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GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
RIO DE JANEIRO
2022
CARLA FRANÇA R. GREGORIO
RIO DE JANEIRO
2022
CARLA FRANÇA R. GREGORIO
APROVADA EM
BANCA EXAMINADORA
_________________________________
Profa. Dra. Aline Maria Muniz Veras Drummond De Mendonça (Orientadora)
Universidade Veiga de Almeida
_________________________________
Prof.ª Me. Ana Paula Marques Lettiere Fulco
Universidade Veiga de Almeida
_________________________________
Prof. Dr. José Maurício Teixeira Loures
Universidade Veiga de Almeida
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Ana Paula Lettiere, que vai descobrir agora, que foi a pessoa
que me apresentou a psicanálise quando eu ainda era de Cabo Frio. Você, com seus olhos
brilhando ao dar aula, fez o meu coração explodir por esse novo modo de ver o mundo – daí
tudo fez sentido, ou melhor, pôde não fazer sentido. À essa mulher minha mais profunda
gratidão e admiração, nunca esquecerei a primeira aula em que falou “não podemos pegar o
arco-íris, e nem por isso ele deixa de existir’’. Suas aulas me ensinaram muito sobre o amor,
de nada adianta investir só nele, né? Por essa via eu escolhi a psicanálise (ou ela me escolheu)
e eu comecei a análise. Desde então, fui livre pra investir em muitas outras coisas. A
psicanálise salvou minha vida.
À minha querida orientadora e supervisora durante dois anos, Aline Drummond. Me
deu a oportunidade de ser sua monitora e ver o jeito tão único que da aula. Os tantos
ensinamentos sobre a psicose, a direção impecável e sensível para condução do caso clínico,
que se tornou a clínica que eu quero seguir. Obrigada por acreditar em mim, mesmo nos meus
momentos de desespero e quando eu estava quase desistindo. Você é linda.
Ao homem que eu mais amo nesse mundo e sou apaixonada, meu pai! À minha mãe
que estava do meu lado em toda crise de choro, e me deixou chorar. Meus pais, minha base.
Sem vocês eu não conseguiria nada disso.
À minha Grande Outra, minha irmã, que sempre foi meu exemplo de feminilidade,
esforço e dedicação. À minha tia Marta, professora de português, que largou tudo para me
ajudar a fazer revisão de última hora. À minha família toda.
Ao meu grande amigo, Pedro Tristão, uma amizade que veio do estágio e se tornou pra
vida. Me ajudou a enxergar que meu jeito super sensível não é um problema; é arte. Falta uma
pessoa para compor o nosso grupo “Os Histéricos’’: minha amiga Gabriela Couto, tão
sorridente, carinhosa, me acolheu nos momentos finais. Eu amo vocês.
Agradeço a Deus, pelo dom da vida, meu criador. Por cada flash de luz que passa entre
as folhas e tocam no meu rosto, por sua chuva de Glória. Dono de todo o meu amor, obrigada
por ser mais real que o ar que eu respiro, por tranquilizar meu coração nos momentos de
angústia. Você é o meu lugar seguro e para ti voltarei.
"O que mais me emociona é que o que não
vejo contudo existe. Porque então tenho aos
meus pés todo um mundo desconhecido que
existe pelo e cheio de rica saliva. A verdade
está em alguma parte: mas é inútil pensar.
Não a descobrirei e no entanto vivo dela."
(Clarice Lispector)
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo articular a teoria psicanalítica e a atuação na clínica, a
partir de um caso atendido no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Veiga de
Almeida, campus Tijuca. Realiza, para tanto, a retrospectiva do percurso de Freud desde antes
da psicose como campo distinto da neurose e a descoberta do delírio como tentativa de cura
com o caso Schreber. Neste sentido, com Lacan, a clínica da psicose avança. O conceito da
foraclusão do Nome-do-Pai será essencial para abordar a estrutura psíquica, seus efeitos e
estabilizações. Acerda da condução do caso clínico, fez-se necessário abordar o papel do
analista como testemunha/secretário a fim da produção do sujeito emergir.
This work aims to articulate psychoanalytic theory and clinical practice, based on a case
handled at the Applied Psychology Service of the Veiga de Almeida University (Serviço de
Psicologia Aplicada da Universidade), Tijuca campus. To this end, it carries out a
retrospective of Freud’s journey since before psychosis as a distinct field of neurosis and the
discovery of delirium as an attempt at cure with the Schereber case. In this sense with Lacan,
the clinic of psychosis advances. The concept of foreclosure of the Name-of-the-Father will
be essential to approach the psychic structure, its effects and stabilizations. Upon conducting
the clinical case, it was necessary to address the role of the analyst as a witness/secretary in
order for the subject production to emerge.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8
4. O CASO CLÍNICO............................................................................................................. 33
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 41
8
INTRODUÇÃO
1. A PSICOSE EM FREUD
[...] uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a
representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a
representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é
conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como “confusão
alucinatória”. (FREUD [1894], 1969, p. 33)
Foucault diz: “Aos insanos internados faltava apenas o nome de doentes mentais e a
condição médica que se atribuía aos mais visíveis.” (1972, p. 119).
demarca a diferença da genética como origem das duas estruturas; sendo a primeira “o
resultado de um conflito entre o Eu e seu Isso, ao passo que a psicose é o resultado análogo de
perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior.’’ (1924/2016, p. 271-
272).
Como suprarreferido, nesta escrita, Sigmund articula que em detrimento da
dependência da realidade, o Eu reprime parte da vida pulsional (Isso), no caso da neurose. Já
na psicose, o Eu não reprime, mas se coloca a serviço do Isso, afastando, retirando parte da
realidade desde o início.
[...] a neurose não recusa [verleugnet] a realidade, apenas não quer saber nada sobre
ela; a psicose a recusa e procura substituí-la. [...] A reelaboração da realidade na
psicose ocorre nos sedimentos psíquicos dos vínculos até então mantidos com ela,
isto é, nos traços mnêmicos, representações e julgamentos que dela se obteve até
então, e através dos quais ela é representada na vida psíquica. Esse vínculo, no
entanto, nunca se completou; ele foi continuamente enriquecido e alterado por novas
percepções. Com isso, também se coloca para a psicose a tarefa de procurar para si
as percepções que corresponderiam à nova realidade, o que é alcançado
fundamentalmente pela via da alucinação. Se as confusões de memória, as
formações delirantes e as alucinações apresentam [...] esse caráter extremamente
penoso, e se estão ligadas ao desenvolvimento de angústia, esse é, sem dúvida, o
sinal de que todo o processo de reconfiguração se consuma diante de forças
contrárias altamente poderosas. (FREUD, 1924/2016, p. 282)
Freud (1911) ao interpretar o Caso Schreber, instaura o delírio como tentativa de cura.
