão, com a prosperidade daqueles com princípios mais liberais. 57
Para Say (p. 230), a percepção de injustiça envolvida no trabalho escravo no tempo em
que vivia já era tal que ninguém se atreveria a defender em público o comércio de
pessoas.
Quanto ao colonialismo em geral, Say se revela favorável a que os países percam suas
colônias, como a Inglaterra. Evocando sua argumentação no capítulo sobre os mercados,
seria adequado que as colônias se libertem do sistema colonial. Livre das restrições ao
comércio impostos pela metrópole, as antigas colônias poderiam prosperar e desse
modo as antigas metrópoles poderiam encontrar demanda por seus produtos. Esse
raciocínio se encontra, por exemplo, na análise de Horace Say (1839), seu filho, sobre
as relações comerciais entre Brasil e França: livre das amarras impostas pelo sistema
colonial, o Brasil deveria adotar o livre-comércio. As metrópoles, por sua vez, também
se beneficiariam em última análise com o abandono do sistema mercantilista. Say
(1841, p. 235) indaga se

Deveríamos nos lamentar de não ter comprado ao preço de duzentos anos de


guerras, vinte batalhas navais, algumas centenas de milhões e o sangue de
quinhentos mil homens, a vantagem de pagar alguns centavos a menos pela pimenta
e pelo cravo?58

56
Hart (1990) analisa a discussão entre Say e outros autores, como Storch, um autor cuja obra
estudaremos no próximo capítulo, sobre a ineficiência do trabalho escravo.
57
Il n'y a de manière durable et sûre de produire que celle qui est légitime, et il n'y a de manière légitime
que celle où les avantages de l'un ne sont point acquis aux dépens de l'autre. Cette manière de prospérer
est la seule qui n'ait point de fâcheux résultats à craindre ; et les événemens arrivés me donneraient trop
d'avantages , si je voulais mettre en parallèle le déclin et les désastres des pays dont l'industrie se fonde
sur l'esclavage , avec la prospérité de ceux où régnent des principes plus libéraux

58
Devons-nous regretter de n'avoir pas acheté au prix de deux cents ans de guerres, de vingt batailles
navales, de quelques centaines de millions, et du sang de cinq cent mille hommes, l'avantage de payer le
poivre et le girofle quelques sous de moins?

167
O autor associa, portanto, o sistema mercantilista, que imagina que relações comerciais
seriam jogos de soma zero, com o belicismo prevalecente na época.
A evidência coletadas nesta seção basta para estabelecermos na obra de Say uma fusão
da análise institucional smithiana de sistemas econômicos comparados com a tradição
de Gournay e Turgot de exame do modo de funcionamento do estado, que supõe auto-
interesse na esfera da ação coletiva. A importância desse aspecto da obra de Say deve
ainda ser apreciada se levarmos em conta que a escola que se formou a partir dos
escritos desse autor, como veremos ao longo deste trabalho, se caracteriza justamente
pela ênfase na análise positiva do estado.

4.4. Destutt de Tracy: herdeiro de Condillac


A organização da teoria econômica clássica proposta por Say foi complementada pelos
escritos interdisciplinares de seu contemporâneo Destutt de Tracy, que reuniu seu
pensamento político, filosófico e econômico em uma unidade que também faz parte da
visão de mundo dos economistas da escola clássica francesa.
Antoine Louis Claude Destutt, conde de Tracy (1754 - 1836), nascido em Paris,
participou ativamente da turbulenta vida política da França do período. Nascido de
família nobre, inicia sua carreira no exército. No início da Revolução Francesa, atua
como deputado na Assembleia dos Estados Gerais. Três anos depois, com a patente de
marechal de campo, comanda a cavalaria no norte do país. Nessa região, em Auteuil, já
licenciado do exército, trava contato com Cabanis e Condorcet. Sua concepção de
mundo prossegue com o estudo da filosofia de Locke e Condillac, estudo esse efetuado
no período de aproximadamente um ano em que foi preso durante o Terror.
Após o estabelecimento do Institut de France em 1795, Destutt de Tracy é nomeado
associado na Academia de Ciências Morais e Políticas daquele instituto. Já no Império,
Napoleão reestabelece a instituição acadêmica voltada à língua francesa, a Académie
Française, que fora abolida durante a revolução. Tal instituição passa a ser uma das
unidades do Insitut de France e Destutt de Tracy é eleito um de seus “imortais” na vaga
de Cabanis, em 1808.
Além de seu trabalho nos institutos franceses e suas contribuições intelectuais para o
projeto da disciplina que ele denomina Ideologia, nas áreas de filosofia, ciência política
e economia, Destutt de Tracy prossegue participando da vida política francesa, atuando
como senador no Império. Consistente em sua defesa de princípios liberais, ele se opõe
a Napoleão assim como opusera-se a Robespierre na Revolução. Essa resistência lhe
rende mais tarde o título de Pair de France, alta distinção nobilitaria, reestabelecida
durante a Restauração. Destutt de Tracy morreu em Paris em 1836, deixando um legado
que influenciou políticos e intelectuais em diversos países.
Como já tratamos no segundo capítulo deste trabalho da fundamentação metodológica
de suas idéias econômicas, resta aqui tratar dos argumentos econômicos derivados dessa

168
fundamentação, que se encontram em dois livros, um sobre política e outro sobre
economia.

4.4.1. Comentários a Montesquieu


Em Comentários e Revisão do ‘Espírito das Leis’ de Montesquieu (1811), Destutt de
Tracy desenvolve suas ideias sobre ciência política. Tal texto, porém, merece a atenção
dos economistas porque, em primeiro lugar, expressa elementos centrais da visão de
mundo dos ideólogos, que caracteriza os economistas da escola clássica francesa e, em
segundo lugar, as considerações de Destutt de Tracy a respeito das consequências das
diferentes formas de governo, como veremos, levam o autor a empregar conceitos
econômicos que reaparecerão mais tarde no seu Tratado de Economia Política [1817].
Comentários é uma atualização da doutrina política liberal, que investiga qual conjunto
de instituições seria compatível com uma sociedade livre e próspera. Tal doutrina é
adaptada para as condições prevalecentes cerca de sessenta anos após a publicação do
trabalho original de Montesquieu. Nesse meio termo, o otimismo que marca o período
que precede a Revolução Francesa cede lugar à percepção de que o processo político
não é algo facilmente controlável, devido às consequências não intencionais das
mudanças institucionais pretendidas. Preso durante a fase do Terror, no prefácio da
edição americana da obra Destutt de Tracy (1811, p. 6) dá seu testemunho dessa
experiência:
Eu era um dos primeiros amigos da revolução da França, e continuava a apoiá-la, até
os que detinham seu comando evidentemente mudaram sua direção. Fugindo então
das tiranias do mostro Robespierre, encontrei, e ainda desfruto entre vós de
segurança, liberdade e hospitalidade.59
Nos Comentários, Destutt de Tracy defende o mesmo método mais tarde proposto para
o Tratado: partir de conhecimento bem estabelecido e expandi-lo via observação e
dedução, tal como exposto na tradição empirista francesa que será adotada pelos
ideólogos. Para o autor, “Isso seria seguir de verdade os preceitos de Condillac ...
partindo rigorosamente do conhecido para o desconhecido” (p. 7).
Com esse método, o autor pretende oferecer uma análise dos efeitos de diferentes
conjuntos de leis positivas (ou legislação), levando em consideração sua
compatibilidade com leis naturais relativas aos fenômenos sociais, leis essas derivadas
através da observação sensorial. Supõe-se, portanto, a existência de regularidades
empíricas no campo das ciências sociais, algo que é um pré-requisito para o
desenvolvimento então recente ciência econômica.
O exame científico dos efeitos de determinados arranjos institucionais assemelha-se
nessa obra ao procedimento encontrado no sistema teórico do iluminismo escocês em

59
I was an early friend to the revolution of France, and continued to support it, until those entrusted with
its helm, had evidently changed its direction. Flying then from the tyrannies of the monster Robespierre, I
found, and still enjoy, safety, freedom, and hospitality, among you.

169
geral e na economia smithiana em particular, ou seja, o exame das consequências de
instituições tomando-se como dada a existência de uma natureza humana:
... os homens adquirem leis para regular sua conduta uns com os outros: estas leis
devem ser compatíveis com as leis imutáveis da natureza humana e fluir dessas leis;
sem o que elas não podem ter nenhum efeito importante, devendo ser de curta
duração e produzindo somente desordem. (p. 95)60
Entre as leis naturais da esfera social, situam-se naturalmente aquelas que dizem
respeito aos fenômenos econômicos, de modo que discussões teóricas de economia
sucedem naturalmente a discussão política.
Quanto à teoria política propriamente dita, Destutt de Tracy rejeita a classificação
sugerida por Montesquieu entre governos despóticos, monárquicos e republicanos,
baseados respectivamente em medo, honra e virtude. Toda forma de governo listada,
nota Tracy, pode se tornar despótico, como nos mostraria a história. Despotismo não
seria, pois, um sistema de governo propriamente dito, mas uma consequência que pode
se manifestar em diversos modelos de governo. Em seu lugar, o autor propõe (p. 13)
uma classificação em governos nacionais, baseado em leis que estabelecem direitos
uniformes para todos os cidadãos e governos especiais, que estabelecem distinções entre
pessoas, baseadas em autoridade divina, conquista, local de nascimento, tribo ou
qualquer outro tipo de distinção.
Comentando a tese de Montesquieu de que cada forma de governo deve ter um sistema
educacional próprio, Destutt de Tracy expõe um ponto central do programa reformista
dos ideólogos: a difusão da educação na sociedade. Seria do interesse de governos
nacionais que a educação seja “sólida, profunda e difusa”, já que essa forma de governo
não requer justificação de opressão ou submissão. Sem necessidade de inculcar medo ou
honra, a educação em governos nacionais deveria ser calcada na razão, na busca pela
verdade, sem se preocupar com o que os cidadãos façam com sua liberdade e
conhecimento.
A classificação de governos proposta pelo autor é acompanhada de uma conjectura
sobre a evolução meliorista das diferentes formas de governo. O “primeiro grau de
civilização” seria constituído por democracias diretas e despotismos, o segundo grau
por aristocracias, seja sob um ou mais líderes e o terceiro e último grau por democracias
representativas, tal como seria ilustrado pelo regime constitucional norte-americano da
época. No primeiro estágio, a ação baseada em ignorância é sustentada pela força; no
segundo, a opinião infundada é justificada pela punição divina e, finalmente, no terceiro
a razão é direcionada para leis que se limitam a restringir o comportamento com o
propósito de evitar males futuros.
Esse processo evolutivo de descoberta das leis compatíveis com a natureza humana é
descrito pelo autor como algo envolvendo aprendizado por tentativas e erros (p. 96). A

60
… men acquire laws to regulate their conduct with one another: these laws should be conformable to
the unchangeable laws of human nature, and flow out of them; without which they can have no important
effect, must be of short duration, and only productive of disorder.

170
percepção das vantagens da vida em sociedade aumenta a complexidade das relações
sociais e consequentemente o entendimento sobre as mesmas. Inicialmente
experimentam-se várias estruturas de governança, baseadas em opiniões fragmentadas e
sistemas parciais. Gradualmente, as uniformidades existentes nas ciências sociais são
descobertas, via eliminação de erros durante controvérsias, até que se possa divisar
racionalmente um sistema coerente de funcionamento das sociedades.
Essa evolução exige do autor uma articulação do conjunto de princípios que teriam
emergido desse processo de aprendizado. O primeiro princípio de um governo racional
estabelece que as leis devam ser feitas para os governados e não para os governantes e
só podem mudar pela vontade dos primeiros. O segundo dita que não deve haver poder
na sociedade que não possa ser mudado sem violência, princípio esse que recomenda
existência de constituição e separação de poderes. O terceiro e último princípio exige
que se tenha sempre como objetivo máximo a independência da nação e a liberdade de
seus membros, sem que esses objetivos sejam violados por temor a ameaças.
Esse conjunto de princípios deveria nortear o sistema político de uma nação, cujo
propósito deveria ser a felicidade de seus habitantes. Para Destutt de Tracy, a felicidade
do povo se identifica com a garantia da sua liberdade. Embora identifique a ausência de
restrição como presente em todas as manifestações da liberdade, tais como as liberdades
física, moral, natural, civil e política, o autor prefere adotar uma definição positiva de
liberdade. Esta seria “... nada mais do que a ideia de poder fazer o que a mente deseja; e
em geral ser livre é poder fazer o que nos agrada” (p. 64). Dessa definição positiva de
liberdade o autor deriva a identidade entre felicidade e liberdade.
Disso flui naturalmente a preocupação de Montesquieu com a garantia legal da
preservação da liberdade em um sistema ideal de regras de conduta, como por exemplo
o problema de evitar o crescimento do poder estatal ao longo do tempo, que gera abusos
tais como a restrição da liberdade de imprensa e de opinião em geral. Para Destutt de
Tracy, porém, Montesquieu se equivoca ao afirmar que as instituições inglesas de seu
tempo teriam resolvido o problema da limitação do poder (p. 68), já que em diversas
ocasiões conflitos políticos nesse país foram resolvidos por rebeliões e uma solução
definitiva do problema requer que nunca se dê muito poder para uma única pessoa.
Em vez da Inglaterra, Destutt de Tracy toma o exemplo norte-americano como modelo.
O constitucionalismo, o presidencialismo e a federação de estados seriam compatíveis
com o preceito de que “nunca se deve dar a um único homem mais poder do que pode
ser tirado sem violência” (p. 95).
A esperança de que o caso norte-americano exemplificaria o triunfo da razão no
estabelecimento das leis inspirou politicamente diversos grupos de pessoas. Nos EUA,
como mencionamos anteriormente, o próprio Thomas Jefferson traduz os Comentários
para o inglês e revisa e edita a tradução do Tratado para a mesma língua, antes que elas
sejam publicadas no original, devido à censura presente na França. Neste último país, o
trabalho de Destutt de Tracy cristaliza um programa reformista perseguido pelos

171
Ideólogos, fornecendo algum grau de coesão no pensamento dos economistas do
período. De fato, vários autores filiados à escola francesa, como Charles Comte, Charles
Dunoyer e Frédéric Bastiat serão influenciados pelo pensamento de Tracy. Além de
presente nos Estados Unidos e França, o pensamento político de Destutt de Tracy ganha
adeptos na Rússia, sendo usado como obra de referência de alguns dos dezembristas61,
como Pável Pestel (1793-1826), que combatiam o despotismo dos czares e advogavam
causas como igualdade perante a lei, adoção de uma monarquia constitucional ou
mesmo república e a abolição da servidão camponesa.
Estabelecidas as conclusões sobre o conjunto de leis propícias ao estado, vejamos como
surgem as considerações sobre problemas econômicos nessa obra. Seguindo a ordem
dos capítulos do livro de Montesquieu, que aborda diversos problemas específicos à luz
de seus princípios políticos teóricos, Destutt de Tracy discute questões como taxação,
crescimento econômico, população, comércio e moeda na parte final do livro. Embora o
objetivo de comentar os capítulos de Montesquieu na ordem dos capítulos do Espírito
das Leis impeça que Destutt de Tracy siga uma lógica sistemática de exposição de uma
teoria econômica, com princípios seguidos de aplicações, ainda sim surgem no texto
diversos princípios teóricos que serão empregados nas discussões de pontos
particulares.
Essas ideias econômicas sofrem influência explícita de dois autores principais, Smith e
J.-B. Say, sendo também empregadas para combater algumas teses e conceitos
mercantilistas e fisiocratas. Concretamente, desses e de outros economistas são
emprestados os conceitos de divisão do trabalho, ganhos de trocas, o exame das funções
da moeda e dos efeitos da sua depreciação, a noção de investimento como adiantamento
em processo produtivo que requer tempo para maturar, a noção de trabalho como fonte
última do valor dos bens e sobretudo a distinção entre gastos produtivos e improdutivos
no que diz respeito à capacidade de reprodução e expansão do sistema econômico.
A noção de valor será utilizada para discutir incidência de diversos tipos de impostos e
para negar a tese fisiocrata de exclusividade da agricultura na geração de excedentes.
Para o autor, “... um cubo de terra e pedra com uma de suas faces voltada para a
superfície do nosso globo ... é uma massa de matéria como qualquer outra, com essa
diferença, de ser um corpo que não pode mudar sua localização” (p. 116). Em seu lugar,
a geração de algo útil, ou seja, o emprego de trabalho produtivo, definido como aquele
capaz de gerar lucro e aumentar a massa de riqueza, deveria ser privilegiado pelo estado
na discussão das formas de tributar. Sobre o crescimento econômico ou causa da
prosperidade, o autor (p. 44) defende a tese de que o sucesso econômico dos Estados
Unidos, o país que espelha as instituições desejáveis recomendadas em seu livro, seria
ilustrado pela capacidade de dobrar em menos de vinte e cinco anos a produção
agrícola, industrial, comercial, bem como sua população. Esse crescimento seria

61
A revolta dezembrista ocorreu em dezembro de 1825, quando cerca de três mil soldados protestaram
contra a subida ao trono do czar Nicolau I.

172
tributável aos incentivos ao gasto produtivo, em contraste com o gasto em bens
luxuosos que caracterizariam os regimes europeus estagnados.
As teses econômicas desenvolvidas no Comentário aparecerão de forma inalterada,
porém melhor fundamentadas e desenvolvidas no Tratado, publicado seis anos depois.
Esse curto espaço de tempo entre as publicações explica a falta de diferenças
significativas entre as ideias econômicas utilizadas nas duas obras. Para evitar repetição
e privilegiarmos a exposição mais detalhada e rigorosa que se situa na segunda obra,
optaremos por expor tais ideias conjuntamente, a partir da discussão do Tratado.

4.4.2. Tratado de Economia Política


Seguindo o procedimento que adotaremos (quando possível) neste trabalho, vamos
dividir a análise da economia de Destutt de Tracy em duas seções, a primeira tratando
da teoria econômica em geral e a segunda dedicada a concepções sobre estados e
governos.

4.4.2.1. A teoria econômica geral em Destutt de Tracy


O Tratado de Economia Política é publicado pela primeira vez em inglês, devido à
iniciativa editorial de Thomas Jefferson, que supervisiona a tradução do manuscrito
original. Seu autor, porém, pretendia que tal texto fosse um fragmento de uma obra mais
ampla. De fato, Tracy afirma que não se trata de tratado convencional sobre o tema, que
requereria tratamento minucioso dos temas habituais dessa disciplina. O propósito da
obra, pelo contrário, seria derivar os princípios da ciência econômica a partir da base
filosófica e científica mais ampla que o autor denomina Ideologia. Dessa maneira, o
Tratado é parte de um projeto mais amplo, intitulado Elementos de Ideologia, dedicado
ao estudo da faculdade de raciocínio ou entendimento humano.
O projeto original é dividido em três partes. A primeira abordaria os meios pelos quais
adquirimos conhecimento, a segunda trataria das aplicações desse estudo à vontade
(volonté no original, will na edição de Jefferson) e seus efeitos; ou seja, abordaria temas
relacionados ao que hoje entendemos como ciências sociais em geral e a terceira seria
dedicada as ciências físicas e matemática. Desse projeto, seu autor publica três volumes
relativos à primeira parte: L'idéologie proprement dite [1801], La grammaire [1803] e
La logique [1805].
A segunda parte, denominada Traité de la volonté, seria dividida em três, versando
respectivamente sobre a ação humana, sobre os sentimentos e as maneiras de dirigir a
ação e sobre os sentimentos. Desse projeto, apenas a primeira parte foi concretizada, no
Tratado de Economia Política.
O conteúdo econômico dessa obra combina ideias de Say, Smith e dos fisiocratas,
embora Destutt de Tracy se oponha a inúmeras teses desses últimos. O que chama a

173
atenção do leitor, mais do que as teses econômicas lá expostas, é sua abordagem
metodológica, que ambiciona utilizar a filosofia empirista de Locke tal como continuada
no sensacionalismo de Condillac para fundamentar a Economia como a ciência que
estuda a lógica da ação humana. Já detalhamos no segundo capítulo tanto as crenças do
autor a respeito do método adequado para a Economia quanto a maneira como o autor
parte de princípios epistemológicos para derivar essa ciência, além de discutir a
semelhança entre essas ideias e a praxiologia desenvolvida por Mises mais de cem anos
depois. Aqui, basta recordarmos brevemente o longo prefácio metodológico da obra
para que possamos avançar para a substância da teoria econômica.
Destutt de Tracy trata a Economia como a ciência da ação, que tem sua origem na
vontade. Esta última, por sua vez, é derivada da percepção sensorial, assim como todo
fenômeno mental: a memória associada a sensações que geram a percepção de
consequências desejáveis leva o indivíduo a perceber sua própria existência e a posse de
suas faculdades, o que permite que ele aja no sentido de substituir estados de coisas
indesejáveis por outros considerados superiores. A vontade implica destarte um
ordenamento de objetivos, que são parcialmente atendidos a partir do emprego de meios
que têm origem última nas faculdades intelectuais e físicas dos indivíduos. O autor
expressa o pressuposto comportamental que adota de uma forma peculiar: os agentes
teriam o “direito” de buscar seus objetivos e o “dever” de empregar seus meios da
melhor forma possível.
Imitando Condillac, que utilizava o experimento mental de sucessivamente atribuir os
sentidos humanos a uma estátua para investigar a natureza das habilidades cognitivas
dos seres humanos resultante das combinações desses sentidos, Destutt de Tracy (1970,
p. 76) replica o exercício para fazer a ponte entre ação individual e ação em sociedade.
Utilizando sua nomenclatura de direitos e deveres, inicialmente um ser sensível e
provido de vontade, mas incapaz de agir teria “direitos” e não “deveres”, isto é, teria
necessidades, mas não haveria como imaginar plano de ação que envolva meios e fins.
Já um ser sensível e provido de vontade e capacidade de agir, mas que estivesse em
isolamento, tal como um Robinson Crusoé, teria todos os “direitos” e o “dever” de
empregar seus recursos da melhor maneira possível. Diante do mesmo ser, agora em
contato com seres sensíveis, mas com os quais não é possível comunicação
significativa, como o caso dos animais, devemos incorporar na análise o conceito de
simpatia, modificando o campo dos “deveres” do agente. Finalmente, diante de seres
com os quais é possível se comunicar, entram em cena os motivos racionais que
justificam a vida em sociedade. A colaboração social proporciona significativo aumento
de nossa capacidade de atender as nossas necessidades.
Dessa maneira, para o autor, instinto reprodutivo, simpatia e o raciocínio tornam o
homem um ser necessariamente social. Restringindo a análise ao aspecto econômico da
sociedade, explicitamente definido como o estudo das maneiras como meios são
utilizados para satisfazer fins segundo sua utilidade, Destutt de Tracy (1970, p. xvi)
identifica as vantagens da vida em sociedade com o conceito geral de trocas:

174
Sob esta relação [isto é, considerando apenas uma perspectiva econômica] a
sociedade consiste apenas em uma sucessão contínua de TROCAS, e a troca é uma
transação de tal natureza que ambas as partes contratantes sempre ganham.62
Essa passagem requer dois comentários. Allix (1912, p. 431) cita essa afirmação para
atribuir a Destutt de Tracy um “individualismo rigoroso”. É certo que o autor não se
filia às tradições intelectuais rivais que defendem o historicismo e rejeitam o
individualismo metodológico. Porém, não se pode repetir as caricaturas que os
defensores dessas tradições comumente utilizam para retratar a tradição intelectual rival,
caricaturas essas que sugerem defesa de egoísmo e atomismo. Troca, para Destutt de
Tracy, é uma noção abstrata e subjetivista, calcada em teoria sobre o funcionamento da
mente humana, não se limitando a arranjos institucionais particulares. Para o autor, as
próprias regras de interação podem ser vistas como trocas (p. 6), assim como ações sem
contrapartida monetária ou trabalho conjunto também podem ser descritos como trocas
mutuamente vantajosas. Na tradição clássica a qual o autor se filia, a constância da
natureza humana e a exposição do problema econômico em termos da relação entre
meios e fins permite precisamente que se compare o desempenho econômico de
diferentes arranjos institucionais em termos de eficiência de solução do problema
econômico.
Porém, tampouco podemos interpretar a citação acima segundo a teoria moderna.
Embora Destutt de Tracy parta de concepção praxiológica de Economia, expressa em
termos de meios e fins e coloque o conceito de trocas no centro do seu sistema, o que
sugere a perspectiva catalática encontrada em Condillac, devemos apontar duas
diferenças. A exposição da centralidade das trocas pelo autor enfatiza o caráter
dinâmico do problema econômico, no sentido de que os indivíduos devam explorar
ganhos de trocas proporcionados pelo fluxo contínuo de pequenas mudanças que
ocorrem na economia. Embora isso ainda mantenha o autor afinado da perspectiva
austríaca, o afasta da concepção teórica tradicional, focada na análise da eficiência de
alocações de equilíbrio. As ferramentas teóricas que o autor utiliza, além disso, o
afastam de qualquer versão da perspectiva catalática, na medida em que são tomadas da
tradição de Smith e Say.
Definida a troca como fenômeno fundamental, o próximo passo dado pelo autor será
elaborar a discussão smithiana de divisão do trabalho. O conceito de trocas é seguido
pela exposição dos motivos racionais que proporcionam as vantagens advindas da vida
em sociedade (p. 17): a concorrência de forças em trabalho conjunto, o aumento e
preservação da inteligência proporcionada pela vida em sociedade e a divisão do
trabalho ou especialização. Dados os fundamentos subjetivistas empregados pelo autor,
ênfase é dada à divisão intelectual do trabalho, manifesta tanto em invenções como na
formação de capital humano.

62
Under this relation society consists only in a continual succession of EXCHANGES, and exchange is a
transaction of such a nature that both contracting parties always gain by it. Ver também a página 6.
Devemos notar que a obra reinicia a numeração de páginas quando se encerra a introdução metodológica
e começa a exposição da teoria, exatamente no ponto em questão.

175
Depois de desenvolver o conceito de divisão do trabalho tomado de Smith, o autor
segue a estrutura proposta por Say, discutindo na sequência a produção e distribuição da
riqueza. Produção é definida pelo autor como qualquer atividade que confira utilidade a
algo. Assim como para Say, o objetivo dessa definição também é se contrapor à
concepção fisiocrata de produção, associada ao produto líquido gerado exclusivamente
na agricultura. Para Destutt de Tracy, todo trabalho útil é produtivo em qualquer ramo
de atividades. A verdadeira classe estéril, para ele, seria composta por proprietários de
terra e de capital, que alugam seus recursos para trabalho útil de outras pessoas.
Tal ponto de vista revela o distanciamento do autor da perspectiva catalática
desenvolvida por Condillac em favor da abordagem plutológica de Say. Embora tenha
origem na utilidade, a produção assume um status central na atividade econômica,
segundo a seqüência produção-distribuição-consumo empregada por Say. Destutt de
Tracy classifica toda atividade produtiva em duas categorias gerais: mudança de forma e
mudança de localização. O trabalho do comerciante, como vimos em Say, se reduz
efetivamente ao trabalho de transporte (p. 25), excluindo a função de realocação de
recursos via arbitragem das diferenças de preços em diversas localizações. O mesmo
motivo faz com que o autor classifique como estéril a atividade de proprietários de
capital, já que na perspectiva plutológica de Say a atividade empresarial se identifica
com gerenciamento e não com o problema alocativo.
Isso nos leva ao problema do valor. Como mencionamos na introdução deste trabalho, é
fácil encontrar no texto de Destutt de Tracy passagens que corroborem a adesão tanto à
teoria objetiva quanto à teoria subjetiva do valor. Também pudemos notar como as duas
teorias convivem lado a lado, sem gerar preocupações com possíveis inconsistências, no
livro de Galiani. Na verdade, as alegadas inconsistências desaparecem se examinarmos
as situações problemas originais dos autores em vez de buscar antecipações de teorias
posteriores. Destutt de Tracy não está preocupado em obter medidas invariantes de
valor ou buscar um fundamento para uma teoria de exploração, como tampouco
examinar a eficiência de estruturas de mercado na resolução do problema alocativo.
Como na perspectiva de Say, procura-se apenas escapar da idéia de que o valor está
relacionado a algum setor ou bem material particular e listar os fatores que influenciam
a determinação do preço de um bem qualquer.
Vejamos então o que o autor diz sobre o assunto. Para ele, o valor dos bens é derivado
da sua utilidade, real ou ilusória. Embora a “vivacidade de nossos desejos” seja algo
inapreciável diretamente, a utilidade pode ser aferida cardinalmente pelo sacrifício que
o indivíduo está disposto a fazer para obter um bem. Neste ponto, o autor confunde
preço de reserva com preço efetivamente pago: no resumo de sua obra (p. xviii), o
sacrifício é definido como o preço pago, ao passo que no corpo do texto (p. 28) a
definição muda para preço de reserva:
No entanto, temos uma maneira muito certa de chegar a ela [utilidade]: observando
os sacrifícios a que esses desejos nos impõem. Se, para obter qualquer coisa, estou
disposto a dar três medidas de trigo que pertencem a mim; e se, para obter outra,

176
estou pronto a me desfazer de doze medidas semelhantes, é evidente que desejo a
última quatro vezes mais do que a primeira.)63
O uso da noção de preço de reserva, mais próxima do referencial filosófico
originalmente empregado, teria sentido caso o autor utilizasse também o aparato teórico
de Condillac, que trata de excedentes de valor nas trocas. Mas, como seguidor de Say,
Destutt de Tracy, no restante da obra, utiliza-se do preço pago como medida de valor.64
Além do valor baseado na utilidade do bem para o demandante, expresso nos preços de
mercado, as mercadorias e também o trabalho apresentam outro valor, dado pelo
sacrifício do produtor. Destutt de Tracy, voltando à fundamentação de sua teoria,
associa a satisfação de nossas necessidades ao uso de nossos recursos, sendo o trabalho
humano a fonte primária de riqueza.
O trabalho em si também tem dois valores65. O valor necessário ou natural, expresso em
termos das coisas indispensáveis para a satisfação das necessidades do trabalhador
enquanto ele trabalha e o valor convencional, dado pela “massa de utilidade que resulta
desse mesmo trabalho”.
A despeito da existência de dois valores, não existe ambiguidade sobre o que determina
os preços na opinião de Destutt de Tracy (1970, p. 30):
Mas aqui, quando falamos do valor que resulta das transações livres na sociedade, é
claramente visto que temos em vista o valor convencional e de mercado; aquele que
a opinião geral atribui às coisas, errônea ou razoavelmente. Se [esse valor] for
menor do que as necessidades do trabalhador, ele deve se dedicar a alguma outra
indústria se não quiser perecer. ... Em todos os casos, este valor convencional e de
mercado é o real, em relação às riquezas; é a verdadeira medida da utilidade da
produção, já que ele fixa seu preço. 66
A despeito disso, é comum encontrar autores que acreditam encontrar em Destutt de
Tracy um defensor da teoria do valor trabalho. Bornier (2013) lista uma sequencia
desses autores. Ricardo, entre eles, menciona Destutt de Tracy como aliado em sua
disputa com Say sobre a causa do valor. Marx, por sua vez, confundiria as duas noções
de valor desenvolvidas por Destutt de Tracy com a distinção clássica entre valor de uso
e troca. Para Bournier, autores mais recentes, como Allix (1912) e Klein (1985) também
teriam tratado o autor como um defensor da teoria do valor trabalho, embora isso de fato
não seja exato no que diz respeito a Klein.

63
We have, however, a very sure manner of arriving at it. It is to observe the sacrifices to which these
desires determine us. If, to obtain any thing whatsoever, I am disposed to give three measures of wheat
which belong to me ; and if, to obtain another, I am ready to part with twelve like measures,—it is evident
that I desire the last four times more than the other.
64
Empregando plenamente o referencial marginalista modero, no equilíbrio a disposição a pagar e o
preço pago coincidem, conforme a taxa marginal de substituição se equivale ao preço relativo quando
se maximiza utilidade.
65
Ver pág. 89 da introdução metodológica e pag. 30 da parte econômica. Essas duas seções da obra,
devemos observar, possuem numeração própria.
66
But here, where we speak of the value which results from the free transactions of society, it is clearly
seen that we have in view the conventional and market value; that which general opinion attaches to
things, erroneously or reasonably. If it is less than the wants of the labourer, he must devote himself to
some other industry, or he must perish. … In every case this conventional and market value is the real
one, in relation to riches; it is the true measure of the utility of the production, since it fixes its price.

177
Bornier (2013) atribui corretamente esse equívoco de interpretação à falta de percepção
de que o objetivo do autor é combater a tese fisiocrata de que apenas a agricultura seria
produtiva, afirmando que qualquer tipo de trabalho, em qualquer indústria, estaria
associado à geração de valor.
Além disso, devemos acrescentar que a relação entre valor e trabalho na obra de Destutt
de Tracy também está associada à filosofia sensacionalista de Condillac, já que a ação
humana é explicada em termos de uso de nossas faculdades como instrumento para
atender as necessidades percebidas. Finalmente, devemos considerar que fora do
contexto do problema alocativo mais amplo, no qual a oferta é interpretada como
utilidade preterida, ou custo de oportunidade, o uso de teoria do valor eclética ou dual,
que lista separadamente tanto os fatores que determinam a oferta e a demanda, é o
bastante para análises do preço de um único bem considerado isoladamente. Destutt de
Tracy utiliza de fato a teoria dos preços nesse contexto de equilíbrio parcial, já que o
autor utilizará seu modelo de determinação do preço principalmente na análise de
questões de incidência tributária.
A teoria apresentada na sequência por Destutt de Tracy emprega as ferramentas que
identificamos até aqui ao longo da evolução da disciplina. Nos dois setores produtivos –
indústrias de mudanças de forma e local – existem três tipos de agentes, segundo a
fórmula de Say: cientistas, empreendedores e trabalhadores, responsáveis
respectivamente pelas atividades de teorizar, aplicar e executar. De Quesnay e Turgot, o
autor empresta a idéia de que o capital funciona como adiantamento poupado em
processos produtivos anteriores, para financiar a produção presente. Como no livro de
Cantillon, o empreendedor no texto de Destutt de Tracy tem remuneração residual
variável, já que os pagamentos fixos às outras classes ocorrem durante o processo
produtivo e a receita surge apenas no final, dependendo da incerteza sobre a demanda.
Por fim, modificando Quesnay, o autor crê que capitalistas e proprietários de terra são
estéreis, pois não empregam trabalho, mas apenas emprestam fundos.
Passando no esquema plutológico da produção para a distribuição, Destutt de Tracy
utiliza as ideias de Malthus: as pessoas encontrariam empregos lucrativos enquanto
ainda houver terras agricultáveis disponíveis. As pessoas encontrariam inicialmente
ocupações lucrativas na agricultura e extrativismo e posteriormente na indústria. O
crescimento populacional, porém, faria com que as oportunidades se esgotem e as
pessoas migrem para empregos assalariados, com menor remuneração, até que se
alcance algo que será mais tarde descrito como um estado estacionário. As conclusões
são sempre malthusianas: o crescimento econômico seria transitório e a única política
efetiva a diminuição da fecundidade (p. 131).
As considerações mais interessantes a respeito da distribuição, porém dizem respeito à
interação entre desigualdade de poder e desigualdade de renda. A desigualdade de
poder, isto é, sociedades caracterizadas por instituições de estabelecem privilégios
legais, deve dar lugar a sociedades caracterizadas pelo que Destutt de Tracy denomina
governos nacionais em seus Comentários a Montesquieu, que estabelecem a igualdade
178
perante a lei. O aumento de riqueza gerado por esse segundo tipo de instituições, no
entanto, poria em marcha um processo que pode resultar em um ciclo que envolve a
expansão da riqueza e do estado. Nas palavras de Destutt de Tracy (1970, p. 158),
Ao diminuir a desigualdade de poder e, assim, estabelecer a segurança, a sociedade
produz o desenvolvimento de todas as nossas faculdades e aumenta nossas riquezas,
isto é, nossos meios de existência e satisfação. Mas quanto mais nossas faculdades
são desenvolvidas, mais sua desigualdade aparece e aumenta; e isso logo introduz a
desigualdade das riquezas, que traz consigo a desigualdade de instrução, capacidade
e influência. (p. 158)67
A exposição desse mecanismo não é acompanhada da discussão de planos de educação,
tão caros ao pensamento dos Ideólogos. Destutt de Tracy de fato não tem uma receita
pronta para escapar desse ciclo, já que extrapolar a função de garantir leis e propriedade
faria com que governos reestabeleçam a desigualdade de poder. A falta de remédios
óbvios seria, para o autor, testemunhada pelos diferentes destinos de diferentes nações.
Por fim, avançando no esquema clássico da distribuição para o consumo, podemos
observar que a exposição desse assunto leva o autor a um referencial explanatório
semelhante ao fisiocrata, que tanto combatera. Consumo, para os fisiocratas, é visto
como o contrário da produção, ou seja, destruição de riqueza. Nas palavras de Destutt
de Tracy (1970, p. 166), “... toda produção aumenta nossas riquezas e todo consumo as
diminui.” Sem postular um mercado de fundos emprestáveis para lidar com alocação
intertemporal de recursos, o crescimento econômico é avaliado em termos do tipo de
gasto, que pode ser classificado como produtivo ou improdutivo, sendo o produtivo
aquele que aumenta o estoque de riqueza e o improdutivo aquele que o diminui. Tudo
isso repete a análise de Say. Destutt de Tracy acrescenta, porém, uma tentativa de
operacionalizar a distinção entre consumo produtivo e improdutivo. O gasto produtivo,
para o autor, se manifesta na forma de lucros monetários, um retorno sobre o investido,
ao passo que um gasto estéril ou improdutivo não, por ser consumido.
Essas noções adotadas por Say e Destutt de Tracy consolidam de fato na escola clássica
francesa a maneira como decisões de gasto nas esferas privada e pública são avaliadas.
O critério proposto por Destutt de Tracy, porém, gera dificuldades, impedindo por
exemplo a classificação de um investimento público útil como produtivo, já que, por
definição, uma ponte não pedagiada não gera excedente na forma de lucros, por mais
que tal investimento possa aumentar a produtividade da economia.
Destutt de Tracy, além disso, utiliza esses conceitos para criar uma versão não agrícola
do Quadro Econômico de Quesnay. Nesse quadro, temos duas classes básicas,
assalariados e contratantes, sendo esta última dividida entre produtores e estéreis. Nesta
última subdivisão, um capitalista ou proprietário de terras que contrata trabalhadores
remunera apenas trabalho estéril. O contratante produtivo, por sua vez, divide seus

67
By diminishing the inequality of power, and thus establishing security, society produces the
development of all our faculties, and increases our riches, that is to say our means of existence and
enjoyment. But the more our faculties are developed, the more their inequality appears and augments;
and this soon introduces the inequality of riches, which brings with it that of instruction, capacity and of
influence.

179
gastos em parcelas estéril e lucrativa. O “produto líquido” ou lucro das classes
produtivas permitiria, segundo Destutt de Tracy (170, p. 171) que todos sejam
sustentados:
Isto é o que completa esse movimento perpétuo de riquezas, que embora pouco
compreendido tenha sido muito bem chamado de circulação: pois é realmente
circular, e sempre retorna ao ponto de onde partiu. Este ponto é o da produção. Os
empresários da indústria são realmente o coração do corpo político, e seus capitais
são seu sangue. Com estes capitais pagam os salários da maior parte dos
empregados; eles pagam suas rendas a todos os capitalistas ociosos, possuidores de
terra ou dinheiro; e por eles o salário de todos os outros empregados; e tudo isso
retorna a eles por todas essas despesas, que lhes pagam mais por o que eles
produziram com o trabalho de seus assalariados imediatos, do que os salários desses
e o aluguel da terra e do dinheiro emprestado custaram a eles..68
O objetivo de contrariar as conclusões da fisiocracia através de um quadro econômico
rival, porém, será fonte de mal-entendidos. Se em capítulos anteriores o lucro é
apresentado como geração de utilidade em trocas em contextos de mudança contínua,
apresentar lucro como “produto líquido” em fluxo circular agregado em termos de
gastos produtivos e estéreis, agravado pela falta de menção à teoria do capital, induzirá
o leitor a formular as mesmas críticas dirigidas ao quadro original. Como nota Allix
(1912, p. 444), Marx questiona a origem desse lucro visto como um excedente, sob o
ponto de vista da teoria do valor trabalho. Mas, como vimos anteriormente, Destutt de
Tracy não utiliza tal teoria. A despeito disso, o uso de uma analogia com o quadro
econômico, uma ferramenta agregada, sem a respectiva fundamentação na lógica da
ação adotada em outras partes da obra, gera necessariamente ambiguidades, como a
explicitação da fonte desse produto líquido: seria ele lucro empresarial, derivado de
diferenças de utilidade entre combinações diferentes de recursos, produtividade do
capital, mais-valia ou ainda outra coisa?
Tendo em vista a teoria econômica exposta nesta seção, como seu autor a utiliza para
investigar a natureza do estado e sua relação com a economia? Tratemos disso próxima
seção.

4.4.2.2. Economia e Estado em Destutt de Tracy

Já tivermos a oportunidade de examinar a concepção de Destutt de Tracy a respeito da


evolução ao longo do tempo das instituições em seu livro inspirado pelo pensamento de
Montesquieu. Para que possamos tratar da análise econômica a respeito do

68
This is what completes that perpetual motion of riches, which although little understood has been very
well called circulation : for it is really circular, and always returns to the point from whence it departed.
This point is that of production. The undertakers of industry are really the heart of the body politic, and
their capitals are its blood. With these capitals they pay the wages of the greatest part of the hirelings ;
they pay their rents to all the idle capitalists, possessors either of land or money ; and by them the wages
of all the remaining hirelings ;—and all this returns to them by the expenditures in all these ways, which
pay them more for what they have had produced from the labour of their immediate hirelings, than the
wages of these, and the rent of the land and money borrowed, have cost them.

180
funcionamento do estado nesta seção, devemos iniciar com as concepções do autor
sobre conflitos de interesses.
A percepção de que os fenômenos sociais estariam sujeitos a leis naturais, pré-requisito
para que se imagine uma teoria sobre fenômenos econômicos, não implica que os
economistas franceses acreditem em uma harmonia de interesses independente dos
arranjos institucionais.
O autor, de fato, aborda conflitos de interesses imediatamente no início de sua
exposição, logo após listar os diferentes tipos de funções econômicas que acompanham
a especialização, na discussão sobre produção. Para Destutt de Tracy (1970., p. 42), o
reconhecimento dessas funções possibilitaria descobrir...
... o germe dos interesses opostos, que são estabelecidos entre o empresário e os
assalariados, por um lado, e entre o empresário e os consumidores, por outro; entre
os assalariados entre eles próprios; entre os empreendedores do mesmo tipo, mesmo
entre empresários de diferentes tipos, uma vez que é entre todos estes que os meios
da massa de consumidores estão mais ou menos desigualmente divididos; e,
finalmente, entre os próprios consumidores, uma vez que também entre eles é
dividido todo o gozo da utilidade produzida69.
Nessa análise, os fenômenos sociais são construídos a partir da interação entre
indivíduos. As categorias econômicas listadas acima, por conseguinte, são construções
analíticas apenas e não realidades com existência própria. Desse modo, cada indivíduo
pode se encaixar em mais de uma categoria e a desagregação de cada uma delas revela a
existência de conflitos de interesse em seu seio em múltiplas dimensões sobrepostas.
Isso nos leva ao contraste entre as noções de classe e de conflito entre elas
desenvolvidas por liberais e socialistas. Os economistas franceses desenvolverão uma
teoria de exploração derivada da própria lógica da ação coletiva e não na existência de
classes definidas por funções econômicas, como elaboraremos no próximo capítulo.
Aqui, basta notar a presença da noção de conflitos de interesse e de seus usos teóricos,
que no caso de Destutt de Tracy resultará em uma análise econômica da ação estatal
afinada com a moderna escola da escolha pública, tal como também ocorre na obra de
J.-B. Say. Say e Tracy desenvolvem desse modo a tradição de análise que encontramos
em Gournay e Turgot.
Dada a afirmação sobre a afinidade entre a análise clássica do estado e a teoria da
escolha pública moderna, vale a pena citarmos trechos mais longos dos textos de
Destutt de Tracy que atestam a semelhança. Vimos que a legislação ideal preferida pelo
autor se manifesta nos governos que ele classifica como nacionais nos Comentários a
Montesquieu, que impõem igualdade perante a lei. No Tratado, por outro lado, o
surgimento de conflitos de interesses, sob divisão do trabalho, abre espaço para a

69
You even discover the germ of the opposite interests, which are established between the undertaker and
those on wages on the one part, and between the undertaker and the consumers on the other, amongst
those on wages, between themselves, amongst undertakers of the same kind, even amongst undertakers of
different kinds, since it is amongst all these that the means of the mass of consumers are more or less
unequally divided; and finally amongst consumers themselves, since it is also amongst all of them, that
the enjoyment of all the utility produced is divided.

181
demanda pelo uso do estado como ferramenta para obtenção de privilégios legais, que,
se obtidos, representam a antítese da forma ideal de governo. Para Tracy (1970, p. 42):
Se continuares examinando esses diferentes interesses, no progresso da sociedade e
na ação das paixões que eles produzem, verás em breve que todos esses homens
imploram a assistência da força em favor da ideia com a qual eles simpatizam; ou,
pelo menos, sob diferentes pretextos, incitam leis proibitivas, para restringir aqueles
que os obstruem nesta disputa universal. (ênfase adicionada)70
Essa “paixão”, o auto-interesse na esfera política, que leva ao comportamento hoje
conhecido como rent-seeking, tem origem em Destutt de Tracy na natureza humana
reagindo a incentivos em ambientes caracterizados pela especialização.
Continuando o argumento, o sucesso na obtenção de privilégios legais, como na teoria
moderna, é explicado pelo autor (p. 42) em termos da lógica da ação coletiva. Por um
lado, os consumidores não conseguem se unir em grupo de pressão por seus interesses
dispersos:
Se houver uma classe que não segue esse caminho, seria a dos consumidores; porque
todo o mundo sendo consumidor, todos não podem se unir para formar um clube e
exigir exceções; pois é a lei geral, ou melhor, a liberdade, que é a sua garantia.
Assim, eles não possuem representantes especiais ou procuradores vorazes
precisamente porque o interesse deles é o interesse universal.71
Já grupos particulares de produtores, afirma Destutt de Tracy (p. 43), conseguem
organizar politicamente a atividade de busca por privilégios legais:
Todos aqueles que, pelo contrário, têm um interesse particular predominante são
unidos por ele; formam corporações; têm agentes ativos; nunca faltam pretextos para
insistir na prevalência [de seus fins]; e abundam em meios, tanto os ricos ou os
formidáveis, quanto os pobres em um momento de dificuldade, isto é, quando o
segredo de sua força lhes é revelado e eles estão ansiosos por abusar dela.72
Essa assimetria, responsável pela explicação do porquê minorias conseguem explorar a
maioria via privilégios legais, espelha o ambiente mercantilista francês no antigo regime
que Destutt de Tracy buscou combater a partir da revolução francesa.
As citações apresentadas acima indicam que, além do estudo a respeito de quais
atividades o estado e os governos deveriam exercer, encontramos a análise de como
essas atividades são de fato exercidas. Daí a semelhança entre a escola clássica francesa
e a moderna “política sem romance” de que nos fala Buchanan (1984).

70
If you pursue further the complication of these different interests, in the progress of society, and the
action of the passions which they produce, you will soon see all these men implore the assistance of force
in favour of the idea with which they are prepossessed; or, at least, under different pretexts, provoke
prohibitive laws, to constrain those who obstruct them in this universal contention.
71
If there be a class which does not follow this direction, it will be that of the consumers; because all the
world being consumers, all cannot unite to form a club, and to demand exceptions; for it is the general
law, or rather liberty, which is their safe-guard. Thus it is precisely, because their interest is the universal
interest, that it has no special representatives, or ravenous solicitors.
72
All those, on the contrary, who have a particular predominating interest, are united by it; form
corporations ; have active agents; never want pretexts to insist for prevalence ; and abound in means, if
they are rich or if they are formidable, as are the poor in a time of trouble, that is to say when the secret
of their force is revealed to them, and they are excited to abuse it.

182
Antes de ilustrar ainda mais a análise positiva da ação estatal, digamos algo sobre as
funções desejáveis do estado e suas formas de financiamento, segundo o autor. O exame
das despesas e receitas legítimas do estado ilustra o padrão da análise que
encontraremos em toda a economia clássica. A administração da justiça e da segurança
é apresentada por Destutt de Tracy (1970, p, 196) como função básica do estado e
algumas outras são defendidas como apenas desejáveis. Entre essas últimas, o autor (p.
198) aponta que o estado deveria possuir terras, pois ele preservaria melhor grandes
florestas, teria melhor conhecimento sobre as condições locais, subtrairia receita de
nobres com gastos estéreis e, repetindo a tese fisiocrata, serviria como fonte de tributos
que não incidiriam sobre outras atividades econômicas. O exame dos gastos também
segue de perto a análise de Say. As despesas governamentais são avaliadas como
estéreis, não contribuindo para o aumento da riqueza.
Quanto às receitas públicas, depois listar os tipos possíveis de impostos, o autor
examina o impacto econômico de cada um deles e discute o problema da incidência
tributária no caso de tributos sobre circulação de riqueza. Devemos mencionar que,
nessa análise, as duas noções de valor do autor são empregadas para estudar esse último
problema conforme tenhamos mercados competitivos ou monopolistas. Além de
discutir (p. 115) como em um mercado isolado a competição faz com que o preço tenda
aos custos, Destutt de Tracy chega a conclusão (p. 227) de que repasses de tributos
dependem em essência da elasticidade da demanda pelo produto.
A coexistência das análises sobre o que o estado deveria fazer e sobre o que de fato faz
se manifesta novamente nas questões monetárias abordadas por Destutt de Tracy. Se por
um lado, após descrever as funções da moeda, o autor afirma que é necessária a
chancela governamental para que metais possam ser considerados moeda (p. 78), por
outro argumenta que as diferentes designações nacionais do dinheiro deveriam fazer
apenas referência à quantidade dos metais (p. 85), dado o histórico de abuso da moeda
por parte dos governos. O surgimento do papel moeda, por seu turno, além de transferir
recursos de credores para devedores via inflação, poria em marcha processo
inflacionário (p. 91) que envolve desconsideração do governo pela economia, gastos em
projetos inviáveis e financiamento de guerras, de sorte que a continuação do
financiamento inflacionário dos gastos públicos resultaria, no limite, em controles de
preços, requisição governamental de estoques, forçando empresas a operar com prejuízo
e desincentivo à produção, até que todos vivam apenas daquilo que possam esconder e
as relações sociais se dissolvam no desaparecimento das trocas.
Dado que a abordagem do autor não se restringe à análise ideal das funções do estado,
reservando considerável espaço para análise positiva da ação governamental, não é
surpreendente que essa descrição do processo acumulativo de intervenções, que
desencadeiam reações que por sua vez exigem novas intervenções e assim
sucessivamente também lembre em vários aspectos a análise que mais tarde Mises
(2010) empreenderá sobre a lógica do intervencionismo visto como um sistema
econômico.

183
Ainda novas considerações sobre a economia da política surgem nas discussões do autor
sobre o financiamento do estado via crédito. Ao contrário da tradição que considera o
estado apenas sobre a ótica ideal, sem considerar a lógica de processos políticos, Destutt
de Tracy (1970, p. 237) adverte o leitor dos perigos derivados do aumento do poder
associados a esse tipo de financiamento, manifesto na capacidade de governantes de
“enriquecer suas criaturas” e realizar projetos sem consulta prévia aos cidadãos.
Presumivelmente, o autor se refere a ligação mais tênue entre o valor de um projeto e os
custos de seu financiamento na esfera da ação coletiva.
Em termos estritamente econômicos, o autor combate a opinião de que empréstimos
públicos seriam em essência voluntários. Embora a aquisição de títulos públicos pareça
voluntária, o vencimento futuro dos mesmos implica em arrecadação de impostos de
pessoas que ainda não nasceram, o que faz com que a operação como um todo envolva
ação não voluntária. Para ele (p. 238), “uma geração não recebe de outra uma herança, o
direito de viver em sociedade; e de lá viver sob certas regras que agradem [a geração
prévia]”.
Dessa afirmação o autor deriva uma interessante proposta de legislação para lidar com o
problema de transferência de ônus de gastos para as gerações futuras. Segundo essa
proposta, nenhum governo seria obrigado a honrar dívidas contraídas por governos
prévios. Embora tal proposta limite a capacidade dos governos de alocar recursos
interetemporalmente, tal medida elimina o caráter não voluntário das trocas envolvidas,
limitando a capacidade de uma geração espoliar a próxima.
Se não for limitado, o financiamento do estado via crédito daria origem adicionalmente
a uma classe ociosa de rentistas que vivem de emprestar ao governo:
E ... quem são esses credores? Homens não apenas ociosos, assim como todos os
rentistas; mas também completamente indiferentes ao sucesso ou ao fracasso da
classe trabalhadora a quem eles não emprestaram nada: não tendo absolutamente
nenhum interesse que não seja a permanência do governo emprestador, seja qual for
ou o que faz, e, ao mesmo tempo, não querendo outra coisa senão vê-lo em apuros,
com o propósito a força-lo a pagar mais. Consequentemente, [são] os inimigos
naturais dos verdadeiros interesses da sociedade, ou pelo menos [são]
completamente estranhos a eles. (p. 242)73
Ao lado do argumento teórico, Destutt de Tracy argumenta que historicamente governos
arruínam suas finanças com empréstimos, pois não investem de forma sábia, assumindo
tais gastos com frequência formas improdutivas. A conclusão é deixada ao autor (p.
246): “De tudo isso eu concluo novamente que o que é chamado de crédito público é o
veneno que rapidamente destrói os governos modernos”.

73
And …who are these lenders? Men not only idle, as are all annuitants; but also completely indifferent
to the success or failure of the industrious class to which they have lent nothing: having absolutely no
interest but the permanence of the borrowing government, whatsoever it be or whatsoever it does; and at
the same, time having no desire but to see it embarrassed, to the end that it may be forced to keep fair
with them and pay them better. Consequently natural enemies to the true interests of society, or at least
being absolutely strangers to them.

184
Este capítulo tratou da formação da escola clássica francesa. O ambiente intelectual dos
intelectuais denominados “ideólogos”, caracterizado pela aderência ao empirismo de
Condillac e pela necessidade de encontrar instituições favoráveis ao desenvolvimento
francês pós-revolução, buscou na economia de Adam Smith uma plataforma de análise
que se opunha tanto ao mercantilismo quanto a fisiocracia, ao advogar solução
institucional que proporcionaria o desenvolvimento em todos os setores da economia a
partir de regras impessoais, que limitam o exercício do poder arbitrário.
Os condes Garnier e Roederer desenvolveram uma teoria econômica de transição entre a
perspectiva agrícola de Cantillon e Quesnay e a doutrina de Smith, que incorpora a
indústria manufatureira. Os dois condes incluem essa indústria como geradora de
produto líquido.
Entre os ideólogos, Say buscou se distanciar da herança francesa, pretendendo que a
obra de Smith seria diretamente estabelecida a partir da observação empírica. Mas,
como não existe observação sem teoria, a obra do escocês também faz uso da tradição
teórica existente até então. A despeito disso, a sistematização da obra de Smith
empreendida por Say, melhor do que a de Garnier, estabeleceu os moldes para o
desenvolvimento posterior da tradição clássica francesa.
Say inaugura uma vertente da Economia clássica que desenvolve elementos subjetivos,
como a teoria do valor utilidade, mas, no entanto, consolida a tradição plutológica de
economia como a ciência da produção, distribuição e destruição de riqueza material.
Destutt de Tracy, por fim, embora tenha tentado estabelecer a teoria econômica em um
modelo de ação individual derivado do sensacionalismo de Condillac, acaba por adotar
o referencial teórico de Say, assim como farão todos os economistas da escola francesa.
Tanto Say quanto Destutt de Tracy se destacam como pioneiros na análise positiva do
estado, aplicando o mesmo modelo de ação utilizado no exame dos agentes na esfera
privada aos agentes na esfera pública. Expandiram assim a crítica de Gournay – Turgot
ao mercantilismo através do exame da lógica da ação coletiva, que revela as falhas de
governo que fundamentarão seu ceticismo em relação a soluções políticas aos
problemas econômicos.
No próximo capítulo, veremos como na segunda geração de economistas da escola essas
duas vertentes são construídas: a exploração do subjetivismo na teoria do valor e o
exame da ação do estado por meio do desenvolvimento de uma teoria da exploração
econômica.

185
5. Segunda Geração: estado e exploração

Neste capítulo, trataremos dos desenvolvimentos ocorridos na segunda geração de


economistas da escola clássica francesa. Na primeira seção, abordaremos a formação de
uma tradição de pesquisa baseada nos trabalhos dos autores estudados no capítulo
anterior, em especial Say. Nas seções seguintes, focaremos nossa atenção nos
economistas dessa nova geração. Identificaremos uma vertente mais teórica, composta
por Storch e Rossi, que desenvolveram a teoria da demanda, utilidade e bem-estar. A
outra vertente tem caráter mais histórico. Blanqui, Charles Comte e Dunoyer
interpretam a história a partir do referencial teórico adotado por Say. Disso surge uma
concepção de história marcada pelo conflito entre produtores e exploradores e pela
progressiva ampliação da liberdade individual. Por fim, o capítulo encerra com Bastiat,
o autor mais importante dessa segunda geração, que sintetiza as duas vertentes em uma
teoria econômica baseada na relação entre meios e fins, como queria Destutt de Tracy e
que deriva da mesma lógica da ação humana as atividades produtiva e espoliadora,
fornecendo os alicerces para os desenvolvimentos da terceira geração de autores da
escola.

5.1. A Economia de Say e a formação de uma tradição de pesquisa


O capítulo anterior nos mostrou como Germain Garnier e Jean-Baptiste Say
sistematizaram em manuais o corpo de doutrina econômica desenvolvido pelo menos
desde Cantillon até Smith e como Destutt de Tracy buscou fundamentar essa doutrina
em bases filosóficas derivadas do sensacionalismo de Condillac, que guiava o
pensamento dos ideólogos. Estes últimos buscavam um modelo de instituições
adequado para a França após a Revolução Francesa e o industrialismo que caracteriza o
pensamento do grupo motivou a síntese da teoria econômica empreendida por Say.
Em que consiste essa síntese? A economia de Say é em essência o modelo plutológico,
com a “indústria” substituindo a agricultura e a utilidade fornecendo a base para a
definição de riqueza. A indústria, como podemos lembrar, se refere a qualquer trabalho
que gere algo útil e seja voluntariamente trocado em mercados desimpedidos.
A economia de Say desse modo pode ser descrita como mais um passo na tentativa de
adaptação do modelo fisiocrata a uma noção ampliada de riqueza, que em particular não
deixa de fora a indústria manufatureira. Recapitulemos alguns elementos dessa
evolução.
Desde sua origem, a economia tratava do ciclo de vida e do crescimento do conjunto de
objetos denominado riqueza. Em cada ciclo, a riqueza é inicialmente produzida. Na
sequência, é distribuída entre os indivíduos, conforme o tipo de atividade produtiva que
cada um exerce. Finalmente é destruída pelo consumo. Para Cantillon a quantidade de
terra limita a riqueza passível de ser produzida. Para Quesnay, a agricultura é o único
setor capaz de gerar mais riqueza do que consome, de sorte que a aplicação de mais
187
recursos na agricultura seria capaz de fazer com que a riqueza cresça e não apenas se
reproduza. Turgot estende ao capital essa capacidade de aumentar a produção de
riqueza. Smith amplia novamente a noção de riqueza, que incorpora todo bem material
útil que fora produzido anteriormente pelos fatores produtivos. Say, por fim, identifica
riqueza com qualquer coisa que posa ser útil, acolhendo no conceito de riqueza os
serviços que geram bens imateriais.
Uma característica do modelo plutológico aludido acima é a classificação de atividades
como produtivas ou improdutivas, conforme os vários significados que se possa atribuir
a esses termos. Essa classificação naturalmente leva a prática de identificar grupos que
vivem à custa de outros. Em Cantillon e Quesnay, a sociedade toda vivia em certo
sentido do trabalho do produtor rural. Ao longo do desenvolvimento da Economia
clássica, se solidifica a percepção de que proprietários de terra não desempenham
funções produtivas significativas. Embora o capital fosse gerador de riqueza, em Turgot
o capitalista se junta ao proprietário de terra no grupo das pessoas sem função
produtiva, a partir do momento em que disponibilizam para uso o recurso produtivo que
possuem. Com o desenvolvimento da teoria do valor trabalho, os socialistas
desenvolverão a tese de que os capitalistas exploram os trabalhadores. Em Say, por sua
vez, os membros produtivos da sociedade são explorados por aqueles que obtêm
privilégios legais que criam monopólios e proibições. Por fim, em Destutt de Tracy o
ofertante de fundos emprestáveis no mercado de títulos públicos se junta à classe ociosa
dos rentistas.
O problema fundamental enfrentado por Say consiste em definir riqueza de modo mais
amplo e separar produtores e não produtores da maneira desejada pelo autor. Nesse
sentido devemos entender sua ênfase na utilidade como base do valor. Qualquer produto
cuja utilidade for reconhecida em mercados livres é definido como riqueza. Isso permite
que os bens agrícolas, manufatureiros e comerciais sejam todos classificados como
produtivos, bem como os insumos utilizados em sua produção. Entre estes, do mesmo
modo, o fator trabalho também é ampliado em seu escopo, sob a denominação de
“indústria”, que acrescenta os trabalhos do cientista e do empresário à noção usual de
trabalho.
Embora isso seja uma correção importante da visão mais estreita, materialista, de
Economia, o referencial plutológico adotado por Say ainda coloca limitações
significativas à teoria. O foco na produção colocou o problema alocativo em segundo
plano. Com o comércio reduzido à indústria de transporte, a atividade empresarial fica
limitada em Say ao exercício da atividade gerencial. No retrato da economia concebido
pelo autor, não se manifesta a rivalidade entre empresários que atribuem valores
diferentes aos recursos, cada um dos quais informados por diferentes conjecturas a
respeito da utilidade futura dos recursos em empregos alternativos. Como a troca
envolve sempre valores iguais, a análise de Say se aproxima de Turgot e da vertente
inglesa da economia clássica, povoada por capitalistas que recolhem os frutos de
insumos que crescem em valor de forma autônoma, independente do acerto ou não das
escolhas alocativas de seus proprietários. Isso fará com que na prática a análise do
capital de Say gire em torno da condenação moralista dos gastos de luxo.
188
Como a obra de Say se torna o molde para o desenvolvimento posterior da escola
clássica francesa, as peculiaridades do modelo de plutologia desenvolvido pelo autor
definirão o potencial e os limites e dilemas teóricos enfrentados pela segunda geração
de economistas dessa tradição.
No campo da teoria pura, esses economistas irão desenvolver a teoria do valor utilidade,
enfatizando a natureza subjetiva do valor, o caráter especulativo do conhecimento dos
agentes e a variação da utilidade segundo a escassez. O avanço nessa direção
subjetivista exige a recuperação, pelo menos parcial, da abordagem de Condillac, que
parte da hipótese de que as trocas implicam agentes com opiniões diferentes sobre o
valor dos bens.
Tomando como base a noção de valor subjetivo, um economista da escola incorpora na
análise econômica não apenas os serviços, como havia feito Say, mas também os
próprios bens imateriais gerados por esses serviços, transcendendo em certo aspecto a
preocupação clássica com riqueza material e deslocando a análise para o bem-estar em
geral. Tomando um exemplo concreto, não apenas o serviço do músico seria produtivo,
mas a própria música gerada passa a ser vista como um bem imaterial, que deve ser
contemplado pela teoria econômica, mesmo que não obtenha valor expresso no sistema
de preços.
A partir do mesmo desvio da ortodoxia de Say, outro autor da mesma tradição
desenvolverá a teoria dos preços em situações de monopólio, pois o preço que o
consumidor está disposto a pagar não converge para os custos de produção no longo
prazo.
A rejeição de Say à contribuição de Condillac, por outro lado, contribuiu para que seus
seguidores não explorassem o potencial de suas inovações teóricas, que em última
análise revolucionarão a disciplina meio século depois. Um dos autores que
examinaremos, por exemplo, resvala no conceito de excedente do consumidor sem notar
sua utilidade.
Transitando da teoria do valor para a análise do estado, a adoção por parte de Say da
tradição de Gournay - Turgot sobre os efeitos das regulações estatais contribuiu para o
desenvolvimento da teoria econômica sobre o setor público. A contribuição para essa
pesquisa, entre os autores influenciados por Say, não privilegia o estudo de quais seriam
as funções ideais do estado, mas sim a investigação de seu funcionamento real, bem
como examina a mudança desse papel ao longo da evolução da sociedade. Para esses
autores, historicamente o poder sem restrições institucionais será a fonte da exploração
dos membros produtivos das sociedades.
De fato, alguns autores que estudaremos no presente capítulo desenvolvem uma teoria
da exploração que antecede a concepção marxista sobre o assunto e se assemelha e esta
em alguns aspectos. Para esses autores, a história revela uma longa luta entre grupos de
exploradores e explorados e cuja interação coloca em marcha um processo de
transformação rumo a uma sociedade livre.

189
Por fim, a tradição francesa depois de Say assume um caráter progressivamente mais
institucionalista. Esse institucionalismo, entretanto, assume um caráter ambíguo no que
diz respeito à interação entre teoria e história.
Por um lado, a influência dos precursores franceses e de Smith contribuiu para um
institucionalismo do tipo moderno, que alia teoria com história. Com efeito, a tradição
clássica supõe os mesmos agentes atuando em diversos ambientes institucionais,
gerando diferentes potenciais de geração de riqueza. A comparação antiga entre os
sistemas mercantilista, agrícola e de liberdades naturais se transforma, entre os
economistas da escola francesa, na comparação entre intervencionismo, socialismo e
liberalismo.
Essa comparação, por sua vez, emprega no exame de todos os arranjos institucionais
contemplados a mesma teoria econômica; a saber, a plutologia desenvolvida por Say.
Ao mesmo tempo, a análise considera a evolução histórica das sociedades. Para os
autores cuja obra examinaremos em seguida, o estudo do crescimento da riqueza
material tem estrutura semelhante e interage com outras dimensões da vida social, como
a moral, a cultura, a ciência ou a religião. Nesse sentido, observaremos uma expansão
do escopo de problemas tratados pelas ferramentas teóricas utilizadas pelos economistas
franceses.
Por outro lado, o caráter aplicado que Say pretende dar à disciplina influencia seus
seguidores em uma direção que os afasta da teoria. Se a teoria pura classifica tipos de
indústrias em diferentes ramos, caberia à economia aplicada descrever os instrumentos
dessa indústria. Com efeito, boa parte dos cursos e trabalhos aplicados efetuados pelos
economistas que estudaremos neste capítulo ilustram ramos de atividade e descrevem
tecnologias e práticas comerciais úteis, aplicáveis a quem quiser se dedicar aos diversos
ramos de atividade industrial. Ao trabalho aplicado, se junta o trabalho histórico. As
monografias desenvolvidas por esses pesquisadores, ao adotar o mesmo padrão de
análise descritiva dos diferentes ramos industriais, muitas vezes perde de vista qualquer
interpretação dos eventos sob alguma perspectiva econômica de caráter mais teórico.
Devido ao foco quase exclusivo na produção, a plutologia aplicada se transforma em um
relato da evolução das tecnologias e das legislações que as fomentam ou sufocam.
Para que essas linhas de pesquisa mencionadas acima – teórica e aplicada – sejam de
fato interpretadas como desdobramentos de uma mesma tradição de pesquisa, neste
trabalho identificada como “escola clássica francesa”, é necessário mostrar que o
conjunto de autores estudados tomam como base a teoria econômica desenvolvida por
Jean-Baptiste Say.
A concepção teórica deste último economista assumirá de fato ao longo do
desenvolvimento da escola o caráter de um modelo, de forma que podemos utilizar a
expressão “escola de pensamento” para se referir ao grupo de economistas que
estudaremos no capítulo presente. Esse modelo se manifesta de diferentes maneiras: nos
livros empregados, nos primeiros cursos de Economia estabelecidos na França, nas suas
primeiras revistas acadêmicas, nas associações de economistas criadas e nas discussões

190
econômicas mantidas na esfera parlamentar, na imprensa e demais fóruns de discussão
filosófica e política.
Em primeiro lugar, devemos apreciar a reputação de Say. O reconhecimento de sua
autoridade sobre assuntos econômicos pode ser atestado por diversos meios: Say foi
recebido com deferência em viagem na Inglaterra. Além disso, se correspondeu por
meio de cartas com Ricardo, Malthus e outros economistas eminentes do período. Em
seu próprio país, interagiu com Napoleão. Este solicitou que Say modificasse seu livro
para acomodar interesses políticos, sendo que a recusa em o fazer implicou na proibição
de publicação de uma segunda edição de sua obra principal durante o restante de seu
governo. O rival de Say na França em termos de teoria econômica, Sismondi, passou a
se ocupar com textos sobre história e ao mesmo tempo autoridades inglesas como
Ricardo e James Mill se aliam a Say na controvérsia que manteve com Sismondi sobre a
possibilidade de superprodução generalizada (general glut). Finalmente, autores da
geração seguinte como Storch e Bastiat aplicam a Say rótulos elogiosos tais como o
Laplace das ciências econômicas.
No que diz respeito aos livros de instrução da disciplina, o Tratado de Economia
Política foi utilizado como manual na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra, além
de influenciaram pessoas em muitos outros países. Além de não possuir rivais em
termos de qualidade da estrutura lógica da apresentação e clareza de exposição dos
temas, Say, fiel à crença dos ideólogos a respeito da importância cívica da divulgação
científica, se dedicou a divulgar suas idéias em textos diversos, voltadas a diferentes
tipos de público, como mostramos no capítulo anterior, alcançando dessa maneira
audiência maior ainda.
A doutrina apresentada nos textos de Say, adicionalmente, foi adotada com
modificações em livros-textos escritos por vários economistas que estudaremos no
restante deste trabalho, corroborando assim a tese de que se trata efetivamente de uma
escola de pensamento.
Quanto aos cursos, as primeiras cadeiras de Economia criadas no país, em diferentes
instituições de ensino superior, foram do mesmo modo ocupadas por Say e por autores
que tomaram sua obra como modelo. Alcouffe (1989) documenta de forma detalhada a
institucionalização da profissão de economista na França1, identificando os economistas
atuantes no período e o crescimento em seu número, além dos cursos criados e cargos
ocupados. De seu artigo e das demais fontes bibliográficas utilizadas neste estudo,
devemos destacar alguns desses cursos. No Conservatório de Artes e Ofícios, foi criada
em 1819 uma cadeira para Say, que versava sobre economia industrial. Depois de Say,
tal cargo foi ocupado pelo seu pupilo Adolphe Blanqui, de 1830 até sua morte, em
1854.

1
Para outras perspectivas sobre a evolução da economia na França, consulte Block e Rogers (1893), que
descreve a evolução da profissão no século dezenove sob o ponto de vista de Block, que conheceu
pessoalmente vários dos economistas que então viveram no pais. Ver ainda Lemesle (1996), que trata da
história das revistas de Economia na França no período, interpretando o liberalismo dos economistas do
período em termos de defesas de interesses industriais particulares.

191
Say ainda se torna professor de economia no prestigiado College de France. Seu
cunhado, Charles Comte e Pellegrino Rossi, um jurista italiano que não se afasta
significativamente da tradição de Say no que diz respeito à teoria econômica, disputam
o cargo após a morte de Say. Rossi, o vencedor, ocupa a vaga de Say até 1840. Rossi,
por sua vez, foi sucedido por Michel Chevalier, que permanece no cargo até 1852.
Rossi ainda ministra um curso de economia na Escola de Direito, entre 1934 e 1847.
Em relação a isso, devemos lembrar que a maioria dos economistas da segunda geração
da escola clássica francesa tem formação originalmente jurídica, tal como ocorreu em
vários países, como por exemplo Áustria e Brasil.
Na Escola Superior de Comércio, fundada em 1820, Adolphe Blanqui ensina economia
a partir de 1825, se tornando diretor dessa instituição em 1830. Seu curso passa a ser
ministrado por Joseph Garnier, outro membro da escola, até 1881.
Quanto a revistas, devemos lembrar inicialmente de La Decade Philosophique,
Litteraire et Politique, a revista dos Ideólogos editada por Say no final no século
dezoito, que entre outros assuntos também publicava artigos sobre temas econômicos.
Em seguida temos o Le Censeur Europeen, o maior defensor da liberdade de imprensa e
das liberdades civis no período da restauração, que era publicado pelo cunhado de Say,
Charles Comte e por Charles Dunoyer, autor também influenciado por Say, como
veremos ainda neste capítulo. Na seqüência, merece destaque o Journal des
Economistes, publicado a partir de 1841 e que funcionava como veículo de
comunicação científico entre os economistas franceses do período. Se tomarmos
emprestado a caracterização kuhniana da ciência, o caráter de ciência normal desse
jornal pode ser inferido pelo relato de Alcolffe (1989, p. 10) sobre o editorial do
primeiro volume. Neste, convida-se a publicação de pesquisa aplicada que tome por
base a ciência desenvolvida por Smith e Say, de cujas doutrinas “existe pouco a ser
melhorado”.
Por fim, os economistas da escola contavam ainda com as reuniões da Sociedade de
Economia Política, fundada em 1842 e existente até hoje. Em seu início, a sociedade
tratava de temas econômicos bastante discutidos na sociedade francesa do período,
como o embate entre protecionismo e livre comércio, ou entre liberalismo e socialismo.
Desde seu início, encontramos entre os membros de tal sociedade diversos economistas
filiados à tradição de Say, como o próprio filho desse autor, Horace Émile Say,
Pellegrino Rossi, que conduzia as discussões, Blanqui, Dunoyer, Chevalier Joseph
Garnier e Gilbert Guillaumin, editor responsável pela publicação de parte considerável
das obras dos economistas da escola.
Mediante esse exame dos canais institucionais disponíveis para a expressão das idéias
desenvolvidas por aqueles que tomavam a obra de Say como modelo, podemos
constatar que a identificação de uma escola clássica francesa não consiste em artifício
classificatório, mas identifica real tradição de pesquisa. Estabelecido isso, podemos
transitar da perspectiva kuhniana para a popperiana e indagar em que medida as crenças
dos economistas da escola eram homogêneas e como isso afetou o desenvolvimento
científico nessa tradição.

192
Não restam dúvidas de que quase a totalidade da concepção teórica defendida por Say
foi tomada como representação fidedigna da realidade econômica, conhecimento certo
derivado da observação judiciosa. Essa diminuição no numero versões da teoria
contempladas, coeteris paribus, reduz as perspectivas de progresso científico. O próprio
Say, com efeito, zelava pelas suas ideias: reprendeu o irmão que escreveu sobre o
mesmo assunto, orientou o filho a se dedicar apenas a trabalhos aplicados e, como
veremos na próxima seção, criticou de forma pouco elegante Storch quando este se
desviou de suas opiniões em pontos específicos, da mesma forma que acusara
anteriormente Condillac de nada saber sobre Economia.
Essa postura pouco plural é inerente às crenças filosóficas que adotara, comuns na
época. Em especial, devemos salientar a afirmação de que a ciência verdadeira seria
baseada apenas em observação, não em hipóteses, e que os resultados científicos
possuem caráter de verdades inabaláveis. Como argumentamos no capítulo dedicado à
metodologia, os filósofos justificacionistas (ou não falibilistas), ao rejeitarem dogmas e
preconceitos em favor da observação e razão, paradoxalmente tendem ao dogmatismo
que condenam. Isso ocorre porque a crença na capacidade de estabelecer verdades finais
conduz ao apelo à autoridade, quando se define o critério tido como prova definitiva dos
argumentos. Por outro lado, sob uma perspectiva que privilegia o reconhecimento do
caráter falível de todo conhecimento, a adoção de qualquer autoridade resulta no
desprezo pela diversidade de opiniões e pela competição no mercado das idéias. Se
empregarmos esse raciocínio ao caso em questão, não é por acaso que Say rotula os
fisiocratas de seita dogmática ao mesmo tempo em que reaja negativamente a qualquer
desvio de seu próprio sistema.
Por outro lado, não é verdade que os seguidores de Say eram doutrinários: o grau de
independência intelectual desses autores gerou variações e recombinações de idéias
originárias de outras fontes. A quantidade de recombinações e críticas foi o bastante
para que ocorresse progresso, como teremos a oportunidade de constatar neste capítulo.
Independente da apreciação que possamos ter sobre esse ponto, não existe de todo modo
observação sem teoria prévia e a perspectiva de Say será o ponto de partida dos
economistas da escola na geração seguinte. Sendo assim, as tensões existentes em sua
obra que identificamos no capítulo anterior se manifestam também nos textos dos
autores aqui examinados. Em particular, como argumentamos, subjetivismo e utilidade
se chocam com a perspectiva plutológica adotada por Say, o que define em última
análise a direção tomada pela pesquisa desses autores.
Independente da influência dos aspectos comuns ou divergentes que esses autores
apresentem em relação às tradições parcialmente rivais de Say e de Ricardo, os
economistas da vertente francesa não hesitaram em introduzir inovações teóricas. Como
veremos em seguida, Heinrich Storch discorda de Say para recuperar a teoria do valor
subjetiva, utilizada para estudar os bens imateriais, que não eram incluídos por Say no
conceito de riqueza nacional. Além disso, lança em sua “teoria da civilização” a base
para a investigação da coevolução entre economia e cultura. Pellegrino Rossi, por sua
vez, procura aproximar as vertentes francesa e inglesa da Economia clássica em seus

193
cursos. Esse autor também introduz na análise da demanda a relação entre utilidade e
escassez e a aplica ao estudo do valor sob condições de monopólio. Em seguida,
Charles Comte e Charles Dunoyer dão prosseguimento ao programa de Storch,
misturando economia com cultura para examinar as consequências da violência como
forma de ação na sociedade, investigando como ao longo da história as restrições à
liberdade reduziram o desenvolvimento da indústria. Adolphe Blanqui, que escreveu até
onde pude apurar o primeiro livro de história do pensamento econômico, reforça a
comparação institucional entre sistemas econômicos ao longo da história e desenvolve
em seu curso a vertente aplicada do industrialismo de Say. Frédéric Bastiat, por fim,
resgata a perspectiva histórica de Comte e Dunoyer para reintegra-la à teoria
econômica. Utilizando as análises dos mercados de Say e da ação humana de Destutt de
Tracy, Bastiat estuda os efeitos das ações voluntárias e violentas em sua comparação
entre instituições. Sob certo sentido, sua economia transcende a plutologia ao colocar a
relação entre meios e fins no centro da teoria econômica.
Antes de iniciar o estudo dos autores da segunda geração, devemos observar que
trataremos apenas dos aspectos de suas obras nos quais elas diferem do cânone
estabelecido por Say. O exame da economia deste último exigiu a consideração de cada
aspecto de sua obra, já que nosso foco era justamente na construção do sistema
explanatório geral. A partir de agora abordaremos apenas avanços ou modificações
feitas nesse sistema. Devemos observar ainda que, devido a crescente profissionalização
da disciplina, a partir desse ponto se torna cada vez mais difícil traçar influências sobre
os autores, pois o número de pessoas dedicadas a pensar sobre esses assuntos se
multiplica consideravelmente.

5.2. Storch: utilidade e bens imateriais


O primeiro economista sob a esfera de influência de Say que examinaremos não nasceu
na França, mas em Riga, na Letônia. Heinrich Friedrich von Storch (1766-1835),
também conhecido pelo seu nome russo, Andrei Karlovich Storch (Андрей Карлович
Шторх) foi o mais importante economista da Rússia no início do século dezenove.2
A despeito de sua origem russa, não é em absoluto artificial sua classificação como
membro da escola clássica francesa: a Rússia da época era bastante influenciada pela
vida intelectual francesa; Storch, em particular, escreveu sua obra econômica
originalmente em francês e, por fim, a teoria econômica que desenvolve é baseada em
sua essência em Say.
Depois de estudar na Alemanha e viajar para a França, Storch retorna em 1788 a São
Petersburgo, onde reside pelo resto de sua vida e exerce atividades como funcionário
público e acadêmico. Em 1796, em particular, se torna membro da Academia Imperial
de Ciências de São Petersburgo, publicando lá sua teoria sobre utilidade.

2
Existe um verbete curto sobre Storch no Novo Dicionário de Economia Política. Ver Say e Chailley
(2000, p. 925).

194
A importância intelectual de Storch na sociedade russa pode ser inferida pela sua
relação com os czares. A partir de 1799 o filho de Catarina a Grande, Paulo I, nomeia
Storch como professor de suas filhas. Além das princesas, foi nomeado em 1801 leitor
da czarina Maria Fiodorovna. Esta e seu filho Alexandre I, por fim, nomeiam Storch
tutor do czarevitch Nicolau, futuro czar Nicolau I e de seu irmão Miguel. O curso
ministrado aos príncipes foi publicado em 1815 sob o título Curso de Economia
Política, sua obra mais conhecida.
Essa obra se baseava nas idéias de Smith e Say. O impacto das ideias econômicas na
formação do tsarevich, contudo, não se fez sentir de forma significativa durante seu
reinado, marcado por guerras e expansão da burocracia. Seu irmão mais velho, o czar
Alexandre I, liberal no início de sua vida, se tornou mais conservador à medida que seu
poder absoluto era desafiado durante seu reinado, tendência seguida por seus
sucessores.
Depois de seu curso, Storch se torna conselheiro de estado e vice-presidente da
Academia Imperial em 1828, posições que ocupa até sua morte em 1835. A publicação
de seu Curso na França em 1823, por sua vez, expande sua reputação
internacionalmente. Contudo, essa edição, que fora publicada aos cuidados de Say, além
de não contar com o consentimento de seu autor, continha um grande número de notas
críticas escritas pelo próprio Say, que rejeitava em particular a teoria da civilização que
Storch esboçara na parte final de seu livro.
Say, que se queixara em seu Tratado das notas críticas acrescentadas pelo tradutor da
edição inglesa, repete com Storch essa atitude que antes condenara, adotando ainda em
suas observações um tom bastante ácido. A reação negativa de Storch ao tom da crítica
de Say, em uma obra marcada por elogios a este último, pode ser encontrada no prefácio
de suas Considerações sobre a Natureza da Renda Nacional, obra publicada na França
no ano seguinte. Nesse texto, dedicado à reformulação de sua teoria sobre bens
imateriais, Storch se distancia em algum grau de Say.
Antes de examinar sua análise inovadora dos serviços e bens imateriais, devemos antes
abordar o ponto de partida de sua obra, relativo à teoria do valor, também inovador, que
aparece em uma série de artigos sobre o tema, publicados pela Academia Imperial de
São Petersburgo em 1810.

5.2.1. A Teoria Econômica Geral em Storch: utilidade e valor subjetivo


As teses de Storch sobre teoria do valor surgem pela primeira vez ainda na primeira
década do século dezenove em artigos publicados na Rússia e reaparecem no início de
seu Curso ministrado aos filhos do czar Alexandre I.
Nesses artigos, Storch (1810) critica as teorias existentes antes de expor sua própria
opinião sobre o tema. Assim como Say, Storch (1810a, p. 415) rejeita toda perspectiva
materialista no que diz respeito à causa do valor dos bens; isto é, perspectivas que
consideram o valor “como uma propriedade inerente às coisas”.

195
Tanto Smith quanto os fisiocratas teriam confundido a origem das coisas que possuem
valor com o valor em si. Como o termo riqueza é identificado na linguagem corrente
com a posse de objetos, os fisiocratas buscaram uma base material para a riqueza. Daí o
agricultor que consome uma unidade de um bem para gerar cinco produz liquidamente
quatro, ao passo que o artesão só geraria algo equivalente ao seu consumo. Smith, do
mesmo modo, considera produtivo apenas o trabalho fixo na matéria. Segundo Storch
(1810a, p. 421):
No final, no entanto, tanto o princípio de Smith quanto o dos Economistas baseiam-
se no mesmo erro: ambos confundem a origem das coisas que podem ter valor, com
a origem do valor que essas coisas podem ter. A terra não é a única fonte das
riquezas; como tampouco o trabalho: é a concordância dessas causas que dá origem
a todas as coisas materiais que têm valor. Mas nenhuma dessas causas pode ser a
fonte de valores, pois, se fosse assim, todas as coisas produzidas pela natureza e pelo
trabalho teriam infalivelmente um valor. Então, vemos a necessidade de procurar
outro princípio.3
Assim, existiriam coisas que empregam matéria e trabalho e não têm valor e vice-versa.
O primeiro caso é ilustrado por um livro que consumiu anos de trabalho de seu autor e
que não encontra editor interessado, forçando-o a ceder a obra por uma fração dos
recursos consumidos, ao passo que o valor existente de águas termais e clima agradável
– exemplos que naturalmente ocorreriam a um russo que vive em clima frio –
ilustrariam o segundo caso.
A descoberta de uma mina de ferro em um terreno ou de propriedades novas de um
vegetal geraria aumento de riqueza para os proprietários desses recursos. Um prédio em
São Petersburgo, por sua vez, pode ser revendido a diferentes valores conforme as
opiniões das pessoas sobre seu uso se modifiquem. Mas considerando a opinião
segundo a qual “[a]s riquezas ...devem seu valor nem à matéria nem ao trabalho, mas
apenas à utilidade que elas têm ou parecem ter para nós” (p. 423-424), o valor do prédio
pode até desaparecer se o governante deixar a capital.
Com esse exemplo, Storch mostra como a noção de valor calcada na utilidade é voltada
ao futuro (foward looking), e não determinada por ações passadas. Os objetos de
cozinha feitos de estanho, por exemplo, foram revendidos como sucata quando na
Inglaterra se passou a usar louça de cerâmica. Isso não implica que a demanda precede a
produção: mas se algo novo não encontrar demanda, não assume caráter de riqueza. Por
fim, objetos em locais e épocas diferentes assumem valores diferentes, já que
explicáveis pela opinião que as pessoas mantêm sobre eles.

3
Cependant, dans le fond, le principe de Smith et celui des Économistes sont basés sur la même erreur :
tous les deux confondent l'origine des choses qui peuvent avoir une valeur, avec l'origine de la valeur que
ces choses peuvent avoir. La terre n'est pas la seule source des richeses; le travail ne l'est pas non plus :
c'est le concours de ces causes qui donne l'origine à toutes les choses matérielles qui ont une valeur.
Mais ni l'une ni l'autre de ces causes ne peut être la source des valeurs , Car s'il en étoit ainsi, toutes les
choses produites par la nature et le travail auroient infailliblement une valeur. Donc on voit la nécessité
de chercher un autre principe.

196
No que diz respeito à origem do valor, Storch rejeita a explicação baseada no binômio
utilidade mais raridade, já que o segundo elemento não é independente do primeiro.
Para Storch (1810a , p. 428-429):
Assim, a escassez não coopera na constituição do valor das coisas, que se baseia
unicamente em sua utilidade, ou melhor, na opinião que temos delas: o grau de
raridade, isto é, a proporção entre a quantidade e a demanda, apenas determina o
grau do valor de troca. Em outras palavras, a opinião que temos da utilidade das
coisas dá origem ao valor; aquela que temos a respeito da proporção entre a
quantidade e a demanda determina o preço.4
Para explicar a relação entre utilidade e preço, no entanto, precisamos antes detalhar
mais a natureza do valor em outro artigo de Storch (1810b).
A fonte primitiva do valor, na concepção de Storch, se encontra nas necessidades. Estas
são classificadas em necessidades naturais, que dizem respeito à preservação da
existência, e necessidades artificiais, derivadas do hábito. Estas últimas, satisfeitas
apenas após as primeiras, assumem uma importância maior conforme as sociedades
enriquecem. O autor atribui (1810b, p. 430) às necessidades artificiais maiores “poder
extensivo,” ou multiplicidade de necessidades e “poder intensivo”, ou vivacidade com a
qual se fazem sentir.
Podemos reconhecer aqui a adoção da convenção, mais tarde adotada por Carl Menger:
a utilidade é definida como algo objetivo – a aptidão para satisfazer necessidades, ao
passo que valor diz respeito ao julgamento que os agentes fazem sobre a utilidade. O
leitor familiarizado com o autor austríaco imediatamente reconhece, na seguinte citação
de Storch (1810b, p. 431), o conjunto de condições necessárias e conjuntamente
suficientes para que algo se torne um bem:
Para que um valor seja produzido, é necessário 1° que o homem sinta ou conceba
uma necessidade, 2° que haja uma coisa que tenha a propriedade de satisfazer essa
necessidade e 3° que o homem reconheça a possibilidade de satisfazer essa
necessidade por meio dessa coisa. Assim, o valor é a utilidade das coisas
reconhecidas por aqueles que as empregam para satisfazer suas necessidades.5
O estudo das trocas, por sua vez, requer que nos familiarizemos com a nomenclatura de
Storch. Este atribui aos bens um valor direto, para uso próprio e outro indireto,
associado à sua utilidade nas trocas.
O valor direto pode envolver: 1) o emprego de um bem sem destruí-lo; 2) o uso de um
bem que se gasta ao longo do tempo; 3) o consumo ou destruição do mesmo ou ainda 4)
seu uso para a produção de outro bem.

4
Donc la rareté ne coopère point à constituer la valeur des choses, laquelle est fondée uniquement sur
leur utilité, ou plutôt sur l'opinion que nous en avons : le degré de rareté, c'est - à - dire la proportion qui
se trouve entre la quantité et la demande, ne fait que déterminer le degré de la valeur échangeable. En
d'autres termes : l'opinion que nous avons de l'utilité des choses, fait naître la valeur; celle que nous
avons de la proportion qui se trouve entre la quantité et la demande, détermine le prix.
5
Pour qu'une valeur soit produite, il faut 1° que l'homme sente ou conçoive un besoin, 2° qu'il existe une
chose qui ait la propriété de satisfaire ce besoin, et 3° que l'homme reconnoisse la possibilité de
satisfaire ce besoin par le moyen de cette chose. Donc la valeur, c'est l'utilité des choses reconnue par
ceux qui les employent à satisfaire leurs besoins.

