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NOTAS AO ACÓRDÃO N.

º 247/2005 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

1 – Introdução

Foi recentemente tornado público o Acórdão n.º 247/2005 do Tribunal Constitucional, proferido
no âmbito do processo n.º 891/03 da 1ª Secção, Acórdão esse proferido em sede de
fiscalização concreta da constitucionalidade ao abrigo do art.º 70º n.º 1 al. b) da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).

Ora, a jurisprudência cristalizada no Acórdão referido merece, segundo cremos, atenção


cuidada por parte dos interessados pelo ramo do Direito Penal. Merece, aliás, atenção
detalhada sob vários prismas de análise científica que não jurídica. Esse o motivo que nos
compeliu a aceitar a empresa a que aqui, sumariamente, metemos ombros, cientes da
fragilidade das capacidades analíticas de que dispomos para tão complexo propósito, o que se
antecipa para evitar qualquer frustração de expectativas do leitor.

Igualmente para evitar qualquer frustração de expectativas, desde já se alerte para o facto de
as presentes notas serem da lavra de um estudante do Direito Penal, e não de um
Constitucionalista, termos em que se centrará o comentário essencialmente naquela primeira
perspectiva, deixando aos cultores do Direito e do Processo Constitucional as observações que
sob tais prismas ao caso coubessem.

2 – Apresentação do problema

A questão problemática objecto do Acórdão n.º 247/2005, e que em sequência nos ocupará, é
a da constitucionalidade do tipo previsto e punido no art.º 175º do Código Penal ( CP), à luz dos
artigos 13º n.ºs 1 e 2 e 26º n.º 1 da Constituição da República, por relação com a incriminação
constante do art.º 174º do CP1. Rectius, é a questão da inconstitucionalidade de tal tipo.

O Tribunal Constitucional (TC) foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do tipo


do art.º 175º CP por parte de um Arguido condenado em primeira instância numa pena de dois

1 Desde já se refira que no Acórdão em apreço o Tribunal Constitucional reduz o âmbito da questão problemática que
lhe é colocada pelo Recorrente, redução essa de acerto e legitimidade duvidosa, porquanto as questões de
constitucionalidade suscitadas pelo tipo do art.º 175º CP extravasam claramente o âmbito do respectivo confronto
com o art.º 174º CP, além de que o Recorrente expressamente havia solicitado a apreciação da constitucionalidade
não só na perspectiva que veio a merecer a atenção do Tribunal Constitucional, mas também em absoluto. O que,
aliás, emerge expressamente do teor do Acórdão, quando transcreve a Conclusão A) das Alegações do Recorrente, a
qual reza assim: “No requerimento de recurso interposto para o STJ, o recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade do art.º 175º CP, face aos art.ºs 13º n.ºs 1 e 2 e 26º n.º 1 da CRP (…), nomeadamente quando
aquele preceito é confrontado com o art.º 174º do CP”.
anos e seis meses de prisão pela prática de dois actos homossexuais com adolescentes,
condenação que veio a ser confirmada por um aresto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

O recurso interposto pelo Arguido para o STJ assentava precisamente, no que aqui importa, na
invocação da inconstitucionalidade material do tipo penal constante do referido art.º 175º CP,
nos mesmos termos atrás referidos. Entendeu, porém, tal Supremo Tribunal que nenhuma
inconstitucionalidade inquinava o tipo incriminador dos Actos Homossexuais com
Adolescentes, o que motivou o pedido de intervenção do TC.

E é da análise desse recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade que resultou o


aresto que ora sumariamente apreciamos, procurando não só aferir do acerto da decisão do
TC, mas também apurar da respectiva força conformadora do futuro do tipo colocado em crise.

Para tanto, seguiremos o seguinte percurso: apresentaremos uma breve leitura dos tipos pp. e
pp. nos art.ºs 175º e 174º CP, respectivamente, passando depois para uma recensão dos
argumentos a ponderar na decisão de inconstitucionalidade daquele primeiro tipo, findando
pela apreciação do Acórdão que motivou as presentes linhas.

3 – Análise sintética do art.º 175º do Código Penal

3.1 – Introdução

Dispõe o art.º 175º CP que “quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com
menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido
com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”2.