Em seu relato clínico, Sigmund explicita não ter conhecido pessoalmente o doente, valendo-se
para tal análise, da autobiografia publicada pelo próprio Schreber, compartilhado
publicamente de forma impressa. Afirma considerar lícito fazer as interpretações
psicanalíticas obtidas por essa via a qual, diga-se de passagem, permitiu grande avanço quanto
à teoria sobre a psicose.
13
[...] o delírio é como um remendo colocado onde originalmente surgira uma fissura
na relação do Eu com o mundo exterior. Se essa precondição, o conflito com o
mundo externo, não é muito mais patente do que agora notamos, a razão para isso
está no fato de no quadro clínico da psicose as manifestações do processo
patogênico serem frequentemente cobertas por aquelas de uma tentativa de cura ou
reconstrução. (FREUD, 1924/2011, p. 161)
Lacan em seu seminário III, diz que o delírio não é deduzido, há uma significação para
o sujeito, já que há algo que nunca foi simbolizado – o Nome-do-Pai como significante. Há
uma exigência da ordem simbólica que “acarreta desagregação em cadeia, uma subtração da
trama na tapeçaria, que se chama delírio’' (1955-56, p. 108). É o delírio que traz sentido aos
significantes que retornam no real e que localiza e cifra o gozo excessivo através de um saber.
É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá
início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre
crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e
significado se estabilizam na metáfora delirante. (LACAN, 1958/1998, p. 584)
2. A PSICOSE EM LACAN
Ainda de acordo com Freud (1923/2011) no texto ‘’A Organização Genital Infantil’’
se atendo ao menino, ele percebe a diferença entre os homens e mulheres, mas que a princípio
não liga a diferença dos órgãos genitais. Supõe-se que todas as coisas e pessoas tem pênis.
Com grande interesse no membro que lhe proporciona excitação e sensações, passa a
pesquisar em outras pessoas, querendo ver, diferenciando a proporção, comparado ao seu.
1
LACAN, 1999, p. 191.
2
LACAN, 1988, p. 21.
15
[...] por que falar de falo e não de pênis? É que não se trata de uma forma ou de uma
imagem ou de uma fantasia, mas de um significante, o significante do desejo. Na
antiguidade grega não se o representa como um órgão e sim como uma insígnia, é o
objeto significante último que aparece quando todos os véus são corridos e tudo o
que se relaciona com ele é objeto de amputações, de proibições. 5
3
Já foi corretamente assinalado que a criança adquire a ideia de um dano narcísico por perda corporal ao perder
o seio materno após mamar, ao depositar cotidianamente as fezes e mesmo ao separar-se do ventre da mãe no
nascimento. Mas só devemos falar de um complexo da castração quando tal ideia de perda ficou ligada ao
genital.
4
LACAN, 1999, p. 359.
5
LACAN, 1979, p. 112.
16
“Essa função imaginária do falo, portanto, Freud a desvelou como pivô do processo
simbólico que arremata, em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo de
castração.”6
No entanto, “com a menina é diferente. Num instante ela faz seu julgamento e toma
sua decisão. Ela viu, sabe que não tem e quer ter’’ (FREUD, 1925/2011 p. 262). Dessa forma,
diferencia-se quando a menina, ao ver que não tem, aceita a castração como fato consumado;
ao passo que, o menino teme lhe seja tirado assim como alguns já foram.
Se, tanto para a menina como para o menino, o complexo de castração assume um
valor-pivô na realização do Édipo, é muito precisamente em função do pai, porque o
falo é um símbolo do qual não há correspondente, equivalente. É de uma dissimetria
no significante que se trata. Essa dissimetria significante determina as vias por onde
passará o complexo de Édipo. As duas vias fazem eles passarem na mesma vereda -
a vereda da castração. (LACAN, 1955-56, p. 207)
Para Lacan (1957-58) o desfecho favorável ou não do Édipo gira em torno de três
planos: o da castração, o da frustração e o da privação efetivadas por um terceiro, o pai.
Privação do que não se tem, que só poderia vir a existir como símbolo na medida em que se
fosse possível/passível de projetar no plano simbólico.
Mas há de fato uma privação, uma vez que toda privação real exige a simbolização.
Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do
Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele
mesmo, de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o
objeto. Essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse
ponto é essencial. Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas, a cada vez que
sua experiência os levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no
Édipo. (1957-58, p. 191)
[...] na medida em que a criança não ultrapassa esse ponto nodal, isto é, não aceita a
privação do falo efetuada na mãe pelo pai, ela mantém em pauta – a correlação se
fundamenta na estrutura – uma certa forma de identificação com o objeto da mãe,
esse objeto que lhes apresento desde a origem como um objeto-rival, para empregar
a palavra que surge aí, e isso ocorre, quer se trate de fobia, de neurose ou de
perversão. [...] qual é a configuração especial da relação com a mãe, com o pai e
com o falo que faz com que a criança aceite que a mãe seja privada, pelo pai, do
6
LACAN, 1998, p. 561.
17
objeto de seu desejo? Em que medida, num dado caso, é preciso apontar que, em
correlação com essa relação, a criança mantém sua identificação com o falo?
(LACAN, 1957-58, p. 192)
Nesse nível, a questão que se coloca é ser ou não ser, to be or not to be o falo. No
plano imaginário, trata-se, para o sujeito, de ser ou não ser o falo. A fase a ser
atravessada coloca o sujeito na situação de escolher. [...] escolher entre aspas, [...]
não é ele quem manipula as cordinhas do simbólico. A frase foi começada antes
dele, foi começada por seus pais [...]. Mas, digamos, uma vez que convém nos
exprimirmos bem, que existe, em termos neutros, uma alternativa entre ser ou não
ser o falo (1957-58, p. 192).
O próximo passo para Lacan, é o plano de ter ou não ter o falo - instaurado como
símbolo e do lado de fora do sujeito, “se assim não for, ninguém poderá intervir realmente
como revestido desse símbolo. É como personagem real, revestido desse símbolo’’ (1957-58,
p. 193). Daí, o pai entra em cena como proibidor do incesto, da mãe como objeto, como
portador da lei. Ou seja, o terceiro elemento só pode interferir no momento em que o falo é
símbolo, como já aludido como insígnia.