197
Se o valor direto depende da opinião de cada um a respeito de sua utilidade em cada um
desses usos, o valor indireto supõe a existência de outras pessoas. Sem conhecer ainda
Condillac, Storch (1810b, p. 435) parte da mesma perspectiva desse autor, que supõe
utilidades diferentes para porções diferentes de certa quantidade do bem possuída pelas
pessoas envolvidas na troca: “Vamos então transportar o homem e a provisão para um
lugar onde ele possa trocar o superabundante por coisas em que ele reconheça uma
utilidade: no campo, esse superabundante adquirirá em seus olhos um valor indireto.”6
Cada agente reconhece na coisa possuída pelo outro um valor de troca. Na nomenclatura
de Storch, o valor indireto se refere à utilidade, para seu proprietário, de um bem que
será dado em troca. Usando um exemplo do próprio autor, considere que A possui a e B
possui b. A reconhece utilidade direta de b e B a de a. Nesse caso, a tem valor indireto
para A; isto é, será útil para ele nas trocas.
Para que surja valor derivado das trocas, é necessária opinião sobre utilidade direta dos
bens dos demais, avaliação essa limitada pelos meios de aquisição. A isso o autor
denomina demanda efetiva. Além disso, tais valores supõem a possibilidade de trocas e
esta, por sua vez, supõe propriedade.
Passemos agora ao processo de determinação dos preços, explicado em um terceiro
artigo. Este, novamente, lembra o tratamento que Menger dará à questão. Storch
(1810c) trata primeiro do caso de monopólio bilateral, que ele denomina troca simples,
para depois abordar o caso com competição tanto na oferta quanto na demanda,
chamada por Storch de troca composta.
Iniciemos com as trocas simples. Cada agente tem uma quantidade de um bem que pode
ter utilidade direta e indireta ou apenas esta última. Se não ocorrem trocas, para pelo
menos um agente a utilidade direta do que o outro possui não supera a utilidade direta
daquilo que ele possui. Havendo possibilidade de trocas, cada agente forma opinião
sobre o valor de troca de seu bem para o demandante. O ofertante declara inicialmente o
“máximo do ofertante”, um valor que acredita se relacionar à utilidade direta do bem
para o outro. No processo de barganha, ele cede progressivamente, até o limite dado
pelo “mínimo do ofertante”, seu próprio preço de reserva, dado pela apreciação do
sacrifício para adquirir ou produzir o bem que considera ceder na troca.
O demandante, do mesmo modo, enuncia o “mínimo do demandante”, relativo à sua
estimativa da utilidade direta do bem para o ofertante. A barganha, neste caso, implica
em elevação do preço até o limite imposto pelo “máximo do demandante”, determinado
pelo valor direto ou indireto restrito pelos meios de aquisição. A renda, dessa forma,
afeta a demanda: os ricos, por exemplo, teriam “escalas de valores” diferente dos pobres
(p. 448).

6
Transportons ensuite l'homme et la provision dans un lieu où il puisse échanger le surabondant contre
des choses dans lesquelles il reconnoît une utilité : sur le champ ce surabondant acquerra à ses yeux une
valeur indirecte.

198
Partindo do máximo do ofertante e do mínimo do demandante, o processo de barganha
resulta na fixação do “grau de valor de troca que eles atribuem reciprocamente aos
objetos da troca” (p. 449).
No caso da troca composta, além da luta entre demandante e ofertante, temos as lutas
(competição) entre os demandantes e entre os ofertantes7. Storch deriva algumas
consequências dessas “lutas”. Em primeiro lugar, a competição consolida o valor de
troca, tornando-o universal. Disso surge, em segundo lugar, um bem reconhecido
universalmente, a moeda. Cada agente, por fim, pode basear sua opinião na opinião dos
outros sobre o valor das coisas.
Como não desenvolve a relação entre utilidade e escassez, Storch (p. 453) afirma apenas
que na troca composta os preços de reserva não estão distantes um dos outros, sem
examinar a diferença entre a utilidade direta e o preço de equilíbrio. Em vez de uma
curva de demanda, tal como explicitado nas obras de Garnier e Say, encontramos
apenas a afirmação de que oferta e demanda variam em extensão e energia. Extensão se
refere ao volume da demanda e da oferta, que pode ser pequena ou grande e energia a
intensidade, que pode ser fraca ou forte. A extensão pode aumentar dos dois lados,
mantendo o valor de troca de equilíbrio, ao passo que diferenças de energia engendra
competição entre ofertantes para se livrar do bem ou entre demandantes para adquiri-lo,
alterando desse modo o preço. Storch (p. 462) denomina preço o “grau comparado do
valora de troca de uma coisa”. Reduzindo novamente o número de agentes, agora
apenas de um dos lados do mercado, teríamos os casos de monopólio da venda e
monopólio da compra.
Depois de rejeitar a teoria do valor trabalho, construir uma alternativa calcada na
utilidade e utilizar essa ferramenta para a discussão do processo de formação de preços,
Storch (1810d) passa a discutir no quarto artigo que examinaremos quais seriam as
fontes do valor, ou origens da utilidade e das necessidades. Essa discussão revelará o
uso principal que o autor fará de sua teoria subjetiva do valor; a saber, o
desenvolvimento de sua teoria da civilização, que discutiremos na próxima seção.
A teoria subjetivista do valor de Storch (1810d, p. 466) destaca o caráter opinativo das
avaliações dos agentes econômicos:
Mas o valor não é uma qualidade absoluta e inerente das coisas: depende do nosso
julgamento. Julgamos que tal coisa é mais ou menos adequada para algum propósito
para o qual desejamos empregá-la, e é essa estima que constitui seu valor. Portanto,
o valor não possui outra fonte além da opinião.8
Considerando a distinção entre necessidades reais e artificiais, a opinião ocorre em duas
instâncias: na concepção das necessidades artificiais e na estimativa da utilidade das
necessidades de qualquer espécie. Embora a alimentação seja mandatória, podemos
ainda opinar sobre os meios para satisfazer a necessidade por alimentos, ou seja, sobre o

7
Note, novamente, o uso da expressão “luta de preços”, igual aquela mais tarde adotada por Menger.
8
Mais la valeur n'est pas une qualité absolue et inhérente aux choses : elle dépend de notre jugement.
Nous jugeons que telle chose est plus ou moins propre à tel usage auquel nous voulons l'employer, et c'est
cette estime qui constitue sa valeur. Donc la valeur n'a d'autre source que l'opinion.

199
tipo de comida. Dessa forma, além da opinião sobre a utilidade, Storch introduz a noção
de preferências individuais.
Storch (p. 468) divide o pressuposto comportamental empregado na Economia em duas
dimensões: a opinião é derivada tanto de faculdades morais quanto intelectuais. No
plano moral, Storch utiliza a nomenclatura empregada pelo utilitarismo para descrever o
comportamento: o homem busca aumentar fruições e diminuir penas. No plano racional,
concebe objetivos e julga os meios para alcançá-los.
Tendo em vista o uso que o autor fará desses conceitos, é importante salientar que as
duas dimensões dependem uma da outra: as faculdades intelectuais não serão ativas sem
desejo de bem-estar e por outro lado o desejo será ineficaz e vago sem julgamento e
plano de ação. Além de interdependentes, interagem durante o processo de crescimento.
Nas palavras de Storch (1810d, p. 468-469): “Quanto mais essas faculdades se
desenvolvem e expandem, mais se concebem novas necessidades, e melhor é o
julgamento sobre os meios que podem satisfazê-las. Então a multiplicidade de
necessidades que podem ser satisfeitas é o que constitui verdadeiramente a riqueza”.
O tratamento subjetivista dado aos fenômenos de valor e troca parecem situar a teoria de
Storch ao lado de Condillac. Neste último artigo que examinamos, Storch nota a
semelhança entre os dois (1810d, p. 474):
Enquanto eu estava ocupado com este trabalho, a leitura do trabalho de Condillac,
que eu negligenciara até então, trouxe-me novas luzes. Este filósofo fundou todo o
seu sistema no princípio da opinião; mas com exceção dos primeiros capítulos que
expõem esse princípio, o resto do trabalho dificilmente merece a atenção do leitor
instruído. Aqueles que desejam se dar ao trabalho de comparar as idéias de
Condillac com as que acabei de afirmar nessas memórias, estarão em condições de
julgar o quanto devo a ele.9
Os fundamentos empregados pelos dois autores são sem dúvidas os mesmos. Mas,
como podemos recordar de nosso capítulo sobre os precursores, um dos méritos de
Governo e Comercio é justamente o fato de todo os assuntos discutidos na obra são
aplicações do princípio básico de que em uma troca, os agentes atribuem valores
subjetivos diferentes aos objetos trocados. Políticas diferentes são avaliadas em termos
de seu potencial de bloquear ou não os ganhos mútuos derivados das trocas, ao passo
que no livro de Storch a exposição da teoria segue os passos de Say.
Como explicar então a opinião contrária de Storch sobre os resultados das duas
abordagens? Uma especulação plausível talvez seja o interesse por outro tipo de uso do
mesmo princípio. De fato, a teoria subjetiva do valor de Storch será empregada para a
construção de sua análise dos bens imateriais, que compõe sua teoria da civilização.

9
Pendant que je m'occupois à ce travail , la lecture de l'ouvrage de Condillac, que j'avois négligée jusqu
alors, m'apporta de nouvelles lumières. Ce philosophe a fondé tout son systême sur le principe de
l'opinion; mais à l'exception des premiers chapîtres qui exposent ce principe , le reste de l'ouvrage mérite
à peine l'attention du lecteur instruit. Ceux qui voudront se donner la peine de comparer les idées de
Condillac avec celles que je viens d'énoncer dans ces mémoires , seront en état de juger combien je lui
dois.

200
5.2.2. Economia e Estado em Storch: bens imateriais e a teoria da
civilização
A obra mais conhecida de Storch foi seu Curso de Economia Política, publicado em
francês em São Petersburgo10. A obra é dedicada no seu frontispício aos filhos do czar
Paulo, suas altezas imperiais, os grão-duques Nicolau e Miguel, pelo “muito humilde e
devotado servidor, Storch”.
O livro, dirigido à formação econômica do futuro czar Nicolau I, tem uma estrutura que
reflete seu propósito. Como parte de uma ciência mais geral, a ciência do estado11, a
teoria econômica é tratada como ferramenta para orientar o monarca em seu dever de
governante. A despeito da autocracia que marca o regime – o imperador russo era
identificado como “czar e autocrata de todas as Rússias” – Storch (1823, vol.1, p. 10)
deixa claro nas noções preliminares de sua obra que o chefe de estado seria um servidor
público, cujo objetivo primário seria a garantia da segurança interna e externa, seguido
pelo objetivo de avançar a prosperidade nacional:
Embora a riqueza e a civilização sejam assunto de todos os cidadãos, o governo
pode, no entanto, contribuir para o seu avanço de duas maneiras, a saber:
indiretamente, protegendo os esforços espontâneos do interesse privado, que já por
si só tende constantemente aumentar a prosperidade individual; e diretamente,
estabelecendo meios de civilização e indústria que o interesse privado não tem
interesse em estabelecer, e que consequentemente nunca existiriam sem a
intervenção do governo.12
Note a semelhança com a justificativa moderna para a ação do estado no caso de bens
públicos.
Assim como condena o despotismo, Storch (1823, vol. 3, p. 504) se posiciona contra a
servidão, tema de acalorado debate político na Rússia:
Em outros estados, as leis toleram a servidão, isto é, excluem a maior classe de
habitantes da proteção que outros cidadãos desfrutam: os membros dessa classe
estão expostos, não como os selvagens, à avidez de todos com quem eles vivem,
mas à violência de seus senhores.13
A despeito da intenção reformista de Alexandre I, a servidão naquele país foi abolida
tardiamente, apenas em 1961, sob o reinado de Alexandre II.
O objetivo de instruir um futuro monarca torna, portanto, natural que a obra se inicie
com os objetivos do chefe de estado e que inclua ainda em seu início um menu de
escolhas institucionais a serem adotadas. Como Garnier, Storch também coloca no
início de sua obra os diferentes “sistemas de política econômica” que encontramos em

10
Utilizaremos a edição publicada em Paris (STORCH, 1823), que contém os comentários de J.-B. Say.
11
Ver comentários sobre a ciência do estado no capítulo dois deste trabalho.
12
Bien que la richesse et la civilisation soient l'affaire de tous les citoyens, le gouvernement peut
cependant contribuer à leur avancement de deux manières, savoir: indirectement, en protégeant les
efforts spontanés de l'intérêt privé, qui déjà par luimême tend sans cesse à augmenter la prospérité
individuelle; et directement, en établissant des moyens de civilisation et d'industrie que l'intérêt privé ne
conseille point d'établir, et qui par conséquent n'existeraient jamais sans l'intervention du gouvernement.
13
Dans d'autres Etats, les lois tolèrent la servitude, c'est-à-dire excluent la classe la plus nombreuse
d'habitans de cette protection dont les autres citoyens jouissent : les membres de cette classe se trouvent
exposés, non pas à la vérité, comme les sauvages, à la rapacité de tous ceux avec lesquels ils vivent, mais
aux violences de leurs maîtres.

201
Smith: o sistema mercantilista (1823, vol 1. Parte 1, págs. 97-103), com sua busca por
metais, balança de comércio e consequente colonialismo e guerras entre nações; o
sistema agrícola (págs. 104-112) com seus erros materialistas de atribuir a geração de
valor exclusivamente à agricultura e consequente política de favorecimento a esse setor
e o sistema industrial (págs. 113-118) com sua igualmente errônea teoria do valor.
Vejamos, em particular, o que o autor tem a dizer sobre as colônias. Assim como
Garnier e Say, Storch (1823, p. 103) trata do colonialismo como uma manifestação do
sistema mercantilista, caracterizado pela concessão de monopólios legais a firmas
privilegiadas:
Foi ele [o sistema mercantilista] quem direcionou [as nações] a fundar colônias, a
fim de criar novas nações que permanecessem suficientemente dependentes da
pátria-mãe, de modo que ela pudesse lá assegurar um monopólio em casa e fazer
seus filhos objeto de seus comerciantes. Em suma, onde esse sistema causou o
menor dano, prejudicou o progresso da prosperidade nacional; em todos os lugares
ele sangrou a terra, despovoou e arruinou os próprios países para os quais desejava
obter novos meios de riqueza e poder.14
Da discussão do modo de funcionamento dos três sistemas econômicos identificados,
Storch sumariza as fontes da prosperidade das nações:
Eu já os preveni, Senhores, que de todas as condições que pressupõem o avanço da
prosperidade nacional, a primeira e mais indispensável é a segurança, isto é, a
liberdade individual e a propriedade. Sem segurança, não temos riqueza nem
civilização.15
Além discorrer sobre os objetivos dos governantes e apresentar os sistemas econômicos
que estes deveriam privilegiar ou combater, o início do livro contém ainda sua teoria
subjetiva do valor, crucial para o que se segue. Suas observações sobre esse tópico
reexpõem o conteúdo já visto na seção anterior e não será objeto de nosso estudo. O
restante da obra, por sua vez, segue a estrutura clássica que já nos é familiar, tratando da
produção, distribuição e consumo de bens. Esse material, do mesmo modo, não requer
nossa atenção, por falta de elementos novos em relação à exposição de Say.
A única exceção que faremos diz respeito às considerações sobre o progresso das
sociedades. Seguindo os passos dos iluministas escoceses, Storch esboça no oitavo livro
da primeira parte uma descrição do progresso natural de crescimento da riqueza
nacional, que passa pelos estágios de povos caçadores, pastores, agricultores e
manufatureiros. Mas como essa evolução se relaciona com o tipo de civilização
encontrada em cada estágio? Esse será tema da parte final do Curso, do qual nos
ocuparemos agora.

14
C'est lui qui les a engagés à fonder des colonies, afin de créer de nouvelles nations qui restassent assez
dans la dépendance de la mère-patrie pour que celle-ci pût s'assurer un monopole chez elles., et faire des
ses enfans les pratiques de ses marchands. En un mot, là où ce système a fait le moins de mal, il a entravé
les progrès de la prospécité nationale; partout ailleurs il a ensanglanté la terre, il a dépeuplé et ruiné les
pays même auxquels il voulait procurer de nouveaux moyens de richesse et de puissance.
15
Je vous ai déjà prévenus, Messeigneurs, que de toutes les conditions que suppose l'avancement de la
prospérité nationale, la première et la plus indispensable c'est la sûreté, c'est-à-dire la liberté
individuelle et la propriété. Sans la sûreté, point de richesse, point de civilisation!

202
Essa discussão consiste na segunda novidade da obra do autor, depois de sua teoria do
valor; a saber, a teoria sobre bens imateriais, que despertou a contundente reprovação de
Say.
Lembrando que bens (ou “valores”) são definidas como coisas para as quais a opinião
reconhece uma utilidade, Storch (1823, vol. 1, p. 91) os classifica como bens materiais,
externos às pessoas e bens imateriais, internos às mesmas, que são invisíveis aos nossos
sentidos e que fazem parte da propriedade moral do homem.
Os bens internos são classificados (p. 92) como físicos, como a saúde, bens intelectuais,
como o conhecimento e bens morais, como a sociabilidade. Embora não possam ser
transmissíveis pela troca, tais bens são propriedades dos indivíduos e são sujeitos a
diversas leis da Economia, tais como entendidas pelos clássicos. Sua produção, por
exemplo, tem a mesma origem dos bens materiais, no trabalho e nos objetos da
natureza. Embora não tenham preço, os bens imateriais têm valor. Podem ainda ser
acumulados e consumidos, como os objetos de riqueza.
Storch (p. 94) define então a riqueza nacional como a somatória dos bens externos em
uma nação e define também a civilização como a somatória dos bens internos. A soma
das duas, por sua vez, compõe a prosperidade nacional com a qual o governante deve se
preocupar.
A adoção pro Storch da teoria subjetiva do valor permite que seu autor dê mais um
passo além do materialismo característico da plutologia clássica. Garnier e Say, ao
contrário de Smith, incluem entre os trabalhos produtivos os serviços, de natureza
imaterial, mas cuja utilidade é reconhecida. Em Say, porém, essa extensão do escopo da
teoria econômica inclui apenas o fator produtivo, o serviço. O bem produzido por esse
serviço, porém, é excluído. Serviços de um médico são úteis e, portanto, produtivos,
mas para Storch tais serviços produzem um bem imaterial, a própria saúde.
Adiemos por um instante a rejeição de Say ao uso do conceito de bens imateriais. O que
precisamos notar agora é como a adoção de uma teoria do valor calcada na utilidade
dispensa de fato a materialidade dos bens, o que permite a análise de fatores que afetam
nosso bem-estar, mas que não se expressam em termos de produtos materiais. Se Storch
pudesse perceber o potencial contido nas idéias de Condillac e de sua própria teoria do
valor, poderia, por exemplo, investigar os fenômenos hoje classificados como
externalidades e suas consequências. Mas como se limita ao sistema plutológico, sua
teoria da civilização apenas examina os bens imateriais sob a ótica da produção,
replicando para novos bens a análise de Say sobre bens materiais.
Storch (1823, v.3, p, 217) inicia seu estudo da nova teoria pela definição de seu objeto
de estudo: “O objetivo da Teoria da Civilização é tornar conhecidas as leis segundo as
quais os bens internos ou os elementos da civilização ocorrem, se acumulam e são
consumidos no seio de uma nação.”
Os bens internos ou imateriais são classificados por Storch (1823, vol. 3, p. 222 - 223)
como primitivos e secundários, conforme digam respeito diretamente ou apenas
indiretamente ao desenvolvimento das faculdades humanas. Dentre os bens internos

203
primitivos, Storch lista a saúde (as faculdades biológicas animais), a habilidade (as
faculdades técnicas das pessoas), as luzes (relativas à racionalidade), o gosto (bens de
natureza estética), morais e finalmente o culto (relativo a temas religiosos). Entre os
bens internos secundários, teríamos a certeza (necessária para a riqueza e civilização) e
o lazer.
Depois de classificá-los, o autor os compara com os bens materiais. A dificuldade maior
é derivada do fato de que um bem imaterial é res extra commercium, sem preço que se
possa atribuir a ele. Embora um bem imaterial não seja transmissível, o serviço
vendável e as ações derivadas desses bens podem contribuir para o bem-estar dos
demais. Coisas não sujeitas a transações comerciais explícitas podem fazer parte da
troca entre as pessoas no sentido mais amplo:
Nem se dá o nome trabalho à reação do público a um espetáculo. No entanto, sem
essa reação, é possível que os atores possam produzir o bem que é o objetivo do
espetáculo, ou seja, a diversão dos espectadores? (STORCH, 1823, vol. 3, p. 233) 16
Infelizmente, em vez de investigar esse tipo de troca, Storch se limita ao estudo dos
serviços propriamente ditos, minando o impacto criativo de seu trabalho. O autor nota
que a divisão do trabalho e o enriquecimento dão origem à expansão dos serviços
depois que as necessidades naturais são satisfeitas; os serviços passam por sua vez por
um processo de especialização cada vez maior, a divisão do trabalho se manifesta nas
atividades governamentais e por outro lado, o autor acredita que a divisão do trabalho
reduz a produção de bens internos de um indivíduo brutalizado pela especialização.
Os serviços são remunerados de forma monetária ou não. Storch classifica as
remunerações desses últimos. Elas são classificadas em a) desejo de ser estimado, b)
desejo de ser amado e c) sentimento de dever. Quanto ao desejo de ser estimado, o autor
utiliza ainda outra classificação: as ambições vulgares, como busca de honra e poder e
as ambições elevadas, como a busca da estima espontânea por parte dos demais
membros da sociedade.
Utilizando como base a Teoria das Penas e Recompensas de Bentham, Storch (p. 279)
elogia a hierarquização dos funcionários públicos russos promovida por Pedro, o
grande, como um exemplo de sistema de remuneração não puramente monetária. Say,
por outro lado, discorda da importância desse tipo de esquema ao comentar em nota que
“[n]a verdade, é uma ideia maluca promover um acadêmico como se promove um
cabo.” De qualquer forma, na sociedade aristocrática de São Petersburgo, honrarias
como ordens de cavalaria são valorizadas por Storch como exemplo de reconhecimento
social não pecuniário.
Depois de examinar a produção e distribuição de bens imateriais, Storch examina seu
consumo. Os bens imateriais seriam passíveis de acúmulo, em uma espécie de capital
civilizacional. Storch se refere a um “fundo imaterial” para se referir a massa anual de
saúde, habilidade, conhecimento, gosto, culto, certeza e lazer. Esse fundo teria dois

16
On ne donne pas non plus le nom de travail à la réaction du public dans un spectacle; cependant, sans
cette réaction est-il possible que les acteurs puissent produire le bien qui est le but du spectacle, savoir
l'amusement des spectateur?

204
usos: um voltado ao consumo e outro voltado ao capital imaterial. Um talento sem uso
para aperfeiçoamento ou ensino, por exemplo, é classificado como consumo de bens
imateriais. Aprofundando a analogia com o acúmulo de capital, sociedades em diversos
estágios de civilização podem ser importadoras ou exportadoras de civilização, com
seus livros, idéias, instituições e assim por diante.
Concluída a parte teórica da teoria da civilização, isto é, depois de examinar como os
bens internos são produzidos, distribuídos e consumidos, Storch dedica um capítulo
para cada uma das categorias desses bens para avaliar seu progresso nas diversas fases
da civilização, das sociedades de caçadores até as modernas economias industriais.
O autor revela alguma confiança a respeito do caráter melhorista da evolução
civilizacional. Se não fosse assim, provavelmente teríamos em seu livro algum espaço
dedicado ao exame do declínio civilizacional, que, nos termos de Storch, poderia ser
rotulado de consumo de capital imaterial. Infelizmente, o autor não explora essa
possibilidade. Se atendo ao crescimento do capital imaterial, Storch (vol. 3, p. 495)
conclui que a prosperidade de uma nação depende do equilíbrio entre o crescimento da
riqueza e da civilização.
Explorando a influência da riqueza para a civilização, Storch nota que se partirmos de
sociedade pobre, todo o capital é empregado na indústria, isto é, na produção de bens
exteriores e quando as necessidades naturais são satisfeitas, se inicia o acúmulo do
capital civilizacional. A fase agrícola gera desigualdade de fortunas, que ao mesmo
tempo cria relações de poder e aumenta os meios de sustento e o tamanho da população.
Nessa fase, sobram recursos para o desenvolvimento do conhecimento. Sendo assim, o
crescimento econômico regula o da civilização no seu início. Nas palavras de Storch
(1823, v.3, p, 498):
Assim, a pobreza e a barbárie são o começo da corrida dos povos, como a riqueza e
a civilização são o fim. Esses dois fenômenos sempre andam juntos, e embora sejam
alternadamente a causa e o efeito um do outro, é um fato geral e constante, que a
riqueza é sempre a primeira causa da civilização, e que, no começo, esta nunca pode
ultrapassar a outra.17
Assim que a riqueza se manifesta, passa a ser necessária a formação de um capital
civilizacional na forma de saúde, habilidade, saber, gosto, moral, certeza e lazer. Isso
nos leva à influência da civilização na riqueza. O principal ativo civilizacional, para o
autor, é a segurança. Sem estabilidade, não há capital e, portanto, riqueza. Para Storch
(1823, v.3, p, 501), a segurança é fruto necessário das leis:
A segurança só é encontrada na ordem social: é por isso que a indústria e a riqueza
nunca crescem sem o estado. O desejo de trabalhar e acumular nunca pode ocorrem

17
Ainsi , la pauvreté et la barbarie sont le début de la carrière des peuples, comme la richesse et la
civilisation en sont le terme. Ces deux phénomènes vont toujours ensemble, et quoiqu'ils soient
alternative ment la cause et l'effet l'un de l'autre, c'est un fait général et constant, que la richesse est
toujours la première la cause de la civilisation, et que, dans l'origine, celle-ci ne peut jamais devancer
l'autre.

205
com um homem isolado, que está constantemente com medo de ser roubado dos
frutos de seu trabalho.18
Talvez por escrever para o tsarevich, a desconfiança sobre o funcionamento da ação
estatal, tão marcante na obra de Say, é apenas mencionada por Storch.
Como Storch praticamente em toda parte de sua obra cita as contribuições de Say, é
compreensível que este promovesse uma nova edição do Curso do primeiro. Mas nos
poucos pontos nos quais este último se afasta da forma como Say expõe a teoria
econômica, este o critica de forma incisiva nas inúmeras notas que anexa, sem
autorização, ao texto de Storch. Algumas observações críticas são justas, mas nos
concentraremos nas notas mais críticas para identificar as diferentes perspectivas.
Say demonstra seu descontentamento justamente no que diz respeito à doutrina sobre os
bens imateriais. Para Say (STORCH, vol. 3. p. 225), as teses do autor russo sobre o
tema seriam sem fundamento, inconsistentes, opostas às noções já estabelecidas,
causando mais confusão que esclarecimento. A noção de bem imaterial, de fato,
contraria o materialismo da concepção plutológica que o próprio Say ajudara a combater
quando considerou os serviços como produtivos. Mas a noção de produtos imateriais,
para Saym não seria admissível: “E agora ele chama os bens internos de valores: o culto
um valor! A civilização um valor! E os chama de valores, de bens e deixa de denominá-
los riquezas!” (p. 226).
Pouco mais adiante (p. 228), Say avalia o desvio de sua teoria como procedimento não
científico, visto que ciência requer coisas estabelecidas, suscetíveis de apreciação
rigorosa e não algo meramente hipotético e conjectural. A crítica por vezes é muito
pouco elegante. A ilustração de Storch (p. 233) sobre o valor dos aplausos em um
espetáculo, por exemplo, é qualificada como ridícula. Outras são obviamente não
aplicáveis, revelando pouco esforço de compreensão do interlocutor. Por exemplo, em
uma nota (p. 309), atribui à teoria de Storch a crença de que se Voltaire tivesse
problemas de saúde, então lhe faltaria civilização.
A resposta de Storch foi publicada em Paris no ano seguinte na forma de livro. Nessa
novaobra, temos uma reformulação da teoria da civilização que pretende dar conta das
objeções levantadas por Say. Paradoxalmente, na ânsia de dar importância aos produtos
imateriais, Storch novamente restringe muito o escopo da teoria tradicional, reduzindo-o
aos valores de objetos concretos, a fim de situar o resto na produção na rubrica
civilização, agora chamada de “economia nacional”, em contraste com a “economia dos
indivíduos”, que poderia ser estimada em termos monetários. Como afirmamos acima,
paradoxalmente isso reforça a concepção estreita segundo a qual a Economia diria
respeito apenas a objetos que possuem valor expresso em termos monetários.
Assim, em vez de apenas esclarecer os termos empregados, a reformulação da teoria
tem o potencial de geral mais mal-entendidos. O conteúdo da teoria, além de questões

18
La sûreté ne se trouve que dans l'ordre social: voilà' pourquoi l'industrie et la richesse ne s'accrois
sent jamais hors de l'état. L'envie de travailler et d'accumuler ne peut jamais venir à l'homme isolé, qui
est sans cesse dans la crainte de se voir enleverles fruits de son travail.

206
de classificação, é o mesmo, de modo que mencionaremos apenas o longo prefácio no
qual critica Say.
Em primeiro lugar, Storch (1824, p. ii) queixa-se da atitude de Say em relação a
publicação não autorizada de sua obra:
O Sr. Say não se contentou em reimprimir o meu curso; ele anexou notas nas quais
ele exerce sobre mim uma crítica imparcial e até mesmo benigna, desde que eu
concorde com ele, mas amarga e virulenta assim que me afasto de sua teoria. 19
E em seguida se queixa do tom da crítica (p. iv):
Em suas Notas, ele se esforça para provar que minha doutrina é falsa e que eu
deveria ter mantido a sua própria; mas ele coloca nessa discussão tanta animosidade,
e ele assume um tom tão absoluto, que se percebe que ele defende a causa de seu
amor-próprio e não a da verdade.20
Quanto ao ponto em disputa, Storch esclarece que, enquanto Smith considera os
serviços estéreis, Garnier e Say acham que eles seriam diretamente produtivos na
geração de valor. Já Storch, ao expandir a análise dos fatores produtivos para os
produtos em si, considera que os serviços concorrem indiretamente para a renda
nacional ao produzir bens imateriais, que por sua vez seriam indispensáveis para a
produção dos bens materiais. Say estaria errado por não perceber essas distinções:
“Vemos que o Sr. Say confunde os serviços com seus resultados; é natural então que ele
me ataque por tê-los distinguido” (STORCH, 1824, p. xii)
Avaliando a controvérsia, se por um lado não faz sentido excluir os serviços do estudo
da Economia pura, definida como a ciência da riqueza, por outro negar aos frutos dos
serviços o caráter de riqueza é limitador. Não se trata, porém, de uma questão
meramente taxonômica, visto que a limitação é inerente ao aparato teórico empregado.
A plutologia, como revelará o desenvolvimento da disciplina, restringe sobremodo o
que pode ser investigado sob a ótica econômica. Ao aplicar a própria plutologia
desenvolvida por Say à teoria da civilização, a investigação sobre os bens imateriais na
mão de Storch deixou de explorar vários problemas, como aqueles relativos à alocação
de recursos para os quais não existem preços, hoje conhecido como externalidades. Essa
análise, contudo, requereria consciência sobre a centralidade do problema alocativo,
algo que ainda não acontecera.
A despeito das limitações inerentes ao aparato teórico clássico, Storch contribui com o
desenvolvimento posterior da disciplina com sua ênfase no aspecto subjetivo do valor e
consequente importância atribuída às trocas. Testemunho do potencial de sua
abordagem é dado pelo fato de que sua teoria da civilização pode ser considerada como
precursora das abordagens contemporâneas que buscam medidas de bem-estar que não
se restringem a medidas de produto agregado derivadas das contas nacionais.
19
M. Say ne s'est pas contenté de réimprimer mon Cours; il y a joint des Notes dans lesquelles il exerce
sur moi une critique impartiale et même bénigne tant que je suis d'accord avec lui, mais amère et
virulente aussitôt que je m'éloigne de sa théorie.
20
Dans ses Notes, il s'évertue à me prouver que ma doctrine est fausse, et que j'aurais dû m'en tenir à la
sienne ; mais il met dans cette discussion tant de fiel, et il y prend un ton si absolu, qu'on s'aperçoit bien
qu'il plaide la cause de son amour propre plutôt que celle de la vérité.

207
5.3. Rossi: valor e preço sob monopólio
Outro passo no desenvolvimento da teoria da utilidade entre os economistas franceses
influenciados por Say foi dado por Pellegrino Rossi, seu sucessor na cadeira de
economia política no College de France. Estimulado pelo trabalho de Storch, que
explicava o valor dos bens trocados a partir das opiniões subjetivas dos agentes a
respeito de suas utilidades, Rossi reintroduz na análise do valor a relação entre utilidade
e escassez, aplicando-a em seguida a situações de monopólio, das quais a teoria do valor
trabalho não dá conta. Antes de examinar essas contribuições, vamos dizer algo a
respeito de seu autor e do caráter geral de sua obra.
Pellegrino Rossi (1787-1848) nasceu em Carrara, no então ducado de Modena, na
Itália21. Estuda direito nas universidades de Pisa e Bolonha. Nesta última, foi um dos
estudantes que conversaram com Napoleão em sua passagem pela Itália. Obtendo o
título de doutor aos dezenove anos, inicia sua carreira como advogado. Em 1810 torna-
se professor de direito civil e penal em Bolonha.
A vida pública de Pellegrino Rossi tem início no reinado de Nápoles, parte do império
napoleônico. Em 1815, Rossi foi nomeado comissário geral civil nos países
conquistados pelo rei de Nápoles. Este, Joachim-Napoleón Murat (1767-1815), era um
marechal do exército francês, que participou da tomada de poder de Napoleão e das
campanhas na Espanha e na Rússia. Seus serviços lhe renderam o reinado de Nápoles
em 1808 e o casamento com a irmã mais nova de Napoleão, Caroline.

Quando Murat é preso e morto em 1815, Rossi se exila em Genebra, na Suíça. Lá, se
dedica ao estudo de línguas estrangeiras, Economia e História. Naturalizando-se suíço,
casa nesse país, torna-se professor de direito e membro do conselho representativo de
Genebra. Durante a revolução de 1830, que envolveu o conflito entre cantões, Rossi é
escolhido para organizar uma proposta de constituição, conhecida como o “pacto
Rossi”, que foi rejeitado.

Já na França, em 1833, disputa com Charles Comte, cunhado de Jean-Baptiste Say, a


vaga no College de France deixada por este a partir de sua morte. Diante de um impasse
sobre quem assumiria o cargo, Rossi é escolhido pelo futuro primeiro ministro, François
Guizot (1787-1874), então ministro da educação. As aulas que ministra nessa instituição
nos anos seguintes dão origem ao seu Curso de Economia Política. Essa obra foi
publicada em quatro volumes, sendo os dois últimos obtidos a partir de transcrição
estenográfica realizada por um de seus alunos.

Naturalizado francês, obtém o título de Pair de France em 1839. Em 1845 Guizot,


agora como ministro de relações exteriores, nomeia Rossi embaixador francês em
Roma. A revolução de 1848, porém, faz com que Rossi perca o posto de embaixador.

21
Para informações bibliográficas, consulte L. Say e Chailley (1900), Coquelin e Guillaumin (1852) e
Marco (1988).

208
Naturalizado cidadão do Vaticano, é nomeado por Pio IX ministro do interior no mesmo
ano. Em novembro, é assassinado na porta do palácio da chancelaria.

Esse cidadão de quatro países, destacado homem público e de vida atribulada, foi um
economista importante no desenvolvimento da escola clássica francesa, se
considerarmos o papel de destaque conferido pela sua posição acadêmica, que
proporcionava uma posição privilegiada para a difusão da teoria econômica. Osgur e
Genc (2014), por exemplo, relatam como um dos alunos de Rossi, Sarantis Archigenes,
escreveu um livro de economia bastante influenciado por seu professor e que contribuiu
para a difusão da economia clássica no império otomano. Entre os economistas da
escola clássica francesa, por seu turno, Rossi era bastante admirado por Joseph Garnier,
que prefaciou seu livro de Economia.

Marco (1988) nota que até os anos cinquenta do século vinte, o autor era bem
conhecido, antes de sua fama decair. Entretanto, para esse autor, Rossi não seria um
mero divulgador, tal como os economistas clássicos franceses são comumente
retratados, mas seria um pensador original e eclético, incorporando em sua análise
contribuições de diferentes economistas, tratando de relações entre Economia, História e
Direito, além de desenvolver conceitos metodológicos originais.

A discussão desse comentarista a respeito da originalidade do autor, contudo, merece


alguns reparos. As contribuições mencionadas são de fato importantes, mas Rossi não
pode ser visto como um precursor da teoria sobre a atividade empresarial: a discussão
do risco associado as decisões dos trabalhadores e capitalistas, por exemplo, é bem
circunstancial, relativa à conhecida discussão smithiana sobre as causas das diferenças
salariais entre as várias profissões22 e não algo que evoque a distinção knighiana entre
risco e incerteza. A atividade empresarial propriamente dita, crucial para Cantillon e
importante embora restrita para Say, perde importância na obra de Rossi23. Suas
discussões sobre causas das flutuações econômicas, embora interessantes, em especial
no que diz respeito aos efeitos da expansão de crédito (vol. 4, p. 323), também são
bastante breves e não articuladas na forma de alguma teoria. As diversas discussões
presentes no texto relativas às relações entre Economia, Direito e História, por sua vez,
não permitem retratar Rossi como um precursor da escola histórica alemã, tendo em
vista suas crenças metodológicas sobre a autonomia da Economia em relação a outras
disciplinas24. Por fim, as contribuições de Rossi à Metodologia da Economia, como
vimos no nosso segundo capítulo, devem ser apreciadas à luz do gradual
desenvolvimento da tradição metodológica clássica.

22
Rossi distingue (1865, vol.3) entre a “incerteza de sucesso” smithiana, relativa aos riscos de
efetivamente se formar como um médico, que requer salário maior do que a taxa média e a “incerteza do
emprego”, pequena no caso de um médico, mas grande no caso de um professor de violoncelo que
trabalha em cidade menor e pode não encontrar alunos.
23
Para Rossi (v.4, p. 511), o empresário, tal como para Say, fornece o trabalho intelectual e de vigilância.
Porém, o empresário na obra de Rossi perde destaque tanto na descrição dos fatores produtivos quanto na
caracterização do autor a respeito do funcionamento dos mercados.
24
A tese de que Rossi seria precursor do historicismo alemão foi criticada no segundo capítulo deste
trabalho.

209
De qualquer modo, tendo em vista a perspectiva gradualista sobre a evolução das idéias
que adotamos neste trabalho, a questão sobre originalidade perde boa parte de sua
importância. No que diz respeito aos tópicos que examinamos neste trabalho, uma
contribuição importante - e gradual - do autor, como veremos nesta seção, trata da
relação entre utilidade, escassez e sua aplicação ao estudo dos monopólios.

No entanto, Rossi pode de fato ser classificado como um autor eclético. Em vez de gerar
diferenciação, cria sínteses. Em suas mãos, a teoria não se desenvolve como algo que
emerge de algum corpo de doutrina existente e resulta em uma nova variante dessa
doutrina. Pelo contrário, Rossi pertence ao conjunto de autores que modificam e
sintetizam contribuições de tradições diferentes, tornando o todo mais homogêneo. Se a
obra de Say tende a minimizar a importância das contribuições de Ricardo, Rossi abraça
a teoria da renda da terra dos clássicos ingleses, mostrando que esta não depende em
absoluto da hipótese de fertilidade diferencial e ausência de pagamento de renda na terra
marginal, mas apenas da existência de escassez de terra. Rossi também acolhe a versão
malthusiana da teoria da população, enfatizando sua relevância e buscando sintetizar o
conjunto de forças perturbadoras que atuam em direção contrária. O mesmo ocorre com
as contribuições de inúmeros economistas, como a análise de Smith sobre sistemas
econômicos comparados e sobre o conceito de trabalho produtivo ou ainda a relação
enfatizada por Senior entre capital e abstinência. A influência de Say, por sua vez, se faz
notar ao longo de toda a obra, novamente com ligeiras modificações, como a omissão da
discussão do consumo, já que esta na verdade diz respeito aos usos produtivos do
capital ou a adesão à tese de impossibilidade de superprodução generalizada. Por fim,
tanto os desenvolvimentos de Storch sobre valor subjetivo quanto sua tentativa de
estender o escopo da Economia influenciam Rossi. A síntese de elementos ingleses e
franceses, presente ao longo de todo o Curso de Rossi, se manifesta também na
discussão da teoria do valor, como notam Ragni e Baldin (2015).

Para estes últimos, Rossi difere tanto de Say quanto de Ricardo. A apreciação das
opiniões do próprio Rossi a respeito de inúmeras teses econômicas, porém, é bastante
dificultada por uma prática adotada ao longo do discurso do autor. Rossi nomeia os
economistas que elogia, mas quando os critica, menciona apenas idéias, não seus
autores.

O foco da crítica nas idéias e não nas pessoas, a primeira vista louvável, se torna no
entanto um problema na medida em que, com bastante frequência, não é possível
identificar o que está sendo criticado exatamente. Sem uma fonte para que possamos
apelar para contrastar opiniões, o objeto criticado corre o risco de ser apenas uma
caricatura, não defendida por ninguém. Consideremos dois exemplos. A quem se refere
o autor quando critica a tese de “certos economistas” que acreditariam que a troca gera
valor? Se isso fosse verdade, contra-argumenta Rossi (1865, vol. 1, p. 67), bastaria que
um bem fosse trocado repetidas vezes para que seu valor aumentasse. Ora, tal
argumento não é aplicável a Condillac, que mostra que justamente pelo valor ser
subjetivo, as trocas são irreversíveis. Neste caso, seria o animus trocandi do segundo
capítulo da Riqueza das Nações, ou seja a “propensão para cambiar, permutar ou trocar

210
uma coisa por outra” que não passaria no teste. Embora seja concebível que existam
autores que de fato professem opiniões facilmente descartáveis, a crítica anônima
levanta sempre a suspeita de que se critica apenas um espantalho. Sua crítica à teoria do
valor trabalho, do mesmo modo, exclui pela mesma técnica a possibilidade de tratar o
valor de uso apenas como condição necessária para a existência do valor de troca. Esses
dois exemplos apenas ilustram uma prática que se faz presente ao longo de todo o livro
de Rossi.

O resultado dessa prática é o caráter inerentemente obscuro do texto no que diz respeito
à discussão da história do pensamento econômico. Essa falta de precisão poderia ser
fonte inesgotável de recursos para a criação de interpretações diversas na literatura
secundária. Mas, no espírito da crítica de Say ao estímulo a uma indústria sem
consideração pela utilidade do esforço empreendido, procuraremos deixar de lado na
medida do possível o exame das opiniões de Rossi a respeito das doutrinas econômicas,
para nos concentrarmos no exame de suas contribuições para a teoria do valor e
monopólio.

Como Storch, Rossi coloca suas contribuições fundamentais sobre valor no início do
livro e não na discussão da distribuição, como no tratado de Say. A primeira observação
que deve ser feita é notar de fato a evidente influência de Storch. A discussão do valor é
feita em termos das necessidades dos agentes em um modelo de trocas e a análise de
Rossi segue bem de perto os passos dados pelo economista russo, como
demonstraremos em seguida.
Em primeiro lugar, o valor é considerado como uma relação entre pessoas e o mundo
externo (p. 43), relação dada pela utilidade das coisas para atender necessidades (p. 50).
Como na filosofia de Condillac, o homem modifica o mundo pelo seu trabalho para
satisfazer as necessidades que sua mente percebe. Seguindo Storch, Rossi afirma que os
agentes se dedicam primeiro à provisão das necessidades naturais, obrigatórias, para em
seguida se voltar às necessidades artificiais, mais “delicadas e complicadas”.
Novamente com Storch, Rossi (p. 51) expõe a questão em termos de um modelo de
trocas, distinguindo a utilidade direta das coisas, dada pela sua aplicação imediata a
satisfação das necessidades, da utilidade indireta, que considera os bens como meios
para aquisição de outras coisas úteis através das trocas.
Para que ocorram trocas, da parte dos dois agentes envolvidos é necessário que haja
posse dos bens, disposição de abdicar de algo e vontade e meios de aquisição do que o
outro tem. Adicionalmente, Rossi (1865, vol. 1, p. 53) salienta que as necessidades
devem diferir entre os agentes envolvidos em uma troca:
É a relação de nossas necessidades com as coisas, e é bem sabido que nossas
necessidades são ao mesmo tempo diversas e móveis; mesmo aqueles que são
comuns a todos nós, e que derivam de nossa constituição orgânica, são variáveis,
pelo menos por sua intermitência e por seu grau de intensidade. Consequentemente,

211
o valor não é nem uma coisa constante nem uma qualidade inerente aos objetos. Não
há nada no valor de exclusivamente objetivo.25
O subjetivismo do autor está intimamente associado ao modelo de explicação do valor
em termos cataláticos. O subjetivismo, de fato, é marcante na análise do autor e não
derivado a partir da observação de algum trecho isolado do texto, como atesta mais uma
citação, que estabelece de forma indireta as bases filosóficas condillacianas da
economia subjetivista. Para Rossi (1865, vol 1, p. 80):
O motivo está no homem e não nas coisas. Por que essas ofertas? Por que essas
demandas? ... Não o questionem sobre as coisas, sobre as circunstâncias materiais do
mercado: só elas seriam capazes de lhe dar apenas indicações incertas. É o homem
que se deve interrogar. A resposta definitiva está em seus sentimentos, em seu amor
a si mesmo, nas determinações de sua vontade.26
Por fim, voltando à análise do valor durante as trocas, Rossi enfatiza a necessidade de
existência de escassez: os bens não poderiam estar disponíveis em quantidades
ilimitadas (p. 52), já que ninguém aceitaria em uma troca algo que possa ser obtido
gratuitamente.
Fica claro por essas afirmações que Rossi recupera a ideia, identificável em diversos
precursores, tais como Galiani, de parear a utilidade com a escassez na explicação do
valor. Assim, ao contrário de Say, Rossi (p. 50) utiliza o termo utilidade em um sentido
diferente de uma propriedade constante do bem, independente da apreciação individual.
Novamente como Storch, Rossi retoma a distinção entre valor de troca e valor de uso,
que perdera importância com Say. O valor de troca, porém, nada mais é do que uma
forma de valor de uso, que emprega a troca como forma indireta de obtenção de algo
útil. O princípio explanatório seria, portanto, o mesmo.
Considerando que as necessidades diferem entre pessoas e se alteram ao longo do
tempo, o valor de troca, para Rossi, se manifesta apenas no instante mesmo da troca.
Assim como Storch salienta que valor é uma opinião, Rossi oberva que imediatamente
após uma transação o valor de troca se torna algo puramente conjectural.
Rossi, embora valorize Ricardo em outros aspectos, prefere aqui a abordagem realista
de Say em comparação com as abstrações ricardianas, que implicam no risco de
transferir a simplicidade dos modelos para a realidade complexa modelada. Para Rossi
(1865, p. 54), o valor não seria uma grandeza fixa:
Seu trigo tem um valor em troca determinado, conhecido, real, somente no momento
que é transacionado. Assim, quando nos é dito que existe uma equação entre os dois

25
C'est le rapport de nos besoins avec les choses, et nul n'ignore que nos besoins sont à la fois divers et
mobiles; même ceux que nous sont communs à tous, et qui dérivent de notre constituition organique, sont
variables, du moins par leur intermittence et par leur degré d'intensité. En conséquence, la valeur n'est ni
une chose constante, ni une qualité inhérente aux objets; il n'y a rien dans la valeur d'exclusivement
objetif.
26
Le mobile est dans l'homme et non dans les choses. Porquoi ces offres? porquoi ces demandes?... Ne le
demendez pas aux choses, aux circonstances matérielles du marché: isolément considérées, elles ne
pourraient vous fournir que des indications incertaines. C'est l'homme qu'il faut interroger. la réponse
définitive se trouve dans ses sentiments, dans son amour de lui-même, das les déterminations de sa
volonté.

212
termos de troca, tenhamos cuidado em atribuir significado muito amplo a essa
afirmação. Equação no momento da troca, sim; um momento depois, não. 27
A despeito de reutilizar a distinção entre valor de troca e uso, a explicação de todo
fenômeno associado ao valor remonta ao conceito mais fundamental de valor de uso. No
momento que o valor de uso cessa, desaparece o valor de troca: “O homem que enviou
uma carga de patins para o Brasil esquecera que seu valor de uso, derivado do prazer de
deslizar sobre uma superfície gelada, é zero onde não há gelo.” (p. 61).
Esse exemplo, por si só, não contrariaria a prática de tratar valor de uso como condição
necessária para o valor de troca, mas não relacionado com esse último. Explicação
alternativa surge de fato quando o modelo catalático é desenvolvido. A afirmação de
que o valor de troca é derivado do valor de uso é explicada por Rossi (1865, vol. 1, p.
63) por um modelo de trocas puras, no qual oferta e demanda são vistas como demandas
recíprocas de duas pessoas por dois bens:
Conhecer a demanda é, portanto, nada mais que estudar o valor em uso das coisas
em questão. E como toda oferta implica uma demanda, e qualquer demanda
necessariamente implica uma oferta, na teoria básica da oferta e da demanda é, ao
contrário, a prova mais óbvia de que a ciência é essencialmente baseada no estudo
da demanda. O valor em uso, cujo valor em troca, repito, é apenas uma forma e
expressão particular.28
Se o valor de uso for de fato a noção fundamental, é necessário aprofundar seu estudo,
mostrando como a utilidade varia com a quantidade existente. Se Say trata a demanda
como uma função dos preços e da renda e Storch reintroduz a importâncias da
diversidade de preferências individuais e reafirma o caráter especulativo das avaliações
a respeito da utilidade dos bens para outras pessoas, Rossi privilegia a relação entre
utilidade e escassez.
As necessidades, para Rossi (p. 87), variam conforme a energia, a extensão e gradação
(ou energia relativa) das necessidades, tanto as naturais quanto as artificiais. Por energia
Rossi se refere à intensidade da vontade, por extensão entende a quantidade requerida
de um bem e por gradação a relação entre utilidade e escassez. Say e Storch falavam
explicitamente em ordenamento de preferências. Já Rossi utiliza a expressão “graduação
de necessidades” (p. 62).
Munido desses conceitos, Rossi se coloca em condições de resolver o paradoxo do
valor. Para ele (p. 68), o valor do diamante seria perfeitamente proporcional a sua
utilidade, se tomarmos as dimensões desse conceito relacionadas acima. A “intensidade
e vivacidade da necessidade que o diamante satisfaz seria menor se a quantidade de
diamantes fosse maior.

27
Votre blé, n'a une valeur en échange déterminée, connue, réelle, qu'au moment du marché. Aussi,
quand on nous dit qu'il y a équation entre les deux termes de l'échange, gardons-nous d'attacher à cette
assertion un sens trop étendu. Équation dans le moment de l'echange, oui; un moment apès, non.
28
Connaître la demande ce n'est donc autre chose qu'étudier la valeur en usage des choses dont il s'agit.
Et comme toute offre implique une demande, et que toute demande implique nécessairemente une offre,
dans la théorie fondamentale de l'offre e de la demande se trouve, au contraire, la preuve la plus évidente
que la science repose essentiellement sur l'étude de la valeur en usage, dont la valeur en échange, je le
répète, n'est qu'un forme et une expression particulière.

213
A conexão entre valor e escassez permite aprofundar a ideia de que o valor é subjetivo e
não uma propriedade inerente aos bens, variando não apenas conforme o indivíduo, mas
conforme a circunstância particular na que se encontra. Rossi (p. 88) ilustra como a
escolha dos agentes variam com a escassez relativa dos bens:
Uma mulher do mundo, na presença de um colar soberbo, pode arder de desejo de
possuí-lo. .... Coloque a mulher que estávamos falando na presença de alimentos
saudáveis ... [e] uma casa confortável, talvez ela prefira o que a fará brilhar em um
baile. Mas prive-a por quarenta e oito horas de beber, e então coloque o colar e um
copo de água na sua frente, e será o copo de água que terá a preferência.29
Como o valor de troca é em última análise um valor de uso, sua explicação se baseia nos
mesmos elementos, que modificam tanto a demanda quanto a oferta. De fato, para Rossi
(p. 78), “O valor de troca, sem dúvida, deriva dessas duas fontes: a propriedade que tem
as coisas de satisfaz nossos desejos, em sua desproporção às nossas necessidades.”
Baldin e Ragni (2015) investigam esse aspecto do trabalho de Rossi tendo em vista seu
potencial como inspiração para o conceito de excedentes utilizado por Dupuit. O
próprio Rossi, porém, não explora essa possibilidade. No exemplo de modelo de troca
que constrói, o leitor fica com a impressão que Rossi estaria prestes a enunciar tal
conceito, mas não o faz. No exemplo, dois homens, um com dois pães e outro com duas
porções de água, não sobreviveriam ao dia seguinte sem uma porção do bem possuído
pelo outro, de modo que cada um tem uma segunda porção sem utilidade para ser
trocada por algo que vale sua vida.
Embora fosse natural enfatizar o ganho por assim dizer infinito derivado dessa troca,
Rossi apenas conclui que o valor de troca será de um pão por uma porção de água ou
vice-versa. A troca, no entanto, seria a mesma se as intensidades das necessidades
fossem bem menores. A indagação sobre o propósito das suposições drásticas
empregadas (utilidade marginal infinita) encontra uma resposta quando consideramos
que o passo seguinte da análise dado por Rossi, seguindo Storch, será aumentar o
número de trocadores em cada lado do mercado, que afetaria o valor de trocas.
A explicação do porquê Rossi não explora o significado dos ganhos de troca, retomando
a análise onde parou Condillac, repousa novamente na estrutura plutológica da
economia do autor, que não permite perceber a importância do problema alocativo, que
por sua vez possibilitaria reinterpretar a noção de custo em termos de custos de
oportunidade de fatores produtivos escassos. O uso que o autor dará a sua teoria da
utilidade ficará de fato restrita ao contexto de equilíbrio parcial, como ocorre com todos
os autores da escola clássica francesa.
A segunda contribuição teórica importante de Rossi que examinaremos será justamente
a aplicação de sua teoria do valor a situações de monopólio. Para entendermos a relação

29
Une femme du monde, en présence d'un superbe collier, brûlera peut-être du sésir de l'avoir. ...
Mettez la femme dont-nous parlions en présence d'une nourriture saine, peut-être s'en passera-t-elle;
d'une logement confortable, peut-être préférera-t-elle ce qui la fera briller dans un bal. Mais tenez-la
quarente-huit heures sans boire, et alors placez devant elle le collier et un verre d'eau, cést verre d'eau
qui aura la préférence.

214
entre seu trabalho sobre utilidade e a teoria do monopólio, é necessário, porém nos
determos na apreciação do autor a respeito da teoria do valor trabalho.
Rossi contrasta a fórmula ricardiana do valor explicado pelo custo com a fórmula
baseada na oferta e demanda. Já vimos que Rossi acredita que a causa real do valor
repousa na utilidade associada à escassez e também como a oferta pode ser interpretada
como uma demanda em um modelo de troca pura. Em um modelo envolvendo
produção, porém, a redução da oferta a uma demanda requer que a noção de custo seja
consistentemente interpretada como custo de oportunidade, o que é feito apenas no
referencial catalático neoclássico, que reformula o problema fundamental da disciplina
em termos da escolha o uso dos recursos escassos. No referencial plutológico clássico
que Rossi se situa, porém, ele é forçado a se juntar a Say e demais economistas
clássicos franceses que, apesar de defenderem uma teoria do valor subjetivo, acaba
apelando em última análise ao valor determinado pelo custo de produção de uma
mercadoria em equilíbrio competitivo. A existência de lucros extraordinários em
ambiente caracterizado pela livre entrada induz à convergência do preço para o custo
médio unitário.
Rossi lida com esse obstáculo por meio da comparação entre os modelos rivais em
termos metodológicos, segundo critérios instrumentalistas30. Para ele, o modelo de
oferta e demanda, embora deva ser fundamentado em termos das causas psicológicas
dessa oferta e demanda, não seria uma ferramenta operacional, já que não é possível
observarmos os fatores determinantes de ofertas e demandas existentes em instâncias
particulares.
O valor aproximado pelos custos de produção, pelo contrário, seria operacional. Os
custos, para Rossi (p. 99), seriam “fatos materiais apreciáveis”. Sendo assim, forneceria
uma medida aproximada do valor de troca dos bens, útil para comprar o sacrifício em
termos de horas necessárias para obter uma mercadoria em diferentes locais e datas.
Para Rossi (1865, vol. 1, p. 82), no entanto, os dois modelos não seriam contraditórios
entre si:
No fundo, são apenas duas fórmulas que, bem compreendidas, podem atingir o
objetivo, porque uma e outra, a primeira, de maneira mais direta e filosófica, a
segunda, de uma forma indireta, mas mais prática, remontam aos elementos reais da
solução, quero dizer, as necessidades, os meios e os interesses das pessoas
envolvidas na troca.31
O instrumento perde sua conveniência, porém, nos casos aos quais o preço não pode ser
explicado pelos custos. Rossi nota que o próprio Ricardo lista exceções, mas as
desconsidera com sem importância prática, no mesmo espírito pragmático. Rossi, pelo
contrário, explora em sua sexta lição a importância dos monopólios, situações nas quais
os preços superam os custos.

30
Ver capítulo dois deste trabalho.
31
Il n'est, au fond, que deux formules qui, bien comprises, puissent atteindre le but, parce que l'une et
l'autre, la pemière, d'une manière plus directe et plus philosophique, la seconde, sous une forme indirecte
mais plus pratique, remontent aux véritables éléments de la solution, je veux dire aux besoins, aux
moyens, aox intérêts des échangistes.

215
A explicação do valor pelo custo, para o autor, seria aplicável apenas ao caso de riqueza
produzida. Nem toda riqueza natural, porém, existe em quantidades ilimitadas, o que os
tornariam gratuitos. A teoria do valor trabalho, no que diz respeito a riqueza produzida,
supõe também o que Rossi denomina “liberdade irrestrita de retirada do consumidor”
(p.100) e livre entrada do produtor.
A “retirada do consumidor” se relaciona ao conceito de elasticidade-preço da demanda.
Tanto para bens de primeira necessidade quanto para bens sobre os quais estaria
presente o “império do hábito”, elevações do preço não implicam em redução
considerável da demanda, o que faz com que os preços praticados superem os custos.
Chegamos dessa maneira ao estudo dos monopólios, estimulado por uma limitação da
teoria do valor trabalho. Os monopólios são classificados por Rossi (p. 101) em naturais
e artificiais. Como o autor não define tais termos, precisamos inferir seu significado
exato através da lista de exemplos fornecidos. Entre os naturais (p. 102), Rossi lista
minas de ouro, vinhedos com boa localização, obras de arte de artistas famosos e
habilidades individuais em geral, como o talento de Molière. Entre os artificiais (p. 104
-105), mais numerosos, o autor cita patentes, privilégios de venda conferidos pelo
governo, leis proibitivas de importação de bens, bens imóveis situado intramuros em
uma cidade e monopólios derivados da posse exclusiva de recursos produtivos escassos.
A simples enumeração, portanto, não nos permite inferir um significado exato atribuído
aos termos, que, no entanto, se aproxima da distinção entre causas econômicas e causas
legais dos monopólios. De qualquer forma, os monopólios legais são castigados ao
longo de toda a obra do autor, no espírito da tradição de Gournay-Turgot e da crítica
fisiocrata e smithiana ao sistema mercantilista. A própria teoria econômica é vista por
Rossi como inimiga dos privilégios provenientes dos conflitos políticos. Exemplo dessa
concepção de mundo econômica é fornecido por excerto extraído do início do texto de
Rossi (p. 14-15):
A economia política, pelo contrário, por suas aplicações, procura fazer um pouco de
bem a todos e muito mal a alguns. Ataca os fatos estabelecidos, as leis existentes,
grandes interesses individuais; e são quase sempre esses interesses que mais elevam
a voz, que se agitam, que resistem. Os interesses gerais, imensos para o país, fracos
para cada indivíduo, muitas vezes despercebidos, são quase sempre passivos e
silenciosos. Se os interesses ameaçados se limitassem a declamações, a ciência,
tampando seus ouvidos como aquele que queria escapar dos cantos das sereias,
podia seguir seu caminho sem ser perturbada: mas as coisas não são assim, e os
interesses ameaçados são muito mais ativos.32
Assim como Say e Destutt de Tracy, Rossi evoca a lógica dos benefícios concentrados
dos beneficiários de privilégios em contraste com os custos difusos entre a população
em geral para explicar a assimetria de poder de barganha na arena política.

32
L'économie politique, au contraire, par ses applications, a voulu faire un peu de bien à tout le monde et
beaucoup de mal à qualques-uns. Elle attaque les faits établis, les lois existantes, de grands intérêts
individuels; or ce sont presque toujours ces intérêts qui élèvent le plus la voix, qui s'agitent, qui résistent;
les intérêts généraux, immenses pour le pays, faibles pour chaque individu, souvent inaperçus, sont
presque toujours passifs et silencieux. Si les intérêts alarmés se bornaient aux déclamations, la science,
sa bouchant les oreilles comme cet ancien qui voulait échapper aux chants des syrènes, pourrait suivre sa
route sans en être troublée: mais il n'en est pas ainsi, et les intérêts alarmés sont bien autrement actifs.

216
Entre os monopólios naturais, por sua vez, os mais importantes diriam respeito a
escassez de terra, que remete o autor a teoria clássica da renda obtida por esse fator.
Após de mostrar que monopólios estão presentes em muitas circunstâncias, classificá-
los e examinar suas causas, Rossi passa a aplicar a teoria subjetiva do valor ao problema
da determinação do preço em situações de monopólio.
Se o monopólio de algo for absoluto, no sentido de que a oferta é fixa, o preço é
explicado tento em vista apenas os fatores determinantes da demanda, tal como
discutidos em sua contribuição à teoria do valor. Se, por outro lado, o monopólio for tal
que o bem possa ter sua produção aumentada, Rossi mostra (p. 110) como variações na
oferta do monopolista levam em conta o modo como a receita varia mediante alterações
nos preços. Embora não elabore os detalhes proporcionados pela representação
algébrica do modelo, a estrutura fundamental da explanação moderna sobre preços sob
monopólio se faz presente na obra do autor.
Depois de examinar as obras de Storch e Rossi, podemos concluir que a segunda
geração de autores da escola clássica francesa gerou contribuições para o
desenvolvimento da teoria econômica pura. Porém, se tomarmos uma concepção mais
ampla de teoria, que inclui como as instituições no sentido amplo do termo influenciam
e são influenciadas pelos fenômenos comumente identificados com a economia, tal
contribuição se amplia, como constataremos durante o exame dos próximos autores
estudados.

5.4. Comte e Dunoyer: a teoria da exploração


Vejamos agora como a teoria econômica exposta por Say foi utilizada para gerar uma
interpretação econômica da história, que mais tarde será a base, nas mãos de Bastiat, de
uma explicação para o desenvolvimento econômico em termos dos ganhos relativos das
atividades produtiva ou espoliadora sob diferentes arranjos institucionais.
Vários fatores contribuíram para que a escola clássica francesa desenvolvesse um
interesse pela história econômica. Em primeiro lugar, a crença metodológica de Say de
que a teoria econômica já amadurecera, gerando verdades finais baseadas em fatos
gerais, convida naturalmente ao desenvolvimento de economia aplicada como a
próxima tarefa dos economistas. O exame do passado é material propício para esse tipo
de aplicação. Em segundo lugar, o ambiente intelectual francês a partir da revolução, em
especial entre os ideólogos, sempre se preocupou com a relação entre a prosperidade
econômica da França e suas instituições, sejam estas relativas às leis e a estrutura do
governo ou aquelas relacionadas à educação e cultura. Essa preocupação permaneceu na
geração seguinte, cujas idéias examinamos neste capítulo. Em terceiro lugar, por um
lado o desenvolvimento do pensamento socialista e por outro a defesa renovada do
protecionismo comercial, em um ambiente politicamente turbulento, tornaram inevitável
o interesse por sistemas econômicos comparados e por seu desempenho histórico. Em
quarto lugar, a despeito dos protestos de Say, o subjetivismo ampliado de Storch
aplicado à sua teoria da civilização consistiu em um passo considerável no estudo da

217
coevolução entre economia e instituições. Por fim, o fato de que vários economistas do
período tinham formação jurídica naturalmente fez com que adotassem um ponto de
vista multidisciplinar.
Nesta seção, examinaremos como dois desses estudantes de Direito, Charles Comte e
Charles Dunoyer utilizaram o industrialismo presente na teoria econômica de Say para
fundamentar seu pensamento, que consiste em uma interpretação da história
parcialmente calcada em noções econômicas. Como veremos mais adiante, esses dois
autores desenvolverão, antes de Marx, uma interpretação da história na qual o estado é
visto como instrumento de exploração econômica, que se altera ao longo de diferentes
estágios de desenvolvimento da sociedade.
Como Comte e Dunoyer tiveram carreiras semelhantes, trabalharam juntos no
jornalismo, escreveram em coautoria e principalmente porque desenvolverem idéias
muito próximas entre si, trataremos os dois autores em conjunto. Para que possamos
apreciar suas idéias no contexto adequado, consideremos brevemente suas biografias.
Charles Barthélemy Pierre Dunoyer (1786 - 1862) nasce na aldeia de Carennac33,
situada no sul da França. Em 1803 muda-se para Paris, onde estuda Direito. Formado,
se dedica a traduzir textos jurídicos em vez de exercer a profissão de advogado. Em
1809, acompanha o intendente geral em Navarro, Espanha, na condição de seu
secretário particular. Em suas viagens, observa os efeitos do domínio de Napoleão. No
final do império deste último, em 1814, escreve um panfleto no qual critica falta de
compromisso da monarquia restaurada com a carta que estabelecera uma monarquia
constitucional. A atividade política de Dunoyer durante a restauração Bourbon é
marcada a firme oposição às pretensões absolutistas de Luiz XVIII.

Ainda no curso de Direito, em 1807, Dunoyer conhece Charles Comte (1782 - 1837).
Este nasce em uma família modesta, na aldeia de Sainte-Enimie34, nas margens do rio
Dore, também no sul da França. Em 1806 Comte, assim como Dunoyer, se muda para
Paris para estudar Direito. Como seu colega, não advoga, se dedicando a estudos
jurídicos.
Depois da promulgação da carta em 1814, Comte inicia a publicação de um jornal
denominado Le Censeur, que pretendia servir como censor ao monarca com pretensões
absolutistas. A partir do segundo volume, Dunoyer se torna coeditor da publicação.
Liggio (1977), Hart (1990), Harpaz (2000) e Leroux (2015) narram em detalhes as lutas
do jornal contra a censura que caracterizava o regime, os temas explorados nas páginas
da publicação e as influências intelectuais sofridas pelos seus autores. Para nossos fins,
bastam algumas informações gerais para que possamos explorar a relação entre as idéias
defendidas nesse periódico e o industrialismo de Say.

33
Para informações bibliográficas sobre Dunoyer, consulte Adenot (1907), Leroux (2015), Hart (1997) e
Liggio (1977).
34
Para informações bibliográficas sobre Comte, consulte o artigo escrito por G. Molinari em Coquelin e
Guillaumin (Eds.) (1852) , além de Mignet (1845) e Leroux (2015).

218
O jornal se propunha a defender o constitucionalismo tanto de ataques vindos dos
partidários de Napoleão quanto da monarquia restaurada. Suas páginas defendiam a
liberdade de opinião, a liberdade de ensino, criticavam a escravidão, além de temas
políticos e intelectuais. Restabelecida a censura, ainda em 1814, Comte se recusa a se
submeter, desafiando o governo a revelar seu desrespeito à liberdade de imprensa que
constava na carta. Essa postura desafiadora rendeu ao jornal por um breve período algo
como uma exclusividade de usufruto de liberdade de pensamento, até que nova
legislação regulamentasse a censura através dos dispositivos que pretendem combater
abusos da liberdade de expressão.
A independência do jornal gerou oposição cerrada aos seus editores. Embora Comte
(1815) tenha publicado um panfleto intitulado “Da Impossibilidade de Estabelecer uma
Monarquia Constitucional sob um chefe Militar, em especial Napoleão”, ele foi acusado
de conspirar pela volta do imperador. Durante o período logo anterior aos cem dias do
segundo governo napoleônico, os juízes do caso, nada independentes, se colocaram em
situação delicada, indecisos sobre que postura deveriam tomar a respeito de Comte
diante da incerteza sobre qual força política afinal triunfaria.
O jornal foi alvo contínuo de ataque do governo. Seus autores se envolveram em
diversos processos, o quinto volume foi aprendido pela polícia e o sétimo confiscado,
até que a publicação fosse descontinuada em 1815.
Bloqueada a atividade jornalística, Comte e Dunoyer se dedicam ao estudo. Nessa
atividade, se deparam com as idéias de Say, Destutt de Tracy e outros economistas,
além de filósofos como Locke, Condillac e Bentham. Comte, em particular, solicita a
tutoria do próprio Say. Desse contato resulta o casamento de Comte com Adrienne Say,
filha do economista, em 1818.
Munidos das ferramentas proporcionadas pela teoria econômica, Comte e Dunoyer
retomam seu jornal em 1817, agora com o nome Le Censeur Europeén, cuja epígrafe
era “paz e liberdade”. No jornal, defendiam uma perspectiva industrialista, segundo a
qual a prosperidade ao longo da história está associada à progressiva redução das
amarras impostas ao livre exercício da indústria humana produtiva, amarras essas
criadas por exploradores improdutivos. Entre os temas específicos abordados na
publicação se encontram a redução do exército, a diminuição do governo e a expansão
do comércio e liberdade de ocupações.
Na qualidade de jornal independente do governo, continua a luta contra a censura até
seu fechamento definitivo em 1919. Em 1820 o assassinato do duque de Berry é
utilizado como pretexto para a aprovação de leis draconianas contra a liberdade de
imprensa. No caso do Censeur Europeén, o tamanho exagerado dos artigos e a falta de
periodicidade dos exemplares eram adotados como estratégias para contornar a censura.
Sob o pretexto de uma denúncia de irregularidade relativa à publicação, é expedido um
mandado de prisão para ambos. Dunoyer é preso, mas Comte consegue escapar, se
exilando com sua esposa em Genebra e depois Lousanne, onde passou a lecionar
Direito. Mais tarde, mediante a pressão francesa por sua extradição, se muda para

219
Londres, para não constranger o governo do cantão suíço. Na Inglaterra conhece
Bentham e convive com a família Mill.
Separados e proibidos de atuar no jornalismo, se dedicam a sistematizar suas idéias na
forma de livros acadêmicos. Dunoyer publica em 1825 A Indústria e a Moral
Consideradas em Relação à Liberdade e em 1830 seu Novo Tratado de Economia
Social. Mais tarde, em 1843, publica sua obra mais conhecida, Da Liberdade do
Trabalho, que amplia seus trabalhos prévios. Comte, por sua vez, publica em 1826 seu
Tratado de Legislação e em 1834 o Tratado sobre a Propriedade.
Prescrita a pena, Comte volta à França em 1828, mas não consegue obter licença para
exercer a advocacia. Depois da revolução de julho, é eleito deputado. Em 1832 se torna
membro da reestabelecida Academia de Ciências Morais e Políticas, da qual se torna
secretário em 1834. Comte morre em três anos depois, aos 55 anos de idade. Dunoyer,
por sua vez, teve uma vida mais longa. Depois de exercer alguns cargos administrativos,
também vira membro da Academia de Ciências Morais e Políticas, em 1832. Dez anos
depois, participa da criação da Sociedade de Economia Política, tornando-se mais tarde
um de seus presidentes, além de colaborar com textos sobre livre comércio no Journal
des Economistes.
As idéias desenvolvidas por Comte e Dunoyer, nas duas versões do jornal e em seus
livros, versam sobre os mesmos temas. Sendo assim, usaremos múltiplas fontes em
nossa exposição, sem, porém, explorar as diferenças entre diferentes versões. Em
particular, a caracterização de seus escritos iniciais como atividade jornalística é algo
enganadora: embora seus autores adotem nesses textos retórica mais contundente, algo
natural em se tratando de discussão política, os longos ensaios publicados em seus
jornais abordam teses abstratas e tratam de discussões políticas, econômicas, filosóficas,
jurídicas e históricas.
Iniciemos com a descoberta da teoria econômica de Say por parte dos dois autores. No
Censeur, Comte e Dunoyer se opõem às pretensões absolutistas do monarca a partir de
uma perspectiva legal, constitucional. No período de estudo entre os dois jornais,
quando seus autores travam contato com a teoria econômica, Comte e Dunoyer
modificam sua análise mediante o acréscimo de considerações econômicas derivadas do
industrialismo dos ideólogos. A influência de Say se manifesta então nos textos do
Censeur Europeén. Em particular, nessa publicação encontramos uma interpretação da
história como uma luta entre grupos de produtores e exploradores. Nessa concepção,
cada conquista da indústria ou atividade produtiva modifica a sociedade nas esferas
moral e intelectual. O progresso civilizatório, por sua vez, abre espaço para novos
ganhos em termos de liberação de forças produtivas. De fato, como relata Hart (1990), a
discussão da escravidão efetuada por Comte inicialmente tinha base moral, mas após
travar contato com a teoria econômica, esse autor busca razões para o fim da prática
considerando também o caráter antieconômico da escravidão, quando comparado com o
trabalho livre.
A influência de Say se manifesta já no primeiro volume do Censeur Europeén, em uma
resenha de cento e doze páginas que Comte (1817a) faz do Tratado daquele autor. A

220
resenha não se restringe a sumarizar a obra, mas se preocupa em estabelecer sua
importância para o desenvolvimento da sociedade. Para Comte (1917a, parte 1, p. 168),
esse desenvolvimento depende do confronto entre dois fatores: a força e a opinião
Apenas o conhecimento sobre os verdadeiros processos causais na sociedade poderia
servir como base para a resistência do crescimento do poder. Sem uma opinião sobre os
reais interesses dos indivíduos, a sociedade não seria bem governada e a força se
expandiria sem resistência. O próprio jornal que contém a resenha coloca para si a
liderança nessa resistência intelectual contra os avanços do poder arbitrário.
A economia de Say, por sua vez, ao revelar que a prosperidade de um país depende do
grau de liberdade existente em certo tempo e local para que a indústria humana possa se
dedicar a produzir coisas úteis, fornece uma base concreta para a comparação entre
diversos sistemas de legislação e instituições políticas. A indagação sobre quais fatores
estimulam o desenvolvimento da indústria humana forneceria, portanto, uma base
científica, mais promissora, para a discussão de temas sociais.
Como o industrialismo se torna o próprio centro do sistema explanatório de Comte
(1817a, parte 1, p. 225), seu futuro sogro é considerado por ele como o economista mais
relevante a considerar:
O estudo do trabalho do Sr. Say, ao mostrar como as nações chegam à prosperidade
ou à miséria, ensinará aos poucos e, consequentemente, aos governos, a direcionar
melhor o uso de seus meios. Adam Smith desenvolveu com grande sagacidade um
grande número de verdades sobre esse assunto; mas é apenas nas mãos do Sr. Say
que a economia política se tornou uma ciência de verdade: é a ele que devemos as
felizes mudanças que ocorrerão na França e em muitos outros países, seja em
economia política ou legislação.35
Independente da apreciação que o leitor tenha sobre a importância de Say, comumente
retratado como mero divulgador de Smith, para Comte e demais economistas franceses
do período ele teria fornecido a chave para as mudanças que eles pretendem adotar em
sua sociedade, rumo a uma situação mais compatível com o desenvolvimento
econômico.
Para Comte (1817a, parte 2, p. 220), como o desenvolvimento depende da opinião e ao
mesmo tempo Say teria revelado as causas da prosperidade, sua obra seria crucial para
que os intelectuais e a opinião pública entendam as diferenças econômicas fundamentais
entre o grau de civilização existente entre os povos antigos e modernos, para que os
erros observados depois da revolução francesa não fossem repetidos.
Dunoyer (1827), por sua vez, nos fornece um retrato um pouco mais amplo das origens
do industrialismo desenvolvido por ele e seu colega. Como Comte, condena a discussão
política circunscrita à discussão de formas de governo, que não discuta o objetivo de
trazer prosperidade e os fatores culturais que influenciam esse objetivo.
35
L'étude de l'ouvrage de M. Say, en faisant voir comment les nations arrivent à la prospérité ou tombent
dans la misère , apprendra aux peu ples, et par suite aux gouvernemens, à mieux diriger l'emploi de leurs
moyens. Adam Smith avait développé avec beaucoup de sagacité un grand nombre de vérités sur cette
matière; mais ce n'est que dans les mains de M. Say que l'économie politique est devenue une véritable
science: c'est à lui qu'on devra les heureux changemens qui s'opéreront en France et dans beaucoup
d'autres pays, soit en économie politique , soit en législation.

221
Dunoyer (1827, p. 373) aponta três autores cujas idéias o influenciaram. Em primeiro
lugar, temos o contraste feito por Constant (1814) entre os povos guerreiros da
antiguidade e os povos comerciantes modernos. Entre estes últimos, a sociedade não
possui objetivos diferentes daqueles buscados por seus próprios habitantes, ou seja, a
prosperidade de cada um. Em segundo lugar, Dunoyer menciona como influência a
narrativa da ascensão dos trabalhadores na ciência, no comercio e na indústria descrita
pelo Conde de Montlosier (17565-1838) em sua história da monarquia francesa. Em
terceiro lugar, Dunoyer lista Say, cuja explicação sobre as causas da prosperidade
identifica a indústria com qualquer tipo de trabalho voltado à produção de algo útil. Este
último autor é criticado apenas por não ter percebido o potencial de sua teoria
econômica para servir por base da análise mais ampla da política, tarefa que o próprio
Dunoyer pretende empreender.
O industrialismo derivado de Say implicaria, para Dunoyer (1827, p. 384-385), em uma
defesa da liberação das forças produtivas da sociedade das amarras que entravam seu
desenvolvimento:
uma sociedade na qual todas as profissões são industriais, isto é, onde todas elas são
produtivas de utilidade, já que a indústria é a produção de utilidade; na qual todos
estão livres da injustiça e da violência, já que a injustiça e a violência são destrutivas
e improdutivas.36
Tal doutrina possui duas vertentes bastante distintas. Para Dunoyer, a vertente do
industrialismo defendida por ele e Charles Comte difere significativamente da vertente
mais conhecida do industrialismo, esposada por Saint-Simon (1760-1825).
A vertente rival, para Dunoyer, restringiria artificialmente a classe das pessoas
industriosas aos cientistas, industriais e artistas. Essa observação, aparentemente sem
importância, revela, no entanto, a diferença entre uma concepção de sociedade que
pretende planejá-la conscientemente, de cima para baixo, e uma concepção evolutiva,
para a qual a sociedade se organiza espontaneamente, de baixo para cima.
Segundo esse contraste, os objetivos industrialistas poderiam ser alcançados pela
competição descentralizada ou pela direção central. Na doutrina de Saint-Simon, esse
contraste se manifesta no embate entre os sistemas denominados crítico e orgânico,
conforme tenhamos competição descentralizada ou planejamento centralizado. Para
Dunoyer (p. 391), em contraste, não seria verdade que a crítica e a competição levariam
à anarquia, de maneira que os objetivos industrialistas requereriam organização
centralizada das atividades.
A crítica ou a competição, para Dunoyer, assim como para Popper e Hayek no século
vinte, seriam cruciais para que ocorra aprendizado por eliminação de erros. É
interessante citar uma passagem mais longa de Dunoyer (1827, p. 391-392), que traça o
paralelo explícito entre ciência e mercado no que diz respeito ao papel da crítica:

36
une société où toutes les professions sont industrielles, c'est-ii-dire, ou toutes sont productives d'utilite,
puisque industrie c'est production d'utilite; ou toutes sont exemptes d'injustice et de violence , puisque
I'injustice et la violence sont destructives et non productives.

222
Esse estado de concorrência, dizem eles, resulta apenas na anarquia de sentimentos e
idéias, na alteração da unidade social e assim por diante. Eles não esgotam esse tipo
de crítica feita a ela. E, no entanto, por uma contradição singular, eles admitem, ao
mesmo tempo, que a discussão livre é necessária, em certas épocas, quando a
sociedade tende a se mover de uma doutrina para outra, de um estado imperfeito a
uma condição melhor. Mas se a discussão tem, por vezes, o poder de produzir
esclarecimento, se ela pode reunir os espíritos à verdade, se é da natureza das coisas
que ideias comuns surgem do conflito de opiniões divergentes, o que significa a
crítica à liberdade, e quando ela começa a ser anárquica? Há, no curso dos séculos,
um único momento no qual a sociedade não tenda, em uma infinidade de pontos, a
modificar suas idéias, a mudar sua maneira de ser? Existe um momento, portanto,
onde não há nada de bom para se esperar da liberdade? Acusar a liberdade do que
resta de confusão nas doutrinas morais e sociais é ver o mal em um remédio, e
reclamar precisamente daquilo que faria esse mal cessar.
O erro da escola orgânica é acreditar que a liberdade é apenas de utilidade
temporária. Haverá um tempo, diz ela, quando todas as ciências serão positivas; e
não haverá mais necessidade de liberdade quando todas as ciências forem positivas:
não discutimos mais sobre as verdades demonstradas. Nós não disputamos mais o
que é definitivamente demonstrado; mas isso sempre permanece assim? O que
parece ser, sempre parecerá? Poder-se-ia responder que as coisas que parecem mais
bem estabelecidas nas ciências experimentais não serão modificadas algum dia por
novas experiências? Em vez de dizer que nosso conhecimento se tornará completo e
certo, podemos responder corajosamente que sempre restará algo para descobrir ou
retificar. É, portanto, da natureza das coisas que a liberdade de exame é
perpetuamente necessária. A sociedade, que vive especialmente de ação, age a todo
momento de acordo com as noções que possui; mas, para agir melhor, ela precisa
trabalhar constantemente para aperfeiçoar seu conhecimento, e ela só pode ter
sucesso favorecendo a liberdade: pesquisa, investigação, exame, discussão,
controvérsia, tal é o seu estado natural. E assim será, mesmo que seu conhecimento
seja mais seguro e amplo.37

37
Cet etat de concurrence, disent-ils, n'aboutit qu'a I'anarchie des sentimens et des idées, qu'a
l'altération de l'unité sociale, etc. Ils ne tarissent pas dans les reproches de ce genre qu'ils lui font. Et
cependant, par une contradiction singulière, ils avouent, en meme tems, que la libre discussion est
nécessaire à de certaines époques, et lorsque la société tend a passer d'une doctrine a une autre, d'un etat
imparfait a un état meilleur. Mais, si la discussion a quelquefois le pouvoir de produire la lumière, si elle
peut rallier les esprits à la verité, s'il est dans la nature des choses que des ideés communes finissent par
sortir du conflit des opinions divergentes, que signifie le reproche fait à la liberté, et quand commence-t-
elle a etre anarchique? Est-il, dans le cours des siècles,un seul instant où la société ne tende, sur une
multitude de points, a modifier ses ideés, à changer sa manière d'etre? En est-il un , par conséquent, où
elle n'ait quelque bon office a recevoir de la liberté? Accuser la liberté de ce qui reste encore de
confusion dans les doctrines morales et sociales, c'est voir le mal dans le remède, et se plaindre
precisement de ce qui doit le faire cesser. L'erreur de I'école organique est de croire que la liberté n'est
que d'une utilité provisoire. Un tems viendra, dit-elle, où toutes les sciences seront positives; et l'on
n'aura plus besoin de liberté quand toutes les sciences seront positives: on ne dispute plus sur les verités
démontreés. On ne dispute plus sur ce qui est démontré sans doute ; mais jamais tout le sera-t-il ? Ce qui
paraît l'etre, le paraîtra-t-il toujours? Peut-on répondre que les choses qui semblent le mieux établies,
dans les sciences expérimentales, ne seront pas modifieés quelque jour par de nouvelles experiences? Au
lieu de dire que nos connaissances deviendront complètes et certaines, on peut hardiment repondre
qu'elles laisseront toujours quelque chose à découvrir ou à rectifier. II est donc dans la nature des choses
que la liberté d'examen soit perpétuellement nécessaire. La société, qui vit surtout d'action, agit, a
chaque instant, d'après les notions qu'elle possède; mais, pour agir de mieux en mieux, elle a besoin de
travailler constamment à perfectionner ses connaissances, et elle n'y peut réussir qu'a la faveur dela
liberté : recherche, enquête, examen, discussion, controverse, tel est son état naturel, et tel il sera
toujours, meme alors que ses connaissances auront acquis le plus de sûreté et d'étendue.

223
A despeito do empirismo comum aos economistas do período, para o qual a ciência
estabelece pela observação verdades definitivas, Dunoyer utiliza aqui o mesmo
argumento falibilista utilizado por Hayek (1979) em 1952 para criticar Saint-Simon e A.
Comte. Para Hayek, a crença na possibilidade de estabelecer verdades finais em ciência
explicaria a fé na viabilidade da organização hierárquica da sociedade a partir de
preceitos cientificamente estabelecidos. Paradoxalmente, mostra Hayek, o
estabelecimento de autoridades em ciência reestabelece o dogmatismo originalmente
rejeitado pelo racionalista não falibilista, pois a liberdade perde seu valor instrumental
de contestar dogmas uma vez que se acredita em procedimento inequívoco de
identificação da verdade pela ciência.
Justificada a forma como os objetivos industrialistas deveriam ser alcançados na opinião
de Dunoyer, vejamos como ele e Charles Comte interpretam a evolução das sociedades.
Esse programa de investigação é esboçado em um outro ensaio de Comte (1817b)
contido no primeiro volume do Censeur Europeén, que procura explicar as causas da
instabilidade política francesa. Nesse artigo, Comte argumenta que essa instabilidade
não seria consequência de erros tributáveis às formas de governo adotadas ou devido à
má qualidade de seus governantes, como atesta o grande número de constituições e de
facções ocupando o poder desde a Revolução Francesa. Para ele (1817b, p. 70), dar uma
nova constituição à nação seria equivalente a presentear um livro de máximas a uma
criança que o folheia rapidamente, para deixá-lo de lado sem jamais se interessar
novamente por ele. O entendimento do fracasso em estabelecer um governo funcional,
compatível com o desenvolvimento econômico, seria na verdade tributável à falta de
conhecimento das pessoas sobre as causas econômicas da prosperidade.
Além de rejeitar um diagnóstico calcado no formato das instituições políticas e salientar
a importância das idéias, Comte e Dunoyer não abraçam nenhuma teoria reducionista,
que adote um fator explanatório último aos fenômenos sociais, seja de natureza
econômica, política, psicológica ou institucional. Fatores econômicos estão sem dúvida
no centro de seu sistema. Mas, embora rejeite uma abordagem institucional que se
limite à explicações baseadas no formato das organizações políticas, adota uma variante
de institucionalismo no sentido mais amplo desse termo, que inclui o que Douglas
North denomina instituições informais.
Essa variante de institucionalismo pode mais apropriadamente ser classificada como
storchiana, embora o próprio Comte não explore a relação entre suas teses e aquelas do
economista russo. Mas, como na obra deste último, Comte também trata da coevolução
da economia e da civilização, que inclui o conhecimento e a moral dos membros da
sociedade. Em seus textos, não existe de fato um processo explanatório unidirecional,
com fatores econômicos ou psicológicos determinando exogenamente a marcha da
história.
Na versão de Comte do institucionalismo industrialista, a evolução da sociedade é
apreciada em termos de respeito aos direitos de propriedade. Contrariando o conselho
de seu futuro sogro, que prefere deixar de lado justificativas metafísicas dos direitos de
224
propriedade em favor do estudo positivo das consequências de sua observância, Comte
adota uma perspectiva lockeana sobre o tema, que associa a aquisição legítima de
propriedade ao emprego de trabalho ou aquisição não violenta. Propriedade é definida
por Comte (1817b, p. 6-7) em um sentido literal, como característica de algo, que não
pode ser dissociada do algo em si:
Em geral, queremos dizer com a palavra propriedade, aquilo que é apropriado; o que
pertence; o que faz parte; o que está tão intimamente relacionado a uma coisa, que
não pode ser separado dela, sem que essa coisa seja destruída. Assim, as faculdades
do homem pertencem a ele, são parte essencial de seu ser, são sua propriedade, pois
é propriedade de tal árvore dar frutos. Se as faculdades do homem pertencem a ele,
ou são parte de si mesmo, o produto de suas faculdades também pertence a ele.38
Munido desse conceito, Comte investiga ao longo da história em que medida as relações
interpessoais respeitam ou não os direitos de propriedade e como isso influencia a
atividade produtiva em comparação com a atividade apropriadora de produção alheia.
Esse exame da história pinta um quadro no qual a história dos povos pode efetivamente
ser descrita como uma luta entre exploradores e explorados. De fato, para Comte (p. 36)
“Existem entre todos os povos dois partidos, o de homens ociosos que desejam viver à
custa de outros, e o de homens industriosos que querem que os produtos de sua indústria
sejam respeitados.” Por esse motivo, Raico (2002, p. 193) denomina o ensaio de Comte
um verdadeiro “manifesto industrialista”, em alusão ao Manifesto Comunista de Marx e
Engels.
Nos tempos primitivos, segundo Comte (1817, p. 9), os homens teriam vivido dos frutos
espontâneos da natureza ou do roubo e extermínio dos vizinhos industriosos. Em um
“segundo estágio da barbárie”, em vez de aniquilar os outros, passa a escravizá-los. A
antiguidade clássica, cujos filósofos geram tanta admiração nos contemporâneos de
Comte, é profundamente desprezada por este. Na Grécia e em Roma os exploradores
que viviam da indústria alheia justificariam ideologicamente sua rapinagem através do
desprezo pela atividade produtiva, pelo dinheiro e pelo comércio.
Na Idade Média, os direitos de propriedade tampouco seriam observados de forma
significativa. Guerreiros que se tornam governantes viveriam da exploração dos
viajantes, como descreve o papa Gregório VII, que compara os reis aos ladrões: “aquele
que deveria ser o suporte da justiça e o executor das leis, é o primeiro a quebrá-las pelo
seu saque” (p. 11).
A viagem de clérigos e comerciantes seria insegura nos tempos medievais devido à
ubiquidade do desrespeito aos direitos de propriedade. Os reis construiriam castelos nas
passagens inevitáveis para facilitar sua atividade predatória. Na descrição de Comte (p.
14), a ...