2 Sob a epígrafe Actos Homossexuais com Adolescentes, tal tipo foi mantido inalterado pela Lei n.º 65/98 de 2 de
Setembro, que apenas alterou a epígrafe do artigo, reconduzindo-se a circunscrição típica à já introduzida
anteriormente. Sobre os art.ºs 172º, 174º e 175º CP, e demais matérias conexas, confira-se, entre outra, a seguinte
bibliografia básica: Maria João ANTUNES, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II,
Direcção de Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 175º, § 2, p.569 e ss.;
Teresa Pizarro BELEZA, Conceito legal de violação, in Revista do Ministério Público, Ano 15, n.º 59, 1994, pp. 51 e
ss.; Teresa Pizarro BELEZA, Sem sombra de pecado. O repensar dos crimes sexuais na revisão do Código Penal, in
Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal I, CEJ, Lisboa, 1996, pp. 1x1 e ss.; Teresa Pizarro
BELEZA, A revisão da Parte Especial na reforma do Código Penal: legitimação, reequilíbrio, privatização,
‘individualismo’, in Jornadas sobre a revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, pp. 89 e ss.; Jorge de Figueiredo
DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de Jorge de Figueiredo Dias,
Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Nótula prévia ao artigo 163º e Anotação aos artigos 172º e 174º; Jorge Dias
DUARTE, Homossexualidade com menores – artigo 175º do Código Penal, in Revista do Ministério Público, Ano
20, n.º 78, 1999, pp. 73 e ss.; José Mouraz LOPES, Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no
Código Penal, após a Revisão de 1995, Coimbra Editora, Coimbra, 1995; Karl Prelhaz NATSCHERADETZ, O
Direito penal sexual: conteúdo e limites, Almedina, Coimbra, 1985; Rui PEREIRA, Liberdade Sexual na reforma do
Código, in Sub Judice, n.º 11, 1996; A. Lopes ROCHA, O novo Código Penal Português – algumas questões de
política criminal, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 322.

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Este tipo encontra as suas raízes no art.º 253º do Projecto de Parte Especial do Código Penal
de 1979 e no art.º 207º da versão originária do Código Penal de 1982, onde a punição,
contudo, apresentava pressupostos e envolvência diversa.

Com efeito, no art.º 253º do referido Projecto, punia-se não só (n.º 1) aquele que
desencaminhasse menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de actos contrários ao
pudor3, consigo ou com outrem do mesmo sexo, mas também (n.º 2) aquele que habitualmente
cometesse atentado ao pudor com pessoa do mesmo sexo, o que equivalia a uma
criminalização da homossexualidade habitual entre adultos, representando um verdadeiro
retrocesso em relação ao Código Penal anterior, no qual a homossexualidade entre adultos
não se contava entre as condutas merecedoras de qualquer reacção do sistema penal.

Já o art.º 207º da versão originária do CP de 1982 apenas manteve a criminalização daquele


que desencaminhasse menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de actos contrários ao
pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo, correctamente remetendo para fora do âmbito
da relevância penal a punição da referida homossexualidade entre adultos 4/5.

3.2 – O Bem Jurídico protegido

O actual 175º CP encontra-se inserido na Secção II – Crimes contra a autodeterminação sexual


– do Capítulo V do Título I da Parte II do CP, Capítulo aquele que se desenvolve sob a epígrafe
Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Ora, uma análise da inserção sistemática da dita Secção II do Capítulo V, bem como uma
análise do percurso evolutivo de tal inserção sistemática, permite não só constatar a paulatina
modificação de que o direito penal sexual tem sido objecto nos últimos anos, como outrossim
autoriza concluir que o que o Legislador procura proteger nos tipos arrumados dentro do
Capítulo V do Título I da Parte II do CP é exclusivamente a Liberdade e a Autodeterminação
sexuais6, e não já permitir a utilização da arma penal como instrumento modelador de
comportamentos social, moral e religiosamente considerados desviantes.