O ponto fundamental para que a menina se transforme em mulher e o menino em
homem: complexo de castração. Admite-se ser castrado ao superar a questão do não ser e
passar para o ter ou não ter. Mesmo ao supor ter – o falo “é preciso que haja um momento em
que não se tem [...]’’7. Assumir ter o falo é assumir ser castrado; não poder tê-lo previamente.
Só que o sujeito “na medida em que não aceita, isso o leva, homem ou mulher a ser o falo’’
(1957-58, p. 193).
“Embora o complexo de Édipo seja vivido pela maioria das pessoas
individualmente’’8, há quem não passe, conforme Lacan
Pode acontecer que um sujeito recuse o acesso, ao seu mundo simbólico, de alguma
coisa que, no entanto, ele experimentou e que não é outra coisa naquela
circunstância senão a ameaça de castração. Toda a continuação do desenvolvimento
do sujeito mostra que ele nada quer saber disso, Freud o diz textualmente no sentido
do recalcado. O que cai sob o golpe do recalque retoma, pois o recalque e o retorno
do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. O recalcado está
sempre aí, e ele se exprime de maneira perfeitamente articulada nos sintomas e
7
LACAN, 1999, p. 192-193.
8
FREUD, 2011, p. 183.
18
Ademais, ainda conforme o autor supracitado, essa primeira etapa é fálica primitiva. A
mãe por ser falante, já se encontra submetida a Lei. Só que a criança só tem noção a
posteriori, aqui se tem um Outro sem barra.
Segundo tempo do Édipo, estádio nodal e negativo:
[...] o pai intervém efetivamente como privador da mãe, o que significa que a
demanda endereçada ao Outro, caso transmitida como convém, será encaminhada a
um tribunal superior [...] aquilo sobre o qual o sujeito interroga o Outro, na medida
em que ele o percorre por inteiro, sempre encontra dentro dele, sob certos aspectos,
o Outro do Outro, ou seja, sua própria lei. É nesse nível que se produz o que faz com
que aquilo que retorna à criança seja, pura e simplesmente, a lei do pai, tal como
imaginariamente concebida pelo sujeito como privadora da mãe. (LACAN, 1957-58,
p. 198-199)
9
LACAN, 1999, p. 195.
10
FREUD, 1923/2011, p. 24.
19
seu caráter decisivo deve ser isolado como relação não com o pai, mas com a palavra do
pai’’11
“Essa mensagem não é simplesmente o Não te deitarás com tua mãe, já nessa época
dirigido à criança, mas um Não reintegrarás teu produto, que é endereçado à mãe’’ (LACAN,
1957-58, p. 209). Logo, a proibição é para os dois lados.
No Seminário III Lacan (1955-56) diz que “Numa psicose, admitimos perfeitamente
que alguma coisa não funcionou, não se completou no Édipo essencialmente.’’ (p. 229). E no
Seminário V traz o que acontece - também já aprofundado no primeiro tempo lógico, “Na
psicose, o Nome-do-Pai, o pai como função simbólica [...] é, precisamente verworfen”
(Lacan, 1957-58, p. 211). É rejeitado, o pai não intervém como lei; a mensagem de proibição
do parágrafo acima não surte seu efeito de proibição.
Terceiro tempo do Édipo: via pela qual depende a saída do complexo, tanto meninos
como meninas, passam da posição de ser o falo para querer ter o falo.
O pai intervém como real e potente. [...] É por intervir como aquele que tem o falo
que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do eu, e que, a partir daí, não nos
esqueçamos o complexo de Édipo declina. [...].O pai é, no Outro, o significante que
representa a existência do lugar da cadeia significante como lei. [...]. O pai acha-se
numa posição metafórica, na medida, e unicamente na medida em que a mãe faz
dele aquele que sanciona, por sua presença, a existência como tal do lugar da lei.
(LACAN, 1957-58, p. 201-202)
“A psicose é aquilo diante do que um analista não deve, em caso algum, recuar’’12
Partindo da doutrina Freudiana, Lacan (1955-56) se aprofundará na teoria já
consolidada, reterá os ensinos, ademais, em cima dela fará novas construções. Encontra-se no
Seminário III, uma das primeiras formulações acerca da psicose. Bem como, retoma
considerações para o tratamento dessa estrutura nos seus Escritos no capítulo V (1957/1958)
“De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose’’.
Conforme pesquisado e sintetizado por Souza, N (1991) a psicose como conceito, é
desenvolvido por Freud; já a palavra em si, não. Quem empregou pela primeira vez foi Von
Feuchtersleben, no ano de 1845. Lacan (1955-56) situa que paranoia surgiu no começo do
11
LACAN, 1999, p. 199.
12
LACAN, 1977, p. 12.
20
século XIX, com um psiquiatra que foi aliado de Kant; ao conceituar a psicose no seminário
III coloca que
Psicose não é demência. As psicoses são, se quiserem - não há razão para se dar ao
luxo de recusar empregar este termo -, o que corresponde àquilo que sempre se
chamou, e a que legitimamente continua se chamando, as loucuras. É nesse domínio
que Freud faz a partilha. Ele não se envolveu com nosologia [...] tudo que
chamamos de psicose ou loucura era paranoia. ([1955-56] 1988, p. 12-13)
Assim, Lacan (1955-56) corrobora com a mudança no social de não se referir aos
paranoicos como antigamente, com o caráter pejorativo de ser uma pessoa ruim, anômala. É
como estrutura psíquica que passa a ser admitida, diante da resposta de rejeição (Verwerfung)
frente a ameaça de castração. Dunker e Kyrillos Neto (2015) seguem
Ademais, nesse sentido de aceitar o desafio freudiano continuado por Lacan como já
explanado, abrir-se-á
[...] uma via para a construção do caso clínico a partir de um saber sobre a
subjetividade de cada paciente. Assim, surge um diagnóstico como conclusão de um
processo investigatório: não atacar o sintoma, mas abordá-lo como manifestação
subjetiva significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado. Daí surge um sujeito,
seja na melancolia, no delírio paranoico ou no despedaçamento do esquizofrênico
(DUNKER; KYRILLOS NETO, 2015, p. 88)
21
Lacan adverte, tanto em seus seminários quanto em seus escritos sobre os riscos de se
tomar em análise psicóticos que não tenham ainda desencadeado um surto. Encontra-se
algumas indicações que apontam no mínimo para uma prudência, embora ele deixe a cargo de
cada analista a resolução de aceitar ou não. “Acontece recebermos pré-psicóticos em análise,
e sabemos em que isso dá — isso dá em psicóticos.”13. Pois a análise, como lugar de tomada
da palavra, pode desencadear uma psicose até então não desencadeada.