38
On entend , en général , par le mot propriété, ce qui est propre ; ce qui appartient; ce qui fait partie
de; ce qui est tellement lié à une chose, qu'on ne peut l'en séparer, sans que cette chose soit détruite.
Ainsi les facultés de l'homme lui appartiennent, elles font une partie essentielle de son être , elles sont sa
propriété y comme c'est la propriété de tel arbre de porter des fruits. Si les facultés de l'homme lui
appartiennent, ou font partie de lui-même , le produit de ses facultés lui appartient également.

225
... pilhagem das pessoas que negociavam por terra ou água foi executada com tanta
regularidade que os conquistadores tinham castelos de onde saíam armados e para
onde levavam seus despojos. Os escritores da época nomeiam esses castelos de
receptacula e, com frequência, cavernas de ladrões, speluncoe latronum.39
Na Idade Moderna, a centralização do poder fez com que o roubo fosse dificultado.
Porém, a atividade exploradora apenas muda de mãos e a propriedade continua violada
tendo em vista que o roubo é terceirizado. Em vez de serem assaltados nas estradas, os
membros produtivos da sociedade “ Eram obrigados a declarar o que possuem; e iam
em suas casas tomar o que queriam e, se não fizessem uma declaração exata, eram
punidos como os puniam os senhores que os trancavam em suas fortalezas (p. 27)”.
Além de descrever como a atividade produtiva não florescia diante da ação de castas
ociosas, Comte (p. 28-29) enfatiza mais uma vez o elemento ideológico que justifica o
roubo. Entre os nobres, o trabalho é algo indigno, assim como na antiguidade clássica:
No século XVIII, no século das luzes e da filosofia, o princípio da propriedade não é
mais conhecido nem mais respeitado do que no século XVII. A casta dominante
preserva, nas formas de civilização, as idéias e o caráter de seus ancestrais. Como
eles, honram apenas o estado de ócio, violência e rapina. Ela despreza todo trabalho
produtivo; ela considera uma espécie de honra consumir o que foi produzido pelos
outros; em uma palavra, ela considera ignóbeis as riquezas que o homem adquire
pelo suor de seu rosto e gloriosas aquelas que ele adquire derramando o sangue de
seus semelhantes.40
O preconceito nobilitário descrito nessa passagem, típico da classe ociosa, se reproduzia
ainda no pensamento dos intelectuais modernos, inspirados pelos clássicos (p. 34).
Ainda tratando da ideologia, se os exploradores forem mais fortes do que os membros
produtivos da sociedade, a preservação da exploração é descrita como manutenção da
ordem. Se os dois grupos mostram equilíbrio de forças, surgem revolucionários,
rebeldes e escravos revoltosos, como Spartacus. Quando o grupo industrioso triunfa, os
membros da “classe devoradora” são classificados como opressores e tiranos.
A Revolução Francesa é interpretada por Comte em termos da luta de classe entre a
elementos produtivos e devoradores. O governo de Napoleão, por sua vez, é descrito
como o mais funesto que se abateu sobre o país, não só pelas perdas causadas pelas
guerras, mas também pela multidão de pessoas que gostariam de ocupar um lugar na
estrutura burocrática centralizada, sem na verdade oferecer nenhum serviço efetivo em

39
Le pillage des personnes qui faisaient le commerce par terre ou par eau, s'exécutait avec d'autant plus
de régularité, que les dominateurs avaient des châteaux d'où ils partaient armés, et où ils transportaient
leur butin. Les écrivains du temps nomment ces châteaux receptacula , et souvent, cavernes de voleurs ,
speluncoe latronum.
40
Dans le dix-huitième siècle , dans le siècle des lumières et de la philosophie , le principe de la
propriété n'est ni mieux connu, ni plus respecté que dans le dix-septième. La caste dominante conserve ,
sous les formes de la civilisation, les idées et le caractère de ses ancêtres. Comme eux, elle honore
exclusivement un état d'oisiveté, de violence et de rapine. Elle méprise tout travail productif ; elle se fait
une espèce d'honneur de consommer ce qui a été produit par d'autres; en un mot , elle trouve ignobles les
richesses que l'homme acquiert à la sueur de son front, et glorieuses celles qu'il acquiert en versant le
sang de ses semblables.

226
troca. Isso nos leva de volta ao problema posto no início do artigo de Comte: a história,
que tem sido uma sequência de lutas de classes, estaria condenada a repetir o padrão?
A solução otimista encontrada por Comte (p. 50) apela para a interação entre indústria e
civilização. A expansão da indústria geraria ganhos civilizacionais ao destruir os
sentimentos de dominação existentes:
A indústria, ao destruir a dominação exercida por uma parte da raça humana sobre a
outra, ou, melhor dizendo, ao fazer desaparecerem os senhores e escravos, criou
assim novos homens, estranhos aos preconceitos e hábitos de uns e a degradação ou
baixeza dos outros. Aquele que encontra no exercício de suas faculdades os meios
de prover seu sustento sem prejudicar nenhum de seus semelhantes, não é inimigo
de ninguém, e seus únicos inimigos são aqueles que desejam colocar obstáculos à
sua indústria, ou para roubar os produtos. Qualquer sentimento de dominação lhe é,
portanto, estranho, e ele não pode conhecer o que são o ódio ou as pretensões
nacionais.41
A hipótese adotada por Say de que as trocas envolvem valores iguais, que nesse autor
tinha motivação metodológica e moral, passa então a adquirir significado político e
histórico. A distinção entre atividade produtiva e predadora passa a ser definida em
termos da presença ou ausência de trocas mutuamente acordada entre serviços
equivalentes.
A interpretação da história em termos de parasitismo, ou seja, como uma luta entre
exploradores e produtores é retomada por Dunoyer, que a sistematiza em termos de uma
divisão em períodos mais definidos, cuja sucessão mostra uma lenta marcha de
emancipação da indústria.
Antes de prosseguir com o exame dessas idéias, é necessário que façamos uma pausa
para justificar nossas escolhas dos textos examinados. As obras maduras de Comte e
Dunoyer, expressas no formato de volumosos livros de cunho acadêmico, utilizam de
fato as idéias econômicas industrialistas que estamos examinando nesta seção. A teoria
econômica, porém, é vista apenas como ferramenta para a análise jurídica e histórica.
Como a teoria econômica tem papel secundário e está diluído em livros escritos em
múltiplos volumes, não cabe em um trabalho de história do pensamento econômico um
exame detalhado de seu conteúdo. O Tratado de Legislação de Comte (1827), por
exemplo, trata das diversas justificativas políticas e filosóficas dos diferentes sistemas
de legislação, como o conceito de contrato social, vontade geral, utilitarismo ou
moralidade calcada em sistema religioso, investigando quais são seus efeitos em termos
de desenvolvimento histórico da indústria em diversos povos em diferentes séculos. Seu
Tratado da Propriedade (1834), embora trate da liberdade e do conceito de direito de

41
L'industrie , en détruisant la domination qu'exerçait une partie de l'espèce humaine sur l'autre , ou ,
pour mieux dire , en faisant disparaître les maîtres et les esclaves , a donc créé de nouveaux hommes ,
étrangers aux préjugés et aux habitudes des uns, et à l'avilissement ou à la bassesse des autres. Celui qui
trouve dans l'exercice de ses facultés, les moyens de pourvoir à sa subsistance sans nuire à aucun de ses
semblables, n'est l'ennemi de personne , et ne peut avoir pour ennemis que ceux qui veulent mettre des
entraves à son industrie, ou lui en ravir les produits. Tout sentiment de domination lui est donc étranger ,
et il ne peut savoir ce que c'est que les haines ou les prétentions nationales.

227
propriedade, em particular da terra, algo que interessa ao economista, também adota
perspectiva eminentemente jurídica.
Os livros de Dunoyer, por sua vez, são tão extensos quanto os de Comte. Seu último
livro reelabora e detalha os mesmos temas encontrados em obras prévias, como nota seu
autor (1845, v.1, p. xv). De fato, a tipologia de etapas do desenvolvimento histórico
encontrada em seu Da Indústria e da Moral (1825) reaparece de forma ligeiramente
modificada em Da Liberdade do Trabalho (1845). Esta última obra também contém os
temas econômicos tratados no Novo Tratado de Economia Social (1830). Sendo assim,
optaremos pelo exame de sua obra mais recente e conhecida, sobre a liberdade do
trabalho. Dela, investigaremos as teses gerais do livro e detalharemos apenas uma das
etapas do processo de evolução histórica, aquela na qual o autor acreditava se encontrar,
já que no exame de Comte utilizamos exemplos da Antiguidade e Idade Média.
Para aqueles preocupados com a possibilidade de que certas teses econômicas
significativas de Dunoyer tenham sido deixadas de lado com essa escolha, a leitura dos
textos de Villey (1899) e Adenot (1907), dois livros dedicados a expor a obra
econômica de Dunoyer, revelam que esse risco é pequeno. Por fim, uma análise mais
detalhada da discussão de Comte sobre a escravidão ou das demais etapas de
desenvolvimento contidas em Dunoyer (1825) pode ser encontrada em Hart (1990).
O primeiro volume do Liberdade do Trabalho de Dunoyer (1845), como o artigo de
Comte que examinamos acima, desenvolve uma interpretação da história em termos de
uma luta entre produtores e exploradores. Além de dividir essa luta em etapas mais bem
definidas e detalhadas, o autor pretende, mais do que Comte, explicar porque a evolução
histórica implicaria em progressivo aumento da liberdade, rumo ao ideal industrialista.
Nas palavras do próprio Dunoyer (1845, vol 1, p. vii), o objetivo da obra seria
Buscar experimentalmente sob quais condições, segundo quais leis, sob a influência
de quais causas os homens conseguem se valer de maior liberdade, ou seja, com
maior poder, dessas forças, dessas faculdades naturais cujo emprego constitui o
trabalho humano: tal é puramente o objeto [desta obra].42
Por “experimentalmente” Dunoyer pretende convencer o leitor de que sua abordagem
sobre a evolução das instituições não é normativa. Os cientistas sociais não deveriam
tratar dos direitos e deveres sob conjuntos específicos de regras. Em vez disso, deveriam
explicar o comportamento individual nesses cenários a partir de causas mais
fundamentais.
Nessa citação, fica clara a importância para o autor da tendência ao crescimento da
liberdade, que ele crê que o exame da história revelaria. Nota-se, porém, que Dunoyer
identifica liberdade com poder, tal como fizeram anteriormente Condillac e Destutt de
Tracy.

42
Rechercher expérimentalement dans quelles conditions, suivant quelles lois, sous l'influence de quelles
causes les hommes parviennent à se servir avec le plus de liberté, c'est-à-dire avec le plus de puissance,
de ces forces, de ces facultés naturelles dont la mise en action constitue le travail humain, tel est
purement cet objet.

228
A “liberdade do trabalho”, devemos ainda destacar, se relaciona com o aumento do
potencial produtivo da indústria. Em sua visão econômica, a prosperidade seria
explicável em termos da progressiva retirada de empecilhos que limitam o potencial
criativo do trabalho.
No contexto desse programa de investigação, a teoria econômica se manifesta, na obra
de Dunoyer, na forma mais pura de plutologia. Das três subdivisões usuais da ciência da
riqueza, se Rossi já havia suprimido o consumo, Dunoyer desconsidera também a
distribuição. Em seus livros, a Economia diz respeito apenas à capacidade de produção
de riqueza e esta, por sua vez, é reduzida ao exame dos fatores físicos, humanos e
culturais que afetam a produtividade do trabalho. Esta, finalmente, passa a se manifestar
de forma mais ampla conforme se amplia a liberdade.
Examinemos mais de perto a definição de liberdade adotada pelo autor. Sua definição,
em nenhum momento separa as noções de liberdade negativa e positiva. Se algum
trecho do texto enfatiza um desses sentidos, algumas linhas depois aparece o outro. Eis
a definição de Dunoyer (1845, vol. 1, p. 24):
O que eu chamo de liberdade neste livro é o poder que o homem adquire de usar
suas forças mais facilmente à medida que se liberta dos obstáculos que
originalmente impediam o exercício. Eu digo que ele é mais livre na medida em que
ele é mais desimpedido das causas que o impediram de usá-las, que ele removeu
ainda mais essas causas, que ampliou e desbloqueou a esfera de sua ação.43
Liberdade é definida, portanto, como o poder de realização dos propósitos humanos,
derivado da ausência de empecilhos.
Vários autores contemporâneos criticaram o uso de uma mesma palavra - liberdade -
para denotar duas coisas diferentes, devido ao potencial de gerar confusão entre esses
dois sentidos. Machlup (1969, p. 126), por exemplo, afirma que:
Uma distinção de liberdade que nega a diferença entre não interferência e poder
efetivo (ou bem-estar ou satisfação de necessidades) destrói o significado essencial
da palavra "liberdade". Se for definida como a capacidade ou oportunidade de se
obter o que se quer, somos impedidos de analisar a importante questão que indaga se
o desenvolvimento dessa capacidade ou oportunidade é melhor servida pelo
restricionismo ou pela não interferência, pelo controle coletivo ou pela liberdade
individual.44
A confusão entre meios e fins inerente à mistura dos dois conceitos se manifesta de fato
nos usos que Dunoyer confere ao conceito de liberdade. Como quer mostrar que a
liberdade aumenta ao longo do tempo, argumenta que a riqueza e a civilização
engendram um processo de retroalimentação positiva que implica em aumento da

43
Ce que j'appelle liberté, dans ce livre, c'est ce pouvoir que l'homme acquiert d'user de ses forces plus
facilement à mesure qu'il s'affranchit des obstacles qui en gênaient originairement l'exercice. Je dis qu'il
est d'autant plus libre qu'il est plus délivré des causes qui l'empêchaient de s'en servir, qu'il a plus
éloigné de lui ces causes, qu'il a plus agrandi et désobstrué la sphère de son action.
44
.A definition of freedom which negates the difference between non-interference and effective power (or
welfare or want satisfaction) destroys the essential meaning of the word ‘freedom’. If it is defined as the
capacity or opportunity to get what one wants, we are barred from analyzing the important question
whether the development of this capacity or opportunity is better served by restrictionism or by non-
interference, by collective control or by individual freedom.

229
liberdade nos seus dois sentidos. Em particular, o ganho de poder individual implicaria
em redução de obstáculos, como veremos em seguida.
Embora seus exemplos históricos enfatizem de fato a violência política, a análise inicial
do livro, mais abstrata, enfatiza os obstáculos internos, morais, ao aumento da liberdade.
Um espírito livre não estaria sujeito à violência, doenças ou paixões. As fontes originais
das restrições à liberdade seriam então (p. 26) a constituição física do homem, a
ignorância e inexperiência que geram inércia e ainda a paixão, que gera ação
impensada. As origens das ameaças à liberdade enfatizadas são morais, inerentes ao
próprio indivíduo. Dunoyer (p. 27) recomenda, de acordo com isso, que as pessoas
busquem usar sua liberdade para desenvolver suas forças e não prejudicar a si mesmos
ou aos demais.
Se a liberdade gera mais liberdade, a violência limitaria a liberdade ao convidar
retribuição. Isso ocorreria mesmo sob o ponto de vista de um déspota. Dunoyer (p. 29)
ilustra seu ponto com uma ironia dirigida a Napoleão: “‘Bom! Eu irei a Madri, irei a
Viena; com um exército de quinhentos mil homens, podemos fazer o que quisermos’.
Com um exército de quinhentos mil homens, pode-se morrer, cativo e desamparado,
numa rocha deserta no meio do Atlântico”.
Se liberdade e violência gerariam reações da mesma natureza, Dunoyer (p. 39) é levado
a rejeitar o suposto trade-off entre liberdade e segurança. Historicamente, seriam as
sociedades despóticas as mais sujeitas a turbulências: “Onde quer que os homens
queiram oprimir os outros, há violência, desordem e causa de desordem; onde ninguém
demonstra pretensões dominantes, onde quer que haja liberdade, há descanso e garantia
de descanso”.
Definida a liberdade como poder de ação na ausência de obstáculos, Dunoyer lista quais
seriam os fatores que afetam o potencial de desenvolvimento humano em cada
sociedade e em dado momento do tempo. No conceito de Economia que ele adota, o
“poder do trabalho” (puissance de travail) é retratado como uma função do homem, do
meio e da cultura. Se suas análises das influências das raças e da geografia não resistem
ao teste do tempo, sua ênfase nos fatores culturais é afinada com a tendência moderna
sobre a importância das instituições.
O institucionalismo do autor faz com que ele se depare com o problema da definição do
escopo da “economia social”, a mesma denominação favorecida por Say. Como Rossi
(1865, p. 28), Dunoyer não quer que disciplinas como a Higiene façam parte da
definição de Economia. Mas, como a partir de Storch sugere-se que a Economia deva
tratar não apenas dos serviços, mas também dos bens imateriais gerados por eles,
abrem-se as portas para uma definição mais ampla da disciplina, que não se limita a
bens materiais que adquirem valor nas trocas. Levando em conta na análise os bens
imateriais, tal como proposto pelo autor russo, se torna mais natural argumentar a favor
de como a prosperidade material interage com aspectos culturais.

230
Dunoyer, assim como Comte, não se refere diretamente a Storch sobre esse tema, mas
sua postura nesse assunto é equivalente a deste último. A semelhança entre os pontos de
vista se manifesta, de fato, logo no prefácio do livro de Dunoyer (1845, v.1, p. xi):
E o que é então a economia da sociedade, senão de outro modo, a ordem segundo a
qual tudo está organizado para o exercício e desenvolvimento das forças sociais? E
qual é a ciência desta economia, se não o conhecimento dessas forças e seus meios,
isto é, o conhecimento de todos os trabalhos da sociedade e das condições às quais
seu poder é subordinado? A riqueza, sem dúvida, é um dos resultados desses
trabalhos; mas não é e não pode ser o resultado único. Todos contribuem direta e
indiretamente para o enriquecimento da sociedade; mas os trabalhos não podem ter o
único efeito de torná-la rica: contribuem, ao mesmo tempo e de uma maneira não
menos garantida, para instruir, polir, iluminar, enobrecer e moralizá-la. Não se deve
portanto, das artes que entram na economia da sociedade, se preocupar apenas com a
riqueza; pois o conhecimento, os costumes, a justiça e as boas relações se
manifestam ao mesmo tempo que a riqueza, sendo resultado do mesmo modo de
todas as artes que tendem a desenvolver o conjunto de todas as artes que a economia
social abraça.45
Na concepção do autor, o homem se torna livre, isto é, ganha poder, pela remoção de
obstáculos, quando se torna ao mesmo tempo industrioso e moral. Em seu esquema
explanatório, nenhum desses fatores ocupa papel privilegiado em termos de importância
ou antecedência e cada um deles induz melhora no outro. Cada progresso (p. 11) nos
liberta da dependência da natureza, de nós mesmos ou dos outros.
Não existe no livro de Dunoyer, porém, uma explanação teórica geral que justifique
essa crença. A argumentação consiste na apresentação de exemplos históricos que
compõem seu retrato da evolução da humanidade. Os progressos econômico e do
conhecimento, por exemplo, fariam com que os povos fossem mais preparados para a
capacidade política.
Algumas objeções que poderiam ser levantadas contra seu evolucionismo melhorista,
porém, são consideradas. A crença de que a prosperidade material gere declínio moral,
pela ação de fatores como a pompa (passion du faste) e sensualidade excessiva, por
exemplo, é rejeitada. A despeito do reconhecimento da existência de “certas disposições
de nossa alma” (p. 13) que possivelmente contrariem a tendência geral, o parisiense de
seu tempo não seria menos honrado do que um habitante da mesma cidade no passado e
tampouco seria plausível que erguer-se da miséria pelo trabalho faça com que as
pessoas percam sua dignidade (p. 12).
45
Et l'économie de la société, qu'est-ce donc, sinon pareillement l'ordre suivant lequel tout y est arrangé
pour l'exercice et le développement des forces sociales? Et qu'est-ce que la science de cette économie,
sinon la connaissance de ces forces et de leurs moyens, c'est-à-dire la connaissance de tous les travaux
de la société et celle des conditions auxquelles est subordonnée leur puissance? La richesse, sans doute,
est un des résultats de ces travaux ; mais elle n'en est pas et n'en peut pas être le résultat unique. Ils
contribuent tous directement et indirectement à enrichir la société; mais ils ne sauraient avoir pour
unique effet de la rendre riche : ils contribuent, en même temps et d'une manière non moins assurée, à
l'instruire, à la polir, à l'éclairer, à l'ennoblir, à la moraliser. Il n'y a donc pas, à propos des arts qui
entrent dans l'économie de la société, à se préoccuper uniquement de la richesse; car les lumières, la
politesse, les moeurs, la justice, les bonnes relations, se manifestent en même temps qu'elle, et résultent
également de tous les arts qui tendent à la développer, de l'ensemble des arts que l'économie sociale
embrasse.

231
Vejamos então as etapas de desenvolvimento histórico da sociedade propostas pelo
autor no quarto livro do primeiro volume de Da Liberdade do Trabalho, dedicado ao
estudo da influência da cultura sobre a liberdade. Dunoyer dedica um capítulo de seu
livro a cada um de uma série de “estados sociais” ou “modos gerais de existência”,
como ele denomina (p. 15, n.r.) cada uma das fases dessa evolução.
O primeiro estágio é composto pelos povos selvagens que têm a caça e a coleta como
atividades produtivas. Ao contrário dos filósofos do século dezoito que romantizaram
esse estágio, notadamente Rousseau, Dunoyer acredita que se trata da situação social na
qual existiria o menor grau de liberdade. Como a atividade produtiva é sempre sujeita à
violência, originária da disputa pelos recursos existentes, a cultura selvagem seria a
menos propícia ao desenvolvimento das forças físicas, intelectuais e sociais.
No segundo modo geral de existência teríamos os povos nômades, cuja atividade
industrial consiste no pastoreio. Se o bom selvagem do estágio anterior é rejeitado como
um mito, tampouco a caracterização dos nômades como um povo livre, tal como
retratado por Montesquieu no Espírito das Leis, condiz com a realidade. Um povo que
produz muito pouco não seria livre por causa de sua independência da terra ou de uma
residência fixa. A liberdade, pelo contrário, consistiria em partir quando se deseja, não
quando pressionado pela fome ou pela ameaça. Como as tribos nômades, além do
pastoreio, se dedicam à atividade de espoliar grupos vizinhos, vivendo em constante
estado de guerra, a liberdade seria bem reduzida, já que “todo povo saqueador é
ameaçado pela pilhagem” (p. 158). Como os grupos vencidos na guerra eram por vezes
escravizados em vez de mortos, porém, o grau de liberdade existente nessa fase seria
ligeiramente maior.
No terceiro estágio teríamos os grupos sedentários que exercem a agricultura como
atividade produtiva. Esta, porém, é exercida por escravos capturados e mantidos por
guerreiros que vivem do trabalho dos primeiros, como na Grécia e Roma antigas. Na
descrição histórica de Dunoyer, a divisão entre as atividades produtivas e improdutivas
a partir de então se torna mais nítida. Do trabalho dos escravos surge o germe de todas
as atividades e virtudes industriais, ao passo que o grupo estéril de guerreiros vive de
forma parasitária.
No quarto estágio, correspondente à Idade Média, a escravidão doméstica dos antigos é
substituída pelo trabalho servil. Para Dunoyer, teríamos apenas uma evolução gradual
em relação ao estágio anterior, pois teríamos uma ligeira melhora na situação de quem
se dedica ao trabalho, ao passo que a violência imposta por quem vive da exploração
desse trabalho ainda caracteriza a sociedade.
O quinto estágio, por sua vez, corresponde ao mercantilismo. Para Dunoyer, a mudança
para esse sistema configura um grande salto em termos de aumento de liberdade,
quando comparado com os estágios anteriores. Agora, a liberdade do trabalho aumenta
consideravelmente com a abolição da servidão; mas, como o exercício de diversos
ramos da indústria é privilégio conferido por grupos que regulam sua oferta, ainda

232
existe muitas restrições ao exercício da atividade industriosa e, portanto, ao crescimento
material, intelectual e moral da sociedade.
A partir da Revolução Francesa, teríamos o sexto estágio de desenvolvimento da
civilização, quando é abolido o sistema de privilégios legais associados à nobreza e
corporações. Em vez de levar ao estágio final do industrialismo pleno, porém, essa fase
é marcada pela substituição de antigos privilégios por outros. Esses seriam
consequência da “extensão exagerada da autoridade central”, tal como o autor define o
estágio em Da Liberdade do Trabalho ou como a fase da busca por cargos (recherche
des places), como ele a caracteriza em A Indústria e a Moral.
A mesma economia da política que os economistas clássicos utilizaram para analisar o
mercantilismo é de fato aplicável ao século seguinte, se entendermos o mercantilismo
como fenômeno de expansão do estado. Embora também estude a oferta de privilégios
legais, o texto de Dunoyer (p. 280) sugere que a demanda pelos mesmos seria
responsável pela expansão da burocracia:
Finalmente, havia nas maneiras políticas uma paixão, entre muitas outras, que é
suficiente para fazer com que a autoridade central cresça exageradamente: o amor
pelos cargos e, dessa tendência, cada vez mais geral, há muito tempo adquirida de
buscar ilustração e fortuna no serviço público. Cada um, em imitação das classes
encantadas com o monopólio, estava disposto a considerar os cargos como um
recurso. Todos queriam deles extrair riqueza e brilho que sempre se espalha entre
seus ocupantes. Todas as profissões foram declaradas livres; mas foi em direção a
esse preferencialmente que a busca foi dirigida. A tendência intelectual e moral era
fazer dos cargos, por assim dizer, um meio geral de existência, uma vasta carreira
aberta a todas as ambições ... Agora, era sobretudo essa tendência que favorecia o
desenvolvimento da autoridade central, e que teria bastado para exagerar suas
atribuições, quando este exagero não deveria ter resultado inevitavelmente de outras
causas que acabei de enumerar.46
Não é possível encontrar no livro do autor uma explicação sobre a origem última desse
fenômeno. As paixões políticas não são reduzidas a fatores econômicos, à própria
natureza humana ou ainda vistas como fruto de evolução cultural. Isso não significa que
exigiríamos do autor algo como uma explicação única, reducionista. Não obstante, seu
texto não deixa claro o que explicaria os fenômenos históricos que descreve. Em vez
disso, Dunoyer (p. 284) nos fala de espíritos e paixões dominadoras (passions
dominatrices). Mas, sem explicar tais paixões em termos psicológicos, institucionais ou

46
Enfin, il y avait dans les moeurs politiques une passion, parmi beaucoup d'autres, qui aurait suffi pour
faire prendre à l'autorité centrale un développement exagéré: je veux parler de l'amour des places et de
cette tendance, de plus en plus générale, qu'on avait depuis longtemps contractée de chercher
l'illustration et la fortune dans le service public. Chacun, a l'imitation des classes à qui le monopole en
avait été ravi, était disposé a l'envisager comme une ressource. Chacun voulait y puiser quelque chose de
la richesse et du lustre qu'il avait toujours répandu sur ses possesseurs. Toutes les professions étaient
déclarées libres; mais c'était vers celle-là de préférence que se dirigeait l'activité. La tendance des idées
et des moeurs était d'en faire en quelque sorte un moyen général d'existence, une carrière immense
ouverte h toutes les ambitions.... Or, c'était surtout cette tendance qui favorisait le développement de
l'autorité centrale, et qui aurait suffi pour exagérer ses attributions, quand cette exagération n'aurait pas
dû résulter inévitablement des autres causes que je viens d'énumérer.

233
econômicos, o conceito em última análise tem o mesmo poder explanatório da virtus
dormitiva do Doente Imaginário de Molière47.
Retomando a exposição das idéias de Dunoyer, para esse autor (p. 296) o crescimento
das atribuições do estado faz com que ele perca sua eficácia, pois “ele está muito
ocupado regulando coisas inocentes, sob o pretexto de que podem se tornar prejudiciais;
e não o suficiente para reprimir os atos nocivos, absorvido que está pelo cuidado de
regular fatos inocentes.” Dessa forma, como será repetido mais tarde por Bastiat e
Leroy-Beaulieu, Dunoyer (p. 299) conclui que, ao se ocupar de regular diferentes
aspectos das atividades privadas, o estado acaba por negligenciar a administração da
justiça.
Os efeitos de paixões dominadoras, porém, não são relacionados automaticamente ao
tamanho do estado. Por um lado, Dunoyer narra como durante a Convenção e o Império
Napoleônico várias atividades passaram ao controle do estado central. Por outro,
Dunoyer (p. 320) pondera que seria necessário centralizar o poder antes de que esse
pudesse ser descentralizado, para que os poderes arbitrários, dispersos entre muitos,
pudessem ser controlados antes de serem finalmente extintos. Contudo, não
encontramos nenhuma explicação a respeito dos mecanismos pelos quais o poder
central ampliado conferido pela revolução fosse “apenas transitório e, inevitavelmente,
... reduzido a proporções mais justas” (p. 320).
Contrariando sua intenção de fornecer uma análise histórica puramente positiva,
Dunoyer afirma repetidamente, sem jamais oferecer argumentos, que a sociedade
tenderia ao industrialismo puro, com o estado funcionando apenas como provedor de
justiça e segurança em um esquema de divisão do trabalho.
A única evidência que daria algum suporte à sua crença é de natureza histórica. A
despeito do controle central de várias atividades, Dunoyer (p. 286) avalia que,
historicamente, nessa sexta etapa de seu esquema evolutivo, mais barreiras à liberdade
do trabalho foram derrubadas do que criadas, o que sustentaria sua crença no progresso
rumo ao ideal industrialista.
Por fim, a sétima e última etapa do desenvolvimento histórico, do mesmo modo,
repetiria essa tendência descentralizadora, como acredita Dunoyer (p. 336):
Mas ninguém está mais convencido de que o tempo a longo prazo irá realizá-lo ... e
toda a história do passado nos mostra com uma clara evidência de que esse é o
estado ao qual se tende. Se, desde o início da sociedade, os esforços perseverantes
foram feitos pelo poder para obrigar as várias classes de trabalhadores a viver por
meios geralmente livres de injustiça e violência, não tem havido uma tendência
menos constante por parte da sociedade de regular, restringir e moderar a ação do
poder, reduzi-lo à sua verdadeira função, contê-lo cada vez mais dentro de limites
justos.48

47
Uma fundamentação da análise será empreendida por Bastiat, cuja obra examinaremos no
final deste capítulo.
48
Mais nul aussi n'est plus profondément convaincu que le temps à la longue l'accomplira ... et toute
l'histoire du passé nous montre avec une éclatante évidence que c'est l'état où nous tendon. Si, depuis

234
O industrialismo, o ponto final desse processo evolutivo, é descrito por Dunoyer (p. 14,
340) como uma configuração da sociedade na qual todos os indivíduos se dedicariam à
produção de algo útil, produção essa que seria trocada livremente em mercados
protegidos da ação arbitrária de autoridades centrais motivadas por instintos de
dominação. Nessa sociedade voluntária, livre de exploração, o estado seria uma
instituição voltada apenas aos diversos tipos de serviços úteis prestado ao restante da
sociedade.

Desde o artigo de Liggio (1977), podemos observar um crescente interesse pela obra de
Dunoyer e Comte e suas batalhas pela liberdade durante a Restauração. Boa parte desse
interesse, como o leitor certamente pode notar, diz respeito às semelhanças da
abordagem dos dois autores com a perspectiva desenvolvida logo em seguida por Karl
Marx. Como este último, os editores do Censeur criaram uma interpretação da história
que utiliza a perspectiva plutológica da ciência econômica, descreve o conflito entre
grupos de exploradores e explorados e busca explicar o desenvolvimento da sociedade
rumo a um sistema econômico determinado.
Hart (1990, p. 25), em particular, identifica na análise dos dois autores franceses uma
nova dimensão social no liberalismo, com a fusão entre vertentes econômica e política
do liberalismo do período. Em sua comparação com o pensamento de Marx, Hart (p. 25)
utiliza a expressão “modo de produção” para se referir aos estágios que Dunoyer
identifica como “modos gerais de existência”.
Por outro lado, Raico (1977; 2012) procura contrastar as teorias liberal e marxista da
exploração. Ambas concebam a história como luta entre grupos de exploradores e
explorados. Raico compara o início do Manifesto, que afirma que a história de toda a
sociedade seria uma história de luta de classes com afirmação semelhante proposta por
Adolphe Blanqui, o próximo autor da escola clássica francesa que abordaremos.
Para defender a tese de que a análise marxista é influenciada pelos autores liberais, em
especial François Guizot e o historiador Augustin Thierry (1795-1856), este último um
colaborador do Censeur Europeén, Raico cita autores marxistas e o próprio Marx, que
teria escrito em uma carta a um seguidor que
nenhum crédito é devido a mim por descobrir a existência de classes na sociedade
moderna ou a luta entre elas. Muito antes de mim, historiadores burgueses
descreveram o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e os economistas
burgueses a anatomia econômica das classes. (MARX, citado em RAICO, 2012, p.
186)49

l'origine de la société , il a été fait par le pouvoir des efforts persévérants pour contraindre les diverses
classes de travailleurs a vivre par des moyens exempts, en général, d'injustice et de violence, il n'y a pas
eu de la part de la société une tendance moins constante a régler, à contenir, à modérer l'action du
pouvoir, à le réduire a son véritable objet, à le renfermer de plus en plus dans de justes limites.
49
No credit is due to me for discovering the existence of classes in modern society or the struggle
between them. Long before me bourgeois historians had described the historical development of this class
struggle and bourgeois economists the economic anatomy of the classes.

235
Crítico da noção marxista de classes, Raico (2012) contrasta a teoria da exploração de
Marx, que deposita em conceitos econômicos a origem da exploração, com a teoria
liberal, que atribuiria a fatores políticos a origem da exploração, sendo que a
permanência da exploração na Rússia soviética serviria de teste para comparação entre
as duas concepções, pois mesmo com a abolição da propriedade privada do capital a
exploração do trabalho permanecera. Comte e Dunoyer, aponta o autor, seriam
precursores da teoria liberal da exploração, continuada por Bastiat na geração seguinte
de economistas da escola francesa. Essa teoria seria desenvolvida plenamente apenas no
pensamento libertário do século seguinte.
Se examinarmos as obras de Comte e Dunoyer em seu próprio contexto, porém, a
descrição desses autores do fenômeno da exploração ao longo da história não pode ser
classificada como econômica ou política, de modo que não se justifica o emprego por
Hart da expressão “modo de produção” para se referir aos “modos de existência” de
Dunoyer. De fato, como a nossa descrição das idéias de Comte e Dunoyer enfatiza, na
obra dos dois autores não existe uma preponderância de fatores causais específicos: o
ambiente, a natureza humana, o conhecimento, a moral e as instituições influenciam uns
aos outros sem que alguns desses fatores sejam explicados em termos dos outros.
Nos primeiros “modos de existência” seria mais fácil simplificar a explicação em
termos da lógica situacional econômica dos agentes ou através do apelo a características
da psicologia humana. Nas fases mais maduras, porém, fatores institucionais assumem
papel mais importante e seria mais fácil reduzir a explicação a fatores políticos não
redutíveis a questões produtivas. Mas, novamente, não existe qualquer tentativa por
parte dos dois autores de fornecer tal explicação. Como já afirmamos, ambos poderiam
ser melhor classificados como autores pertencentes a tradição storchiana de coevolução
da economia e civilização.
O caráter não reducionista da explanação, que pode ser visto sob uma ótica favorável, é
no entanto responsável por suas limitações. Como não existe um esquema explanatório
bem definido, a sensação deixada pela leitura do texto é de uso ad hoc dos elementos
empregados na explicação, conforme a conveniência ditada pelas preferências políticas
do autor, como apontamos quando mencionamos o uso da expressão “paixões
dominadoras” de Dunoyer. Mas, se os autores considerassem diferentes fases da
evolução de uma mesma civilização, Storch, Comte e Dunoyer seriam forçados a lidar
com explicações sobre o declínio civilizacional. A diminuição do grau de liberdade do
trabalho nas últimas fases do império romano seria então mais difícil de conciliar com a
tendência melhorista identificada sob a perspectiva de longíssimo prazo, que toma a
sociedade moderna como sua última fase. O que garantiria que o crescimento
civilizacional permanecerá nos próximos séculos? Em termos metodológicos, o
argumento puramente histórico de Dunoyer sofre do problema da indução.
A despeito de suas limitações, a análise de Comte e Dunoyer foram importantes para a
escola clássica francesa na medida em que deram mais um passo no desenvolvimento da
tradição de análise econômica do estado, que a caracteriza desde Gournay até Rossi.
Nessa tradição, as instituições políticas não são abordadas como se fossem regras

236
abstratas que possam ser operadas por indivíduos diferentes dos agentes privados que
povoam a análise econômica clássica.
Como na prática também utilizam o pressuposto de auto-interesse para explicar
historicamente a ação de agentes na esfera coletiva, Comte e Dunoyer abriram caminho
para que Bastiat integre essa perspectiva histórica à teoria econômica, utilizando uma
versão mais sofisticada da teoria econômica do que a plutologia pura empregada por
Comte e Dunoyer.
Antes de prosseguirmos com a análise desse desenvolvimento, devemos ainda examinar
brevemente a contribuição de Blanqui para a formação da escola francesa.

5.5. Blanqui: economia aplicada e história do pensamento


econômico
Dentre os economistas da escola de Say, aquele que preserva de forma mais fielmente a
teoria deste autor e trilha o programa de pesquisa aplicada sugerido por ele foi Jérôme-
Adolphe Blanqui (1798 - 1854).
Blanqui nasceu em Nice50. Seu pai fora membro da Convenção Nacional que governou
a França após a Revolução Francesa, além de ocupar mais tarde o cargo de subprefeito
de Puget-Theniers. Seu irmão mais novo, Louis Auguste Blanqui (1805 - 1881), foi um
socialista que defendia a tomada do poder por luta armada e cujas atividades
revolucionárias lhe rendeu uma condenação à morte comutada para prisão, além de
outras condenações por atividade revolucionária, que resultaram em pouco mais de três
décadas de cárcere em sua vida.
O Blanqui mais velho estuda no Liceu de sua cidade natal e completa seus estudos no
Liceu de Paris, cidade para onde muda em 1814. No início de sua carreira se dedica ao
ensino secundário, lecionando Química e outras disciplinas. Sua atividade como
professor de humanidades faz com que conheça Jean-Baptiste Say, que passa a orientá-
lo no estudo da teoria econômica.
Say ajuda Blanqui a assumir em 1825 a cadeira de História e Economia Industrial da
Escola Especial de Comércio. Cinco anos depois, Blanqui se torna diretor dessa
instituição. Mais três anos, sucede Say em seu posto no Conservatório de Artes e
Ofícios, se tornando dessa maneira um personagem importante em termos institucionais
para o desenvolvimento da escola clássica francesa. Sua importância aumenta em 1838,
quando é eleito membro da Academia de Ciências Morais. Blanqui foi também um dos
fundadores e primeiro redator chefe do Journal des Economistes.
Na academia, apresenta relatórios sobre as condições econômicas da Córsega e da
Argélia, que se tornara colônia francesa entre 1830 e 1862. Com isso, sua abordagem
aplicada de Economia que desenvolvera na Escola de Comércio é reforçada com

50
Informações sobre a vida do autor são extraídos de uma nota bibliográfica de autoria desconhecida que
se encontra no início de Blanqui (1880), além dos verbetes do Dicionário e do Novo Dicionário de
Economia Política: Coquelin e Guillaumin (ed.) (1852) e L. Say (ed.) (1900).

237
material derivado de sua experiência obtida em muitas viagens internacionais. De fato,
Blanqui faz quinze viagens na própria França, dez na Inglaterra, cinco na Itália, além
das demais que ajudam a compor sua perspectiva econômica.
Entre 1846 e1848 atua como parlamentar, que lhe rende a oportunidade de participar de
comissões de estudo. Pela academia, estuda as condições rurais da França. Seu trabalho
aplicado se manifesta em diversas publicações que relatam a situação econômica dos
países que visitou e dos setores da indústria que estudara de perto.
Embora fosse um economista aplicado e não um teórico, devemos considerara
brevemente suas contribuições devido à sua importância para a formação da escola
clássica francesa e o tipo de pesquisa efetuada por seus membros, além de notar a
semelhança entre seus trabalhos e aqueles desenvolvidos por Comte e Dunoyer.
A primeira obra de Blanqui que mencionaremos é seu Resumo Elementar de Economia
Política, de 1826. Essa obra ilustra o processo de formação de uma escola de
pensamento baseada em uma doutrina uniforme. Nessa obra da juventude, Blanqui
reproduz a teoria econômica exposta por Say sem modificações significativas,
funcionando como mais um dos canais de difusão da teoria econômica clássica tal como
desenvolvida por este último.
No início da obra encontramos um elogio a seu mestre, que ao adotar o método
empírico, adequado à disciplina, se coloca em condições de sistematizar o corpo de
doutrina teórica da Economia. Na avaliação de Blanqui (1857, p. 8),
Pode-se dizer que, independentemente das partes da ciência que este ilustre escritor
realmente fundou, ele prestou-lhe serviços eminentes, colocando-o ao alcance de
todas as mentes, pela correção de seu método, a franqueza familiar de seu estilo e
com a clareza impressionante das suas demonstrações. Foi ele quem primeiro
sistematizou todas as doutrinas econômicas e fez uma análise completa da produção
e do consumo.51
A estrutura do texto segue a divisão tripartite entre produção, distribuição e consumo
sacramentada por Say. O exame do conteúdo da obra, porém, revela uma diferença
importante. Cada princípio teórico é sumariamente enunciado, mas depois disso Blanqui
passa rapidamente para ilustrações históricas. Já nessa obra as grandes controvérsias
teóricas cedem lugar à história econômica, baseada na teoria apenas esboçada.
O tipo de história econômica que emerge de seu livro sem dúvida se parece com os
trabalhos de Comte e Dunoyer, sendo marcada pelo espírito industrialista derivado de
Say. Para Blanqui, a indústria prospera quando o conhecimento sobre Economia se
amplia e os governos se encontram em condições de prover um ambiente de paz,
propício ao desenvolvimento industrial. A diferenciação entre trabalhos produtivos e
improdutivos é central na exposição do autor.

51
On peut dire qu'indépendamment des parties de la science que cet illustre écrivain a véritablement
fondées, il lui a rendu des services éminents, en la mettant à la portée de tous les esprits, par la justesse
de sa méthode, la franchise eu quelque sorte familière de son style, et la clarté frappante de ses
démonstrations. C'est lui qui, le premier, a systématisé l'ensemble des doctrines économiques, et qui a
donné une analyse complète de la production et de la consommation.

238
O texto de Blanqui segue de perto o industrialismo de Say. Em particular, a admiração
pela ciência e suas aplicações industriais, presente nas vertentes socialista e liberal do
industrialismo, resvala em uma admiração quase estética pela funcionalidade de obras
úteis, em contraste com investimento em algo apenas belo. Para Blanqui (1857, p. 32),

Quando Luís XIV construiu o castelo de Versalhes, ele destruiu capital pelo prazer
vão de se dar uma morada, cuja magnificência é estéril; quando, pelo contrário,
decidiu construir o canal dos dois mares, foram consumidos valores amplamente
reproduzidos pela utilidade deste monumento imortal.52
Sua análise mais interessante, porém, diz respeito ao colonialismo. Seguindo exemplo
de Say e demais economistas da escola clássica, Blanqui (p. 62) afirma que o
colonialismo seria consequência direta das doutrinas mercantilistas que buscam
superávits na balança do comércio. As colônias e companhias de comércio são,
portanto, examinadas à luz da lógica da exploração inerentes aos monopólios legais que
caracterizam o sistema econômico mercantilista:

As colônias são quase todas filhas da balança do comércio. Cada metrópole, ao


fundar um estabelecimento distante, tinha que dizer a si mesma: eu sou o soberano
dessas crianças perdidas; eu os farei acreditar que eles trabalharão para eles, mas
realmente será para mim. Vou protegê-los, vou vesti-los, vou monopolizá-los; e se
eles pensarem em querer trabalhar para si mesmos e fazer roupas para vestir seus
filhos, saberei como castigá-los. Estou disposto a permitir que plantem canas, mas
com a condição de me venderem o açúcar, isto é, que me deem o preço que eu
quiser. Quanto ao chá, é diferente. Se eles quiserem, eles me pagarão cinco vezes
mais do que vale, porque eu não vou obtê-lo na China a troco de nada, e eles não são
minhas crianças para que eu os alimente gratuitamente. Proíbo-lhes, além disso, de
ir à China, porque uma boa metrópole, sempre uma boa mãe, não deixa seus filhos
viajarem em perigo.53
A conseqüência inevitável dessa exploração, para o autor, seria no devido tempo a
independência política das colônias, dado o caráter não econômico de tais relações de
exploração.

O resumo da teoria econômica de Blanqui é acompanhada no mesmo volume por outro


opúsculo, o seu Resumo Histórico do Comércio e da Indústria. A despeito de seu
tamanho relativamente pequeno quando comparado com o padrão dos economistas da
escola francesa, tal obra, segundo seu autor, seria fruto de pesquisa intensa, já que a

52
Quand Louis XIV faisait bâtir le château de Versailles, il détruisait des capitaux pour le vain plaisir de
se donner une habitation, dont la magnificence est stérile ; lorsqu'au contraire il décidait la construction
du canal des deux mers , on consommait des valeurs amplement reproduites par l'utilité de ce monument
immortel.
53
Les colonies sont presque toutes filles de la balance du commerce. Chaque métropole, en fondant un
établissement lointain, a dû se dire à elle-même: Je suis la souveraine de ces enfants perdus; je vais leur
faire croire qu'ils travailleront pour leur compte, mais ce sera réellement pour le mien. Je les protégerai,
je les habillerai, je les monopoliserai; et s'ils s'avisent de vouloir travailler pour eux-mêmes et de faire du
drap pour habiller leurs enfants, je saurai les châtier. Je veux bien leur permettre de planter des cannes,
mais à condition qu'ils me vendront le sucre, c'est-à-dire, qu'ils me le donneront au prix qu'il me plaira.
Quant à leur thé, c'est différent. S'ils veulent en prendre, ils me le payeront cinq fois plus cher qu'il ne
vaut, parce que je ne vais pas le chercher à la Chine pour rien, et qu'ils ne sont pas mes en fants pour que
je les nourrisse gratis. Je leur défends, d'ailleurs, d'aller à la Chine, parce qu'une bonne métropole,
toujours bonne mère, ne laisse pas sans danger voyager ses enfants.

239
atividade produtiva ocupa espaço muito pequeno na preocupação dos historiadores até
então e o trabalho de Blanqui seria pioneiro nesse sentido.
Como examina a história do comércio e indústria sob perspectiva da economia clássica,
o trabalho não poderia ser algo substancialmente diferente dos trabalhos de Comte e
Dunoyer. A diferença, porém, reside em espaço maior para discussão de assuntos
estritamente econômicos e uma ênfase maior no potencial da indústria humana, não nas
suas limitações históricas.
Seguindo esse programa, Blanqui (1857) examina as atividades comerciais e produtivas
dos fenícios, cartagineses, gregos e romanos na antiguidade, dos árabes após a queda de
Roma, do império de Carlos Magno, a prosperidade das cidades comerciais italianas, as
consequências dos descobrimentos navais portugueses, do desenvolvimento da colônia
inglesa na América do Norte, da independência das colônias nas Américas e finalmente
do desenvolvimento industrial inglês e francês de seu tempo.
O tom do texto é de entusiasmo pelas oportunidades abertas ao progresso científico
originador das aplicações industriais, como ilustram as seguintes considerações de
Blanqui (1857, p. 252):
O movimento, por muito tempo imprimido na espécie humana para destruir, deu
lugar ao zelo de uma indústria vivificante, e os ódios das nações já desapareceram
em um sentimento de benevolência universal. De todos os lados, o gênio da ciência
amplia o domínio do comércio, abre-lhe estradas desconhecidas ou descobre novos
métodos para ele; o gás ilumina nossas cidades, os navios a vapor unem distâncias,
os canais fertilizam as províncias.54
A obra termina com um chamado a seus compatriotas a participar e não ficar atrás da
Inglaterra na exploração das possibilidades de expansão do conhecimento humano e
suas aplicações a atividades produtivas que mudariam o mundo.
O próximo texto a ser citado, que mencionaremos brevemente, é a transcrição de suas
aulas ministradas no Conservatório de Artes e Ofícios no ano letivo de 1838-1839.
Como Blanqui se torna responsável pela mesma disciplina originariamente oferecida
por Say, o exame desse livro documenta o tipo de uso prático da teoria econômica que
Say e depois Blanqui concebem.
O exame do curso revela de fato se tratar de um curso prático. Como vimos no Tratado
de Say, empresários como ele próprio aplicam o trabalho dos cientistas puros a projetos
industriais específicos. O Curso de Economia Industrial de Blanqui (1839), de acordo
com essa filosofia, é organizado em torno desse projeto. O ensino da Economia é
voltado para a instrução de pessoas que pretendem se dedicar ao comércio e à indústria.
De forma compatível com esse propósito, o curso é classificatório e descritivo. Inicia
com os fatores produtivos em geral, trata dos empregos diversos do capital, classifica os
tipos de trabalho e ramos de atividade, distinguindo ainda o trabalho livre e escravo,

54
Le mouvement trop longtemps imprimé à l'espèce humaine pour détruire, a fait place au zèle d'une
industrie vivifiante, et déjà les haines des nations ont disparu dans un sentiment de bienveillance
universelle. De toute part le génie des sciences agrandit le domaine du commerce, lui ouvre des routes
inconnues, ou découvre pour lui des procédés nouveaux ; le gaz éclaire nos cités, les bateaux à vapeur
rapprochent les distances, les canaux fertilisent les provinces.

240
comparando-os em termos de produtividade. Depois de tratar dos diferentes ramos de
produção, aborda os instrumentos comerciais, como o crédito. Blanqui examina o
crédito na Bélgica e na Inglaterra, além do crédito público. Por fim, diversas aulas são
dedicadas aos meios de transporte de mercadorias, notadamente as ferrovias e navios a
vapor, cuja importância econômica aumenta consideravelmente, ocupando espaço
considerável nos escritos dos economistas na segunda metade do século dezenove.
Passemos agora a um exame um pouco mais detalhado da principal obra de Blanqui, sua
História da Economia Política na Europa, escrita em 1837. Esse livro provavelmente é
o primeiro dedicado à história do pensamento econômico. Sua estrutura, contudo, é algo
incomum, pois seu autor não distingue história econômica de história do pensamento
econômico. Como a teoria trataria de diferentes sistemas econômicos e as políticas dos
governos do passado consistiria, em última análise, na implementação prática desses
sistemas, Blanqui disputa a afirmação de que Quesnay e Turgot teriam sido os primeiros
economistas. De acordo com essa ótica, existiria Economia antes que os pensadores
escrevessem sobre o assunto. Sendo assim, na perspectiva empirista do autor, a história
forneceria os fatos e a teoria forneceria posteriormente explicações e deduções a partir
desse material histórico.
Seguindo essa lógica algo cameralista, segundo a qual a Economia parece tratar das
ações tomadas pelos governos (p. xxxii), as políticas econômicas adotadas pelos lideres
dos povos antigos até o ministério de Colbert merecem espaço considerável em um livro
dedicado à história do pensamento econômico. A primeira teoria econômica
propriamente dita identificada pelo autor, aquela desenvolvida pelos fisiocratas, é
tratada apenas na página 365 de um volume com quase seiscentas páginas.
A predileção por história, contudo, não significa adesão ao historicismo. Para Blanqui
(1880, p. xxvi), assim como para Say, Storch e Rossi, existem regularidades econômicas
explicáveis pela mesma teoria, em qualquer circunstância. As causas da pobreza, por
exemplo, seriam as mesmas no império romano e no tempo presente:
Eu logo encontrei pobres em Roma e Atenas, como em Paris e Londres; e devo
confessar que os privilégios, impostos e vexações fiscais não eram mais raros entre
os antigos do que em nossos dias. Naquela época, como agora, o menor raio de paz e
liberdade foi seguido por uma chuva de riquezas e prosperidade. As mesmas causas,
em resumo, produziram os mesmos efeitos, apesar da diferença de costumes e
instituições. A angústia do povo pode ser reconhecida pela desigualdade de fardos, a
distribuição viciosa dos lucros do trabalho e a tendência predominante de algumas
classes dirigentes de impor abusos sob a proteção da lei.55
Para o autor, os impérios do passado não caíram sem motivos e o fenômeno da criação
ou destruição de riqueza têm causas específicas, que são as mesmas exploradas ao longo
deste trabalho, desde os precursores da escola clássica francesa. Em particular, o caráter

55
I had soon found paupers at Rome and at Athens, as there are at Paris and at London; and I must
confess that privileges, taxes, and fiscal vexations were no more rare among the ancients than in our day.
Then, as now, the least ray of peace and liberty was followed by a shower of riches and prosperity; the
same causes, in short, produced the same effects, notwithstanding the difference of customs and
institutions. The distress of the people may always be recognized by the inequality of the burdens, the
vicious distribution of the profits of labor, and the prevailing tendency of a few designing classes to place
abuses under the protection of law.

241
descentralizado ou centralizado do poder se relaciona com os incentivos à atividade
produtiva em comparação com a atividade de obtenção de privilégios monopolísticos.
Como Comte, Blanqui (1880, p. xxviii) organiza sua história dos fenômenos
econômicos em torno da luta entre exploradores e explorados:

Em todas as revoluções, houveram apenas dois partidos em conflito; a das pessoas


que desejam viver pelo seu próprio trabalho e a daqueles que vivem do trabalho dos
outros. Essas duas classes disputam entre si os poderes e as honras apenas para
repousar na região beatífica na qual o partido conquistador nunca deixa o
conquistado dormir tranquilamente. Patrícios e plebeus, escravos e homens livres,
guelfos e gibelinos, rosas vermelhas e rosas brancas, cavaleiros e cabeças
redondas, liberais e servis, são apenas variedades da mesma espécie.5657
Esta é o parágrafo de Blanqui que Raico (2012) utiliza para comparar com texto análogo
de Marx e Engels no Manifesto Comunista. Em contraste com a doutrina destes últimos,
que descrevem conflitos entre classes econômicas diferentes, entre os franceses os
mesmos processos por trás da exploração se manifestam em qualquer sociedade, por
meio de extorsões fiscais, fraudes da moeda, conferência de privilégios monopolísticos
e restrições ao comércio. Em cada arranjo institucional diferente o conflito entre
exploração e liberdade se manifesta igualmente.
A leitura dos capítulos de seu texto sobre história do pensamento econômico dedicados
à teoria propriamente dita, porém, revela novamente a tendência a fugir de controvérsias
teóricas e exposição de teorias em favor de ilustrações históricas.
Essa postura pode revelar alguma dificuldade com o pensamento abstrato. Blanqui (p.
xxxii), por exemplo, afirma que “[s]e o estudo das causas que retardaram ou
impulsionaram o progresso da riqueza pública não passasse de um simples caso de
aritmética, ... eu poderia ter me limitado a um simples recital das belas dissertações dos
economistas sobre valor e utilidade”, como se as proposições teóricas abstratas não
tivessem relação com o mundo. Em sua análise algo superficial de Ricardo, se
tomarmos um outro exemplo, Blanqui (p. 460) afirma que a “ maior crítica que achamos
que pode ser feita contra Ricardo é que ele considerava a riqueza de maneira abstrata e
absoluta, sem olhar para o destino dos trabalhadores que contribuem para sua
produção.”
Sua história da evolução da teoria econômica, porém, tem o mérito de ser um trabalho
pioneiro, já que nas obras de outros economistas encontramos apenas esboços. Existem
breves relatos sobre a história da disciplina nas análises de Garnier ou no discurso
preliminar do Tratado de Say, mas sempre ocupando papel secundário.

56
In all the revolutions, there have been but two parties confronting each other; that of the people who
wish to live by their own labor, and that of those who would live by the labor of others. These two classes
dispute with each other the powers and the honors only in order to repose in that beatific region where
the conquering party never lets the conquered sleep in tranquility. Patricians and plebeians, slaves and
freemen, guelphs and ghibellines, red roses and white roses, cavaliers and round heads, liberals and
serviles, are only varieties of the same species.
57
Nas cidades-estado italianas no século doze, guelfos e guibelinos eram os partidários do papa e do
imperador. Na Inglaterra do século quinze, rosas vermelhas e brancas se referiam a duas facções em
guerra pelo poder. No mesmo país, em guerra civil no século dezessete, cabeças redondas eram os
partidários do parlamento e os cavaleiros os partidários do monarca absoluto.

242
Talvez pela própria influência de Say, o livro de Blanqui sofre do defeito de ignorar as
contribuições dos precursores da teoria econômica anteriores a Quesnay. No entanto,
uma quantidade grande de teóricos é mencionada, começando com Quesnay, Turgot e
os fisiocratas, avançando para Smith, Malthus, Godwin, Sismondi, Say, Ricardo,
McCulloch, Tooke, Thornton, James Mill, Torrens, Comte e Dunoyer, Storch, Saint
Simon, Fourier e Owen, entre outros.
Um elemento chama a atenção nessa obra mais madura de Blanqui. Ela já trata da
oposição entre economistas liberais e socialistas, sendo que Fourier e Owen são
classificados como “economistas utópicos”. Nesse livro, Blanqui mostra um entusiasmo
bem menor por Say. Blanqui atribui ainda a Sismondi a descoberta do problema da
pobreza que surge com o crescimento da população nas grandes cidades, embora rejeite
a análise deste a respeito dos efeitos da mecanização no emprego, preferindo no final
uma análise mais próxima daquela de Comte e Dunoyer.
Como sua pesquisa tem natureza mais aplicada do que teórica, as discussões das
controvérsias encontradas no livro são com frequência superficiais e confusas, de forma
que não entraremos em seus detalhes. A importância de Blanqui, porém, repousa no
processo de consolidação da escola clássica francesa e no desenvolvimento de uma
vertente aplicada e histórica dessa escola, vertente essa que se desenvolverá na geração
seguinte, como veremos no próximo capítulo.
A perspectiva histórica desenvolvida por Comte, Dunoyer e Blanqui, embora baseada
no arcabouço teórico desenvolvido por Say, efetivamente se utiliza pouco da teoria
econômico. Caberá ao próximo autor que estudaremos a tarefa de integrar essa
abordagem histórica com a tradição teórica de análise de sistemas econômicos
desenvolvida por Say e Destutt de Tracy.

5.6. Bastiat: meios, fins e as conexões entre setores


Trataremos agora do mais importante economista da segunda geração da escola clássica
francesa, Claude Frédéric Bastiat (1801-1850). A partir de elementos retirados de três
autores que o influenciaram significativamente; a saber, Jean-Baptiste Say, Destutt de
Tracy e Charles Comte, Bastiat compõe sua análise econômica.
Esse autor, porém, foi objeto de um fenômeno curioso, sem precedentes na história da
disciplina: nunca houve outro escritor cujo status como economista teórico tenha sido
negado explicitamente por tantos comentaristas. Assim como o economista mais
importante da primeira geração da escola, Say, fora retratado como mero popularizador
de Smith, Bastiat, o autor mais criativo da segunda geração, é representado apenas como
um jornalista brilhante, conforme observamos na introdução deste trabalho.
Nesta seção, mostraremos que essa avaliação é fundamentalmente equivocada. Porém,
como esse equívoco é bastante difundido, alteraremos um pouco a ordem usual de nossa
exposição para apresentar logo de início uma avaliação da Economia de Bastiat, antes
proceder com o exame mais detalhado de suas idéias.

243
Embora a leitura isolada de suas sátiras possa passar a sensação de que se tratam de
meras ilustrações da teoria econômica clássica, a inspeção de sua obra como um todo
revela que Bastiat não toma a teoria de seu período, em especial a doutrina da escola
francesa, como algo dado, mas introduz alterações não negligenciáveis, alterações essas
de caráter decididamente teóricas.
Bastiat desenvolve em sua obra uma teoria econômica na qual mudanças nas variáveis
econômicas e propostas de política econômica são avaliadas em termos de seus
impactos em todos os setores da economia, em vez de se limitar aos efeitos em um
mercado isolado. Como a relação entre os esforços produtivos e a utilidade resultante
desses esforços se encontra no centro de sua teoria, o autor rastreia sistematicamente os
custos de oportunidade das políticas econômicas, o que permite que se faça um exame
delas em termos da consistência entre os meios e fins propostos.
Esse esquema explanatório de Bastiat parte do famoso capítulo sobre os mercados
contido no Tratado de Say e o fundamenta em termos da praxiologia desenvolvida por
Destutt de Tracy. Isso significa que por trás das variações nos preços, encontramos
sempre uma análise expressa em termos dos diferentes usos dos recursos tendo em vista
os propósitos dos agentes. Uma inovação técnica ou uma abertura comercial, por
exemplo, ao reduzir a quantidade de meios necessários para se obter um mesmo fim (ou
aumentar a quantidade destes últimos a partir da mesma quantidade dos primeiros)
resulta em aumento de bem-estar e não em desemprego se contemplarmos as relações
intersetoriais mediadas pelo sistema de preços. Se produzir a mesma quantidade de um
bem requer localmente menos recursos, a redução do custo unitário e do preço permite
que a demanda seja expandida para o atendimento de outras necessidades, em
empreendimentos que empregam os recursos liberados anteriormente.
Os testes de exagero de um argumento encontrados nas sátiras de Bastiat, como as
propostas de proibição de janelas para estimular a indústria de iluminação ou a
proibição de trabalhar com a mão direita para estimular o emprego nada mais são do
que exames de consistência interna de propostas em termos das relações entre meios e
fins, que permitem representar falácias econômicas como verdadeiras máquinas de
moto-perpétuo econômicas, que pretendem criar riqueza a partir de nada, ao se
concentrar em benefícios localizados e ignorar nos demais setores os custos de
oportunidades dos usos dos recursos.
Na obra de Bastiat, a difusão na sociedade dos efeitos benéficos de algo que aumenta a
razão entre resultados e esforços é ainda retratado por meio de uma concepção dinâmica
sobre o processo competitivo. Um progresso técnico ou o emprego de bem de capital
implica, enquanto houverem necessidades não satisfeitas, realocação de esforço
humano, localmente substituído por forças oriundas da natureza: a gravidade e o
moinho fazem o trabalho antes feito pelos músculos. A redução dos custos
proporcionados pela inovação inicialmente beneficia o empresário responsável pela sua
introdução, até que em um segundo momento a competição pressiona o preço para
baixo e desloca a vantagem da melhoria aos consumidores.

244
Considerando todos esses aspectos, a obra de Bastiat, embora baseada na tradição
clássica, em especial na francesa, se move em direção à teoria moderna. É portanto
surpreendente, como notamos no primeiro capítulo, que um autor como Schumpeter,
entusiasta pela teoria de equilíbrio geral, não tenha apreciado nos escritos de Bastiat a) o
deslocamento do foco analítico da produção de riqueza para o consumidor, b) o exame
dos impactos de uma medida em todos os setores da economia, algo que caracteriza a
abordagem de equilíbrio geral ou ainda c) a própria descrição de competição como um
processo composto pela inovação empresarial seguida de imitação, que caracteriza a
própria abordagem schumpeteriana.
As características notáveis do sistema teórico de Bastiat, no entanto, não se limitam a
isso. Consideremos ainda alguns aspectos centrais de sua economia institucional, que
trata de sistemas econômicos comparados. A comparação de Bastiat entre liberalismo,
protecionismo e socialismo, além de tratar do contraste entre ordens espontâneas e
planejadas em termos da complexidade inerente à coordenação das atividades
econômicas, tal como no programa de pesquisa austríaco do século seguinte, também
integra questões austríacas sobre conhecimento limitado e de escolha pública sobre
auto-interesse dos agentes no exame nesses diferentes arranjos institucionais.
Na comparação institucional entre sistemas econômicos, além dos fenômenos de
produção e da troca, a ação espoliadora, definida como violações da direitos de
propriedade, também é explicada por Bastiat em termos do auto-interesse dos agentes,
segundo a praxiologia derivada de Destutt de Tracy. Dessa forma, em vez de ser um
desvio de moralidade, invocado normalmente de forma ad hoc, a espoliação se junta à
produção como alternativas de ação com retornos diferentes em um modelo de escolha
sob instituições diversas. Sendo assim, o autor foi capaz de incorporar em sua economia
teórica a análise histórica de Comte e Dunoyer.
Na obra de Bastiat, as considerações sobre o auto-interesse aplicado aos mercados
políticos, que caracterizam a escola de escolha pública, são ainda integradas ao exame
das consequências do conhecimento limitado dos agentes, tal como encontramos entre
os economistas da escola austríaca. Ao tratar da dissociação entre os benefícios parciais,
imediatos e concretos das políticas e seus custos difusos, posteriores e, portanto, não
imediatamente rastreáveis às suas reais causas, Bastiat constrói um modelo econômico
de escolha política capaz de explicar a popularidade e tenacidade de políticas ineficazes.
As análises citadas acima são todas contribuições de natureza teórica desenvolvidas por
Bastiat. Mas para que possamos concluir nossa avaliação geral da obra do autor,
devemos tratar das limitações de suas teorias. O principal problema que podemos
encontrar diz respeito à sua teoria do valor. Para Bastiat, os valores acordados em trocas
livres resultam da equivalência entre serviços prospectivos, isto é, envolvem opiniões
sobre o próprio trabalho poupado no futuro ao adquirir pela troca algum objeto.
Bastiat percebe algumas as limitações da teoria do valor trabalho e pretende conferir à
sua própria explicação um caráter subjetivo, ao mencionar a dependência do valor das
opiniões dos agentes. Pretende além disso utilizar explicação sobre o fenômeno do valor
que seja prospectiva e não algo relativo a custos passados. Pretende ainda que a

245
valoração reflita a importância dos bens para os agentes. A despeito de tudo isso, a
palavra “serviço”, o termo que o autor utiliza para representar a causa última do valor,
na verdade diz respeito a todos os fatores que influenciam os preços. Sendo assim, não é
oferecida uma teoria nova, que identifique um causa subjacente ao fenômeno do valor.
Na prática, na maioria de seus usos, a teoria do autor se refere ao trabalho poupado pela
troca, assim como a teoria de Say apela aos custos competitivos no longo prazo em
contexto de equilíbrio parcial.
A equivalência entre valores trocados, que encontramos neste trabalho desde Say, tem
em Bastiat a mesma função teórica encontrada na obra de Dunoyer e Comte: fornecer
um critério de justiça empregado na teoria da exploração desenvolvida por esses autores
para distinguir as ações produtivas das espoliadoras. Do mesmo modo, a identidade
entre valores nas trocas voluntárias é utilizada por Bastiat como ferramenta para
combater a tese socialista de que os preços de mercado envolvem exploração no que diz
respeito à remuneração de proprietários de terra e capital: para Bastiat, todo valor reflete
apenas serviços trocados. Mas, ao adotar teoria que dissocia a noção de valor da
utilidade dos bens e que na prática coincide com a teoria do valor trabalho, Bastiat é
forçado a negligenciar em sua teoria a relevância das situações nas quais o preço não
converge para os custos, em especial em monopólios não causados por restrições legais.
Independente dos usos dados pelo autor à teoria do valor, o pressuposto de igualdade de
valores nas trocas, como em Say, limita na obra de Bastiat o desenvolvimento da teoria
subjetiva do valor.
Diante desse breve apanhado da obra de Bastiat, estamos em condições de avaliar a
alegação que nega ao autor o status de economista teórico. Em primeiro lugar, Bastiat
não é apenas um jornalista: sua obra faz referência, utiliza e contraria discussões
teóricas puras derivadas de Quesnay, Turgot, Condillac, Smith, Say, Tracy, Storch,
Ricardo, Malthus, Senior e outros. De forma mais fundamental, por mais que alguém
possa não apreciar as contribuições de Bastiat, os escritos do autor claramente são
organizados em torno de uma concepção teórica com elementos próprios. De fato, não é
verdade que essas contribuições apenas repetem a doutrina clássica. Pelo contrário,
Bastiat talvez seja o autor que mais se distancie do cânone do classicismo francês,
talvez por não ser professor acadêmico, mas um escritor independente. Seus textos, por
exemplo, ridicularizam o foco na produção em detrimento do consumidor que
caracteriza a economia clássica. Seu enfoque, pelo contrário, se aproxima da abordagem
moderna, expressa em termos da relação entre meios e fins. Por fim, a lista de elementos
teóricos encontrados na obra de Bastiat que listamos acima e que incidentalmente
reaparecem nas teorias modernas dificilmente seria compatível com o retrato de um
mero divulgador científico.
Talvez a apreciação de que o autor não seja um teórico decorra de um fenômeno comum
até hoje na profissão do economista, segundo o qual o leitor costuma identificar como
teoria apenas a abordagem que valoriza. As contribuições teóricas notáveis de Bastiat,
de fato, pertencem a teorias até hoje não incorporadas totalmente no mainstream da
profissão, a saber, a economia da política.

246
Os elementos teóricos do pensamento de Bastiat destacados na nossa avaliação se
manifestam em vários de seus textos, embora seja compreensível que o leitor
familiarizado apenas com uma ou duas de suas sátiras não seja capaz de identificá-los.
Uma circunstância da vida do autor, porém, talvez se relacione com isso: a corrida de
Bastiat contra a morte prematura. A maior parte de sua obra data dos últimos cinco anos
de sua vida e Bastiat não teve condições de completar o tratado que sistematiza sua
teoria, intitulado Harmonias Econômicas.
Antes de examinar mais de perto suas idéias, consideremos antes sua biografia58. Bastiat
nasceu em Bayonne, cidade francesa situada ao sul da França, próxima da fronteira com
a Espanha. Órfão aos nove anos de idade, passa para a tutela de seu avô paterno, que
possuía propriedade em Mugron. Bastiat foi criado por uma tia, Justine Bastiat.
Depois de iniciar seus estudos em sua cidade natal, prossegue por um ano no colégio de
Saint-Sever e por fim é enviado em 1815 ao colégio de Sorrèze. Completos seus
estudos, trabalha na casa de comércio de seu tio. A partir de 1824 trava contato com as
obras dos economistas, em especial Smith, Say e Tracy. Com a morte de seu avô, se
muda para a propriedade em Mugron, onde se divide entre a agricultura e a leitura do
Tratado de Legislação de Comte. Sua predileção pelos estudos o leva a se tornar juiz de
paz e membro do conselho municipal da localidade.

Em 1844 envia ao Journal des Economistes um artigo contra o protecionismo, intitulado


Da Influência das Tarifas Francesas e Inglesas sobre o Futuro dos dois Países. O
sucesso do texto resulta na demanda por mais artigos e o consequente envolvimento de
Bastiat em questões políticas e econômicas. Seu primeiro livro trata de Cobden e a Liga
Anti-Lei dos Cereais. Em 1846 ajuda a estabelecer associações de livre comércio em
Bordeaux e logo em seguida em Paris, tornando-se secretário geral desta última.

Em termos políticos, seus artigos combatem tanto o protecionismo quanto o socialismo.


Na revolução de 1848 é eleito representante do departamento de Landes na Assembleia
Constituinte e no ano seguinte reeleito como representante na Assembleia Legislativa.

No final de sua vida, seus problemas pulmonares se agravam. Sob conselho médico,
viaja para Roma para desfrutar de clima mais ameno, morrendo no entanto na capital
italiana, na véspera do Natal de 1850.

5.6.1. A Teoria Econômica Geral em Bastiat: harmonias econômicas


As teses contidas na avaliação geral da economia de Bastiat que desenvolvemos acima
serão defendidas nesta e na próxima seção a partir da exposição mais detalhada de suas
idéias. Para tal, tomaremos como base a estrutura de seu tratado teórico, intitulado

58
Dados bibliográficos foram extraídos dos verbetes do Dicionário e do Novo Dicionário de Economia
Política: Coquelin e Guillaumin (ed.) (1852) e L. Say (ed.) (1900). Para uma biografia do autor, ver
Roche (1971).

247
Harmonias Econômicas, que pretende justamente organizar sua teoria. A partir dessa
estrutura, enxertaremos seus demais escritos.
Devido à sua corrida contra a doença, seu principal escrito restou inacabado. Contudo, o
plano original da obra, segundo nota de rodapé do editor, foi encontrado anotado a lápis
por Bastiat (1864a, p. 397), plano que reproduzimos na tabela a seguir, com asteriscos
indicando os capítulos faltantes, mas cujos temas são desenvolvidos em outros escritos
do autor:
F ENÔM ENOS N ORMAIS C AUSAS P ERTURBADORAS
1. Produtor, consumidor 16. * Espoliação.
2. Os Dois Lemas 17. Guerra.
3. Teoria da Renda 18. * Escravidão
4. * Moeda 19. * Teocracia
5. * Crédito 20. * Monopólio
6. Salários 21. * Exploração Governamental
7. Poupança 22. * Falsa Fraternidade ou Comunismo
8. População
9. Serviços Públicos e Privados OBSERVAÇÕES GERAIS
10. * Impostos 23. Responsabilidade – Solidariedad
24. Interesse Pessoal ou Motor Social
COROLÁRIOS 25. Perfectibilidade
11. * Máquinas 26. * Opinião Pública
12. * Liberdade de Trocas 27. Relação entre Economia e Moral
13. * Intermediários 28. * Relação com a Política
14. * Matérias Primas- Produtos Finais 29. * Relação com a Legislação
15. * Luxo 30. Relação com a Religião

A primeira parte desse plano trata dos fenômenos de mercado e do funcionamento do


governo em sociedades nas quais imperaria o respeito ao direito de propriedade. Nesse
contexto, o autor pretende demonstrar a emergência de uma ordem ou organização
social próspera e harmônica. A segunda parte trata dos temas econômicos mais
debatidos em seu tempo, como os efeitos do uso de máquinas na produção industrial. A
terceira parte trata da aplicação da mesma teoria desenvolvida na primeira parte; isto é,
de explicação econômica que considera os mesmos agentes auto-interessados, agora
atuando sob arranjos institucionais alternativos, nos quais os direitos de propriedade
seriam predominantemente violados. Como resultado, a harmonia social seria
substituída, como consequência não intencional dos defensores desses arranjos, pela
atividade de espoliação como forma dominante de interação econômica. Finalmente,
seguindo a tradição de Storch, na última parte são discutidas as relações entre a
economia e temas de disciplinas comumente excluídas do escopo da teoria econômica
pela tradição plutológica, tais como ideologia, moral e direito.
A introdução e o primeiro capítulo das Harmonias Econômicas tratam justamente da
discussão fundamental sobre seu referencial teórico calcado em instituições
comparadas, algo que em Smith se situa na quarta parte da Riqueza das Nações. Sua

248
leitura refuta a interpretação bastante comum segundo a qual Bastiat, ao falar em
harmonias sociais, empreenderia uma defesa ingênua do status quo, fundamentada na
bondade do homem e no uso de argumentos religiosos.
A questão central colocada no início do livro (p. 4) indaga de fato se as relações
humanas seriam fundamentalmente harmônicas ou antagônicas. A pergunta tem origem
tanto nas teses pessimistas derivadas das teorias de Ricardo e Malthus, quanto do
advento das teses socialistas, que situam nos mercados as causas da pobreza. Bastiat,
por seu turno, como liberal, acredita que a origem da pobreza se encontra em causas
políticas, relacionadas à ação do estado.
Dado o conflito de interpretações identificadas pelo autor, encontrar uma resposta
implica em análise de sistemas comparados. De fato, para Bastiat (p. 12), a questão é
saber se nas sociedades existe ou não liberdade. Isso nos leva naturalmente ao problema
da definição dos sistemas alternativos.
Com o desenvolvimento do socialismo, as economias do período serão identificadas
com o conceito de capitalismo. Mas, na tradição clássica, a mesma realidade é tratada
como um sistema inicialmente denominado mercantilismo (Smith, Say), mais tarde
descrito como sistema caracterizado pela expansão do poder central (Dunoyer) e no
século vinte como intervencionismo (Mises).
Bastiat (p. 260) protesta contra a acusação de que os economistas ignorariam a miséria e
se contentariam com os fatos estabelecidos. Sendo assim, rejeita a identificação da
expressão laissez faire com inação, que possui conotação de defesa do status quo:
Quando dizemos: laissez faire, obviamente queremos dizer: permitir que essas leis
funcionem; e não: deixai perturbar a operação dessas leis. De acordo com a
conformidade ou violação dessas leis, o bem ou o mal são produzidos. Em outras
palavras, os interesses dos homens são harmoniosos, desde que cada homem
permaneça dentro de seus direitos, ...59 60
Na concepção de mundo liberal esposada por Bastiat, a harmonia resulta da ausência de
interferência em sistema caracterizado por instituições particulares, definidas pela
garantia de direitos de propriedade e não pela sua antítese, como escravidão, privilégios,
monopólios legais e demais formas de exploração descritas, por exemplo, por Constant,
Say, Comte e Dunoyer. Em diversos pontos de sua obra, Bastiat enfatiza o condicional:
harmonias, dado que existem instituições apropriadas.
Sob esse ponto de vista, as instituições presentes em uma sociedade não são
identificadas automaticamente com um sistema econômico particular, como se fossem
características inerentes e inevitáveis desse sistema. Segundo essa ótica, as instituições
de uma dada sociedade podem variar segundo diversas dimensões, como sua natureza
mais ou menos centralizada, se aproximando ou afastando assim dos “tipos ideais” que
definem os sistemas econômicos. Bastiat (p. 539) adere a esse ponto de vista, como

59
Quand nous disons: laissez faire, apparemment nous entendons dire: laissez agir ces lois, et non pas:
laissez troubler ces lois. Selon qu’on s’y conforme ou qu’on les viole, le bien ou le mal se produisent; en
d’autres termes, les intérêts sont harmoniques, pourvu que chacun reste dans son droit,....
60
O mesmo argumento sobre o significado de laissez faire pode ser encontrado em Bastiat (1864b, p. 29).

249
revela por exemplo sua observação de que existe um continuum de centralização em
sistemas econômicos concretos:
Mas o que realmente observamos é que os serviços públicos ou ações do governo
aumentam ou diminuem de acordo com o tempo, lugar ou circunstâncias, do
comunismo de Esparta ou das missões do Paraguai ao individualismo dos Estados
Unidos, com a centralização francesa como um ponto intermediário ao longo do
caminho.61
Sendo assim, sistemas rivais são apenas tipos abstratos usados para classificar e analisar
sociedades reais.
A interpretação equivocada alternativa, que atribui a Bastiat defesa das instituições
vigentes, encontra algum suporte devido ao defeito inerente à dicotomia natural versus
artificial, dicotomia essa utilizada pelo autor em seu primeiro capítulo para definir os
sistemas sob comparação. Como aponta Hayek (1982, p. 20), a distinção grega entre
natural e artificial não deixa espaço para uma terceira categoria de fenômenos,
justamente aquela aplicável a muitos dos fenômenos estudados pelas ciências sociais,
que são fruto da ação, mas não da intenção humana (A. Ferguson), que emergem por
processos evolutivos. Ao tratar a ordem social baseada em propriedade privada como
“natural”, Bastiat convida ao equívoco mencionado acima.
De fato, ao contrastar economistas e socialistas, defensores de sistemas econômicos
diferentes, Bastiat (p. 6) afirma que os primeiros utilizam o método científico, baseado
em observação, ao passo que os segundos procedem apenas pela imaginação: “Os
economistas observam o homem, as leis de sua natureza e as relações sociais que
derivam dessas leis. Os socialistas imaginam uma sociedade fantasiosa e então
concebem um coração humano para se adequar a essa sociedade.”
Embora essa opinião não seja inconsistente com a abordagem institucional comparada,
que supõe uma natureza humana constante, isto é, não definida completamente pelo
meio e procede comparando a ação dos homens em arranjos institucionais diferentes,
permitindo assim que se compare o funcionamento das economias de Esparta e do
Paraguai, a citação acima compreensivelmente pode induzir induz ao contraste entre o
que é e o que poderia ser, que por sua vez levaria a identificação do que existe com um
sistema econômico teórico particular.
A despeito da ambiguidade inerente à dicotomia empregada, a maneira como Bastiat
apresenta o contraste entre, por um lado, ordens descentralizadas, baseadas em liberdade
e respeito à propriedade privada e, por outro, ordens baseadas em hierarquia, se
assemelha em muitos pontos com o próprio referencial utilizado por Hayek, herdeiro da
tradição de estudo da auto-organização na sociedade, tradição essa que se manifesta
pelo menos desde o iluminismo escocês e que no presente caracteriza o estudo
interdisciplinar de sistemas complexos.

61
En fait, nous voyons les services publics ou l’action gouvernementale s’étendre ou se restreindre selon
les temps, les lieux, les circonstances, depuis le communisme de Sparte ou des Missions du Paraguay,
jusqu’à l’individualisme des États-Unis, en passant par la centralisation française.

250
O tema da mão invisível smithiana é elaborado por Bastiat a partir da descrição da
complexidade inerente à cooperação existente nos mercados sob o grau de divisão do
trabalho já obtido no século dezenove. Sua ilustração da complexidade do sistema
econômico se assemelha à descrição dos fatores produtivos envolvidos na produção de
um lápis feita mais tarde por Leonard Read (2015) e popularizada por Milton Friedman.
Em vez de um lápis, Bastiat (1864a, p. 25) descreve uma peça de vestuário:
Todos os dias, quando ele se levanta, ele se veste; e ele próprio não fez nenhum dos
numerosos artigos de sua vestimenta. Agora, para que todas essas peças de roupa,
por mais simples que sejam, estejam disponíveis para ele, uma enorme quantidade
de mão de obra, indústria, transporte e invenções engenhosas foram necessárias.
Americanos tiveram que produzir o algodão; indianos, o corante; franceses, a lã e o
linho; brasileiros, o couro; e todos esses materiais tiveram que ser enviados para
várias cidades para serem processados, fiados, tecidos, tingidos, etc.62
Levando em conta todos os bens e serviços envolvidos nesse processo, o propósito da
primeira parte do livro, segundo Bastiat (p. 28), é explicar como pode surgir um padrão
de cooperação social entre estranhos, sem que ninguém entenda os detalhes de seu
funcionamento, de modo que o padrão de trocas e produção não seja fruto de ação
legislativa consciente.
Aquilo que Hayek chama de ordem espontânea dos mercados é ainda descrito por
Bastiat (1863a, p. 95) em outro texto, que indaga como seria possível alimentar Paris.
Como explicar a interação de um milhão de pessoas vivendo naquela cidade, já que
“ultrapassa a imaginação” a diversidade e quantidade de bens que lá entram e saem
continuamente sem que ocorra caos e sem que alguém controle conscientemente o
processo?
A teoria econômica utilizada para Bastiat para descrever esse fenômeno será examinada
nesta seção, ao passo que a descrição dos sistemas econômicos rivais será deixada para
a próxima. O instrumental teórico utilizado pelo autor é herdado da escola clássica
francesa. O próprio autor, no início de seu primeiro livro (1864b, p. 2), lista de modo
algo macabro os autores que mais o influenciaram: “Sim, se este livro pudesse penetrar
sob a pedra fria que cobre Tracy, Say e Comte, acredito que os ossos desses ilustres
filantropos iriam se contorcer de alegria no túmulo.”63
A economia que Bastiat desenvolve a partir do trabalho desses autores desloca o foco
dos meios para os propósitos da atividade econômica. Um dos fundamentos teóricos
centrais das Harmonias Econômicas é de fato a filosofia de Condillac, tal como
aplicada à Economia por Destutt de Tracy. Reagindo contra o recrudescimento da
tendência plutológica de privilegiar a produção, fenômeno que encontramos sobretudo
nas obras de Comte, Dunoyer e Blanqui, Bastiat recoloca no centro da teoria econômica

62
D’abord, tous les jours, en se levant il s’habille, et il n’a personnellement fait aucune des nombreuses
pièces de son vêtement. Or, pour que ces vêtements, tout simples qu’ils sont, soient à sa disposition, il
faut qu’une énorme quantité de travail, d’industrie, de transports, d’inventions ingénieuses, ait été
accomplie. Il faut que des Américains aient produit du coton, des Indiens de l’indigo, des Français de la
laine et du lin, des Brésiliens du cuir ; que tous ces matériaux aient été transportés en des villes diverses,
qu’ils y aient été ouvrés, filés, tissés, teints, etc.
63
Oui, si ce livre pouvait pénétrer sous la froide pierre qui couvre les Tracy, les Say, les Comte, je crois
que les ossements de ces illustres philantropes tressailliraient de joie dans la tomb.

251
a praxiologia empirista de Destutt de Tracy. Bastiat (p. 386) lamenta que o consumo
seja tópico secundário, colocado no final dos manuais de economia e, provavelmente se
referindo a Rossi, ironiza certo professor que suprimiu a parte do consumo de seu curso,
pois trataria de questão moral, não econômica. Bastiat (p. 74), em contraste, afirma que
a Economia “tem como seu sujeito o homem, considerado do ponto de vista de seus
desejos e dos meios pelos quais ele pode satisfazê-los”.
A análise parte da noção de percepção sensorial – as dores, desejos, necessidades,
preferências e apetites humanos. Como em Tracy, as sensações são dados últimos, não
sendo portanto errôneas, por definição. O julgamento humano, pelo contrário, quando
exercido sobre as comparações e escolhas, é sujeito a erros e reavaliações.
A harmonia, ou seja, a coordenação que se obtém via mercados, para o autor não supõe
moralidade ou intelecto superiores, mas resulta de processos de aprendizado (p. 64).
Bastiat adota, portanto, uma perspectiva fundamentada na razão humana, mas, como
teremos a oportunidade de corroborar por outros exemplos mais adiante, se trata de uma
racionalidade falibilista, que enfatiza processos de eliminação de erros.
A ação, por sua vez, tem como propósito a satisfação dos objetivos propostos pelos
agentes. Como Say, Bastiat (p. 53) também define utilidade de um bem como “tudo
aquilo que realiza a satisfação de necessidades”. A tríade produção - distribuição -
consumo adotada por Say, porém, é substituída por outra: necessidade - esforço -
satisfação. Nas palavras do autor (p. 94): “Necessidade, esforço, satisfação: tal é o
homem, do ponto de vista da economia.”
Nessa tríade, o termo “satisfação” substitui “consumo” uma vez que a destruição de um
bem, importante na perspectiva plutológica, cede espaço para o fato mais significativo
de que os propósitos da ação foram atingidos.
Considerando ainda a ação em sua concepção mais abstrata; ou seja, antes de supormos
meios ou esforços específicos para satisfazer uma necessidade, tal como as trocas,
Bastiat distingue dois tipos de fontes de utilidade: por um lado, podemos utilizar coisas
úteis fornecidas gratuitamente pela natureza; por outro podemos obter algo útil através
do esforço humano - físico e intelectual. Bastiat (p. 53) substitui então o elemento
intermediário da tríade por essas duas fontes de utilidade:

Utilidade gratuita
Necessidade Satisfação
Utilidade onerosa

Esse detalhamento exercerá um papel central na teoria do autor, pois nela o exame da
ação racional inclui o conceito de progresso. Este progresso, parte dos planos dos
homens para poupar esforços, é descrito (p. 54) como o processo de gradual substituição
da utilidade onerosa pela gratuita. A adoção de uma nova tecnologia ou ferramenta faz
com que o esforço físico dê lugar à ação da gravidade, energia térmica, pressão de gases
e outras “utilidades gratuitas” que melhoram a razão entre resultados e esforços.

252
Esse ganho de produtividade, por sua vez, faz com que o esforço seja deslocado para
outra atividade, para atender novos objetivos. Em relação a esse último elemento, é
importante enfatizar que para Bastiat (p. 68) as necessidades humanas não são estáticas,
mas progressivas. Isso é chamado pelo autor de “infinita elasticidade das necessidades”:
o transporte a uma velocidade de sessenta quilômetros por hora, possível com a
tecnologia do período, seria impensável dois séculos antes, de modo que a crença na
constância das necessidades equivaleria (p. 76) a “entender mal a natureza da alma,
negar os fatos, tornar a civilização inexplicável”.

Considerando agora que o homem vive em sociedade, o termo médio da tríade de


Bastiat assume a forma de emprego de esforço para fornecer serviços para os demais. A
complexidade do problema econômico em uma sociedade marcada por progressiva
divisão do trabalho, por sua vez, se relaciona à dissociação entre meios e fins, pois cada
um fornece meios para fins de pessoas que não conhece e cujos fins e capacidades
tampouco são sabidos.

O conceito de serviço, como veremos mais adiante, é central em sua teoria do valor. Por
isso, reproduzimos aqui a definição de Bastiat (p. 58) desse conceito: “Fazer um esforço
para satisfazer o desejo de outra pessoa é realizar um serviço para ele. Se outro serviço é
estipulado em troca, há uma troca de serviços; e, como essa é a situação mais comum, a
economia política pode ser definida como a teoria da troca”.