3 Quanto ao significado e alcance do conceito de acto contrário ao pudor, cfr. infra n.º 4 quanto se refere sobre acto
sexual de relevo.
4 Uma apreciação sumária da evolução da tipificação dos hoje chamados crimes sexuais desde o Código Penal de

1852 até ao presente é feita sob o Capítulo II Ponto 3.1. do Acórdão n.º 247/2005 do TC que motiva o presente
comentário.
5 Sobre o teor do art.º 207º do CP 1982 na sua redacção originária confira-se A. Lopes ROCHA, O novo Código

Penal Português – algumas questões de política criminal, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 322, pp. 59 e s.
Sobre a evolução do tipo penal do 175º CP, e apreciação do bem jurídico subjacente, Maria João ANTUNES,
Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de Jorge de Figueiredo Dias,
Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 175º, § 2, p.569 e ss.
6 Precisamente no sentido do texto, afirma-se no Acórdão n.º 247/2005 do TC, ora em análise, no Capítulo II Ponto

3.2., o seguinte: “A divisão do Capítulo V do CP em duas secções (…) tem o sentido específico de garantir a

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Aliás, as conclusões a que tais observações nos conduzem são inequivocamente reforçadas
pelo próprio estudo dos diversos tipos incriminadores.

Com efeito, inequívoco é, por exemplo, que com a criminalização da coacção sexual ( 163º CP) e
da violação sexual (164º CP) se pretende hoje proteger a liberdade sexual, de homens e
mulheres, i.e., o mesmo valor, ou bem jurídico, que é tutelado no Capítulo IV do mesmo Título I
– Dos Crimes contra a Liberdade Pessoal –, mas adaptado à esfera específica, e íntima, da
sexualidade humana7.

Trata-se de liberdade no sentido de uma totalmente livre auto conformação da vida e da prática
sexuais da pessoa, com os estritos limites que resultem da tutela de outros bens jurídicos com
aquele concorrentes. Assim que possa afirmar-se que, à luz do nosso Direito Penal, cada
pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às
práticas, seja quanto ao momento ou ao lugar, seja quanto aos parceiros adultos com quem as
partilha, desde que o faça em privado e não haja oposição destes. Correlativamente, se a
liberdade for de forma importante lesada, a intervenção penal impõe-se, que é o que sucede
nos casos previstos nos art.ºs 163º e ss. do CP.

Ou seja, já se não erige em objecto de protecção – e objecto de protecção exclusivo, como durante
séculos aconteceu –, dos crimes de coacção sexual e de violação o valor da virgindade pré-
matrimonial da mulher (donzela), ou o valor da propriedade e posse da genitalia e actuação
sexual-afectiva feminina por parte do respectivo marido. Aliás, exactamente os mesmos
objectos de protecção (liberdade e autodeterminação sexuais) se encontram presentes nas
incriminações do Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistência (165º CP), do Abuso Sexual
de Pessoa Internada (166º CP) e da Fraude Sexual (167º CP). Por fim, também com os tipos pp. e
pp. nos art.ºs 168º a 171º CP, embora com nuances cuja análise extravasaria os propósitos
desta análise, se protege essencialmente a referida liberdade sexual, protecção penal essa
desprovida de qualquer matiz moral ou religioso.

protecção da liberdade e da autodeterminação sexual de todas as pessoas, independentemente da idade (Secção I) e


de alargar esta protecção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou o seriam dentro de limites
menos amplos, ou assumiriam em todo o caso uma menor gravidade (Secção II). (…) Significa o exposto que o bem
jurídico protegido na Secção dos Crimes contra a autodeterminação sexual é também o da liberdade e da
autodeterminação sexual, relacionado, de forma muito particular, com o bem jurídico do livre desenvolvimento da
personalidade do menor na esfera sexual, num exercício de ponderação dos diferentes graus de desenvolvimento
desta personalidade. Ponderação que se traduz numa tutela diferenciada da liberdade e da autodeterminação sexual
dos menores, em razão da idade: até aos 14 anos (art.º 172º); entre os 14 e os 16 anos (art.ºs 174º, 175º e 176º); e
entre os 14 e os 18 anos (art.º 173º)”.
7 Claro que o bem jurídico liberdade sexual acaba por manter e justificar autonomia em face do bem jurídico geral

que norteia o Capítulo anterior, i.e., a liberdade pessoal. Com efeito, a liberdade pessoal traduz a liberdade geral de
acção ou omissão que a todos os seres humanos cabe, ou seja a livre decisão sobre o fazer e o omitir. Já a liberdade
sexual se refere exclusivamente à livre e própria conformação da vida sexual de cada um. Daí dizer-se que os crimes
sexuais protegem a liberdade sexual negativa perante actos sexuais, e não já a liberdade sexual positiva para actos
sexuais, que decorre necessariamente do ordenamento jurídico perspectivado na sua globalidade, bem como decorre,
como abaixo melhor se verá, da correcta delimitação típica do art.º 175º CP.