Um mínimo de sensibilidade que nosso oficio nos dá nos faz ver claramente algo
que encontra sempre no que se chama de a pré-psicose, a saber, o sentimento de que
o sujeito chegou à beira do buraco. Isso deve ser tomado ao pé da letra. Não se trata
de compreender o que se passa ali onde não estamos. Não se trata de fenomenologia.
Trata-se de conceber, não de imaginar, o que se passa para um sujeito quando a
questão lhe vem dali onde não há significante, quando é o buraco, a falta que se faz
sentir como tal. (LACAN, 1955-56, p. 237)
Mas, como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo sujeito no único lugar de onde
poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve? Através de nada mais nada menos que
um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai. É preciso
ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes.
Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por
13
LACAN, 1988, p. 293.
22
base o par imaginário a-a', isto é, eu-objeto ou ideal-realidade [...] (LACAN 1957-
1958/1998, p. 584).
O gozo sem limites que invade o sujeito num surto psicótico (então, crise, surto é
invasão de gozo e inundação de signos) deve-se à falta do significante do Nome-do-Pai que
tem como função regular e delimitar o gozo, o que não ocorre na psicose por conta do
fracasso da metáfora paterna não ocorreu a extração de gozo.
[...] o complexo de Édipo é essencial para que o ser humano possa aceder a uma
estrutura humanizada do real, [...] para que haja realidade, acesso suficiente à
realidade, para que o sentimento da realidade seja um justo guia, para que a
realidade não seja o que ela é na psicose, é preciso que o complexo de Édipo tenha
sido vivido. (LACAN, 1955-56, p. 232)
Soler (2007) na psicose, o trabalho é do próprio sujeito achar um jeito de lidar com os
retornos no real, é de tornar o gozo suportável.
O tratamento na psicose é de domesticar o gozo, o surto é uma invasão de gozo no
corpo devido à falta do significante do Nome-do-Pai. Existem algumas formas de fazer
suplência ao Nome-do-Pai foracluido. Freud ensinou que uma é através do delírio, que Lacan
chamou de metáfora delirante, pela via da arte e pela passagem ao ato. Sendo a última a mais
desastrosa (heteroagressiva ou autoagressiva). A não extração do objeto a faz com que retorne
no campo da realidade na forma de voz e olhar.
O processo delirante é uma tentativa do sujeito de fazer a separação desse objeto,
tentando localizar o gozo num objeto separado do seu corpo. Para Lacan (1966/2003) as
elaborações delirantes permitem ao sujeito a localização do gozo no lugar do Outro.
A obra na psicose é uma tentativa de constituir algo que possa representar, para que o
sujeito dele se separe. A produção de um objeto fora do corpo permite ao psicótico não ser
mais, ele mesmo, o objeto de gozo do Outro. É a obra como possibilidade de extração do
gozo.
Na passagem ao ato, supomos que esse objeto, na relação imaginária com o outro,
determina um excesso de gozo. O sujeito, através do ato, tenta se desvencilhar, ou seja, busca
um efeito de separação/ extração de Gozo.
24
3. O CASO SCHREBER
“Pois, não esqueçamos, do “caso Schreber” Freud não conheceu nada além desse
texto. E é esse texto que traz em si tudo o que ele soube extrair de revelador desse caso.”14
Daniel Paul Schreber nasceu em Leipzing, no ano de 1842. Veio da linhagem de uma
família de burgueses protestantes, abastados e cultos, buscavam a celebridade, no século
XVIII, através do trabalho intelectual. Filho do médico ortopedista e pedagogo Daniel
Gottlieb Moritz Schreber de Louise Henrietta Pauline Haase. Havia quatro irmãos: Daniel
Gustav Daniel Gustav (1839-1877), Anna (1840- 1944), Sidonie (1846-1924) e Klara (1848-
1917). (SCHREBER, 1984).
Sobre a figura materna: “mulher pouco afetiva, deprimida e inteiramente dominada
pelo marido.’’ (SCHREBER, 1984, p. 9). Seu pai, autor de livros sobre ginástica, higiene e
educação das crianças. A fim assegurar a postura corporal ereta da criança a todo tempo, até
mesmo durante o sono, Daniel Gottlieb confeccionou aparelhos ortopédicos de ferro e couro.
Aplicava em seus filhos os próprios métodos educacionais.
Aos trinta e seis anos, casou-se com Ottlin Sabine Behr que “não deu filhos a Daniel
Paul; teve seis abortos espontâneos. Por ocasião de seu casamento, consta que Schreber sofreu
um episódio de hipocondria, mas sem internação.’’ (SCHREBER, 1984, p. 17).
No tocante a vida profissional: é nomeado, em 1884, vice-presidente do Tribunal
Regional de Chemnitz; Posteriormente no mesmo ano, candidata-se ao parlamento (Partido
Nacional Liberal) e sofre derrota nas eleições. Quase dois meses após concorrer ao cargo, “o é
internado na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, cujo diretor é o Prof.
Paul Emil Flechsig, uma das maiores autoridades da Neurologia e da Psiquiatria da época. O
diagnóstico é de hipocondria. A internação dura seis meses.’’ (SCHREBER, 1984, p. 17-18)
14
LACAN, 2003, p. 219.
25
Reassumiu suas atividades profissionais em 1886. Aos 51 anos, em 1893, ocorreu a nomeação
para a corte de Apelação de Dresden.
Após breve contextualização acerca história do paciente, embora sem trazer excessivo
detalhamento, dado que, o foco, a priori, é o novo conceito sobre o delírio: “a formação
delirante é na realidade tentativa de cura’’ (FREUD, 1911, p. 94).
O livro “Memórias de um doente dos nervos’’, publicado no ano de 1903, teve como
autor, o próprio doente, Daniel Paul Schreber. Daniel demonstra clareza quanto à finalidade
de sua escrita “...com meu trabalho tenho apenas o objetivo de promover o conhecimento da
verdade em um campo de maior importância, o religioso.’’ (p. 30).