Bastiat (p. 93) repete assim a fórmula de Destutt de Tracy, que identifica a sociedade
com as trocas. Mas, a despeito da definição de economia como a ciência das trocas, não
é correto aproximar o autor do referencial catalático que identificamos em Condillac.
Assim como Say, Bastiat rejeita a tese de Condillac de que uma troca envolva dois
ganhos, ou, em outros termos, rejeita a teoria subjetiva do valor.

Como Say, Bastiat não oferece objeções concretas à tese de Condillac. Sua crítica
consiste na acusação de que a tese de que cada lado da troca cederia algo supérfluo por
algo útil seria vazia de conteúdo e que a observação dos fatos revelaria alternativa
melhor. De fato, para Bastiat (p. 101), as trocam seriam vantajosas por permitirem a
união dos esforços e a obtenção dos ganhos com a divisão do trabalho e com a divisão
dos recursos naturais, isto é, com a distribuição heterogênea destes no espaço. Sendo
assim, as vantagens das trocas estariam do lado dos custos, não das utilidades.

As trocas apresentam vantagens e desvantagens. Por um lado, o uso da moeda, ao


expandir o escopo das trocas, expande significativamente os ganhos derivados dos
fatores listados no parágrafo acima, ganhos esses limitados pelos custos de realizar
trocas (p. 115).

Contrariando a tese principal de Malthus, Bastiat acredita que o crescimento


populacional gera reduções dos custos de transação, pelo maior adensamento
populacional. Como Say, Bastiat percebe que mais oportunidades surgem em cidades
grandes. Nos termos deste último, o crescimento populacional implica em aumento de
utilidade gratuita pela aproximação, assim como uma melhoria no “maquinário

253
comercial”: uma redução nos custos de transportes seria equivalente a reduzir a
distância entre duas cidades. Além disso, teríamos o aspecto moral das trocas enfatizado
pelo iluminismo escocês: sem trocas, o ganho de um indivíduo representa a perda de
outro, dada a quantidade constante dos bens, ao passo que com o comércio o ganho de
um representa ganhos dos demais, ao gerar oportunidades de aumento de produtividade.

A despeito da importância da moeda e das trocas para o avanço da civilização, a


expansão desses instrumentos traz consigo uma desvantagem de ordem ideológica: o
enfraquecimento da percepção, por parte da população, a respeito dos princípios de
funcionamento da economia. Ou, em outros termos, podemos dizer que a expansão das
trocas e do uso da moeda aumentam o grau de alienação sobre a utilidade desses
mesmos instrumentos.

Na obra de Bastiat, essa ilusão é expressa pela dissociação entre os meios e os fins no
esquema tripartite proposto pelo autor. Esse esquema é mais uma vez desdobrado, agora
em 4 aspectos: necessidade – obstáculo – esforço – satisfação. A especialização faz com
que um obstáculo, cuja remoção é uma boa notícia quando consideramos uma economia
de Robson Crusoé, passe ser considerado uma má notícia em sociedade ou, de forma
equivalente, a imposição de um obstáculo seja vista sob prisma favorável: a introdução
de uma rede de pesca melhora a economia de Robson Crusoé, mas geraria desemprego
entre os fabricantes de varas de pescar em sociedade.

A fonte das falácias econômicas, desse modo, residiria no uso de óticas parciais,
baseadas no exame dos efeitos de uma medida econômica apenas em alguns setores,
desconsiderando os efeitos na economia como um todo. Dessa forma, as explicações
econômicas errôneas em geral dizem respeito à observação parcial de fenômenos
econômicos reais, mas que são generalizados em falácias da composição.

Assim, para Bastiat (p. 135), “a verdade econômica é a visão completa, e o erro
econômico é a visão parcial de troca.” Bastiat (p. 75) afirma o mesmo quando diz que:

A troca produz neste sentido uma ilusão da qual os melhores espíritos não sabem
resguardar-se, e afirmo que a economia política alcança seu objetivo e cumpre sua
missão quando demonstra definitivamente isso: o que é verdade sobre o homem é
verdade sobre a sociedade. O homem isolado é ao mesmo tempo produtor e
consumidor, inventor e empreendedor, capitalista e trabalhador; todos os fenômenos
econômicos são realizados nele, e ele é como um resumo da sociedade. Da mesma
forma, a humanidade, vista como um todo, é um homem imenso, coletivo e
múltiplo, para quem as verdades observadas na própria individualidade se aplicam
exatamente.64
Ao leitor desatento a citação acima poderia sugerir que Bastiat incorre no mesmo erro
que condena, mas a implicação bilateral sugerida entre homem e sociedade significa

64
L’échange produit à cet égard une illusion dont ne savent pas se préserver les esprits de la meilleure
trempe, et j’affirme que l’économie politique aura atteint son but et rempli sa mission quand elle aura
définitivement démontré ceci: Ce qui est vrai de l’homme est vrai de la société. L’homme isolé est à la
fois producteur et consommateur, inventeur et entrepreneur, capitaliste et ouvrier; tous les phénomènes
économiques s’accomplissent en lui, et il est comme un résumé de la société. De même l’humanité, vue
dans son ensemble, est un homme immense, collectif, multiple, auquel s’appliquent exactement les vérités
observées sur l’individualité même.

254
que, para se resguardar de erros, nenhum aspecto da análise econômica – necessidade –
esforço – satisfação – pode ser deixada de lado pelo economista quando se transita entre
as esferas individual e agregada.

Nesse aspecto, ao usar um referencial calcado na relação entre meios e fins, a economia
de Bastiat se aproxima da teoria econômica moderna no que diz respeito a centralidade
do problema alocativo quando se propõe a rastrear sistematicamente os custos de
oportunidade de uma política ou alteração em alguma variável econômica.

As falácias econômicas originárias da observação de efeitos parciais dariam origem a


uma espécie de “economia política invertida” (p. 211), da qual Sismondi seria seu maior
representante, pois este autor teria demonstrado reservas contra tudo o que reduz os
obstáculos que se interpõem entre as necessidades e sua satisfação, como o uso de bens
de capital, o progresso técnico, as trocas e a competição.

A tese de que argumentos errôneos em Economia são sempre derivadas de análises


parciais transformadas em falácias da composição é desenvolvida no artigo mais
importante escrito pelo autor, intitulado O que é Visto e o que não é Visto em Economia
Política. Nesse artigo, Bastiat explica a popularidade das políticas econômicas
derivadas de análises parciais em termos da diferente visibilidade para o público dos
benefícios e malefícios dessas políticas, o que dificulta a apreciação do custo de uma
escolha.
Nesse artigo Bastiat (1863b, p. 336) argumenta que um ato, hábito, instituição ou lei
apresenta em geral dois efeitos, sendo o primeiro favorável, imediato e facilmente
associável à sua causa, ao passo que o segundo é desfavorável e se manifesta mais tarde,
o que dificulta a identificação de sua origem.

Medidas como a defesa de restrições comerciais, projetos de obras públicas sem


consideração pelos custos ou de subsídios a indústrias que empregam tecnologias
obsoletas com o propósito de preservar algum tipo de emprego comumente se
concentram em seus benefícios imediatos e visíveis. Bastiat (1863b, p. 365) salienta que
o empresário beneficiado tipicamente enfatiza o multiplicador que seria gerado pelo
gasto:

“Para cada cem quilos de ferro que eu entregar ao público, em vez de dez francos,
receberei quinze. Eu me enriquecerei mais rapidamente; estenderei a exploração de
minhas minas; empregarei mais homens. Meus funcionários e eu vamos gastar mais,
para a grande vantagem de nossos fornecedores por quilômetros ao redor. Esses
fornecedores, tendo um mercado maior, farão mais encomendas à indústria e
gradualmente essa atividade vai se espalhar por todo o país. Essa peça bem-
aventurada de cem sous que você deixará cair nos meus cofres, como uma pedra
jogada em um lago, fará com que um número infinito de círculos concêntricos
irradie por grandes distâncias.” (BASTIAT, 1863b, p. 365)65

65
Pour chaque quintal de fer que je livrerai au public, au lieu de recevoir dix francs, j’en toucherai
quinze, je m’enrichirai plus vite, je donnerai plus d’étendue à mon exploitation, j’occuperai plus
d’ouvriers. Mes ouvriers et moi ferons plus de dépense, au grand avantage de nos fournisseurs à
plusieurs lieues à la ronde. Ceux-ci, ayant plus de débouchés, feront plus de commandes à l’industrie et,
de proche en proche, l’activité gagnera tout le pays. Cette bienheureuse pièce de cent sous, que vous

255
Contudo, para Bastiat, o que distingue o bom economista dos demais seria a capacidade
de transcender o ganho visível e imediato da medida e incluir em sua análise as
consequências desfavoráveis em outros setores da economia e em outros períodos de
tempo: “... todas as indústrias estão inter-relacionadas. Eles formam uma vasta rede na
qual todas as linhas se comunicam por canais secretos” (p. 375).

Em essência, a análise bastiatiana aponta para uma assimetria fundamental entre


benefícios e malefícios associados à medida proposta: é fácil identificar os primeiros, é
possível entrevistar quem ganha com a medida, ao passo que os efeitos negativos
podem apenas ser imaginados, de forma que o reconhecimento da sua existência requer
poder de abstração maior, sendo considerado apenas pelo economista e não pelo leigo.

Fenômeno análogo ocorre com o conceito de custo de oportunidade: escolhida a opção


A, a alternativa B deixa de existir, podendo apenas ser imaginada66. No caso da análise
de Bastiat, comparar os efeitos positivos e negativos da alternativa A também envolve
comparação de algo concreto com algo imaginado. Não podemos especificar
concretamente o que os agentes fariam com seus recursos, mas apenas apontar que
existem necessidades insatisfeitas, de modo que algum outro gasto seria feito. No
exemplo mencionado acima, Bastiat não deixa de considerar os elementos faltantes de
sua tríade: se com a restrição comercial o produtor de ferro passasse a receber quinze
em vez de dez francos, isso deve ser comparado com a situação anterior na qual a
sociedade adquire a mesma quantidade de ferro com dez francos e ainda cinco com,
digamos, um livro, de forma que teríamos o mesmo gasto com uma quantidade maior de
bens. A diminuição da renda disponível após a aquisição do ferro causada pelo seu
encarecimento seria também como uma pedra que deixa de ser jogada no lago, com os
mesmos efeitos.67

A assimetria entre benefícios e malefícios de uma medida de política econômica que


encontramos no artigo de Bastiat tem importância fundamental para a análise da
economia da política. Existem dois aspectos dessa assimetria que merecem ser
destacados. Em primeiro lugar, temos o descasamento temporal entre consequências
favoráveis e desfavoráveis. Nesse ponto, o argumento é análogo aos problemas tratados
pela moral: a bebedeira antecede a ressaca. Do mesmo modo, o fato de que os
benefícios antecedem os malefícios influenciam as escolhas na direção que privilegia o
curto prazo. Em segundo lugar, a observação concreta dos benefícios e a imaginação,
abstrata, dos malefícios adiciona outra razão que explica a popularidade de medidas
econômicas ineficazes, derivada da dificuldade de associar os malefícios às políticas
que os geraram.

ferez tomber dans mon coffre-fort, comme une pierre qu’on jette dans un lac, fera rayonner au loin un
nombre infini de cercles concentriques.
66
Ver, por exemplo, Buchanan (1999).
67
Seria anacrônico exigir que Bastiat considere efeitos de curto prazo causados pelas expectativas, que
exigiriam qualificações em seu raciocínio. Mas a análise de Bastiat, assim como a de Say, não diziam
respeito a fenômenos de curto prazo. Mas, se nos permitirmos esse tipo de anacronismo, seria também
legítimo afirmar que a crítica de Bastiat a generalização de análise parcial antecipa o argumento a favor
da microfundamentação da macroeconomia.

256
Para Bastiat (p. 337), existiriam apenas dois professores que ensinam como evitar esse
tipo de erro: a experiência e a antevisão, sendo que o primeiro ensina de forma mais
bruta, porém mas eficaz. No plano pessoal, isso se aplica. Na avaliação de políticas
econômicas, porém, podemos dizer que o efeito da antevisão, através do emprego de
concepções teóricas adequadas, atua de forma bem mais tênue sobre a opinião pública.

A consideração dessa segunda assimetria nos permite classificar Bastiat na tradição de


economia da política que não se limita a explicar a persistência de políticas ineficazes a
partir apenas da ação do auto-interesse aplicada às escolhas públicas. Dada a dificuldade
de associar os malefícios de uma política à sua causa real, abre-se espaço para o estudo
das consequências não intencionais da ação bem-intencionada.

O exame das consequências não intencionais encontrado em Bastiat será muito caro à
análise austríaca no século seguinte. Permite, por exemplo, explicar como uma política
ineficaz possa sobreviver justamente por causa de sua ineficácia, quando a adoção de
alguma medida gera efeitos deletérios não identificados, cujo acúmulo convida a mais
medidas da mesma natureza. Já nos deparamos algumas vezes nos autores franceses
com esse efeito acumulativo, descrito por Mises (2010) em sua crítica ao
intervencionismo, quando por exemplo estudamos a análise de Condillac sobre a
tentativa de Turgot de liberalizar o mercado de trigo.

Bastiat, com efeito, enfatiza em seus escritos que as políticas que critica com tanta
ênfase têm origem em iniciativas bem-intencionadas. Em seu Sofismas Econômicos,
Bastiat (1863a, p. 47) afirma que o “protecionismo é muito popular para que seus
aderentes sejam considerados insinceros”. A mesma declaração se encontra na primeira
página da mesma obra:

Eu não sou daqueles que dizem que os defensores do protecionismo são motivados
pelo interesse próprio. Em vez disso, acredito que a oposição ao livre comércio
repousa sobre erros, ou, se preferir, sobre meias verdades. Um número muito grande
de pessoas teme a liberdade para [justificar a hipótese de] que essa apreensão não
seja sincera.68
A conjunção desse pressuposto de boas intenções com a dificuldade de detecção de
efeitos deletérios de políticas econômicas caracteriza de fato a análise de Bastiat das
consequências não intencionais da ação nas suas críticas ao socialismo e
intervencionismo. Estes últimos, vistos como sistemas, serão examinados na seção
seguinte. Agora, porém, examinaremos alguns exemplos extraídos dos Sofismas
Econômicos apenas para ilustrar a aplicação que o autor faz do referencial teórico
sistematizado no início de suas Harmonias Econômicas.

Para Bastiat (1863a, p. 2) os protecionistas teriam uma vantagem, pois “para falar meia
verdade bastam poucas palavras”. Essa vantagem será desafiada pelo autor através de
suas sátiras encontradas nos Sofismas Econômicos. Esses textos curtos, didáticos e
muitas vezes humorísticos, que deram a Bastiat sua fama, refletem diretamente o
68
Je ne suis pas de ceux qui disent: La protection s’appuie sur des intérêts. — Je crois qu’elle repose sur
des erreurs, ou, si l’on veut, sur des vérités incomplètes. Trop de personnes redoutent la liberté pour que
cette appréhension ne soit pas sincère.

257
referencial teórico exposto acima. A maioria desses textos efetua desse modo um teste
de consistência das crenças e políticas econômicas criticadas, em relação à sua
perspectiva teórica fundada na relação entre meios e fins.

No início de seu livro de sofismas (1863a, p. 8), encontramos novamente a explicação


que já nos deparamos sobre a existência das falácias: em uma economia de Robson
Crusoé, ninguém rejeitaria algo que remova obstáculos, mas com a introdução das
trocas e da moeda, separam-se entre os indivíduos os meios dos fins; as atividades de
produtor se dissociam do consumidor. Agora, sob a perspectiva parcial, a remoção de
um obstáculo passa a ser considerada desvantajosa: a cura de uma doença diminuiria a
renda de um médico. Nesse sentido, Bastiat (p. 9) afirma que “enquanto produtores,
devemos admitir, cada um de nós mantém esperanças que são antissociais”.

Para que se possa detectar os erros inerentes à generalização desse tipo de percepção,
Bastiat emprega seu teste de consistência, que denomina (p. 9) “teste de exagero”.
Nesses experimentos mentais, as alegações são exploradas até suas últimas
consequências por meio de exageros. Esse teste permite que o erro básico, que confunde
obstáculos com os propósitos da ação, os meios com os fins, é desnudado. Se
exagerarmos as pretensões de produtores e consumidores, aumentando respectivamente
a escassez e a abundância de bens, apenas no segundo caso teríamos algo compatível
com uma sociedade mais rica, ao passo que no primeiro caso teríamos que concluir que
um homem é rico quando tudo lhe falta.

Na argumentação de Bastiat, devemos recordar, a lógica da ação humana desenvolvida


por Destutt de Tracy é aplicada à análise que Say em seu capítulo sobre os mercados.
Essa aplicação utiliza a hipótese de que as necessidades humanas não são fixas, o que
equivale a dizer que as pessoas têm necessidades insatisfeitas. Sendo assim, uma
melhora na eficiência de um processo produtivo ao mesmo tempo barateia a produção e
desloca recursos para a provisão de novas necessidades, em vez de permanecerem
desempregados. A generalização da tese oposta, pelo experimento do exagero, exige a
justificação de cenários progressivamente mais implausíveis, como a persistência da não
percepção de oportunidades derivada de recursos não utilizados cada vez mais
abundantes e necessidades cada vez mais urgentes insatisfeitas.

Talvez o artigo mais conhecido desse livro seja A Petição dos Fabricantes de Velas. Os
produtores do setor de iluminação solicitam as autoridades a proibição da atuação de um
concorrente externo que opera com custos menores. A proibição da concorrência traria
o efeito benéfico de estimular a produção e emprego local, devido à atuação de um
efeito multiplicador de rendas. Mas o concorrente, no caso, seria o próprio sol e a
petição solicita a interdição do uso de janelas, frestas, cortinas e tudo que permita a
passagem da luz. Ora, se alguém é favorável a proibição de um concorrente externo que
opere com metade dos custos internos, a coerência lógica exigiria que essa pessoa
defenda ainda com mais entusiasmo o bloqueio a um concorrente que opera a custo
nulo.

258
A Equalização das Condições de Produção, para o autor (p. 28), faria sentido em uma
corrida de cavalo, na qual a competição é em si o meio e o fim. Se tomarmos o sistema
econômico, por outro lado, cujo propósito é o bem-estar, não teria sentido colocar
obstáculos a obtenção menos custosa dos fins.

A mesma confusão entre meios e fins é criticada em A Estrada de Ferro Negativa: se a


linha entre Bayonne e Paris devesse ter uma parada em Bordeaux apenas por causa dos
estímulos locais ao comércio e produção gerado pelas compras dos passageiros forçados
a parar nessa cidade, o trem deveria ser obrigado a parar em todos os pontos
intermediários, inviabilizando seu propósito, que é o transporte.

Em Uma Imensa Descoberta, Bastiat ridiculariza a inconsistência existente entre a


defesa da construção de uma estrada e de um aumento de tarifas alfandegárias, pois isso
equivaleria a substituição de um obstáculo artificial por um natural. Em ainda outro
artigo, estabelece a equivalência entre progresso técnico e comércio internacional. O
erro dos críticos à substituição setorial do trabalho manual pelo mecânico e do trabalho
local pelo estrangeiro é atribuído a mesma falácia de considerar efeitos imediatos e
setoriais, não as consequências totais. O processo de crescimento econômico é
caracterizado pelo barateamento contínuo, substituição e redireção de esforços; ou, em
outros termos, obtenção de mais satisfações a partir da mesma quantidade de esforço.

Em Os Dois Machados, um carpinteiro escreve a um ministro que por acaso também é


um empresário de uma indústria protegida da competição. Considerando a dificuldade
maior em impor restrições à competição no serviço de carpintaria, o trabalhador solicita
a proibição de machados afiados na França, que logicamente é consistente com a a
defesa da restrição comercial que protege o empresário. Usando apenas machados
cegos, a quantidade de trabalho demandada e renda aumentariam.

Em A Mão Esquerda e Direita, propõe-se a proibição de trabalhar com a mão direita


para estimular a indústria e o emprego. Nesse artigo, Bastiat (p. 258) combate o
seguinte silogismo: quanto mais alguém trabalha, mais rico fica; quanto mais
dificuldades tiver que superar, mais trabalha; ergo, quanto mais dificuldades houverem,
mais rico ele se torna. Na sátira de Bastiat (p. 261), a medida teria como efeito a
garantia do trabalho feminino diante da concorrência existente no setor têxtil:

Mas assim que sua nova lei for promulgada, assim que todas as mãos direitas forem
cortadas ou amarradas, as coisas mudarão. Vinte vezes, trinta vezes mais
bordadeiras, passadeiras, costureiras, fabricantes de roupas e camisas não bastarão
para atender o consumo do reino (vergonha para quem pensa mal disso), sempre
assumindo, como antes, que a demanda permanece constante. 69
Novamente, considerando os efeitos totais, uma redução pela metade da produtividade
acompanhada pelo dobro do emprego gera a mesma produção total, de forma que o
salário deveria se reduzir de acordo.

69
Mais sitôt que votre ordonnance aura paru, sitôt que les mains droites seront coupées ou attachées,
tout va changer de face. Vingt fois, trente fois plus de brodeuses, lisseuses et repasseuses, lingères,
couturières et chemisières ne suffiront pas à la consommation (honni soit qui mal y pense) du royaume ;
toujours en la supposant invariable, selon notre manière de raisonner.

259
Nesse artigo, encontramos mais uma vez o problema enfrentado por Turgot e analisado
por Condillac: uma vez conferido um privilégio, é muito difícil removê-lo pela atuação
daqueles cuja renda depende da restrição a competição. Na sátira de Bastiat (p. 261),
vinte anos depois da lei da mão direita, “sonhadores utópicos”, isto é, os economistas,
quererão abolir a lei, demandando liberdade para a mão direita. Os opositores, por sua
vez, argumentam que a reforma não será possível sem atrapalhar a vida de todos e o
sistema vigente seria bom pois não pode ser destruído sem causar sofrimento. Esses
sonhadores são acusados então de se basear em princípios que não foram testados pela
experiência.

Por fim, nossa visita aos sofismas econômicos estudados por Bastiat deve ainda
mencionar a questão dos “princípios” mencionados no parágrafo anterior. Como os
sofismas teriam origem em observação parcial dos fenômenos econômicos e, em última
análise, seriam caracterizados pela desconsideração dos interesses do homem como
consumidor, seus proponentes acusam os economistas de adesão doutrinária a sistemas.

Bastiat, em diversos pontos de sua obra, critica o que hoje costumamos chamar de uso
ad hoc das explicações. Em mais um capítulo de seus Sofismas, intitulado Teoria e
Prática, Bastiat (p. 73) argumenta que não existe explicação que não utilize teoria. As
explicações difeririam apenas entre aquelas teorias que fazem menção a fatos
particulares em contraste com aquelas que consideram efeitos totais, segundo a
distinção metodológica que estudamos no segundo capítulo deste trabalho.

Em outro ponto da mesma obra (p. 20), a crença dos protecionistas e homens práticos de
que em assuntos econômicos não haveriam princípios absolutos é atribuída ao caráter
inconsistente de seus argumentos. De fato, se a crítica de Bastiat consistir de fato em
casos de reductio ad absurdum, os argumentos criticados seriam inconsistentes e
naturalmente apelariam para a ausência de princípios universais. Em O que é Visto...
Bastiat (1863b, p. 370-371) afirma precisamente isso:

Em um caminho falso, há sempre inconsistência; se assim não fosse, a humanidade


seria destruída. Nós nunca vimos e nunca veremos um falso princípio realizado
completamente. Eu já disse em outro lugar: a inconsistência é o limite do absurdo.
Gostaria de acrescentar: é também a sua prova.70
Com isso, terminamos de explorar as consequências dos aspectos da obra de Bastiat que
dependem da relação entre meios e fins no contexto das interdependências entre todos
os setores da economia. Para que continuemos a exposição da Economia desenvolvida
pelo autor, é necessário abordar sua teoria do valor, que nos leva de volta às Harmonias
Econômicas.

No quinto capítulo desse livro, Bastiat propõe uma teoria do valor derivada de Say, mas
ainda assim distinta da teoria deste último. Para Bastiat, o valor dos bens diz respeito à
igualdade entre os serviços que cada um presta ao outro em trocas voluntárias.

70
Dans une fausse voie on est toujours inconséquent, sans quoi on tuerait l’humanité. Jamais on n’a vu
ni on ne verra un principe faux poussé jusqu’au bout. J’ai dit ailleurs: l’inconséquence est la limite de
l’absurdité. J’aurais pu ajouter: elle en est en même temps la preuve.

260
Para entender a teoria do valor desenvolvida por Bastiat, precisamos identificar seu
principal uso. Isso, por sua vez, requer a menção a outro autor cuja obra exerceu
significativa influência sobre Bastiat; a saber, Charles Comte. Este, assim como
Dunoyer, desenvolveu uma interpretação da história em termos do conflito entre
indústria e exploração. A versão de Comte dessa interpretação privilegia a noção de
direitos legítimos de propriedade, cuja aquisição não envolve violência. Bastiat, como
veremos na próxima seção, incorporará a distinção entre os dois tipos de atividade,
definidas em termos de respeito ou não aos direitos de propriedade, em sua Economia
institucional, que comparará os sistemas liberal, intervencionista e socialista.

A teoria do valor utilizada por Bastiat terá seu principal uso nessa comparação. Nela, as
trocas consideradas legítimas serão definidas em termos da equivalência entre serviços
trocados, ao passo que a atividade exploradora será identificada como uma discrepância
entre valores trocados. Daí a rejeição da teoria alternativa, esposada por Condillac e a
desconsideração pelos avanços nessa teoria empreendidos por Storch e Rossi.

Essa escolha, pautada pelo uso principal dado a teoria, entrará em conflito com outro
subconjunto de características da Economia da escola clássica francesa, em especial a
fundamentação da análise do autor em termos da relação entre meios e fins. Esse
conflito se manifesta em uma tensão na teoria do valor de Bastiat, que ao mesmo tempo
reconhece algumas limitações da teoria do valor dada pelos custos, mas que não avança
em direção à teoria marginalista. Na prática, o valor é explicado por Bastiat pela
quantidade de trabalho em contexto de equilíbrio parcial, com alguns toques
subjetivistas, como a ênfase no caráter prospectivo do valor: o preço se relacionaria ao
trabalho que seria poupado caso o agente pretendesse produzir a mesma coisa no futuro.
Como resultado, argumentaremos que a teoria do valor “serviço” proposta pelo autor, ao
buscar englobar todos os aspectos que influenciam os preços das mercadorias tomadas
em isolamento, acaba por sua vez se tornando uma teoria vazia de conteúdo, uma vez
que não identifica uma explicação consistente sobre a causa do fenômeno do valor.
Vejamos como Bastiat apresenta sua teoria.

Bastiat (1864a, p. 143) rejeita teorias valor baseadas em utilidade porque esta não é uma
grandeza apreciável, ao passo que valor exigira comparação e medida. Essa alegação é
consistente com a interpretação que fornecemos acima, segundo a qual a escolha da
teoria é influenciada pelo seu uso e esse uso justifica trocas em termos de igualdade dos
valores envolvidos. Bastiat (p. 145) enuncia dessa forma sua teoria do valor: “Por isso,
digo: Valor é a relação existente entre dois serviços que foram trocados”.

Procuramos em vão em sua obra uma definição mais precisa de “serviço”. Como vimos
anteriormente (p. 58), serviço é definido como a realização de um esforço para
satisfazer desejo de outra pessoa. Porém, o conceito não se identifica completamente
nem com o esforço, nem com a satisfação ou ainda com alguma relação específica entre
essas duas coisas. Assim como Say, Bastiat adota uma teoria do valor próxima daquela
expressa no modelo de equilíbrio parcial marshalliano, compartilhando de seu
ecletismo.

261
Os diferentes fatores que influenciam a determinação do preço, entretanto, são
encapsulados no termo serviço. Na avaliação, de Bastiat (1864a, p. 145):

Uma série de circunstâncias pode aumentar a importância relativa de um serviço.


Ela pode ser maior ou menor conforme a sua utilidade para nós; o número de
pessoas dispostas para realizá-lo para nós; conforme a quantidade de trabalho,
sacrifícios, habilidade, tempo, estudos prévios, na medida em que nos alivia da
necessidade de fornecer essas mesmas coisas nós mesmos. O valor depende não
apenas dessas circunstâncias, mas também da estimativa que fazemos delas; pois
isso pode acontecer, e muitas vezes acontece, que classificamos muito bem um dado
serviço, porque julgamos que ele é muito útil, enquanto que, na realidade, é
prejudicial. Por essa razão, a vaidade, a ignorância, o erro desempenham sua parte
na influência desse relacionamento essencialmente elástico e flutuante que
chamamos de valor.71
Mais adiante (p. 179), Bastiat repete que o valor “é determinado por uma multidão de
considerações, todas incluídas na palavra serviço. Se sua noção de valor engloba tudo,
as teorias dos demais teóricos são vistas como explicações parciais e são, portanto,
rejeitadas, mas nem sempre fazendo justiça as complexidades das explicações rivais.

Em especial, Bastiat pretende se afastar tanto da escola francesa (valor utilidade) quanto
da escola inglesa (valor trabalho). Se um indivíduo encontra por acaso um diamante na
praia (p. 152), ele teria valor a despeito da sua inutilidade e da ausência de esforço para
encontrá-lo. Seu valor elevado, por outro lado, seria explicado pelo esforço poupado a
um demandante do objeto, que seria influenciado por avaliação baseada em vaidade.

Nesse exemplo a utilidade é definida como propriedade intrínseca a um objeto quando o


autor rejeita a teoria do valor utilidade, mas logo em seguida é utilizada, agora
transfigurada em noção subjetiva (vaidade), na própria teoria. Do mesmo modo, o
trabalho é rejeitado e na sequência também readmitido na explicação na forma de
trabalho poupado.

Na concepção do autor (p. 147), a noção de utilidade é reservada aos objetos e diz
respeito à satisfação das necessidades, ao passo que o valor se refere ao termo médio da
tríade do autor, ou seja, o esforço. De fato, para ele (p. 187), “valor é o mal, pois nasce
do obstáculo que se interpõe entre a necessidade e a satisfação.”

O valor, além disso, diria respeito não ao trabalho realizado, mas ao trabalho poupado
ao demandante pelo produto ofertado.

O valor serviço não seria tampouco uma avaliação da importância de um objeto para
uma pessoa. Embora parta da apreciação das diversas partes envolvidas na troca, o valor

71
Une foule de circonstances peuvent augmenter l’importance relative d’un service. Nous le trouvons
plus ou moins grand, selon qu’il nous est plus ou moins utile, que plus ou moins de personnes sont
disposées à nous le rendre, qu’il exige d’elles plus ou moins de travail, de peine, d’habileté, de temps,
d’études préalables, qu’il nous en épargne plus ou moins à nous-mêmes. Non-seulement la valeur dépend
de ces circonstances, mais encore du jugement que nous en portons ; car il peut arriver, et il arrive
souvent, que nous estimons très-haut un service, parce que nous le jugeons fort utile, tandis qu’en réalité
il nous est nuisible. C’est pour cela que la vanité, l’ignorance, l’erreur ont leur part d’influence sur ce
rapport essentiellement élastique et mobile que nous nommons valeur.

262
se refere ao resultado final da barganha entre elas, isto é, ao preço livremente acordado,
que implica para o autor em equivalência de valores.

Finalmente, como o valor está relacionado aos esforços envolvidos nos serviços e não à
utilidade dos bens, Bastiat nega que qualquer objeto tenha valor que não seja redutível
ao trabalho nele contido. Em particular, recursos naturais têm seu valor reduzido ao
esforço de sua obtenção, embora de forma indireta. Sendo assim, a discussão de Bastiat
(p. 159) sobre o valor do diamante encontrado na praia demonstra similaridade com
uma teoria pura do valor trabalho:

Não, a ação da natureza não cria valor mais do que a ação do homem cria matéria.
Apenas uma dessas duas coisas deve ser verdadeira: ou o proprietário contribuiu
para o resultado final e executou serviços reais; nesse caso, a parte do valor que ele
contribui para a obtenção do carvão recai na minha definição; ou então ele entrou na
transação como um parasita e, nesse caso, recebeu pagamento por serviços que ele
não realizou e o preço do carvão é indevidamente aumentado. Esta circunstância
prova que a injustiça foi introduzida na transação; mas não pode reverter a teoria a
ponto de justificar a afirmação de que essa porção do valor é material, que o valor é
combinado, como um elemento físico, com os dons gratuitos da Providência.72
Isso corrobora nossa afirmação de que a teoria do valor de Bastiat é construída para
avaliar se um bem é fruto da indústria ou da apropriação da propriedade alheia, como a
próxima seção não deixará dúvidas.

De forma curiosa, um exemplo fornecido pelo autor (p. 161) contraria a própria teoria
que pretende ilustrar. Segundo tal exemplo, em Paris apenas a diva Sra. Malibran
consegue cantar a bela música de Rossini e a Sra. Rachel interpretar a poesia de Racine.
Os serviços raros dessas artistas encontrariam um valor equivalente na alta soma paga
por um banqueiro rico ou por um conjunto de pessoas em um auditório, ficando o preço
situado entre os extremos dados pelos valores de reserva de ofertantes e demandantes.

Nesse exemplo, poderíamos objetar que além da determinação do preço fazer uso de
avaliações subjetivas diferentes sobre a utilidade do canto, sujeitas à renda dos
demandantes, a disposição a pagar não pode ser expressa em termos de esforços
poupados, pois ninguém mais seria capaz de reproduzir a performance das artistas.

Exposta a opinião de Bastiat sobre o valor, listemos brevemente os motivos que o levam
a rejeitar as explicações rivais. Smith é rejeitado por associar o valor à materialidade
dos bens, a despeito da teria do serviço de Bastiat se aproximar do conceito de custo de
oportunidade implícito no modelo smithiano do cervo e do castor. Say, Senior e a
maioria dos economistas são criticados por atribuir valor a recursos naturais, algo que
também é atribuído a erro materialista. A explicação de Senior em termos de escassez

72
Non, l’action de la nature ne crée pas la valeur, pas plus que l’action de l’homme ne crée la matière.
De deux choses l’une: ou le propriétaire a utilement concouru au résultat final et a rendu des services
réels, et alors la part de valeur qu’il a attachée à la houille rentre dans ma définition ; ou bien il s’est
imposé comme un parasite, et, en ce cas, il a eu l’adresse de se faire payer pour des services qu’il n’a pas
rendus ; le prix de la houille s’est trouvé indûment augmenté. Cette circonstance prouve bien qu’une
injustice s’est introduite dans la transaction, mais elle ne saurait renverser la théorie au point d’autoriser
à dire que cette portion de valeur est matérielle, qu’elle est combinée, comme un élément physique, avec
les dons gratuits de la Providence

263
(rareté) também é rejeitada, pois seria apenas um elemento que diz respeito aos
obstáculos entre a necessidade e satisfação. O conceito de julgamento subjetivo (sobre a
utilidade) de Storch, por sua vez, também é descartado, pois a luz do dia também
satisfaria a lista de três condições necessárias para que algo tenha valor na definição de
Storch: existência de necessidade, capacidade do bem atender essa necessidade e
julgamento sobre sua utilidade. Aqui, Bastiat também ignora que Storch está ciente da
existência de bens livres e que a escassez afeta a proporção entre oferta e demanda e
portanto o preço. Ricardo é indiretamente criticado pela busca quimérica por medida
invariante de valor. A teoria do valor trabalho é ainda criticada por não mencionar troca,
não contemplar duração dos processos, fatores como sorte e destreza e ainda por ser
noção retrospectiva e não prospectiva. Com efeito, em vários pontos de seus textos,
Bastiat deixa enfatiza que custos passados não determinam o valor. Em sua análise do
preço revenda de um lote de terra depois da ação do progresso técnico, Bastiat (p. 340)
mostra que seu proprietário não seria capaz de obter o mesmo preço original:

... o comprador não está de forma alguma preocupado com essa circunstância. Seus
olhos estão voltados para o futuro, não para o passado. Ele está interessado, não no
que a terra custou, mas no que produzirá, e ele sabe que seu rendimento será
proporcional à sua fertilidade. Portanto, essa fertilidade tem seu próprio valor
específico, intrínseco, que independe de qualquer trabalho humano realizado sobre
ela.73
A maioria das críticas oferecidas tem algo em comum: apontam para a incompletude
das explicações existentes. A teoria do valor serviço, na opinião de seu criador, teria
pelo contrário a virtude de sintetizar todas essas teorias.

Bastiat utiliza sua teoria de maneira consistente com a natureza eclética da mesma,
salientando os elementos de utilidade, renda, trabalho, avaliação prospectiva, quando
forem necessários. Esse ecletismo é a fonte das vantagens e desvantagens de sua
abordagem. Por um lado, revela a consciência de algumas das limitações das
explicações existentes. Por outro, ao tentar englobar em uma palavra todos os fatores
que afetam os preços de uma mercadoria específica, acaba por esvaziar a explicação.
Mas, na maioria das vezes em que é utilizada, se aproxima da teoria do valor trabalho.

A consequência mais saliente da teoria do valor de Bastiat é a reaproximação de sua


Economia da perspectiva plutológica clássica. Se o início de sua obra lembra a teoria
econômica moderna, calcada na análise da relação entre meios e fins, a partir da teoria
do valor Bastiat trata os preços como parte de teoria da distribuição, com pouca relação
com as escolhas dos agentes e os usos dos recursos, caminho alternativo que seria
compatível com a tríade utilizada no início da obra. Com efeito, a análise do valor nas
Harmonias Econômicas é sucedida pela discussão do conceito de riqueza e dos fatores
determinantes dos preços dos fatores produtivos.

73
et, à vrai dire, l’acquéreur ne s’inquiète en aucune façon de cette circonstance. Ses yeux sont fixés sur
l’avenir et non sur le passé. Ce qui l’intéresse, ce n’est pas ce que la terre a coûté, mais ce qu’elle
rapportera, et il sait qu’elle rapportera en proportion de sa fécondité.

264
Essa discussão, porém, está sempre associada ao seu tema principal, que descreve a
evolução da economia em termos de empregos de mecanismos que poupam trabalho e o
deslocam para a satisfação de novas necessidades. Façamos então um esboço dessa
análise.

Como sua teoria do valor é explicada em termos de esforço e não satisfação, Bastiat
utiliza dois conceitos de riqueza: a “riqueza efetiva” ou real, que diz respeito às
utilidades geradas tanto pelo trabalho quanto pela natureza e a “riqueza relativa”,
expressa em valores, que é utilizada para se referir à fração de cada indivíduo da riqueza
total. Em outros termos, a primeira noção diz respeito ao bem-estar e a segunda à
distribuição. O crescimento, sua preocupação central, é representado então como a
transformação de valor em utilidade gratuita, ou a segunda na primeira forma de
riqueza, ou ainda redução de esforço e aumento de necessidades satisfeitas.

O mecanismo pelo qual se opera essa transformação é descrito pela teoria do capital. O
valor dos bens de capital é expresso em termos dos serviços poupados mutuamente por
seus produtores nas trocas. Os juros, por sua vez, são explicados (p. 234) por um serviço
diverso, relativo ao fornecimento dos adiantamentos produtivos. Quem fornece um
serviço qualquer nos mercados recebe um direito de adquirir bens de consumo imediato.
Mas, ao se abster de fazê-lo e poupar, viabiliza o redirecionamento de recursos para a
geração de suprimentos, matérias e máquinas que serão empregados nos processos
produtivos. Esse capital, por sua vez, aumenta a produtividade do trabalho, gerando
mais bens por unidade de esforço e ao mesmo tempo liberando esforço para ser alocado
a satisfação de outras necessidades (p. 248).

Com o desenvolvimento do pensamento socialista na época da revolução de 1848,


porém, o capital é associado à exploração do trabalhador e a legitimidade da cobrança
de juros volta ao debate político. No último ano de sua vida, enquanto trabalhava em
seu livro, Bastiat debateu com Proudhon sobre a legitimidade dos juros e as funções do
capital, como veremos mais adiante. A análise do capital nas Harmonias Econômicas é
marcada por essa discussão.

Sendo assim, Bastiat argumenta (cap. 8) que é pelo respeito à propriedade privada que o
escopo da posse coletiva de riqueza na sociedade é aumentado. O aumento da
produtividade do trabalho causado pelo uso do capital, associado ao declínio dos preços
causado pela competição representaria um declínio de utilidade onerosa, ou valor, em
relação à utilidade gratuita fornecida pelas forças naturais que substituem o esforço
humano e o realocam para outras atividades. Essa utilidade gratuita é transferida: de
propriedade privada se torna patrimônio comum da sociedade via ação da competição.

Esse processo é ilustrado (págs. 404-405) da seguinte maneira. Jean produz o bem
representado na primeira linha e Pierre o bem representado na segunda, sendo IB e ID
as utilidades totais correspondentes. As linhas pontilhadas, IA e IC, representam as
utilidades gratuitas fornecidas pela natureza, utilidades essas que não assumem valores
determinados, pois utilidade não seria apreciável quantitativamente. A utilidade onerosa
ou esforço é expresso em termos de valores, representados pelos segmentos AB e CD.
265
I A B

I C D

O progresso técnico e o uso de máquinas representam uma diminuição do esforço


necessário para se obter o mesmo resultado, sendo, portanto, um valor eliminado, AA’.
Bastiat representa esse fenômeno como um processo de transformação de propriedade
privada em propriedade pública, ou de utilidade onerosa se tornando gratuita.

I A A’ B

I C D

Logo após a mudança, Jean se beneficia da inovação, pois ainda tem condições de
cobrar AB por seu serviço. Conforme a inovação se torna comum, porém, Pierre se
torna o beneficiado, pois seu esforço CD agora passa a equivaler a A’B e ele pode
adquirir o dobro do bem produzido por Jean.

Depois de mais uma vez pedir licença para utilizar diagramas em um texto econômico,
Bastiat (p. 407) generaliza a ilustração para a sociedade como um todo. No novo
diagrama, reproduzido a seguir, do produtor no centro do círculo na figura um irradiam
os seus serviços como copista de livros, no valor de $15 cada um, recebido pelos demais
membros da sociedade, representados aqui por B, C, D e E, que retornam o mesmo total
de $60 em serviços para A.

Supondo que tal copista


invente a imprensa, e que ele
faça agora em quarenta horas o
que fazia anteriormente em
sessenta e a competição reduza
na mesma proporção o preço
do livro para $10, passaríamos
para a situação descrita na
figura dois, com aumento de
utilidade obtido com a mesma
quantidade de esforço.

Isso nos leva a um dos capítulos mais interessantes das Harmonias, referente à
competição. Esse capítulo corrobora a tese de Machovec (1995) de que a concepção de
competição entre os economistas clássicos é dinâmica, no sentido de que trata do
processo de rivalidade e inovação empresarial, ao contrário do caráter estático que
assume a partir da concentração no estado de equilíbrio competitivo, a partir da terceira
década do século vinte.

Assim como fizera com o capital, Bastiat defende a competição das críticas desferidas
pelos socialistas, enfatizando sua conexão com a distribuição dos ganhos da inovação.
Inicialmente, o autor (p. 350) define competição em termos institucionais, como

266
ausência de autoridade que se coloca como juiz das trocas, substituindo as decisões
individuais. Sendo assim, competição é identificada com liberdade ou ausência de
opressão.

Definida sua essência, Bastiat indaga se seus efeitos seriam nocivos ou benéficos. Como
a nossa exposição das idéias do autor deixa clara, a competição exerce papel
fundamental no processo de difusão dos ganhos inerentes à adoção de processos que
aumentam a proporção entre resultados e esforços. A competição, portanto, teria a
função de distribuir os ganhos dos aumentos de produtividade. Para Bastiat (p. 355), a
busca pela melhora de sua situação que caracteriza o ser humano atua em conjunto com
a liberdade de concorrência para que os ganhos gerados no processo se espalhem para o
resto da sociedade:

Assim, o interesse pessoal é aquela força individualista indomável que nos faz
procurar o progresso, que nos faz descobrir, que nos instiga o flanco, mas ao mesmo
tempo nos dispõe a monopolizar nossas descobertas. Concorrência é essa não menos
indomável força humanitária que arranca o progresso, à medida que se realiza, das
mãos do indivíduo e o torna herança comum da grande família humana. Essas duas
forças, que podem ser deploradas quando consideradas individualmente, trabalham
juntas para criar nossa harmonia social.74
Sob a ação do auto-interesse, o homem procura monopolizar os recursos naturais
existentes, as técnicas produtivas que só ele conhece ou ainda uma fonte única de um
recurso produtivo. Em ambiente caracterizado pela liberdade de competição, porém,
essa tendência é contraposta por outra força.

O processo competitivo é então descrito em três estágios. No primeiro, ocorre a


invenção. Esta é descrita como a conquista da natureza pelo gênio humano. Quem
primeiro imagina uma técnica produtiva adquire, nessa primeira etapa, toda a utilidade
gratuita ou fruto do trabalho extra exercido pela natureza em substituição aos esforços
humanos.

A segunda fase, por sua vez, é caracterizada pela imitação, quando a técnica
gradualmente se torna conhecida por outros produtores, atraídos pelo ganho extra. O
efeito da imitação seria o declínio da remuneração pela atuação da ação da
concorrência.

O terceiro e último estágio é denominado fase da distribuição universal. A invenção,


propriedade privada de quem inicialmente a concebeu, se torna propriedade comum
gratuita. Quando o preço se aproxima dos custos, da equivalência entre serviços, a
produtividade extra possibilitada pelo uso de forças naturais é desfrutada por todos que
adquirem os bens cuja obtenção requer menos sacrifício.

74
Ainsi l’intérêt personnel est cette indomptable force individualiste qui nous fait chercher le progrès, qui
nous le fait découvrir, qui nous y pousse l’aiguillon dans le flanc, mais qui nous porte aussi à le
monopoliser. La concurrence est cette force humanitaire non moins indomptable qui arrache le progrès,
à mesure qu’il se réalise, des mains de l’individualité, pour en faire l’héritage commun de la grande
famille humaine. Ces deux forces, qu’on peut critiquer quand on les considère isolément, constituent dans
leur ensemble, par le jeu de leurs combinaisons, l’harmonie sociale.

267
Considerando o processo competitivo como um todo, Bastiat rejeita a tese sobre seus
efeitos maléficos. Entre os autores socialistas na França do período, a competição nos
mercados era um dos alvos centrais de crítica. Essa crítica, na opinião de Bastiat, é
atribuída à análise efetuada sob ótica parcial, que faz uso da ficção analítica que divide
os homens segundo classes de produtores e as rivalidades em seu interior. Porém,
quando olhada sob a ótica geral do economista, que trata das inter-relações entre as
funções e os setores da economia, a competição se torna elemento chave da difusão do
progresso entre todos. Sendo assim, a miséria, em vez de fruto da competição, seria
sintoma de sua ausência, pela ação de fatores como monopólios legais, cargos e
influência no governo, acesso a empréstimos sob condições especiais e demais fatores
que poderiam ser descritos como antítese da competição. Esses fatores, que atuam na
direção contrária ao desenvolvimento da harmonia social, serão deixados para a
próxima seção.

Aqui, resta ainda mencionarmos brevemente o tratamento dado aos outros dois fatores
produtivos, a terra e o trabalho. Esse tratamento é determinado pela teoria do valor
serviço e seu uso principal. Como a troca livremente acordada de serviços equivalentes
fornecerá o critério utilizado por Bastiat para distinguir indústria de espoliação e ao
mesmo tempo os socialistas adotam posição diversa, segundo a qual a posse de terra e
capital envolve a existência de rendimentos não justificáveis pelo trabalho, o autor
buscará negar que existam rendimentos que não sejam explicados pelos serviços.

O caso do trabalho é trivial, pois a teoria do valor serviço na prática é uma variante da
teoria do valor trabalho. Os juros do capital, como já vimos, são associados ao serviço
de fornecimento de avanços produtivos que viabilizam os investimentos. A terra, por
fim, geraria uma renda que para Bastiat (p.314) seria explicável pelos serviços a ela
aplicados pelos seus proprietários:

A terra, como meio de produção, na medida em que o dono da terra a prepara,


trabalha, a cerca, drena, melhora, acrescenta outros implementos necessários a ela,
produz valor, que representa os serviços humanos disponibilizados, e esta é a única
coisa que cobrada pelo proprietário.75
Esses serviços, devemos lembrar, seriam ainda relativos aos esforços poupados a um
eventual comprador da terra e não os serviços de fato implementados no passado (p.
320).
Mas a afirmação de que todo valor é tributável a serviços dessa natureza implica na
negação da existência de monopólios não legais da terra, como aqueles gerados por
vantagens locacionais. A renda da terra que preocupa os economistas ingleses não seria
um problema, pois Bastiat (1864b), em Cobden e a Liga, atribui esse ganho
injustificado à conquista efetuada pelos guerreiros que se tornaram os nobres que
controlam o parlamento.

75
L’instrument-terre, en tant que le propriétaire l’a préparé, travaillé, clos, desséché, amendé, garni
d’autres instruments nécessaires, produit de la valeur, laquelle représente des services humains effectifs,
et c’est la seule chose dont le propriétaire se fasse payer.

268
A redução da renda da terra a serviços, no entanto, encontra dificuldades fora do
contexto no qual não existe escassez de terra. Bastiat de fato foge do problema ao apelar
para exemplos de aquisição de terra nos Estados Unidos em sua época, situação para a
qual a terra tem custo de oportunidade reduzido, cenário particular favorável à sua
opinião.
A posição adotada por Bastiat o contrapõe a muitos economistas que escreveram antes
dele, que atribuem valor aos recursos naturais e não apenas ao trabalho. Esses autores
são acusados de adotar perspectiva materialista. No entanto, ao reservar o termo valor
aos esforços e não a utilidade, o próprio Bastiat fica restrito à concepção materialista de
Economia implícita no modelo plutológico. Se sua praxiologia adotasse uma teoria do
valor subjetiva, o preço dos recursos naturais escassos, maior do que os serviços neles
incluídos, poderiam ser explicados em termos alocativos, ou seja, tendo em vista a
comparação da urgência de usos alternativos. Sob a ótica da teoria clássica, porém, é
natural a conclusão de que terra envolve rendas imerecidas.
Para encerrar a discussão da distribuição, tratemos dos salários e da população.
Considerando que o emprego de novos bens de capital e a inovação em geral
desempenham papel proeminente no sistema de Bastiat, bem como a maneira como esse
aumento de produtividade se traduz em aumento da renda real da população, é natural
que esse autor não compartilhe dos temores de Malthus e Ricardo.
Como o ambiente intelectual francês no final da vida de Bastiat é marcado pelas
propostas de associacionismo entre trabalhadores, como substituto ao mercado de
trabalho assalariado, o capítulo sobre salários das Harmonias Econômicas trata da razão
de ser deste último. Essa razão consistiria na maior aversão ao risco dos trabalhadores,
que prefeririam a negociação de valor pré-estabelecido, independentemente dos
resultados dos empreendimentos. Nas palavras do autor (p. 453-453):
O que os trabalhadores não entenderam é que a associação, tal como os socialistas
pregam, é a infância da sociedade, o período das tentativas e erros, das falhas
repentinas, do revezamento entre abundância e marasmo, numa palavra, o reinado
absoluto do aleatório. O sistema salarial, ao contrário, é aquele grau intermediário
que separa o aleatório da estabilidade.76
O leitor, mais uma vez, pode constatar a semelhança com os modelos modernos de
agência aplicados ao mercado de trabalho.
Nos resta agora voltar ao ponto de partida, a Economia institucional que caracteriza a
obra do autor. Esta compara sistemas econômicos caracterizados pelo respeito à
propriedade privada com aqueles nos quais a propriedade é predominantemente violada.
A análise desses últimos é a parte mais incompleta da inacabada Harmonias
Econômicas. Felizmente, porém, podemos contar uma série de outras publicações nas
quais o autor desenvolve o tema, que passamos a examinar na próxima seção.

76
Ce que les ouvriers n’ont pas compris, c’est que l’association, telle que les socialistes la leur prêchent,
c’est l’enfance de la société, la période des tâtonnements, l’époque des brusques écarts, des alternatives
de pléthore et de marasme, en un mot, le règne absolu de l’aléatoire. Le salariat, au contraire, est ce
degré intermédiaire qui sépare l’aléatoire de la stabilité.

269
5.6.2. Economia e Estado em Bastiat: a espoliação legal
Refletindo o ambiente político da França nos meados do século dezenove, o pensamento
de Bastiat é marcada pelo embate entre o liberalismo, o socialismo e o protecionismo.
Em sua obra, esse embate é organizado como o contraste entre sistemas econômicos,
assim como ocorrera com os economistas da escola clássica francesa desde suas
origens. O contraste original entre os sistemas liberal e mercantilista é generalizado, nas
mãos de Comte e Dunoyer, em uma interpretação histórica da evolução de sistemas. De
sociedades inicialmente marcadas pela exploração econômica, a história caminha em
direção ao industrialismo, com mais espaço para a liberdade. Com a continuação do
crescimento do estado central e o paralelo desenvolvimento do pensamento socialista, a
comparação entre sistemas na obra de Bastiat se expande, contrapondo economias com
diferentes graus de emprego de poder político centralizado.
O liberalismo de Bastiat e dos economistas franceses passa a enfrentar dois oponentes:
por um lado o conservadorismo, que em termos econômicos esposa o protecionismo e
por outro o socialismo, que atribui à competição a existência da pobreza. Em
contraposição, esta última será tratada por Bastiat como consequência das próprias
políticas e instituições defendidas pelos conservadores e socialistas, ambos partidários
de um estado com mais funções que os liberais atribuíam a ele.
A maneira como Bastiat organiza sua interpretação de sistemas econômicos é derivada
das obras de Charles Comte, que estudara na juventude e em menor grau os textos de
Dunoyer, autor que ele conhecia pessoalmente. Bastiat criará sua própria tipologia de
sistemas, que utiliza conceitos derivados das obras desses dois autores. Diferirá destes,
contudo, em aspectos significativos. Em primeiro lugar, ao contrário de Dunoyer,
Bastiat não se ocupa com o fornecimento de uma explicação da evolução histórica
desses sistemas. A despeito de revelar em alguns momentos algum otimismo, não
pretende demonstrar a inevitabilidade de seu sistema liberal. Em segundo lugar, e mais
importante, Bastiat adota postura inversa a Comte e Dunoyer: em vez de aplicar teoria
econômica à análise fundamentalmente histórica, a interpretação da história desses dois
autores é absorvida na teoria econômica. Bastiat incorpora em seus escritos o estudo da
maneira como indivíduos auto-interessados se comportam nos diferentes arranjos
institucionais contrastados, examinando as consequências não intencionais desse
comportamento. A despeito das diferenças em relação a Comte e Dunoyer, um elemento
central da economia da política de Bastiat é derivado do primeiro desses autores: o
contraste entre economias baseadas predominantemente em trocas voluntárias de
serviços ou em espoliação do trabalho alheio é feita em termos do grau de respeito à
propriedade privada possibilitado pelo arranjo institucional sob exame.
A comparação de sistemas econômicos baseada no uso de um mesmo pressuposto
comportamental – o interesse próprio – atuando em ambientes institucionais
caracterizados por diferentes graus de respeito aos direitos de propriedade nos permite
classificar o autor entre os pioneiros no desenvolvimento da economia neoinstitucional
em geral e da economia da escolha pública em particular. A análise de Bastiat, além
disso, combina tanto a busca proposital de rendas junto ao sistema político quanto a

270
expansão desse fenômeno como consequência não intencional da defesa de certas
políticas. Com isso, sua análise também contém elementos da abordagem austríaca.
Vejamos então os principais elementos dessa análise. Em A Fisiologia da Espoliação,
Bastiat (1863a) utiliza o mesmo ponto de partida de sua teoria econômica: a relação
entre necessidade, esforço e satisfação. Existiriam dois meios fundamentais para se
atingir um propósito qualquer dos agentes: a produção e a espoliação. Como as duas
atividades são comuns, a teoria econômica deve tratar de ambas.
Como esses dois modos de ação são definidos? No primeiro caso, serviços mútuos são
doados ou trocados voluntariamente por pessoas que aceitam a propriedade dos bens, ao
passo que espoliação é definida (1863a, p. 358), em A Lei, como o oposto do caso
anterior; ou seja, ação involuntária, ou violação de propriedade. Em A Fisiologia da
Espoliação (1863a, p. 131), o fenômeno é definido como o bloqueio da liberdade de
trocas por meio da força ou fraude, com o propósito de receber um serviço sem oferecer
outro em retorno.
As traduções de Bastiat para o inglês costumam traduzir o termo original spoliation
como saque (plunder), com a intenção de se aproximar da conotação do original77.
Bastiat, entretanto, explicitamente afirma (1863a, p. 358) que escolheu um termo para
roubo, espoliação, que suscite menos conotações normativas, pois, como vimos, não
duvida da sinceridade das intenções daqueles que defendem os sistemas que ele
condena. As pessoas se aproveitariam ou seriam vítimas de sistemas injustos sem que o
saibam. Respeitando a intenção original do autor, empregadores espoliação no restante
da exposição e análise de suas idéias.
Em A Lei, a espoliação nos tempos modernos se manifesta sob a influência de duas
causas básicas, que ele denomina falsa filantropia e egoísmo ininteligente. A falsa
filantropia dará origem a leis cujas consequências não intencionais promovem a
espoliação. O egoísmo que induz a espoliação, por sua ver, tenderia a render menos ao
próprio espoliador se compararmos com a riqueza que seria obtida por ele em um
sistema no qual a espoliação não predomine.
O que é digno de nota na teoria de Bastiat, porém, é a fundamentação da espoliação na
própria natureza humana. Essa atividade deveria ser explicada pela Economia através do
emprego do mesmo princípio do auto-interesse utilizado pelos economistas para
examinar a atividade produtiva. De fato, para Bastiat (1863a, p. 346), além da produção
... há outra disposição que também é comum entre os homens. É viver e se
desenvolver, quando for possível, à custa do outro. ... Essa disposição lamentável
brota da própria natureza do homem, daquele sentimento primitivo, universal e
inconquistável que o impele a buscar seu próprio bem-estar e evitar a dor.78
Esse ponto de vista é central na obra do autor. No capítulo dezoito das Harmonias
Econômicas, lemos que a espoliação deve ser objeto de estudo da teoria econômica. Em

77
Ver notas de rodapé do tradutor em Bastiat (1995), páginas 64 e 152.
78
Mais il est une autre disposition qui leur est aussi commune. C’est de vivre et de se développer, quand
ils le peuvent, aux dépens les uns des autres. ... Cette disposition funeste prend naissance dans la
constitution même de l’homme, dans ce sentiment primitif, universel, invincible, qui le pousse vers le
bien-être et lui fait fuir la douleur.

271
Propriedade e Espoliação, Bastiat (1863a, p. 425) reafirma que tanto a propriedade
quanto a espoliação são “irmãs nascidas do mesmo pai”, o auto-interesse. Essa
perspectiva, fundamental para Bastiat e para as três escolas das quais situamos Bastiat
como precursor, não foi incorporado no mainstream da teoria contemporânea, que ainda
trata fenômenos derivados desse comportamento como eventos fortuitos, cuja análise
não merece tratamento sistemático, pelo menos não pela teoria pura.
Já para Bastiat, a incidência do fenômeno depende dos incentivos gerados pelas
instituições, que alteram os benefícios e custos de um agente auto-interessado se dedicar
à espoliação, a despeito da presença de fatores morais. De fato, em A Lei Bastiat (1863a,
p. 346) afirma que:
... o trabalho sendo doloroso em si mesmo, e o homem sendo naturalmente inclinado
a evitar a dor, se segue que – a história está aí para provar isso – onde quer que a
espoliação seja menos onerosa do que o trabalho, ela prevalece; e nem a religião
nem a moralidade podem, neste caso, impedi-la. Quando, então, a espoliação cessa?
Quando se torna mais onerosa e mais perigosa que o trabalho. 79
Como se manifesta a espoliação? O autor utiliza a esse respeito o mesmo tipo de análise
que encontramos em Comte e Dunoyer. Em Propriedade e Espoliação, Bastiat (1863a,
p.432) lista diversas formas pelas quais o fenômeno ocorre: guerra, escravidão,
servidão, teocracia, taxação abusiva e, se implementado, o socialismo, no qual a
espoliação, prevê o autor, assumiria proporções sem precedentes.

Na Fisiologia da Espoliação, Bastiat (1863a, p. 130) lista quatro espécies de espoliação


– guerra, escravidão, teocracia e monopólio, sendo este último composto pelas variantes
dadas pelas sinecuras, privilégios e restrições comerciais.

Afirmamos na seção anterior que a interpretação da história como lutas entre


exploradores e explorados tal como descrita por Comte e Dunoyer não pode ser
facilmente comparada com a teoria da exploração de Marx, devido à ausência de uma
explicação única ou predominante sobre a origem da exploração nos dois autores
franceses. Como afirmamos, estes invocavam a interação storchiana entre causas
morais, institucionais, econômicas e biológicas. No que diz respeito a Bastiat, porém,
uma comparação seria mais fácil, pois este último fornece uma explicação teórica para a
história narrada por Dunoyer. A teoria da exploração de Bastiat (1863a, p. 337) tem
claramente causas institucionais e restrições comportamentais dadas pela natureza
humana. A comparação se torna mais nítida no que diz respeito à origem da exploração
quando a legislação, cujo propósito deveria ser contrariar a disposição natural à
espoliação, se transforma naquilo que o autor denomina espoliação legal, ou roubo
organizado pela lei. Se para Marx a exploração tem origem em fenômenos econômicos,

79
Or, le travail étant en lui-même une peine, et l’homme étant naturellement porté à fuir la peine, il
s’ensuit, l’histoire est là pour le prouver, que partout où la spoliation est moins onéreuse que le travail,
elle prévaut; elle prévaut sans que ni religion ni morale puissent, dans ce cas, l’empêcher. Quand donc
s’arrête la spoliation? Quand elle devient plus onéreuse, plus dangereuse que le travail.

272
e estes em causas tecnológicas, em Bastiat sua origem tem causas políticas, ou nas
reações da natureza humana diante da existência de poder não restrito80.

Para explicar a ubiquidade da espoliação, é necessário introduzir na análise a operação


de fatores ideológicos. Como notamos anteriormente, o fenômeno da espoliação em
Bastiat tem origens tanto na atuação do auto-interesse quanto nas consequências não
intencionais das idéias.

Na Fisiologia da Espoliação compara-se as espoliações direta e legal em termos da


facilidade de sua identificação. O ladrão isolado causa medo e gera reação contrária da
maioria. Atuar em bando, porém, basta para a formação de uma ideologia que justifique
esse tipo de atividade. Segundo Bastiat (1863a, p. 132), o ladrão,

... se ele tiver alguns companheiros, ... se vangloria de suas façanhas, e aqui pode-se
começar a notar o poder da opinião pública; pois é preciso apenas a aprovação de
seus cúmplices para aliviá-lo do sentimento de que ele está fazendo algo errado e até
mesmo para deixá-lo orgulhoso de sua desonra.81
Esse fenômeno é ilustrado de forma interessante por Chalamov (2016), em seu estudo
sobre o código de conduta dos blatares, os presos por crimes comuns nos campos de
trabalho forçado soviéticos. Tal código, além de justificar atrocidades, criava uma
hierarquia de privilégios que inspirava os jovens a se juntar ao grupo.

Tomando grupos maiores de exploradores, o caso da espoliação praticada por casta de


guerreiros não se depararia com resistência interna significativa, pois a maioria das
vítimas se encontram nas regiões conquistadas.

Quando a espoliação é generalizada de um grupo reduzido para um grupo maior,


acrescenta Bastiat (p. 128), surge tanto um sistema legal que justifica a espoliação
quanto um código moral que glorifica a exploração.

Já em um regime político representativo, a espoliação requer justificativa ideológica


mais elaborada, pois projetos de lei que envolvam privilégios legais ou impostos sem a
contrapartida em serviços públicos requerem em última análise a aprovação geral.
Sofismas econômicos se tornam nesse sentido ferramentas de espoliação legal: “quando
detectares um sofisma em uma petição, coloquem a mão no bolso”, aconselha Bastiat
(1863a, p. 113) em seus Sofismas Econômicos.

Além de facilitar a espoliação legal, fatores ideológicos podem até mesmo fazer com
que as pessoas mantenham a ilusão de que devem tudo o que têm à própria espoliação e,
sem o desejar, se tornem elas próprias espoliadoras (p. 130): “monopólios desse tipo são
engendrados por fraudes e nutridos por erros.” A exploração teocrática também ilustra o
papel da ideologia. Nesse tipo de fraude, as pessoas são induzidas a crer que seus

80
Ao empreender tal comparação, sugerimos ao leitor consultar a tese de Raico (2012) sobre o assunto.
81
Cependant, s’il a quelques associés, il s’enorgueillit devant eux de ses prouesses, et l’on peut
commencer à remarquer ici la force de l’Opinion; car il suffit de l’approbation de ses complices pour lui
ôter le sentiment de sa turpitude et même le rendre vain de son ignominie.

273
serviços concretos possam ser trocados por serviços fictícios, como o acesso ao paraíso.
A exploração se torna efetiva se a elite exploradora consegue criar tabus, proibir o
exame de dogmas e restringir o acesso ao aprendizado pelo uso de hieróglifos.

Ecoando o pensamento dos ideólogos cinquenta anos antes, Bastiat enxerga como único
antídoto contra as formas de exploração a ação libertadora do conhecimento. Como seu
modelo envolve a concorrência entre as atividades produtiva e espoliadora, a expansão
do conhecimento reduziria os incentivos para essa última: a espoliação, de maneira
malthusiana, se multiplicaria conforme os meios existentes, que no caso seria a
credulidade dos enganados (p. 140).

Depois de investigar como o auto-interesse impulsiona o homem a buscar seus fins


através tanto da produção quanto da espoliação, vejamos como o estado moderno é
visto em termos dos incentivos a essas duas modalidades de ação. Na obra de Bastiat,
esse estudo envolve a descrição das funções do estado tidas como legítimas e como a
extensão dessas atividades engendram a espoliação legal, que caracterizariam tanto do
protecionismo quanto do socialismo.

No capítulo dezessete de sua Harmonias Econômicas, Bastiat trata dos serviços


ofertados pelo estado. Escrevendo antes do surgimento do conceito moderno de bem
público, que aparece apenas na geração seguinte de economistas da escola clássica
francesa, Bastiat define serviços públicos apenas como aqueles cujo uso se torna “geral
o bastante” para ser ofertado pelo governo.

A discussão dos bens públicos revela que Bastiat (1864a, p. 537) não é um anarquista.
Para ele, a tributação não pode ser classificada como intrinsecamente espoliadora:

Se a tributação não constitui necessariamente uma perda, menos ainda ela é


necessariamente uma espoliação. Sem dúvida, nas sociedades modernas, a
espoliação pela tributação é, sem dúvida, praticada em uma escala imensa. Como
veremos mais tarde, esta é uma das causas principais entre aquelas que perturbam a
equivalência de serviços e a harmonia de interesses. Mas a melhor maneira de
combater e destruir o abuso da tributação é se preservar desse exagero que a
representa como inerentemente espoliativa.82
Consistente com seu programa de pesquisa, o imposto se torna espoliador como
consequência não intencional de certos fenômenos. Antes de estudar estes últimos, o
procedimento correto exigiria supor ausência de espoliação. O critério de legitimidade
empregado pelo autor, como revela a citação acima, é o mesmo adotado para o setor
privado: equivalência de serviços trocados, só que agora negociados de forma coletiva,
seja por autocracias ou por assembleias representativas. Quais seriam para o autor então
os serviços legítimos ofertados pelo estado?

82
Si l’impôt n’est pas nécessairement une perte, encore moins est-il nécessairement une spoliation. Sans
doute, dans les sociétés modernes, la spoliation par l’impôt s’exerce sur une immense échelle. Nous le
verrons plus tard; c’est une des causes les plus actives entre toutes celles qui troublent l’équivalence des
services et l’harmonie des intérêts. Mais le meilleur moyen de combattre et de détruire les abus de
l’impôt, c’est de se préserver de cette exagération qui le représente comme spoliateur par essence.

274
Para Bastiat (1864a, p. 551), o estado deveria se ocupar dos serviços que requerem
coerção, ou seja, a administração da justiça e da segurança interna e externa: “O
governo age apenas pela intervenção da força; portanto, sua ação é legítima somente
quando a intervenção da força é legitimada.” Assim como Say, Bastiat admite ainda
como funções legítimas a administração de rios, florestas e estradas.

Depois de tratar das funções legítimas, devemos mostrar como se manifesta a


espoliação legal, como consequência não intencional da expansão do estado. Para tal, é
necessário antes listar as inconveniências inerentes aos serviços públicos.

Em primeiro lugar, as decisões coletivas resultam em quantidade e qualidade uniforme


dos serviços prestados, o que pode atender aos gostos e necessidades médias, diferentes
das necessidades individuais. Em seguida, empregando sua concepção dinâmica de
competição, Bastiat nota que a burocracia implica em ausência de progresso: como em
geral o estado proíbe a competição na oferta de vários dos bens que provê, não existiria
sob monopólio e com funcionários seguindo leis impessoais em vez de julgamento
próprio uma tendência à melhoria do serviço e redução de custos. Serviços públicos
implicam ainda ausência de provisão para situações especiais. Livres da
responsabilidade de provisão, o indivíduo perde a responsabilidade e a iniciativa.

Uma consequência importante dessa perda de responsabilidade associada à provisão


pública, não competitiva, de serviços é a supressão do julgamento e da experiência
adquirida durante processos de aprendizado. Nesse ponto se manifesta mais uma vez um
tema recorrente nas Harmonias Econômicas; a saber, a emergência da ordem através de
processos de aprendizados por eliminação de erros. Nas palavras de Bastiat (p. 545):

Enquanto houver livre escolha, todas as faculdades humanas – comparação,


julgamento, previsão – continuarão a ser exercitadas. Enquanto houver livre escolha,
toda boa decisão traz sua recompensa; todo erro, sua punição; e a experiência, esse
complemento severo de previsão, cumpre sua missão, de modo que a sociedade não
pode deixar de melhorar.83
Novamente coerente com sua abordagem institucional, que compara diferentes arranjos
institucionais a partir do emprego de uma mesma suposição comportamental atuando
nos sistemas que são comparados, Bastiat (p. 540) não isenta os tomadores de decisões
na esfera da ação coletiva dos efeitos do conhecimento falível e portanto da necessidade
de aprendizado:

A culpa é imputável, não ao princípio da troca, mas à imperfeição da natureza


humana; e o remédio deve ser encontrado apenas na própria responsabilidade (isto é,
na liberdade), uma vez que é a fonte de toda a experiência. Introduzir a coerção na
troca, destruir o livre-arbítrio com o pretexto de que os homens cometam erros, não
melhoraria as coisas, a menos que se possa provar que o agente autorizado a aplicar

83
Alors toutes les facultés humaines, la comparaison, le jugement, la prévoyance, restent en exercice.
Alors toute bonne détermination amène sa récompense comme toute erreur son châtiment ; et
l’expérience, ce rude suppléant de la prévoyance, remplit au moins sa mission, de telle sorte que la
société ne peut manquer de se perfectionner.

275
a coerção está isento da imperfeição de nossa natureza, não está sujeito nem a
paixões nem aos erros, e não pertence à humanidade.84
Qualquer irracionalidade que se atribua aos agentes econômicos deve ser também
imputada aos funcionários públicos e políticos que pretendem corrigir os problemas
derivados dessa irracionalidade, se o defensor de solução centralizada não quiser em sua
argumentação incorrer em uma petição de princípio. O mesmo falibilismo justificando o
aprendizado por tentativas e erros, o cerne da epistemologia evolucionária que
utilizamos no primeiro capítulo, se manifesta, portanto, na obra de Bastiat, assim como
nas de Turgot e Dunoyer, como relatamos.

Em A Fisiologia da Espoliação, Bastiat (1863a, p. 141) aplica à oferta de serviços


públicos um conhecido viés comportamental: a tendência a exagerar o valor dos
serviços que se presta e minimizar os que se recebe. Nas transações privadas, a ação da
concorrência reduz esse problema, fazendo com que o processo de barganha resulte na
convergência do preço para um valor intermediário. Como o estado “é composto de
homens (embora hoje isso seja negado, pelo menos por implicação)”, o mesmo viés se
manifestaria na oferta de bens públicos. Nesse caso, porém, as instituições são tais que a
atuação da barganha praticamente não se manifesta. Como resultado, teríamos uma
tendência à superprodução de bens públicos, ou, nos termos de Bastiat, o rompimento
da igualdade entre serviços nas trocas políticas.

Nas Harmonias Econômicas Bastiat (1864a, p. 548) argumenta que esse tipo de
fenômeno leva à expansão do estado. Essa expansão implica em rigidez para baixo nos
gastos, pois o público perde de vista a alternativa descentralizada. Bastiat utiliza esse
tipo de explicação para interpretar os eventos em torno da revolução de 1848: o
atrofiamento da responsabilidade derivado da expansão do estado teria feito que, diante
da crise gerada por essa expansão, o público demande junto ao governo revolucionário
mais, e não menos, controles diante da ineficácia dos controles prévios.

Dada a própria natureza da espoliação, esta se mantém estável apenas se uma minoria
explorar a maioria. Se durante a revolução a opinião pública também demanda
privilégios legais para si em vez de liberdade, as promessas não serão cumpridas,
adicionando instabilidade ao sistema. Bastiat (p. 427) descreve a situação como um
sistema generalizado de espoliação mútua:
Ocorre que as classes privilegiadas, roubando-se mutuamente, perdem pelas
exigências que recaem sobre elas pelo menos tanto quanto ganham com aquelas que
recebem. Além disso, a grande massa de trabalhadores, a quem nenhum privilégio
foi concedido, sofre, míngua e não pode resistir. Ela se insurge, cobre as ruas com
barricadas e sangue, e assim se faz necessário responder a ela.85

84
La faute n’en est pas à l’échange, mais à l’imperfection de la nature humaine; et le remède ne saurait
être ailleurs que dans la responsabilité elle-même (c’est-à-dire dans la liberté), puisqu’elle est la source
de toute expérience. Organiser la contrainte dans l’échange, détruire le libre arbitre sous prétexte que les
hommes peuvent se tromper, ce ne serait rien améliorer ; à moins que l’on ne prouve que l’agent chargé
de contraindre ne participe pas à l’imperfection de notre nature, n’est sujet ni aux passions ni aux
erreurs, et n’appartient pas à l’humanité.
85
Il arrive que les classes priviligiées, se volant réciproquement, perdent au moins autant, par les
exactions qu’elles subissent, qu’elles gagnent aux exactions qu’elles exercent. En outre, la grande masse

276
Isso nos leva à descrição dos efeitos de longo prazo do sistema de espoliação legal que
se manifesta como consequência não intencional da expansão do estado. Em Justiça e
Fraternidade, Bastiat (1863a, p. 313) prevê, assim como Say e Destutt de Tracy, que a
consequência do estado tomar para si a responsabilidade de tudo é a deterioração das
finanças públicas. Depois de explorar os limites do financiamento por tributos, o estado
passa a se financiar por empréstimos: “depois de ter drenado o presente, o estado
devorará o futuro”.

No mesmo texto, Bastiat (p. 320) nota que, ao contrário da espoliação direta, a
espoliação legal se expande sem que isso incomode a consciência das pessoas. Uma
explicação mais completa desse fenômeno é provida em O Estado. Nesse ensaio
(1863a) encontramos uma explanação que pode ser interpretada como uma aplicação do
seu tema “o que é visto e o que não é visto”. Segundo Bastiat, a separação entre meios e
fins, origem da falácia fundamental sobre temas econômicos, também se manifesta no
setor público: aos olhos da população, a tributação e os serviços aparentemente
“gratuitos” são dissociados. Entre as promessas impossíveis de soluções centralizadas e
as expectativas irrealizáveis do público, abre-se espaço para a ação tanto dos ambiciosos
quanto dos utópicos, ambos, por motivos diferentes, dissociando os benefícios dos
custos das escolhas públicas. A maneira prática de conciliar o que é visto e o que não é
visto, novamente, envolve “devorar o futuro”, trocando-se pequeno benefício presente
por custo significativo no futuro (p. 336).

Nesse contexto que devemos ler aquela que provavelmente é a frase mais conhecida do
autor (1863a, p. 332), retirada de O Estado: “O governo é a grande ficção através da
qual todos se esforçam para viver às custas de todo o mundo.”

A análise da dinâmica de expansão e crises do estado feita por Bastiat pode ser
classificada em seu espírito como um modelo de parasitismo. Essa ideia é expressa na
Fisiologia da Espoliação (1863a, p. 141) por meio da comparação do processo com a
teoria da população de Malthus:

O estado também está sujeito à lei malthusiana. Ela tende a ultrapassar o nível de
sues meios de existência, ele aumenta em proporção desses meios, que não são outra
coisa que não a substância do povo. Ai das pessoas que não podem limitar a esfera
de ação do estado! Liberdade, iniciativa privada, riqueza, felicidade, independência,
dignidade pessoal, tudo desaparece.86
Como parlamentar e publicista, Bastiat se opõe em seus escritos ao protecionismo e ao
socialismo. Como teórico, sua análise da espoliação legal privilegia as consequências
não intencionais da expansão do estado, sejam quais forem as motivações daqueles que
defendem o uso do poder político como meio para seus planos. Nessa perspectiva, a
diferença relevante entre protecionismo e socialismo é apenas de grau de intervenção e

des travailleurs, à qui l’on n’a pas pu accorder de priviléges, souffre, dépérit et n’y peut résister. Elle
s’ingurge, couvre les rues de barricades et de sang, et voici qu’il faut compter avec elle.
86
L’État aussi est soumis à la loi malthusienne. Il tend à dépasser le niveau de ses moyens d’existence, il
grossit en proportion de ces moyens, et ce qui le fait exister c’est la substance des peuples. Malheur donc
aux peuples qui ne savent pas limiter la sphère d’action de l’État. Liberté, activité privée, richesse, bien-
être, indépendance, dignité, tout y passera.

277
a crítica a ambos os sistemas é a mesma, em termos dos efeitos da violação dos direitos
de propriedade privada. Definindo o socialismo pelos meios usualmente invocados, que
pedem a organização das relações pelo intermédio da ação política, o socialismo
equivale no referencial bastiatiano a um sistema de espoliação universal (1863a, p. 354).

Quanto às objeções mais direcionadas aos sistemas que critica, como já tivemos a
ocasião de estudar, as políticas protecionistas são criticadas em termos da sua
inconsistência quando contemplamos os seus impactos em todos os setores da
economia. As objeções ao socialismo, por sua vez, são dirigidas ao pretenso
conhecimento superior de um planejador central em relação ao resto da população, que
dispensaria processos descentralizados de aprendizado. A pretensão do planejador
contrasta com a complexidade das relações economias que já examinamos no início das
Harmonias Econômicas. Esse contraste entre o papel ativo do planejador e passivo da
população é expresso por Bastiat (1863a, p. 364) em A Lei através da metáfora de um
oleiro ou jardineiro em relação ao material que manipula, tal como as peças do tabuleiro
de xadrez da mesma comparação smithiana:

Partindo dessa suposição, assim como todo jardineiro, de acordo com sua fantasia,
corta árvores em pirâmides, sombrinhas, cubos, cones, vasos, treliças, rocas e
leques, para que todo socialista, segundo seu capricho, apare a pobre humanidade
em grupos, séries, centros, subcentros, células, oficinas sociais, harmonizadas,
contrastadas, etc., etc.87
Uma vez que já tratamos dos argumentos gerais empregados por Bastiat em sua análise
de sistemas comparados, não seria útil examinar cada texto no qual essa análise é
aplicada. Em vez disso, terminaremos nossa exposição das idéias do autor com o exame
de dois livros menos conhecidos do autor, um relacionado ao protecionismo e o outro ao
socialismo. Ambos questionam qual seria a causa da pobreza e contrastam as três
concepções políticas em disputa: liberalismo, intervencionismo e socialismo.

O primeiro desses textos – Cobden e a Liga – foi o primeiro livro publicado por Bastiat
(1864b), ainda em 1845. Essa obra contém um ensaio introdutório do autor, seguido da
reprodução dos discursos dos membros da Liga Anti-Lei dos Cereais.

A publicação foi inspirada pela luta que Richard Cobden (1804-1865) e John Bright
(1811-1889) e outros travaram contra o protecionismo inglês no tocante a importação de
cereais. As Leis dos Cereais (Corn Laws), editadas a partir de 1815, regulavam o
comércio de grãos, protegendo os produtores rurais ingleses da competição externa,
mantendo o preço dos grãos artificialmente elevados, encarecendo os alimentos.

Estabelecida como associação nacional em 1838, a Liga Anti-Lei dos Cereais foi uma
organização política dedicada a combater essa restrição comercial. Por meio de
palestras, discursos e panfletos a liga foi importante para que a opinião pública e os
parlamentares associassem o preço elevado do pão às suas causas. Em 1846, durante a

87
Partant de cette donnée, comme chaque jardinier, selon son caprice, taille ses arbres en pyramides, en
parasols, en cubes, en cônes, en vases, en espaliers, en quenouilles, en éventails, chaque socialiste,
suivant sa chimère, taille la pauvre humanité en groupes, en séries, en centres, en sous-centres, en
alvéoles, en ateliers sociaux, harmoniques, contrastés, etc., etc.

278
fome que atingiu a Irlanda, sob a presidência de Robert Peel (1755 - 1850), o
parlamento vota pela abolição da lei.

Esse raro caso de argumentação econômica influenciando a opinião pública, de forma


que os interesses difusos dos consumidores pudessem prevalecer sobre os interesses
concentrados de um setor produtivo particular, naturalmente chamou a atenção de
Bastiat, que começara a se dedicar a mesma luta em seu próprio país. Seu ensaio
introdutório, cujo propósito é situar historicamente os discursos da liga, aplica as teses
sobre produção e exploração de Comte e Dunoyer ao caso inglês.

Nesse texto, Bastiat (1864b, p. 9) atribui a pobreza existente naquele país à exploração
exercida pela aristocracia inglesa, que por meio da conquista fizeram que seus
descendentes, proprietários de toda terra do país, dominassem o parlamento. Essa
aristocracia se dedicaria a duas modalidades de espoliação: a externa, que enriquece por
carreiras militares, conquistas e colônias e a interna, que vive de impostos, cargos e
monopólios. Ao contrário de aristocracias dos “povos bárbaros”, forçados à espoliação
externa, a existência de atividade industriosa local permitiria na Inglaterra as duas
modalidades de exploração. Essas duas modalidades, para Bastiat, interagem: os
descendentes dos aristocratas que não herdam terra se dedicam às demais formas de
espoliação que não sejam os ganhos derivados da valorização da terra devido as
restrições legais ao comércio de grãos, tais como as oportunidades criadas pelo
colonialismo e pelo funcionalismo.

Essa interpretação é defendida por Bastiat com base em uma série de evidências, que ele
mesmo sumariza (p. 28-29). Entre eles, destacamos os seguintes: os aristocratas
possuiriam a totalidade do território; os impostos sobre propriedade se mantiveram
constantes por cento e cinquenta anos enquanto a renda da terra aumentou sete vezes; o
direito de sucessão naquele país não afetou propriedade imobiliária; os impostos
indiretos sobre bens de qualidade inferior eram maiores do que os impostos sobre os
bens de qualidade maior; durante a vigência das leis dos cereais foi estabelecido
imposto significativo sobre alimentos; o sistema colonial representou transferência de
recursos da população para os negócios das famílias aristocráticas e, citando estimativas
de preços comparados, os produtos colônias custavam sistematicamente mais caros do
que aqueles que poderiam ser obtidos nos demais mercados.

Munido dessas informações e das teses do industrialismo, a pobreza existente na


Inglaterra é atribuída pelo autor à espoliação inerente ao protecionismo e não aos
mercados livres. Para Bastiat (1864b, p. 29), o sistema econômico existente naquele
país seria o restricionismo:

Em vez de laisser faire, ele impede de fazer; em vez de laisser passer, seria
necessário impedir a passagem; em vez de deixar trocar, seria necessário impedir a

279
troca; em vez de deixar a remuneração do trabalho para quem o realizou, seria
necessário atribuí-lo a quem não o realiza!88
Para concluir nosso estudo do autor, examinemos agora a controvérsia entre Bastiat,
para quem os trabalhadores são explorados devido à ausência de direitos de propriedade
privada, e Pierre-Joseph Proudhon (1809 - 1865), para quem os trabalhadores também
são roubados, mas pela própria existência dessa propriedade. Embora gire em torno dos
conceitos de capital e juros, assunto tratado na seção anterior, no fundo discute as
concepções mais amplas sobre os sistemas econômicos em contraste.

Bastiat e Proudhon debateram sobre as funções e a legitimidade da remuneração do


capital, questões implícitas na proposta deste último de criar o Banco do Povo,
instituição que organizaria uma cooperativa de crédito gratuito entre trabalhadores e que
traria como efeito o desaparecimento da cobrança de juros, que seria instrumento de
exploração dos trabalhadores por parte dos capitalistas. O debate consiste em uma troca
de cartas abertas publicadas no jornal A Voz do Povo (La Voix du Peuple) no final de
1849 e início de 1850, sendo a primeira da autoria de um editor da publicação, Charles-
François Chevé (1813-1875) e as demais escritas por Bastiat e Proudhon, até que este
último encerre o debate no jornal na décima terceira carta, o que provoca ainda uma
réplica final por parte de Bastiat, publicada alhures89.

Como na maioria dos debates, seus participantes procuram discutir coisas diferentes.
Bastiat, mais teórico, busca explicar a razão de ser dos juros a partir da teoria do capital.
Proudhon, tomando o capital em seu aspecto monetário, quer discutir a viabilidade
prática de seu banco. Ao longo de todo o debate, este último recrimina o primeiro por
não discutir os detalhes do banco, ao passo que seu oponente lembra que propostas
concretas socialistas assumem múltiplas formas e que estabelecer a necessidade dos
juros na teoria excluiria logicamente propostas baseadas em sua gratuidade.

O exame detalhado do debate é interessante para aqueles interessados na arte da


retórica. No que diz respeito ao pior aspecto dessa arte, a diferença de comportamento
entre os dois é marcante. Em diversas ocasiões Proudhon apela a argumentos ad
hominem, sugerindo que seu oponente seria um apologista do sistema, defensor do
roubo e equivalente a um ladrão, ignorante, incapaz de escutar, aprender e raciocinar
logicamente. A despeito da menor familiaridade do próprio Proudhon com a teoria
econômica, na sua opinião Bastiat não saberia absolutamente nada sobre o assunto. Na
última carta, trata ainda seu oponente como um homem morto, algo que de fato se
tornaria verdadeiro logo depois, devido aos problemas de saúde de Bastiat. Este, por
outro lado, utilizou com frequência a ironia para criticar os argumentos, mas nunca a
pessoa ou as intenções de Proudhon. Apenas em sua última carta Bastiat reage à última

88
Au lieu de laisser faire, il empêcher de faire; au lieu de laisser passer, il faudrait empecher de passer; au lieu de
laisser échanger, il faudrait empécher d’échanger; au lieu de laisser la rémunération du travail à celui qui l’a
accompli, il faudrait en investir celui qui ne l’ accompli!

89
O debate completo é reproduzido em Bastiat (1863b, pgs. 23-63 e 120-335). Para outra análise do
debate, em português, ver Cinelli e Arthman (2010).

280
indelicadeza, comparando-a a uma sentença de morte de inquisidor que se irrita quando
sua igreja é criticada.

Para os nossos fins, o exame da controvérsia é útil para testarmos as limitações do


aparato teórico clássico utilizado: ao tentar convencer seu interlocutor sobre a
legitimidade da cobrança dos juros, Bastiat trata desse preço como um fenômeno
relativo apenas à distribuição de riqueza – o merecimento de remuneração de um
serviço real prestado por poupadores – em vez da descrição das funções desempenhadas
por esse preço, o juro, em termos de coordenação intertemporal de planos. De maneira
compatível com o referencial plutológico, a argumentação teórica de Bastiat é sempre
feita sob o ponto de vista da produção. A escolha entre consumo presente e futuro é
descrita em termos da decisão de poupar e investir de produtores individuais. Embora
aspectos cataláticos estejam de fato presentes em sua argumentação, Bastiat nunca
questionou no debate como, em uma sociedade sem juros, uma maior ou menor
disposição à poupar na sociedade seria comunicada aos produtores. Apenas em sua
penúltima carta a relação entre oferta de fundos emprestáveis e juros é brevemente
mencionada.

A forma como Proudhon lida com o conceito de capital, por sua vez, também reflete um
aspecto da plutologia clássica que, conforme argumentamos neste trabalho, se manifesta
desde a obra de Turgot. Este autor, ao representar o capital em termos monetários,
contribuiu para a interpretação do capital como uma entidade autônoma, capaz de
crescer em valor de modo independente de decisões empresariais subjacentes. Sob a
perspectiva plutológica, agregada, se a riqueza brota espontaneamente da terra e do
capital, seus proprietários não desempenham funções econômicas, já que preços se
referem apenas à forma como a riqueza é distribuída.

Nas cartas de Proudhon, porém, a manifestação monetária do capital, utilizada para


justificar seu diagnóstico sobre as causas da pobreza como exploração do capital, não é
acompanhada por concepções subjacentes muito definidas sobre o lado real da
economia. Durante o debate, as funções econômicas concretas associadas aos juros
dizem respeito ao risco e aos custos de transação no mercado de crédito. No esquema
que propõe, trabalhadores trocam as ferramentas que produzem entre si, eliminando,
segundo o autor, a necessidade de pagamento de juros.

Nesse esquema, porém, os juros desaparecem apenas porque qualquer aspecto associado
à dimensão temporal do processo produtivo é eliminado. A proposta só faria sentido em
uma economia estática com perfeita sincronia de processos produtivos. A reação de
Bastiat no debate, de acordo com isso, consiste em enfatizar em cada uma de suas cartas
o aspecto temporal inerente ao capital, por meio de exemplos nos quais produtores
comparam o consumo presente menor com a alternativa dada pela poupança de recursos
transformada em capital, que aumenta a produtividade do processo e compensa a
poupança prévia. Usando sua teoria do valor, os juros são explicados por Bastiat em
termos da remuneração associada ao serviço de criar poupança.