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Assim que tanto possam ser objectos de ataque dos tipos penais referidos Homens como
Mulheres, posto que quer uns quer outros podem ser visados pelos actos sexuais de relevo,
pelo coito anal e pelo coito oral utilizados pelos tipos para circunscrever a matéria da proibição.
Apenas a cópula pode exclusivamente ser praticada ou direccionada, por definição, por ou
contra Mulheres.

Sublinhe-se ainda, por ser constatação inultrapassável, que em todos os referidos tipos o
legislador opta por distinguir duas únicas modalidades de acção sexual por parte do agente do
crime: a prática de acto sexual de relevo (163º n.º 1, 164º n.º 1, 165º n.º 1, 166º n.º 1, 167º n.º 1 CP); e a
prática de cópula, coito anal ou coito oral (163º n.º 2, 164º n.º 2, 165º n.º 2, 166º n.º 2, 167º n.º 2 CP ).
Assim se esgotam os universos de possibilidade de contacto sexual entre seres humanos de
um ponto de vista criminal, o que abaixo será objecto de mais detalhada análise.

Já na Secção II do Capítulo V do Título I da Parte II do Código Penal a protecção é dada não à


Liberdade Sexual mas à Autodeterminação Sexual, o que impõe se compreenda e se esclareça
a diferença de realidades que se encontra subjacente ao pensamento legislativo ao distinguir a
autodeterminação sexual da liberdade sexual.

Ora, nos Crimes contra a Autodeterminação Sexual protege-se, ainda, a liberdade sexual da
vítima, mas aqui sob uma forma particular: não já face a condutas que constituam ou visem a
extorsão de contactos sexuais, mas face a condutas que, mesmo sem qualquer coacção nem
violência, podem prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade do visado
por tais comportamentos. Tal emerge de modo particularmente notório nos tipos pp. e pp. nos
art.ºs 172º e 173º CP, onde a possibilidade de dano para o livre desenvolvimento da
personalidade é criada, ou potenciada, pela idade da vítima ( menor de 14 anos)8, ou pela idade da
mesma vítima associada à relação entre a vítima e o agressor ( menor entre 14 e 18 anos confiado ao
agente para educação ou assistência).

E é neste enquadramento geral, sistemático e típico, que surgem as incriminações constantes


dos art.ºs 174º e 175º CP.

Ora, em face de quanto atrás se expôs, afigura-se-nos linear que o bem jurídico protegido
através do tipo penal consagrado no art.º 175º CP é hoje, exclusivamente, a autodeterminação
sexual (e o livre desenvolvimento da personalidade), entendida esta como uma desinência da liberdade
sexual. No mesmo sentido se posiciona hoje a maioria da doutrina portuguesa e estrangeira 9,
assim se compreendendo a, correcta, afirmação de Maria João Antunes segundo a qual “o

8 Assim que se diga que o art.º 172º CP é um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um
perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor, ou o dano correspondente, podem não vir
a ter lugar, sem que com isto a integração no tipo fique afastada. I.e., o bem jurídico é apenas a ratio legis, o motivo
que conduziu o legislador, mas que se não traduz no tipo objectivo de ilícito.
9 Neste sentido Maria João ANTUNES, Idem, p.570 e A. Lopes ROCHA, Idem, p. 60.

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legislador teve por objectivo assegurar ao menor um desenvolvimento sem perturbações, no
que à esfera sexual diz respeito. Importando assegurar tal desenvolvimento especialmente
quando se trata de adultos a praticar actos (…) prejudiciais para o desenvolvimento psíquico,
intelectual e social do jovem”10.

Mas não se quedam por aqui as considerações que se impõem a respeito do bem jurídico
protegido pelo tipo do art.º 175º CP. Imperioso é também recordar que, por força da
circunscrição típica constante do art.º 172º CP – Abuso sexual de crianças –, entende o
legislador que é apenas até aos 14 anos de idade, regra geral, que a prática de actos sexuais
sobre menores prejudica / pode prejudicar o desenvolvimento sexual dos mesmos. Por outras
palavras, os comportamentos sexuais proibidos pelo Código Penal são, como regra básica, os
que se projectem sobre objectos de acção que sejam menores de 14 anos, i.e., crianças.