“Poucas pessoas cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e poucas (...)
se impuseram ao longo de toda sua vida tanta contenção de acordo com esses princípios,
principalmente no que se refere à vida sexual.” (SCHEREBER, 1984, p. 184)
Mais ainda, a relação do pai com essa lei deve ser considerada em si mesma, pois
nela encontramos a razão do paradoxo pelo qual os efeitos devastadores da figura
paterna são observados, com particular frequência, nos casos em que o pai realmente
tem a função de legislador ou dela se prevalece, quer ele seja, efetivamente,
daqueles que fazem as leis, quer se coloque como pilar da fé, como modelo de
integridade ou de devoção, como virtuoso ou virtuose, como servidor de uma obra
de salvação, de algum objeto ou falta de objeto que haja, de nação ou de natalidade,
de salvaguarda ou salubridade, de legado ou de legalidade, do puro, do pior ou do
império, todos eles ideais que só lhe fazem oferecer demasiadas oportunidades de
estar em posição de demérito, de insuficiência ou até de fraude e, em resumo, de
excluir o Nome-do-Pai de sua posição no significante16
15
LACAN, 1998, p. 588.
16
LACAN, 1998, p. 586.
26
Depois da cura de minha primeira doença, vivi oito anos, no geral, bem felizes, ricos
também de honrarias exteriores e apenas passageiramente turvados pelas numerosas
frustrações de esperança de ter filhos. Em junho de 1893 fui notificado (primeiro
pessoalmente, pelo Sr. Ministro da justiça, Dr. Schuring) da minha iminente
nomeação para presidente da Corte de Apelação de Dresden. [...] Além disso, uma
vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido ou já
desperto), tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha, quando
pensei nela depois, em completo estado de vigília. Era a idéia de que deveria ser
realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito – essa idéia era tão alheia a
todo o meu modo de sentir que permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria
rejeitado com tal indignação que de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim,
não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influências
exteriores que estavam em jogo.17
17
SCHREBER, 1984, p. 54.
18
LACAN, 1988, p. 40-41
27
Na psicose, por não operar a metáfora paterna, ocorre uma verdadeira invasão
imaginária da subjetividade, que acaba por levar à dissolução do imaginário (LACAN, 1955-
1956/1992, p. 119). Schreber, dá o testemunho de uma experiência de fragmentação do corpo,
de uma degradação imaginária da alteridade - “sombras de homens atamancados às três
pancadas” (LACAN, 1955-1957/2010, p. 119).
Com as seguintes falas evidencia-se o desmoronamento subjetivo designado, por
Schreber, como o ‘’fim do mundo’’
As visitas da minha esposa cessaram a partir dessa época; depois de muito tempo,
voltei a vê-la algumas vezes à janela de um quarto em frente ao meu; nesse ínterim
já tinha acontecido tantas mudanças importantes no meu ambiente e em mim mesmo
que acreditei a ver nela não mais um ser vivo, mas apenas uma figura humana feita
por milagre, do tipo dos ‘homens feitos às pressas’ 19
[...] todo tipo de modificações nas minhas partes sexuais, [...] como um
amolecimento do membro, que se aproximava da quase completa dissolução; [...]
meus pulmões foram, durante muito tempo, objeto de ataques violentos e muito
ameaçadores. [...] minhas costelas foram temporariamente destruída, [...] a caixa
torácica era comprimida de tal modo que o estado de opressão provocado pela
asfixia se transmitia para todo o corpo. [...] Muitas vezes, durante períodos mais ou
menos longos, vivi sem estômago.20
O delírio tem duas funções: uma de Reconstrução imaginária da realidade. Cria para o
sujeito um cenário no qual ele tenta reorganizar o elemento pulsional que transborda no seu
corpo. A outra função: Localizar, domesticar uma parcela do gozo invasivo da experiência
psicótica. O desenvolvimento do delírio de Schreber permitiu que ele emergisse dos
fenômenos corporais associados ao desastre do imaginário, diante do qual as primeiras
reações foram a vivência hipocondríaca e o estupor catatônico, reconstruindo a sua relação
19
SCHREBER, 1984, p. 59.
20
SCHREBER, 1984, p. 109 – 111.
28
com o seu corpo. Em sua reconstrução delirante, foi necessário primeiro localizar o gozo na
figura de seu médico e, depois, na figura de Deus.
Assim, Schreber interpreta que os eventos corporais dos quais ele era vítima tinham
como objetivo a sua transformação em uma mulher para fazer dele objeto de um gozo sexual.
Essa tentativa de localizar o elemento pulsional excessivo no campo do Outro foi também
essencial à estratégia paranoica de esvaziar o gozo invasivo que deu às primeiras
manifestações da psicose seu colorido hipocondríaco.
Lacan aborda a fragmentação do corpo devido ao imaginário
Agora que vocês têm na cabeça a função da articulação simbólica, vocês estarão
mais sensíveis a esta verdadeira invasão imaginária da subjetividade a que Schreber
nos faz assistir. Há uma dominante totalmente surpreendente da relação em espelho,
uma impressionante dissolução do outro enquanto identidade. [...] Há os que em
aparência vivem, se deslocam, seus guardas, seus enfermeiros, e que são sombras de
homens atamancados às três pancadas, [...]. Essa fragmentação da identidade marca
com seu próprio selo toda a relação de Schreber com seus semelhantes no plano
imaginário. [...] Há literalmente uma fragmentação da identidade, e o sujeito fica
sem dúvida chocado com esse dano causado à identidade de si mesmo [...] 21
Então, Freud relata sobre o segundo adoecimento; vide ser após assumir o cargo para
presidente da corte de apelação e a ideia de ser mulher, conforme já citado cronologicamente.
Devido a ‘’uma tormentosa insônia” (1911, p. 18), procurou novamente a clínica Flechsing, a
este doutor, porém, atribui querer prejudicá-lo e persegui-lo em sua segunda internação; o
estado de Schreber piorou com rapidez.
[...] a doença foi ocasionada pelo surgimento de uma fantasia de desejo feminina
(homossexual passiva) que tomava por objeto a pessoa do médico. Uma forte
resistência a essa fantasia ergueu-se do lado da personalidade de Schreber, e a luta
defensiva, que talvez pudesse igualmente realizar-se de outras formas, escolheu, por
razões que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição (FREUD, [1911]
2010, p. 45)
A revolta contra o conteúdo sonho, mostra no delírio, ser na verdade uma realização.
Ainda de acordo com Freud (1911/2010, p. 44) “Nenhuma outra parte do delírio é tratada pelo
21
LACAN, 1988, p. 119.