281
Proudhon, por sua vez, invoca a dialética, a história, citações das definições de capital
usadas pelos economistas fora do contexto da teoria desses autores sobre o tema e até
mesmo a infalibilidade da contabilidade, mas em nenhum momento trata do aspecto
temporal inerente ao conceito de capital que fundamenta a crítica à sua proposta.

Depois de nossa interpretação sobre quais seriam os principais pontos envolvidos no


debate, devemos expor os principais argumentos concretos utilizados no debate em si. A
controvérsia se inicia com um artigo de Bastiat (1863b) intitulado Capital e Renda. O
problema investigado é o mesmo que colocamos em seu livro sobre o protecionismo:
qual é a causa da pobreza? Agora, Bastiat contraria o diagnóstico socialista, que a
associa ao capital.

Bastiat se propõe então a investigar a legitimidade da cobrança de juros e da existência


de perpetuidades. O ponto de partida (p. 29) é rejeição causada por perpetuidades: seria
justo que uma pessoa trabalhe de sol a sol, consumindo tudo que ganha no ano, ao passo
que outro, ocioso, consume bens de luxo a partir da renda gerada pelos juros,
preservando o capital intacto?

A explicação do fenômeno dos juros envolveria então para o autor revelar os fenômenos
reais por trás do que seria uma ilusão induzida pela expansão das trocas e uso da moeda
(p. 34), ilusão responsável pela condenação retratada no parágrafo anterior. O capital,
como constatamos em Harmonias Econômicas, é composto por instrumentos, matérias
primas e provisões. Empregando sua teoria do valor serviço, Bastiat argumenta que
juros seriam pagamentos por um serviço genuíno: a provisão dos adiantamentos
necessários para a formação do capital.

Para dissolver a ilusão gerada pelas trocas e moeda, Bastiat utiliza um argumento em
dois passos: em primeiro lugar, concebe uma troca com equivalência de serviços, como
a troca livremente acordada de uma casa por uma embarcação. Se o armador solicita,
após a transação, um novo serviço, o adiamento da entrega do barco por um ano, a
equivalência de serviços se dissolve e o serviço adicional requereria remuneração, que
em termos monetários equivalem aos juros.

Considerando agora um carpinteiro que trabalhe 300 dias por ano, se ele reservar 30
dias para produzir uma plaina, a poupança se justifica apena se nos 270 dias restantes o
aumento de produtividade mais do que compense a ausência de produção de tábuas
durante o investimento na produção da ferramenta. Considerando em seguida a
economia como um todo, temos ofertantes do serviço de adiantamento, cujo preço tem
que ser inferior ao ganho de produtividade que o demandante de crédito obteria a partir
do emprego do capital. Na explicação de Bastiat, fica claro o trade-off ao longo do
tempo envolvido na decisão de investimento: um aumento de produtividade gerando
ganhos futuros a partir do sacrifício de consumo presente.

O texto de Bastiat suscitou a reação de Chevé, editor de A Voz do Povo. Em seu artigo,
a primeira carta do debate, Chevé aceita que troca envolve igualdade de serviços, mas
rejeita a legitimidade dos juros com base na distinção entre propriedade e uso, tal como

282
no argumento escolástico contra a usura. No exemplo de Bastiat, o dono da casa teria
cedido apenas o seu uso ao armador, não a propriedade. Isso, para Chevé, deslegitima a
cobrança de juros. Ao mesmo tempo, reconhece que o uso da casa é serviço genuíno,
cujo preço deve ser livremente debatido.

A inconsistência entre as duas últimas proposições é acompanhada pela ausência de


explicação sobre como exatamente a natureza do serviço afetaria sua legitimidade. O
autor parece ser motivado pela percepção de injustiça que estaria envolvida em uma
perpetuidade: sem abdicar da propriedade, um emprestador recuperaria várias vezes o
valor emprestado (p. 101), assim como um inquilino pode pagar em aluguel ao longo da
vida várias vezes o valor do imóvel.90

Desse sentimento de justiça, infere-se sobre o caráter de quem tem opinião contrária:

... e o juro do capital, ilegítimo, absurdo e monstruoso em princípio, espoliador de


fato, comanda o anátema de todos os homens bons, a maldição das raças oprimidas e
a justa indignação de qualquer um que tenha uma alma generosa e cheia de simpatia
por tudo o que sofre e chora.91
Como remédio (p. 107), a solução do problema social consistia no fornecimento de
ferramentas ao trabalhador sem pagamento de juros, a partir do estabelecimento de um
banco privado financiado por associações de trabalhadores, com capital dado por
pequena parcela da renda destes últimos, que forneceria crédito sem cobrança de juros.

Em sua resposta (carta 2), ao contrário de Chevé, Bastiat atribui boas intenções (p. 112)
ao seu oponente. Porém, se a tese sob exame fosse errônea, o efeito oposto, o
empobrecimento dos trabalhadores, surgiria como consequência não intencional. A
resposta de Bastiat se concentra em dois pontos: em primeiro lugar, uma troca não
requer que os serviços trocados tenham a mesma natureza. Do contrário, qualquer troca
seria condenada, como a troca entre um chapéu e dinheiro. Em segundo lugar, mostra
que os juros não são obtidos como subtração dos salários, mas representa ganho mútuo,
pois subjacente à operação creditícia existe investimento que multiplica produtividade
do trabalho, cujo ganho é dividido entre as partes envolvidas.

Na primeira participação de Proudhon (carta 3), a distinção entre propriedade e uso é


rejeitada e a tese de que empréstimo consiste em serviço útil é aceita. Por outro lado,
rejeita a afirmação de que o capitalista se priva do capital que empresta (p. 125): um
proprietário de duas casas, cada uma em uma cidade não pode morar nas duas ao
mesmo tempo. Sendo assim, juro seria exploração e a produtividade do capital uma
ficção (p. 126). A afirmação de que a cobrança de juros seria simultaneamente legítima
e ilegítima é justificada pelo uso da dialética.

Quanto ao seu banco, sugere que dez milhões de trabalhadores mantenham cotas de 1%,
de modo que cerca de um bilhão de francos fossem disponibilizados. A proposta
funcionaria por uma espécie de trocas de ferramentas entre trabalhadores, cujo efeito

90
A descrição irônica que Bastiat faz em Capital e Renda da indignação gerada por uma perpetuidade é
de fato reproduzida por Chevé na conclusão de sua carta, como algo que corroboraria sua própria opinião.
91
Chevé, em Bastiat (1863b, p. 107).

283
seria anular os juros que um deveria ao outro. Para Proudhon (p. 129), o capital não
seria produtivo, mas sim a sua circulação.

Com a concorrência fornecida pelo banco, que inicialmente cobraria 0,5% de juros, os
demais bancos iriam à falência e o juro desapareceria, algo ajudado ainda pelos efeitos
do aumento da divisão do trabalho, que multiplicaria as ferramentas a serem
emprestadas, do aumento do capital e pela segurança pública fornecida pelo esquema.
Como seu colega no jornal, Proudhon (p. 121) afirma que qualquer oposição a essa
proposta revela demagogia ou defesa do absolutismo, como seria o caso da atitude
reacionária de Bastiat.

Bastiat, em sua resposta (carta 4), rejeita o emprego da dialética: qualquer crítica ou
defesa de alguma proposição poderia ser usada como corroboração da tese oposta.
Popper, um século depois, criticará a dialética por motivo correlato: de uma
incongruência lógica qualquer proposição, bem como sua negação, pode ser derivada,
algo que inviabiliza o debate racional.

Quanto à alegação de falta de privação por parte do capitalista, a resposta é indireta. Em


vez de apelar para sua “elasticidade infinita” de necessidades, dizendo que, digamos, as
duas casas poderiam ser vendidas e trocadas por outra melhor ou ainda o valor podendo
ser alocado para outras necessidades, Bastiat utiliza uma redução ao absurdo: se o
argumento fosse válido, ele seria aplicável também ao trabalho - como um trabalhador
não produz algo para consumo próprio, não haveria privação e os salários se anulariam
(p. 139). O segundo argumento também é indireto: em vez de apontar para o
funcionamento do mercado de fundos emprestáveis, Bastiat (p. 139) afirma que o
esquema de equalização entre empréstimos só teria sentido se desaparecessem as
diferenças entre habilidade, providência, necessidades e gostos dos agentes. Por fim, a
negação da produtividade do capital é combatida por ainda mais ilustrações que
mostrariam o contrário. Aqui, o debate se repete e se depara com rendimentos
decrescentes, de modo que só faremos menção aos argumentos novos utilizados.

Na quinta carta, Proudhon fornece uma explicação para sua menção prévia à dialética.
Assim como a escravidão, a poligamia e a monarquia absoluta seriam legítimas no
passado apenas, os juros seriam legítimos quando não havia alternativa. Agora, com a
proposta do banco, que eliminaria sua necessidade, passa a existir uma alternativa,
tornando a cobrança de juros um roubo. A não imposição do esquema é atribuída
(p.151) à “má vontade e imperícia da sociedade”. Como a sociedade teria o poder de
oferecer empréstimo grátis, teria o dever de fazê-lo, do contrário ocorreria um roubo.

Na sexta carta, Bastiat (p. 157) rejeita essa última implicação, indagando quem teria o
ônus da prova, um mecanismo alocativo existente ou um mecanismo apenas imaginado.
Além disso, ironiza (p. 160) o anarquista Proudhon, que rejeita a solução estatal em
outros socialistas, mas substitui o estado pela “sociedade”, que teria a obrigação de
organizar o crédito gratuito. Em termos teóricos, Bastiat (p. 161) afirma que Proudhon
confunde os custos de circulação do capital com os custos de formação do capital, ou
juros.
284
Na sétima carta, Proudhon faz uma incursão na história para ilustrar sua tese dialética,
afirmando que os juros, inexistente em sociedades antigas, teria surgido a partir do
contrato de pacotilha (pacotille), o fardo contendo bens consignados que uma pessoa
oferta para venda nos locais nos quais uma embarcação aportava. Aqui, Proudhon
parece associar juros com compensação por risco (p.176).

Nessa carta, surge o contraste entre as noções liberais e socialista de liberdade. Para
Proudhon (186), os exemplos fornecidos por Bastiat não representariam trocas
voluntárias. Isso é representado por um exemplo que adota o estilo retórico de seu
oponente: um rico, prestes a se afogar, pediria a ajuda de um trabalhador, que por sua
vez cobraria um preço exorbitante, já que ambos seriam livres.

Na oitava carta, Bastiat rejeita a tese sobre a origem dos juros nos contratos de
pacotilha. Estes teriam origem muito anterior, desde o momento que uma primeira
pessoa concebeu a possibilidade de aplicar o tempo para a obtenção de algum utensílio
que envolva economia de recursos. A história do rico afogado, por sua vez, em vez de
provar a tese da gratuidade do crédito, na verdade seria argumento a favor da gratuidade
do próprio trabalho, que é o objeto da troca no exemplo. Além disso, o exemplo não
mostraria nada, na medida em trata de situações extremas e não situações econômicas
normais. Note, porém, que Bastiat não se refere a monopólios, já que a existência destes
é uma anomalia para sua teoria do valor serviço.

Ao ignorar a discussão dos monopólios legais, estes sim contemplados pela sua teoria,
Bastiat deixa passar uma excelente ocasião para uma comparação entre a teoria liberal
da exploração de Comte, Dunoyer e do próprio Bastiat, que situam no poder a causa da
exploração, com sua rival socialista, empregada por Proudhon, que a situa em poder de
barganha originário da posse de recursos.

Na nona carta, Proudhon investe contra o que considera a ficção da produtividade do


capital através do exame do Banco da França. Este, para um capital de noventa bilhões
de francos, obtém uma receita por seus serviços fictícios de 3,6 milhões, um juros de
4% portanto (p. 211). Mais adiante (p. 221), tomando como capital o estoque de moeda
do país, gera ainda outra estimativa sobre o montante de juros pago na sociedade.

Na décima carta, Bastiat utiliza o exercício empreendido acima como prova de sua tese
inicial, segundo a qual a crítica aos juros é baseada na confusão entre riqueza e dinheiro.
No caso em questão, isso se revela quando o estoque de moeda é tomado como
representativo do capital existente no país. Além disso, o exame do balanço do Banco
da França não revelaria nada a respeito do debate, pois tal banco operaria com
vantagens regulatórias, protegido dos efeitos da competição.

Na décima primeira carta, Proudhon recorre às definições de capital que encontra na


obra dos economistas, para concluir que estes não saberiam nada sobre o assunto. Como
vimos, para Proudhon instrumentos de trabalho circulam entre produtores. Esses
instrumentos não seriam capital, apenas bens. Capital surge apenas quando existe
avaliação monetária dos bens (p. 242):

285
O capital não forma, como os economistas ensinam, uma quarta categoria além da
terra, do trabalho e do produto: ele simplesmente indica, como eu disse, um estado,
uma relação; é, pela confissão de todos os autores, o produto acumulado e destinado
à reprodução.92
Para o propósito do autor, a saber, definir capital como instrumento de exploração, o
capital é visto apenas em sua dimensão monetária e, de forma crucial, a produção é
dissociada de qualquer aspecto temporal.

Na segunda parte da carta, Proudhon apela à contabilidade, que demonstraria


matematicamente a viabilidade de sua proposta de crédito gratuito. Ele apresenta as
transações de trabalhadores e capitalistas em um ambiente com juros e depois dois
indivíduos em ambiente com gratuidade do crédito. Neste último, um indivíduo não
possui ferramentas inicialmente, tomando empréstimo junto ao banco e produzindo,
prometendo devolver o principal ao emprestador. Em relação à situação prévia, ele
ficaria com mais recursos, pois no final do período não paga juros.

Embora Bastiat tenha se negado anteriormente a analisar os detalhes do Banco do Povo,


preferindo estabelecer a função dos juros em termos teóricos, o detalhamento da
proposta forneceu a oportunidade tornar claro, na décima segunda carta, qual é o
problema básico da proposta: a ausência de explicações sobre a origem da poupança,
que acaba sendo substituída por emissão monetária. Para Bastiat (1863b, p. 272), o
detalhamento da proposta confirma sua hipótese inicial de que a riqueza teria sido confundida
com o dinheiro:

Você acaba de prestar à sociedade um serviço notável. Até agora, o crédito livre
permaneceu envolto em nuvens filosóficas, metafísicas, econômicas, antinômicas e
históricas. Submetendo-o ao teste simples de contabilidade, você o faz descer dessas
vagas regiões; expondo-o nu a todos os olhares; todos podem reconhecê-lo: é o
dinheiro de papel.93
No exemplo contábil apresentado por Proudhon, um indivíduo A adquire título no valor
de mil francos, B recebe $990 (descontando-se taxa de administração) e o emprega na
aquisição de bens de capital. B trabalha e gera rendimentos de 10%. Paga os $990 ao
banco e fica com $99 de lucro. Nessa história, pergunta Bastiat (p. 275), por que o
agente A pouparia e caso o fizesse, que garantias ele teria? Se a poupança vem de fora
do sistema, digamos, por empréstimos ao Banco da França, quem emprestaria a este
último receberia juros e o contribuinte subsidiaria o agente A. Alternativamente,
supondo o que se quer provar, ou seja, a existência de poupança prévia gerada
internamente, se o banco não alterar a natureza humana, o que garantiria que B não
gastaria o valor no cabaré, C com sua amante e D em projetos absurdos?

92
Le capital ne forme point, comme l’enseignent les économistes, une quadrième catégorie avac la terra,
le travail e le produit: il idique simplesment, comme j’ai dit, un état, un rappport; c’est, de l’aveu de tous
les auteurs, du produit accumulé et destiné à la reproduction.
93
Vous venez de rendre à la société un signalé service. Jusqu’ici la gratuité du crédit était demeurée
enveloppée de nuages philosophiques, métaphysiques, économiques, antinomiques, historiques. En la
soumettant à la simple épreuve de la comptabilité, vous la faites descendre de ces vagues régions; vous
l’exposez nue à tous les regards; chacun pourra la reconnaitre: c’est la monnaie de papier.

286
O apelo à emissão de moeda conforme a demanda de empréstimos surgir tornaria a
promessa de emprego produtivo não crível, encorajando empreendimentos inviáveis e
especulações. Se com juro nulo a demanda de crédito dispara, atraindo tomadores com
maior risco, o banco teria que agir de maneira inquisitorial para apurar confiança. Ao
mesmo tempo que a demanda aumenta, do lado da oferta não existiriam motivos para
disponibilizar recursos, a não ser por emissão. O emprestador A gostaria de se desfazer
de seus títulos e pediria um preço mais elevado pelos seus produtos, obtendo juros de
forma indireta. Diante do aumento de preços com as emissões, o governo decretaria um
controle de preços?

Para Bastiat, o esquema proposto pelo banco, se implementado, o levaria rapidamente à


falência. Se generalizado, desorganizaria a economia, prejudicando os mais pobres. De
forma provocadora, Bastiat conclui (p. 279) que o crédito gratuito é roubo, convidando
Proudhon a esposar sua própria proposta de liberdade bancária no lugar do crédito
gratuito. A concorrência no setor bancário teria, segundo o autor (p. 287), o poder de
reduzir os três componentes dos juros: os juros originais, ou remuneração pelos
adiantamentos, os custos de circulação e o prêmio de risco. Nas duas últimas
intervenções, nem Proudhon nem Bastiat acrescentam argumentos novos, se limitando a
resumir o debate segundo a interpretação de cada um e trocar munição retórica.

O debate com Proudhon ilustra ainda uma vez a essência do pensamento econômico de
Bastiat. Em sua concepção econômica, os fenômenos de mercado são relacionados com
um modelo econômico que contemple as inter-relações entre setores, considerando a
atividade econômica em todos seus aspectos centrais, ou seja, as necessidades humanas,
os esforços empreendidos e a satisfação dessas necessidades. Um retrato da economia
que ignore algum dos componentes inter-relacionados, como a origem da poupança, no
debate em questão, faz com que as propostas de políticas resultem em consequências
não intencionais opostas ao desejado. Não por acaso O que é Visto e o que não é Visto
em Economia Política, que captura a essência de sua Economia, foi a última e mais
importante publicação de Bastiat.

Terminado o exame da obra de Bastiat, encerramos nosso exame da segunda geração de


economistas da escola clássica francesa. Como pudemos apurar pela leitura deste
capítulo, todos os autores tomam como ponto de partida de seus trabalhos o corpo de
doutrina sistematizado por Jean-Baptiste Say. Mas a adoção dessa base não implica,
como é algumas vezes sugerido, em adesão dogmática, que gera mera repetição.

De fato, Storch, admirador de Say, desagrada este último ao se distanciar do programa


de pesquisa proposto e aprofundar o subjetivismo que encontramos em sua teoria do
valor baseada nas trocas, tarefa necessária para o desenvolvimento da teoria da
civilização. A teoria econômica moderna, por sua vez, acompanha a tendência preferida
por Storch, ao deslocar o objeto de pesquisa de objetos de riqueza e serviços para
qualquer coisa que afete o bem-estar.

287
Rossi, por sua vez, sucede Say em seu posto universitário sem ter sido um pupilo
indicado pelo mestre. Seu modo de teorizar, fortemente influenciado por Say, mas
tampouco restrito ao programa desse último, se junta ao de Storch na construção da
teoria da demanda, utilizada no desenvolvimento da teoria dos monopólios.

Blanqui, seguidor fiel do programa do mestre, contribui com uma área importante para
o desenvolvimento da escola clássica francesa: a aplicação da teoria de Say à história
econômica.

Comte e Dunoyer avançam o programa de pesquisa dessa vertente histórica da escola ao


provê-la com uma interpretação industrialista da exploração.

Não apenas Bastiat, mas todos os autores da geração seguinte, como veremos no
próximo capítulo, são fortemente inspirados pela noção de liberdade do trabalho de
Dunoyer, que de fato abrirá caminhos a serem explorados pelos economistas
subsequentes.

Se com Blanqui, Comte e Dunoyer a análise da escola correu o risco de se dissolver em


uma modalidade de historicismo, negligenciando o ramo teórico da tradição, esse perigo
foi dissolvido por Bastiat. Ironicamente, o autor retratado como mero jornalista e
divulgador da ciência recupera o caráter teórico da tradição francesa, fecundando a
teoria da exploração de Comte e Dunoyer com a fundamentação praxiológica que
Destutt de Tracy dá à teoria pelo uso de um modelo sobre o comportamento econômico
individual. Bastiat incorpora a atividade espoliadora na própria lógica da ação humana,
direcionando a escola clássica francesa na direção institucional. Conhecimento limitado
e auto-interesse de políticos e funcionários públicos são usados como hipótese para
explicar o florescimento humano ou falta dele sobre diferentes estruturas de incentivos.
Em termos puramente teóricos, além disso, a obra de Bastiat se aproxima do espírito da
teoria de equilíbrio geral ao traçar sistematicamente os custos de oportunidade de uma
ação em todos os mercados, combatendo falácias de composição típicas da análise de
mercados tomados isoladamente.

O período da história da França no qual Bastiat viveu naturalmente influencia os


problemas que escolheu tratar. A teoria econômica desse autor é toda ela voltada à
comparação entre sistemas econômicos. Se na geração anterior Say contrapunha o
sistema de liberdades naturais de Smith ao mercantilismo, na geração de Bastiat o
socialismo se junta ao menu de sistemas contemplados.

Se as obras de Comte, Dunoyer e Bastiat forneceram a ferramenta básica utilizada pela


escola clássica francesa para esse debate; a saber, uma teoria da exploração, a geração
seguinte de economistas dessa escola de pensamento desenvolverá a teoria econômica
como subproduto da aplicação dessa teoria ao debate entre liberalismo, protecionismo e
socialismo. Esse debate e os problemas de teoria econômica que nele se manifestam
serão examinados no próximo capítulo.

288
6. Terceira geração: liberalismo, intervencionismo e
socialismo

Na metade do século dezenove a escola clássica francesa já havia se estabelecido


definitivamente como uma comunidade acadêmica. Os esforços originais de fomento
dessa tradição de pesquisa por parte de seu fundador, Jean-Baptiste Say, por meio de
seus cursos, livros e formação de pesquisadores ganhou momento com o trabalho de
seus continuadores. Entre estes, a obra de Bastiat em particular reflete o tipo de
problema discutido pelos autores da tradição a partir de então. Herdeiro da tradição
francesa de aplicar a teoria econômica ao estudo do funcionamento do estado, Bastiat
direciona a pesquisa da escola à comparação entre sistemas econômicos rivais, definidos
em termos de sua concepção sobre papel do estado: o liberalismo defendido pelos
economistas, o intervencionismo defendido por diversos matizes de pensamento
conservador e o socialismo, que encontrava cada vez maior apoio em solo francês.

Essa discussão mais ampla sobre sistemas econômicos comparados é acompanhada pelo
aumento da pesquisa econômica produzida pela escola em diversos assuntos, desde
aquelas de cunho mais teórico até a pesquisa aplicada, voltada a questões de política
específicas. O estabelecimento de novos cursos, a organização de uma sociedade de
economistas e a criação de uma publicação acadêmica contribuíram para a expansão do
número de pesquisadores que basearam suas análises econômicas no tipo de teoria
desenvolvida pelos clássicos franceses.

Diante desse crescimento, não é mais possível circunscrever nosso estudo às influências
que alguns poucos economistas teóricos exerceram sobre outros. Isso ocorre porque
cada vez mais os desenvolvimentos teóricos que se manifestam nas obras dos autores
que estudaremos foram fruto das discussões ocorridas pelos diversos participantes da
comunidade científica. Os textos que escolheremos analisar devem então ser vistos
como registros fósseis parciais, que capturam parte dessas discussões, expressos,
naturalmente, segundo as visões de mundo de cada autor estudado.

Essa expansão da comunidade de economistas nos obriga a deixar de fora da análise


diversos pesquisadores. Neste capítulo nos concentraremos no estudo de três deles:
Courcelle-Seneuil, Molinari e Leroy-Beaulieu. Antes de examinar a obra desses autores,
que se situam entre os mais importantes da escola durante a segunda metade do século
dezenove, mencionaremos brevemente alguns dos demais economistas do período cujos
escritos não estudaremos, cônscios de que deixaremos de lado obras merecedoras de um
estudo mais aprofundado.

A primeira seção deste capítulo trata desses últimos. Além de fornecer um mapa de
autores que possa ser útil para outros estudos mais detalhados sobre essa etapa do
desenvolvimento da escola clássica francesa, a menção aos nomes desses autores nos
fornece uma amostra dos temas investigados pelos autores do período. Esse painel

289
indicará também que os trabalhos dos três autores que examinaremos em mais detalhes
nas seções subsequentes refletem de fato as preocupações centrais da comunidade
acadêmica na qual estão inseridos. Ainda na primeira seção dedicaremos um espaço um
pouco maior a Chevalier, por sua importância institucional para a escola e por sua
interessante discussão sobre as patentes, similar à concepção gradualista sobre evolução
do conhecimento que adotamos no primeiro capítulo deste trabalho.

Na seção seguinte, trataremos da obra de Courcelle-Seneuil. Além de aplicar a noção de


competição ao setor bancário, sendo um dos primeiros defensores do free banking e
escrever um dos primeiros tratados de Administração de Empresas, esse autor aprofunda
a análise de sistemas econômicos por sua avaliação em termos de grau de centralização
das instituições existentes em cada sistema.

Na terceira seção do capítulo, veremos como Molinari avança o programa


institucionalista da escola. Depois de enunciar a tese de similitude formal entre sistemas
econômicos, segundo a qual qualquer sistema deve lidar com leis econômicas de
validade universal, esse autor avalia o desempenho de arranjos institucionais a partir da
aplicação dos modelos de competição e monopólio aos serviços públicos. Em particular,
esse autor explora os limites da descentralização em seu estudo sobre provisão privada
de segurança pública.

Por fim, na última seção estudaremos como Leroy-Beaulieu incorpora a teoria


marginalista do valor ao referencial teórico da escola. Entre as contribuições desse
economista, veremos sua versão sobre o problema do cálculo econômico no socialismo,
que indaga como os recursos são alocados na ausência de um sistema de preços para
bens de capital.

6.1. Chevalier e a comunidade acadêmica: patentes


Vejamos então quais foram os principais economistas da escola clássica francesa na
segunda metade do século dezenove. Nossa lista de autores que serão apenas
mencionados está organizada em ordem cronológica de nascimento.

O mais antigo desses economistas foi Hippolyte-Philibert Passy (1793 - 1880), tenente
do exército napoleônico em 1812 e ministro das finanças durante o reinado de Luis
Felipe em duas ocasiões: em 1832 e novamente em 1839. O interesse por temas
econômico é despertado nesse autor depois que ele encontra um exemplar de Smith na
biblioteca da embarcação na qual cruzou o Atlântico. Passy foi um dos fundadores da
Sociedade de Economia Política em 1842 e redator do Journal des Économistes. Seus
textos, de caráter interdisciplinar, envolvem Economia, História, Filosofia e Direito,
discutindo temas como os determinantes culturais do desenvolvimento econômico.

O segundo economista que mencionaremos é o filho do fundador da escola, Horace


Émile Say (1794-1860). Horace Say foi um homem de negócios. Assim como Passy,
Say também foi membro ativo na formação das instituições da escola clássica francesa,

290
participando da fundação da Sociedade de Economia Política e contribuindo para o
Journal des Économistes. Além de lecionar, Horace Say foi o editor das obras de seu
pai após o falecimento do fundador da escola.

Viajando por motivos de negócios para as Américas, Horace Say reside por dez anos no
Brasil a partir de 1815, morando no Rio de Janeiro e no Recife. Dessa experiência nasce
um livro dedicado às relações comerciais entre França e Brasil. Nesse livro, Say (1839)
descreve aspectos da história do Brasil, suas atividades produtivas, suas finanças
públicas, políticas monetárias e comércio exterior. Nessa obra, Say aplica as idéias anti-
colonialistas de seu pai: os países europeus e americanos deveriam expandir suas
relações comerciais sob o regime de livre comércio, livre das amarras impostas pelos
monopólios coloniais.

Um trabalho interessante de Horace Say é o verbete sobre a divisão do trabalho no


Dicionário de Economia Política1. Nesse artigo, Say amplia para o contexto
internacional o exemplo smithiano da fábrica de alfinetes. Ao demonstrar como as ações
de indivíduos residentes em diversos países colaboram para a fabricação de um bem
relativamente simples, Say ilustra a complexidade dos processos produtivos de uma
maneira que lembra o famoso ensaio de Read (2015) sobre a complexa
complementaridade entre diferentes setores que existe na fabricação de um lápis.

A terceira pessoa a ser mencionada é o empresário responsável pela editora que


publicou a maioria das obras da escola, além de traduções para o francês dos livros dos
principais economistas que escreveram em outras línguas. Iniciando sua carreira como
funcionário de uma livraria, Gilbert-Urbain Guillaumin (1801 – 1864) abre sua própria
editora em 1835. O exame das referências bibliográficas no final deste trabalho revela
de fato que a maioria da produção intelectual gerada pelos economistas franceses foi
publicada por Guillaumin. Após sua morte, a editora foi administrada por suas filhas,
até a empresa se unir com outra em 1910.

Além de publicar os livros dos economistas da escola clássica francesa e também


contribuir com a fundação da Sociedade de Economia Política e do Journal des
Économistes, Guillaumin foi coeditor do importante Dicionário de Economia Política,
obra que contém verbetes sobre os principais tópicos discutidos pelos economistas do
período, assim como textos biográficos sobre os principais teóricos dessa disciplina.

O Dicionário de Economia Política foi coeditado por Charles Coquelin (1802-1852).


Como ocorre com boa parte dos economistas franceses do período, Coquelin nasce no
interior, em Dunquerque, mudando-se para Paris para estudar Direito, trocando o
exercício da advocacia pelo estudo da teoria econômica. Segundo Molinari, em sua nota
biográfica publicada no início de um livro de Coquelin2, este último se interessa por
Economia depois de discutir repetidamente com um comerciante amigo de sua família,
que defendia o protecionismo comercial.

1
Coquelin e Guillaumin (1852, vol. 1, pp. 567-69).
2
Ver introdução biográfica escrita por Molinari em Coquelin (1859).

291
Coquelin torna-se membro ativo da associação promotora do livre comércio criada por
Bastiat e outros economistas. Além da defesa da causa do livre comércio, Coquelin se
dedicou ao estudo da moeda e dos bancos. Assim como seu contemporâneo Bastiat,
Coquelin (1859) defenderá em O Crédito e os Bancos a aplicação da livre concorrência
ao setor bancário, em contraposição aos privilégios monopolistas conferidos ao Banco
da França. Esse tema será estudado em mais detalhes na próxima seção, quando
estudarmos a obra de Courcelle-Seneuil, que prefacia o livro de Coquelin. O interesse
por bancos e pelo crédito fez com que esses autores se tornassem pioneiros do estudo
das crises comerciais. Coquelin, em particular, atribuía as crises a causas monetárias.

O próximo advogado-economista a ser considerado é Louis-François-Michel-Reymond


Wolowski (1810 -1876), participante de inúmeros debates econômicos parisienses.
Envolvidos em uma revolução na Polônia em 1830, Wolowski e seu pai são condenados
à morte e se refugiam em Paris3. Depois de criar uma revista jurídica, Louis Wolowski
ocupa a cátedra de legislação industrial no Conservatório de Arte e Ofícios em 1839 e
também, em 1864, a recriada cadeira de economia industrial ministrada por Blanqui.
Além de se tornar membro da Academia de Ciências Morais e Políticas e da Sociedade
de Economia Política, Wolowski publica sobre diversos assuntos, como liberdade
comercial, crédito rural, patentes, bancos e bimetalismo. Além de seus livros, Wolowski
traduz para o francês os Princípios de Economia Política de Roscher (1857), o líder da
primeira geração da escola histórica alemã. Wolowski adiciona a essa tradução uma
extensa introdução, na qual defende o método histórico.

Clément-Joseph Garnier (1813-1881), o sexto economista de nossa lista, não possui


relação com o conde Germain Garnier, o tradutor de Smith. Nascido de família de
agricultores4, Joseph Garnier estuda na Escola de Comércio sob a direção de Adolphe
Blanqui, seu futuro sogro. Também se encontra entre os membros fundadores do
Journal des Économistes, da Sociedade de Economia Política e do jornal Jacques
Bonhomme, dedicado à defesa do livre comércio. Este último foi criado em conjunto
com Frédéric Bastiat, Gustave de Molinari e Charles Coquelin.

Entre as diversas publicações de Garnier, encontramos dois manuais didáticos de teoria


econômica, que seguem a exposição usual da disciplina na tradição da escola clássica
francesa, sem pretensões de gerar teses originais. Nessas obras, Garnier (1856, 1873) dá
uma ênfase maior à defesa das teses malthusianas, assim como privilegia o estudo da
influência das instituições e dos costumes na capacidade produtiva de um pais. Sobre
esse último tópico, assim como ocorre com os demais autores de sua geração, Garnier é
bastante influenciado pelos trabalhos de Dunoyer.

O sétimo autor a ser citado é o filho de Horace Say, Jean-Baptiste Léon Say (1826-
1896). Assim como as idéias de seu avô se contrapunham ao ideário de Napoleão

3
Existe verbete dedicado a Wolowski no Novo Dicionário de Economia Política. Ver Say, L; e Chailley
(1900).
4
Ver verbete sobre o autor em Ver Say, L; e Chailley, J. (1900).

292
Bonaparte, o republicano Léon Say politicamente se opõe a Napoleão III. Já na terceira
república, Léon Say participou ativamente da vida política francesa, ocupando por
diversas vezes o cargo de ministro das finanças nos anos setenta e início dos oitenta do
século dezenove, além de atuar como senador.

A despeito de ter uma carreira dedicada à vida pública, Léon Say encontra tempo para
participar dos debates entre os economistas do período, deixando vários escritos sobre
os temas mais debatidos da época, como protecionismo, socialismo, moeda, bancos e
expansão das ferrovias. Entre seus trabalhos acadêmicos, encontra-se a coedição do
Novo Dicionário de Economia Política5, que dá continuidade ao dicionário organizado
por Coquelin e Guillaumin.

Avançando um pouco mais no tempo, considerando autores que escreveram depois da


revolução marginalista, devemos citar Yves Guyot (1843-1928). Esse ensaísta, que
escreveu para diversos jornais e atuou na política como deputado e ministro de obras
públicas, foi presidente da Sociedade de Economia Política e redator do Journal des
Ecomistes. Foi autor de diversas obras, entre as quais alguns textos críticos ao
socialismo, além de obras sobre inflação e causas da primeira guerra mundial. O tratado
teórico de Guyot (1881), intitulado A Ciência Econômica, incorpora discussões críticas
das idéias dos principais autores da escola clássica francesa, incluindo seus
contemporâneos Molinari e Leroy-Beaulieu, bem como as teses dos economistas das
demais tradições teóricas, como os clássicos ingleses, a escola histórica alemã e ainda
Jevons.

O nono e último autor de nossa lista é Michel Chevalier (1806 – 1879). Dedicaremos a
esse autor uma atenção um pouco maior, não pela sua importância teórica, mas pela sua
relevância institucional e política. Institucionalmente, Chevalier sucedeu a Pellegrino
Rossi na cátedra de economia política no College de France, originariamente ocupada
por Jean-Baptiste Say. Politicamente, Chevalier foi o principal responsável pelo tratado
comercial de 1860 com a Inglaterra, que iniciou um período redução de barreiras
comerciais entre a França e diversos outros países e que durou três décadas.

Entre os autores acima citados, provavelmente Chevalier seja o menos versado em


teoria econômica. Se a sucessão de Rossi fosse decidida por critérios acadêmicos, a
geração de Chevalier contava com autores mais familiarizados com a teoria, como
Courcelle-Seneuil e Garnier. De fato, como veremos em breve, os escritos e as aulas de
Chevalier, mesmo depois de assumir a cadeira de economia política no College de
France, raramente mencionam, utilizam ou discutem teoria econômica. Por outro lado,
Chevalier participou ativamente das instituições associadas à comunidade acadêmica
dos economistas franceses, como as iniciativas de Bastiat sobre livre-comércio, a
associação dos economistas e seu jornal.

5
Ver Say, L; e Chailley, J. (1900).

293
Para que possamos contemplar o impacto de Chevalier no desenvolvimento da escola,
consideremos alguns dados biográficos6, em especial seu papel no referido tratado
comercial, antes de analisar alguns de seus textos.

Nascido em Limoges, Chevalier se forma engenheiro de minas na Escola Politécnica


parisiense. No final da década de vinte, se torna um socialista saint-simoniano,
escrevendo artigos para o L’Organisateur, além de se tornar editor do Globo por dois
anos, até a suspensão dessa publicação em 1832.

Chevalier se torna cardeal da igreja saint-simoniana, sendo preso juntamente com


Barthélemy Prosper Enfantin (1796 - 1864), um de fundadores do movimento. A pena
de Chevalier é suspensa depois de seis meses, quando volta a trabalhar como
engenheiro. É enviado então aos Estados Unidos para observar os sistemas de transporte
ferroviário e naval daquele país.

De volta à França em 1835, de maneira análoga a Toqueville, publica um livro sobre o


desenvolvimento do país que visitara. Adquire notoriedade, porém, com a publicação de
outra obra, que trata da importância dos meios de transporte para o desenvolvimento
nacional7.

Associado ao governo de Louis-Mathieu Molé (1781–1855), para quem elabora


projetos, Chevalier é nomeado em 1838 para o Conselho de Estado e em 1840 para a
cadeira de economia política do College de France. Originalmente um socialista saint-
simoniano, doutrina caracterizada pela promoção centralizada da industrialização,
Chevalier absorve as teorias dos economistas franceses após sua nomeação como
professor da disciplina. No final da década de quarenta, Chevalier participa juntamente
com Bastiat, Blanqui, Garnier, Wolowski do estabelecimento da associação de livre
comércio.

Com a revolução de 1848, o governo provisório suspende o curso de Chevalier e


extingue sua cadeira, medidas que foram revertidas no parlamento. Mais tarde, embora
seus colegas economistas rejeitassem o conservador Napoleão III, Chevalier se
aproxima do governo deste último, exercendo papel fundamental para a ampliação do
comércio externo do país. Durante esse período no qual atua junto ao governo, entre
1850 e 1865, deixa de lecionar economia.

Em 1859 Chevalier e viaja para a Inglaterra e negocia secretamente com Richard


Cobden um tratado comercial entre França e Inglaterra. Cobden, como liberal, era
favorável ao livre-comércio, não a tratados reguladores do comércio8. Mas, diante da
possibilidade de guerra entre os dois países, Chevalier convence Cobden de que um
tratado comercial seria vantajoso. Cobden e Chevalier, viajando entre os dois países,
convencem seus governantes a respeito dos benefícios mútuos do comércio ampliado.

6
O verbete sobre Chevalier do Novo Dicionário de Economia Política foi escrito por seu genro, Paul
Leroy-Beaulieu. Ver Say, L; e Chailley, J. (1900).
7
Chevalier (1839).
8
Leroy-Beaulieu, em Say e Chailley (1900), p. 414.

294
Como na França tratados eram da alçada real, sem consulta ao legislativo, onde
encontraria a resistência de setores favoráveis ao protecionismo, o acordo pode reduzir a
no máximo 30% os impostos franceses sobre produtos ingleses, que por sua vez
reduziram os impostos sobre bebidas alcoólicas e outros bens franceses. O tratado
Cobden-Chevalier foi assinado em 1860, prevendo ainda que reduções tarifárias
concedidas a outros países seriam estendidas ao parceiro9. Como resultado, ocorreu um
aumento significativo do fluxo comercial entre os dois países. O acordo, tido como o
primeiro tratado comercial moderno, serviu de base para arranjos semelhantes que a
França estabeleceu nos anos seguintes com diversos países europeus, como Suíça,
Suécia, Noruega, Espanha, Holanda, Portugal e Áustria, inaugurando um período de
trinta anos de redução do protecionismo, até o acordo ser abandonado em 1892 com o
estabelecimento de tarifas mais elevadas.

Depois do papel central que exerce no tratado com a Inglaterra, Chevalier continua a
atuar na vida pública francesa. Na exposição universal de Londres em 1862, critica o
sistema de patentes, que segundo sua avaliação não promoveria o progresso industrial.
Em 1870, foi o único senador a votar contra a guerra com a Prússia10. No final de sua
vida, Chevalier cria uma sociedade dedicada à promoção da construção de uma ferrovia
sob o Canal da Mancha.

Consideremos em seguida as idéias econômicas de Chevalier. Seu genro resume essas


idéias da seguinte forma: “o desenvolvimento da civilização, tal é o pensamento
constante de M. Chevalier”11. De fato, o elemento comum entre o socialismo saint-
simoniano de sua juventude e o liberalismo francês de sua maturidade é a preocupação
com o industrialismo que caracteriza a teoria econômica francesa a partir de Jean-
Baptiste Say.

O industrialismo de Chevalier, porém, se manifesta de forma prática, a partir da


promoção do desenvolvimento do sistema de transportes, algo ligado a sua formação de
engenheiro. Nas aulas de Chevalier, a defesa da expansão das ferrovias é tenuamente
ligada à teoria econômica pela discussão de Dunoyer sobre os fatores relacionados ao
aumento do poder do trabalho.

Seguindo o exemplo de Rossi, as aulas de Chevalier foram transcritas por um aluno e


publicadas na forma de livro. A edição de 1855 de seu Curso de Economia Política,
além das aulas ministradas no ano letivo inicial, contém os discursos de abertura
proferidos pelo professor nos doze primeiros anos do curso. O exame desse material
atesta o caráter eminentemente prático de suas aulas. As lições em geral tratam de
problemas concretos relativos à industrialização, muito raramente citando ou mesmo
utilizando teoria econômica. A primeira lição trata da relação entre liberdade e indústria,
segundo o institucionalismo característico da escola clássica francesa. A segunda lição
trata do poder produtivo do trabalho e como a prosperidade de um país atinge as pessoas

9
Para detalhes a respeito do tratado Cobden-chevalier, consulte Dunham (1930).
10
A Guerra Franco-Prussiana ocorreu entre julho de 1870 e maio de 1871.
11
Leroy-Beaulieu, em Say e Chailley (1900), p. 410.

295
envolvidas nas diferentes atividades industriais. A quarta lição trata da expansão do uso
de bens de capital e discute as objeções de Sismondi contra a mecanização. O restante
das lições trata dos diversos modos de transporte, como ferrovias e navegação, além da
discussão da moeda e do crédito, sempre em relação à promoção da expansão industrial.

A leitura dos discursos de abertura dos cursos ao longo dos anos também revela a
preocupação com o progresso industrial. Desde o biênio 1841-42 até o ano letivo de
1851-52, os discursos iniciais do curso versam, na ordem, sobre o poder industrial, o
problema social, a necessidade de aumento do poder produtivo, o crédito industrial, o
crédito público, o ensino profissionalizante, o problema populacional, a liberdade do
trabalho em contraste com o mercantilismo, o socialismo, a relação entre Economia e
moralidade, o desejo de bem-estar e, por fim, o progresso.

O nono discurso, sobre o socialismo, foi publicado separadamente como livro. Nesse
discurso, Chevalier (1849) não aborda nenhuma proposta particular de reorganização da
sociedade em moldes socialistas, mas defende os economistas contra as acusações de
que defenderiam o egoísmo, além de atacar o socialismo em termos metodológicos.

O primeiro ponto é recorrente nos embates do período entre economistas e seus críticos,
conservadores e socialistas. Para estes, a adoção do pressuposto de auto-interesse
implicaria defesa do egoísmo, que seria exacerbado pela competição. Na descrição do
próprio Chevalier (1849, p. 5):

O que serviu de pretexto para a acusação contra a economia política de favorecer o


egoísmo é que ela reconhece o interesse pessoal como o principal motivo da
indústria humana, e que ele aprova que colocamos esse motivo em jogo pelos meios
energéticos da competição. O interesse pessoal, dizem, é o próprio egoísmo, e os
excessos a que a competição dá origem podem ser chamados de saturnais do
egoísmo.12
A resposta de Chevalier é a usual. Em primeiro lugar, nega que o auto-interesse se
identifique com egoísmo. Além disso, essa identidade confundiria ciência com moral.
Mas a Economia, pelo contrário, seria uma ciência de observação e raciocínio. Como
tal, adota pressuposto derivado das sensações.

Encontramos dessa forma ecos dos fundamentos metodológicos da escola francesa: a


ciência é fundamentada em observações a partir dos quais são deduzias consequências
lógicas e no caso particular da ciência econômica a lógica da ação inerente ao ser
humano é baseada no sensacionalismo de Condillac. Esse referencial convida
naturalmente à comparação entre o desempenho desse mesmo agente colocado em
ambientes institucionais diferentes. Chevalier, de fato, segue esse roteiro. Depois de
reconhecer a existência de abusos do auto-interesse (p. 7), rejeita a alternativa socialista,

12
Ce qui a servi de prétexte à l'accusation intentée contre l'économie politique de favoriser l'égoïsme ,
c'est qu'elle reconnaît l'intérêt personnel pour le principal mobile de l'industrie humaine, et qu'elle
approuve qu'on mette ce ressort en jeu par l'énergique moyen de la concurrence. L'intérêt personnel, dit-
on, est l'égoïsme même, et les excès auxquels la concurrence donne heu peuvent être qualifiés de
saturnales de l'égoïsme.

296
que pretende suprimir o auto-interesse por meio da ação estatal, concluindo (p. 9) que as
vantagens da livre concorrência superariam seus defeitos.

Em vez de aprofundar essa comparação, tal como Bastiat antes dele ou Courcelle-
Seneuil em sua própria época, Chevalier se limita a defender Malthus da acusação de
que esse autor seria hostil aos pobres. Essa acusação com frequência invoca a afirmação
feita pelo autor inglês, segundo a qual haveria muitas pessoas no banquete da vida. Para
Chevalier, essa passagem trataria apenas de metáfora e as idéias desenvolvidas pelo
autor lidariam com problemas reais e revelariam o caráter filantrópico de seu autor.

Como afirmamos anteriormente, os escritos de Chevalier raramente abordam os


problemas que investiga com as ferramentas abstratas da teoria econômica. Nesse texto,
tampouco o autor se ocupa com a Economia do socialismo.

Por não abordar sistematicamente questões puramente teóricas, não avançaremos no


estudo mais detalhado de sua obra. Entretanto, existe outro livro derivado de suas aulas
que merece alguma atenção. Em um curto texto dedicado à discussão das patentes,
Chevalier (1878) emprega o mesmo argumento que utilizamos na introdução de nosso
trabalho a respeito do caráter gradual da evolução das teorias econômicas, aplicado ao
sistema de patentes.

Economistas de persuasão liberal sempre divergiram a respeito da desejabilidade das


patentes, algo que também se aplica aos economistas que estamos estudando. Rouanet
(2016) identifica três posições sobre a questão encontradas entre os economistas
franceses do período. Entre os defensores das patentes, que as consideram como
propriedade intelectual justificada em termos jurisnaturalistas, encontram-se Bastiat e
Molinari. Um segundo grupo adota uma posição intermediária. Para L. Say, Wolowski e
Coquelin e, como veremos, Courcelle-Seneuil, as patentes não seriam direitos de
propriedade, mas um privilégio que pode ser útil se for temporário, mas cujos custos
podem ser elevados, de forma a tornar a instituição prejudicial ao desenvolvimento da
indústria. Por fim, temos Comte, Dunoyer e Chevalier, que tratam as patentes como
privilégio contrário à liberdade do trabalho e ao progresso e que deveria ser extinto.
Vejamos mais de perto os argumentos de Chevalier.

Os argumentos elencados por Chevalier contra o sistema de patentes são variados,


envolvendo comparações das legislações inglesa e francesa, a evolução da legislação
nesse último país, o exame histórico dos efeitos das leis de patentes em termos do
número de patentes concedidas e dos custos crescentes da administração do sistema,
além dos argumentos econômicos relativos ao seu potencial para gerar ou coibir o
desenvolvimento industrial, tomando como exemplo algumas inovações e patentes
concretas. Como nota Rouanet (2016), encontramos na argumentação de Chevalier as
duas vertentes que existem na literatura moderna contrária às patentes, que empregam
argumentos baseados em justiça ou na adequação dos meios aos fins pretendidos.

Do conjunto de objeções listadas por Chevalier, tratemos apenas da objeção mais


significativa, que pode ser dividida em dois aspectos: a) o sistema de patentes seria uma

297
volta às práticas de concessão de privilégios do antigo regime, supressoras da
competição e portanto do progresso e b) como a evolução das idéias é gradual e fruto da
interação entre muitos agentes, não existe um deles a quem possa ser conferida uma
patente, sem prejudicar a maioria das pessoas que colaboraram competitivamente com a
inovação.

A Revolução Francesa, na interpretação de Chevalier e de vários economistas de sua


época, teria estabelecido o princípio da liberdade do trabalho descrito por Dunoyer, ao
abolir os privilégios de fabricação e comércio. Já o sistema de patentes, segundo
Chevalier (1878, p. 13), refletiria as instituições próprias do Antigo Regime: “... a
patente é um privilégio e um monopólio industrial, da mesma família que aqueles da
Idade Média, que foi abolido imediatamente após 1789”.

A incompatibilidade entre patentes e o princípio de liberdade do trabalho, principal


responsável pelo progresso resulta, para Chevalier, da concessão a outrem do trabalho
de seus concidadãos. Além de restringir por a liberdade de combinar a indústria humana
com objetos de propriedade dos outros, Chevalier (p. 39) se escandaliza com a
possibilidade de confisco arbitrário de equipamento de empresas competidoras, previsto
pela lei francesa de patentes de 1844.

Ao associar as patentes ao Antigo Regime, Chevalier lembra como ambientes marcados


pela ausência de liberdade eram hostis às inovações, como na Antiguidade e Idade
Média. Nesta última, qualquer inovação ameaçaria as corporações, que regulavam as
formas como os bens deveriam ser produzidos.

Chevalier especula sobre como seria o futuro marcado pela expansão do sistema de
patentes, formalmente equivalente ao sistema de restrições medievais. Se considerarmos
a expansão contemporânea do sistema de patentes, a comparação do autor pode ser
utilizada para descrevermos os efeitos das modernas guerras de patentes entre grandes
firmas de bens eletrônicos. Eis como Chevalier (p. 57) concebe o futuro sob a expansão
das patentes:

Não seria impossível que, em certo número de anos, cada industrial pouco notável
estivesse de posse de uma patente que seria seu privilégio, e que a organização da
indústria se assemelhasse então a do antigo regime, no qual cada corporação tinha
seu monopólio exclusivo, e não podia suportar que alguma outra corporação, ou
indivíduo isolado, invadisse seu território.13
Cético em relação à capacidade do sistema de patentes gerar incentivos para inventores,
Chevalier explora as razões pelas quais esse sistema geraria, pelo contrário, o fomento a
pretensões ilusórias de criação de algo útil, além de proliferação de litígios e expansão
da burocracia.

13
Il ne serait pas impossible que, dans un certain nombre d'années, chaque industriel quelque peu
notable fût en possession d'un brevet qui serait son privilège, et qu'alors l'organisation de l'industrie se
mît à ressembler à celle de l'ancien régime, où chaque corporation avait son monopole exclusif, et ne
supportait pas qu'une autre corporation, ou un individu isolé, empiétât sur son terrain.

298
Chevalier não contesta, naturalmente, a lógica do argumento que justifica as patentes,
mas a veracidade de suas premissas sobre a natureza da inovação. A definição de
direitos de propriedade relativos a idéias teria sentido se alguma invenção pudesse ser
atribuída a pessoas determinadas. Mas as idéias, para Chevalier (p. 42), são fruto da
ação de inúmeras pessoas agindo ao longo do tempo, sem que alguma delas possa
legitimamente ser identificada como responsável.

O processo de descoberta é descrito por Chevalier (1878, p. 45) como um lento e


gradual processo de experimentação, compatível com uma perspectiva evolucionária, e
não como criações acabadas que surgem nas mentes de visionários:

Qualquer descoberta industrial é o produto da fermentação geral de idéias, o fruto do


trabalho interno que foi realizado, com a ajuda de um grande número de
colaboradores sucessivos ou simultâneos, dentro da sociedade, muitas vezes durante
séculos. Uma descoberta industrial está longe de oferecer, na mesma medida que a
maioria das outras produções da mente, uma marca de individualidade que torna
necessário relacioná-la ao autor, e é isso que torna equivocada a pretensão de
paternidade.14
A paternidade múltipla, ou impossibilidade de se atribuir uma invenção industrial a uma
pessoa ou grupo particular de pessoas, seria derivada da própria natureza do processo de
descoberta. O trabalho artístico e puramente intelectual, em contraste, poderia ser
atribuído sem dificuldades aos seus criadores. Se encomendarmos uma música ou peça
de teatro a certos artistas, cada pessoa geraria algo diferente. Ninguém além de
Montesquieu escreveria o Espírito das Leis. A natureza dos problemas industriais, por
sua vez, implica em menor liberdade sobre a natureza das soluções dos problemas
técnicos: um problema bem definido direciona sua solução. Isso explicaria a grande
frequência de descobertas tecnológicas simultâneas, com pessoas reunindo de forma
independente umas das outras os elementos da solução já disponibilizados por outros,
que não participam dos ganhos de monopólio conferidos pelo sistema de patentes às
pessoas que na prática contribuem marginalmente com algo apenas nos últimos passos
da evolução de uma inovação.

Diminuindo o contraste que Chevalier estabelece entre o progresso técnico e científico,


defendemos neste trabalho que a evolução da teoria econômica também é fruto de um
processo gradual que envolve um grande número de pensadores, que se fossiliza e é
preservado nas obras dos grandes construtores de sistemas. Esse retrato do processo de
evolução da ciência também prevê a existência generalizada de descobertas simultâneas.

Em particular, as obras dos economistas, se contempladas fora do contexto original da


evolução das idéias, passam a sensação para o leitor das gerações seguintes de que

14
Toute découverte industrielle est le produit de la fermentation générale des idées, le fruit d'un travail
interne qui s'est accompli, avec le concours d'un grand nombre de collaborateurs successifs ou
simultanés, dans le sein de la société, souvent pendant des siècles. Une découverte industrielle est loin
d'offrir au même degré que la plupart des autres productions de l'esprit une empreinte d'individualité qui
oblige de la rapporter à qui s'en dit l'auteur, et c'est ce qui rend très-équivoque la prétention de celui-ci à
la paternité.

299
seriam fruto da genial criatividade de autores isolados. A passagem do tempo faz com
que percamos de vista os “elos perdidos” da evolução científica.

A despeito disso, pela impossibilidade de considerarmos as obras de cada um dos


autores listados nesta seção, deixaremos de lado seus textos para nos concentrar nas
obras de três economistas que sistematizaram e ajudaram a desenvolver o pensamento
econômico próprio das últimas gerações da escola clássica francesa, mas sem perder de
vista que suas idéias evoluíram no ambiente das idéias discutidas pelos demais
economistas da escola.

6.2. Courcelle-Seneuil: descentralização e competição bancária


Da geração seguinte a de Bastiat, o mais importante economista teórico da escola
clássica francesa foi Jean-Gustave Courcelle-Seneuil (1813-1892). O verbete dedicado a
esse autor do dicionário de Economia de Palgrave (1894, p. 377) de fato nota que
“Courcelle é certamente um dos mais profundos e científicos entre os economistas
franceses”.

O exame das publicações do autor poderia à primeira vista passar a impressão de que se
trata de um economista aplicado, como Chevalier. Desde o início de sua carreira,
Courcelle-Seneuil (1867, 1876 [1853]) publica livros sobre bancos e crédito,
defendendo nessa área o programa dos economistas franceses de substituição de
monopólios legais pela competição. Sua defesa da liberdade para que bancos possam
emitir notas bancárias e atuar sem autorização prévia de fato o torna um dos pioneiros
da doutrina da concorrência bancária, conhecida na literatura em inglês como free
banking. Por sua vez, o manual de negócios de Courcelle-Seneuil (1857), um guia
contendo conhecimentos necessários para o exercício da atividade empresarial, é uma
obra pioneira no campo da administração de empresas.

Um exame mais detido desses livros, porém, revela que todos seus trabalhos aplicados
são solidamente baseados na teoria econômica de seu tempo. Molinari (1892) nota que
o autor primeiro trata de questões práticas antes de se dedicar à teoria. Mas os textos
aplicados que mencionamos acima contêm capítulos que sumarizam os fundamentos da
teoria econômica empregada, abordando produção, valor, trocas, moeda e crises
comerciais, assuntos sistematizados posteriormente em seu tratado teórico.

A teoria econômica pura é o assunto do volumoso livro, publicado em dois volumes por
Courcelle-Seneuil (1858a, 1858b) e das versões condensadas dessa obra (1864, 1865).
Essas obras combinam, na exposição da economia clássica, as contribuições teóricas
feitas pelos principais economistas até o momento, em uma síntese que contém
elementos novos dignos de nota, como mostraremos nesta seção. A importância da obra
do autor para a tradição teórica da escola francesa é observada, por exemplo, por
Molinari (1892, p. 79), que em sua homenagem póstuma declara que “Courcelle-
Seneuil foi e continuará a ser um dos mestres da economia política e o digno
continuador de Turgot, J.-B. Say, Dunoyer e Bastiat. ”

300
Em certo sentido, a obra teórica de Courcelle-Seneuil se assemelha a de Pellegrino
Rossi: ambos buscaram sintetizar as contribuições das vertentes inglesa e francesa da
economia clássica, em vez de buscar distingui-las. Alegando razões pedagógicas, ambos
optaram por não mencionar com frequência outros autores ou ainda descrever
controvérsias. As influências sofridas por Courcelle-Seneuil, porém, são facilmente
identificáveis: dos autores franceses, a estrutura geral da teoria é herdada de Say; a
discussão da formação dos preços e da teoria do capital, por sua vez, é retirada
diretamente de Turgot; o princípio de Dunoyer da liberdade do trabalho como fator
determinante da prosperidade se faz presente, assim como alguns elementos existentes
na obra de Bastiat, como a descrição da competição, a comparação entre serviços
trocados no comércio e as relações entre necessidade, esforço e satisfação. Dos autores
ingleses, encontramos a divisão do trabalho e a materialidade como requisito de riqueza
derivados de Smith, a teoria da população de Malthus, a teoria da renda de Ricardo e as
discussões inglesas sobre moeda e bancos. Além desses autores, faz-se sentir na obra de
Courcelle-Seneuil a influência de John Stuart Mill, tanto no que tange ao pressuposto
comportamental derivado de Bentham – a obtenção do máximo de riqueza a partir do
mínimo de sacrifício – quanto na discussão sobre a distinção entre a natureza inevitável
das leis da produção de riqueza e arbitrária das leis da sua distribuição.

O Tratado Teórico e Prático de Economia Política de Courcelle-Seneuil é conhecido


pela distinção entre sua primeira parte (1858a), intitulada Plutologia, dedicada à ciência
geral da Economia e que estuda os determinantes da riqueza e a segunda parte (1858b),
denominada Ergonomia, voltada à arte que estuda a criação de riqueza. Suas teses sobre
competição bancária, sua discussão das causas das crises econômicas ou ainda o estudo
sobre as firmas e sua administração chamam a atenção como contribuições importantes
da obra.

Em nossa opinião, se formos sintetizar a importância teórica da obra em poucas


palavras, poderíamos escolher dois aspectos: em primeiro lugar, a decisão entre
produzir diretamente ou trocar e a decisão entre realizar esforço ou se dedicar ao lazer
são explicadas em termos de escolhas pautadas pela comparação entre o valor das
alternativas. Essa abordagem chamou a atenção de Jevons, tal como retratado na
epígrafe desta tese. Ao adotar tal ponto de vista, acrescenta-se um elemento milliano à
praxiologia de Tracy. Em segundo lugar, a análise de sistemas econômicos comparados
desenvolvida pelo autor é baseada no contraste entre instituições caracterizadas ou pela
liberdade ou pela autoridade. Colocar a questão em termos do grau de centralização das
instituições possibilita o avanço na comparação milliana entre liberalismo e socialismo
como mecanismos rivais de distribuição de riqueza.

Os trabalhos de Courcelle-Seneuil não se limitam a questões estritamente econômicas,


porém. Juglar (1895, p. 859) divide a obra do autor em duas fases, sendo a primeira,
situada entre 1840 e 1867, voltada a questões estritamente econômicas e a segunda, a
partir de 1868, dedicada a questões filosóficas, morais, históricas e jurídicas. A carreira
profissional do autor, por outro lado, se dividiu entre as atividades de jornalismo,
indústria, administração pública, ensino e pesquisa. O impacto do trabalho do

301
economista pode ser ilustrado pelos três discursos realizados na ocasião de sua morte15.
No primeiro desses discursos, proferido pelo presidente da Seção de Legislação, Justiça
e Relações Exteriores do Conselho de Estado, é elogiado o trabalho de Courcelle-
Seneuil na reformulação das leis sobre falências, conservação de monumentos e
proteção de órfãos. No segundo discurso, proferido pelo presidente da Academia de
Ciências Morais e Políticas, discorre-se sobre a importância de seu livro pioneiro sobre
Administração de Empresas. No terceiro, proferido por Molinari, editor do Journal des
Economistes, lembra-se a importância do autor como teórico da Economia.

Antes de abordarmos suas principais idéias econômicas, façamos um breve resumo de


sua vida. Courcelle-Seneuil nasceu na localidade de Seneuil, situada na vila de
Vanxains, no departamento da Dordonha, no sudoeste da França16.

Recebe uma educação clássica, inicialmente em Périgueux, capital da Dordonha e mais


tarde no colégio real de Poitiers. Como Comte e Dunoyer, faz o curso de Direito em
Paris e, ao se formar em 1835, se dedica ao estudo da Economia, em vez do exercício da
advocacia. Como J.-B. Say, Courselle-Seneuil possui experiência como empresário,
mas na indústria siderúrgica, estabelecendo altos-fornos em sua terra natal.

A partir da monarquia de julho de Luis Felipe, manifesta suas opiniões republicanas em


jornais da capital, tornando-se ainda redator do Journal des Economistes. Na década de
quarenta, se interessa pelo mercado bancário, defendendo como Bastiat a liberdade no
setor, criticando as propostas de crédito gratuito. Na década seguinte publica seus
tratados sobre bancos e administração de empresa, sendo este último considerado por
Juglar (1895, p. 855) sua obra mais original.

Depois que Napoleão III assume o poder, o economista republicano abandona o


jornalismo e troca a França pela América do Sul, onde ocupa a cátedra recém-criada de
economia política na Universidade do Chile, a partir de 1855. Além de suas atividades
acadêmicas, exerceu neste último país o cargo de conselheiro do ministério das finanças
até 1863, quando retorna à França. No Chile, o teórico da liberdade bancária ajuda na
implementação de seu ideal, suprimindo regulações e liberando a emissão por bancos
privados de notas bancárias à vista.

Em 1858, enquanto retorna à Europa em missão do governo chileno para obtenção de


fundos para financiar ferrovias, Courcelle-Seneuil publica seu tratado teórico. Na
década de sessenta, já de volta em definitivo ao seu país de origem, publica versões
resumidas desse tratado e aquela que talvez seja sua obra mais conhecida, O Banco
Livre, em 1867. A partir da década de setenta, Courcelle-Seneuil publica vários livros
sobre História, Direito, Filosofia e Moral.

15
Ver Molinari et al (1892).
16
A principal fonte de informações biográficas sobre Courcelle-Seneuil é um texto de Juglar (1895) sobre
seu antecessor na Academia, além do verbete sobre o autor no dicionário de economia editado por
Palgrave (1894). Ver ainda a homenagem feita por Molinari e outros (1892) pela ocasião do falecimento
do autor. Em publicação mais recente, podemos encontrar ainda informações sobre a vida do economista
em Malbranque e Nyguyen (2014).

302
Em 1879 é nomeado membro do conselho de estado, onde se dedica a reforma de
diversas legislações, como o código de comércio, lei de falência e outros. Em 1882, é
eleito membro da Academia de Ciências Morais e Políticas, sucedendo seu colega
Joseph Garnier. Após sua morte, foi sucedido por outro pioneiro no estudo de ciclos
econômicos, Joseph Clément Juglar (1819-1905), que nos forneceu as informações
sobre a vida de Courcelle-Seneuil.

Nas duas próximas subseções examinaremos as idéias econômicas do autor, segundo a


nossa divisão entre teoria geral e teoria sobre estado e sistemas econômicos. A nossa
exposição fará uso de diversas publicações, já que as teses econômicas do autor são
repetidas com poucas variações em vários de seus livros. No entanto, utilizaremos como
guia a estrutura adotada em seu livro principal, o Tratado Teórico e Prático de
Economia Política.

6.2.1. Teoria Econômica Geral em Courcelle-Seneuil: plutologia e utilitarismo


Em termos metodológicos, Courcelle-Seneuil não destoa das crenças empiristas de Say
que discutimos no segundo capítulo: a Economia, como a Física, teria como ponto de
partida a observação de fatos que são generalizados em leis, por sua vez utilizadas para
prever novos fatos. Courcelle-Seneuil (1858a, p. 10) declara sua crença na unidade do
método entre as ciências e na rejeição do ponto de vista historicista, segundo o qual
haveriam diferenças nacionais no que diz respeito à teoria econômica.

Incompreensões sobre a natureza da disciplina seriam evitadas pela observação da


distinção clássica entre ciência e arte. Como ciência, a Economia observa relações de
causa e efeito com propósitos preditivos. Como arte, utiliza essas leis para atender os
objetivos dos homens. As leis do primeiro ramo teriam validade universal, enquanto as
do segundo variam conforme as características particulares em cada local e época.

A Economia seria a ciência limítrofe entre as disciplinas que têm a matéria ou o homem
como objetos de investigação: a riqueza, seu objeto de estudo, se refere aos objetos
materiais úteis para a satisfação das necessidades humanas. A ciência econômica,
denominada Plutologia, investiga as causas da prosperidade, denominada “estado de
riqueza” pelo autor; a arte econômica, denominada Ergonomia, por sua vez busca
procedimentos para tornar ricos indivíduos ou grupos.

A Plutologia, cujo estudo ocupa o primeiro volume do Tratado Teórico e Prático de


Economia Política, se ocupa inicialmente dos determinantes do poder produtivo e do
consumo de riqueza material e em seguida das instituições que regem sua distribuição.
Inclui ainda a relação entre o estado de riqueza e o tamanho da população. A
Ergonomia, assunto do segundo volume, trata das ações do poder público, das firmas e
dos indivíduos no que diz respeito ao objetivo de enriquecimento. Inclui também o
estudo da migração e colonização.

303
A distinção entre ciência e arte, devemos salientar, não equivale a distinção entre
ciência normativa e positiva. A arte econômica, para o autor (p. 9), “reconhece o que é,
indica o que pode ser, nunca o que deve ser”. Devemos além disso notar que a
organização da disciplina em termos da distinção entre ciência e arte é acompanhada
pela adoção da perspectiva milliana sobre as diferenças entre produção e distribuição de
riqueza: também para Courcelle-Seneuil as leis da produção teriam o caráter de
verdades físicas, em contraste com o caráter arbitrário das leis da distribuição, passíveis
de escolha.

A combinação dessas duas distinções sofre do mesmo problema derivado da dicotomia


natural-artificial aplicada a assuntos humanos que encontramos no início das
Harmonias de Bastiat, que exclui fenômenos que são consequências não intencionais de
ações humanas intencionais, não sendo assim nem naturais nem artificiais. Do mesmo
modo, as instituições em Courcelle-Seneuil ora é assunto da arte, ora da ciência.

Segundo a definição adotada pelo autor, o estudo da distribuição deveria na verdade


pertencer à arte, não a ciência econômica, já que instituições seriam fruto de escolha
arbitrária. Esse caminho seria compatível com o papel menor que a distribuição tem
para o autor. De fato, aprofundando a perspectiva plutológica clássica, Courcelle-
Seneuil por vezes pretende reduzir a Economia ao fenômeno produtivo. A distribuição é
vista pelo autor como mero detalhe sem importância, que pode ser separado do estudo
da capacidade produtiva. De fato, para o autor (1858a, p. 207), “a distribuição é, afinal,
apenas um detalhe nos arranjos sociais”. Entretanto, sob a influência de Dunoyer, sua
obra nega essa afirmação, reconhecendo a influência das instituições na capacidade
produtiva dos países. Além disso, o autor desenvolve referencial analítico no qual
compara efeitos econômicos de instituições com diferentes graus de centralização. Esse
referencial trata o assunto em termos teóricos, não históricos.

Como consequência da inconsistência inerente a esse conjunto de pontos de vista, a


obra do autor oscila diversas vezes entre a circunscrição da análise científica apenas aos
fenômenos produtivos e a inclusão da distribuição nessa ciência, como ocorre na
seguinte passagem de Courcelle-Seneuil (1858a, p.7):

O estudo dos elementos do poder produtivo e a relação necessária que existe entre a
soma das riquezas e o tamanho da população constituem, portanto, estritamente
falando, toda a economia política: o estudo dos arranjos de compartilhamento ou
distribuição da economia e das profissões são uma parte natural dela, porque esses
arranjos constituem uma das principais condições do poder produtivo e da existência
de uma população mais ou menos numerosa.17
Soma-se a isso outra inconsistência. Como assinalamos na introdução deste trabalho, a
perspectiva plutológica centra sua atenção nos bens materiais, não na ação humana.
Paradoxalmente, apesar da ênfase na produção em sua caracterização da disciplina, os

17
L'étude des éléments de la puissance productive et du rapport nécessaire qui existe entre la somme des
richesses et le chiffre de la population constituent donc, à proprement parler, toute l'économie politique:
l'étude des arrangements de partage ou de distribution des richesses et des professions en fait
naturellement partie , parce que ces arrangements constituent une des conditions principales de la
puissance productive et de l'existence d'une population plus ou moins nombreuse.

304
elementos novos da exposição de Courcelle-Seneuil dizem respeito ao aspecto subjetivo
da riqueza. Vejamos esse ponto em mais detalhes.

O autor circunscreve (p. 27) a Economia a objetos materiais: necessidades econômicas


são definidas como desejo de posse desses objetos. Bens imateriais de Storch e serviços
de Say são, portanto, excluídos. Existiriam serviços industriais, relacionados
indiretamente a objetos que constituem riqueza e serviços não industriais, aplicados aos
homens. Embora siga Say ao afirmar que produção é criação e consumo destruição de
utilidade, Courcelle-Seneuil (p. 37) inclui, além da utilidade, a materialidade e a
apropriabilidade de objetos como as três condições necessárias para que algo seja
definido como riqueza. O problema principal da Economia consistiria então em
investigar os fatores que determina ao longo do tempo o montante da riqueza material
produzido.
Por outro lado, considerações interessantes são feitas a respeito da utilidade. As
necessidades, para o autor (p. 31), devem ser vistas como um dado psicológico
subjetivo, independente da opinião de terceiros. Utilidade não é tratada, portanto, como
uma característica intrínseca aos bens. Embora cada pessoa deva satisfazer uma
quantidade mínima de necessidades, não existiria um máximo. Para o autor, as
necessidades são função das próprias necessidades, no sentido que o progresso
naturalmente leva os indivíduos a buscar novos objetivos, que passam a ser objeto dos
esforços, tal como descrito por Say, Storch e Bastiat. A miséria, por outo lado, atrofiaria
esse processo de surgimento de necessidades.
A utilidade, como relação entre homens e objetos, variaria ainda conforme se altera
qualquer um desses dois termos (p. 44). Tanto o desgaste de uma roupa quanto a
percepção, correta ou não, de que tenha saído de moda diminui a utilidade de um objeto.
Do caráter subjetivo da utilidade, Courcelle-Seneuil deriva em vários de seus textos a
impossibilidade que ela possa ser medida. Na Plutologia (1858a, p. 45), nenhuma
relação numérica poderia ser estabelecida entre dois objetos úteis para satisfazer
necessidades diferentes de um mesmo agente, como a fome e o frio. Se esse tipo de
comparação não faz sentido para o autor, menos ainda fariam comparações entre a
utilidade de uma mesma coisa para dois indivíduos diferentes.
Em Lições Elementares, seu autor explicita uma crença desconsiderada pelos analistas
modernos que creem que utilidade cardinal implica logicamente em mensuração. Para
Courcelle-Seneuil (1865, p. 4), pelo contrário, a “utilidade, embora aumentando ou
diminuindo, não é suscetível de medição”. A mesma observação é encontrada no
Tratado de Operações Bancárias. É possível dizermos que ao sair de moda o vestido
perde utilidade, mesmo que não possamos atribuir uma magnitude a essa grandeza.
Nesta última obra, Courcelle-Seneuil (1876, p. 7) discorre sobre o caráter não
operacional da utilidade:

É suficiente dizer que a utilidade econômica, produzida por uma operação complexa
da alma, não é suscetível de medição no sentido matemático da palavra. Utilidades
não têm, de forma alguma, o caráter simples, geral e permanente das grandezas
geométricas. Quando expressamos por dois e quatro a razão do comprimento de
duas linhas, essa relação entre o simples e o duplo apresenta aos homens de todas as
idades, eras e países uma idéia clara, idêntica e invariável, que domina a mente pela
autoridade invencível da evidência. Ao contrário, quando eu quero estimar e

305
comparar entre eles a utilidade de um hectolitro de trigo e a utilidade de um vestido,
devo procurar em mim mesmo em que medida um e outro podem servir a satisfação
de meus desejos, e escolho entre meus desejos aqueles a quem prefiro dar
preferência. É compreensível que, em tal avaliação, os mesmos objetos materiais
possam ser estimados e comparados de maneira muito diferente, de acordo com os
tempos, lugares, homens e circunstâncias.
Não se pode nem mesmo comparar exatamente, isto é, medir em números, utilidades
da mesma natureza. Assim, nem sempre é verdade que 10 ou 100 hectolitros de trigo
têm 10 e 100 vezes a utilidade de um hectolitro de trigo. A utilidade é regulada pelos
desejos, ou, como dizem, pelas necessidades, tanto quanto pelas quantidades
produzidas, e é determinada por uma relação cujos termos não podem ser
rigorosamente expressos em números.18
Se para a teoria moderna as preferências são dados exógenos - de gustibus non est
disputandum - Courcelle-Seneuil dedica o oitavo capítulo da primeira parte de sua
Plutogia ao estudo das variações de utilidade derivadas de seu aspecto subjetivo. A
utilidade variaria continuamente, a cada minuto, de modo não sujeito a leis conhecidas.
O autor dedica algum espaço ao exame da variação da utilidade porque essa noção,
parte importante da lógica da escolha que fundamenta a ação individual na teoria
moderna, não tem efetivamente importância teórica na perspectiva plutológica do autor:
como afirmamos repetidas vezes, em toda a tradição clássica, a utilidade é invocada
apenas como condição necessária para a manifestação do valor, útil para a agregação da
riqueza material em uma medida comum, monetária.

Nosso autor, pertencente a essa tradição, depois de listar como varia a utilidade, de fato
ignora as variações subjetivas de utilidade que lista, supondo como simplificação
teórica sua constância e mensurabilidade, para que possa abordar os determinantes da
capacidade de produção de riqueza.

Antes de tratar da produção, vejamos como ele esboça a noção de lógica da escolha.
Para o autor, cada necessidade implica em um desconforto, cuja supressão requer
esforço que por sua vez implica em desconforto. O trabalho ocorreria quando a
comparação entre essas duas alternativas é tal que a pena do esforço produtivo for
inferior a pena associada à continuidade da privação.

18
C'est dire assez que l'utilité économique, produit d'une opération complexe de l'âme, n'est point
susceptible de mesure dans le sens mathématique du mot. Les utilités n'ont en aucune façon le caractère
simple, général et permanent des quantités géométriques. Lorsque l'on exprime par 2 et par 4 le rapport
de longueur de deux lignes, ce rapport du simple au double présente aux hommes de tons les temps, de
tous les âges et de tous les pays, une idée claire, identique, invariable, qui domine l'esprit par l'invincible
autorité de l'évidence. Lors, au contraire, que je veux estimer et comparer entre elles l'utilité d'un
hectolitre de blé et l'utilité d'un habit, il faut que je cherche en moi-même jusqu'à quel point l'un et l'autre
peuvent servir à la satisfaction de mes désirs, et que je choisisse entre mes désirs ceux auxquels il me
convient de donner la préférence. On comprend que, dans une appréciation de ce genre, les mêmes objets
matériels peuvent être très- différemment estimés et comparés, suivant les temps, les lieux, les hommes et
les circonstances. On ne peut même comparer exactement, c'est-à-dire mesurer en nombres, des utilités
de même nature. Ainsi il n'est pas toujours vrai que 10 ou 100 hectolitres de blé aient 10 et 100 fois
l'utilité d'un hectolitre de blé. L'utilité se règle sur les désirs ou, comme on dit, sur les besoins, autant que
sur les quantités produites, et elle se détermine par un rapport dont les termes ne peuvent être
rigoureusement exprimés en nombres.

306
A mesma lógica é empregada para explicar a oferta de trabalho em termos do trade-off
entre consumo e lazer. Courcelle-Seneuil (1858a, p. 36) sugere que o princípio
empregado, aparentemente derivado do utilitarismo, possa servir como fundamento da
análise econômica:
Assim, esses dois impulsos primitivos, que a princípio parecem opostos, e um dos
quais, a necessidade, nos impulsiona diretamente para o trabalho, enquanto o outro,
o desejo de descanso, nos atrai à ociosidade, agem no mesmo sentido e tendem ao
mesmo objetivo: satisfazer nossas necessidades com o mínimo de trabalho possível,
ou, em outras palavras, aumentar constantemente o poder de nosso trabalho. Esta lei
do progresso, há muito reconhecida e formulada pela mecânica, é o ponto de partida
axiomático de toda a ciência da indústria e da própria indústria.19
Tanto o uso da analogia mecânica quanto a sugestão de a comparação possa ser
utilizada como fundamento de um modelo de escolha apelam a Jevons, que lista
Courcelle-Seneuil como precursor de sua doutrina, na citação que utilizamos como
epígrafe deste trabalho.

Talvez se referindo à Fourier, que pretendia organizar seus falanstérios a partir da


identificação dos tipos de personalidade correspondentes às diferentes classes de
trabalho, de modo a torna-los prazerosos, Courcelle-Seneuil afirma a tese contrária de
que o trabalho representa uma pena, entrando negativamente no cálculo dos agentes.

Os trabalhos são classificados pelo autor em duas grandes categorias: os trabalhos


físicos e os trabalhos mentais, como a abstinência de uso presente da renda com fins de
provisão para necessidades futuras. Como Bastiat, Courcelle-Seneuil inclui na própria
fórmula que descreve a ação humana a intenção de introduzir melhoras técnicas, que o
autor denomina mudanças na arte industrial, que geram mais riqueza por unidade de
esforço ou poupam esforço necessário para a obtenção de um fim particular.

Preparado o terreno, mediante a explicitação do modelo de ação dos agentes,


adentremos na plutologia propriamente dita. A produção de riqueza sempre requer
trabalho e matéria. Invocando a tesoura milliana20, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 47)
afirma que não é possível separar as contribuições de cada um desses fatores, assim
como seria impossível separar trabalho braçal do intelectual. O capital, fruto de
poupança e trabalho prévios, é composto por utensílios e provisões úteis para atender
necessidades presentes e futuras pela sua associação ao trabalho presente.

19
Ainsi, ces deux impulsions primitives, qui semblent opposées au premier abord , et dont l'une , le
besoin , nous pousse directement au travail, tandis que l'autre, le désir du repos, nous attire vers
l'oisiveté , agissent dans le même sens et tendent aumême but: à satisfaire nos besoins avec la moindre
somme de travail possible, ou, en d'autres termes, à augmenter sans cesse la puissance de notre travail.
Cette loi de progrès, depuis longtemps constatée et formulée par les mécaniciens, est le point de départ
axiomatique de toute science de l'industrie et de l'industrie elle-même.
20
Segundo Mill (1909): “When two conditions are equally necessary for producing the effect at all, it is
unmeaning to say that so much of it is produced by one and so much by the other ; it is like attempting to
decide which half of a pair of scissor has most to do in the act of cutting ; or which of the factors, five and
six, contributes most to the production of thirty.”

307
Capital é visto como equivalente à riqueza, considerada em seu aspecto temporal. O
investimento, na ótica plutológica do autor (p. 52), repara brechas na riqueza causadas
pelo consumo. Seguindo o exemplo de Turgot, o capital é visto como uma noção
contábil, um fundo de valor, composto por uma soma de utilidades cuja existência
independe dos bens concretos que o compõem. Em vez de apelar às metáforas usuais na
teoria do capital, que invocam homogeneidade, como shmoo, argila ou geléia,
Courcelle-Seneuil (1876, p. 18) emprega em seu Tratado Teórico e Prático de
Operações Bancárias a noção de reencarnação para transmitir o conceito de fundo de
capital, entidade hectoplasmática, independente de sua forma corpórea:

... mas também que poderia ser abstraído dos objetos aos quais foi originalmente
anexado, de modo a sobreviver por um tipo de metempsicose, depois que esses
objetos foram transformados pela troca ou pela indústria.
Se aventurando no espírito da versão ricardiana da economia clássica, Courcelle-Seneuil
(1858a, p. 54) esboça uma representação agregada do capital, ou evolução no tempo da
riqueza. Representando capital por r, produção por P e consumo por C, o autor
estabelece que r = P – C.

O resultado de uma indústria em um período de tempo seria passível de aferição por


meio de dois inventários feitos no início e fim do período, com a riqueza inicial
denominada capital, a soma de utilidades geradas produto bruto e utilidades destruídas
identificadas por custos de produção. O “movimento econômico”, ou sucessão de
estados de riqueza R, dependeria da produção P e do trabalho e, relacionados pela
fórmula R = (P – e)/t. Como o esforço (e) seria subjetivo, assim como a utilidade, mas
tido como constante quando se compara os resultados dos esforços aplicados de forma
diferente, teríamos a definição mais simples R = P/t.

Essas tentativa de formalizar a evolução da riqueza é apenas esboçada, sem que o autor
defina com precisão ou discuta o significado das variáveis ou as utilize para derivar
alguma conclusão. O propósito do exercício é apenas definir em termos agregados a
riqueza e sua evolução no tempo para discutir em seguida seus determinantes.

Mantendo a utilidade dos bens e a desutilidade dos esforços constantes, assim como a
população, o autor classifica as indústrias e examina o seu poder produtivo. O texto é
bastante influenciado por Dunoyer. Deste, Courcelle-Seneuil utiliza a divisão entre
indústrias extrativistas, transportadoras, manufatureiras e agrícolas, acrescentando sob a
influência de Mill a indústria comercial, que dependeria de indústrias dos outros setores.
Essa indústria, tida como menos importante, não seria relevante, por exemplo, a um
sistema comunista de distribuição.

Em todos esses setores, levando em conta as diferenças de fecundidade da terra que


afetam a produtividade dos fatores, a produção aumenta pelo emprego de mais desses
fatores ou pela melhora na arte industrial. O progresso da arte industrial é separado em
quatro aspectos: o primeiro deles diz respeito ao capital, caracterizado como um aspecto
moral, relativo a quão providente são os homens. Como resume em suas Lições
Elementares, Courcelle-Seneuil (1865, p. 23) afirma que “[o] homem não gosta de

308
prover para o futuro, porque essa provisão faz com que ele sinta, além da dor das
necessidades presentes, as necessidades futuras”.

O segundo aspecto da arte diz respeito à relação entre homem e matéria e equivale
aquilo que modernamente chamamos de tecnologia, como as invenções mecânicas que
substituem o trabalho muscular. O terceiro aspecto, denominado “cooperação social”, se
refere aos efeitos da divisão do trabalho estudados por Smith. O quarto, por fim, se
relaciona a fatores institucionais. Como não poderia deixar de ocorrer com um autor
filiado à tradição francesa, em especial influenciado pelo trabalho de Dunoyer, as
instituições afetam de modo crucial a produção. Segundo Courcelle-Seneuil (1858a, p.
116), “os arranjos sociais, isto é, todas as opiniões, costumes e leis positivas que
governam uma sociedade exercem uma influência significativa sobre a produção,
mesmo fora daquelas que se relacionam com a distribuição da riqueza”. Quanto mais os
direitos de propriedade forem respeitados, mais segurança existirá e mais recursos
produtivos são dirigidos para a indústria produtiva.

Depois de descrever a ação do trabalho, capital, tecnologia e instituições na capacidade


produtiva, Courcelle-Seneuil passa a discutir a relação entre riqueza e população em
termos malthusianos. Mantendo os fatores acima listados constantes, a população
máxima é dada pela riqueza dividida pela quantidade mínima de riqueza necessária para
a sobrevivência. Essa população aumenta pela redução desse mínimo, pelo aumento da
riqueza e pela redução da desigualdade. Ainda mantendo a tecnologia constante,
aumentos populacionais implicam aumento da produção proporcionalmente menor.

Courcelle-Seneuil ainda contrasta os efeitos negativos do aumento populacional sobre a


produção média, que poderíamos qualificar como “ingleses” com os efeitos positivos ou
“franceses”: melhoras na arte, redução proporcional dos gastos de luxo e a lei dos
mercados; isto é, a redução dos custos de transporte e ganhos de escala associados ao
aumento populacional. Os economistas franceses de fato exploram a equivalência entre
a redução de barreiras comerciais e o desenvolvimento dos sistemas de transportes,
como encontramos por exemplo na obra de Chevalier.

Depois de investigar os determinantes universais da capacidade produtiva, o autor passa


ao estudo dos fenômenos considerados contingentes e menos importantes da
distribuição. Como discutimos anteriormente, essa opinião, influenciada por Mill,
contrasta com as próprias teses encontradas no livro de Courcelle-Seneuil: este não
apenas reconhece que as instituições afetam de forma significativa a produção, como a
comparação institucional é feita em termos teóricos e universais, em referencial que
compara vantagens e desvantagens econômicas de conjuntos institucionais alternativos.

De fato, como afirmamos anteriormente e mostraremos na próxima seção, o autor


resvala frequentemente em sua abordagem comparativa de instituições em teses que
contrariam a pretendida circunscrição da teoria econômica ao fenômeno produtivo.
Veremos como essas outras partes de sua obra são inconsistentes com a crença de que a
Economia trata apenas de bens materiais, que as hipóteses comportamentais utilizadas

309
se refiram apenas à busca por riqueza e que o conceito de valor diga respeito somente a
economias descentralizadas.

A maneira como Courcelle-Seneuil compara as instituições em termos econômicos será


adiada para a próxima seção, dedicada ao estado e sistemas econômicos. Aqui,
trataremos dos fenômenos das trocas, valor, moeda, custos, juros e salários, fenômeno
que o autor, assim como Marx, acredita serem específicos às economias de mercado.

Iniciemos com a teoria do valor. Esta não difere significativamente daquela


desenvolvida pelos demais autores da tradição francesa: elementos subjetivos são
utilizados para construir a demanda e oferta, mas o uso principal da teoria sendo a
mensuração do montante de riqueza, o preço converge para os custos. No caso
particular de Courcelle-Seneuil, oferta e demanda são explicadas como escolha por dois
bens, tendo em vista a comparação de utilidades envolvidas em trocas ou produção
direta. Além disso, como na versão de Storch da teoria, parte-se de monopólios
bilaterais, a partir dos quais se aumenta a concorrência em cada lado do mercado.

Courcelle-Seneuil enuncia a teoria do valor através de uma fórmula pouco clara, mas
repetida em todas os seus livros sobre Economia21: o valor seria o “poder” de um objeto
em uma troca, por sua vez medida por seus efeitos, que por sua vez consistiria na
quantidade dos demais bens obtidos. Em nenhum momento, porém, se discute o que
seria a causa original, o poder, além dos próprios efeitos identificados.

Vejamos, porém, o que o autor quer dizer com isso. Partindo da situação de monopólio
bilateral, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 244; 1864, p. 49) procede como Bastiat,
explicando a troca em termos da comparação entre a produção direta com o esforço
poupado mediante a troca e também pela comparação entre a utilidade subjetiva que
cada um atribui a um bem, em comparação com o trabalho necessário para adquiri-lo
(1858a, p. 245).

Nesse contexto, oferta e demanda pelos dois bens equivalem às demandas que os
indivíduos apresentam pelo bem possuído pelo outro e o preço acordado se estabelece
por um processo de barganha que depende de fatores como necessidades e sua urgência
por parte dos envolvidos.