Já os comportamentos sexuais que tenham por objecto maiores de 14 anos apenas serão
criminosos se se tratar de menores entre os 14 e os 18 anos que estejam dependentes (173º
CP), ou de menores entre os 14 e os 16 anos, caso em que cabe distinguir, na perspectiva do
legislador, se se trata de actos heterossexuais, aqui se exigindo que os menores sejam
inexperientes (174º CP), ou de actos homossexuais, em que nenhuma outra exigência típica é
feita (175º CP). Quanto ao Lenocínio, o mesmo não se traduz na prática de comportamentos
sexuais hoc sensu, mas no fomento, no favorecimento ou na facilitação da prática pelo menor
de comportamentos sexuais (176º).

Daí que alguns autores afirmem que o art.º 175º se erige como excepção à regra segundo a
qual uma vez completados os 14 anos de idade o menor é (rectius, se presume) livre o bastante
para decidir acerca dos relacionamentos sexuais respectivos 11. Excepção cujo acerto e
legitimidade, de um ponto de vista constitucional, será precisamente objecto da análise que
adiante se fará.

Assim se compreende outrossim que seja ampla na doutrina a apresentação da ratio legis do
art.º 175º CP como residindo no “pressuposto de que os actos homossexuais em que
intervenham maiores de idade e menores entre 14 e 16 anos de idade são prejudiciais ao livre
desenvolvimento destes últimos, justificando-se assim a criminalização das condutas descritas
no tipo legal de crime”12.

Que esse foi, aliás, o pressuposto de que partiu o legislador, resulta expresso nas Actas da
Comissão Revisora, onde é afirmado com clareza ser o carácter homossexual dos actos

10 Maria João ANTUNES, Idem, ibidem.


11 Neste sentido, cfr. Teresa Pizarro BELEZA, Conceito legal de violação, cit., p. 56.
12 Maria João ANTUNES, Idem, ibidem.

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sexuais de relevo a justificar a criminalização 13. A conclusão sai reforçada quando se pondera
que no tipo vizinho do art.º 174º - que para a doutrina abrange exclusivamente a prática de
actos heterossexuais e não já de actos homossexuais –, a manutenção de cópula, coito anal
ou coito oral entre um maior e um menor entre os 14 e os 16 anos apenas constituirá crime se
tiver havido abuso da inexperiência deste último14. Apenas neste sentido se compreende a
referência ao “desvalor especial da homossexualidade” e à afirmação de que só as relações
heterossexuais são “normais”15.

Tudo asserções cujo acerto lógico-racional e admissibilidade constitucional abaixo se


sindicarão.

3.3 – O tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito

De acordo com o entendimento pacífico da Doutrina, pode ser agente de um crime de actos
homossexuais com menores qualquer pessoa, independentemente do respectivo sexo, desde
que maior, i.e., com 18 ou mais anos de idade. Que o mesmo é dizer que, independentemente
da imputabilidade de um menor entre os 16 e os 18 anos, o mesmo não poderá ser
responsabilizado pela prática do crime em apreço16.

Já a vítima terá de ser um menor entre os 14 e os 16 anos, por expressa indicação do tipo. O
que aliás é consentâneo com o restante regime instituído, porquanto a prática de quaisquer
actos (homo-)sexuais de relevo com menores até aos 14 anos de idade se subsume ao tipo p.

13 Actas da Comissão Revisora, 1993, p. 264.


14 Sobre o verdadeiro alcance desta incriminação, contudo, confira-se quanto infra se afirma, numa linha que nos
afasta da unânime posição doutrinal sobre a questão.
15 A este propósito pode ler-se no Acórdão que comentamos, sob o Capítulo II Ponto 4, o seguinte: “A criminalização