29
paciente de modo tão minucioso – tão insistente, poderíamos - como sua alegada
transformação em mulher.’’. A forte indignação se dá diante do fragmento desagradável da
realidade que é rejeitado e encontra saída pelo mecanismo do delírio (FREUD, 1924).
Guerra corrobora com Sigmund
O que é que é vivido como traumático, como afetivamente intenso pelo psicótico,
não ganha uma representação capaz de favorecer o escoamento energético ou a
vinculação desse excesso a uma ideia, a uma representação [...] o Eu rejeita a
representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a
representação jamais lhe tivesse ocorrido. (2010, p. 14)
Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim ( em março ou abril
de 1894 ), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável
da minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe
fosse entregue, ao passo que meu corpo – numa compreensão equivocada da citada
tendência inerente à Ordem do Mundo – devia ser transformado em um corpo
feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais,
devendo finalmente ser ‘’deixado largado”, e portanto, abandonado à putrefação.
(SCHREBER, 1984, p. 67)
Após Daniel ter sido entregue a abusos sexuais, o delírio de perseguição sexual se
transforma em delírio de grandeza religiosa. Sendo a segunda finalidade, conforme Freud
(1911) recriar a humanidade decaída:
22
LACAN, 2003, p. 223.
30
Dado a resistência do Eu, torna-se insuficiente a primeira solução para assumir o papel
de mulher - que seria diante do médico, Flechsing. Outro caminho surge, a fim de concretizar
a fantasia de ser mulher: a substituição do médico por Deus. Assim, estando “a serviço de
propósitos elevados’’ (FREUD [1911] 2010, p. 25); ser a mulher de Deus, com a missão de
recriar a humanidade decaída. Conforme Freud supracitado, o próprio doente encontra a
solução do seu conflito.
Na localização do gozo do Outro assentado no significante “mulher de Deus”, opera
uma atenuação do gozo que o invade, pois se encontra identificado, localizado no Outro.
Trata-se da localização do gozo no Outro pela via da erotomania divina.
A solução delirante fez barreira à invasão do Outro. O médico, invadia o corpo de
Schreber na forma de gozo sexual, a significação “mulher de Deus” circunscreveu esse gozo,
ou seja, localizou esse gozo na forma de copular com Deus formar uma nova raça
schreberiana. O significante "mulher de Deus" tem a função de amarração, de ponto-de-basta,
permitindo a Schreber dar significação aos seus significantes e, assim, reconstruir o mundo
por intermédio da significação delirante.
A análise do caso freudiano de Schreber, retomada por Lacan, ganha nova inflexão,
podendo ser pensada em quatro tempos com Maleval (1996). Lacan fala de um horror inicial
de Schreber à ideia de ser mulher, a qual acaba aceitando quando esta se torna um
compromisso razoável (Lacan, [1957-1958] 1998, p. 570). Ao final assume o estatuto de uma
23
FREUD, 1911/2010, p. 94 e 95.
31
decisão irreversível de uma assintótica – porque sempre apontada para o futuro –, cópula com
Deus para que uma nova humanidade fosse criada.
Para Maleval (1996), as quatro lógicas que permitem pensar essa elaboração na
paranoia seriam:
Primeiramente a deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante, quando se dá o
desencadeamento significante a partir de uma rupture na cadeira provocando uma autonomia
do significante (automatismo mental, Segundo Clérambault). A perplexidade advém
justamente do fato de o sujeito não se sentir autor de seus próprios enunciados. A
consequência dessa experiência de autonomia do significante no real é a deslocalização do
gozo, provocando fenômenos diversos sobre o corpo do psicótico, sejam agradáveis ou
penosos, voluptuosos ou agonizantes, ou mesmo hipocondríacos.
No caso Schreber, vemos sua manifestação em sua primeira crise, em 1884, ao
apresentar um esgotamento nervoso, no qual surgem queixas hipocondríacas. Somente em
1893 surgirá uma significação enigmática em torno da ideia, aparecida em 1884, de que seria
belo ser uma mulher no momento da cópula.
A segunda lógica de acordo com Maleval (1996) é a significação do gozo
deslocalizado, que se articula num trabalho de mobilização do significante pelo psicótico na
busca de uma explicação para os fenômenos que o invadem. Em Schreber, essa primeira
explicação aparece na acusação que formula de um complô que estaria sendo tramado por seu
médico, Dr. Flechsig. Essa explicação não apazigua Schreber, ao contrário, deixa-o à mercê
de um Outro todo-poderoso. Daí a busca de uma nova explicação, encontrada no fato de que
fora o próprio Deus que assumira o papel de cúmplice, e mesmo de instigador, na conspiração
em que sua alma deveria ser assassinada, e seu corpo, usado como o de uma rameira. Aí surge
um compromisso razoável, característica marcante dessa segunda fase. É o sacrifício da morte
do sujeito, tomado por Lacan ([1957-1958] 1998) como renúncia fálica, marcando a reversão
da posição de indignação de Schreber, que passa a aceitar a eviração porque servidora dos
desígnios de Deus. E não, como articula Freud ([1912 [1911]] 1976), tratar-se-ia do complexo
paterno que transfere de Flechsig para Deus a figura do pai de Schreber, com a qual ele se
apaziguaria.
Terceiro ponto: identificação do gozo do Outro assentado num significante, “mulher
de Deus”, o gozo do Outro, a partir de então, encontra-se identificado. Porém, a aceitação da
feminilização progressiva de Schreber não implicou o desaparecimento do sentimento de que
uma violência estava sendo-lhe infligida. A diferença é que agora, no delírio, os perseguidores
se encontrariam identificados. (MALEVAL, 1996).
32
4. O CASO CLÍNICO
A paciente será chamada pelo nome fictício de Alice, preservando-se, assim, o sigilo.
Foi encaminhada pela equipe de psicodiagnóstico aos 17 anos. Relatou que o motivo da
procura ao SPA é que estava tendo crises de ansiedade. Ao questionar como eram essas crises,
disse que ficava muito nervosa, ofegante e tremendo, que a mãe dava água com açúcar “mas
óbvio que não adiantava de nada’’. A escuta analítica mostrou-se essencial desde o início,
porque o que se revelaria posteriormente era muito além dessa primeira queixa.
Não se trata de uma escuta qualquer: os psiquiatras clássicos também escutavam seus
loucos, mas como objetos de seu esforço descritivo e classificatório. Com Lacan, em seu
seminário III, trata-se de uma escuta analítica, que procura apreender a fala do psicótico não
para atribuir-lhe sentido ou compreensão, mas para “tomar ao pé da letra o que ele nos conta”
(LACAN, 1955-56, p. 241), acolhendo-a como algo específico e próprio daquele sujeito.