Ao fundamentar a determinação do preço na lógica da ação, ensaia-se uma rejeição do


pressuposto de igualdade de valor entre os objetos trocados. Em seu Tratado Teórico e
Prático de Operações Bancárias, Courcelle-Seneuil (1876, p. 9) afirma que cada pessoa
envolvida em uma troca considera que adquire algo mais útil para ele do que aquilo que
cede. Tomando a utilidade como algo relacionado a situação de cada agente, o autor
rejeita explicações não subjetivas, como o trabalho ou a utilidade intrínseca dos bens:

Vamos supor que a troca seja realizada: onde a utilidade dos objetos trocados será
medida? Será na quantidade de trabalho humano empregado em cada um deles?
Não. Será em um sentido fixo e de certa forma filosófico do grau de utilidade de
cada objeto? Tampouco. Algo novo é produzido pela relação de desejo que existe na

21
Ver, por exemplo, Courcelle-Seneuil (1858, p. 242).

310
alma de cada um dos dois agentes da troca para cada um dos objetos trocados. Esse
algo que nasce de uma combinação de desejos e utilidades é chamado de Valor. Mas
onde estão os desejos combinados? De necessidade, de vaidade, etc., de uma
circunstância fortuita e temporária, de modo que amanhã talvez cada um dos dois
contratantes se arrependa do contrato, e atribua às coisas trocadas um valor diferente
do dia anterior.22
Esse descolamento da ortodoxia clássica, porém, é apenas aparente. Na sua Plutologia,
Courcelle-Seneuil (1868, p. 249) é levado a recuperar a noção de utilidade intrínseca.
Isso ocorre para fugir do aparente paradoxo segundo o qual em uma ilha com dois
habitantes os dois melhorariam com a troca, mas a “sociedade” não:

Cada uma das duas pessoas que tomamos como exemplo viu na troca um meio de
adquirir uma soma de utilidades superior àquela que possui: essa superioridade
resulta, pela própria definição, da preferência atribuída por cada um ao objeto que
adquire. Deste ponto de vista e dentro desses limites, a troca produz. Mas se
considerarmos os dois agentes em sua ilha e a totalidade dos produtos de que
dispõem, vemos claramente que a utilidade criada pela troca é bastante subjetiva e
que, na realidade, esse contrato era apenas uma maneira de distribuir entre os dois
habitantes da ilha a soma da riqueza produzida pela soma de seus trabalhos que
existia antes da troca. Qualquer que seja a razão entre as quantidades dos bens
adotada na troca entre os dois produtos trocados, a soma da riqueza existente não é
afetada.23
O paradoxo, naturalmente, se manifesta por causa da manutenção da perspectiva
materialista, para a qual não seria concebível um aumento de riqueza se a quantidade de
bens materiais se mantém constante. Aqui se torna evidente a conexão, por um lado,
entre a perspectiva catalática e o problema alocativo e por outro, entre a perspectiva
plutológica e a separação entre produção e distribuição de riqueza material.

Sob a ótica plutológica, a utilidade é uma das propriedades intrínsecas dos bens que
compõem a riqueza, bastando que existam homens com necessidades a objetos capazes
de satisfazer necessidades. Temos aqui mais uma manifestação da tensão entre
elementos cataláticos e plutológicos que marca a escola clássica francesa. Embora
resvale na solução catalática, Courcelle-Seneuil opta em última análise pela solução
plutológica.

22
Supposons que l'échange s'accomplisse: où aura-t-on pris la mesure de l'utilité des objets échangés?
Sera-ce dans la quantité de travail humain employée sur chacun d'eux? Non. Sera-ce dans un sentiment
fixe et en quelque sorte philosophique du degré d'utilité de chaque objet? Pas davantage. Il se produit
quelque chose de nouveau par le rapport du désir qui existe dans l'âme de chacun des deux échangistes
pour chacun des objets échangés. Ce quelque chose, qui naît d'une combinaison de désirs et d'utilités,
s'appelle Valeur. Mais d'où naissent les désirs combinés? Du besoin, de la vanité, etc, d'une circonstance
fortuite et temporaire, de telle sorte que demain peut-être chacun des deux contractants se repentira du
contrat, et attribuera aux choses échangées une autre valeur que la veille.
23
Chacun des deux échangistes que nous avons pris pour exemple a vu dans l'échange un moyen
d'acquérir une somme d'utilités supérieure à celle qu'il possède : cette supériorité résulte, par la
définition même , de la préférence accordée par chacun à l'objet qu'il acquiert. A ce point de vue et dans
ces limites , l'échange produit. Mais si l'on considère à la fois les deux échangistes dans leur île et la
totalité des produits dont ils disposent , on voit clairement que l'utilité créée par l'échange est toute
subjective et qu'en réalité ce contrat n'a été qu'une manière de distribuer entre les deux habitants de l'île
la somme des richesses produites par la somme de leur travail et qui existait avant l'échange. Quel que
soit le rapport de quantité adopté dans l'échange entre les deux produits échangés, la somme des
richesses existantes n'en est nullement affectée.

311
Consistente com essa escolha, Courcelle-Seneuil (p. 256) observa que embora a
utilidade seja propriedade dos objetos, isso não ocorre com o valor. Este, pelo contrário,
não seria “uma qualidade essencial das riquezas”, mas apenas uma característica
cômoda de um “modo de distribuição” particular. No parágrafo reproduzido a seguir,
Courcelle-Seneuil (1858a, p. 260) deixa claro o sentido da separação clássica entre
produção e distribuição, ou autonomia da riqueza:

A troca abre um novo modo de aquisição para o indivíduo, não para a sociedade.
Considere toda a humanidade: é claro que ela não pode ser enriquecida pela troca, já
que não pode praticá-la. Qualquer que seja as altas ou quedas do valor que se
manifesta em uma mercadoria ou outra, a soma das mercadorias existentes não
aumenta ou diminui, permanece a expressão do poder produtivo total, porque é o
resultado da ação desse poder.24
A separação entre produção e distribuição, que confina a esta última a análise do valor,
bloqueia na economia clássica a percepção da produção como algo relacionado as
escolhas e ao problema alocativo em geral. Como no restante dos autores da escola, a
análise se aproxima da abordagem de equilíbrio parcial, no sentido de que adota
doutrina de custos reais e não de custos determinados pela utilidade obtida em escolhas
alternativas.

Nas Lições Elementares, por exemplo, Courcelle-Seneuil (1864, p.69) afirma que os
custos de produção são dados por salários e juros, que dependem em última análise da
técnica ou “arte industrial”, embora perceba que pode haver substituição entre fatores.
Mas, sem uma teoria do valor que envolva usos alternativos de recursos ou custos de
oportunidade, essa percepção não pode ser elaborada: os juros se relacionam apenas à
reprodução do capital e os salários à reprodução do trabalho.

Encerraremos o exame do tratamento que o autor dá aos preços com uma observação
sobre a forma de representação do aparato de oferta e demanda de um bem isolado, em
uma época anterior à representação dessas grandezas como funções dependentes do
preço que simultaneamente determinam um preço de equilíbrio. Eis a forma indireta
como Courcelle-Seneuil (1865, p. 52) descreve a determinação do preço de um bem:

Em cada troca há apenas três termos, oferta de demanda e valor a considerar: todos
os três são variáveis. Se a oferta aumenta, o valor diminui e, se a oferta diminui, o
valor aumenta. Se a demanda aumentar, se diminuir, o valor aumenta e diminui com
isso. Se o valor aumenta, a demanda diminui e a oferta aumenta. Se o valor diminui,
a demanda aumenta e a oferta diminui.25

24
L'échange ouvre un nouveau moyen d'acquérir à l'individu, non à la société. Considérez l'humanité tout
entière : il est clair qu'elle ne saurait s'enrichir par l'échange , puisqu'elle ne peut le pratiquer. Quelles
que soient les hausses ou baisses de valeur qui se manifestent sur telle ou telle marchandise , ou sur
plusieurs, la somme des marchandises existantes n'augmente ni ne dimi nue : elle reste l'expression de la
puissance productive totale, parce qu'elle est le résultat de l'action de cette puissance.
25
Il n'y a dans tout échange que trois termes, offrer demande, et valeur à considérer : tous les trois sont
variables. Si l'offre augmente, la valeur diminue, et si l'offre diminue, la valeur augmente. Si la demande
augmente, si elle diminue, la valeur augmente et diminue avec elle. Si la valeur aug mente, la demande
diminue et l'offre augmente. Si la valeur diminue, la demande augmente et l'offre diminue.

312
Nessa formulação, já é possível evitar a confusão entre deslocamento de curva com
movimentos ao longo das mesmas, embora ainda não corresponda a uma formulação
mais precisa do processo de determinação do preço de equilíbrio.

Ainda na rubrica distribuição, o autor discute as causas das crises comerciais. Como
especialista em moeda e bancos, Courcelle-Seneuil percebe que as crises se propagam a
partir do mercado de crédito. Como rejeita explicações monetárias sobre a causa dos
ciclos econômicos, associadas ao aumento do crédito que poderia suceder à emissão de
bilhetes à vista por parte dos bancos, podemos adiar a análise do autor sobre os bancos
para a parte “ergonômica” ou aplicada da sua obra, tratando aqui apenas das causas
reais da crise identificadas pelo autor.

Courcelle-Seneuil trata dos ciclos econômicos em várias de suas obras 26. Na descrição
feita do fenômeno nesses livros, as crises comercias se caracterizam pela inexecução de
contratos de crédito, baixa no preço do capital fixo, em particular imóveis e alta nos
juros ou preço de capital circulante, cuja oferta experimenta uma redução “considerável,
súbita e imprevista”. As crises sucedem períodos prolongados de prosperidade e se
iniciam a partir de reduções abruptas no crédito. O autor classifica ainda as crises em
regulares e extraordinárias, sendo estas últimas, mais agudas, caracterizadas por
deslocamentos significativos no emprego do capital.

Para Courcelle-Seneuil (1865, p. 78), as crises não seriam o mal, mas sim o remédio, o
período de ajuste que se segue aos erros prévios que causaram a crise. Embora esses
erros se manifestem nos mercados de crédito, os bancos não seriam os responsáveis por
eles (1867, p. 72). Escassez de produtos, instabilidades políticas ou erros empresariais
não seriam causados pelos bancos, que não teriam interesse em financiar investimentos
insustentáveis. A crença contrária seria baseada na ilusão causada pelo fato de que
naqueles mercados mais desenvolvidos, que resultam em mais ganhos, o crédito é mais
desenvolvido e as crises mais intensas.

Para o autor (1876, p. 53), as origens das crises devem ser buscadas nas apreciações dos
agentes sobre o valor dos investimentos. Essas avaliações seriam

... atos da vontade humana que às vezes mantêm o capital inativo e, às vezes,
imprimem sua atividade, que conferem ou tiram a sua disponibilidade, que
estabelece e mantém ou enfraquece o crédito. É, portanto, nos hábitos sociais que a
causa e as leis do desenvolvimento das crises financeiras devem ser buscadas.27
As expectativas desempenhariam, portanto, um papel preponderante nas crises. Em
condições normais, espera-se regularidade, repetição das trocas anuais. Mudanças
súbitas de idéias e hábitos, porém, perturbam o equilíbrio e levam as crises. Lucros
maiores, por exemplo, implicariam em crédito facilitado e em especial empresários

26
Ver Courcelle-Seneuil (1857, 1858a, 1864, 1867, 1876).
27
Enfin ce sont des actes de la volonté humaine qui tantôt retiennent les capitaux dans l'inertie et tantôt
leur impriment l'activité, qui leur donnent la disponibilité ou la leur enlèvent, qui établissent et
maintiennent ou affaiblissent le crédit. C'est donc dans les habitudes sociales qu'il faut chercher la cause
et les lois de développement des crises financières.

313
inexperientes podem realizar investimentos ruins. O atraso em pagamentos e aumento
de falências, por sua vez, podem fazer com que os proprietários de capital se alarmem e
reduzam a oferta de crédito. Exemplo desse fenômeno é fornecido pelos investimentos
exagerados na expansão das ferrovias na França em 1845.

Em seus livros, Courcelle-Seneuil enumera três causas básicas das crises comerciais. A
primeira é dada pela escassez de algum produto importante, como uma quebra de safra.
Como a demanda por pão é inelástica, uma quebra de safra implica na necessidade de
economizar outros bens. Para tal, empregam-se capitais mais fáceis de realizar no
mercado de crédito, que se torna abruptamente escasso, elevando a taxa de juros e
reduzindo o preço dos bens que são substituídos, movimentos nos preços que
desencadeiam uma crise.

A segunda causa seria uma especulação excessiva e temerária ou um grande número de


operações mal concebidas que ocorrem simultaneamente. Courcelle-Seneuil (1876, p.
56) atribui, portanto, a crise a uma aglomeração de erros empresariais:

Quando fundos consideráveis foram investidos em valores imaginários, dos quais


repentinamente reconhecemos a inanidade, cada um dos especuladores, convocados
para cumprir seus compromissos, efetua uma demanda imprevista sobre o mercado
de fundos disponíveis, e se essa demanda for por uma quantia grande, isso afeta as
condições do mercado.28
Um exemplo desse tipo de fenômeno seria o otimismo exagerado por partes dos
investidores ingleses do início do século dezenove a respeito do potencial de
importações dos países sul-americanos. Esse otimismo, para Courcelle-Seneuil, não
corresponderia com o real poder de compra no “Rio-Janeiro”. Devemos lembrar aqui
como Jean-Baptiste Say utilizara o mesmo exemplo para ilustrar sua lei dos mercados: o
Brasil não teria como demandar produtos ingleses dados os desincentivos à produção
existentes no país.

A terceira causa das crises repete exatamente a conjectura do próprio Say sobre o
assunto: a insegurança gerada entre os proprietários de capital causadas por
perturbações de natureza política, que faz com que se reduza o investimento e se proteja
o capital de perdas.

As três causas principais das crises permitem que o autor seja classificado como um
proponente de teorias reais, não monetárias, sobre os ciclos econômicos. Na geração
seguinte de economistas franceses, o estudo dos ciclos será continuado por Clément
Juglar, seu sucessor na academia, que manterá uma postura cética em relação a ausência
de fatores monetários na tentativa de Coucelle-Seneuil explicar os motivos da
ocorrência de uma concentração de erros empresariais.

28
Lorsque des fonds considérables ont été engagés sur des valeurs d'opinion, d'imagination, dont on
vient tout à coup h reconnaître l'inanité, chacun des spéculateurs, sommé de remplir ses engagements,
fait un appel imprévu sur le marché des disponibles, et si cet appel a pour objet une somme importante, il
affecte en hausse les conditions du marché.

314
Depois de estudar na Plutologia a ciência geral sobre as causas da riqueza, Courcelle-
Seneuil (1858b) trata na Ergonomia da arte do enriquecimento. O autor crê que os
ensinamentos da Economia de fato forneceriam conselhos úteis para a ação prática. Não
apenas no sentido cameralista, segundo o qual textos econômicos deveriam guiar os
governantes sobre administração pública, mas também no sentido grego original do
termo “economia”, no que diz respeito a administração do patrimônio das famílias. Os
conselhos econômicos, para Courcelle-Seneuil, se estenderiam à escolha da profissão,
administração das finanças pessoais e gerência das firmas.

Este último assunto absorve um espaço considerável dos estudos do autor. Em suas
Lições Elementares, exorta os futuros empresários a efetuarem estudos de mercado
antes de agirem. Courcelle-Seneuil (1865, p. 112) lista seis questões básicas a serem
consideradas: 1) qual é a demanda habitual e qual é o preço corrente pelo tipo de bem
que se contempla produzir? 2) é provável que o preço se altere em uma das direções? 3)
qual é a oferta presente? 4) qual é a chance de que a oferta aumente no futuro próximo?
5) como um aumento da oferta afetaria a demanda e o preço? 6) como o preço de
revenda estimado pela firma se compara com os preços praticados pelas outras firmas?

É curioso notar que até então os economistas não dedicavam atenção específica às
firmas. Como vimos, a atividade empresarial é considerada como uma função
econômica por Cantillon e Say trata o empresário como um administrador de empresas.
As firmas em si, porém, não eram em geral assunto dos economistas, sendo citadas
apenas rapidamente como veículos da atividade produtiva. Já Courcelle-Seneuil, a partir
de sua crença no valor prático da teoria, direciona sua atenção para as firmas e seu
funcionamento.

No segundo livro da Ergonomia, encontramos um capítulo para cada aspecto relevante


da administração das empresas: questões mercadológicas, administração das pessoas e
do capital, contabilidade, crédito e opiniões comuns na sociedade sobre a atividade
empresarial e seu valor.

Essa estrutura de capítulos é derivada de uma obra voltada especificamente a esse tema,
publicada pela primeira vez em 1855, o Tratado Teórico e Prático de Empresas
Industriais, Comerciais e Agrícolas: Manual de Negócios. Trata-se de uma obra
pioneira no campo da Administração de Empresas que, como a tendência moderna
nessa disciplina, valoriza o empreendedorismo. Examinemos a estrutura desse livro e
algumas das suas características centrais.

A ciência da administração de empresas proposta pelo autor é originária da teoria


econômica que defende. Em particular, Courcelle-Seneuil recorre as idéias de Say e
Dunoyer. Do Curso Completo de Say temos os conceitos de empresário e de suas
funções econômica. O empresário, para Say, é o agente ativo da organização da
atividade produtiva. Da Liberdade do Trabalho de Dunoyer, por sua vez, extrai-se o
caráter inovador e dinâmico da ação empresarial exigido pelo ambiente competitivo, em
contraste com o caráter rotineiro da atividade produtiva sob os privilégios que
caracterizavam o antigo regime. Fiel ao empirismo de Say, porém, Courcelle-Seneuil
315
alia essas influências teóricas com a crença de que as normas práticas contidas em seu
livro seriam derivadas da observação direta das melhores práticas comerciais.

No início do trabalho, Courcelle-Seneuil (1857, p. 1) define empresas como aplicações


de atividade humana, em um conjunto de operações encadeadas, em qualquer área de
atividade, que combinam recursos para atingir fins, que em última análise se referem à
satisfação das necessidades humanas.

A noção de firma implica em direção consciente, atribuída aos empreendedores, que


decidem os usos do capital e do trabalho tendo em vista propósitos específicos. O
empreendedor é descrito então (p. 2-3) como o agente que, ao decidir os empregos dos
recursos, direciona a oferta à demanda em ambiente compatível com a livre iniciativa. O
empresário toma decisões, assumindo responsabilidade pelo empreendimento, obtendo
assim os lucros ou as perdas resultantes do conjunto de operações que controla.

O empresário descrito por Courcelle-Seneuil (p. 11) também seria dotado de uma
espécie de estado de alerta kirzneriano: no ambiente econômico moderno, marcado pela
competição, o empresário obtém sucesso mediante uma “vigilância e atividade
infatigáveis” em relação as condições prevalecentes nos mercados.

Como Kirzner (1973) no século seguinte, Courcelle-Seneuil distingue analiticamente o


empresário do capitalista: em termos concretos o empresário pode ou não possuir
instrumentos de produção, algo que em geral ocorre. Em termos teóricos, porém, a
função empresarial é caracterizada como a atividade diretora da produção, que avalia se
os recursos gerariam ou não riqueza a partir do julgamento, inteligência e instrução do
empresário. Sendo assim, a função empresarial se distingue tanto pela visão quanto pela
responsabilidade.

Essas considerações nos levam novamente à tensão onipresente na escola clássica


francesa entre plutologia e subjetivismo. Contrariando o materialismo próprio da
perspectiva plutológica, os fatores produtivos adquirem ou não valor conforme os
julgamentos e as escolhas empresariais. Como consequência, Courcelle-Seneuil (p. 6)
conclui que o empresário é o principal agente da produção. Sendo assim, a riqueza de
uma sociedade dependeria crucialmente da atividade empresarial.

Note como essas considerações contrariam as próprias opiniões do autor sobre teoria do
valor em seu tratado teórico. Nesse, trocas não geravam valor. Aqui, decisões
empresariais são cruciais para a riqueza. Como em Say, isso só é consistente se
atividade empresarial for confinada a talento de supervisão. Os exemplos utilizados pelo
autor, no entanto, se referem fundamentalmente a opiniões sobre usos dos recursos, tal
como em Cantillon.

Em seu livro sobre Administração, a afirmação de que a riqueza depende das escolhas
empresariais contrasta com as opiniões que são mantidas na sociedade a respeito do
assunto. Por um erro intelectual, acredita-se que a quantidade de riqueza seja fixa e
portanto o ganho de uns implica perda de outros. Por um erro moral, o trabalho

316
industrial seria ainda visto como degradante. Os dois erros se reforçam na falta de
apreciação sobre o empreendedorismo, crucial para o crescimento da riqueza. A parte
final do livro é dedicada então a discussão dessa rejeição social da atividade
empresarial, que indica a motivação para Courcelle-Seneuil (1857, p.537) encerrar seu
livro como uma espécie de ode ao empreendedorismo:

O espírito empreendedor está alinhado com o que é elogiado: é contrário às práticas


baseadas na tradição e na rotina. Não pode ser muito diferente de tudo o que lhe é
estranho e hostil, de todos esses preconceitos, fragmentos de um passado condenado,
que ainda flutuam na opinião pública. Esse espírito anima mais ou menos todos
aqueles que, no comércio, na indústria manufatureira, na agricultura, dirigem, como
empresários, obras destinadas a suprir as necessidades de todos. Que ele os anime de
uma forma mais exclusiva! O empreendedorismo é um espírito de paz e trabalho, de
economia, independência, moderação e julgamento, um espírito de conciliação,
tolerância e esclarecimento, que busca um remédio para todas as dificuldades, a
todas as crises por invenções e descobertas, por uma duplicação de atividades e pela
difusão da instrução moral e intelectual, sem nenhuma outra arma além da persuasão
e do contrato, e que conhece apenas uma máxima: Sirva-se! Este é o próprio espírito
da civilização.29
Além da hostilidade por parte da sociedade em relação a uma atividade cuja função
econômica não é compreendida, Courcelle-Seneuil combate os preconceitos dos
próprios empresário contra a possibilidade de criação de uma ciência da administração.
Os homens de negócio, segundo nosso pioneiro da disciplina, acreditavam derivar da
prática todo o conhecimento necessário para seus empreendimentos, dispensando
qualquer conhecimento proveniente de teorias. Em contraste, Courcelle-Seneuil (1857,
p. 13) defende o estabelecimento de uma ciência da administração:

Por que não seria possível enunciar em um livro os preceitos que emergem da
conversa de empresários experientes, para indicar os elos que os ligam entre si e que
a tornam uma ciência real? Não mais se contesta que a arte de construir e dirigir
máquinas tivesse uma teoria: por que alguém contestaria a existência de uma teoria
dos negócios?30
O seu livro pretende oferecer uma tentativa pioneira de sistematizar uma teoria sobre
administração, ou arte empresarial, que abstraia as diferenças existentes entre setores e
encontre os elementos comuns presentes em qualquer atividade produtiva.

29
L'esprit d'entreprise est conforme à ce qu'on loue : il est contraire aux pratiques fondées sur la
tradition et la routine. On ne saurait trop le distinguer de tout ce qui lui est étranger et hostile, de tous
ces préjugés, débris d'un passé condamné, qui flottent encore dans l'opinion. Cet esprit anime plus ou
moins tous ceux qui, dans le commerce, dans l'industrie manufacturière, dans l'agriculture, dirigent en
qualité d'entrepreneurs des travaux destinés à subvenir aux besoins de tous. Puisse-t-il les animer d'une
manière plus exclusive! L'esprit d'entreprise est un esprit de paix et de travail, d'économie,
d'indépendance, de modération et de jugement, un esprit de conciliation, de tolérance et de lumières , qui
cherche un remède à toutes les difficultés , à toutes les crises par les inventions et découvertes, par un
redoublement d'activité et par la diffusion de l'instruction morale et intellectuelle, sans autre arme que la
persuasion et le contrat, et qui ne connaît qu'une maxime : Aide-toi ! C'est l'esprit même de la
civilisation.
30
Pourquoi ne serait-il pas possible d'énoncer dans un livre ces préceptes qui ressortent de la
conversation des hommes d'affaires expérimentés, d'indiquer les liens qui les enchaînent les uns aux
autres et qui en font une véritable science? On a cessé de contester que l'art de construire et de conduire
les machines eût une théorie : pourquoi contesterait-on l'existence d'une théorie des affaires?

317
O primeiro passo dessa disciplina é reconhecer que as firmas buscam lucro. A maneira
como esses são obtidos, em última análise, depende da direção da produção e da
condução das trocas tendo em vista o atendimento das necessidades dos homens, ou, em
termos modernos, guiando os negócios segundo uma visão mercadológica.

Partindo desse princípio, a obra é dividida em quatro partes: organização interna das
firmas, relações externas da firma, tipos de indústria e finalmente questões políticas, que
tratam das opiniões sobre as atividades das firmas.

Na primeira parte, dedicada à organização interna das firmas, investiga-se a produção,


os recursos humanos e administração financeira do capital da firma. Herda-se da teoria
econômica a divisão entre dois fatores produtivos básicos: capital e trabalho. O estudo
do capital é por sua vez dividido em capital próprio, interno e capital externo ou crédito,
contendo conselhos sobre a proporção adequada sobre cada tipo de capital que deveria
ser mantida.

O trabalho, por sua vez, tem seu estudo dividido entre as atividades do empreendedor e
dos funcionários contratados. Nesse estudo, é digno de menção especial a análise
comparativa dos diferentes contratos de trabalho. O pagamento de salário por hora ou
peça é comparado em termos do alinhamento entre os incentivos do funcionário e os
incentivos da firma. O exame que o autor realiza do pagamento por peça é análogo
aquele feito pelos modelos de agência da teoria de informação assimétrica: o
funcionário, por ser nesse caso um pretendente residual da receita obtida, tende a se
esforçar mais do que o esquema de pagamento alternativo, que propõe salário fixo.

Ainda sobre a organização interna das firmas, o autor dedica um capítulo a temas
relacionados ao direito comercial, explorando os tipos de sociedades e de contratos
relevantes para um empreendimento.

Na segunda parte do livro, voltada às relações externas da firma, Courcelle-Seneuil


oferece inicialmente uma descrição do funcionamento dos mercados em termos da
teoria econômica, abordando os fenômenos do valor, trocas, preços e estrutura de
mercado. Em seguida, trata da especulação e das crises comerciais, cuja recorrência
afeta a gestão das firmas. Depois de estudar a precificação dos bens tendo em vista a
busca por lucros, estuda-se noções de contabilidade, assunto ao qual o autor dedicará
uma obra própria.

A terceira parte da obra explora diferenças entre empresas, tratando de seu tamanho,
ramo de indústria (agricultura, indústria e comércio), além de discutir firmas novas,
falências e arbitragens. A última parte, como já mencionamos, trata das opiniões sobre a
atividade empresarial, as relações entre empresários, capitalistas e trabalhadores e da
instrução necessária à condução dos negócios.

Para um precursor da ciência da administração, escrevendo na metade do século


dezenove, o livro de Courcelle-Seneuil surpreende pela amplitude dos temas discutidos,

318
que incluem a maioria das áreas comumente associados a administração moderna, como
marketing, Produção, Recursos Humanos, Finanças, Contabilidade e Economia.

Além de pioneiro da administração, Courcelle-Seneuil também se destacou em outro


tema “ergonômico”, como um dos primeiros partidários liberdade bancária (free
banking), tema cuja teoria é desenvolvida um século mais tarde31. Como o exame dessa
questão implica em comparação de arranjos institucionais, deixaremos sua discussão
para a próxima seção.

6.2.2. Economia e Estado em Courcelle-Seneuil: instituições e centralização


O exame do estado na Economia de Courcelle-Seneuil será dividido em três partes. A
primeira, teórica, trata da comparação entre sistemas econômicos. Esse tema é abordado
no segundo livro da Plutologia, dedicado aos modos de distribuição de riqueza e
também em Liberdade e Socialismo. A segunda parte, classificada pelo autor como
aplicada, lida com as funções do estado. Esse tópico é considerado no primeiro livro da
Ergonomia. Por fim, ainda na parte tida como prática, o referencial analítico utilizado
para comparar sistemas econômicos, baseado no contraste entre instituições
centralizadas e descentralizadas é aplicado ao estudo das instituições que regulam um
setor particular, os bancos, com Courcelle-Seneuil defendendo a adoção de leis que
promovam a competição na área.
A comparação entre sistemas na escola clássica francesa, que desde Smith contrasta
mercados livres como mercantilismo, e que acrescenta mais tarde o socialismo, evolui
em Comte e Dunoyer como o exame de uma sucessão histórica de regimes nos quais o
trabalho é cada vez mais livre e é reorganizada por Bastiat como o exame dos incentivos
de agentes auto-interessados sob instituições que garantem ou não direitos de
propriedade, induzindo atividade produtiva ou espoliadora. Courcelle-Seneuil retoma
essa tradição, contemplando os sistemas econômicos sob o ponto de vista do caráter
centralizado ou não de suas instituições.
O estudo de sistemas comparados nesse último autor parte da discussão milliana da
escolha de modos de distribuição de riqueza. Courcelle-Seneuil (1858a, p. 222)
denomina “estado de distribuição” os arranjos institucionais ou sistemas de propriedade
que determinam duas coisas: quem realiza qual trabalho e quem consome o que.
Os sistemas econômicos são caracterizados pelas combinações específicas de
instituições que diferem segundo dois modos elementares de distribuição, autoridade e
liberdade. Tomando a definição do próprio Courcelle-Seneuil (1868a, p. 225): “... onde

31
Após o trabalhos iniciais de Hayek sobre sistemas monetários competitivos, que incluía proposta de
coexistência de moedas privadas, desenvolve-se na tradição austríaca uma controvérsia entre partidários
da competição bancária sob regime de reservas fracionárias, tendo como partidários economistas como
Lawrence White e George Selgin e defensores do reestabelecimento do padrão ouro, sob regime de 100%
de reservas, como Murray Rothbard e mais recentemente Jesus Huerta de Soto. No primeiro campo,
destaca-se o trabalho de White (1995), que alia argumentos teóricos com a tese de que um período
particular da história bancária escocesa seria caracterizado pelo free banking. No segundo campo,ver Soto
(2006).

319
o indivíduo tem poder soberano sobre seu trabalho e de uma parte da soma da riqueza
social, ou essa disposição soberana pertence a outrem. No primeiro caso, diremos que as
riquezas são distribuídas pela liberdade e, no segundo, pela autoridade”32.
Trocas voluntárias em mercados ilustram o modo de distribuição por liberdade e as
ordens de comando hierárquicas o modo por autoridade. Em qualquer sistema, esses
dois modos sempre coexistem, de forma que a análise deve estudar a estrutura das
instituições segundo as combinações dos dois modos. As crianças, por exemplo, são
sempre sujeitas ao modo hierárquico, seja segundo as decisões de seus pais ou de
alguma outra autoridade. Portanto, embora seja possível conceber uma sociedade
caracterizada totalmente por relações hierárquicas, “nem o mais sincero partidário da
liberdade” conceberia o extremo oposto (p. 236).

A comparação entre os dois modos é feita em termos que lembram o referencial


hayekiano, investigando nesses modos o problema da coordenação das atividades de
agentes com conhecimento limitado. Embora coloque o problema da coordenação sob a
ótica clássica, fundada na discussão da distribuição de riqueza, o problema da
coordenação descrito por Courcelle-Seneuil efetivamente pode ser lido em termos do
problema alocativo geral, pois transfere do âmbito individual para a sociedade como um
todo a discussão sobre quais seriam as escolhas corretas.

O autor considera sociedades sucessivamente mais complexas. Em uma família isolada,


a distribuição por autoridade predomina. Em uma tribo, como a de Jacó, que tinha duas
mulheres, 12 filhos, seus cônjuges e netos, além de servos e escravos, o patriarca passa
a utilizar regras gerais no lugar de ordens concretas. A delegação de autoridade é uma
consequência inevitável da impossibilidade de conhecer os detalhes das circunstâncias
particulares. Nessa situação, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 231) descreve o que podemos
descrever como uma consequente má alocação de recursos:

Agora é impossível para ele conhecer intimamente as necessidades, os pontos fortes,


a capacidade de cada um: a distribuição feita por ele, conseqüentemente, é
necessariamente mais ou menos viciosa: deixa necessidades não satisfeitas e forças
desocupadas. Talvez o patriarca não seja o mais previdente da tribo, nem o mais
forte, mais inteligente ou de maior vontade, de modo que aqueles cujas forças estão
desocupadas ou aplicadas a um emprego que julgam pouco conveniente, e aqueles
cujas necessidades não são satisfeitas em relação aos esforços que lhes são
ordenados sofrem e, portanto, procuram, mais ou menos, escapar de alguma forma
da autoridade patriarcal.33

32
En effet, ou l'individu dispose souverainement de son travail et d'une part quelconque de la somme des
richesses sociales, ou cette disposition souveraine appartient à autrui. Dans le premier cas, nous dirons
que les richesses sont distribuées par la liberté et dans le second, par autorité.
33
Or, il lui est impossible de connaître intimement les besoins , les forces , la capacité de chacun : sa
distribution, par conséquent, est nécessairement plus ou moins vicieuse : elle laisse des besoins non-
satisfaits et des forces inoccupées. Peut-être le patriarche n'est-il ni le plus prévoyant de la tribu , ni le
plus fort de corps , d'intelligence , de volonté , de telle sorte que ceux dont les forces sont inoccupées ou
appliquées à un emploi qu'ils jugent peu convenable, ceux dont les besoins ne sont pas satisfaits en raison
des efforts qui leurs sont ordonnés , souffrent et, dès lors , cherchent à se soustraire plus ou moins, d'une
manière ou d'une autre, à l'autorité patriarcale.

320
Assim como Bastiat antes dele e Hayek depois, Courcelle-Seneuil adota explicitamente
a ausência de más intenções em sua análise. Ainda assim, a tribo sofreria devido às
consequências não intencionais do conhecimento incompleto do agente investido de
autoridade, o que resulta em aumento do grau de descentralização existente no sistema
econômico, com a ação discricionária dando lugar a expansão do uso de regras.

Ao contrário de Dunoyer, Courcelle-Seneuil desenvolve um referencial teórico de


comparação, não pretendendo se ocupar de formas concretas de organização social ao
longo da história, em particular devido ao grande número de formas que a distribuição
por autoridade pode assumir, em contraste com a distribuição por liberdade, que pode
ser descrita pelas leis relativas ao funcionamento dos mercados.

Além de fornecer uma base analítica de comparação institucional melhor do que as


observações não sistemáticas de Mill a respeito do contraste entre socialismo e
mercados livres, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 239) amplia a análise, incluindo o estudo
de como as instituições afetam a capacidade produtiva, embora mantenha nominalmente
aseparação milliana entre produção de distribuição:

Estas são as características gerais que distinguem os dois estados ideais de


distribuição que devemos estudar. Vamos chamar o primeiro estado de liberdade,
pois na administração da riqueza, especialmente na produção e no consumo, a
liberdade domina e o segundo, estado de autoridade, pois de fato autoridade domina
e dirige o movimento industrial.34
Prosseguindo na exposição da análise de sistemas econômicos comparados, devemos
notar que esta alia fatores institucionais com o pressuposto de constância da natureza
humana. Seguindo a tradição da economia clássica, em contraste com o historicismo,
Courcelle-Seneuil (p.402) considera que em toda sociedade, em todas as épocas, os
seres humanos possuem a mesma “constituição psicológica” e “paixões fundamentais”.
Analiticamente, reconhecer uma natureza humana restringe significativamente o tipo de
instituição que pode emergir e se manter. Ao mesmo tempo, essa natureza interage com
o ambiente, segundo diferentes “estágios de desenvolvimento moral” em sociedades
com diferentes graus de desenvolvimento. Courcelle-Seneuil segue aqui a tradição
interacionista entre economia e civilização explorada por Storch.

Por outro lado, sob a influência da definição estreita de Economia derivada da


plutologia, que identifica o comportamento econômico com busca por riqueza material
– o conceito de Homo economicus – Courcelle-Seneuil conclui que, sob o modo de
distribuição por liberdade, as pessoas seriam motivadas por suas necessidades, ao passo
que sob o modo de autoridade, medo, religião, costumes e opiniões influenciariam a
ação dos indivíduos.

34
Tels sont les traits généraux qui distinguent les deux états idéaux de distribution que nous devons
étudier. Nous appellerons le premier état de liberté, parce que dans l'administration des richesses,
notamment dans la production et dans la consommation, la liberté domine et le second, état d'autorité,
parce qu'en effet l'autorité y domine et y dirige le mouvement industriel.

321
A comparação entre os dois modos é detalhada em alguns aspectos, como alocação de
recursos na indústria, poupança, inovação, variação população e adaptação diante de
variações na produção. Vejamos os dois primeiros aspectos.

Quanto o primeiro deles, o argumento já foi exposto: embora uma autoridade central
possa deter mais informações gerais, desconhece necessidades e aptidões particulares.
Na análise de Courcelle-Seneuil (1858a, p. 407), não apenas se manifesta a distinção
hayekiana entre o conhecimento abstrato do teórico e o conhecimento prático dos
agentes, como também a hipótese de agentes públicos auto-interessados cujos interesses
devem ser alinhados com os incentivos:

No entanto, se alguém quiser pensar em todos os detalhes que constituem a


organização industrial, logo perceberá que nenhum governo pode conhecê-los com
exatidão e segui-los em seus movimentos infinitos. Um governo, afinal, por melhor
que seja, é composto por homens que têm as mesmas fraquezas, as mesmas paixões
que os outros: o conhecimento e a atividade deles são limitados pela própria
natureza das coisas: eles não podem saber tudo, nem estender sua ação a toda parte.
Eles também não são responsáveis ou o são, no máximo, segundo o juízo dos
homens: se eles cometerem um erro na gestão ou na regulamentação da indústria,
são os governados que sofrem sozinhos ou em primeiro lugar. Assim, é muito difícil
que a autoridade não se engane, seja por falta de conhecimento suficiente, seja por
imprudência ou corrupção, porque os interesses privados dos homens investidos de
autoridade seriam opostos ao interesse público.35
Além desses elementos de conhecimento e incentivos presentes na moderna análise
econômica de organizações centralizadas, Courcelle-Seneuil (p. 406) adiciona o
argumento expresso por Michel Polanyi (2003) sobre a velocidade de transmissão da
informação em hierarquias, em contraste com ordens que denomina policêntricas.
Tomando a representação tripartite do processo econômico idealizada por Bastiat
(necessidades - esforços - satisfação), Courcelle-Seneuil argumenta que a
descentralização apresenta desempenho superior porque mudanças no primeiro
elemento desencadeiam reações imediatas no segundo, sem a perda de tempo exigida
por ordens hierárquicas, que envolvem mecanismos formais de comunicação de
informação e autorização ou ordem de ação.

Passando para o segundo aspecto comparado, a formação de poupança, uma autoridade


central poderia em princípio impor mais facilmente reduções de consumo presente
(poupança forçada) do que um arranjo descentralizado. A comparação, porém, requer o
exame das respectivas estruturas de incentivo. Sob liberdade, poupadores recebem juros

35
Cependant pour peu qu'on veuille réfléchir à tous les détails qui constituent l'organisation industrielle ,
on s'aperçoit bientôt que nul gouvernement ne saurait les connaître avec exactitude et les suivre dans
leurs mouvements infinis. Un gouvernement , après tout, quelque bon qu'il puisse être, se compose
d'hommes qui ont les mêmes faiblesses, les mêmes passions que les autres: leurs connaissances et leur
activité sont bornées par la nature même des choses: ils ne peuvent ni tout savoir, ni porter partout leur
action. Ils ne sont d'ailleurs pas responsables ou ils le sont tout au plus au jugement des hommes: s'ils
commettent une erreur dans la direction ou dans le règlement de l'industrie, ce sont les gouvernés qui en
souffrent seuls ou les premiers. Ainsi , il est bien difficile que l'autorité ne se trompe, soit faute de
connaissances suffisantes, soit par insouciance ou par corruption, parce que les intérêts privés des
hommes qui en sont investis se trouveraient opposés à l'intérêt public.

322
pela abstinência. Sob autoridade, seria necessário um grande número de fiscais que
devem espionar a observância da economia ordenada, em troca de salários. Para
Courcelle-Seneuil, a comparação deve considerar os custos comparativos entre juros
dos poupadores e salários dos fiscais. Embora descreva eu seus estudos do setor
bancário como os juros coordenam poupança e investimento e como o mercado de
fundos emprestáveis deve associar recursos aos melhores usos, os juros aparecem aqui
apenas na dimensão distributiva, como remuneração associada ao incentivo de poupar.
Em outros termos, os problemas de coordenação tratados nos parágrafos anteriores não
são contemplados.

Como na tradição francesa consideram-se auto-interessados os funcionários do estado, a


comparação entre juros do poupador e salário do fiscal envolve um problema de
agência, pois sob autoridade o sacrifício (poupança) é feito pelo agente e o incentivo
(salário) é percebido pelo fiscal, ao passo que sob descentralização os dois aspectos são
automaticamente associados à mesma pessoa.

A consideração dos incentivos dos agentes públicos faz com que Courcelle-Seneuil
(1858a, p. 409) manifeste dúvidas sobre a capacidade de poupança do setor público:

Ao atribuir ao governo a economia dos capitais, obtemos a vantagem segundo a qual


a prudência de alguns é suficiente para combater a cobiça de todos. Mas a cobiça do
próprio governo não tem contrapeso, porque só pode ser contida por considerações
distantes, que abrangem um vasto espaço de tempo e que, conseqüentemente, estão
fora do alcance das pessoas comuns. Há razão para temer, portanto, que neste
sistema o governo, depois de ter exigido que os governados poupem, poupe ele
mesmo muito pouco.36
A solução ao problema de agência coincide com a análise moderna: alinhar incentivos
requer que os agentes sejam pretendentes residuais da renda gerada. Pagamentos por
peça são melhores do que remuneração constante, como já observara o autor em seu
livro sobre administração de empresas.

O exame da alocação de recursos e da poupança bastam para ilustrarmos a lógica de


comparação da liberdade com a autoridade. A análise pode ser aplicada a inúmeros
problemas práticos, como no caso dos bancos, que detalharemos mais adiante. Neste
ponto, é suficiente reportarmos o resumo da comparação feito pelo autor (1864, p. 91)
em suas Lições Elementares: a liberdade envolveria mais desperdício de forças, mas é
mais fecunda, com os agentes exercendo suas faculdades de maneira melhor do que sob
autoridade.

A análise de sistemas comparados de Courcelle-Seneuil dedica ainda um capítulo ao


estudo das restrições à liberdade e outro dedicado aos defeitos do modo de distribuição
por liberdade. Ao contrário do vício que marca a análise comparativa de sistemas do

36
En chargeant le gouvernement d'économiser les capitaux, on obtient cet avantage que la prudence de
quelques-uns suffit à combattre la convoitise de tous. Mais la convoitise du gouvernement lui-même est
sans aucun contre-poids, car elle ne peut être contenue que par des considérations lointaines , qui
embrassent un vaste espace de temps et qui sont , par conséquent, hors de la portée du commun des
hommes. Il y a donc lieu de craindre que dans ce système, le gouvernement, après avoir exigé que les
gouvernés épargnent , épargne lui-même assez peu.

323
século seguinte, que tende a comparar economias reais com modelos teóricos, algo que
Demsetz (1969) denomina falácia do nirvana, a análise clássica de Courcelle-Seneuil
examina seus dois sistemas teóricos em termos dos mesmos critérios e trata a realidade
como hibrida entre eles, em vez de identificar a realidade com o sistema que se rejeita,
como ocorre com a comparação de sistemas no século seguinte.

O capítulo da Plutologia dedicado aos entraves à liberdade (distribuição, capítulo 10)


tem caráter dunoyeriano, investigando os efeitos das restrições legais e culturais na
liberdade do trabalho. Courcelle-Seneuil divide os obstáculos em naturais, inevitáveis,
tais como a ignorância, a distância entre as populações, as diferenças de língua e
nacionalidade e os tributos e os obstáculos artificiais, impostos deliberadamente, como
os monopólios, regulações e controles de preços.

Tomando o conjunto dos obstáculos, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 449) considera que


cada um deles teria os mesmos efeitos: anular a igualdade entre serviços nas trocas, tal
como estabelecido por Bastiat sob competição, além de excluir pessoas e satisfação de
necessidades da esfera de cooperação social, algo que hoje expressaríamos em termos
de perdas de peso-morto.

Isso implica que a distribuição efetivamente afeta a produção. Como resumido nas
Lições Elementares (1864, p. 98), quanto menos obstáculos, maior será a produção. Ou,
usando os termos de Dunoyer, a liberdade do trabalho afeta o poder do trabalho.

Como Comte, Dunoyer e Chevalier, Courcelle-Seneuil também considera a Revolução


Francesa como marco separador entre os sistemas de privilégio e liberdade. Assim
como Chevalier, Courcelle-Seneuil (1858a, p. 449) interpreta os obstáculos
institucionais como heranças disfuncionais do antigo regime:

A maioria dos obstáculos artificiais à competição são, deve-se notar, escombros dos
sistemas de distribuição por autoridade. Esse regime, antes geral, depois
sucessivamente modificado pelos acontecimentos, deixou nas leis, nos costumes e
na própria opinião traços profundos que ainda não foram apagados.37
Entre esses costumes, o autor menciona o hábito de atribuir ao regime de liberdade os
males decorrentes das restrições, quando, por exemplo, os problemas sociais são
atribuídos aos efeitos da competição (p. 456).

O capítulo da Plutologia voltado aos defeitos do regime de distribuição por liberdade,


por sua vez, trata de quatro tópicos. O uso da liberdade pode resultar em
açambarcamento de produtos em certos mercados. Ou seja, além dos monopólios legais,
fatores naturais podem fazer com que surjam monopólios de algum recurso, em geral na
agricultura.

37
La plupart des obstacles artificiels opposés à la concurrence sont, il est bon de le remarquer, des
débris des systèmes de distribution par autorité. Ce régime, autrefois général, puis successivement
modifié par les événements, a laissé dans les lois, dans les moeurs et dans l'opinion elle-même des traces
profondes qui ne sont pas encore effacées.

324
Em segundo lugar, o uso de mercados não remunera a atividade de invenções de forma
adequada. Ciente dos defeitos inerentes aos sistemas de patentes, Courcelle-Seneuil
argumenta que os serviços dos inventores não são remunerados em regime livre devido
à impossibilidade de apropriação de idéias.

Em terceiro lugar, sob a perspectiva clássica a igualdade de serviços é rompida quando


ocorre variações na população, pois proprietários de terra obteriam remuneração sem
trabalho correspondente.

Em quarto lugar, o sistema de distribuição por liberdade tenderia a agravar


desigualdades provenientes das diferenças de aptidões industriais.

A pobreza, por fim, seria fenômeno complexo, cuja origem não poderia ser atribuída ao
sistema de liberdade, já que a realidade é sempre mistura dos dois modos de
distribuição.

O procedimento de comparação institucional descrito acima é aplicado em A Liberdade


e o Socialismo. Nesse livro, Courcelle-Seneuil (1868) discute a economia do socialismo
em termos da escolha de configurações institucionais que envolvem o uso ou do
princípio da liberdade ou da autoridade. Depois demostrar como problemas econômicos
são resolvidas sob liberdade, indaga como os mesmos problemas seriam tratados sob
autoridade.
Sobre esse último problema, dividiremos a argumentação em duas partes. Na primeira,
considerando os meios e não os fins propostos pelos seus defensores, Courcelle-Seneuil
define o socialismo como um sistema baseado na autoridade e interpreta seu significado
como uma reação cultural à expansão da liberdade do trabalho. Em seguida, depois de
identificar três correntes do socialismo, associadas respectivamente a Babeuf, Saint-
Simon e Fourier, Courcelle-Seneuil prefere discutir não as obras desses autores, pois
seus sistemas morreriam com seus idealizadores, mas sim propostas concretas de
reformas econômicas defendidas pelos socialistas, que seriam mais permanentes.
O socialismo, que para o autor seria a principal questão social de seu tempo, buscaria
reformas na sociedade que resultariam em propostas de novos arranjos institucionais
que transfeririam os instrumentos de trabalho aos pobres e estabeleceria esquemas
igualitários de repartição de riqueza.
A análise econômica do socialismo, contudo, não escaparia da escolha entre os dois
modos fundamentais de distribuição: ou a própria pessoa ou terceiros decidem o que
fazer com o trabalho e com o fruto desse trabalho. O conflito entre autoridade e
liberdade definiria a escolha de sistemas econômicos. A autoridade pode assumir
diversos graus e formas, desde o comunismo nas missões paraguaias até corporações de
ofício monopolistas, passando pelo trabalho escravo.

Sendo assim, para Courcelle-Seneuil (1868, p. 25) qualquer reforma social proposta,
incluindo aquelas inspiradas pelo pensamento socialista, deve apontar para uma das
duas direções, pois liberdade e autoridade coexistem, mas uma se expande em

325
detrimento da outra. A questão social se resumiria, portanto, na indagação sobre qual
caminho tomar: em direção a expansão da liberdade ou da autoridade.

Além de argumentar que em última análise a escolha entre sistemas econômicos


consiste em considerar instituições com diferentes graus de centralização, Courcelle-
Seneuil interpreta o socialismo como um movimento reacionário, uma reação cultural
disfuncional diante da tendência histórica à descentralização que o autor imagina
ocorrer.

A passagem do antigo regime para o novo, iniciado com a Revolução Francesa,


consistiria no abandono de sociedades estáticas, hierárquicas e com atividade produtiva
controlada centralmente em favor da liberdade, que exige inovação e adaptação.

Em termos de evolução cultural, porém, (p. 2) seriam necessárias várias gerações para
que as pessoas se adaptem às exigências do novo cenário. Perdendo de vista os males
existentes sob o despotismo do velho regime, as pessoas concebem então esquemas de
organização baseados na autoridade, em harmonia com seus hábitos de pensamento.

A sociedade francesa na época de autor é interpretada como um palco da luta entre o


novo e o velho, entre liberdade e centralização. A primeira fase da reação seria dada
pelo governo napoleônico, que reestabelecera a centralização por meio de expansão da
regulação das atividades econômicas e da burocracia administrativa, recriação de
corporações e monopólios.

Na sequência, os reformadores socialistas teriam proposto esquemas que, do mesmo


modo, invariavelmente implicavam em expansão do controle central. Desprovidos dos
costumes adequados para a vida em liberdade (p. 10), “preferem convidar a todos para
novas amarras, para todos os despotismos que a fantasia dos criadores de organizações
sociais poderia imaginar”.

O exame de propostas socialistas específicas é feito sob a ótica de uma espécie de


argumento de similitude formal entre sistemas econômicos restrito ao referencial
plutológico. O argumento de similitude formal foi proposto no final do século dezenove
por autores como Wieser, Böhm-Bawerk, Pareto e Barone. Esses autores, utilizando a
teoria moderna, constatam que o socialismo deve resolver o mesmo problema
econômico fundamental enfrentado por economias de mercado; a saber, o problema
alocativo. Courcelle-Seneuil, de maneira análoga, indaga como as funções do
empresário e do capitalista seriam exercidas em sistemas econômicos alternativos.

Depois de descrever a importância da atividade empresarial para o funcionamento dos


mercados, destacando o trabalho intelectual envolvido na gerência de negócios, tal
como descrito em seu livro sobre Administração, como por exemplo na gerência do
risco, na geração de poupança ou na administração de incentivos, critica a atenção dada
ao trabalho braçal, cuja função é mais fácil de entender. A desconsideração das funções
intelectuais, mais abstratas, do empresário e do capitalista contrastaria com a exagerada
atenção conferida pelos socialistas à posse de recursos materiais como fonte de riqueza.

326
Isso convida a uma declaração sobre como tais funções empresariais seriam exercidas
sob arranjos alternativos. Ao aplicar os pressupostos de conhecimento limitado e auto-
interesse ao comando das hierarquias em sua comparação de sistemas econômicos,
Courcelle-Seneuil (1868, p. 27) revela seu ceticismo em relação aos resultados que se
possa esperar de regimes baseados na autoridade:

A liberdade toma os homens como eles são e, para o seu desenvolvimento, conta
com a ação da experiência e da responsabilidade. A autoridade pressupõe que a
maioria dos homens é incapaz de se guiar por eles próprios, e que alguns são
capazes de dirigir a si mesmos e aos outros. Mas não vemos em nenhum lugar, em
nossas sociedades modernas, aqueles indivíduos superiores em razão, conhecimento
e moralidade, aos quais podemos, sem medo, confiar a direção dos outros: onde a
autoridade ainda pesa sobre a indústria, nós a vemos funcionando mais
freqüentemente para o benefício daqueles que a exercitam e sempre contra o
interesse daqueles que estão sujeitos a ele, isto é, do maior número.38
Retomando ao contraste entre os desperdícios inerentes à liberdade e os riscos de erros
sistêmicos inerentes à centralização, Coucelle-Seneuil (1868, p. 29) nota que as “As
sociedades mais sossegadas são aquelas mais livres, porque são aquelas em que os
vícios e as fraquezas dos homens investidos da autoridade têm menos consequências”.

Outro aspecto digno de nota da crítica de Courcelle-Seneuil ao socialismo (1868, p. 50)


diz respeito a sua rejeição da análise feita em termos de classes:
Numa sociedade em que a indústria é livre, o empreendedor, o capitalista e o
operário cumprem várias funções, mas não formam, como muitas vezes se diz,
classes separadas. Há classes somente onde certas funções são reservadas por lei ou
por costume a certas pessoas ou famílias, excluindo todas as outras. 39
Para os autores franceses, as funções econômicas são ficções analíticas. A exploração,
por sua vez, tem sua origem na própria natureza humana atuando em ambientes que
favorecem o uso de violência política, como vimos na tradição composta por Turgot,
Say, Comte, Dunoyer e Bastiat.
A análise geral do socialismo é acompanhada no livro de Courcelle-Seneuil pelo exame
de alguns temas específicos de debate econômico na política francesa do período, como
o crédito grátis, a fixação legal dos salários, as instituições previdenciárias e de
consumidores. Mais adiante, discutiremos apenas as instituições bancárias, tema que
assume relevância maior na obra do autor.

38
La liberté prend les hommes tels qu'ils sont et compte, pour leur perfectionnement, sur l'action de
l'expérience et de la responsabilité. L'autorité suppose que la plupart des hommes sont incapables de se
diriger euxmêmes, et qu'un petit nombre sont capables de bien diriger eux-mêmes et les autres. Mais nous
ne voyons nulle part, dans nos sociétés modernes, ces individus supérieurs en raison, en lumières et en
moralité aux quels on puisse, sans crainte, confier la direction des autres : là où l'autorité pèse encore
sur l'industrie, nous la voyons fonctionner le plus souvent au profit de ceux qui l'exercent et toujours
contre l'intérêt de ceux qui y sont soumis, c'est-à-dire du plus grand nombre.
39
Dans une société où l'industrie est libre, l'entrepreneur, le capitaliste et l'ouvrier remplissent des
fonctions diverses, mais ne forment point, comme on le dit trop souvent, des classes distinctes. Il n'y a de
classes que là où certaines fonctions sont réservées par la loi ou la coutume à certaines personnes ou
familles à l'exclusion de toutes les autres.

327
Passemos agora ao estudo das funções do estado normalmente discutidas pelos
economistas. Lembrando que qualquer sistema econômico envolve para o autor
misturas de autoridade e liberdade e que a discussão é situada pelo autor na parte
ergonômica ou aplicada de seu tratado, com as instituições sujeitas à escolha, é natural
que o autor divida, como os demais economistas clássicos, as funções do estado entre
aquelas obrigatórias e aquelas acessórias, mas cuja expansão nos levaria de volta a
problema discutido acima de escolha entre graus de centralização.
Visto que o exame das instituições do autor gira em torno da dicotomia liberdade -
autoridade, Courcelle-Seneuil examina uma lista grande de atividades para as quais o
papel do estado deve ser determinado, segundo as vantagens e desvantagens de maior
ou menor centralização.
Neste trabalho, nos limitaremos apenas a listar quais atividades Courcelle-Seneuil
contempla em sua análise da ação do estado. Essas atividades são divididas em dois
grupos: a) as atividades legislativas ou reguladoras b) as atribuições executivas ou
administrativas do estado. Vejamos o tipo de assunto tratado em cada categoria, que se
distribuem pelos diversos capítulos da Ergonomia. Iniciando com as atividades
administrativas, o primeiro capítulo trata dos direitos de propriedade que não dizem
respeito aos contratos, tais como o direito familiar e de testamentos. Em seguida, são
examinados contratos de natureza comercial, como contratos de compra e venda,
monopólios legais, regulações de comércio externo e regulações dos mercados, em
especial fraudes. Inclui ainda o exame das patentes, assunto no qual o autor não diverge
das opiniões de Chevalier: Courcelle-Seneuil também concebe a invenção como um
processo coletivo e gradual, com múltiplos inventores. Não seria correto, portanto,
“considerar os inventores como um tipo de semideuses, sem a existência e vontade dos
quais o mundo seria privado das invenções” (1858b, p. 76). O terceiro capítulo trata dos
contratos de trabalho, abordando o acesso a profissões, ação coletiva para aumentar
salários, regulações de indústrias, sempre sob o ponto de vista da ótica de Dunoyer
sobre a liberdade do trabalho. Depois dos contratos de trabalho, Courcelle-Seneuil trata
dos contratos de crédito e em seguida contratos conjugais, industriais e demais contratos
não industriais, salientando a importância da livre associação. Finalmente, o autor trata
do judiciário.
Transitando para atividades executivas, na segunda parte do primeiro livro da
Ergonomia, Courcelle-Seneuil trata da segurança interna e externa, dos impostos,
incluindo as discussões clássicas sobre incidência e tipos de tributos. Em seguida são
discutidas as finanças públicas e, seguindo as discussões dos economistas ingleses, em
particular J.S Mill, um capítulo dedicado aos gastos obrigatórios e outro aos gastos
facultativos do estado. Estas últimas incluem, considerando-se a história francesa, os
gastos com religião. Além destes, temos as construções de sistemas de transporte,
sistemas de aposentadorias e seguros e fabricação de moedas.
O exame de Courcelle-Seneuil sobre o que o estado deve fazer, o que poderia fazer e o
que deveria deixar para a iniciativa livre segue a tradição analítica dos economistas do
período. As opiniões do autor, devemos salientar, são baseadas no exame das

328
consequências econômicas das instituições analisadas e dos costumes da população e
não em considerações sobre justiça. Em um capítulo final dedicado ao emprego da
autoridade nas reformas econômicas, o autor se depara com os problemas inerentes a
mudança institucional. Nessa discussão, porém, o autor não assume uma postura
puramente institucionalista: além do grau de liberdade de pensamento e discussão
político dados pelas regras institucionais de uma sociedade, o autor fala sobre
características de um povo. Sociedades nas quais as pessoas não são previdentes ou
trabalhadoras, para o autor, deveriam contar com reformas de cima para baixo, de
iniciativa da autoridade, em vez de contar com a atuação gradual da educação, que atua
de baixo para cima. Segundo esse ponto de vista, o comportamento das pessoas é
atribuído a características do povo e não fruto dos incentivos colocados pelas
instituições vigentes.

Depois de visitar os procedimentos gerais ou teóricos utilizados pelo autor para a


comparação de arranjos institucionais e listarmos as áreas que na opinião do autor
deveriam ser governadas em maior ou menor grau por instituições centralizadas, em
contraste com aquelas regidas por instituições descentralizadas, podemos ilustrar um
tema “ergonômico” particular, referente ao setor bancário, assunto no qual o autor era
especialista. O nome de Courcelle-Seneuil é comumente associado à defesa da
competição nesse setor, tanto em termos teóricos, em seus livros sobre o assunto,
quanto práticos, na reforma bancária implementada no Chile durante o tempo que viveu
naquele pais. Além do Tratado Teórico e Prático de Operações Bancárias, obra que já
mencionamos algumas vezes no exame da teoria pura, utilizaremos seu livro mais
conhecido sobre o assunto, O Banco Livre.
O trabalho de Courcelle-Seneuil sobre os bancos consiste em mais uma aplicação
setorial do referencial teórico da escola clássica francesa: reformas institucionais que
substituem monopólios legais pelo princípio da liberdade do trabalho promoveriam a
competição, aumentando o poder industrial e, portanto, a produção de riqueza na
sociedade.
Antes de tratar da competição no setor bancário, devemos abordar que tipo de serviço é
ofertado pelos bancos, pois a mesma repugnância a mercados que o autor detectara em
relação à atividade empresarial se manifestaria em relação aos abstratos serviços
prestados pelos bancos, em especial entre intelectuais (1867, p. 18).
No seu Tratado das Operações Bancárias Courcelle-Seneuil (1876, p. 70) lista três
funções básicas dos bancos. Em primeiro lugar, teríamos a função coordenadora entre
oferta e demanda no mercado monetário em geral e nos mercados de metais preciosos
em particular. Em seguida, os bancos exercem papel importante no mercado de fundos
emprestáveis, coordenando as ações dos ofertantes, que poupam recursos, com as dos
demandantes, que os buscam para adquirir equipamento ou obter adiantamentos para
honrar os diversos tipos de despesas que precedem suas receitas. Por fim, os bancos
economizariam recursos por meio de títulos que poupam o transporte de moeda em
espécie, quando indivíduos diferentes, em diversas localidades, efetuam transações entre

329
si. Como o próprio autor (1867, p. 151) resume essas funções em seu O Banco Livre, os
bancos comerciais alocam capital e economizam no uso do dinheiro.
No início dessa última obra, Courcelle-Seneuil (p. 2) lista os serviços básicos derivados
dessas funções: ofertar letras de câmbio para evitar o transporte de moeda metálica,
aceitar depósitos para garantir a segurança dos proprietários de moeda, efetuar
empréstimos e prover conselhos sobre a administração do dinheiro.
Diante da suspeita usual dirigida a intermediários, Courcelle-Seneuil argumenta que a
especialização, aliada aos efeitos da concorrência, tende a tornar esses serviços mais
baratos. Assim como ocorre na tradição clássica, essa última afirmativa implica na
comparação entre arranjos institucionais rivais.
Essa comparação envolve, de um lado, um sistema bancário competitivo e do outro um
sistema caracterizado por privilégios monopolistas. Courcelle-Seneuil trata da
centralização no setor a partir de Napoleão da mesma maneira que Chevalier associara
as patentes a um privilégio digno do Antigo Regime. O monopólio do Banco da França
de emitir títulos à vista e ao portador em Paris e nas cidades onde tinha filiais, assim
como a exigência de autorização legislativa para fundar um banco privado, são vistos
por Courcelle-Seneuil (1867, p. 34) como privilégios que devam ser substituídos pela
livre entrada, essência da competição.
O autor tem consciência de que entre um sistema bancário livre e um monopolista
existem sistemas mistos, com diferentes tipos de regulação e grau de monopolização.
Por motivos analíticos, o estudo se limita aos extremos de competição e monopólio,
vistos como tipos ideais, com Courcelle-Seneuil (1867, p. iv) preferindo arranjos
concretos com menor grau de centralização.
Em geral, as críticas aos seus pontos de vista tendem a perder de vista que os
argumentos teóricos empregados pelo autor se referem ao ideal competitivo, não a
arranjos concretos nos quais essa competição não é permitida. Entretanto, seria justo
observar que o autor, assim como os economistas envolvidos na controvérsia moderna
em torno da liberdade bancária, de fato não aborda de forma convincente o problema de
falta de robustez institucional existente no setor. Quando governos desejam expandir o
financiamento de seus gastos e bancos incorrem em expansão imprudente de crédito,
historicamente as amarras institucionais previstas pelas propostas de regras que
impediriam o comportamento de moral hazard são facilmente abandonadas.
No caso relevante para Courcelle-Seneuil, o problema se manifesta nas diferentes
interpretações dos historiadores econômicos sobre a respeito da economia do Chile. Os
fatos relativos ao sistema monetário e ao desempenho econômico nas décadas seguintes
à reforma promovida naquele país sob a direção de Courcelle-Seneuil podem ou não
refletir o sistema defendido pelo economista francês.
De todo modo, sempre levando em conta que o argumento se refere ao contraste entre
os dois tipos ideias, competição e monopólio, retomemos a argumentação do autor.

330
Iniciemos com os objetivos pretendidos com a adoção da competição no setor. Partindo
da lista que reproduzimos acima de funções do setor bancário e dos serviços por ele
prestado, a adoção da competição bancária resultaria, para o autor, em expansão e
barateamento dos serviços. Em especial, com o aumento da eficiência bancária, a
sociedade se beneficiaria na medida em que o capital emprestado seria emprestado aos
empresários mais capazes, aumentando a produtividade da economia.
Um grande espaço na argumentação do autor é reservado aos efeitos da expansão da
atividade bancária no setor agrícola. Por se situar longe dos centros urbanos, nos quais
se concentram os bancos, os agricultores teriam maior acesso ao crédito e demais
serviços bancários se fossem adotadas a liberdade de emissão de títulos e a livre entrada
no setor bancário. Os locais mais distantes e os agricultores menores, em particular,
passariam a ser atendidos pelos serviços bancários.
Considerando novamente o mercado de fundos emprestáveis como um todo e levando
em conta a análise do autor sobre a conexão entre esse mercado e as causas das crises
comerciais, a liberdade bancária traria ainda, como resultado do aumento do capital
negociado nesse mercado, uma redução da proporção de alocações equivocadas. Como
podemos recordar, os atrasos de pagamentos e falências, por meio das expectativas,
podem induzir uma contração do crédito que inicia as crises comerciais.
Para que esse argumento que apela para as vantagens de um mercado maior seja
convincente, é necessário mostrar que a liberdade de emissão não implique em
expansão do crédito além do capital real existente. Courcelle-Seneuil (1867, p. 24)
acredita que este seria o caso:
É bem sabido que o crédito, especialmente sob a forma de um empréstimo, não cria,
por si só, capital algum; que é útil quando o capital é emprestado a pessoas que
sabem como usá-lo, mas prejudicial no caso oposto. A utilidade dos serviços do
banqueiro como credor consiste, portanto, nisso: que ele empreste de preferência
àqueles que podem valorizar melhor o capital emprestado.40
Para justificar essa crença, o autor argumenta que crédito não seria moeda e que a sua
necessidade seria regulada pelo volume real de produção, como na doutrina dos real
bills na Inglaterra. Embora funcione como moeda, a quantidade de títulos seria limitada,
já que bancos e firmas evitariam prejuízos derivados da posse de títulos com baixa
chance de serem honrados. Sob um regime competitivo de fato, isto é, no qual firmas
correm efetivamente o risco de falência, a manutenção da confiança limita a expansão
do crédito e não deveria ser temida.
Para Courcelle-Seneuil (1867, p. 57) o direito de recusar um título como pagamento, ou
seja, no modelo competitivo proposto, no qual não existem leis de curso forçado, a
oferta de títulos seria restrita: “Aqui resulta uma diferença muito importante entre o
dinheiro e a nota bancária. Ao entregar o dinheiro ao seu credor, o devedor se liberta;

40
Chacun sait fort bien que le crédit, notamment sous forme de prêt, ne crée par lui-même aucun capital;
qu'il est utile quand les capitaux sont prêtés à des personnes qui savent les faire valoir, mais nuisible
dans le cas contraire. L'utilité des services du banquier comme prêteur consiste donc en ceci: qu'il prête
de préférence aux gens qui peuvent le mieux faire valoir les capitaux prêtés.

331
Ao entregar uma nota de banco, ele é liberado apenas enquanto essa nota for aceita pelo
credor”.41 No sistema baseados em bancos privilegiados, em contraste, os erros
empresariais são suportados pelo público, por meio de novas emissões e decretos de
curso forçado.
Quanto à alternativa a um sistema competitivo, ou seja, regulação governamental do
setor, Courcelle-Seneuil demostra o ceticismo típico da escola clássica francesa: sem os
mecanismos de punição impostos pela competição, seria de se esperar do controle do
setor aumentos de custos bancários e redução de serviços. A eficiência que se possa
atribuir à regulação, para o autor (1867, p. 36), dependeria da hipótese de conhecimento
superior por parte de agentes que compõem uma hierarquia, algo contestado na
comparação dos modos de distribuição estudada acima:
Pretende-se proteger o público dos perigos que poderiam ser causados pela emissão
gratuita de notas? Mas seria declarar este público, sempre livre para recusar os
bilhetes, um menor de idade, incapaz de julgar sadiamente o que diz respeito aos
seus interesses mais diretos! Quanto ao princípio de autorização prévia, é
obviamente baseado nesta ideia do antigo regime que o príncipe ou escritórios que o
representam conhecem melhor do que banqueiros e o público quais são as condições
de um bom banco.42
Aos seus argumentos teóricos, Courcelle-Seneuil acrescenta evidência histórica. Assim
como os modernos defensores da liberdade bancária43, Courcelle-Seneuil invoca os
exemplos da Escócia e de Boston na Nova Inglaterra, locais nos quais sistemas de
liberdade bancária teriam operado.
A defesa da liberdade bancária foi recebida de forma crítica pela comunidade de
economistas franceses e Courcelle-Seneuil procura em O Banco Livre responder as
objeções daqueles que considera defensores dos privilégios bancários.
Em primeiro lugar, seus críticos alegavam que o governo deveria buscar fixar a taxa de
desconto (taux d'escompte) em 4%. A taxa bancária de desconto era uma taxa de juros
praticada no mercado monetário, paga no início do período do empréstimo. Courcelle-
Seneuil, em contraste, afirma que os juros, como um preço, devam variar conforme a
demanda e oferta.
Adolphe Thiers (1797 –1877), o historiador e político que atuou como primeiro ministro
duas vezes no reino de Luiz Felipe I e também como presidente na terceira república,
objetara que a rivalidade entre dois bancos destruiria a competição, o que justificaria o

41
De là résulte une différence très-importante entre la monnaie et le billet de banque. En livrant la
monnaie à son créancier, le débiteur se libère; en livrant un billet de banque, il ne se libère qu'autant que
ce billet est accepté par le créancier.
42
A-t-on voulu préserver le public des dangers que pourraient lui faire courir les libres émissions de
billets de banque? Mais ce serait déclarer ce public, toujours libre de refuser les billets, mineur et
incapable de juger sainement de ce qui touche à ses intérêts les plus directs ! Quant au principe de
l'autorisation préalable, il repose évidemment sur cette idée de l'ancien régime que le prince ou les
bureaux qui le représentent savent mieux que les banquiers et que le public quelles sont les conditions
d'une bonne banque.
43
White (1995).

332
monopólio. Courcelle-Seneuil replica que a coexistência de bancos competindo entre si
era uma realidade anterior ao estabelecimento do monopólio, competição que também
teoria ocorrido em outros países.
Pellegrino Rossi, também cético em relação à competição bancária, acredita que a
liberdade no setor traria enriquecimento de especuladores à custa do público,
exatamente o inverso do que esperaria Courcelle-Seneuil.
Por fim, Wolowski afirma que liberdade de emissão consistiria em criação de moeda,
que seria uma prerrogativa do governo. A inundação do mercado de títulos, além disso,
resultaria em crises comerciais.
A despeito de reconhecer que títulos funcionem como moeda, o defensor da competição
bancária afirma que a quantidade de títulos seria limitada por sua necessidade, restrita
ao valor das mercadorias vendidas que ainda não resultaram em compras. Para
Courcelle-Seneuil (1867, p. 63),
... a necessidade de dinheiro é limitada, como a de qualquer outra mercadoria.
Quando um indivíduo precisa de dinheiro? Quando, tendo vendido uma mercadoria
ou um serviço, ainda não comprou o equivalente. Durante todo o tempo entre a
venda que ele fez e a compra que ele faz ou fará a um terceiro a quem ele vai
emprestar seu capital, ele precisa de dinheiro.44
Nessa perspectiva, os bancos poderiam errar não pela emissão excessiva, mas por
investimentos equivocados.

Courcelle-Seneuil, porém, não fornece argumentos convincentes de que a expansão de


crédito não induza um aumento de capital alocado para projetos de investimentos
insustentáveis. Como afirmamos anteriormente, suas observações sobre ciclo, de fato,
não fornecem um motivo plausível que explique a concentração de erros empresariais.

O ceticismo em relação a esse ponto é manifesto por outro pioneiro sobre o tema. Juglar
(1895, p. 859), ao avaliar retrospectivamente a carreira de Courcelle-Seneuil, indica seu
desacordo em relação às teses de seu predecessor na Academia, afirmando que este não
teria atentado para o fato de que os bancos emissores seriam os primeiros a apresentar
problemas de solvência e que na Escócia apelava-se ao Banco da Inglaterra e nos EUA
havia uma clearing house. A defesa da liberdade bancária de fato dividiu as opiniões
dos economistas franceses do período, como atesta Juurikkala (2002).

Além da defesa teórica do regime de liberdade bancária, Courcelle-Seneuil teve a


oportunidade de tentar implementar na prática suas idéias no Chile, no período que
atuou como professor e conselheiro econômico do governo daquele país. As teses do
economista francês pautaram a Lei Bancária Geral, promulgada em julho de 1860.

44
En effet, le besoin de monnaie est limité, comme celui de toute autre marchandise. Quand un
particulier a-t-il besoin de monnaie? Lorsque, ayant vendu une marchandise ou un service, il n'en a pas
encore acheté l'équivalent. Pendant tout le temps qui s'écoule entre la vente qu'il a faite et l'achat qu'il
fera ou laissera faire à un tiers auquel il prêtera son capital , il a besoin de monnaie.

333
Segundo as descrições dessa reforma feitas por Mac-Clure (2011) e Malbranque (2014),
a escassez de moeda sob o regime prévio de bimetalismo deu impulso à reforma, que
estabeleceu a liberdade de criação de bancos emissores. Esses bancos teriam a
obrigação de publicar contas mensais e trimestrais, eram obrigados a manter suas notas
conversíveis em ouro e prata, eram sujeitos a um limite de emissão de 150% do valor do
capital do banco, além de sujeitos a alguns controles regulatórios.
Segundo Malbranque (2014), o número de bancos chilenos passou de 5 em 1866 para
24 em 1890, aumentando a concorrência no setor, reduzindo os juros cobrados e os
lucros médios no setor. Contrariando as expectativas dos críticos, enquanto a lei era
vigente, a fração de bancos falidos não teve um comportamento diferente dos outros
regimes bancários, além de não ocorrerem falências por fraudes.
O experimento com a liberdade bancária foi relativamente longo, durando até 1870,
quando o país entra em guerra com a Espanha. Segundo Mac-Clure (2011), a
historiografia econômica tradicional do Chile tendia no passado a atribuir os problemas
econômicos dos anos 1870 à reforma de Courcelle-Seneuil e não às escolhas dos
governos do período, embora essa tese, segundo o mesmo autor, seja progressivamente
menos aceita.
Uma melhor apreciação da questão exigiria conhecimentos mais aprofundados sobre a
economia do pais, algo que foge ao tema deste trabalho. Basta acrescentarmos que,
devido ao interesse pela liberdade bancária no século vinte, as teses de Courcelle-
Seneuil e a reforma promovida por ele no Chile voltaram a despertar interesse.
Juurikkala (2002), por exemplo, analisa um debate ocorrido no Journal des Economistes
travado em 1866, que em essência reproduz o debate entre os partidários do padrão ouro
com 100% de reservas e os defensores da concorrência bancária com reservas
fracionárias. Rothbard (1989) e Selgin (1990), representantes respectivamente dessas
duas posturas, divergem sobre o significado do experimento chileno para esse debate.
Novamente, as posturas teóricas desses dois economistas colorem suas análises sobre o
episódio histórico, cujo estudo mais aprofundado requereria informações mais
detalhadas sobre a história econômica do país.

A despeito das diferentes avaliações que o leitor possa ter a respeito das teses de
Courcelle-Seneuil a respeito da liberdade bancária, a importância de sua obra pode ser
aferida pela discordância entre os comentaristas sobre qual seria sua contribuição mais
significativa. Uns apontam para seu trabalho com bancos, outros para o livro sobre
Administração, outros para aspectos da teoria econômica. Juglar (1895, p. 861) elenca 3
inovações nesse último campo: a) a separação entre ciência e arte; b) a análise dos dois
modos básicos de apropriação, liberdade e autoridade e c) a poupança como forma de
trabalho.

334
Em nossa opinião, o segundo item forneceu um referencial útil para o desenvolvimento
teórico da análise econômica de sistemas comparados, merecendo destaque como
contribuição mais significativa.

6.3. Molinari: concorrência governamental


Chegamos agora a mais um importante passo no desenvolvimento da análise econômica
do estado na escola clássica francesa. Depois de estudarmos como a proporção entre as
atividades produtora e espoliadora, ambas derivadas da natureza humana, pode ser
explicada pelos incentivos inerentes aos diferentes arranjos institucionais e como o
desempenho econômico sob esses arranjos difere segundo o grau de descentralização
por eles possibilitados, veremos com o próximo autor como a análise econômica da
competição e do monopólio pode ser empregada ao estudo da natureza e funcionamento
dessas instituições.
Gustave de Molinari (1819-1912), um economista belga bastante atuante no
desenvolvimento da escola clássica francesa na segunda metade do século dezenove,
aplicou a teoria econômica sobre competição e monopólio aos serviços prestados pelo
estado, diminuindo ainda mais a diferença de tratamento analítico dado pelos
economistas aos governos, em comparação com as atividades privadas.
Para empreender essa tarefa, Molinari toma a tradição francesa de Economia da política,
tal como desenvolvida até os trabalhos de Bastiat e a funde com desenvolvimentos da
teoria de monopólio necessários para a análise da natureza dos serviços públicos. Além
de reincorporar na análise os monopólios de origem não legal e retomar os estudos de
Storch, Rossi e outros sobre demanda e sua influência na quantidade produzida por um
monopolista, Molinari procura reexpor a teoria econômica em termos das idéias de
Bentham, podendo com isso utilizar um critério de avaliação de bem-estar associado aos
bens e serviços ofertados sob competição e monopólio.
De posse desse ferramental, Molinari pode desenvolver uma interpretação da história na
qual a prosperidade das sociedades depende menos das intenções dos legisladores e das
instituições formais e mais do grau das pressões competitivas sofridas pelo estado, visto
como fornecedor de serviços públicos.
Além da interpretação da história econômica das sociedades a partir dessa perspectiva,
utilizada em inúmeros livros do autor, a análise do estado em termos de estruturas de
mercado abriu espaço para uma investigação inovadora sobre as esferas próprias de
atuação do setor público e privado. Em vez de tratar os serviços públicos em abstrato,
sem considerar os incentivos aos quais os agentes públicos estão sujeitos, como é feito
em larga medida pelos economistas até hoje, Molinari propõe avaliar a qualidade e o
preço dos serviços públicos em termos da natureza monopolista da oferta desses
serviços, quando providos pelo estado.

335
Essa análise fundamenta as especulações do autor sobre maneiras de deslocar a fronteira
entre as ações do estado e ações voluntárias em favor dessas últimas, por meio de
propostas de liberalização de mercados, concessão de serviços públicos a firmas
privadas, competição de serviços municipais entre condomínios privados e, no limite,
competição entre agências privadas de segurança.
Como ocorre com todo economista de sua geração na França, o pensamento de Molinari
é pautado pela comparação entre sistemas econômicos defendidos por liberais,
socialistas e conservadores. Mesmo seus escritos sobre teoria pura são pautados por essa
comparação. Os economistas de seu tempo, para Molinari, além de atacar os privilégios
e monopólios inerentes ao antigo regime, deveriam combater a retomada do espírito de
monopólio inerente à centralização proposta pelos socialistas. Esse combate, por sua
vez, implicaria na defesa da tese de que os fenômenos econômicos estão sujeitos em
todo tempo e local a um mesmo conjunto de leis, de modo que construtores de sistemas
que ignorassem essas leis teriam suas propostas fadadas ao fracasso. Sendo assim, a
obra teórica de Molinari é dedicada a uma tentativa de reexposição da teoria econômica
por meio da enunciação dessas “leis naturais”, no sentido de validade universal.
Com isso, podemos listar Molinari como um dos autores que contribuíram para o
desenvolvimento da tese da similitude formal entre sistemas econômicos. Na segunda
geração de economistas neoclássicos, quando a transição da plutologia para a catalática
se consolidara, alguns economistas argumentaram que o problema fundamenta da
disciplina; a saber, o problema alocativo, se manifesta sempre e deve ser resolvido por
qualquer tipo de sistema econômico. Contrariando a tese historicista, que circunscreve a
relevância da teoria econômica a certos períodos e locais, a nova abordagem teórica
afirma que sob escassez, ou seja, dada a percepção por parte dos agentes da existência
de necessidades não satisfeitas, escolhas devem ser feitas. Wieser, por exemplo, utiliza a
mesma expressão empregada por Molinari, “valor natural”, para se referir à ideia de que
em toda a parte uma escolha implica custo de oportunidade. Böhm-Bawerk, por sua vez,
argumenta que, mesmo sob o socialismo, as preferências temporais subjacentes ao
fenômeno dos juros devem ser consideradas nas escolhas. Pareto e Barone, finalmente,
argumentam que um planejador central deva resolver o mesmo problema alocativo
descrito pelo conjunto de equações proposto por Walras para representar uma economia
de mercado.45
Molinari, embora utilizando ainda o referencial da escola francesa, utiliza argumentação
análoga: os socialistas deveriam indicar a natureza dos mecanismos alternativos que
trariam ordem ou coordenação às atividades econômicos, em substituição aos
mecanismos de mercado. O que faria, por exemplo, com que a produção se ajuste às
mudanças nas necessidades percebidas como mais urgentes? Ao indagar como o
socialismo lida com o que chama de “leis naturais” da economia, Molinari se torna um

45
Para um exame mais detalhado da tese da similitude formal, ver Barbieri (2013).

336
dos formuladores do problema da similitude formal entre sistemas econômicos, a
despeito das limitações do referencial teórico empregado pelo autor.
Na geração de economistas franceses que nos ocupamos neste capítulo, Courcelle-
Seneuil é, em termos teóricos, o autor mais rigoroso. Por outro lado, a teoria
desenvolvida por esse autor, a despeito de seus avanços, recua para uma versão
ortodoxa da plutologia. Molinari, em contraste, é menos rigoroso: além de deixar vários
termos sem definição explícita, suas formulações teóricas nem sempre são claras ou
mesmo consistentes. A despeito disso, talvez sob a influência do fato de que Molinari
tenha sido por longo período editor do Journal des Économistes, posição privilegiada
para acompanhar debates acadêmicos e além disso tenha se mantido ativo até o final de
sua longa vida, sua obra possa ser classificada como de transição entre as tradições
plutológica e catalática. Sua representação do funcionamento dos mercados pode ser
vista como um estágio intermediário no desenvolvimento da teoria do equilíbrio parcial,
ao mesmo tempo que preserva boa parte da versão francesa da plutologia clássica.
Além de formular o problema da similitude formal, aplicar a teoria de competição e
monopólio à oferta estatal de bens e interpretar a evolução da história econômica nesses
termos, Molinari é conhecido por outras de suas contribuições. Assim como Chevalier,
foi um dos economistas do século dezenove a enfatizar a importância do barateamento
dos transportes proporcionado pelas ferrovias para o aumento da mobilidade dos
recursos e o impacto desta para o desenvolvimento econômico. Levando isso em
consideração, o autor desenvolve interessante proposta relativa ao funcionamento dos
mercados de trabalho. Assim como nas bolsas de valores, Molinari imagina instituições
semelhantes que coordenariam o mercado de trabalho, mais móvel na época que
escrevia. O autor é também associado ao desenvolvimento da teoria do capital humano,
conceito presente na escola clássica francesa desde Say. Por fim, seu artigo sobre a
provisão privada de serviços de segurança fez com que Molinari fosse reconhecido
como o pai filosofia política moderna do anarco-capitalismo.
Um último aspecto geral sobre Molinari que devemos mencionar está associado à sua
longevidade. Molinari foi um economista atuante da década de quarenta do século
dezenove até a primeira década do século seguinte. No que diz respeito a seus textos
econômicos, suas obras mais polêmicas são da juventude (1849, 2014a), seu principal
tratado teórico é de um período posterior (1863), suas obras da maturidade, que revelam
algumas mudanças de perspectiva, são do final do século (1887, 1993) e seus últimos
livros foram publicados já no século vinte (1906, 2011). Nossa análise da Economia de
Molinari se limitará ao exame das obras mencionadas acima. Essa seleção se concentra
na teoria econômica e sua evolução ao longo da carreira do autor, deixando de fora
muitos trabalhos aplicados e históricos. Por outro lado, um exame rápido dos demais
textos do autor revelam o uso consistente do mesmo conjunto de doutrinas econômicas
desenvolvidas em seus trabalhos teóricos.
A despeito da existência de modificações nas idéias do autor ao longo de sua longa
carreira, o exame do resumo da teoria econômica encontrada em uma de suas últimas
337
obras (1906) revela em larga medida acordo com a teoria básica desenvolvida em sua
principal obra teórica (1863), seu Curso de Economia Política. Sendo assim, nossa
seleção de obras a serem examinadas não implica em desconsideração de aspectos
significativos de suas doutrinas.
Chama a atenção na evolução intelectual do autor, porém, a ausência de influências
derivadas da revolução marginalista de 1871. Dado o papel central de Molinari na
comunidade acadêmica como editor de jornal, não é plausível imaginar que as
mudanças teóricas a partir dessa data tenham passado despercebidas. Em seu artigo
sobre teoria do valor no Novo Dicionário de Economia Política, Molinari46 expõe a
teoria do valor utilidade derivada de Say e comenta autores clássicos. Mas apenas em
uma nota ao final do artigo (p. 1155) remete o leitor a um livro que contém um capítulo
que trata das “novas teorias da escola austríaca e revistas americanas, tais como o
Quarterly Journal of Economics, que entre 1888 e 1891 consagra a esse assunto artigos
curiosos”. Essas novas teorias, porém, não são discutidas no artigo ou em seus livros.
A despeito de não ser influenciado de forma significativa pela evolução da teoria ao
final de sua vida, Molinari não era um autor ignorado pelos economistas modernos.
John-Bates Clark, por exemplo, publica breves resenhas de algumas de suas obras.
Depois de resumir o conteúdo das Leis Naturais da Economia Política, Clark (1888, p.
192) elogia o conteúdo da obra e recrimina a ausência de considerações éticas,
possivelmente se referindo de forma crítica ao utilitarismo utilizado pelo autor:
É o principal mérito do trabalho que ele coloca em uma luz especialmente clara
princípios que são fundamentalmente sólidos, e que precisam ser enfatizados em
vista da atual tendência do pensamento público. Seu defeito mais marcante é que vai
além do padrão comum da escola que representa ao banir a consideração ética de seu
território científico.47
Se a crítica de fato se referir à maneira usual como o utilitarismo é interpretado, ela
seria algo injusta, visto que o exame das demais obras de Molinari deixa claro que
necessidades têm natureza física, intelectual e espiritual, além de suas obras da
maturidade progressivamente incluírem seções sobre esse último tipo de necessidade. A
terceira parte do Précis de Molinari (1893), por exemplo, intitula-se A Moral.
Como nota Rothbard (1995b, p. 453), um autor bastante influenciado por Molinari foi
Vilfrido Pareto. Com efeito, o exame do índice de autores do Curso de Economia
Política deste último revela que Molinari é o autor mais citado (34 vezes ao longo dos
dois volumes). Pareto cita Molinari, sempre favoravelmente, sobre assuntos diversos
como utilidade, moeda, capital humano, guerra, bolsas do trabalho, entre outros. No
primeiro volume de seu Curso, por exemplo, Pareto (1896, p. 220) lamenta não poder
reproduzir várias lições sobre moeda do “excelente livro” de mesmo título escrito por

46
Say e Chailley (2000), volume 1.
47
It is the chief merit of the work that it places in an especially clear light principles that are
fundamentally sound, and that need emphasizing in view of the present drift of public thought. Its most
striking defect is that it goes beyond the ordinary standard of the school that it represents in banishing
ethical consideration from its scientific territory.

338
Molinari. No segundo volume (1897, p. 381), ao comentar os trabalhos de Bastiat e
Molinari sobre a Economia da espoliação, compara os demais economistas a
colecionadores amadores que só capturam as borboletas mais belas, em contraste com o
entomologista profissional, que estuda mesmo os mais repulsivos insetos. Talvez o
diagnóstico de Pareto seja preciso se lembrarmos da negligência e mesmo hostilidade
dos historiadores da disciplina em relação a esses autores.
Antes de tratarmos em mais detalhes as idéias de Molinari, porém, devemos relatar as
escassas informações sobre a vida do autor48.
Tudo que se sabe sobre Molinari antes de sua mudança para Paris em 1840 se resume ao
seu nascimento, em Liège, na Bélgica, em 1818 e que seu pai, Barão de Molinari, oficial
de campo do exército imperial napoleônico, exercia medicina na mesma cidade.
Atraído à capital francesa pelo jornalismo econômico, Molinari esteve presente entre os
fundadores da Associação de Economia Política em 1842, bem como na fundação da
Associação pela Liberdade de Trocas quatro anos depois, se tornando um dos editores
do jornal dessa associação, La Libre Échange.
Além do jornalismo econômico, inicia seu curso de economia no Athénée Royal um ano
antes da revolução de 1848, quando o clube Liberdade do Trabalho do qual ajudara a
fundar fora disperso por socialistas. No ano seguinte Molinari publica no Journal des
Économistes seu artigo sobre a produção privada de segurança e seu livro Noites na Rua
Santo Lázaro, que consiste em um diálogo entre um economista, um socialista e um
conservador.
Com o golpe de estado perpetrado pelo sobrinho de Napoleão, Molinari retorna à
Bélgica. Em sua terra natural, ocupa o posto de professor de economia política no
Musée Royal d’Industrie Belge de Bruxelas e também no Institute Supérieur du
Commerce em Antuérpia. Desses cursos resulta sua principal obra econômica, o Curso
de Economia Política, publicado pela primeira vez em 1854. Ainda na Bélgica, cria em
1855 o jornal Économiste Belge.
Em 1860 retorna a Paris. Nesse período, viaja para diversos países, como Rússia,
Estados Unidos e Canadá. No final dessa década, passa a contribuir para o Journal des
Debats, tornando-se editor chefe desse periódico entre 1871 e 1876. Em 1881, torna-se
editor do Journal des Économistes, depois da morte de Joseph Garnier. Apenas em
1909, depois de 28 anos, deixa o cargo. Molinari morreu na vila de Adinkerque, na
fronteira da Bélgica com a França, perto de Dunkirk.
Talvez por lecionar apenas por alguns anos em sua longa vida, Molinari deixou uma
obra vasta, composta por mais de quarenta livros e cerca de 240 artigos49. Em seu

48
As informações disponíveis sobre Molinari foram fornecidas por Yves Guyot (1912a, 1912b). Para uma
publicação mais recente, consulte Hart (1981a).
49
David Hart, em sítio dedicado ao autor, lista as obras de Molinari. Ver
http://davidmhart.com/liberty/FrenchClassicalLiberals/Molinari/Bibliography-2018.html. Acesso:
11/01/2019.