Propôs então, o analista em posição de testemunho, como secretário do alienado.
Certas intervenções, certos questionamentos do analista podem provocar o
desencadeamento de uma psicose que até então não tinha sido desencadeada. Pois como já
falado no capítulo 2.2, a análise como lugar de tomada da palavra, pode desencadear. É claro
que isso não é desejável: o que chamamos de desencadeamento psicótico, muito
sumariamente, poderíamos dizer, que é uma crise que mobiliza uma angústia enorme, e uma
avalanche de vivências terrivelmente dolorosas, que devem ser evitadas.
Entretanto, também encontramos em Lacan que, diante de uma psicose já
desencadeada, não haveria por que o analista não acolher em tratamento esse sujeito. Daí a
grande importância do diagnóstico diferencial estrutural.
Sabe-se que a angústia na neurose é angústia de castração, angústia relacionada à falta.
Na psicose, por outro lado, a angústia surge quando a falta vem a faltar, ou seja, quando há
objeto, quando há objeto demais. Em outros termos, na psicose não há extração do objeto a. O
psicótico não se separou de seu objeto a, guarda-o no bolso24, conforme diz Lacan.
Para Lacan (1998), ainda, “o campo da realidade se sustenta apenas pela extração do
objeto a”25. Ou seja, é a extração do objeto a que fornece o enquadramento, ou a janela na
24
LACAN, 1967/Inédito.
25
LACAN, 1988, p. 559.
34
qual a realidade toma sua significação para nós. A extração do objeto a, além disso, está
correlacionada à própria produção do sujeito.
A angústia na psicose, portanto, tem a ver com a falta da falta, com o objeto
demasiadamente presente. Para sair dela, existem diferentes caminhos, como a extração do
objeto pela via do significante.
Na primeira sessão contou a seguinte história: ‘’eu tenho ficado muito assustada com
umas coisas. Tem pessoas da minha família que são do candomblé, mas eu não gosto muito
disso, tenho medo. Minha tia namorou um cara, e quando eles terminaram ele fez macumba
para ela (a tia) mas que pegou em mim, era pra pegar na minha avó, mas como ela não é mais
do candomblé e estava firme na igreja, acabou pegando em mim porque estou na sucessão da
família. Fiquei com um furúnculo enorme embaixo do braço, doía até para abaixar’’ -
gesticulou mostrando tamanho do furúnculo embaixo da axila. Então perguntei se ela tinha
ido ao médico tratar. Respondeu: “Não. Como é macumba os médicos iam abrir e não ia ter
nada.’’
Ao trazer isso, mostra que é uma ideia não dialetizável para a paciente, pois mesmo
depois de ser questionada continua tendo certeza delirante de que é macumba e os médicos e a
ciência não seriam capazes de fazer nada a respeito. Em momento nenhum achou que poderia
ser um problema de pele ou uma infeção. Enquanto o neurótico é o sujeito da dúvida, o
psicótico é o sujeito da certeza
É possível fazer um paralelo com o caso Schreber (FREUD, 1911) quando ele diz
“como seria bom ser uma mulher e me submeter-me ao coito’’ que esse pensamento não é
dele. Assim como o furúnculo foi implantado na paciente. Que diferente da histeria, de acordo
com Miller (1997), mesmo alucinando e esforçando-se para não cair na dúvida, no momento
em que fala, fica claro que não há sequer um ponto de certeza.
O neurótico acredita no Outro, mas vacila, porque na neurose o Outro é barrado. Pode-
se dizer que a neurose é da ordem da dúvida. A psicose, por seu turno, é da ordem da certeza.
O Outro não é barrado; o psicótico não acredita, ele tem certeza da existência do Outro. É
nesse contexto que se torna oportuno o ditame ético de Lacan: onde houver certeza, introduzir
o benefício da dúvida.
A certeza psicótica aparece em duas situações principais: diante do Outro do delírio e
diante do real da alucinação. É claro que, quando se trata de perseguição atroz, de erotomania
mortífera ou de alucinações com vozes de comando, isso traz muito sofrimento para o
psicótico. Em ambos os casos pode estar associada a angústia dilacerante ou a passagens ao
35
ato. O analista, sob transferência, pode contribuir para atenuar o quadro, introduzindo o
benefício da dúvida.
O status do pai: “Percebeu-se então que um Édipo podia constituir-se muito bem,
mesmo quando o pai não estava presente’’ (LACAN, 1957-58, p.172). Alice fala pouco sobre
o pai, eles têm pouco contato, chega tarde do trabalho porque vai para o bar beber e no dia
seguinte sai cedo. Diz que ele é velho e tem uma mente muito ultrapassada ‘’parece que ainda
ta nos anos 90’’; “ele é meio machista, e não sei se deu pra perceber eu não gosto muito.’’ E
ainda: “a gente não se bate.’’. Quando era menor tinha vergonha de falar com ele, porque não
se viam muito dentro de casa. Ficava na escola ou em casa com a mãe.
Ao mencionar a ausência do pai, é possível compreender que se trata não somente das
questões cotidianas, mas de algo anterior: ausência da metáfora paterna. Lacan elucida no
Seminário V, ao postular que: "Falar de sua carência na família não é falar de sua carência no
complexo. De fato, para falar de sua carência no complexo, é preciso introduzir uma outra
dimensão que não a realista, definida pelo modo caracterológico, biográfico ou outro de sua
presença na família.’’26. Na ausência do significante Nome-do-Pai não há a função de
separação que age como barreira entre a mãe e o filho.
Que é o pai? Não digo na família, porque, na família ele é tudo o que quiser, é uma
sombra, é um banqueiro, é tudo o que tem de ser, ele o é ou não é, o que às vezes
tem toda sua importância, mas também pode não ter nenhuma. A questão toda é
saber o que ele é no complexo de Édipo. [...] É isto: o pai é uma metáfora. (LACAN,
1957-58, p. 180)
Conforme Souza (1991) articula em seu estudo lacaniano, não se trata de uma pessoa,
muito menos do laço de sangue, mas um ponto de ancoragem. Nome-do-Pai, como invenção,
para ser o agente da metáfora. Uma fala muita rica de Alice, para dar luz a esse conceito que
beira a abstração é: “tive um pai presente e ausente.’’. Ela sabe que ele é pai biológico, mas, é
inexistente no lugar simbólico de agente da metáfora paterna.