339
obituário, Guyot (1812b, p. 155) elogia a independência intelectual de Molinari: “Ele
nunca subordinou a verdade a considerações pelo sucesso”.

6.3.1. Teoria Econômica Geral em Molinari: as leis naturais da economia


A Economia de Molinari procura reexpor a plutologia de Say em termos de uma lista
pequena de princípios, derivados em última análise do utilitarismo. A partir desse
referencial, alocações sob competição e monopólio são comparadas, com receitas e
custos interpretadas em termos de prazeres e dores.
Assim como Courcelle-Seneuil, Molinari é influenciado por Bentham e Mill. Essa
influência revivifica o uso de modelos de lógica da ação individual, em substituição ao
utilitarismo de Helvétius e a praxiologia de Destutt de Tracy, que perdiam influência
nesse ponto da evolução da escola.
Essa retomada da lógica da ação, somada à recuperação dos estudos de Storch sobre a
relação entre utilidade e demanda e de Rossi sobre demanda e monopólio, é utilizada
por Molinari para desenvolver o programa de pesquisa de Bastiat, que compara os
sistemas econômicos favorecidos por liberais, socialistas e conservadores.
Como a maioria dos economistas da escola, Molinari também escreve um tratado
teórico, o Curso de Economia Política, publicado originalmente em 1854, acompanhado
de um Resumo (Précis), além de diversas obras aplicadas, que também contêm
reexposições da mesma teoria. Nosso exame da Economia geral de Molinari será
baseado em três obras. Utilizaremos a segunda edição do Curso, de 1863, obra mais
completa, quando precisarmos examinar algum tópico em mais detalhes. O Resumo, de
1893, fornece um apanhado geral da disciplina e servirá para averiguar a evolução do
pensamento do autor. Além dessas obras, utilizaremos as Leis Naturais da Economia
Política, de 1887, que procura em sua primeira parte sistematizar a teoria econômica em
termos de um conjunto de leis fundamentais.
Iniciemos com a lista de tratados de outros autores que o autor elogia, pois isso revela
algo sobre as influências sofridas por Molinari. São listados os tratados de Smith, Say,
Dunoyer, McCulloch, Mill, Rossi, Chevalier, Bastiat, Joseph Garnier e Brouckère, este
último prefeito de Bruxelas durante o retorno de Molinari a seu país natal e a quem
dedica seu Curso. Molinari justifica a escrita de mais um manual de Economia em
termos da ausência de obra prévia que apresente de modo satisfatório as leis gerais que
gerariam ordem na esfera dos assuntos econômicos.
Essa lacuna percebida por Molinari (1863, p. xii) se relacionaria à situação na qual os
economistas se encontravam: se até aquele momento se dedicavam a combater
privilégios existentes, a partir de então deveriam também argumentar, contra os
socialistas, que a ausência de controle central, se aprofundada, não levaria ao caos. Na
introdução das Leis Naturais, Molinari (1887, viii) afirma que “o estatismo, o
protecionismo e o socialismo [são] fundados sobre a negação de leis naturais”.

340
A tarefa fundamental que o autor se propõe é análoga aquela proposta por Bastiat:
formular as leis naturais que regulam os fenômenos econômicos sob liberdade e em
seguida indagar como esses fenômenos seriam regulados sob sistemas alternativos.
Nesta última parte desse programa, como afirmamos acima, Molinari enuncia, assim
como Courcelle-Seneuil, o problema da similitude formal entre sistemas econômicos,
em versão baseada na economia clássica.
O ponto de partida de Molinari (1863, p. 19), a definição do problema fundamental da
Economia, tem dois aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, refletindo a transição
entre a teoria antiga e moderna, cita a produção e a distribuição, mas não menciona
explicitamente a palavra riqueza, mas substâncias que proveem diferentes necessidades.
Em segundo lugar, enfatiza a natureza universal das leis da disciplina. A descrição do
“mecanismo da sociedade” seria algo análogo a “uma anatomia e uma fisiologia
sociais”. Embora não possamos mudar as leis da Biologia, o conhecimento das mesmas
fornece bases para a Medicina. Assim como o desconhecimento da Biologia faz o
médico ministrar remédios errados, o estudo das leis da Economia seria “... a única
maneira de descartar os terrores que servem como pretexto para o despotismo, e talvez
... o justifique” (1863, p. 31).
O plano de seu Curso segue de perto a divisão tradicional: produção, distribuição,
circulação e consumo. Como procedemos com os demais autores, nos ocuparemos
apenas de aspectos da teoria que diferem da doutrina herdada e que gostaríamos de
salientar. A discussão da produção parte do exame das necessidades e meios de
satisfazê-las. Como o homem é composto de matéria, inteligência e sentimentos, as
necessidades são classificadas (1863, p. 38) em materiais (alimentação, vestuário,
habitação, defesa), intelectuais (fome de conhecimento: a inteligência deve ser
alimentada senão perece) e morais (constituir família, amizade, fraternidade, apreciação
do belo e do religioso). É importante mencionarmos essa lista de necessidades que
fundamentam a noção de utilidade, diante da usual imputação de hedonismo em geral
dirigida contra autores que empregam os termos dores e prazeres, tomados do
utilitarismo. O recuo plutológico de Courcelle-Seneuil, que restringe a Economia a bens
materiais, portanto, é abandonado por Molinari, em favor da opinião subjetivista de
Storch, que associa a disciplina aos determinantes do bem-estar.
Como Say e Bastiat, Molinari (1863, p. 43) menciona as utilidades gratuitas fornecidas
pela natureza, em contraste com as utilidades apropriadas e produzidas; isto é, sujeitas a
um conjunto de operações necessárias para satisfazer as necessidades identificadas
acima. As necessidades são atendidas por bens escassos e bens livres. Quatro agentes
produtivos são listados, os três primeiros ocupando a atenção do economista. O
primeiro é o trabalho, que consiste em “forças” ou faculdades físicas, intelectuais e
morais. O segundo é o capital, ou instrumentos de produção acumulados pelo homem
nele mesmo ou no solo, como conhecimento técnico, matérias primas, máquinas e
avanços produtivos. O capital é dividido em fixo e circulante, conforme desapareça ou
não no final de um processo produtivo. O terceiro fator listado se refere aos agentes

341
naturais apropriáveis, como terra, veios minerais e cursos d’água e, finalmente, o quarto
são os agentes naturais não apropriáveis, como ar, luz do sol e água do oceano.
Em sua obra mais madura, os fatores produtivos são reclassificados para acomodar a sua
fundamentação termos da filosofia utilitarista. No Resumo, Molinari (1893a, p. 70-71),
depois de expor o pressuposto comportamental segundo o qual o homem procura obter
o máximo a partir do mínimo de esforço, divide os objetivos dos homens entre aqueles
obtidos gratuitamente da natureza e aqueles que requerem produção de utilidade. A
produção, por sua vez, envolveria dois elementos primitivos básicos, “forças” e
materiais, sendo a primeira dividida em trabalho e poupança. Traduzindo Say em termos
utilitaristas, a produção é ainda classificada em a) descoberta de materiais e invenção de
instrumentos que “reparam forças vitais”, sendo essa última expressão empregada para
denotar geração de algo útil, b) transformação e apropriação de material ao seu uso e c)
transporte do mesmo no tempo e espaço. A classificação contempla tanto os elementos
não físicos do trabalho quanto o elemento temporal da produção. Derivado dessa última
característica, os fatores são reagrupados como formas diversas de capital: o capital
imobiliário (terra e prédios), capital mobiliário (animais, utensílios, sementes,
aprovisionamentos) e capital pessoal (forças, aptidões físicas e morais e
conhecimentos).
A identificação dos fatores como formas de capital talvez tenha sido motivada pela
contraposição ao socialismo. O importante, porém, é notar a ênfase dada pelo autor ao
conceito de capital humano, tema ao qual o autor dedica o nono capítulo de seu Resumo.
Molinari salienta (1893a, p. 71) que o capital pessoal, como qualquer forma de capital,
requer trabalho e poupança:
A primeira operação que se impõe ao homem, e da qual derivam todas as outras,
consiste em apoderar-se de suas próprias forças e controlá-las, de modo a poder
aplicá-las ao destino que julgar útil. Esta operação preliminar requer um gasto maior
ou menor de uma força específica: a da vontade, guiada pela inteligência. As forças
físicas e morais que ele se apoderou, transformadas em poderes produtivos ou
valores, são valores pessoais. Esses valores pessoais, aqueles poderes que o homem
apreendeu pela implementação de sua vontade, constituem o primeiro agente de
produção.50
Como o investimento nas demais formas de capital, o capital pessoal envolve poupança
familiar, investimento na formação do indivíduo e escolha arriscada sobre qual setor
investir, escolha pautada pela avaliação da utilidade de seus usos futuros. Investimentos
em capital pessoal valeriam a pena se gerarem rendimentos que superem os custos
investidos.

50
La première opération qui s'impose à l'homme, et de laquelle dérivent toutes les autres, consiste à
s'emparer de ses propres forces et à les maîtriser, de manière à pouvoir les appliquer à la destination
qu'il juge utile. Cette opération préalable exige une dépense plus ou moins grande d'une force
particulière : celle de la volonté, guidée par l'intelligence. Les forces physiques et morales dont il s'est
emparé, il en fait des pouvoirs de production ou des valeurs, ce sont des valeurs personnelles. Ces
valeurs personnelles, ces pouvoirs dont l'homme s'est emparé par la mise en oeuvre de sa volonté,
constituent le premier agent de la production.

342
A similaridade entre os capitais pessoal e mobiliário induz Molinari (1893b) a propor a
criação de bolsas de trabalho. Como notamos na introdução desta seção, o barateamento
dos transportes tornaria viável uma proposta de instituições voltadas a arbitrar
diferenças de salários entre localidades, algo que favoreceria tanto ofertantes quanto
demandantes de trabalho51.
Retomemos a descrição da produção. Molinari (1863, p. 46) observa que existe
proporção “natural e necessária” entre os fatores produtivos usados na produção dos
bens, embora essa proporção varie significativamente tanto entre setores quanto ao
longo do tempo, mediante o progresso técnico. Como o objetivo do autor é salientar o
caráter não arbitrário da produção, isto é, a existência de restrições técnicas nas escolhas
produtivas, podemos inferir que a observação equivale, em termos modernos, à
afirmação da existência de funções de produção, mas não necessariamente decorre disso
que estas apresentem proporções fixas entre os fatores, como dá a entender as frases
escolhidas pelo autor.
Nas Leis Naturais, Molinari (1887, p. 8-9) coloca a proporção entre fatores como
fenômeno pertencente às leis da Economia, algo que a gestão da produção deve
necessariamente observar:
Essa constituição natural das empresas tem sido particularmente objeto dos ataques
dos socialistas; mas toda vez que tentavam substituir uma “organização” concebida
segundo as inspirações de seus gênios, essa organização falhou miseravelmente na
prática. Por quê? Porque estes inventores, substituindo a ciência pela imaginação,
não levaram em conta as leis naturais que governam a constituição das empresas, e
especialmente porque se recusaram a atribuir nesta constituição, ao trabalho de
direção e ao capital responsável o papel que naturalmente e necessariamente ocupam
na firma, pois atribuem uma preponderância ao trabalho de execução.52
O trabalho de direção, crucial para atividade econômica, procura empregar os agentes
produtivos com o propósito de gerar bens úteis que tenham valor maior do que os
sacrifícios empregados. Molinari (1863, p. 50) emprega no Curso a expressão “produto
líquido” para se referir ao ganho de valor, caso ocorra. Como ocorre desde Quesnay,
esse ganho pode ser empregado reprodutivamente ou consumido em bens de luxo. Mais
adiante no Curso (p. 116) a diferença entre valor gerado e recursos empregados é
denominado mais-valia, ao passo que escolhas que levam a valores inferiores aos
esforços é chamado de menos-valia. Em suas obras posteriores, esse produto líquido é
substituído pelo conceito de lucro.
Embora tome emprestado as expressões produto líquido e leis naturais da antiga
fisiocracia, a análise aponta para os critérios de avaliação econômica utilizados pela
51
A proposta é mencionada por Guyot (1912a) e analisada por Gallois (2011b).
52
Cette constitution naturelle des entreprises a été particulièrement l'objet des attaques des socialistes;
mais chaque fois qu'ils ont essayé de lui substituer une « organisation » conçue d'après les inspirations
de leur génie, cette organisation a misérablement échoué dans la pratique. Pourquoi? parce que ces
inventeurs, remplaçant la science par l'imagination, ne tenaient aucun compte des lois naturelles qui
régissent la constitution des entreprises, et notamment parce qu'ils refusaient d'attribuer, dans cette
constitution, au travail de direction et au capital responsable la place qu'ils y doivent occuper
naturellement et nécessairement, pour attribuer la prépondérance au travail d'exécution.

343
economia moderna. A economia de Molinari de fato compara o valor gerado e o custo
empregado das escolhas dos agentes.
O uso de fundamentos utilitaristas torna possível para Molinari adotar postura oposta a
Courcelle-Seneuil no que tange ao caráter permanente ou acidental da noção de valor53.
Se recordarmos a posição quase historicista deste último, influenciada pela separação
milliana entre leis imutáveis da produção e liberdade de escolha de modos de
distribuição, a análise do valor supõe a existência de economias predominantemente de
trocas. Já Molinari, consistente com a tese de similitude formal, ou seja, com sua crença
na universalidade das leis econômicas, aplica a noção de valor a todos os ambientes nos
quais ocorrem escassez, incluindo o experimento mental de um agente isolado.
Robinson Crusoé seria capaz de avaliar, de forma naturalmente mais imprecisa, o valor
de um bem ou fator produtivo em relação aos esforços empreendidos para sua obtenção.
A análise de bem-estar das escolhas se torna, portanto, aplicável universalmente,
independente do grau de desenvolvimento das economias.
Vejamos então como Molinari trata do valor. No Curso, formula a mesma solução
sugerida por Galiani: o valor é explicado conjuntamente pela utilidade e escassez
(rareté). Ambas seriam necessárias, pois existem coisas úteis e coisas raras que não têm
valor. Aqui, a utilidade é tratada por Molinari no sentido objetivo do termo, como uma
capacidade intrínseca dos bens e serviços de satisfazer necessidades.

Nas diferentes situações que um agente possa se encontrar, cada necessidade poderia ser
satisfeita por diferentes coisas úteis. Além disso, as necessidades não seriam igualmente
urgentes. Molinari (1863, p. 85) imagina então um ordenamento: “Uma escala de
necessidades poderia ser estabelecida com base em sua necessidade, com a série
correspondente de utilidades. Mas esta escala não teria nada de uniforme ou fixo”.

A escassez, por seu turno, implica em obstáculos a serem superados. Nas palavras de
Molinari (1863, p. 83), “[n]as regiões encantadas das fadas, o valor não existe, porque é
suficiente um simples golpe de varinha para criar e trazer ao alcance dos habitantes
dessas regiões afortunadas todas as coisas que eles podem desejar”. Também sujeita a
diferentes graus, a escassez depende do montante dos obstáculos, da quantidade de
recursos disponíveis e do poder dos instrumentos de produção.

Associando valor a um aspecto positivo, a satisfação de necessidades e outro negativo, o


esforço para obter um bem, Molinari dá bases utilitaristas à teoria do valor. Os agentes
avaliam benefícios e desvantagens, prazeres e dores, associados a cada decisão
econômica.54

53
Ver também Molinari (1893a, p. 42).
54
Note que evitamos o emprego do termo “custo”. Embora no referencial utilitarista empregado pelo
autor custo signifique “custo real”, ou esforço ou ainda desutilidade do trabalho, evitamos o emprego do
termo para não gerar confusão com o seu sentido moderno, utilidade daquilo que se abdica ao fazer uma
escolha.

344
Como o valor é derivado do julgamento, logicamente anterior às trocas, ele é visto
como um “poder” e não como uma relação ou relação entre preços. Molinari utiliza o
termo poder e algumas vezes “poder vital” para se referir aos sacrifícios e benefícios e,
tanto no seu sentido geral de utilidade quanto em termos de preços de mercado. Os dois
aspectos do valor descritos acima, por exemplo, são referidos no Curso como “poder
desprendido” e “poder adquirido”.
A adoção de bases utilitaristas leva o autor a formular as leis fundamentais da
Economia, que procura sistematizar em suas obras posteriores. Em Leis Naturais, o
primeiro e mais fundamental princípio da Economia é a própria fórmula de Bentham.
Molinari (1887, p. 4) se refere a essa fórmula como a Lei da Economia de Forças:
a lei da economia das forças, segundo a qual todo produtor se esforça para obter a
soma mais considerável do poder reparador contido no valor, em troca do menor
dispêndio da potência produtora e que deriva da tendência natural do homem para
diminuir suas dores e aumentar seus prazeres.55
No Resumo, Molinari (1893a, p. 34) enfatiza que dores e prazeres se aplicam
igualmente aos aspectos material, intelectual e moral dos seres humanos. Tais conceitos
tampouco se limitariam a indústrias produtivas, estendendo sua aplicação às indústrias
destrutivas ou espoliadoras, estudadas na geração anterior da escola clássica francesa,
como a guerra (p. 34). A atribuição das invenções à própria lógica da ação econômica,
que nos deparamos nos textos de Bastiat, também é expressa por Molinari (p. 35) como
uma consequência da lei da economia de forças: dada a desutilidade do trabalho, a
busca por invenções pretende reduzir a dor do trabalho.
Além da invenção, a produção conjunta com outros indivíduos, a divisão do trabalho e
por conseguinte as trocas, assim como a poupança, aprovisionamento de recursos e
fabricação de utensílios são explicados pela lei da economia de forças.
Tendo em vista a expressão do valor em termos utilitaristas, o autor modifica sua
exposição da teoria do valor em obras posteriores. No Resumo, em vez de escassez e
utilidade, Molinari (1893a, p. 42) afirma que o valor é composto por utilidade e
trabalho. Utilidade é representada pela “reparação de forças vitais” e trabalho
empregado na produção de utilidade é descrito como a “força despendida” na sua
obtenção. A escassez, como veremos logo mais, se desloca para a descrição do
comportamento da demanda.
Em ambientes de mercado, os valores expressos como prazeres e dores, até aqui
representados como “forças”, assume dimensão monetária. O lucro pode então ser
interpretado como criação líquida de valor, fornecendo dessa forma critério de avaliação
de bem-estar. Nesse referencial (p. 43), a soma de utilidade tem que superar os custos
para que dois agentes envolvidos em uma troca considerem que esta valha a pena. O

55
la loi de l'économie des forces, en vertu de laquelle tout producteur s'efforce d'obtenir la somme la plus
considérable du pouvoir réparateur contenu dans la valeur, en échange de la moindre dépense du
pouvoir producteur et qui dérive de la tendance naturelle de l'homme à diminuer ses peines et à
augmenter ses jouissances.

345
valor do bem adquirido representa uma soma de “forças vitais” superior às forças
desprendidas na fabricação do bem dado em troca.
Isso implicaria, no entanto, na negação da crença fundamental de Say e de seus
seguidores de que a troca envolve valores equivalentes. Para Molinari (p. 44), os ganhos
de cada agente envolvido na troca dependem da “intensidade comparativa das
necessidades” de cada um, bem como da intensidade dos sacrifícios envolvidos na
produção dos dois bens por eles.
O desenvolvimento pleno desse modelo envolveria dar continuidade aos trabalhos
teóricos de Storch e Rossi sobre o comportamento da demanda e a substituição dos
custos reais pela noção de custo de oportunidade, para que a oferta seja vista como
utilidade marginal preterida. Esses passos, contudo, não são dados. Na ausência desses
desenvolvimentos, resta ao autor repetir o padrão observado na escola desde Say: inicia-
se com utilidade, recaindo-se, porém, da teoria do valor dado pelo custo de longo prazo.
Molinari (1849, p. 355, ênfase no original), de fato, “... vê o preço corrente de todas as
coisas, trabalho, capital e produtos, gravitando incessantemente e irresistivelmente para
o limite do custo de produção dessas coisas, isto é, para a soma dos esforços e
sacrifícios reais que custam a ser produzidos”.56
Depois de abordar a teoria do valor, vejamos como Molinari trata de sua manifestação
nas trocas. Para o autor, os preços em mercados seriam estabelecidos por uma lei
chamada ora de Lei da Progressão de Valores ora de Lei das Quantidades e dos Preços.
Essa lei é a versão de Molinari para o modo de determinação do preço no mercado de
um bem isolado. No Curso, a “lei da oferta e da demanda” é enunciada da seguinte
forma por Molinari (1863, p. 91):
É uma verdade derivada da observação que o valor de toda coisa é fixo na troca em
razão inversa à quantidade ofertada. Quanto maior for a quantidade oferecida, menor
é o preço, e vice-versa. Isso não é tudo. O preço sobe ou diminui em uma progressão
muito mais rápida do que a diminuição ou aumento das quantidades oferecidas. Em
um trabalho sobre a formação dos preços [no Journal des Économistes]... eu
empreguei a seguinte fórmula:
"Quando a proporção das quantidades de dois bens oferecidos na troca varia em
progressão aritmética, a razão dos valores desses dois bens varia em progressão
geométrica."57
Essa formulação, repetida em diversas obras do autor58 de forma inalterada, é difícil de
interpretar, sobretudo para o leitor familiarizado com demanda e oferta representadas

56
C’est ainsi qu’on voit graviter incessament et irrésistiblement le prix courant de toutes choses, travail,
capitaux et produits, vers la limite des frais de production de ces choses, c’est-à-dire vers la somme des
efforts et des sacrifices réels qu’elles ont coûtés pour être produites.

57
C’est une vérité d’observation que la valeur de toute chose se fixe dans l’échange, en raison inverse de
la quantité offerte. Plus considérable est la quantité offerte, moindre est le prix, et vice versa. Ce n’est
pas tout. Le prix s’élève ou s’abaisse dans une progression beaucoup plus rapide que celle de la
diminution ou de l’augmentation des quantités offertes. Dans un travail sur la formation des prix ... j’ai
donné à cet égard la formule suivante: “Lorsque le rapport des quantités de deux denrées offertes en
échange varie em progression arithmétique, le rapport des valeurs de ces deux denrées varie em
progression géométrique.”

346
como funções dos preços. Visto sob essa perspectiva, a lei poderia representar a
variação do preço de equilíbrio conforme a quantidade de equilíbrio se altera. Em última
análise, ao tomar a quantidade ofertada como um dado, a formulação descreve uma
curva de demanda: quanto menor a escassez, isto é, maior a quantidade existente, menor
será o preço de equilíbrio.
A formulação da lei, que evoca linguagem malthusiana, em termos de variações em
progressões aritmética e geométrica, não pode ser interpretada estritamente em termos
de preços de equilíbrio ao longo de uma curva de demanda, já que relaciona preço com
excesso de demanda ou oferta. A menção às ofertas recíprocas de dois bens, por outro
lado, sugere modelo de troca similar ao de Jevons, que encontramos esboçado em
Storch. Isso, porém, exigiria interpretar oferta e demanda como demandas subjetivas
diferentes para os dois agentes, algo que não é feito.
Independente da falta de clareza do que está sendo expresso pela lei e das dificuldades
de exprimi-la em termos de algum modelo alternativo, poderíamos tentar clarificar a
questão por meio do exame de exemplos da lei fornecidos pelo autor. Esses exemplos
podem ser encontrados nas Leis Naturais e em notas de rodapé do Curso. Esses
exemplos de fato parecem indicar um equilíbrio seguido de deslocamento exógeno da
oferta, que desencadeia um movimento ao longo da curva de demanda. O exame desses
exemplos concretos59, porém, infelizmente não revela uma explicação do
funcionamento do mecanismo de preços mais clara ou livre de incoerências. Molinari
(1863, p. 91) fala da retirada de dez por cento dos cem mil hectolitros de trigo de um
mercado, que eleva o preço de vinte para vinte e quatro francos, mas a redução da
demanda faria com que o preço de equilíbrio se estabelecesse em vinte e dois francos e
a demanda se reduzindo em cinco ou seis mil hectolitros.
A falta de clareza sobre o significado do que é dito não nos permite concluir nada a
partir do exemplo, nem mesmo se o autor incorre no erro dado pela confusão entre
deslocamento de curvas e movimento ao longo das mesmas. De todo modo, temos uma
formulação inferior àquela proposta por Courcelle-Seneuil, que vimos na seção anterior.
A despeito da imprecisão, podemos encontrar na sequência do mesmo exemplo algo
análogo aos efeitos substituição e renda: os consumidores substituiriam o produto mais
caro por similares e os consumidores mais pobres deixariam de demandá-lo. A demanda
variaria na razão inversa ao preço, além disso, conforme os bens sejam mais ou menos
necessários; ou, segundo a formulação moderna, conforme tenhamos diferentes
elasticidades-preço da demanda.
Isso nos leva a segunda parte da formulação da lei, que afirma que a magnitude da
variação do preço seria superior à variação na quantidade. Embora seja efetivamente
falsa – basta tomar curvas de demanda e ofertas elásticas - a formulação de Molinari é
defendida em termos teóricos e empíricos.

58
Ver, por exemplo, Molinari (1863, p. 19; 1887, p. 21; 1993a, p. 55; 1900, p. 1149; 1906, p. xx).
59
Ver, por exemplo, Curso (1863, p. 91).

347
No Curso, Molinari (1863, p. 95-97) afirma que esse comportamento dos preços
ocorreria com todos os bens, pois conforme a quantidade (exógena?) aumenta, os dois
componentes do valor (utilidade e raridade) diminuiriam, gerando diminuição do preço
mais do que proporcional.
Em seu artigo sobre valor no
Novo Dicionário de Economia
Política, Molinari (2000, p.
1149) utiliza dados sobre o
mercado de trigo, segundo os
quais déficits sucessivos de dez,
vinte, e assim sucessivamente
até cinquenta por cento teriam
gerado altas nos preços nas
proporções de três, oito,
dezesseis, vinte oito e quarenta e cinco décimos no preço dos bens. O gráfico desses
valores mostra a variação mais do que proporcional dos preços em relação ao que
interpretamos como excessos de demanda a partir de uma posição de equilíbrio prévio.
Nos seus livros, a variação mais do que proporcional dos preços é invocada para
justificar o ajuste rápido dos preços em relação ao equilíbrio. No artigo mencionado
acima, porém, encontramos a utilidade da hipótese: sob monopólio, a variação mais do
que proporcional dos preços implicam que o monopolista teria interesse em não ofertar
parte de seus produtos ou mesmo destruí-los em vez de ofertá-los.

A formulação de Molinari silencia ainda sobre um problema derivado do formato


imposto à curva de demanda: mesmo desconsiderando o comportamento dos custos, o
pressuposto sobre o comportamento dos preços implicaria em incentivos para aumentar
infinitamente o preço, pois a receita aumentaria sempre com preços subindo mais do
que quantidades se reduzindo, isto é, se a demanda fosse sempre inalástica.

A despeito das imperfeições encontradas na formulação de um modelo de oferta e


demanda sob competição e monopólio, seus elementos centrais, como a hipótese de
firmas que buscam lucro, demanda negativamente inclinada, variação da receita do
monopolista ao longo dessa demanda e a interpretação de receita e custo como
utilidades e desutilidades do esforços bastam para que o modelo seja utilizável.

Depois de tratar da demanda, Molinari passa aos determinantes da quantidade ofertada,


a partir da ação do princípio de livre entrada de firmas nos mercados, que resulta na
equalização de retornos e migração de recursos para produção de bens mais urgentes,
atraídos por preços acima do “preço natural”, dado pelos custos. Esses fenômenos são
descritos pela terceira lei natural, denominada por Molinari Lei da Concorrência.

O conceito de competição é central nas obras de Molinari. A concorrência é vista no


Resumo como um fenômeno derivado da própria lei da economia de forças: buscar o
máximo de utilidade com o mínimo de custos implica direcionar esforços para os fins

348
mais urgentes, ou seja, uma competição entre usos. Ao contrário da crença
predominante até o século dezenove, que distinguia nitidamente o comportamento
animal movido por instinto e o comportamento humano racional, Molinari (1893a, p. 4)
acredita que também os animais são guiados pelas leis da economia de forças e
competição. Isso confere um grau de generalidade maior para suas leis. De acordo com
essa crença, o Resumo é organizado em três partes: a economia na natureza, a economia
política e a moral. Essa estrutura descreve a operação das duas leis na formação de
ordens organizadas, primeiro na natureza e depois na sociedade humana.

Na primeira parte do livro, a disputa por recursos faz com que surja um equilíbrio entre
as espécies, em uma espécie de modelo ecológico. O mecanismo regulador descrito por
Molinari (1893a, p. 6) consiste em algo análogo a um modelo de predador-presa:
aumentos na população da espécie predadora diminuiria a multiplicação entre
indivíduos da espécie predada, que passa a dedicar mais recursos à defesa. A redução de
seu número, por outro lado, acaba por reduzir o contingente de predadores, que por sua
vez favorece a expansão da presa. Sob ação dessas forças, as espécies manteriam um
equilíbrio entre si.

A descrição da emergência da ordem na natureza segundo a ação das leis de economia


de recursos e da competição diante da existência de escassez é transferida na segunda
parte do livro para a sociedade humana. Embora os instintos deem lugar a faculdades
intelectuais mais elaboradas e a predação dê lugar à produção, os dois princípios
mencionados continuam atuando de forma modificada, mediante a operação do sistema
de preços, descrito pela lei da progressão dos valores.

Nas Leis Naturais, do mesmo modo, a competição tem papel central. Como veremos na
próxima seção, o autor trata sucessivamente da competição animal na natureza, da
competição política entre estados em guerra e da competição industrial nos mercados. A
Economia da política do autor girará, de modo consistente com esse esquema, em torno
da aplicação do modelo de concorrência aos assuntos estatais.

Na exposição da teoria do valor, os agentes trocavam e produziam se os prazeres


superassem as dores das ações. Diante da variabilidade dos graus de necessidade e das
condições de produção, os ganhos mútuos podem ser repartidos de forma desigual. No
Resumo, Molinari (1893a, p. 51) fala da troca entre agricultor e artesão, sendo o
segundo pressionado pela fome a oferecer condições mais vantajosas ao primeiro. Sob o
efeito da competição, porém, tanto as diferenças de utilidade quanto as diferenças de
lucro dissolvem-se. A formação de reserva de trigo ou a possibilidade de vender em
outro lugar; ou seja, quando ambas as partes dispõem de tempo e espaço, fazem com
que o preço seja determinado pelas condições gerais do mercado e não pelas situações
particulares dos indivíduos.

Nota-se novamente que a rigor isso não dispensaria o estudo dos ganhos de troca ou da
convergência de taxas de substituição sob perspectiva marginalista. Mas, para Molinari,
o aumento do número de agentes, ao estreitar as margens de fixação dos preços,
dispensa a análise das diferenças de utilidade e custo.
349
Molinari (p. 54), por outro lado, trata de como a competição faria com que os bens mais
valorizados sejam priorizados, que os fatores produtivos sejam dirigidos para as
aplicações mais úteis e que os preços convirjam para os custos. Nos monopólios, por
outro lado, a ausência de rivalidade faz com que a produção se reduza, a qualidade do
bem seja inferior e o preço se eleve. A despeito dos problemas em descrever o
funcionamento da lei da progressão dos valores, a evolução dos modelos de competição
e monopólio na Economia de Molinari são suficientes para que a teoria seja
consistentemente aplicada a análise de diferentes mercados. Em especial, como vermos
na próxima seção, Molinari aplicará de forma criativa essa ferramenta às “empresas
políticas” (p. 87) de provisão de segurança interna e externa.

A discussão de competição e monopólio, como é comum entre os economistas do


século dezenove, não é dissociada da discussão da propriedade. A quarta lição do Curso
é dedicada aos direitos de propriedade. Propriedade é definida por Molinari (1863, p.
107) como “a relação de justiça existente entre o valor e aqueles que o criaram,
receberam ou adquiriram”. Embora mencione justiça, a definição é utilizada em defesa
utilitarista do direito de propriedade: além de não ser possível produzir sem consumir,
se quem arcar com custos não tiver acesso a pelo menos parte do valor, não haveriam
incentivos para empreender esforços produtivos. No limite, quando os frutos da ação
são atribuídos totalmente aos seus criadores, a produção resultante seria máxima.
Molinari (1863, p. 110) relaciona assim o direito de propriedade com a geração de
valor:

O valor, que é composto de utilidade e raridade, só pode ser produzido se as forças


adquiridas contidas na utilidade forem atribuídas, pelo menos em parte, àquele que
superou as dificuldades e empregou as forças necessárias para adquiri-las, ou então
apenas sob a condição de que o prazer implícito na utilidade seja atribuído àquele
que se deu ao trabalho, o que por sua vez implica escassez. 60
Quanto a sua natureza, as propriedades são classificadas do mesmo modo que os valores
ou capitais. Teríamos assim propriedades pessoais, mobiliárias e imobiliárias. Os
direitos de propriedade implicam ainda na liberdade de escolha de seu uso, como troca,
doação, conservação ou destruição.

Para cada destinação implicada pelo direito de propriedade, Molinari (1863, p. 122)
associa uma liberdade: 1) liberdade de consumo da propriedade; 2) liberdade de
indústria e profissões, relativo ao uso da propriedade em diversos setores produtivos; 3)
liberdade de associação, ou combinação de propriedade com a de outros para produção
mais eficaz; 4) liberdade de trocas, em relação ao tempo e ao local, isto é, ausência de
barreiras comerciais; 5) liberdade de crédito ou direito de emprestar e tomar emprestado
em condições livres e 6) direito de doar e legar, ou transmitir gratuitamente a
propriedade.

60
C’est que la valeur, qui est composée d’utilité et de rareté, ne peut être produite qu’à la condition que
les forces acquises que contient l’utilité soient attribuées, au moins en partie, à celui qui a surmonté les
difficultés et dépensé les forces nécessaires pour les acquérir, ou bien encore qu’à la condition que la
jouissance impliquée dans l’utilité soit attribuée à celui qui s’est donné la peine, qu’implique à son tour
la rareté.

350
A liberdade de escolha por parte de proprietários faria com que a produção resulte em
mais ou menos-valia, no sentido que Molinari dá a esses termos. A consideração pelos
benefícios e custos implica em mais-valia, ao passo que restrições da liberdade
redundam em menos-valia.
O risco de ocorrência de menos-valia, por seu turno, desloca recursos para proteção da
propriedade, reduzindo o valor total que poderia ser criado originalmente. Quando a
menos-valia tem origem natural, decorrente por exemplo da incerteza e da ignorância,
ela pode ser objeto de um seguro. Quando tiver origem artificial, como por exemplo em
espoliação, ocorre redução no direito de propriedade, denominada servidão por Molinari
(1863, p. 125).
Os direitos de propriedade para Molinari não são tratados como absolutos. A servidão
parcial ou tutela se torna necessária quando por exemplo o uso de uma terra fronteiriça é
restrito por questões de segurança ou quando ocorre servidão de encarceramento de
criminosos.
Tampouco a propriedade é homogênea. Molinari divisa três formas de propriedade; a
saber, comunal, individual e coletiva, esta última ilustrada pelas firmas modernas, que
tem características coletivas próprias à forma comunal primitiva. Para o autor (p. 129),
essas formas de propriedade não seriam arbitrárias, dependendo do estágio de
desenvolvimento das sociedades. A imposição da propriedade comunal, por exemplo,
resultaria no retorno das condições presentes nas economias de caça e coleta.
O exame da propriedade se encerra com a discussão da relação entre propriedade e
trocas. Molinari não restringe o fenômeno dos monopólios diretamente aos casos de
violações de propriedade que geram privilégios legais. Pelo contrário, monopólio é
definido como a existência de um ou poucos produtores com capacidade de manter
preço acima do valor natural. Os monopólios naturais61, definidos como situações de
monopólio não decorrentes de imposições legais, geram os incentivos para sua
destruição ao longo do tempo, pela atração gerada pelos lucros extraordinários.
Assim, os monopólios artificiais ou legais se tornam objeto de discussão política e estes
sim são associáveis a violações de direitos de propriedade. Molinari (1863, p. 130)
define esse tipo de monopólio da seguinte forma:
O monopólio é artificial quando um indivíduo ou uma coleção de indivíduos tem o
direito exclusivo de oferecer em certo mercado uma categoria qualquer de bens ou
serviços, ou, o que resulta no mesmo, quando outros proprietários estão sujeito, para
o benefício dos monopolistas, a uma diminuição de seu direito de dispor de seus
produtos ou serviços, quando o direito de um é estendido à custa dos direitos dos
outros, de modo a constituir, por um lado, um privilégio que corresponde, por outro
uma servidão.62

61
Note que não se trata da definição moderna da expressão.
62
Le monopole est artificiel lorsqu’un individu ou une collection d’individus ont seuls le droit d’offrir sur
un certain marché une catégorie quelconque de produits ou de services, ou, ce qui revient au même,
lorsque les autres propriétaires sont soumis, au profit des monopoleurs, à une diminution de leur droit de
disposer de leurs produits ou de leurs services, lorsque le droit des uns est étendu aux dépens du droit des
autres, de manière à constituer, d’un côté, un privilège auquel correspond, d’un autre côté, une servitude.

351
A discussão dos direitos de propriedade é fundamental para o debate político central na
França do período, relativo aos sistemas econômicos. Além de descrever o
funcionamento dos mercados através das três leis naturais atuando sob diferentes
regimes de proteção dos direitos de propriedade, argumentando que a ampliação da
liberdade não levaria à anarquia, Molinari indaga como o processo de adequação da
produção às necessidades mais urgentes poderia ser obtida no socialismo. Em termos
modernos, a partir da exposição da tese da similitude formal entre sistemas econômicos,
o autor pergunta como o problema do cálculo econômico seria resolvido no socialismo.
O problema, nota Molinari (1887, p. 19) não existiria em isolamento, pois os prazeres e
dores seriam suportados pelo mesmo agente, que teria condições de ponderar vantagens
e desvantagens de cada linha de ação. Porém, com o aumento da complexidade do
sistema econômico, mediante o aprofundamento da divisão do trabalho, pergunta-se
como seria possível satisfazer necessidades de pessoas que não se conhece sequer a
existência.
Para manter a complexidade atingida com o uso do sistema de preços, “comissões de
estatísticas” sugeridas por socialistas, criadas para coletar informações sobre utilidades
e esforços, não bastariam para planejar centralmente a economia. Na avaliação de
Molinari (1887, p. 24-25):
A produção se estabelece e se proporciona então em razão da utilidade dos bens ou
serviços, e a utilidade é medida pela grandeza dos sacrifícios que os consumidores
estão dispostos a fazer e que fazem para obter as coisas que contenham tal utilidade.
Que regra superior poderia o socialismo substituir por essa regra natural? Sob o
sistema de “comissões de estatística” do coletivismo, os produtos seriam criados e
distribuídos entre os consumidores, em razão de suas necessidades, mas qual seria a
medida das necessidades? O que as “comissões estatísticas” fariam para conhecer
essa medida, para saber, em todos os momentos e em todos os lugares, quais
quantidades de cada tipo e qualidade de produtos e serviços deveria ser
disponibilizado para um bilhão e meio de consumidores, de tal forma que nunca
ocorra um excedente de um e déficit dos outros? Que exército de estatísticos poderia
ser suficiente para essa tarefa colossal? Eh! bem, esse problema do equilíbrio de
produção e consumo que todos os estatísticos da Terra tentariam em vão resolver, se
resolve, como acabamos de ver, por si mesmo, com uma precisão matemática, em
virtude da “lei natural” da progressão de valores.63
A citação faz referência apenas à distribuição do produto. Molinari nota (1887, p. 27),
no entanto, que a “lei natural da progressão dos valores” opera não apenas para

63
La production s'établit et se proportionne donc en raison de l'utilité des produits ou des services, et
l'utilité se mesure à la grandeur des sacrifices que les consommateurs sont disposés à faire et qui’ils font
pour obtenir les choses qui la contiennent. Quelle règle supérieure le socialisme pourrait-il substituer à
cette règle naturelle?Sous le régime des «commissions de statistique» du collectivisme, les produits
seraient créés et distribués entre les consommateurs, en raison de leurs besoins, mais quelle serait la
mesure des besoins? Comment s'y prendraient les « commissions de statistique » pour connaître cette
mesure, pour savoir, en tous temps et en tous lieux, quelles quantités de chaque sorte et qualité de
produits et de services il convient de mettre à la disposition d'un milliard et demi de consommateurs,de
telle façon qu'il n'y ait jamais excédent des uns, déficit des autres? Quelle armée de statisticiens pourrait
suffire à cette tâche colossale? Eh! bien, ce problème de l'équilibre de la production et de là
consommation que tous les statisticiens de la terre essayeraient en vain de résoudre, il se résout, comme
on vient de le voir, de lui-même, avec une précision mathématique, en vertu do la «loi naturelle» de
progression des valeurs.

352
coordenar as ações nos mercados dos bens e serviços finais, mas também nos mercados
de fatores produtivos.
Isso complica significativamente o problema, pois as comissões de estatística teriam
que avaliar as utilidades indiretas dos usos alternativos dos bens de capital. Mas o
desenvolvimento das implicações dessa ideia terá que esperar mais alguns passos da
transição da plutologia para a catalática, com o problema central da disciplina
redefinido como o problema alocativo. De todo modo, essa citação mostra como
Molinari, assim como Courcelle-Seneuil antes dele e Leroy-Beaulieu pouco depois,
pode ser listado como um dos precursores do argumento sobre a impossibilidade do
cálculo econômico no socialismo proposto por Mises (1981) nos anos vinte e
desenvolvido por Hayek (1981) nos anos trinta do século seguinte.
Depois de utilizar a teoria econômica para criticar o socialismo, vejamos na próxima
seção como a mesma teoria é empregada para a defesa da expansão da esfera das
atividades reguladas pela competição em detrimento de estruturas centralizadas, que
implicariam na adoção de monopólios.

6.3.2. Economia e Estado em Molinari: competição de serviços públicos


A tradição da escola clássica francesa, que rejeita a prática de tratar o estado como algo
distinto do resto da sociedade, depois de aplicar uniformemente o pressuposto de auto-
interesse a todos os agentes, derivar desse pressuposto a espoliação de riqueza e não
apenas a sua produção e observar os incentivos desses agentes em diferentes ambientes
institucionais, sujeita esses próprios ambientes à análise econômica. Além de mostrar
como, independente das intenções, o desempenho econômico varia conforme o grau de
centralização possibilitado por diferentes arranjos institucionais, investiga como esse
desempenho também depende da pressão competitiva existente.
Nesse último aspecto se encontra a contribuição mais conhecida e mais ousada de
Molinari. Esse autor trata do estado como se fosse uma firma provedora de serviços
públicos, cujo desempenho é explicável mais pelo grau de competição a qual é
submetido do que pelas características dos arranjos políticos adotados.
Essa análise, naturalmente, se situa no contexto da principal questão política e
econômica debatida no período, que opõe conservadores, socialistas e liberais e que
discute o papel e tamanho do estado. Ao abordar essa questão com o auxílio da teoria de
competição e monopólio, Molinari é também levado naturalmente a discutir a natureza
dos bens públicos.
As opiniões do autor se alteraram em sua longa carreira. No início da mesma, Molinari
conjectura sobre a possibilidade de existir concorrência no fornecimento dos serviços de
segurança, operado por empresas privadas. Por isso, o autor é conhecido como
precursor da filosofia política contemporânea do anarco-capitalismo. Mais tarde, ao se
deparar com o problema do carona na provisão privada de bens públicos, especula sobre
soluções alternativas, como concessões de serviços públicos, competição entre serviços

353
fornecidos por condomínios privados e ainda o aprofundamento do direito de secessão
com forma de gerar pressão competitiva no oferecimento dos serviços de segurança.
Além da busca por regras mais descentralizadas, o autor elabora uma explicação da
evolução histórica do estado. Vejamos cada uma dessas contribuições, nessa ordem.
O primeiro trabalho a ser considerado é o conhecido artigo de Molinari (2014a, b) sobre
a produção de segurança, que propõe a substituição do estado por empresas privadas de
segurança atuando em competição. Joseph Garnier, editor do Journal des Économistes,
adiciona uma nota de rodapé no início do artigo (2014a, p. 13) advertindo que embora o
artigo seja utópico, sua publicação seria útil para a discussão das atribuições adequadas
do estado. De fato, antes de esboçar sua proposta de segurança privada, Molinari discute
os defeitos da segurança pública, que são atribuídas à natureza monopolizada do
serviço.
Molinari inicia o texto (p. 13) com a proposta de investigar a “organização natural do
governo”, ou seja, abordar o estado sob o ponto de vista das leis da economia, não sob o
ponto de vista da organização administrativa do estado. O primeiro passo é o
reconhecimento da necessidade de provisão de segurança, seguido pela indagação sobre
como esse serviço poderia ser provido ao menor custo. O autor afirma que embora
existam governos em qualquer sociedade, algo que atesta a necessidade dos serviços de
segurança, não seria verdade que tal serviço não possa ser provido privadamente.
Molinari (2014a, p. 19) apresenta o seguinte argumento: a liberdade de comércio gera o
menor preço possível ao consumidor em toda parte; os interesses dos consumidores
devem prevalecer sobre os interesses dos produtores; logo, a segurança deveria ser
privada. Desse argumento deriva a recomendação de “[q]ue nenhum governo deveria ter
o direito de impedir que outro governo entrasse em competição com ele ou de requerer
que os consumidores adquirissem exclusivamente os seus serviços”.
A defesa da primeira premissa é baseada na ideia de que leis não comportam exceções:
ou a competição é uniformemente superior ao monopólio ou a lei seria inválida. Esse
argumento, contudo, pressupõe implicitamente a inexistência de outras leis atuando
conjuntamente, como se a lei da gravidade tornasse impossível o voo de “aparelhos
mais pesados do que o ar”, se tomarmos a expressão em voga na França algum tempo
depois. Molinari admite (p, 21) a atuação de causas perturbadoras, tal como é
reconhecido na Metodologia da Economia desde Say. A não discussão de possíveis
causas perturbadoras, entretanto, indica que o autor não considera nesse ponto inicial de
sua carreira motivos econômicos empregados na justificativa de monopólios estatais.
Sendo assim, todos os serviços devem ser organizados ou segundo o princípio da
concorrência ou sob algum arranjo monopolista. O aspecto mais interessante da análise
de Molinari consiste no tratamento dado a esse último: os serviços públicos serão vistos
não em termos das regras formais que regulam um serviço provido pelo estado, mas
pela lógica econômica inerente aos incentivos sob monopólios.

354
Molinari (p. 26) faz uma analogia com um monopólio na provisão de sal. Revoltados
contra a qualidade do serviço e preço alto típico dos monopólios, os revoltados
consumidores destituem o monopolista; mas, em vez de abolir o monopólio, nomeiam
dirigentes para administrar o sal segundo os interesses de todos. Mas, dada a natureza
do monopólio, esses inevitavelmente replicaram as práticas prévias, administrando a
mina como um monopólio.
Esse exemplo encapsula a atitude dos economistas franceses em relação aos eventos que
sucedem a Revolução Francesa, revelando uma tese importante do pensamento de
Molinari: as normas que regulam um setor têm importância secundária em comparação
com a atuação da lógica econômica da competição e monopólio. No caso, os
consumidores que procuraram organizar o setor de sal segundo princípios do
“comunismo parcial” acabam por reestabelecer os privilégios existentes antes da
revolução, assim como o “comunismo total” geraria monopólio e exploração
generalizada. Com isso, Molinari dá mais um passo no desenvolvimento da teoria da
exploração utilizada por Comte e Dunoyer, situando a causa do fenômeno no poder
político monopolizado.
A segurança, assim como o trigo, atende necessidades insubstituíveis, que o autor (p.
29) associa à oferta fortemente regulada. A natureza do serviço de segurança agravaria
ainda os efeitos do monopólio no setor, na medida que, por definição, os demandantes
são caracterizados pela fraqueza física em relação à força dos ofertantes de segurança. A
lucratividade do monopólio geraria assim a imposição violenta do serviço.
Além dos efeitos comuns do monopólio em termos de qualidade e preço, o monopólio
de segurança daria origem a todos os outros monopólios, pois firmas das demais
indústrias tomam o poder emprestado para estabelecer seus privilégios. O mecanismo
de troca entre estado e demandantes de privilégios monopolistas, como vimos, foi
descrito pelos economistas franceses desde Gournay, Turgot e Say até Bastiat e
Molinari.
Os males derivados da natureza monopolista da segurança são resumidos pelo próprio
Molinari (2014a, p. 48):
Se, pelo contrário, o consumidor não for livre para adquirir os serviços de segurança
de quem quiser, imediatamente veremos ser aberta uma grande profissão dedicada à
arbitrariedade e ao mal gerenciamento. A justiça se tornará lenta e custosa, e a
polícia, incômoda; a liberdade individual não será mais respeitada; e o preço da
segurança será abusivamente inflado e iniquamente dividido, de acordo com o poder
e a influência desta ou daquela classe de consumidores. Os protetores se envolverão
em amargas lutas para tomar uns dos outros os consumidores. Em suma, todos os
abusos inerentes ao monopólio e ao comunismo emergirão.64

64
Que le consommateur ne soit pas libre, au contraire, d’acheter de la sécurité où bon lui semble, et
aussitôt vous voyez une large carrière s’ouvrir à l’arbitraire et à la mauvaise gestion. La justice devient
coûteuse et lente, la police vexatoire, la liberté individuelle cesse d’être respectée, le prix de la sécurité
est abusivement exagéré, inégalement prélevé, selon la force, l’influence dont dispose telle ou telle classe
de consommateurs, les assureurs engagent des luttes acharnées pour s’arracher mutuellement des

355
Esses problemas justificam a busca, ao longo da carreira de Molinari, de uma alternativa
descentralizada, concorrencial. No artigo em questão, o autor propõe uma conjectura (p.
45), segundo a qual seria estabelecida a liberdade no mercado de segurança. Firmas
protegeriam as pessoas e suas propriedades de agressões e providenciaram seguro, isto
é, recompensa em caso de danos, em troca de pagamento pelos serviços. Os
demandantes checariam se uma agência seria capaz de oferecer os serviços, se não
aplicaria ela mesma a violência e se existiria firma concorrente ofertando termos
melhores. Penas contra agressões seriam estabelecidas, todos concordariam a se
submeter a um conjunto de regras, como por exemplo os demandantes aceitarem a
existência de inconveniências necessárias para a investigação criminal. Molinari crê que
sob tal arranjo a pressão competitiva estabeleceria incentivos para a provisão econômica
do serviço e para prevenção de abusos, sob o estímulo fornecido pela perda de clientes
para firmas protetoras rivais.
A ideia de competição de “serviços governamentais” é elaborada em um livro publicado
no mesmo ano. Molinari (1849) organiza esse livro na forma de diálogos entre um
economista, um socialista e um conservador. Em doze noites de diálogo, o economista
expõe suas teses sobre o “problema social”, ou seja, sobre sistemas econômicos
comparados.
A base teórica do argumento de todo o livro é exposta na primeira noite. Essa base é
composta pelos elementos que expomos previamente: existência de leis econômicas
válidas universalmente, fundamentação dessas leis na filosofia utilitarista e defesa da
garantia da propriedade privada como base da geração de riqueza. O conservador
defende as instituições vigentes, o socialista propõe organização da sociedade a partir
do estado e o economista argumenta que isso implica no retorno do sistema anterior de
privilégios monopolistas, preferindo em seu lugar a expansão das liberdades pela
garantia dos direitos de propriedade.
Em cada uma das noites subsequentes são discutidas diferentes questões concretas,
relativas a violações dos direitos de propriedade em diversas áreas, que vão desde a
defesa da propriedade intelectual (segunda noite) até a discussão da segurança (décima
primeira noite), passando pelo direito de expropriação, administração florestal, direitos
de herança, empréstimos a juros, liberdade de ocupação, comércio exterior, monopólios
de moeda, postagem, ensino e culto, direito de associação e questões populacionais. O
último encontro resume e conclui a obra.
Trataremos apenas do capítulo relativo a segurança, que tem a mesma estrutura do
artigo citado acima: crítica dos monopólios e sua existência no setor de segurança.
Quanto ao primeiro tema, Molinari (1849, p. 308) aplica novamente a análise de
competição e monopólio aos governos: “O monopólio de um governo não pode ser
melhor que o de uma mercearia. A produção de segurança torna-se inevitavelmente cara

consommateurs ; on voit, en un mot, surgir à la file tous les abus inhérents au monopole ou au
communisme.

356
e ruim quando é organizada em monopólio”. Em seu lugar, defende (p. 305) governos
livres, definidos como aqueles cujos serviços possam ser livremente recusados.65
Desenvolvendo a lógica do monopólio, Molinari (p. 309) afirma que na esfera
governamental também ocorre a busca por expansão da clientela, assim como em
qualquer mercado. No mercado de segurança, os soberanos apelam para a compra de
reinos e províncias, casam com herdeiros de outros governos e conquistam vizinhos.
Isso coloca um elemento de competição do lado da oferta de governos, que Molinari
associa às guerras. Do lado da demanda de segurança, a população oprimida pelos
monopólios se revolta, também gerando revoluções e guerras. Estes últimos, porém, são
aqueles que em última análise pagam os custos da guerra. Dessa forma (p. 308), as
tentativas de monopolizar a segurança seriam a causa principal dos conflitos bélicos.
As alternativas seriam apenas duas: a solução liberal, que sugere acabar com os
monopólios e a solução socialista, que sugere ampliá-los, seguida da tentativa de
controlá-los. Com isso, Molinari adota indiretamente o ponto de vista de Courcelle-
Seneuil, segundo o qual sistemas econômicos devem ser comparados em termos de seus
efeitos sobre centralização ou descentralização das instituições favorecidas. Nas
palavras de Molinari (1849, p. 311-312):
A escola comunista diz, pelo contrário: cuidado para não atribuir a todos o direito de
produzir livremente todas as coisas. Isso seria opressão e anarquia! Atribua esse
direito à comunidade, excluindo os indivíduos. Que todos se juntem para organizar
em comum todas as indústrias. Que o estado seja o único produtor e distribuidor da
riqueza.
Os socialistas, mal observadores, não percebendo que indústrias organizadas funcionam
pior e mais caro do que as indústrias livres, demandam a organização de todos os ramos
industriais. Os conservadores, por outro lado, se dividiriam entre os defensores da
centralização em estado unitário e aqueles que preferem controle em nível fragmentado,
com inúmeras barreiras comerciais entre jurisdições menores.
Nessa obra, Molinari (p. 318) rejeita a solução clássica liberal do estado guarda-
noturno, “pois o comunismo na segurança é a pedra angular do antigo edifício da
servidão”.
Como alternativa, argumenta pela sua proposta de serviços de segurança sob
competição. Em termos históricos, Molinari invoca Smith, que atribui à concorrência a
qualidade superior do sistema jurídico daquele país. Em termos teóricos, aponta que
existe demanda e oferta pelo serviço, ou seja, potencial de ganhos, sem ver razões que
impeçam que sejam explorados se houver liberdade. Como Marx em relação ao
socialismo, Molinari afirma que o economista não teria base para especular sobre os
detalhes de funcionamento de um sistema livre. Tampouco Molinari discute os dilemas
inerentes à transição para um mercado desregulado, tais como se manifestaram, por
exemplo, no governo de Turgot que examinamos no terceiro capítulo deste trabalho.

65
Hart (1981) compara a Idea de governo livre de Molinari com o direito de ignorar o governo proposto
por Herbert Spencer.

357
O autor (p. 329), porém, acredita que se o governo declarasse que em um ano não
pagaria mais salários de juízes, soldados e policiais e se essa declaração fosse
acompanhada de liberdade de ação, no final do ano teríamos serviços privados melhores
do que os existentes.
A despeito do argumento de que não se pode especular sofre frutos futuros de processos
evolucionários, Molinari (p. 330-332) faz algumas observações de caráter
explicitamente conjectural. Ele imagina “firmas governamentais” que operariam como
companhias de seguro de propriedade. Sob divisão do trabalho, tais firmas contratariam
serviços especializados e buscariam expandir competitivamente suas atividades para
adquirir clientes. Em sua conjectura, o autor busca evitar os inconvenientes tanto da
centralização quanto da descentralização do serviço de segurança. Por um lado, as
firmas poderiam ter estruturas comuns para capturar ladrões e assassinos. Por outro, a
eficiência recomenda atuação em área limitada, pois dispersão pioraria a qualidade dos
serviços. Uma mesma área, porém, deve contar com alguma sobreposição de serviços
para que a pressão competitiva ocorra.
A tese de Molinari não foi acolhida favoravelmente entre os economistas franceses.
Joseph Garnier (1849) resume no Journal des Économistes o debate que ocorreu na
Sociedade de Economia Política na qual os trabalhos de Molinari foram debatidos.
Horace Say, presidindo a seção, propõe a discussão dos limites do estado. Dentro os
economistas que mencionamos neste trabalho, participaram das discussões Dunoyer,
Bastiat, Coquelin e Wolowski. Tomando como base o resumo do debate feito por
Garnier, conclui-se que naquele momento ainda não se discutia a teoria econômica
sobre bens públicos. A maioria dos participantes rejeita a proposta a partir da crença de
que a administração da justiça requer autoridade central.
Além do debate, Coquelin (1949) publica ainda um artigo resenhando o livro de
Molinari. Por um lado, a discussão da propriedade privada no início da obra é elogiada.
Por outro, Coquelin se ressente com a estratégia de colocar na boca do economista
“opiniões excêntricas” que nenhum outro economista além de Molinari esposaria.
Também para Coquelin, a concorrência suporia garantias prévias, estatais, de não
violência. O debate, portanto, não tratou da emergência da liberdade. Hipóteses sobre
como esta se manifesta historicamente, entretanto, serão propostas por Molinari no
restante de sua obra.
O problema da delimitação da função do estado, central na obra de Molinari, continua a
ser explorado pelo autor nos anos seguintes66. O último capítulo do segundo volume do
Curso é dedicado ao tema. A abordagem adotada é a mesma encontrada em toda sua
obra: os serviços públicos estariam sujeitos às mesmas leis econômicas. Sob essa
perspectiva, Molinari (1863, p. 484) se propõe a investigar as causas do atraso da
provisão pública de bens em termos de sua qualidade e custo.

66
Ver, por exemplo, Molinari (1861).

358
A resposta a essa questão envolve uma explicação da evolução histórica dos serviços de
segurança, que Molinari divide em três fases. Na primeira, as manifestações das
imperfeições da natureza humana exigem o serviço de segurança. Inicialmente, todos
agem como soldados, guardas e juízes. O aprofundamento da divisão do trabalho, no
entanto, já implica em especialização do serviço de segurança nessa fase inicial. Nela,
encontramos um novo motivo para provisão central da segurança, justificado em termos
de indivisibilidades que requereriam a participação coletiva. Molinari (1863, p. 487)
menciona serviços que só poderiam ser fornecidos mediante associação de todos os
membros da sociedade, embora o motivo que justificaria isso não seja explicitado:
Em resumo, a sociedade aparece, na primeira fase de sua existência, como uma
reunião de famílias, cada uma produzindo de forma isolada aquilo que pode produzir
com suas próprias forças e, em comum, aquilo que só pode ser produzido com a
associação e a combinação de forças de todos, nomeadamente segurança interna e
externa, vias de comunicação, etc. Os membros de cada família contribuem para a
produção de todos os serviços necessários para a comunidade, como produzem todos
os serviços necessários para a família, até que o progresso traga para a produção dos
serviços públicos, assim como nos serviços privados, a especialização de funções e,
com isso, uma nova fase de desenvolvimento econômico da sociedade.67
Na segunda fase, Molinari argumenta que a especialização implica inicialmente em
monopólios: quando alguém se torna padeiro, as pessoas esquecem como fazer pão.
Quanto mais necessário o bem, maiores os inconvenientes dos monopólios e a
competição se instala, embora de maneira gradual. No entanto, como a concorrência é
uma ameaça, produtores agem para transformar seus monopólios em monopólios legais.
O aumento da riqueza requer nessa fase, para Molinari (p. 496-496), expansão dos
serviços de segurança e o estabelecimento de uma “polícia dos mercados” que garanta a
moeda, sistemas de medida e também intervenção para coibir abusos dos monopólios
mais perniciosos.
Curiosamente, o autor tido como mais radicalmente liberal e defensor da universalidade
das leis econômicas, defende posições bem intervencionistas do que diz respeito a
períodos anteriores. Com o avanço da riqueza, porém, a tutela estatal se tornaria
supérflua. A continuação da expansão da riqueza teria aumentado a demanda de forma
que os monopólios deixam de ser naturais e a concorrência poderia imperar em todos os
setores.
Mas, como já vimos, os monopólios tenderiam a ser preservados, seja pela ação dos
interesses dos monopolistas presentes, como é implicado pelas políticas protecionistas
defendidas pelos conservadores, seja pelo desejo de que os monopólios troquem de
mãos, como é implicado pelas reformas defendidas por socialistas.

67
En résumé, la société apparaît, dans la première phase de son existence, comme une réunion de
familles, dont chacune produit isolément ce qu’elle peut produire avec ses seules forces, et, en commun,
ce qui ne peut être produit que par l’association et la combinaison des forces de toutes, savoir la sécurité
intérieure et extérieure, les voies de communication, etc. Les membres de chaque famille contribuent à
produire l’ensemble des services nécessaires à la communauté, comme ils produisent l’ensemble des
services nécessaires à la famille, jusqu’à ce que le progrès amène dans la production des services publics
comme dans celle des services privés, la spécialisation des fonctions et, avec elle, une nouvelle phase de
développement économique de la société.

359
Aqui Molinari (1863, p. 519) repete seu ceticismo em relação à possibilidade de que
haja alguma forma de administrar organizações centralizadas sem a emergência das
manifestações usuais dos monopólios:
As panaceias constitucionais gradualmente perderam seu crédito e passou-se a
procurar por outras. Imaginou-se, por exemplo, que o mal não vinha da má
constituição do governo, mas da má constituição da própria sociedade, e se desejava
estender o sistema de organização dos serviços públicos a todos os outros serviços;
em uma palavra, englobar a sociedade no governo. Essa era a panaceia do
socialismo, que estava precisamente tomando o progresso ao contrário.68
Uma terceira panaceia é ainda apontada, a nacionalista, que atribui à ignorância e à
imoralidade de nativos de outras localidades a culpa pelos problemas que são explicados
por Molinari por meio da lógica dos monopólios.
Como no sistema explanatório marxista, no esquema de evolução por estágios de
Molinari as instituições se tornam incompatíveis com exigências de natureza
econômica. Para o autor (p. 510), assim como os governos do primeiro estágio da
sociedade se tornaram antieconômicos no segundo, os governos deste se tornam
antieconômicos no terceiro.
A exploração, porém, se manifesta pela própria lógica da ação coletiva (p. 517):
serviços públicos ofertados centralmente são fundidos em uma mesma estrutura
hierárquica de monopólios exploradores, cuja administração requer pessoal, que forma a
classe governante.
Ao contrário da crença que atribui aos governos uma missão sublime, deslocada dos
demais afazeres, Molinari sujeita as organizações governamentais ao exame ditado pela
lógica das leis econômicas as quais essas organizações também estariam sujeitas. A
administração estatal monopolizada, para Molinari, pecaria contra várias dessas leis.
Em primeiro lugar, o estado desconsidera a especialização. Como uma empresa privada
que atuasse simultaneamente aos ramos de ferrovias, tecelagem, teatros e especiarias,
governos encarregados de segurança, educação, moeda, transporte de cartas e
construção de ferrovias careceriam de unidade de operações e dos problemas derivados
disso. Em segundo lugar, organizações governamentais desconsideram o tamanho ótimo
das firmas. Em terceiro lugar, os governos tendem a proibir ou restringir fortemente a
atuação de concorrentes de seus serviços, como correios e educação. Sem concorrência,
não existiriam incentivos para cobrir custos e aperfeiçoar métodos. Por fim, serviços
providos pelo estado, por sua natureza, desconsideram as variações de qualidade e
quantidade dos bens demandados pela população, além de possibilitar espaço muito
reduzido para a negociação dos preços de seus serviços.

68
Les panacées constitutionnelles perdirent peu à peu de leur crédit, et l’on se mit à en chercher
d’autres. On s’imagina, par exemple, que le mal provenait non de la mauvaise constitution du
gouvernement, mais de la mauvaise constitution de la société elle même, et l’on voulut étendre le système
d’organisation des services publics à tous les autres services, en un mot, englober la société dans le
gouvernement. Telle fut la panacée du socialisme, qui prenait précisément le progrès à rebours.

360
Com a extensão da análise econômica ao funcionamento de instituições públicas, em
substituição ao hábito de considerar o estado como entidade abstrata não analisada,
ferramenta em potencial de implementação de políticas bem-intencionadas,
encontraríamos um retrato bom diverso do modo de atuação estatal. Considerando a sua
natureza fundada na lógica dos monopólios, o estado é representado por Molinari (1863,
p. 531) como um parasita que subsiste da população produtiva; ou, nos termos que ele
utiliza, uma úlcera:
À medida que a população e a riqueza aumentam, graças ao desenvolvimento
progressivo das indústrias em concorrência, uma crescente massa de forças vivas é
atraída para a sociedade, por meio da bomba de sucção dos impostos e dos
empréstimos, para cobrir as despesas de produção de serviços públicos ou, melhor
dizendo, a manutenção e o fácil enriquecimento da classe particular que detém o
monopólio da produção desses serviços. Os governos não apenas se fazem pagar
cada vez mais pelas funções necessárias que assumem, mas também estão engajados
em uma escala cada vez mais colossal em empreendimentos prejudiciais, como as
guerras, em um momento em que a guerra, tendo deixado de ter sua razão de ser,
tornou-se o mais bárbaro e o mais odioso dos anacronismos. 69
Diante da natureza antieconômica do estado, Molinari defende no Curso a restrição do
estado a suas funções naturais; a saber, a segurança e a sujeição desse serviço ao
princípio da concorrência. Embora remeta o leitor aos seus textos prévios (1849 e 1861)
que discutem a concorrência governamental, no final do capítulo Molinari (p. 532)
adota a ideia de extensão do direito a secessão como modo de induzir pressões
competitivas. A possibilidade de secessão faria com que o governo disfuncional do
segundo estágio da evolução econômica se harmonize com a era da competição
industrial.
Se avançarmos até o final do século dezenove, a posição de Molinari sobre o assunto
passa por novas alterações, como revela Leis Naturais. Já estudamos como a primeira
parte dessa obra procura listar as leis que regem o funcionamento das economias. Nas
três últimas partes, Molinari aplica essas leis ao funcionamento dos serviços
governamentais.
A segunda parte da obra, dedicada aos obstáculos à atividade produtiva, trata da
demanda por segurança, reafirmando a necessidades de serviços comumente prestados
pelo estado. Essa necessidade é justificada pela tendência ao roubo inerente ao ser
humano. Essa tendência se torna obstáculo a produção de riqueza por três motivos: a
transferência de recursos do espoliado ao espoliador, pois este último é em geral menos
capaz de produzir, os desvios de recursos tanto para o roubo quanto para a proteção

69
A mesure que la population et la richesse augmentent, grâce au développement progressif des
industries de concurrence, une masse croissante de forces vives est soutirée à la société, au moyen de la
pompe aspirante des impôts et des emprunts, pour subvenir aux frais de production des services publics
ou, pour mieux dire, à l’entretien et à l’enrichissement facile de la classe particulière qui possède le
monopole de la production de ces services. Non seulement, les gouvernements se font payer chaque jour
plus cher les fonctions nécessaires qu’ils accaparent, mais encore ils se livrent, sur une échelle de plus en
plus colossale, à des entreprises nuisibles, telles que les guerres, à une époque où la guerre, ayant cessé
d’avoir sa raison d’être, est devenue le plus barbare et le plus odieux des anachronismes

361
contra o mesmo e por fim os desincentivos a produzir gerados pelo risco. Aplicada ao
mercado de privilégios legais, Molinari (1887, p, 41-42) comenta que:
a segunda causa de perda é o desvio da atividade produtiva que resulta desse modo
vicioso de apropriação. A indústria que o ladrão usa para apreender a propriedade
dos outros, ou seja, os valores existentes, ele poderia usá-lo para criar outros valores;
e, por outro lado, aqueles cuja propriedade está ameaçada aplicam à sua defesa
algumas das forças que dedicariam à produção, se a segurança estivesse completa. 70
Os custos da atividade de rent-seeking e de defesa da propriedade, também na
concepção de Molinari, representam desvios de recursos que poderiam encontrar uso
produtivo. No centro da visão de mundo dos economistas da escola francesa,
prosperidade ou pobreza dependem dos incentivos institucionais à atividade produtiva
ou espoliadora.
A terceira parte das Leis Naturais reelabora a teoria da evolução dos serviços públicos a
partir da sua fusão com a análise de três modos de concorrência: animal, política e
econômica. Condizente com sua filosofia política, Molinari explica a evolução do
estado em termos dos freios impostos pela concorrência política, não pela intenção e
planos dos homens. Os governantes estariam então sujeitos à concorrência proveniente,
na sua origem, de outras tribos que disputam recursos, concorrência de outros grupos
que buscam o poder e também a competição na guerra entre comandantes de outros
estados (p. 99).
A concorrência política, afirma Molinari (p.105) levaria os estados a buscarem a
promoção do desenvolvimento local, a fim de prover poder militar e político. A
concorrência política via temor de guerras e apropriação hereditária do estado por
famílias e grupos dirigentes funcionam como freios à expansão da exploração interna
imposta pelos estados à sociedade. Isso, por sua vez, se relaciona com o conflito que
geraria a transição para a concorrência econômica. Esse conflito gerado pela “servidão
política” é estudado na quarta parte das Leis Naturais.
O aumento da prosperidade da população produtora e a diminuição do risco de guerra,
que tornam os governantes ociosos, reequilibram forças. A incapacidade de limitar o
poder central a partir da Revolução Francesa é explicada por Molinari, como vimos, em
termos da própria natureza de funcionamento do poder político monopolizado. Em vez
da liberdade prometida, revoluções resultaram em aumento do peso do estado.
Vencedores teriam que possuir um exército maior do que os vencidos quando chegam
ao poder e por isso são impedidos de diminuir o bolo a ser distribuído politicamente,
para que as demandas de sua clientela sejam atendidas. Esses aliados, se contrariados,
poderiam desertar para o exército oponente. Essa lógica, para Molinari (p. 159), ocorre
não apenas sob golpes de armas, mas também de votos.

70
la seconde cause de perte réside dans le détournement d'activité productive qui résulte de ce mode
vicieux d'appropriation. L'industrie que le voleur emploie à s'emparer du bien d'autrui, c'est-à-dire des
valeurs déjà existantes, il pourrait l'employer à créer d'autres valeurs ; et d'un autre côté, ceux dont la
propriété est menacée appliquent à sa défense une partie des forces qu'ils consacreraient à la production,
si leur sécurité était entière.

362
Essas observações reforçam a tese de Molinari de que as instituições e intenções
importam bem menos do que os fatores econômicos que explicam a servidão política.
Essa idéia que encontramos na obra do autor pode ser chamada de tese da irrelevância
relativa das formas de governo: não bastaria implementar um parlamento na Rússia para
que o czarismo, baseado no exército e burocracia central, se torne sujeito a limites. Para
Molinari (1887, p. 189), “[s]e o despotismo moscovita ou turco fornece apenas fracas
garantias à propriedade e liberdade dos consumidores políticos, o republicanismo
constitucional ou ditatorial de certos estados da América do Sul ofereceria garantias
melhores?”
Se, como resume o autor (p. 189), as formas de governo importam pouco, mudanças de
regime aumentam os custos dos serviços públicos e gastos e dívidas aumentam a
despeito das intenções dos governantes, o que seria capaz de dobrar a servidão política?
Uma solução deve ser tentada via imposição de concorrência aos serviços
governamentais.
Se inicialmente Molinari não via razões econômicas para a provisão centralizada de
serviços, nas obras da maturidade o autor se depara com o problema do caráter não
excludente e não rival dos bens que modernamente definem os bens públicos. Para
Molinari (1887, p. 246): “Esses serviços distinguem-se por um caráter de coletividade
natural, na medida em que beneficiam não apenas o indivíduo, mas o conjunto do grupo
local do qual ele faz parte”.
Do caráter não excludente dos bens públicos, Molinari (p. 247) deriva a dificuldade de
provisão privada de bens públicos em termos do problema do carona. Um indivíduo não
teria incentivos para fornecer serviços de polícia se todos se beneficiariam,
independentemente da decisão de contribuir com os custos.

Esse argumento, como vimos, não se manifesta no debate da Sociedade de Economia


Política pela ocasião da proposta original de Molinari de oferta privada de segurança.
Como o autor não menciona nenhum contexto em sua exposição do argumento, não
fomos capazes de traçar as origens do surgimento do problema de provisão de bens
públicos no pensamento de Molinari.

De todo modo, diante dessa nova objeção, Molinari muda a sua resposta, mas não o
problema original, a saber, como introduzir competição aos governos. Nas Leis
Naturais, Molinari argumenta que a existência de bens “naturalmente coletivos” ou, na
linguagem moderna, bens públicos, não implica que eles não possam ser fornecidos por
firmas especializadas contratadas pelos governos, em áreas como pavimentação ou
segurança.

Além de concessões a empresas particulares, o economista concebe (p. 249)


condomínios privados, tanto urbanos quanto rurais, que ofertariam concorrencialmente
os serviços públicos comumente ofertados pelos municípios, em troca de valores
cobrados por esses condomínios.

363
Nesse caso, a pressão contra o abuso coletivo seria fornecida pelo voto com os pés. Essa
pressão, contudo, diminui conforme consideramos divisões administrativas maiores,
como províncias e países. No limite, em vez de conter a exploração, representaria
apenas a troca de uma servidão por outra.

No final da obra, supondo hipoteticamente a supressão da servidão política, Molinari


identifica a possibilidade de conferir direito ao indivíduo de recusar o pagamento de
serviços, acompanhado pela proibição de usufruir escola, igreja ou teatro comunitário.
Nos casos nos quais o problema do carona se manifesta, como vias públicas e
segurança, os governos teriam direito de cobrar o serviço, sob pena de expulsão.
Aqueles frustrados com a divisão dos custos dos serviços coletivos poderiam migrar. No
final da obra (p. 263), a esperança de concorrência governamental é depositada
finalmente na ampliação do direito à secessão. Esse direito não seria restrito pela
contiguidade territorial, podendo ocorrer a formação de enclaves que se separam de uma
região na qual serviços inferiores são providos.

Independente do ceticismo que possamos ter sobre a suficiência das pressões


competitivas existente nas propostas imaginadas pelo autor, a variedade de aspectos
discutidos por Molinari, pioneiro no estudo da provisão privada de bens públicos, não é
pequena. Nesse assunto, sua contribuição significativa repousa no plano teórico, pela
maneira como aplica a teoria da competição e monopólio em sua análise econômica da
política. A despeito das dificuldades em expor uma versão adequada do funcionamento
do sistema de preços e ignorar as mudanças que ocorriam na teoria no final da sua
carreira, a teoria empregada por Molinari evolui justamente na direção da nova teoria,
em especial no que diz respeito ao desenvolvimento da teoria de monopólio, além de
apresentar diversos elementos que marcam a abordagem microeconômica moderna. A
menção frequente a leis naturais na obra do autor, que poderia induzir o analista
moderno que efetivamente não leu as obras do autor a pensar em um retorno as crenças
metafísicas sobre direito de propriedade dos escolásticos e dos fisiocratas, na verdade
revela uma das primeiras formulações do problema da similitude formal entre sistemas
econômicos que caracteriza a análise do socialismo efetuada pela segunda geração de
economistas neoclássicos e austríacos.

6.4. Leroy-Beaulieu: o estado moderno


O estudo da escola clássica francesa requer ainda o exame da obra de Paul Leroy-
Beaulieu (1843-1916), um de seus últimos representantes. Se Molinari pôde em sua
velhice ignorar os desenvolvimentos teóricos ocorridos a partir da revolução
marginalista, o mesmo não seria possível com Leroy-Beaulieu, da geração seguinte de
economistas. Além de incorporar parcialmente a nova teoria do valor em sua obra, esse
autor também criticou empírica e teoricamente as previsões derivadas do sistema
ricardiano. Mas, a despeito de interagir com a nova teoria, as contribuições do autor
ainda se situam firmemente na tradição clássica francesa.

364
Condizente com o ponto de vista evolutivo e gradualista adotado neste trabalho, esta
seção revela Leroy-Beaulieu como um autor de transição entre as teorias antiga e
moderna, reunindo elementos pertencentes a ambas. Jevons, embora indique
descontinuidade quando declara que não poderia ler o que foi escrito sobre teoria
econômica antes dele sem se indignar71, se referindo à economia clássica inglesa, por
outro lado busca na tradição clássica francesa as origens de sua teoria, como atesta a
epígrafe deste trabalho72. Menger, por outro lado, além de ensinar economia smithiana
para o príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro em vez de suas próprias doutrinas,
quando lista leis econômicas gerais em seu livro sobre o método utiliza-se sempre de
exemplos extraídos da tradição clássica73, o que indica que esse economista não via a
adoção da nova teoria do valor como uma ruptura que abandone o corpo de doutrina
prévia. Apenas a partir da segunda geração de economistas a partir da revolução
marginalista temos a percepção mais nítida de que com a nova teoria do valor ocorre de
fato uma redefinição do problema econômico fundamental, com a substituição da
plutologia pela catalática.
Segundo esse ponto de vista, não é em absoluto de se estranhar que Leroy-Beaulieu
adote em sua obra a nova teoria do valor, mas esta é vista apenas como um refinamento
da teoria prévia. A estrutura de seus livros, de fato, ainda segue o referencial plutológico
clássico e por isso ele pode ser classificado como membro da escola clássica francesa.
A obra teórica do autor é típica de um trabalho da fase de maturidade de uma tradição
de pesquisa, contendo mais sistematização do corpo doutrinário do que alterações
significativas no mesmo, como mostraremos mais adiante. Embora introduza o
elemento marginalista na teoria subjetiva do valor da vertente francesa do classicismo,
ao mesmo tempo Leroy-Beaulieu rejeita tanto a formalização matemática utilizada pela
teoria walrasiana quanto a abordagem austríaca, que ele associa a uma forma de
escolasticismo.
Sendo assim, as discussões feitas pelos economistas walrasianos e mengerianos da
segunda geração de autores pós-revolução marginalista sobre a teoria da imputação, isto
é, sobre a aplicação da nova teoria do valor ao preços dos fatores produtivos e como
esses preços se relacionam à própria produção via problema alocativo ficam de fora da
análise de Leroy-Beaulieu da “distribuição”, que mantém a discussão clássica – inglesa
e francesa – sobre remunerações associadas aos gêneros de esforços.
Como um dos últimos representantes de sua tradição teórica, Leroy-Beaulieu é um autor
erudito. Sua obra menciona cada discussão teórica efetuada pelos economistas franceses
e ingleses. Embora seu tratado possua mais de três mil páginas e a versão alegadamente
resumida ocupe quinhentas, essas duas obras são verdadeiros trabalhos de
sistematização da tradição teórica clássica.

71
Em carta a seu irmão datada de 1860, Jevons (1886) afirma que “nos últimos meses eu felizmente me
deparei com o que sem dúvida é a verdadeira teoria econômica, tão completa e consistente, que não
consigo ler outros livros sobre o assunto sem indignação”.
72
Jevons (1888, p. xliii).
73
Menger (1996).

365
Dos livros de Leroy-Beaulieu, destacaremos em nosso texto apenas alguns elementos.
No que diz respeito à teoria econômica geral, além da conciliação entre teoria e história
que já destacamos no estudo de suas teses metodológicas e da análise da relação entre a
estrutura clássica de seu pensamento e a nova teoria do valor, trataremos ainda do papel
de destaque conferido pelo autor à atividade empresarial, além da sua rejeição das
conclusões distributivas derivadas da obra de Malthus e Ricardo.
Passando para a análise econômica do estado, Leroy-Beaulieu continua os trabalhos dos
demais economistas abordados neste capítulo, como Chevalier, Courcelle-Seneuil e
Molinari, contrastando os sistemas econômicos liberal, intervencionista e socialista. Ao
contrário destes dois últimos, Leroy-Beaulieu acompanha a postura de seu sogro,
Michel Chevalier, no que diz respeito a aceitação de um papel mais ativo para o estado
nos assuntos econômicos. Essa propensão se manifesta, por exemplo, em sua análise do
colonialismo. Contrariando a tradição francesa, que condena o colonialismo como uma
manifestação de políticas de exploração monopolistas típicas do mercantilismo, Leroy-
Beaulieu atribui aos estados europeus a liderança de uma missão civilizatória de povos
que considera bárbaros.
Em termos de análise teórica dos sistemas econômicos, assim como Molinari
desenvolve a tese da similitude formal entre sistemas econômicos, Leroy-Beaulieu é um
dos primeiros formuladores da tese da impossibilidade de cálculo econômico no
socialismo, mais tarde desenvolvida por Mises, Weber e Brutzkus.
Além da crítica ao socialismo, que permeia toda a obra do autor, trataremos de sua
análise do estado moderno. Movido mais por suas crenças metodológicas do que pela
tradição crítica de Gournay e Turgot, Leroy-Beaulieu rejeita a abordagem ideal do
estado em favor de uma abordagem empírica de natureza histórica. Com isso, o autor
distingue entre o estado ideal e o estado real, contrariando a tendência preponderante até
hoje de se concentrar no primeiro. A análise do autor, ao redirecionar dos mercados para
o estado as críticas da escola alemã contra os alegados apriorismo e irrealismo da
análise clássica, desenvolve a aplicação da lógica econômica ao setor público que
caracteriza tanto a escola clássica francesa quanto a moderna escola da escolha pública.
Antes de tratarmos dessas contribuições, porém, vejamos alguns dados biográficos.
Como faleceu depois da publicação das duas enciclopédias francesas de economia
política, existe pouco material publicado sobre a vida do autor74.
Paul Leroy-Beaulieu nasceu em 1843 na comuna de Saumur no oeste da França. Seu pai
foi um advogado que exerceu cargos importantes em administrações municipais,
inclusive como prefeito. Leroy-Beaulieu estudou inicialmente em Paris no Liceu
Bonaparte e na Escola de Direito, tendo mais tarde complementado seus estudos com
viagens a Bonn e Berlim.

74
As informações sobre a vida de Leroy Beaulieu são baseadas em Stourm (1917). Além dessa fonte,
existe sobre o autor um verbete de um parágrafo na Enciclopédia Britânica (CHISHOLM, 1911), escrito
quando o autor ainda vivia.

366
Estabelecido em Paris, se dedica inicialmente à carreira jornalística, escrevendo para os
jornais Le Temps, Revue Nationale e Revue Contemporaine. Sem informações sobre
seus interesses intelectuais ou sobre como se interessa por Economia, podemos inferir
que o autor já tinha se dedicado ao estudo da disciplina no final da década de sessenta,
pois ganha em 1867 um prêmio da Academia de Ciências Morais em concurso de
ensaios a respeito da influência da instrução dos trabalhadores nos salários. Leroy-
Beaulieu ganha ainda outros três prêmios em 1870, como trabalhos que versavam sobre
colônias, administração pública na França e Inglaterra e consequências econômicas do
imposto sobre a terra.
Em 1870 casa com Cordélia Chevalier (1848-1913), filha de Michel Chevalier. Em
1872 torna-se professor de finanças na nova École Libre des Sciences Politiques. No
ano seguinte, retoma as atividades do jornal Économiste Français, inativo há três anos,
atuando como seu editor chefe. Essa revista seguia os moldes da The Economist
britânica. Em 1880 Leroy-Beaulieu sucede a seu sogro na cadeira de economia política
do College de France. Permanecendo ativo até o final, o economista escreve um relato
dos eventos da primeira guerra mundial, vindo, porém, a falecer em 1916.
Sua vasta obra, como é comum entre os autores da tradição intelectual francesa, versam
sobre teoria econômica, história econômica e questões político-econômicas de seu
tempo. Concentraremos nossa análise em seus livros voltados à teoria econômica.

6.4.1. Teoria Econômica em Leroy-Beaulieu: a inovação empresarial


Leroy-Beaulieu é um autor pouco conhecido. A maioria das menções dizem respeito ao
seu trabalho sobre o colonialismo. Como outros autores do século dezenove, Leroy-
Beaulieu (1891a) distingue no seu A Colonização nos Povos Modernos entre colônias
de povoamento e de exploração. No Brasil, em particular, identifica-se esse livro como
a fonte de inspiração da mesma classificação encontrada na obra de Caio Prado Jr75.
Entre os vários volumes escritos pelo autor, porém, esse não resiste à passagem do
tempo. Contrariando a opinião dos demais economistas época sobre o tema, céticos
sobre os efeitos da intervenção governamental, Leroy-Beaulieu defende a existência de
companhias estatais responsáveis pelo processo colonizador. Além de empregar
questões populacionais em sua argumentação, a defesa do colonialismo de Leroy-
Beaulieu utiliza noções paternalistas e até mesmo racistas, além de revelar crença em
determinismo geográfico. Em seu Tratado, em um capítulo dedicado à síntese de suas
idéias sobre o tema, Leroy-Beaulieu (1914, vol. 4, p. 743-745) distingue colônias de
povoamento, situadas em regiões temperadas, adequadas ao trabalho de europeus e
destinadas a no longo prazo se separarem das metrópoles, das colônias de exploração,
estabelecidas em regiões quentes habitadas por população nativa, sendo dever das
metrópoles europeias impor paz, estabelecer legislação, justiça imparcial, administração
eficaz e regime fiscal não opressivo. Ao contrário das anteriores, estas deveriam
permanecer eternamente colônias para que não voltem ao barbarismo. O autor

75
Monastério e Ehrl (2015).

367
acrescenta ainda um terceiro tipo, as colônias mistas, com europeus vivendo lado a lado
com a população autóctone. Neste último tipo, a administração colonial envolveria mais
dificuldades.
Seria uma pena que o nome do autor fosse associado apenas a um texto facilmente
criticável e que não representa a visão típica dos economistas do período sobre o
assunto, enquanto seus diversos livros sobre teoria econômica permanecem ignorados.
Neste trabalho, buscaremos recuperar alguns elementos desses trabalhos negligenciados.
A principal obra de Leroy-Beaulieu (1914) foi seu Tratado Teórico e Prático de
Economia Política, cuja sexta edição ocupa 4 volumes e 3.329 páginas. Esse texto reúne
não apenas suas teses sobre teoria econômica, incluindo aquelas expostas em seus
demais livros, mas também comentários sobre grande parte do que os demais
economistas escreveram sobre o assunto até então, com exceção das teorias expressas
em linguagem matemática.
A extensão do tratado é também consequência dos qualificativos “teórico e prático”
encontrados no título. Fiel a suas convicções metodológicas, o autor segue o exemplo de
Adam Smith e intercala em sua obra princípios teóricos e observações históricas que
embasariam princípios e ilustrariam resultados. O trabalho de recuperação de seu
pensamento econômico é, no entanto, facilitado pelo fato de que, em harmonia com o
costume francês, a obra principal é acompanhada por um Resumo (Précis). Novamente,
adotaremos o procedimento de expor as idéias do autor segundo a estrutura do Resumo,
utilizando material do Tratado e das demais obras do autor quando precisarmos detalhar
temas que nos interessam mais de perto.
Em linhas gerais, o pensamento econômico de Leroy-Beaulieu pode ser caracterizado da
seguinte forma. Como já afirmamos, trata-se de uma transição entre o pensamento
clássico e neoclássico, com teoria do valor subjetivo parcialmente incorporada em uma
estrutura analítica plutológica. A utilidade, que desde Say é utilizada no início da
exposição como elemento definidor de riqueza, para se para se contrapor ao
materialismo plutológico, é facilmente reexposta como utilidade marginal, mas servindo
ao mesmo propósito. Da definição de riqueza segue-se a estrutura do modelo clássico,
que define a ordem de exposição dos assuntos: produção, crescimento, repartição,
circulação e consumo (privado e público) de riqueza.
No que se refere à produção, destacaremos o desenvolvimento por Leroy-Beaulieu da
teoria da atividade empresarial, que seria uma função crucial para o funcionamento das
economias e que se distingue analiticamente do capital. Esse desenvolvimento é
motivado pela contraposição ao pensamento de Marx e outros socialistas.
No que se refere ao crescimento, Leroy-Beaulieu enfatiza a importância das instituições
que garantam liberdade e propriedade como elementos determinantes da prosperidade.
Nesse aspecto, o autor se contrapõe a visão de John Stuart Mill sobre o caráter das leis
sobre distribuição.
Sobre repartição, Leroy-Beaulieu curiosamente discute a remuneração de fatores antes
de discutir a teoria do valor, relegada para a parte seguinte sobre circulação. A discussão

368
da repartição rejeita a relevância dos pressupostos do sistema ricardiano, prevendo que
o progresso técnico eliminaria vantagens locacionais e que a renda da terra cairia, assim
como o salário aumentaria com a maior demanda por trabalho resultante do progresso
técnico associado à difusão de instituições que garantam a liberdade.
Sob a rubrica circulação Leroy-Beaulieu discute a teoria do valor, adotando a teoria
exposta por Jevons e Menger. Na sua exposição da nova teoria, relevância especial é
dada ao fenômeno da substituição de bens, seja pelas diferentes maneiras de atender a
uma necessidade, seja no deslocamento dos esforços de uma necessidade para outra
conforme a primeira é progressivamente satisfeita.
Embora seja mais natural para um economista clássico francês do que seria para um
inglês aceitar os desenvolvimentos da nova teoria subjetiva do valor, Leroy-Beaulieu
incorpora essa teoria apenas em parte. Elementos como a convergência das utilidades
marginais no equilíbrio determinando uma alocação maximizadora de utilidade ou a
aplicação explícita da teoria ao problema da imputação, temas que ocupam os
economistas de seu tempo, não são tratados. Para o autor, as teses de Jevons e dos
austríacos sobre teoria do valor representariam apenas um refinamento da análise
clássica. A despeito disso, discussões envolvendo o problema alocativo se fazem mais
presentes, em especial no que se refere à atividade empresarial. Na exposição mais
detalhada que se segue, concentraremos nossa atenção nesses elementos, sem perder de
vista que o referencial teórico fundamental é o mesmo da escola clássica francesa.
Iniciemos com a descrição da produção de riqueza, esta última definida em termos das
necessidades que se multiplicam pela imitação, hábito e hereditariedade conforme a
civilização progride, a partir da descrição dos fatores produtivos e suas funções. A cada
passo da análise o autor enfatiza sua rejeição a concepções materialistas. No Resumo,
Leroy-Beaulieu (1922, p. 27) classifica o trabalho como produtivo ou improdutivo
conforme a relação existente entre esforços e resultados: algo útil é produtivo, mas se
gerar desperdício de recursos, como a construção seguida de destruição de algo, será
improdutivo. O autor critica também a negligência do trabalho intelectual, que é
colocado no mesmo plano do trabalho braçal. Os serviços imateriais, por sua vez, são
incluídos: não faria sentido considerar o luthier produtivo e o violinista improdutivo (p.
28).
Em sua classificação dos tipos de trabalhos ou indústrias, o economista inclui o
comércio, assim como Say. Leroy-Beaulieu (1922, p. 32) avança em relação a este
último, porém, ao não caracterizar o comércio como a indústria de transporte, mas
incluir na atividade a tarefa de combinar recursos e coordenar as ações dos agentes:
Em si e bem conduzido, o comércio é inegavelmente produtivo. Os comerciantes
podem ser considerados como diretores e organizadores de produção em todo o
mundo. Eles fazem um trabalho de combinação, quanto às capacidades, dos recursos
e necessidades dos diferentes países; um trabalho de distribuir os produtos entre
eles, de modo que o equilíbrio se estabeleça o mais rápido possível em cada lugar

369
entre a oferta e a demanda das diferentes mercadorias. É um trabalho imenso,
delicado e indispensável.76
Além da função organizadora, situada no contexto da distribuição, o empresário cria
combinações de recursos, atividade que aproxima o da formulação moderna do
problema econômico. Mas, a despeito dessa caracterização do comércio, o autor incorre
em uma recaída materialista logo em seguida, ao conceder (p. 37) que a agricultura e
indústria sempre geram novos valores, ao contrário dos serviços. Essa observação revela
a não compreensão do significado pleno do problema alocativo, pois exclui a
possibilidade de desperdício de recursos (lembrando que desperdício define para o autor
atividade não produtiva) na produção de algo menos urgente sob o ponto de vista das
avaliações subjetivas dos agentes. Se empregasse no início do livro a teoria do valor
exposta em seu final, poderíamos ter alimentos ou produtos com utilidade marginal
inferior a algum serviço imaterial.
O capital, por sua vez, como em toda tradição clássica, é associado ao processo
produtivo considerado ao longo do tempo. Nas palavras de Leroy-Beaulieu (1922, p.
44), “O capital representa a solidariedade do passado, do presente e do futuro; ele
mergulha profundamente suas raízes no passado, estendendo seus ramos
indefinidamente para o futuro”77. Pessoas previdentes abdicam de consumo presente
para dedicar esforços à produção de ferramentas que aumentam a produtividade da
produção futura. Como Molinari, Leroy-Beaulieu inclui o capital humano em sua
exposição da teoria.
Originalmente, a poupança assume duas formas: entesouramento de recursos e
invenções (p. 45). Estas últimas ganham importância com o desenvolvimento
econômico. Ao longo da evolução econômica das sociedades, a produção passaria por
três etapas (p. 55): no período de caça e coleta a natureza predominaria; no período
seguinte o trabalho seria predominante e no terceiro o capital e a invenção se tornam
mais relevantes. Conforme as invenções se multiplicam nesse último período, maior é a
importância da atividade empresarial.
Leroy-Beaulieu (1922, p. 64; 1914, vol. 1, p. 305) caracteriza o empresário como o
homem de iniciativa que exerce as funções de conceber processos produtivos, reunir os
elementos necessários para sua concretização e cuidar para que o valor gerado supere o
valor da combinação de recursos empregada.
Essas tarefas são detalhadas na descrição das qualidades necessárias para o exercício da
atividade empresarial. Essas qualidades são divididas por Leroy-Beaulieu (1922, p. 160)
em dois aspectos: o que ele chama de capacidades comercial e industrial. A primeira diz
respeito a capacidade de comprar e vender bem. Tal habilidade não diz respeito a afinco
76
En lui-môme et bien conduit, le commerce est incontestablement productif. Les commerçants peuvent
être considérés comme les directeurs et les organisateurs de la production dans le monde entier. Ils font
un travail de combinaison, quant aux capacités, aux ressources et aux besoins des différentes contrées;
un travail de répartition des produits entre elles, de façon que l'équilibre se réalise aussi promptement
que possible dans chaque lieu entre l'offre et la demande des différentes marchandises; c'est une oeuvre
immense, délicate, indispensable.
77
Le capital représente la solidarité du passé, du présent et de l'avenir; il plonge très profondément ses
racines dans le passé, il étend ses branches indéfiniment dans l'avenir.

370
apenas, mas depende das táticas empregadas e da intuição individual. Esses recursos são
empregados, nos mercados de fatores, na aquisição de insumos onde são mais baratos e
na busca por novos mercados de suprimentos que apresentem condições mais
vantajosos. Nos mercados de bens, tais habilidades são dirigidas à venda em locais e
momentos com melhores preços, descoberta de novos mercados no país ou no exterior.
A capacidade industrial, por seu turno, diz respeito as tentativas de imaginar as
necessidades da sociedade, antecipar preços adequados, combinar processos produtivos
e organizar tarefas de modo a incorrer nos menores custos possíveis.
A atividade empresarial não se confundiria nem com capital, nem com trabalho. O
empresário trabalha em geral mais do que o trabalhador contratado, além de exercer
trabalho intelectual necessário para sua atividade. Ao mesmo tempo, a função
empresarial é analiticamente separada do capital. Se o empresário adquire a confiança
do proprietário do capital, um empreendimento pode ser financiado, embora seja
comum que empresário possua capital próprio. Empiricamente, as funções analíticas de
proprietário de terra, capitalista, trabalhador e empresário se misturariam. Para Leroy-
Beaulieu (1922, p. 105), três quartos dos franceses seriam ao mesmo tempo
trabalhadores, proprietários e capitalistas, já que trabalhadores poupam e possuem
terras.
As funções empresariais tal como descritas acima seriam cruciais para o funcionamento
das atividades econômicas. Leroy-Beaulieu escreve o empresário como o cérebro (1922,
p. 65) ou a alma (1914, vol. 1, p. 218) da atividade produtiva. No entanto, as funções
empresariais seriam ignoradas pela vertente inglesa da economia clássica. Para Leroy-
Beaulieu (1914, vol. 1, p. 308), seria “... uma das glórias da escola econômica francesa
ter desvendado e colocado em relevo a figura do empresário, ao invés desta dualidade
abstrata e morta entre Trabalho e Capital, concebida pela escola inglesa até
recentemente.”78
A desconsideração pela atividade empresarial geraria a falsa impressão de que o
processo produtivo seria mecânico, automático. Para Leroy-Beaulieu (1922, p. 66), tal
concepção caracteriza o pensamento socialista: “Não há nada mais longe do papel do
empresário no quadro pintado por certos socialistas alemães, que querem ver nele
apenas um supervisor, um capataz de escravos, uma espécie de parasita!”79 Perante sua
descrição da atividade empresarial, Leroy-Beaulieu (1914, vol. 2, p. 239) considera
absurdas as teses de Proudhon, Rodbertus e Marx a respeito dos flutuantes lucros
empresariais, confundidos com os ganhos dos proprietários de capital. Para ele, não
seria verdade que empresários se apropriam automaticamente dos frutos dos avanços
científicos, que possibilitam o uso de forças naturais para aumentar a produtividade do
trabalho. A produção, pelo contrário, não seria automática: um capataz desprovido das

78
C'est une des gloires de l'école économique française d'avoir dégagé et mis en-relief la personne de
l'entrepreneur d'industrie, au lieu de cette dualité abstraite et morte du Travail et du Capital
qu'entrevoyait seulement l'école anglaise jusqu'à une date récente.
79
Qu'il y a loin du rôle de l'entrepreneur au tableau qu'en dressent certains socialistes allemands, qui ne
veulent voir en lui qu'un surveillant, un garde-chiourme, une sorte de parasite!

371
funções empresariais descritas acima e que fosse colocado na direção da firma a levaria
rapidamente à falência.
A associação da atividade empresarial não a processos técnicos de produção, mas ao
problema alocativo; isto é, a questão de combinações de recursos em empreendimentos
que geram valores diferentes, além de servir para criticar a concepção econômica
socialista, faz com que o autor avance a teoria da atividade empresarial além do ponto
em que Say a deixou. Se lembrarmos do empresário no referencial plutológico deste
último autor, seu papel efetivamente se reduz a um administrador que implementa na
prática processos descobertos pela ciência. Mas, para Leroy-Beaulieu (1922, p. 67) a
função empresarial não se confunde com a atividade gerencial, mas diz respeito às
questões comerciais envolvidas na solução do problema alocativo; ou como a produção
deve ser dirigida conforme as preferências:
Mesmo um excelente contramestre ou gerente de fábrica difere do empresário; um
diretor precisa apenas de uma parte das qualidades indispensáveis ao homem que
deve adivinhar e acompanhar em suas variações as necessidades e os gostos dos
homens, as oscilações de preços dos produtos, que devem unir o talento do
comerciante com o talento do organizador.80
Passando da descrição da atividade empresarial para a sua remuneração, o lucro, Leroy-
Beaulieu (1922, p. 154; 1914, vol. 2, p. 221) identifica duas teorias incompletas sobre o
assunto: os autores ingleses confundem o lucro do empresário com o juros do
capitalista, ao passo que os autores alemães confundem o lucro com o salário da
administração. Retomando a tese de Cantillon, Leroy-Beaulieu (1922, p. 157; 1914, vol.
2, p. 224-229) afirma que o lucro empresarial é resíduo, pago no final do processo
produtivo depois que os contratos a preços constantes são honrados. O lucro indica
então habilidade empresarial caso a receita supere os custos. Para o autor (1922, p. 158),
a principal fonte de remuneração do empresário é resultante da capacidade de reduzir
preços através do uso de novas combinações
No entanto, acontece que os empresários que têm uma grande atividade, um grande
talento, chegam, seja por uma supervisão muito atenta, por novas combinações de
tarefas, pela invenção de máquinas, ou por outras circunstâncias, a poder reduzir o
preço de custo do seu produto abaixo do preço de custo geral que é a base do preço
de venda habitual.
Quando um empreendedor tem esse mérito e sorte, seu lucro pode aumentar por toda
a diferença ou grande parte da diferença entre seu próprio preço de custo e o de seus
rivais.81
Como a concepção de novas combinações é criadora, os lucros empresariais não seriam
adquiridos à custa da sociedade, como imaginam os socialistas, mas representam o

80
Même un excellent contre-maître ou un directeur d'usine diffère de l'entrepreneur; un directeur n'a
besoin que d'une partie des qualités qui sont indispensables à celui qui doit deviner et suivre dans leurs
variations les besoins et les goûts des hommes, les oscillations de prix des produits, qui doit réunir le
talent du commerçant au talent de l'organisateur.
81
Or, il survient que les entrepreneurs qui ont une grande activité, un grand talent, arrivent, soit par une
surveillance très attentive, soit par de nouvelles combinaisons des tâches, soit par l'invention de
machines, soit par d'autres circonstances, à pouvoir abaisser le prix de revient de leur produit au-
dessous du prix de revient général qui sert de base au prix de vente habituel. Quand un entrepreneur a eu
ce mérite et ce bonheur, son profit peut s'accroître de toute la différence ou d'une grande partie de la
différence entre son propre prix de revient et celui de ses rivaux.

372
próprio ganho para a sociedade, que se manifesta como redução de preços (1922, p.
159).
Nesse ponto, na prática o autor se move da concepção materialista plutológica para o
subjetivismo catalático. Esse movimento é impulsionado, no caso de Leroy-Beaulieu, na
teoria pelo uso do referencial utilitarista, que associa meios e fins e na prática pelo
desejo de contrariar a tese socialista que dissocia da qualidade das decisões individuais
a capacidade de bens materiais gerarem rendimentos.
Tendo em vista sua concepção de Economia que privilegia a invenção de novas
combinações, Leroy-Beaulieu naturalmente se contrapõe aos temores dos economistas
ingleses a respeito da iminência dos limites ao crescimento econômico. Embora a
quantidade de terra não possa ser aumentada indefinidamente, como o trabalho e o
capital, ela se expande pela descoberta de novas terras e indiretamente pela invenção.
Para o autor (1922, p. 98), algo que de fato existe, mas cuja existência ignoramos,
funciona como se de fato não existisse antes de sua descoberta. Incorporando a
inventividade humana no modelo de ação econômica, evita-se incorrer no erro de
extrapolar tendências a partir do conhecimento passado.
As previsões baseadas na teoria inglesa da renda da terra desenvolvida por autores como
Malthus, Ricardo, West e Torrens, assim como a proposta georgista de financiamento
do estado via tributação da renda da terra, são rejeitadas por Leroy-Beaulieu (1922, p.
133), tendo em vista que a superfície do globo não é densamente populada, os custos de
transporte são continuamente reduzidos, o que diminui significativamente as vantagens
locacionais e a existência de significativo progresso das técnicas agrícolas. Segundo o
autor, historicamente áreas na Inglaterra avaliadas como inferiores em termos de
produtividade se revelaram posteriormente mais produtivas. A crença de que a renda da
terra estaria crescendo no final do século dezenove e a relevância empírica da teoria da
renda para o futuro são postas em questão. Sobre esse assunto, Leroy-Beaulieu (1922, p.
99-100) arrisca sua própria previsão:
... no decorrer do próximo século não faltará terra ao homem; que, daqui até um
tempo incalculável, as minas de carvão ou metais não serão esgotadas; que o
progresso da ciência agrícola ainda tem diante de si uma ampla carreira para
multiplicar a subsistência. Assim, por muitos séculos, a natureza não faltará para a
humanidade mais do que do que o trabalho e o capital. A produção pode aumentar
por um longo período para cada um desses três fatores. 82
Sobre repartição da riqueza, o economista francês direciona sua crítica à John Stuart
Mill. Repetindo as teses de Molinari sobre o tema, Leroy-Beaulieu (1922, p. 105-106)
afirma que existem leis naturais sobre distribuição; ou seja, leis válidas em todo tempo e
local. Historicamente, toda vez que se fixa preços observam-se os mesmos efeitos.
Legislação voltada a esse objetivo agiriam sempre como fatores perturbadores, não
reguladores.

82
... dans tout le courant du prochain siècle la terre ne manquera pas à l’homme; que, d'ici à un temps
incalculable, les mines de houille ou de métaux ne seront pas épuisées; que le progrès de la science
agricole a encore devant lui une ample carrière pour mulplier les subsistances. Ainsi, d'ici à bien des
siècles, la nature ne manquera pas plus à l'humanité que le travail et le capital. La production pourra
s'accroître longtemps encore du chef de chacun de ces trois facteurs.

373
A manutenção da prosperidade, por outro lado, requereria o concurso das garantias do
direito de propriedade e da liberdade. Invocando a análise de Charles Comte e Dunoyer,
o autor esboça a progressão histórica descrita por esses autores, segundo a qual o
desenvolvimento das civilizações é acompanhado da ampliação da liberdade.
Como sabemos, na tradição clássica o tema da distribuição da riqueza discute os
determinantes das remunerações dos fatores produtivos. Como já tratamos do lucro do
empresário e da renda da terra, falta dizermos algo sobre os salários e os juros para
completarmos o tópico. Para isso, é interessante mencionar algo mais geral sobre o
tratamento geral dado pelo autor à distribuição, ou repartição, utilizando o termo
preferido por ele. Leroy-Beaulieu (1881) dedica um livro ao assunto. Nesse livro, seu
autor se opõe às consequências distributivas da teoria ricardiana. Para essa teoria, a
renda da terra se eleva, ao passo que os salários permaneceriam no nível de subsistência
e os juros são reduzidos. A tendência a um aumento da desigualdade de renda derivado
dessa teoria é criticada nesse livro.
Para Leroy-Beaulieu (1881, p. 547) o progresso da civilização não favoreceria os
proprietários, graças à operação de fatores como a concorrência imposta pelos novos
países que se desenvolvem e pela redução dos custos de transportes derivado do
progresso naval e ferroviário.
Quanto à remuneração do trabalho, noções como o fundo de salários utilizado por Mill,
que limita a parcela do produto que pode ser distribuída aos trabalhadores, a lei de
férreo dos salários de Lassale, que restringe o salário ao mínimo de subsistência e a
crença de Smith na dependência do trabalhador em relação a seus empregadores
perderiam o sentido diante da abundância de capital, das invenções e do aumento da
instrução que se manifestam diante da liberdade comercial (p. 552).
As teses encontradas no seu Ensaio sobre a Repartição de Riqueza são repetidas no
Tratado e no Resumo. No sexto capítulo da segunda parte desta última obra, a tese de
que salários tendem ao nível de subsistência é disputada histórica e teoricamente.
Leroy-Beaulieu (1922, p. 174) argumenta que aumentos da produtividade do trabalho
derivados do progresso técnico e uso de capital em países com liberdade de transações
elevam a demanda por trabalho. Os salários se reduziriam apenas se a população
crescesse mais do que as causas listadas acima.
Por fim, os juros, explicados em termos da produtividade do capital, apresentariam
tendência de queda. O aumento da poupança e da segurança das transações reduziriam
os juros, que se moveriam na direção oposta mediante a ação das invenções, imigração
do capital para novos países, guerras e despesas de luxo. A constância maior do
primeiro conjunto de fatores seria responsável pela alegada tendência de redução.
Apenas depois de estudar os determinantes dos preços dos fatores produtivos Leroy-
Beaulieu trata da teoria do valor, na parte dedicada à circulação de riqueza. Essa ordem
de exposição revela que o autor ainda se atém ao referencial clássico, embora incorpore
no Tratado parte dos desenvolvimentos da teoria subjetiva do valor ocorridos a partir da

374
revolução marginalista. Vejamos até que ponto os avanços da teoria da época são
considerados.
A discussão mais completa do tema na obra do autor se encontra no primeiro livro
(troca e valor) da quinta parte (circulação) no terceiro volume do Tratado. Na discussão
sobre o valor, procura-se conciliar o referencial da escola clássica francesa com os
trabalhos sobre o assunto desenvolvidos por Jevons e a autores da escola austríaca.
Leroy-Beaulieu (1914, vol. 3, p. 16) cita explicitamente Karl (sic) Menger, Wieser,
Böhm-Bawerk e Sax. Embora cite bastante Marshall nos capítulos iniciais da obra,
quando trata de metodologia, não discute a exposição da teoria do valor feita por esse
autor, como tampouco discute Walras, cuja abordagem matemática é rejeitada, como
vimos no nosso capítulo sobre metodologia.
Um primeiro elemento emprestado de Jevons e dos austríacos diz respeito à natureza
subjetiva do valor. Embora reconheça um elemento objetivo – a dificuldade de obtenção
de um bem – o elemento mais fundamental do valor seria a importância que cada
homem atribui a um bem particular.
A descrição do comportamento de um agente isolado (Robson Crusoé) feita por Leroy-
Beaulieu (1914, vol. 3, p. 25) ilustra a fundamentação subjetivista do valor, feita em
termos de planos de ação individuais:
Ele [Robson] compara suas necessidades e desejos uns com os outros e julga qual,
com sua atividade necessariamente limitada, deveria priorizar; ele também contrasta
os vários meios de satisfazer suas necessidades ou desejos considerados mais
urgentes, e se pronuncia sobre a escolha desses meios. 83
Além de concordar com a caracterização da essência do fenômeno econômico (escassez
e escolha) segundo a teoria moderna, essa descrição é compatível com a aprovação por
parte de Leroy-Beaulieu (p. 16) da tese de Turgot, aceita por Molinari e rejeitada por
Courcelle-Seneuil, de que o fenômeno do valor seria anterior às trocas: a comparação
(valoração) de alternativas diante da escassez também se manifesta nas escolhas de um
agente isolado.
Como ocorre com tantos outros economistas desde a revolução marginalista, o termo
“utilidade” é rejeitado por Leroy-Beaulieu (p. 17), pois tende a sugerir ou ser
interpretado como algo diferente da apreciação subjetiva:
Quase todos os economistas posteriores reduziram a noção de valor à noção de
utilidade, que é duplamente imprecisa; transformando o valor, de um fenômeno
puramente subjetivo que é, em um fenômeno objetivo, para fazê-lo, por assim dizer,
residir nas coisas e em sua própria natureza, e não na apreciação do homem.84

83
Il comparait ses besoins et ses désirs entre eux et jugeait auquel, avec son activité nécessairement
limitée, il devait donner la priorité ; il rapprochait aussi les divers moyens de satisfaire celui de ses
besoins ou de ses désirs qu'il considérait comme le plus urgent, et il se prononçait sur le choix de ces
moyens.
84
Presque tous les économistes postérieurs ont ramené la notion de valeur à la notion d'utilité, ce qui est
doublement inexact; c'était transformer la valeur, d'un phénomène purement subjectif qu'elle est, en un
phénomène objectif, la faire résider en quelque sorte dans les choses et dans leur nature propre, plutôt
que dans l'apréciation de l'homme.

375
Outros aspectos derivados da fundamentação do valor na escolha subjetiva são
enfatizados pelo autor: em primeiro lugar, uma condição necessária para que se
manifeste o valor é que o bem ocorra em quantidades limitadas (p. 18); em seguida,
nota-se que valor não existe em si mesmo, mas é sempre uma comparação entre
alternativas, de maneira que o “valor é uma ordem de preferência, um tipo de
classificação que o homem estabelece entre os diferentes objetos com os quais está em
contato e aos quais atribui importância” (p. 26) e, em terceiro lugar, o valor não se
refere a um bem como uma categoria, mas a porções específicas do mesmo, que façam
sentido em uma comparação feita por algum indivíduo. Essa última observação é
utilizada para dissolver o paradoxo do valor.
A descrição da variação do valor diante de quantidades variáveis dos bens segue a
exposição de Jevons e Menger. Inicialmente o autor (p. 28) ilustra a lei da diminuição
do grau final de utilidade com o aumento da disponibilidade de um bem. Essa lei é
associada à formulação particular dada por Molinari, segundo a qual as variações nos
preços seriam mais do que proporcionais do que as variações das quantidades (p. 29).
Em seguida menciona-se como ocorre saciedade quando a quantidade do bem aumenta
(p. 33). A saciedade, por seu turno, se relaciona com a substituição ou concorrência
entre os desejos conforme bens se tornam caros ou alguma necessidade é saciada (p.
33).
Os austríacos teriam refinado a doutrina: “Charles” Menger mostra que a importância de
uma porção concreta de um bem se relaciona com a menor satisfação perdida com sua
subtração, ou seja, se um agente perder uma unidade de um bem, o valor da mercadoria
se relaciona a necessidade menos importante que deixa de ser satisfeita (p. 35). Por fim,
o fenômeno da substituição (ou da escolha diante da escassez) é ilustrado através da
reprodução da tabela que Menger utiliza para ilustrar sua teoria do valor.
Da exposição da teoria, Leroy-Beaulieu extrai algumas conclusões relativas à demanda:
a primeira mostra que o preço diminui conforme a quantidade ofertada aumenta (p. 42)
e a segunda, utilizando a formulação de Molinari, mostra que o aumento da oferta de
um bem reduz seu preço mais do que proporcionalmente, liberando renda para a
aquisição de bens que satisfazem outras necessidades (p. 43).
O autor, porém, não desenvolve outras implicações da teoria. Embora a primeira lei de
Gossen (utilidade marginal decrescente) baste para resolver o paradoxo do valor, Leroy-
Beaulieu não desenvolve a segunda lei (maximização de utilidade implica em igualdade
de utilidades marginais entre alternativas). Aplicadas a um modelo de troca entre dois
grupos de indivíduos, tais leis explicariam, abstraindo-se efeitos renda, a convergência
das apreciações marginais subjetivas ao preço de equilíbrio.
Dada a teoria subjetiva do valor, trocas não teriam sentido sem valores diferentes, como
ensina Condillac; mas, por outro lado, a justiça nas trocas requereria igualdade de
valores, segundo a crença de Aristóteles. O pressuposto de igualdade de valor nas
trocas, adotado na escola clássica francesa de Say à Leroy-Beaulieu, é preservado então
por este último autor através da manutenção da distinção entre valor de troca e valor de
uso, reservando o primeiro para a noção de preço e o segundo para o valor subjetivo do

376
bem para o indivíduo. Preservando a nomenclatura antiga, a noção de preço de reserva é
expressa (p. 45) pela afirmação de que o valor de uso é o limite máximo do valor de
troca. No mesmo espírito, o conceito de ganhos de trocas é expresso por Leroy-Beaulieu
(1914, vol. 3, p. 23) do seguinte modo:
Em cada troca, os dois negociantes trocaram valores de troca iguais, mas cada um
deles adquire ou pensa adquirir um objeto que tem para ele um valor de uso maior
que o objeto que ele cede a ele. Assim, a troca tem uma razão de ser, e normalmente
a troca, deixando cada um dos negociantes na mesma situação em termos de valores
de troca, deve modificar vantajosamente a situação de cada um deles do ponto de
vista dos valores de uso.85
Embora os ganhos de troca possam ser expressos dessa maneira, a manutenção da
distinção antiga dissocia o preço de equilíbrio de avaliação subjetiva, dificultando a
interpretação do preço pago como custo de oportunidade ou utilidade preterida. Isso
leva Leroy-Beaulieu (1914, vol. 3, p. 24-25) a buscar outra explicação para custos:
Não é menos importante preservar o valor em troca que, nos fenômenos da vida
social, constitui a mais usual manifestação de valor. O valor em uso é a importância
que uma pessoa atribui à posse de um determinado objeto; este valor representa a
quantidade de outros objetos que uma pessoa estaria disposta a desistir para a
aquisição do objeto específico que tem em vista. O valor em troca é a capacidade de
um objeto de realmente trocar por uma certa quantidade de outros objetos. O valor
em uso é unicamente subjetivo, o valor em troca envolve a concordância de pelo
menos duas vontades e geralmente contém um elemento objetivo, que será discutido
abaixo.86
Tal explicação é dada pela dificuldade de aquisição (p. 44). Para o autor, nas trocas o
valor deixaria de ser inteiramente subjetivo.
Com isso, a despeito do uso do elemento marginalista, recaímos o modelo empregado
por todos os economistas da tradição clássica francesa, que parte da utilidade como base
do valor, mas com o preço de equilíbrio explicado em última análise pelo custo
objetivo. Se aliarmos isso à permanência do modelo plutológico, com o ciclo de
produção, distribuição e destruição de riqueza, teremos motivos para classificar Leroy-
Beaulieu como um economista clássico tardio ou como um autor de transição, cujas
obras contém elementos característicos da teoria antiga, mas que emprega diversos
aspectos da teoria moderna.

85
Dans chaque échange les deux échangistes troquent bien des valeurs d'échange égales, mais chacun
d'eux acquiert ou pense acquérir un objet qui a pour lui une valeur d'usage plus grande que nen a pour
lui l'objet qu'il cède. Alors échange a une raison d'être, et l'échange, tout en laissant chacun des
échangistes dans la même situation au point de vue des valeurs d'échange, doit modifier avantageusement
la situation de chacun d'eux au point de vue des valeurs d'usage.
86
Il ne l’est pas moins de conserver la valeur en échange qui, dans les phénomènes de la vie sociale,
constitue la manifestation la plus habituelle de la valeur. La valeur en usage est l’importance qu’une
personne attache à la possession d'un objet déterminé; cette valeur représente la quantité d'autres objets
qu'une personne serait disposée à abandonner pour l’acquisition de l’objet précis qu’elle a en vue. La
valeur en échange est la faculté qu'a réellement un objet de s'échanger contre une certaine quantité
d'autres objets. La valeur en usage est uniquement subjective, la valeur en échange comporte le concours
d'au moins deux volontés, et elle renferme en général un élément objectif, dont il sera question plus loin.

377
6.4.2. Economia e Estado em Leroy-Beaulieu: o cálculo econômico no
socialismo e a análise positiva do estado
A parte final do Tratado, como de praxe, discute questões relacionadas ao estado. Nessa
obra, existem três capítulos, dedicados à discussão da natureza e funções do estado, do
socialismo e dos impostos. Os dois primeiros temas foram objeto de livros próprios. O
Estado Moderno de Leroy-Beaulieu (1900) é uma das primeiras obras dedicadas
exclusivamente à análise do estado e que inova ao não se restringir à discussão das
funções ideais do estado, incluindo a investigação do estado real, sob o ponto de vista
da lógica de funcionamento da ação coletiva. O socialismo, por sua vez, é estudado por
Leroy-Beaulieu (1885) em O Coletivismo. Além de examinar criticamente diversas
teses socialistas, encontramos nessa obra uma versão do argumento da impossibilidade
do cálculo econômico socialista, desenvolvido na segunda década do século vinte. Nesta
seção, abordaremos esses dois tópicos, iniciando pelo segundo.
O Coletivismo de Leroy-Beaulieu aborda inúmeros aspectos do socialismo, como seu
conceito, as idéias de alguns autores, como Marx, Lassalle, Shaffle e Henri George, os
diferentes tipos de socialismo e questões particulares, como considerações sobre a
evolução da propriedade na Rússia. A contribuição mais importante da obra, que trata
da crítica ao funcionamento do socialismo sem um sistema de preços, é também
discutida na oitava parte do Tratado. Utilizaremos aqui essa última fonte.
Discute-se inicialmente nesse livro a noção de socialismo. Antes de apresentar sua
própria definição, o autor revê algumas definições prévias. Estas são baseadas ou na
descrição dos problemas identificados com as economias concretas, como desigualdade
de condições e de distribuição, ou nos fins almejados pelos socialistas, como união e
justiça ou ainda nos meios propostos para alcançá-los, como abolição de propriedade
privada de recursos produtivos. Leroy-Beaulieu (1914, vol. 4, p. 792), por sua vez,
define socialismo como
... um sistema que recorre à restrição do Estado, uma restrição da regulamentação ou
uma restrição da tributação, para trazer entre os homens uma condição menos
desigual do que aquela que ocorre espontaneamente sob o regime da pura liberdade
dos contratos.87
A definição inclui os objetivos e os meios propostos, estes últimos envolvendo ação
estatal. Como veremos mais adiante, o livro do autor sobre o estado moderno divide a
ação estatal em aspectos regulatórios e tributários. Por isso, a distinção aparece na
definição de Leroy-Beaulieu.
Como o emprego da ação estatal é o elemento comum do pensamento socialista, Leroy-
Beaulieu (p. 793) identifica uma gradação de tipos de socialismo, do parcial ao
coletivismo completo. Sendo assim, a crítica fundamental apresentada pelo autor se
aplica em diferentes graus conforme tenhamos formas mais ou menos completas do
fenômeno. Como na economia institucional esposada pelos clássicos franceses a
produção de riqueza é maior ou menor segundo a extensão da garantia à propriedade

87
un système qui recourt à la contrainte de l’État, contrainte de réglementation ou contrainte de
taxation, pour amener entre les hommes une moindre inégalité des conditions que celle qui se produit
spontanément sons le régime de la pure liberté des contrats.

378
privada, segue-se naturalmente da crítica do autor (p. 794) que todas as formas de
socialismo apresentariam a mesma consequência: a redução da liberdade, da
responsabilidade e da iniciativa dos produtores e a consequente redução da
prosperidade.
A Economia de Leroy-Beaulieu é de fato toda marcada pela crítica ao socialismo. Em
sua essência, o autor procura mostrar em cada parte da sua obra como a riqueza não
diria respeito à posse de objetos, mas sim à geração de valor pela combinação criativa
de fatores em novas formas úteis. O próprio autor lista (p. 795) os elementos presentes
em diversos pontos de seu tratado que de fato implicam em uma crítica ao socialismo:
da afirmação de leis universais à crítica da identificação do interesse pessoal com
egoísmo, passando pela explicação das funções do capital, da atividade empresarial ou
da permanência da produção em pequena escala.
Ao descrever a função empresarial, por exemplo, o autor (p. 811) procura mostrar que a
riqueza é tributável em essência ao que chama de espírito de invenção e combinação,
não ao trabalho. O uso da teoria do valor trabalho pelos socialistas é comparada por
Leroy-Beaulieu (1914, vol. 4, p. 819) a um ensaio de orquestra: “Quando vemos
pedreiros, mecânicos ou outros exclamarem que é devido apenas a eles a obra na qual
trabalharam, parece que estamos na presença de instrumentistas que acreditam que
apenas eles fizeram um concerto, sem considerar o compositor, o maestro, etc”.88
Embora as objeções usuais contra o socialismo sejam listadas, como a questão dos
incentivos, associados à responsabilidade e propriedade ou ainda a relação entre
coletivismo e liberdade, como por exemplo a impossibilidade de liberdade de profissões
com empregador único (p. 808), a crítica que se destaca diz respeito ao problema da
similitude formal entre sistemas econômicos que mencionamos no nosso exame de
Molinari: na ausência de um sistema de preços, como o problema alocativo seria
resolvido?
Em uma seção intitulada “a falta de bússola e direção para a produção”, Leroy-Beaulieu
elabora um pouco mais o argumento que, neste capítulo, já encontramos nas obras de
Courcelle-Seneuil e Molinari. Esses três autores progressivamente desenvolvem versões
do argumento da impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo elaborado por
Mises, sem as complexidades retiradas da teoria do capital e da plena formulação do
problema alocativo que este último utiliza em seu argumento.
Para Leroy-Beaulieu, a supressão dos mercados, das bolsas, do crédito, da moeda, da
negociação de preços, da especulação e da publicidade, ou seja, de todo fenômeno
associado às forças incoerentes e anárquicas da competição, deveria ser acompanhada
por alguma indicação sobre a maneira como uma sociedade organizada segundo
princípios socialistas resolveria o problema alocativo. Leroy-Beaulieu (1914, vol. 4, p.
809) expõe esse problema do seguinte modo:

88
Quand on aperçoit des maçons, mécaniciens ou autres s'écrier qu'ils ont fait à eux seuls l'oeuvre à
laquelle ils ont travaillé, il semble que l'on se trouve en présence de musiciens exécutants qui croiraient à
eux seuls avoir fait un concert, sans tenir compte du compositeur, du chef d'orchestre, etc.

379
O coletivismo é incapaz de resolver as seguintes questões: Como, com meios
autoritários e centralizados de direção e investigação, a produção seria proporcional
às necessidades de consumo? Como as comissões de inquérito e os comitês diretivos
de produção poderiam realizar sua enorme tarefa?
Seja qual for o grau de centralização das decisões econômicas no socialismo que se
imagine, o problema da similitude formal permanece. Deve-se portanto explicitar como
se resolve em uma sociedade socialista o mesmo problema que o autor descreve em uma
economia de Robinson Crusoé: como comparar necessidades e, diante da escassez,
saber qual deveria ser priorizada, levando em conta as diversas formas de satisfazer
cada uma delas para que se escolha os meios que devem ser empregados?
Se trivial em uma economia de Robinson Crusoé, o problema se torna algo mais
complexo em uma economia desenvolvida, com muitos indivíduos e alternativas. Para o
autor (p. 810), na ausência de um sistema de preços de mercado, o único guia para a
tomada de decisões alocativas seria o uso de estatísticas.
As estatísticas, porém, além de não precisas, seguiriam os fatos de longe. Com isso
supõe-se que se queira expressar o fato de que estatísticas são agregados que mascaram
diferenças entre elementos. Diante das limitações das descrições sumárias fornecidas
pelas estatísticas, afirma o autor, sempre ocorre espaço para diferentes interpretações
sobre a realidade em questão.
Essa observação nos leva a um elemento importante do problema que não escapa à
percepção do autor. Sob liberdade, isto é, sob descentralização, comerciantes e
industriais diferem entre si em termos de temperamento e percepção, sendo uns mais
otimistas e audaciosos que outros. Diante da divergência de expectativas individuais,
Leroy-Beaulieu (p. 810) nota que erros derivados da especulação comercial e produtiva
não seriam integrais, mas locais, além de serem corrigidos mediante o uso do sistema de
preços. Sob planejamento central, pelo contrário, todos comungam da mesma visão e as
consequências dos erros são mais amplas quando ocorrem.
Como tantas vezes é exposto na história da disciplina, desperdícios são consequência
inevitáveis do aprendizado sob a hipótese de conhecimento falível, mas condenados sob
a hipótese rival.
Na ausência do sistema de preços de mercado, munidos apenas de estatísticas, os
agentes decisórios no socialismo não teriam como avaliar as alternativas sobre o que
deve ser produzido. Leroy-Beaulieu (1914, vol. 4, p. 809) utiliza nesse sentido a mesma
metáfora mais tarde empregada por Mises, que compara preços com uma bússola:
As variações de preço, sob o regime de concorrência, são índices muito mais
confiáveis e mais rápidos do que as estatísticas mais bem feitas; essas variações de
preços, com o livre comércio, acionam quase que automaticamente as molas, sob um
sentido compensadoras, que fazem fluir ou que se produza imediatamente a
mercadoria cujo preço indica sua insuficiência, ou deslocam e restringem a produção
daquelas cujas variações de preço indicam superabundância. O preço, como
mostramos, é o aparato regulador da produção e do consumo. O regime coletivista,

380
suprimindo o preço e tendo apenas estatísticas como recurso, deixa a produção sem
bússola.89
Afirmamos na seção anterior que Leroy-Beaulieu é um autor de transição, que não
aplica a nova teoria do valor de forma consistente ao problema da imputação do valor
aos fatores produtivos. Sendo assim, a discussão do que substituiria os preços no
socialismo é separada em produção e distribuição. Antes de discutir o argumento
exposto acima, Leroy-Beaulieu dedica uma seção para critica a inexistência de alguma
regra de repartição de riqueza nas obras dos autores socialistas. Se Marx silenciaria
sobre regras de conversão entre trabalho qualificado e sobre as demais características do
trabalho, Fourier ao menos sugere uma regra arbitrária que reparte a produção entre
trabalho, capital e talento nas proporções 5/12, 4/ 12 e 3/12 do produto, respectivamente
(p. 804)
Considerando esse problema, o autor conclui que a substituição dos preços de mercado
pela fantasia dos chefes ou por um esquema de bônus proporcional ao tempo trabalhado
reestabeleceria no socialismo a desigualdade e não impediriam a manifestação de
empréstimos a juros, mesmo proibidos, ou ainda a especulação com estoques de
mercadorias com demanda variável.
Depois de visitar a formulação do argumento do cálculo econômico no socialismo,
examinaremos a análise econômica do estado, abordado na obra O Estado Moderno,
provavelmente um dos primeiros livros de economia dedicados exclusivamente ao setor
público.
Em geral a última parte dos tratados econômicos do século dezenove tem como tema o
estado, que investiga quais são suas funções obrigatórias e opcionais e na seqüência
como os gastos públicos são financiados, incluindo a discussão sobre incidência
tributária e as distorções econômicas causadas por cada tipo de tributo. O Tratado de
Leroy-Beaulieu não foge à regra, com sua oitava e última parte contendo três capítulos,
que versam sobre estado, socialismo e impostos. O que distingue o tratamento dado ao
estado, porém, é a pretensão de estudá-lo sob uma ótica empírica, não ideal.
No livro dedicado ao tema e no capítulo do Tratado que sumariza sua discussão, Leroy-
Beaulieu distingue o estado real do estado idealizado, pretendendo discutir o segundo
através de análise que não desconsidera os fenômenos associados ao primeiro. Tal
projeto não é herança apenas da tradição crítica que encontramos em Gournay e Turgot,
mas flui principalmente das crenças metodológicas do autor. Leroy-Beaulieu é o
economista que segue mais fielmente os preceitos metodológicos defendidos por Say. A
pretendida rejeição de conceitos a priori em favor da observação o direciona ao estudo

89
Les variations de prix, sous le régime de la concurrence, sont des indices bien plus sûrs et plus prompts
que les statistiques les mieux faites; ces variations de prix, avec le commerce libre, mettent quasi
automatiquement en mouvement les ressorts, en quelque sorte compensateurs, qui ou bien font affluer ou
font produire immédiatement la marchandise dont le prix indique l'insuffisance, ou font déplacer les
existences et restreindre la production de celle dont ces variations de prix indiquent la surabondance. Le
prix, comme nous l'avons démontré , est l'appareil régulateur aussi bien de la production que de la
consommation. Le régime collectiviste, supprimant le prix et n'ayant plus que la statistique comme
secourt, laisse la production sans boussole.

381
dos fenômenos associados ao setor público tal como se manifestam de fato nos estados
modernos, com seus defeitos e vantagens.
Utilizaremos aqui a edição traduzida para o inglês, que é dividida em três partes 90: na
primeira, estuda-se o conceito de estado e qual o papel atribuído a ele nas sociedades
modernas; na segunda, examinam-se os defeitos e as vantagens associadas ao
funcionamento de instituições públicas e na terceira discutem-se as funções essenciais
do estado. Destacaremos em seguida os elementos centrais dessa análise.
O primeiro é evidentemente o ponto de partida metodológico. Leroy-Beaulieu (1891, p.
5) afirma que não pretende estudar o “estado em si”, geralmente associado a alguma
concepção ideal preferida pelo analista, mas o estado moderno tal como ocorre nos
países desenvolvidos. “O que caracteriza o estado moderno?” é para Leroy-Beaulieu
(1891, p. 64) a pergunta adequada sob o ponto de vista de seu quase-historicismo
aplicado ao setor público:
Não devemos buscar a resposta em qualquer concepção puramente filosófica.
Somente através do exame de fatos históricos, da evolução humana, do estudo atento
da maneira de viver entre os diferentes povos, e do movimento e progresso da
sociedade, podemos descobrir com alguma clareza qual é o verdadeiro Estado
concreto, que é, além disso, uma coisa muito diferente em diferentes países e em
momentos diferentes.91
Embora o estudo do estado moderno não deva ser pautado por filosofias políticas, tal
estudo deve examinar tais filosofias, já que idéias têm consequências (p. 27), de modo
que as crenças sobre o papel do estado influenciam a evolução do mesmo. Sendo assim,
Leroy-Beaulieu (1891, parte 1, cap. 2) ensaia uma interessante história da transformação
das mudanças ideológicas modernas, do niilismo governamental dos fisiocratas ao
endeusamento do estado por parte dos autores alemães, passando por uma posição
intermediária esposada por J. S. Mill e M. Chevalier e que ele próprio defenderia.
Para o autor (p. 10), entre o final do século dezoito e o começo do seguinte, os
economistas se opuseram ao crescimento do estado, como ilustra o laissez-faire de
Gournay. A revolução francesa, apesar daquilo que ele classifica como acidentes, não
teria sido hostil à liberdade. O liberalismo se desenvolve ainda na Alemanha, com Kant
e Humboldt. Os sucessores dos primeiros liberais, porém, teriam exagerado as crenças
originais: o estado passa a ser visto como um mal necessário e até mesmo como uma
úlcera, como Molinari o caracteriza.
A industrialização trazida pela liberdade, porém, teria tornado o liberalismo puro
impossível (p. 13), pois seria necessário expropriações para viabilizar ferrovias e
regulações de segurança e saúde pública. Para Leroy-Beaulieu (1891, p. 14), “Assim, a

90
Leroy-Beaulieu (1891). Na terceira edição francesa, o livro de Leroy-Beaulieu (1900) é
significativamente aumentado, com novas partes dedicadas ao exame de obras públicas e municípios,
religião, educação, regulação do trabalho e colonização. As partes iniciais, que expõem os argumentos
fundamentais da obra, porém, permanecem, o que permite que utilizemos a versão prévia em inglês.
91
We must not seek the answer in any purely philosophic conception. Only by the examination of
historical facts, of human evolution, the attentive study of the fashion of living among different peoples,
and of the movement and progress of Society can we discover with any degree of clearness what is the
actual concrete State, which is, moreover, a very different thing in different countries and at different
times.

382
nova força a vapor, que iria desenvolver tão fortemente o espírito de empreendimento
no homem, forçou o Estado a sair da posição de abstenção que havia mantido durante
meio século em torno de questões industriais.”92
Embora a tendência à expansão do estado tenha sido moderada na Inglaterra, como
ilustra o pensamento de Mill e a crítica de Spencer, na Alemanha o estado passa a ser
visto como entidade com personalidade própria, responsável por dirigir a sociedade.
Segundo a descrição de Leroy-Beaulieu (1891, p. 23), “... os escritores alemães caem
em uma espécie de êxtase quando começam a tratar do Estado. Eles proferem gritos de
admiração e adoração em vez de fornecer argumentos ou estabelecer definições.”93
Diante desse quadro, o autor se coloca ao lado de J. S. Mill e seu sogro, Michel
Chevalier, como um defensor de uma posição intermediária entre os extremos de
niilismo e idolatria estatal, que associa respectivamente aos economistas franceses e aos
socialistas. Na descrição do próprio Leroy-Beaulieu (1891, p. 66), “... pode-se ver que
embora eu deseje impedir que o Estado espalhe suas energias ao infinito, estou
preparado para permitir-lhe um papel considerável.”
Na interpretação do autor, quais seriam os problemas associados aos dois extremos?
Iniciemos com os problemas do excesso de estado. Depois de documentar o crescimento
dos estados europeus, o autor argumenta que essa expansão resulta em perda de
liberdade (p. 40). Argumentando em termos empíricos, as liberdades individuais seriam
mantidas apenas nos países nos quais a esfera estatal é limitada.
Lembrando a filosofia política hayekiana do século seguinte, Leroy-Beaulieu (1891, p.
41) menciona o contraste entre a demanda generalizada por centralização com a
ausência de acordo sobre o que cada um recomendaria que seja feito com esse poder
central:
Mas antes de entrar no estudo de todas essas questões, será bom dissipar, se
possível, certos preconceitos sobre o tema do Estado, e examinar brevemente a
essência, a origem, as capacidades e as fraquezas desse ser misterioso, cujo nome é
pronunciado com reverência por tantos aspirantes a sábios e a quem todos os
homens invocam, mas sobre o qual todos discordam e que parece ser a única
Divindade pela qual o mundo moderno manterá qualquer confiança ou respeito. 94
A expansão do aparato estatal e do número de funcionários públicos, além disso, seria
acompanhada pelo esgotamento orçamentário. Contrariando a tese de que esse
fenômeno estaria associado ao financiamento militar, o autor mostra que ele também
ocorreu com os orçamentos municipais.

92
Thus the new force steam which was to develop so strongly the spirit of enterprise in man, forced the
State to come out of the position of abstention which it had held for half a century towards industrial
questions.
93
The result is that German writers fall into a sort of ecstasy when they begin to treat of the State. They
utter cries of admiration and adoration instead of producing arguments or stating definitions.
94
But before entering upon the study of all these questions, it will be well to dispel, if possible, certain
prejudices on the subject of the State, and to examine briefly the essence, the origin, the capacities, and
the weaknesses of this mysterious being whose name is pronounced with reverence by so many would-be
sages, whom all men invoke, but about whom they all disagree, and who appears to be the only Divinity
for which the modern world will retain any confidence or respect.

383
Um efeito curioso do esgotamento orçamentário que acompanha a expansão do estado
moderno diz respeito a uma mudança do padrão de atuação dos governos: diante da
crescente dificuldade de financiar projetos com os recursos arrecadados, os governantes
passam a regular o comportamento alheio, já que esse tipo de medida em geral transfere
custos para terceiros. Na descrição de Leroy-Beaulieu (1891, p. 30-31):
O déficit orçamentário é o único freio que limita as ambições e expansões do Estado
em nossos dias. Mas, sendo mais ou menos limitado em sua ação, vinga-se por um
exercício cada vez mais extenso de sua vontade, isto é, de seu poder regulador que,
evidentemente, não custa nada, ou quase nada.95
Um século mais tarde, já na era do déficit público crônico, na impossibilidade de
financiar grandes obras que marquem suas realizações, prefeitos com frequência apelam
ao proibicionismo, isto é, à regulação das ações de terceiros. Esse tipo de medida pode
funcionar com a principal realização de seu governo, servindo como vitrine de sua
gestão, desde que a maioria dos eleitores não se reconheçam como aqueles que arcarão
com os custos da medida. Esse fenômeno poderíamos chamar de Lei de Leroy-Beaulieu.
Passemos agora ao extremo oposto. A existência de provisão estatal de bens públicos é
explicada por Leroy-Beaulieu (p. 82) nos mesmos termos que Molinari. Inicialmente os
serviços públicos como segurança interna e externa eram exercidos por todos, mas a
expansão da divisão do trabalho gradualmente faz com tais serviços sejam providos a
um custo menor através da especialização. Para Leroy-Beaulieu (1891, p. 74)
gradualmente o estado assume novas funções:
Uma série de serviços que uma sociedade livre e flexível não seria incapaz de
desempenhar para si mesma, que de fato, por muitos séculos, ela própria realizou,
caiu aos poucos nas mãos do Estado, simplesmente porque ele poderia realizá-los
melhor, mais economicamente, mais completamente, com menos esforço e menos
despesas.96
Além disso, Leroy-Beaulieu (1914, p. 768) menciona uma definição genérica de bens
públicos. Ao contrário das necessidades gerais, como alimentos, que todos necessitam
mas podem ser ofertadas privadamente, as necessidades comuns requereriam a
contribuição de todos para que se torne viável: “As necessidades comuns são que elas
requerem, para sua satisfação, o apoio da sociedade como um todo ou de um grande
grupo da sociedade, e que a oposição de apenas alguns indivíduos ou mesmo de um
pode impedir essa satisfação.”
A necessidade de contribuição de todos, por sua vez, se associa ao caráter coercitivo do
estado. Ao longo de O Estado Moderno, o estado é definido por Leroy-Beaulieu (1891,
p. 67) como a entidade coercitiva dotada de poderes fiscais e regulatórios. No Tratado,
Leroy Beaulieu (1914, p. 766 - 771) lista as principais funções que atribui ao mesmo: i)

95
The deficit of budgets is the sole and only curb which checks the ambitions and encroachments of the
State in our day. But being more or less limited in its action, it takes its revenge by a more and more
extended exercise of its will that is to say, of its regulating power which, of course, costs nothing, or very
nearly so.
96
A number of services which a free and flexible society would not be incapable of performing for itself,
which in fact it has for many centuries performed for itself, have gradually fallen to the lot of the State,
simply because it could perform them better, more economically, more completely, with less effort and
less expense.

384
segurança interna e externa; ii) bens que requerem poder fiscal ou regulador, como nos
campos da higiene, salubridade, cursos d’água, direitos de expropriação e obras
públicas; iii) conservação e melhora das condições de bem-estar, preservando os
interesses de longo prazo na administração de florestas, caça e pesca e recursos naturais
raros, iv) sanção do direito e v) auxiliar no progresso civilizatório, através de museus e
propaganda de modelos.
Dadas as tarefas do estado que Leroy-Beaulieu considera legítimas, passamos para a
discussão positiva de como o estado as desempenha. Essa análise requer a investigação
do modo de funcionamento do estado, incluindo o estudo dos limites ou defeitos da
ação coletiva. Para o autor, a percepção desses últimos, por sua vez, requereria
inicialmente o afastamento de algumas idéias errôneas sobre o tema.
A primeira, defendida entre outros autores por Albert Schäffle (1831-1909), identifica o
estado com o cérebro ou órgão diretor da sociedade. Tal identificação, para Leroy-
Beaulieu (1891, p. 46), seria ao mesmo tempo prejudicial e falsa. Prejudicial porque
levaria à submissão dos indivíduos ao estado. Falsa porque ao contrário de células,
indivíduos têm vontade própria. Rejeitando a tradição coletivista alemã, Leroy-Beaulieu
(1891, p. 47) afirma que o estado não pensa ou deseja por modo diverso daqueles dos
homens que operam junto a ele. Estes, por sua vez, não seriam indivíduos superiores em
relação ao resto da sociedade. No Tratado, Leroy-Beaulieu (1914, p. 759) ridiculariza a
ideia de um governante conhecedor de desígnios superiores, comparando-a com um
sacerdote investido de autoridade divina:
A Igreja pode ensinar que um homem fraco, revestido com o sacerdócio, é
transformado e desfruta de graças divinas. A sociedade democrática não pode
afirmar que os indivíduos levados ao poder que formam pelo menos
momentaneamente o Estado, que é o Estado legislador e atuante, possuem, para
preservá-los do erro, preconceitos ou paixões, graças sobrenaturais de algum tipo.97
No referencial analítico de Leroy-Beaulieu (1891, p. 49), assim como ocorre com os
demais economistas da escola clássica francesa, utiliza-se pressuposto comportamental
uniforme, não se admitindo a hipótese de vantagens morais ou intelectuais de agentes na
esfera coletiva.
Outra concepção errônea rejeitada pelo autor identifica o estado com a sociedade, como
se não existissem associações voluntárias e suas manifestações, tais como instituições
religiosas e filantrópicas, familiares, firmas comerciais e financeiras, hospitais,
sindicatos, associações de assistência mútua e assim por diante.

Afastados esses erros analíticos, pode-se prosseguir com a investigação sobre o modo
de operação do estado moderno. Se a divisão do trabalho determinou sua expansão, o
que esperar sobre seu futuro? Como o elemento central da teoria econômica pura de
Leroy-Beaulieu é a inovação trazida pela atividade empresarial, sua análise sobre a
dinâmica da expansão do estado também é marcada pela relação entre criação

97
L'Église peut enseigner qu'un homme faible, revêtu du sacerdoce, est transformé et jouit de grâces
divines. La société démocratique ne peut prétendre que les individus portés au pouvoir et qui forment, au
moins momentanément, l'État, qui sont L’État légiférant et agissant, possèdent, pour les préserver de
L’erreur, des préjugés ou des passions, des grâces surnaturelles d'aucune sorte.

385
empresarial e burocracia, como mais tarde ocorre na obra de Schumpeter. Por sua
natureza burocrática, o estado seria para Leroy-Beaulieu (1891, p. 82) destituído de
capacidade inovadora:
O Estado é um órgão coletivo rígido, que só pode atuar por meio de um aparelho
complicado, composto de numerosas rodas e sistemas de rodas, subordinados uns
aos outros; o Estado é uma hierarquia aristocrática, ou burocrática, ou eletiva, na
qual o pensamento espontâneo é pela própria natureza das coisas submetidas a um
número prodigioso de cheques controladores e limitadores. Tal máquina não pode
inventar nada.98
Como relatamos acima, o autor narra como o estado naturalmente assume tarefas
exercidas anteriormente por outras associações de pessoas. Para ele, o estado copia e
amplia aquilo que já foi criado. E, se não é inventivo, não pode ser o cérebro da
sociedade (p. 84-95). Sendo assim, a principal conclusão derivada disso é a necessidade
de espaço para a liberdade de criação. Se o estado cresce muito, o despotismo geraria
estagnação ou mesmo declínio econômico.
Dois caminhos são identificados por Leroy-Beaulieu (p. 90). Ou o estado de forma
proveitosa exerce o papel auxiliar de assistência após o surgimento das inovações ou as
sufoca com suas tendências monopolizadoras.
Além da relação entre inovação e estrutura burocrática, Leroy-Beaulieu investiga a
relação entre esta última e os processos eleitorais. Dado que o estado moderno ocidental
é constituído por democracias, com autoridades temporárias eleitas atuando junto a um
corpo variável de funcionários, encontramos na análise do autor vários pontos em
comum com a análise da moderna economia da política.
Como o estado moderno é caracterizado pela concorrência política entre partidos que
representam os interesses de diferentes conjuntos de indivíduos e que, devido à
alternância no poder, controlam os recursos públicos apenas temporariamente, os
governantes tendem a não representar interesses gerais e de longo prazo. A posse
precária, sob o ponto de vista do autor, geraria a pilhagem de recursos públicos (p. 116),
como mostraria o exemplo do comércio internacional. A atividade política sobre esse
assunto invariavelmente gira em torno dos interesses particulares de grupos de pressão e
quase nunca são pautados pelo interesse geral em manter a competição. Para Leroy-
Beaulieu (1891, p. 119), do mesmo modo, a lógica da ação política resulta em atenção
voltada para o curto prazo:
Além de se preocupar mais com interesses particulares do que com o interesse
sintético da nação, o Estado Moderno, pelas mesmas razões de origem e posse
precária, é também mais sensível a interesses imediatos e presentes do que a
interesses maiores que são posteriores ou distantes. Por isso, vai contra uma das

98
The State is a rigid collective organ, which can only act by means of a complicated apparatus,
composed of numerous wheels and systems of wheels, subordinated one to another; the State is a
hierarchy either aristocratic, or bureaucratic, or elective, in which spontaneous thought is by the very
nature of things subjected to a prodigious number of controlling and hampering checks. Such a machine
can invent nothing.

386
missões mais importantes do Estado, que é preservar o futuro, mesmo o futuro
distante.99
Tais desvantagens inerentes ao funcionamento do sistema político devem ser
contrapostas às vantagens derivadas das pressões competitivas no setor. A natureza
coletiva do processo político, porém, tornaria a competição tênue (p. 120). A
competição externa de que fala Molinari, além disso, se limita à esfera militar e atua no
longo prazo. O mesmo ceticismo é mostrado em relação à ampliação do direito de
secessão, que marca as últimas esperanças de Molinari como concorrência de serviços
governamentais. O voto com os pés, para Leroy-Beaulieu (1891, p. 125), envolveria
custos em demasia: ninguém mudaria de nacionalidade várias vezes ao longo da vida
como muda de fornecedor de um bem não público.
Outro aspecto abordado na análise da ação coletiva diz respeito aos incentivos
enfrentados pelos funcionários públicos. Além dos empregos públicos oferecerem
menores incentivos para a preocupação com os resultados do trabalho, a natureza do
serviço público levaria a um viés que afastam os funcionários públicos das tarefas mais
necessárias (p. 120): “Eles freqüentemente se deixam enganar quanto ao caráter real de
sua missão; eles lutam pelo grande em vez do útil, eles trabalham para fins que podem
lhes trazer honra e distinção, ao invés de cumprirem as tarefas humildes e comuns que
pertencem ao dia-a-dia.”
A crença de que as diferenças de incentivos entre os setores público e privado teriam
diminuído substancialmente com o advento das grandes firmas dá origem a um capítulo
dedicado à comparação entre incentivos nos dois setores. Embora aceite que propensão
a gastos desnecessários e rigidez maior caracterizem grandes firmas, as diferenças entre
os incentivos nos dois setores seriam ainda assim significativas.
Entre as diferenças apontadas, teríamos i) a existência de votos proporcionais aos
interesses, ii) a possibilidade de saída do investidor caso discorde das políticas adotadas;
iii) maior independência dos agentes proporcionada pela maior facilidade de avaliação
por resultados, iv) possibilidade maior de permanência de gestão e v) a própria pressão
colocada pela possibilidade de falência.
Além desses, outros dois devem ser destacados separadamente. O primeiro já tratamos
em nossa discussão da crítica do autor ao socialismo: devido à natureza coletiva da ação
pública, os erros nesse setor são gerais, enquanto erros de firmas particulares são
comparativamente mais limitados. Argumentando de forma evolucionária, Leroy-
Beaulieu (p. 146) afirma que a rivalidade competitiva é marcada pela diversidade de
pontos de vista, de modo que se tornaria menos provável que todas as firmas cometam
exatamente os mesmos erros. Na esfera pública, pelo contrário, não seria possível se
dissociar das consequências de um plano particular.

99
As well as being more concerned with particular interests than with the synthetic interest of the nation,
the Modern State, for the same reasons of origin and precarious tenure, is also more sensible of
immediate and present interests than of larger interests which are deferred or distant. Hence it runs
counter to one of the most important missions of the State, which is to preserve the future, even the far
distant future.

387
O segundo elemento a destacar é o reconhecimento da existência da rigidez para baixo
no gasto público, que seria enfatizada no século seguinte por Buchanan (1978). Leroy-
Beaulieu (1891, p. 141) nota que uma vez incorrido, é difícil reduzir os públicos:
É verdade que é apenas com grande dificuldade que [o orçamento] pode ser
comprimido. Todos aqueles que ganham a vida com isso, sendo eles mesmos
eleitores, empregam toda a sua força eleitoral para evitar essa redução e essa força é
freqüentemente muito considerável, visto que as diferenças podem ter que ser pagas
muito pesadamente. Assim, encontramos deputados, mesmo em tempos de déficit,
exigindo um aumento de salário para empregados de diferentes tipos.100
Os pontos examinados acima ilustram a análise dos problemas associados à ação
coletiva. No Tratado, Leroy-Beaulieu (1814, p. 779-781) sumariza os motivos que
recomendariam cautela no que se diz respeito as atribuições do estado. São eles: i)
problemas derivados da lógica política de seleção de agentes; ii) falta de coerência entre
políticas de diferentes órgãos públicos; iii) tendência a representação de interesses
particulares; iv) ausência de incentivos e concorrência e v) lentidão e burocracia.
Depois do estudo de problemas associados ao funcionamento dos estados reais, é
necessário reafirmarmos que Leroy-Beaulieu (1891, p. 147) defende a tese de que os
defeitos inerentes à administração burocrática devem ser pesados contra as vantagens da
oferta pública de bens públicos, como em geral ocorre nas análises dos demais
economistas da escola clássica francesa, sendo Leroy-Beaulieu o autor que atribui maior
papel para o estado entre aqueles que estudamos neste trabalho.

Neste capítulo visitamos as principais contribuições de três dos principais economistas


da escola francesa na segunda metade do século dezenove. Pudemos constatar que de
fato Courcelle-Seneuil, Molinari e Leroy-Beaulieu dão continuidade ao programa de
pesquisa da escola tal como Bastiat o modificara. Este último sistematiza a análise
industrialista de Say, tal como representada na interpretação institucionalista da história
empreendida por Comte e Dunoyer, a partir de uma abordagem que trata tanto da
produção quanto da espoliação como respostas do ser humano aos incentivos
institucionais. Esse institucionalismo, liberto da visão idealizada da ação coletiva, foi
empregado pelos autores que estudamos neste capítulo no estudo da principal “questão
social” da época, a saber, a comparação entre sistemas econômicos alternativos.
A Economia da política da escola francesa contrastou dessa maneira os programas
liberal, conservador e socialista em termos das consequências econômicas das
instituições que cada força política representa, manifestas nos sistemas de liberdade
econômica, protecionismo ou intervencionismo e planejamento central. Courcelle-
Seneuil tratou dos subprodutos institucionais dos sistemas políticos defendidos em
termos dos efeitos do grau de centralização resultante de cada programa. Molinari
investigou a eficácia de diferentes meios de provisão de bens públicos em termos não

100
It is at any rate true that it is only with very great difficulty that it can be compressed. All those who
gain a living by it, being themselves electors, employ all their electoral force to prevent this reduction and
this force is often very considerable, seeing that differences may have to be paid for very heavily. Thus we
find deputies, even in times of deficit, demanding an increase of salary for employees of different kinds:

388
das formas legais das instituições, mas das pressões competitivas as quais seriam
sujeitas. Leroy-Beaulieu, por sua vez, empreendeu um estudo realista, não ideal, sobre o
modo de funcionamento da ação coletiva. Os três autores, por fim, formulam em sua
análise de sistemas comparados o argumento de similitude formal entre os mesmos, que
procura reconhecer e identificar leis científicas de natureza econômica as quais qualquer
sociedade estariam sujeitas, para em seguida indagar como as tarefas realizadas nos
mercados seriam resolvidas em cada um dos sistemas econômicos que se possa
conceber. Leroy-Beaulieu, o mais recente dos três autores, antecipa o argumento da
impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo, que afirma que na ausência de
um sistema de preços instituições socialistas, sejam quais forem, não teriam uma
bússola para direcionar os recursos aos seus usos mais urgentes.
Tendo como pano de fundo essa análise de sistemas comparados, cada um dos autores
contribuiu com desenvolvimentos teóricos interessantes derivados da tradição clássica
francesa. Se lembrarmos apenas um elemento interessante estudado por cada autor,
destacaremos que Courcelle-Seneuil discute descentralização no setor bancário (free
banking) e ciclos, Molinari estuda as alternativas de provisão de bens públicos e Leroy-
Beaulieu empreende estudo da atividade empresarial.

389
7. Conclusão: o fim de uma tradição

Chegamos ao fim de nosso estudo da escola clássica francesa. Nesta conclusão,


trataremos em primeiro lugar de considerações sobre a extinção da escola. Embora
tenha desaparecido como tradição de pesquisa, os conceitos analíticos cultivados pelos
economistas da escola foram recuperados em parte, sobrevivendo em outras tradições
teóricas. Em seguida, apresentaremos na forma de tópicos as principais teses defendidas
ao longo do trabalho.

7.1. A dissolução da escola


Com as mortes de Leroy-Beaulieu e Guyot no início do século vinte a escola clássica
francesa chega a seu fim. Como estamos interessados nas teorias econômicas
desenvolvidas pela tradição e não na história da profissão na França, não diremos nada a
respeito de como os cargos universitários foram ocupados naquele país ou como cursos
e instituições acadêmicas foram modificadas. Em vez disso, nos ocuparemos apenas da
sobrevivência ou extinção das idéias desenvolvidas pelo conjunto de economistas que
estudamos.
O primeiro ponto a observar é constatar o evidente desaparecimento da escola em si.
Não temos no início do século vinte novos autores que afirmam seguir ou que
efetivamente sigam o modelo de pesquisa sugerido por Jean-Baptiste Say. A causa
desse desaparecimento não é difícil de determinar e se aplica também à vertente inglesa
da escola clássica: o surgimento de uma teoria alternativa.
No caso da vertente francesa em particular, a partir da revolução marginalista surge uma
teoria do valor que permite a superação da tensão que caracteriza a escola ao longo de
todo o centenário de sua existência. O marginalismo permitiu que a teoria da utilidade
de Say fosse desenvolvida de modo a contrariar a própria essência do modelo
plutológico empregado por esse autor. Isso ocorre porque a nova teoria do valor resulta
gradualmente na adoção de uma maneira alternativa de entender os fenômenos
econômicos, a partir de escolhas diante da escassez. No novo referencial, a
determinação da capacidade produtiva agregada de uma economia é explicada em
última análise pela eficiência com a qual os recursos escassos encontram usos
alternativos.
No longo prazo, Condillac prevaleceu sobre Say. O esgotamento do referencial analítico
deste último contrasta com o potencial na época ainda inexplorado do primeiro. É
natural então que novos pesquisadores se dediquem a explorar esse potencial e o ensino
da disciplina gradualmente deixe de usar manuais como o tratado de Leroy-Beaulieu.
O segundo ponto se refere às crenças metodológicas e políticas dos membros da escola.
Iniciemos com as primeiras. Os clássicos franceses rejeitavam tanto o formalismo
matemático walrasiano quanto o historicismo que se desenvolvia na Alemanha e nos

391
Estados Unidos, em uma época na qual formalismo e historicismo aglutinavam as
principais tendências da disciplina. Na época, da revolução marginalista até a década de
trinta do século vinte, a postura metodológica predominante era marcada pela defesa do
formalismo, mas não do empirismo. Isso contribuiu para tornar os historicismos
minoritários e também diminuir a influência da tradição clássica francesa.
Esse aspecto, como qualquer outro tomado em isolamento, não é capaz de gerar uma
explicação suficiente para o declínio da escola. A tradição marshalliana, por exemplo,
mantinha a mesma equidistância entre os extremos do formalismo e do historicismo e a
tradição austríaca, sem empregar formalização matemática, prosperava na mesma
época.
Isso nos leva ao segundo aspecto, de natureza política. O declínio do liberalismo desde
o final do século dezenove também contribuiu para o desaparecimento da escola. Se
considerarmos a crescente importância política na França do pensamento socialista e da
defesa da ampliação do papel do estado em geral, é natural a menor popularidade das
idéias da escola.
Mas, novamente, os austríacos também eram em sua maioria liberais e sua escola estava
em ascensão no período. Se aliarmos os motivos metodológicos, políticos e teóricos,
porém, podemos encontrar uma explicação para o declínio. Mesmo impopular, a escola
poderia se manter se fosse capaz de gerar progresso científico. Mas, como vimos,
abraçar o potencial da nova teoria do valor implica em abandono de crença fundamental
da escola. Esta sempre rejeitou o ponto de partida ofertado por Condillac em favor da
crença de que trocas envolvem valores iguais.
O desparecimento da escola clássica francesa como comunidade acadêmica organizada
institucionalmente não implica, contudo, na extinção de suas contribuições teóricas. O
declínio da escola contraria de fato uma das crenças centrais do pensamento
metodológico contemporâneo, que teme os efeitos de críticas prematuras. Falsas
refutações, contudo, não implicam em absoluto na morte das idéias, em especial se
contemplarmos o caráter descentralizado do mecanismo seletivo existente na ciência.
Na ausência de um organismo central de avaliação de hipóteses científicas, cuja
existência é hipótese tácita subjacente à Filosofia da Ciência, podemos afirmar que
hipóteses rejeitadas não desaparecem em absoluto, mas persistem em nichos reduzidos.
Sendo assim, são sujeitas a reutilização em qualquer momento.
O fenômeno da convergência evolutiva no mundo das idéias implica que a recuperação
de teorias sequer dependa de sua manifestação na obra de autores do passado. Em geral,
idéias antigas as quais se atribuem importância renovada são formuladas de modo
independente por novos autores, que mais tarde redescobrem textos antigos cujos
autores passam a ser vistos como precursores.
Embora Mises não precise ler Destutt de Tracy para formular sua praxiologia ou Leroy-
Beaulieu para formular o argumento do cálculo econômico, ou Hayek precise ler Bastiat
e Courcelle-Seneuil para estudar as consequências do conhecimento disperso e falível,
nem Tullock ler Turgot, Say e Bastiat para desenvolver o conceito de rent-seeking, nem

392
North ler Storch para falar de instituições, Demsetz ler Molinari para estudar direitos de
propriedade ou ainda Schumpeter ler Bastiat para falar em competição por inovação
empresarial, não é verdade que conceitos sejam recriados a partir do nada. Como
argumentamos na introdução deste trabalho, inovações não são fruto de criatividade de
gênios individuais, mas resultado de processos evolutivos que recombinam soluções
prévias de muitos autores. A passagem do tempo gera a ilusão contrária devido ao fato
de que não temos condições de rastrear as influências sofridas pelos autores dos textos
que sobreviveram ao processo de aprendizado por tentativas e erros.
Sendo assim, as idéias desenvolvidas pelos clássicos franceses, embora não tenham
sobrevivido em conjunto como um sistema doutrinário, na verdade sobreviveram de
forma dispersa. Apenas para tomar dois exemplos que exploramos ao longo do trabalho,
Pareto e Clark citam com frequência as obras dos clássicos franceses. Se seus modelos
teóricos reproduzidos pelos livros-textos não mostram traços diretos de influências das
obras de autores antigos, a leitura dos livros nos quais esses modelos são desenvolvidos
revelam essa influência.
O formalismo matemático dominante no século vinte e a transmissão do conhecimento
via livros-textos fizeram com que as diversas contribuições dos clássicos franceses
passassem despercebidas. Como vimos na introdução deste trabalho, essas contribuições
foram vistas pelos historiadores do pensamento do século vinte como trabalho
meramente jornalístico e não como teoria econômica.
Como resultado, a profissão é condenada a redescobrir de forma mais lenta coisas que
eram parte integrante do capital intelectual dos economistas do passado. A importância
das instituições para o crescimento, parte central da tradição smithiana desenvolvida
pelos franceses, é vista como novidade por economistas que passaram décadas
entusiasmados com modelos agregados de crescimento.
Os temas desenvolvidos pelos economistas clássicos da vertente francesa, a despeito
disso, foram continuamente recuperados por diversas tradições de pesquisa e hoje fazem
parte das teorias desenvolvidas na economia da informação, neoinstitucionalismo,
escolha pública e teoria austríaca de processo de mercado.
A despeito disso, ainda restam várias idéias discutidas pelos clássicos franceses que
ainda merecem resgate, em especial no que diz respeito à Economia da política. Apesar
dos esforços dos autores da tradição de escolha pública, a prática dominante entre os
economistas ainda é uma espécie de historicismo, que simultaneamente não aplica as
ferramentas da teoria econômica ao funcionamento da ação coletiva e rejeita a
existência de regularidades na área. O propósito principal deste trabalho foi contribuir
com a recuperação do acervo de idéias pouco estudado dos clássicos franceses, que
escreveram extensivamente sobre o assunto.

393
7.2. Recapitulação das teses principais
Encerramos este trabalho com a recapitulação de suas principais teses, apresentadas na
ordem dos capítulos nos quais aparecem. Como abordamos autores que escreveram do
final do século dezoito ao início do vinte, a extensão exigida deste trabalho torna
necessário destacar as principais conclusões, que poderiam ser esquecidas ao longo da
leitura.
Como o propósito é recapitulação de um conjunto de teses, cada uma delas será apenas
enunciada, sem que os argumentos que as sustentam sejam explicitados, para que
tenhamos uma lista relativamente pequena de proposições. Como a exposição segue a
ordem dos capítulos, o leitor não terá dificuldade de encontrar os argumentos no
capítulo correspondente.
Não temos a pretensão de gerar uma lista completa de teses: limitar-nos-emos às mais
centrais. Tampouco essa lista serve como versão mais detalhada do roteiro apresentado
na introdução, pois não repassaremos todos os tópicos estudados em cada capítulo, mas
apenas as conclusões centrais retiradas de cada capítulo. A lista de proposições que se
segue não contém, portanto, resumo que liste as contribuições principais de cada autor.
Feitas essas observações preliminares, reproduzimos em seguida a lista das principais
teses discutidas neste trabalho, organizadas em sessenta tópicos:

Capítulo 1: introdução
1. Os clássicos franceses desenvolveram uma teoria econômica que privilegia
inovação e adaptação nos mercados e que inclui uma análise positiva, não
idealista, do estado;
2. Os clássicos franceses desenvolveram teorias mais tarde recuperadas pelos
neoclássicos, austríacos, neoinstitucionalistas e economistas da escolha pública,
mas seus trabalhos foram rejeitados no século vinte porque esses temas não
eram contemplados pelas teorias dos analistas do período;
3. O potencial e os limites da escola clássica francesa são dados pela tensão
existente entre os fundamentos plutológicos e elementos cataláticos de seu
referencial analítico, que impediram maior desenvolvimento da teoria do valor
subjetivo;
4. Este trabalho adotou uma concepção evolucionária sobre o progresso do
conhecimento, que afirma que a originalidade não consiste em criar algo do
nada, mas criticar, adaptar e recombinar material existente a partir das
contribuições incrementais de inúmeros autores. Por isso, o progresso é gradual
e a apreciação da evolução de uma escola requer exame de muitos autores e
várias de suas obras.

394
Capítulo 2: Metodologia da Economia nos clássicos franceses
5. O empirismo de Say, exemplo de filosofia justificacionista, ao leva-lo à crença
de que sua teoria corresponde à verdade provada, induz o autor a esboçar projeto
de pesquisa aplicada, que apenas ilustre historicamente a teoria pura acabada;
6. Say e Destutt de Tracy enunciam os fundamentos da metodologia clássica da
Economia, comumente associados a J. S. Mill, como a adoção do subjetivismo e
individualismo metodológicos, crítica ao uso da Matemática na teoria pura ou
ainda a distinção entre fatos gerais e particulares, sendo os primeiros
responsáveis pelas leis gerais, de caráter abstrato, que operam na ausência de
fatores perturbadores;
7. Destutt de Tracy constrói uma fundamentação praxiológica da teoria econômica
de Say a partir da filosofia sensacionalista de Condillac, que se aproxima em
muitos aspectos da praxiologia apriorista de Mises;
8. Storch e Rossi desenvolvem a metodologia de Say sobre as diferenças entre os
ramos teórico ou abstrato e aplicado ou empírico, de forma semelhante à postura
de Menger no methodenstreit;
9. Embora privilegiem abordagem realista e auxiliada pela História, os clássicos
franceses não adotam postura historicista alemã, pois acreditam em leis
econômicas abstratas ou gerais, que são discerníveis e que possuem validade
universal.

Capítulo 3: precursores
10. Cantillon emprega modelo de natureza plutológica, preocupado com produção e
distribuição de riqueza entre classes econômicas;
11. Embora Cantillon desenvolva um modelo plutológico, existem em seu sistema
elementos cataláticos, como uma descrição do problema alocativo, com
empresários tomando decisões sob incerteza a respeito dos empregos possíveis
da terra escassa, que deve se adaptar as demandas dos proprietários de terra;
12. O modelo de fluxo de renda entre classes econômicas de Quesnay se assemelha
ao modelo de mesma natureza esboçado por Cantillon;
13. A agregação do capital em termos monetários na obra de Turgot tem como
consequência transformar o conceito de capital em entidade capaz de gerar renda
de forma autônoma, independente das decisões empresariais sobre usos dos
recursos;
14. A análise da regulação feita por Turgot e Condillac retrata a venda de privilégios
legais em troca de parte dos ganhos com os monopólios gerados pela regulação;
15. Condillac descreve a dinâmica de intervenções governamentais no sistema de
preços de forma semelhante àquela proposta por Mises, com fracasso de
medidas gerando demanda por mais intervenções corretivas, em processo que se
espalha ao longo das cadeias produtivas;

395
16. Condillac contribui para o estudo do trade-off entre terapia de choque e
gradualismo, mostrando como a formação de mercados que substituem sistemas
antes controlados centralmente requer a passagem do tempo.

Capítulo 4: a primeira geração - o industrialismo


17. Roederer e G. Garnier constroem uma concepção teórica híbrida, uma transição
entre Cantillon e Smith. A indústria manufatureira também gera produto líquido,
mas a partir da exportação trocada por meios de subsistência gerados em terra
estrangeira;
18. Garnier e Say geram desenvolvimentos na teoria subjetiva do valor: o primeiro
estabelece a demanda como função da renda e o segundo como função do preço
e dos demais elementos da moderna teoria do consumidor, exceto o elemento
marginalista. Interpreta ainda a utilidade como um ordenamento de preferências;
19. Como a teoria do valor subjetivo tem função plutológica (tese 3); a saber, fazer
com que toda indústria útil seja considerada como produtiva, Say não prossegue
no desenvolvimento da teoria da utilidade nem a associa aos fenômenos da
produção;
20. Por outro lado, no capítulo sobre os mercados, Say adota modelo que interliga os
setores da economia ao longo do tempo: o progresso técnico e o uso do capital,
ao aumentarem a produtividade, liberam recursos que são realocados para
atender outras necessidades;
21. Devido à perspectiva plutológica, o comércio é para Say apenas a indústria de
transportes. O retrato do autor como pioneiro no estudo da atividade empresarial
é, portanto, exagerado, pois essa atividade é identificada apenas com a gestão de
empresas;
22. Destutt de Tracy, embora sugira fundamentação praxiológica para a teoria
econômica (tese 7), adota o referencial teórico de Say. Os fundamentos que
sugerem só frutificarão na geração seguinte, na obra de Bastiat;
23. Destutt de Tracy, inspirado pelo tratamento do capital como um agregado
monetário (tese 13), adiciona os rentistas que vivem de títulos públicos à classe
dos indivíduos sem função econômica, assim como os proprietários de terra e os
capitalistas;
24. Say e Destutt de Tracy contribuem para a Economia da política, discutindo a
atividade de rent-seeking e seus custos e descrevendo a lógica da ação coletiva
em termos da assimetria de incentivos entre consumidores e produtores para o
exercício de pressão política.

Capítulo 5: a segunda geração - estado e exploração


25. A formação de comunidade acadêmica comprometida com as teses básicas de
Say indicam a existência de uma escola de pensamento, mas a existência de
heterogeneidade entre autores permitiu a presença de recombinações ou trocas

396
de idéias que resultou em progresso científico durante a segunda geração de
autores;
26. Storch torna o valor não apenas dependente da apreciação de cada agente, mas
também enfatiza o caráter opinativo dessa apreciação. Embora construa sua
teoria do valor em termos do modelo de trocas análogo ao de Condillac, sua
teoria sofre do mesmo problema que identificamos com a obra de Say, já que a
utilidade serve apenas para definir o que é riqueza;
27. A teoria da civilização de Storch oferece hipótese interessante sobre a
coevolução de riqueza material e fatores não monetários que afetam o bem-estar.
Mas, como se atém ao referencial plutológico, também deixa de explorar
problemas alocativos relativos aos bens imateriais, como por exemplo os
problemas derivados das externalidades;
28. Partindo do modelo de trocas puras de Storch, Rossi explica o valor em função
das demandas dos agentes pelos bens trocados, que por sua vez dependem da
utilidade e da escassez desses bens, fornecendo assim a solução para o paradoxo
do valor;
29. Em sua crítica à teoria do valor trabalho, Rossi explica ainda os determinantes
dos preços sob monopólio tendo em vista como a receita se relaciona com a
demanda;
30. A comparação de Dunoyer entre o industrialismo liberal e saint-simoniano
utiliza-se do mesmo argumento falibilista empregado por Popper e Hayek para
defender instituições descentralizadas na ciência e na economia;
31. Comte e Dunoyer desenvolvem uma teoria da exploração utilizada para
interpretar a evolução da história rumo ao ideal industrialista de Say;
32. A teoria da exploração de Comte e Dunoyer se encaixa na tradição storchiana,
pois não é reducionista, explicando a evolução histórica pela interação de fatores
políticos, psicológicos, econômicos e institucionais;
33. A interpretação da história desenvolvida por Comte e Dunoyer é sistematizada
por Bastiat, que fornece um modelo econômico teórico que a fundamenta;
34. Ao contrário do que afirmam os comentadores mais proeminentes, a obra de
Bastiat é eminentemente teórica. Sua teoria é fundamentada em modelo de ação
baseada na relação entre fins e meios, como na teoria moderna, explora
interconexões entre setores, como na abordagem de equilíbrio geral, coloca a
atividade empresarial no centro do modelo de competição e trata de auto-
organização (ordens espontâneas) a partir de conhecimento limitado, como na
teoria austríaca, aplica hipótese de auto-interesse na esfera pública, como na
teoria de escolha pública e trata da atividade produtiva ou espoliadora como
consequência de incentivos sob conjuntos diferentes de regras, como no
neoinstitucionalismo;
35. O sistema explanatório de Bastiat alia a teoria de Say (tese 20) com fundamentos
praxiológicos de Destutt de Tracy (tese 7), examinando todo fenômeno
econômico em termos da tríada necessidades-esforços-satisfação;
36. A teoria do valor serviço de Bastiat reúne em um só termos os diferentes
determinantes dos preços. É intermediária entre a teoria do valor trabalho e a

397
teoria subjetiva do valor porque seu uso principal é julgar as trocas em termos de
justiça, dada pela igualdade entre valores trocados, e não em termos de ganhos
de trocas;
37. A economia política de Bastiat reúne as duas fontes básicas de falhas de
governo: aquelas derivadas do auto-interesse, exploradas pela escola da escolha
pública e aquelas derivadas do caráter falível e disperso do conhecimento,
exploradas pelos austríacos;

Capítulo 6: a terceira geração – liberalismo, intervencionismo e socialismo


38. Os autores da escola clássica francesa na segunda metade do século dezenove
tinham no centro de suas preocupações teóricas a comparação entre os sistemas
econômicos liberal, intervencionista e socialista;
39. A formação de uma comunidade acadêmica de economistas profissionais na
França torna mais difícil traçar influências sofridas pelos autores do período
estudado, devido as contribuições de inúmeros autores que participaram de
debates e cujas obras não temos condições de examinar (tese 4);
40. Chevalier utiliza a mesma perspectiva gradualista e evolucionária sobre o
crescimento do conhecimento que empregamos na introdução deste trabalho
(tese 4) para criticar o sistema de patentes, que resultaria no que hoje chamamos
de rent-seeking, não inovação;
41. Courcelle-Seneuil emprega o instrumental utilitarista para explicar a escolha
entre trabalho e lazer e entre produção e troca em termos de benefícios e
esforços envolvidos em cada alternativa contemplada;
42. A análise comparativa de sistemas econômicos de Courcelle-Seneuil formula
uma variante do argumento de similitude formal, indagando como a atividade
empresarial seria exercida no socialismo, além de comparar os sistemas rivais
em termos de graus de centralização das instituições implicadas pelas
alternativas. Como mais tarde fará Hayek e M. Polanyi, Courcelle-Seneuil
investiga os processos de transmissão de conhecimento disperso em hierarquias
e ordens descentralizadas, examinando as vantagens e desvantagens de cada um;
43. A defesa da concorrência no setor bancário de Courcelle-Seneuil é uma
aplicação de sua análise comparativa entre centralização e descentralização;
44. Em suas análises dos bancos e da administração de empresas, Courcelle-Seneuil
trata de problemas de incentivos em situações análogas aos modernos modelos
de agente-principal;
45. A análise dos ciclos econômicos de Courcelle-Seneuil explica as flutuações a
partir de causas reais, como quebras de safra, distúrbios políticos e aglomeração
de erros empresariais. O autor, contudo, não oferece justificativa para essa
concentração de erros que evite mencionar expansão creditícia;
46. Assim como Courcelle-Seneuil, Molinari incorpora o utilitarismo no referencial
da escola clássica francesa. Molinari utiliza o referencial utilitarista para
formular três leis econômicas fundamentais: i) lei da economia de forças; ii) lei
das quantidades e preços e iii) lei da competição;
398
47. Molinari, assim como Courcelle-Seneuil, formula o argumento de similitude
formal: sendo as leis econômicas universais, qualquer sistema econômico é
sujeito a elas. O argumento de similitude formal na obra do autor indaga então
como no socialismo os problemas econômicos colocados por essas leis seriam
resolvidos sem o sistema de preços. Em especial, o autor rejeita a soluções
centralizadas que requereriam “legiões de estatísticos” para compatibilizar
produção e necessidades;
48. Molinari não foi capaz de apresentar uma formulação consistente da segunda lei,
que descreve o funcionamento do sistema de preços. Essa formulação
imperfeita, que impõe inelasticidade às curvas de demanda e não trata da oferta,
é, no entanto, útil como ferramenta para tratar de ganhos e perdas comparados
de bem-estar sob monopólios e competição;
49. Uma contribuição importante de Molinari é a aplicação da análise de
monopólios e competição aos serviços públicos. Cético a respeito do poder
explanatório derivado dos efeitos de diferentes formas das instituições políticas
e regras formais, a presença ou ausência de pressões competitivas explicariam
melhor o desempenho econômico das formas rivais de provisão de bens
públicos;
50. Molinari utiliza esse referencial para interpretar as fases do desenvolvimento da
esfera da ação coletiva: vantagens de especialização dão origem a provisão
pública, a natureza monopolista destas explica seus defeitos e o
desenvolvimento econômico torna esses monopólios obsoletos, gerando uma
luta pela preservação de privilégios monopolistas, contrários à tendência
descentralizadora que acredita existir;
51. A discussão de como trazer pressões competitivas ao provimento de bens
públicos evolui durante a carreira de Molinari, desde a discussão inicial da
provisão privada de segurança até o reconhecimento da definição moderna de
bens públicos, que fazem com que o autor explore alternativas, como concessões
a empresas privadas, condomínios rivais ofertantes de serviços municipais e
ampliação do direito de secessão;
52. Leroy-Beaulieu é um clássico tardio e não um autor neoclássico: apesar de
aceitar a teoria marginalista do valor subjetivo, a estrutura da sua obra ainda é
plutológica. A teoria do valor, vista como apenas um refinamento da teoria
clássica de Say, é discutida não apenas depois da produção, mas também após os
capítulos sobre remuneração dos fatores produtivos;
53. Leroy-Beaulieu, no entanto, é um autor de transição, pois em sua obra elementos
do problema alocativo surgem com mais frequência do que no referencial
clássico;
54. A característica mais saliente da Economia de Leroy-Beaulieu é o
desenvolvimento da teoria da atividade empresarial, composta pela criação de
novas combinações. Essa teoria é motivada pela contraposição ao socialismo
marxista, que ignora a atividade empresarial e é também aplicada para rejeitar as
previsões ricardianas sobre renda, salários e juros;

399
55. Leroy-Beaulieu, assim como Courcelle-Seneuil e Molinari, formula a tese da
similitude formal entre sistemas econômicos. Vai além desses dois ao antecipar
a tese sobre a impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo;
56. Leroy-Beaulieu transfere ao setor público a crítica feita pelo historicismo alemão
à teoria econômica: apriorismo e irrealismo. Em contraste com tal abordagem
abstrata, o pretende estudar o estado moderno como ele é, não como é
idealizado;
57. A análise positiva do estado de Leroy-Beaulieu trata de tendência à expansão de
gastos públicos, concentração em interesses de curto prazo, esgotamento das
fontes de financiamento público e deslocamento para atividade regulatória
quando a capacidade de investimento do setor público se esgota.

Capítulo 7: o fim de uma tradição


58. O desaparecimento da escola clássica francesa se relaciona ao surgimento de
uma alternativa, a nova teoria do valor que permite a solução da tensão existente
entre subjetivismo e plutologia que marca a escola desde Say (tese 3);
59. Outros fatores contribuíram com o declínio da escola, como a recusa simultânea
do formalismo matemático e da alternativa historicista, bem como o declínio das
crenças políticas liberais entre o final do século dezenove e o final do terceiro
quarto do século vinte;
60. Embora os temas desenvolvidos pelos economistas da escola clássica francesa
são gradualmente retomados por diversas escolas contemporâneas de teoria
econômica (tese 2), em especial no que diz respeito à Economia da política,
existem muitas contribuições que ainda precisam ser recuperadas, o que justifica
que essa tradição de pesquisa seja alvo de mais estudos no futuro.

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