Status da mãe: “sou grudada desde pequena com a minha mãe’’, dessa forma abordou,
desde as primeiras sessões a relação as duas. A ausência do Nome-do-Pai como “significante
que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno’’27 e
consequentemente a prevalência do s1 aparece no discurso da paciente que traz a significante
“grudada’’ para caracterizar sua relação com a mãe.
26
LACAN, 1999, p. 174.
27
LACAN, 1999. p. 180.
36
Situar o saber do lado do psicótico é admitir, entre outros aspectos, que ele sabe o seu
caminho, ou que ele é capaz de construi-lo. A tarefa do analista não é trazer a solução, mas
entrevê-la no que lhe é apresentado.
E como podemos, então, escutar o sujeito para que ele produza suas soluções que são
as suplências subjetivas? O analista deve ocupar o lugar de um secretário que faça com que o
lugar do S1, do significante mestre, fique vazio para que o sujeito possa produzir o seu
sinthome.
Alice diz que está passando pela transição capilar já tem um ano. Ao perguntar como
está sendo a transição ela responde: “Estou feliz, agora que tô começando a ter alguma
autoestima, porque eu sempre alisei por causa da pressão da sociedade’’. Depois de várias
sessões dizendo que se acha feia e que não tem autoestima, começa a fazer esse movimento de
construção de um corpo, de um Eu, de uma identidade.
Porém, esse processo não é linear, não tende a ir só na direção da melhora, tem altos e
baixos. Posteriormente em um dia que estava mais desorganizada disse “todo mundo ficou
olhando para mim, deve ser porque eu tô esquisita, que meu cabelo tá feio’’. Questionei se
sempre pensando mal dela e respondeu que sim. A questão do olhar é algo que ela traz
frequentemente, esse olhar é uma invasão do Outro Gozador sem barra. Podemos supor que
ela se sente visada, vista por um olhar do qual não consegue escapar.
Relatou que começou a ouvir vozes e disse “eu devo estar ficando doida’’ falou em um
tom irônico e rindo. Perguntei o que ela escuta, “chamando o meu nome e outras coisas que
agora não lembro’’ e ainda “não sou esquizofrênica, não sou doida’’ daí perguntei se sentia
medo e ela disse que muito.
Logo após a madrinha falecer, foi ao enterro e disse que sabia que não devia ter ido ao
caixão olhar, mas que foi e depois ficou com medo. E teve um sonho no qual a madrinha disse
“abre o olho que você ainda vai ter problema com alguém da sua família’’, ficou se
questionando se alguém passaria a perna nela. Me interrogou se eu achava que esse sonho
tinha algum significado. Na tentativa de esvaziar esse gozo, respondo: “ah, talvez seja só um
sonho mesmo’’. Isso aponta para um sujeito que se sente particularmente visado, observado.
Torna-se ele próprio, o objeto de gozo alheio.
Pouco tempo depois, quando estava sentada no sofá e olhou para a televisão, a tia que
morreu estava sentada do lado dela: “até a forma de se vestir e o cabelo era igual’’, depois
disso parece que está vendo sombra, que entre a porta do quarto e o armário que tem alguém a
olhando. Voltou a ter o problema para dormir. Mais uma vez aparecem os fenômenos
alucinatórios.
38
Certa vez, ao falar sobre a trivialidade do dia a dia disse: “Não consegui mudar de
turma poque meu nome começa com “V” e eu sempre fico por último, eu sempre sou o resto.
Mas tudo bem, acontece.” O significante “resto’’ apareceu no mesmo contexto duas vezes,
isso mostra o sujeito querendo falar algo, falar desse lugar que é ser objeto de gozo do Outro.
Sobre ser algo que tampa o buraco do Outro, resto de algo maior. Pelas palavras de Souza “O
psicótico, sua posição face ao Outro é de objeto: resto, objeto parcial, dejeto que, no real,
responde à falta do Outro’’ (1991, p. 60).
A vivência na psicose tende a ser muito dolorosa, na última sessão que tive com Alice
ela disse: “eu não aguento mais isso tudo’’. Perguntei: “isso tudo o que?’’ e ela me respondeu:
“A vida. Não é que eu pense em me matar, nem nada disso. Na verdade, eu já pensei em
suicídio, mas não teria coragem.’’ Nessa fala podemos observar a angústia de viver em um
corpo que é invadido pelo outro, que é o tempo todo observado. A invasão pelo gozo acentua
o vazio de significação.
Na psicose, por não se introduzir a função da castração, temos um sujeito que resiste à
falta-de-ser, que resiste à barra, um sujeito-objeto, a-sujeitado ao Outro. Assim, o tratamento
partiria da posição do psicótico como objeto e “conduz aos confins de sua produção”
(MILLER, 1996, p. 160).
Na psicose os dois objetos do desejo, a voz e o olhar aparecem na própria realidade do
sujeito e, dessa forma, explicam que a relação do sujeito com o objeto é uma relação onde o
objeto não é perdido, e assim faz irrupção no campo da realidade como olhar vigilante que se
apresenta como, por exemplo, na fala da Alice, tal como estão de olho nela, ora vigiada,
observada, enfim, ela é alvo dos olhares. Donde, podemos dizer que o objeto olhar desvela aí
as relações da Alice com o Outro.
Como já abordado, na psicose por conta da forclusão do Nome-do-Pai o objeto a surge
no campo da realidade como olhar ou voz.
O objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão. Isso
vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo
falta. É então preciso que isso seja um objeto – primeiramente, separável – e depois,
tendo alguma relação com a falta. (...) É por isso que o olho pode funcionar como
objeto a, quer dizer, no nível da falta ( -φ). (LACAN, 1964/1985, p. 101-102)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FREUD, S. As neuropsicoses de defesa (1894). ESB, vol. III, R.J., Imago, 1969.
FREUD, S. A Organização genital infantil (1923). In: FREUD, S. Obras completas. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, S. A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (1924). In: In: FREUD, S. Obras
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FREUD, S. Neurose e Psicose (1924). In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 2011.
FREUD, S. Novas observações sobre as psiconeuroses da defesa (1895). ESB, vol. III, R.J.,
Imago, 1969.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. O seminário livro 3: As psicoses. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. O seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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LACAN, J. Las formaciones del inconsciente, Nueva Visión, Buenos Aires, 1979, p. 112.
SOLER, Colette. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.