do comportamento daquele que, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos,
bem como ainda daquele que levar a que tais actos sejam por este praticados com outrem, é demonstrativa de que o
legislador terá partido do pressuposto de que a prática daquele tipo de actos, ainda que não haja abuso da
inexperiência do menor, pode ser prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente
numa das suas vertentes essenciais – a orientação sexual. Tratar-se-á de assegurar ao menor um desenvolvimento
sem perturbações no que à esfera sexual diz respeito, especialmente quando se trata de maiores a praticar actos
homossexuais de relevo com menores de certa idade, já que estas experiências poderão ser traumatizantes e fonte de
prejuízos sérios para o desenvolvimento psíquico, intelectual e social do jovem. Em causa estará, então, a protecção
de bens jurídicos constitucionalmente tutelados: a autodeterminação sexual e, em geral, o livre desenvolvimento da
personalidade, tudo com claro assento no disposto no artigo 26º n.º 1 da CRP. Anote-se, contudo, que o que se deixa
dito se reporta ao crime previsto no art.º 175º do CP, isoladamente considerado, ou seja, sem a ponderação do seu
lugar relativo no contexto da punição dos crimes sexuais de que são vítimas adolescentes, em particular dos que
incriminam condutas heterossexuais”. Questão esta a que abaixo voltaremos especificamente.
16 É, pois, patente, no regime instituído, a opção pela continuidade em relação à versão originária deste tipo penal

constante do art.º 207º do Código Penal de 1982. Como bem refere Maria João ANTUNES, op. cit., p. 572, “Seguiu-
se aqui a solução do art.º 207º da versão original do CP, que excluía a criminalização quando estivessem em causa
dois menores, em nome da convicção de que as experiências sexuais entre menores podem até ser benéficas para o
seu desenvolvimento sexual”. A este propósito confira-se igualmente quanto afirmado por Karl Prelhaz
NATSCHERADETZ, O Direito penal sexual: conteúdo e limites, cit., p. 154. A matéria foi abordada pela Comissão
Revisora, conforme resulta das respectivas Actas a p. 264.

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e p. no art.º 172º n.º 1 CP. Sublinha-se: para o art.º 172º n.º 1 CP a prática de actos sexuais
com menores de 14 anos é punível quer os actos praticados sejam heterossexuais ou
homossexuais.

Ainda no que concerne à circunscrição típica da vítima do crime, sublinhe-se que o menor entre
os 14 e os 16 anos terá de ser do mesmo sexo do agente do crime que leva a cabo a prática
dos actos (homo-)sexuais de relevo, ou do mesmo sexo do terceiro com quem o agente do
crime o leva a praticar os ditos actos sexuais de relevo17.

Por outro lado, em face dos elementos típicos seleccionados pelo legislador, a doutrina
sublinha ser “irrelevante para o preenchimento do tipo legal de crime que a vítima já tenha tido
anteriormente experiências homossexuais, que tenha já capacidade para tomar decisões no
que diz respeito ao relacionamento sexual e que tenha até sido ela a tomar a iniciativa no
processo que conduziu à prática de actos homossexuais de relevo”18.

Ora, esta é precisamente uma das questões fundamentais levantadas no Acórdão do TC que
cumpre analisar, termos em que se remete para diante as considerações que a este propósito
cabe tecer.

Ainda necessário para a compreensão do tipo objectivo de ilícito é determinar o que sejam os
actos homossexuais de relevo que o agente tem que praticar para preencher o tipo do art.º
175º CP. Para tanto, caberá lançar mão do entendimento doutrinal cristalizado sobre o
significado de actos sexuais de relevo, para em sequência determinar quais as particularidades
que autonomizam os actos homossexuais de relevo.

Assim, acto sexual de relevo terá de ser, antes de tudo o mais e analiticamente, um acto
sexual.

E um acto sexual é, em geral, todo aquele comportamento19 que de um ponto de vista objectivo
assume natureza, conteúdo ou significado directamente relacionado com a esfera da

17 De anotar, desde já, a diferença típica que se detecta no confronto deste tipo do art.º 175º CP com o do art.º 174º
CP. É que enquanto o tipo incriminador dos actos homossexuais com adolescentes expressamente abrange o
comportamento daquele que “levar a que” tais actos “sejam por este praticados com outrem”, tal já não sucede no
tipo incriminador dos actos sexuais com adolescentes, termos em que apenas se proíbe neste tipo a manutenção de
cópula, coito anal ou coito oral com menores entre os 14 e os 16 anos, e não já a conduta daquele que leve a que tais
actos sejam pelo menor praticados com outrem. Tal comportamento, quanto muito, subsumir-se-á ao tipo do
lenocínio, do art.º 176º CP, que por definição também abrangerá o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício
da prostituição homossexual. Dito por outras palavras, entende o legislador ser comportamento digno de censura
penal levar a que outrem pratique actos homossexuais de relevo com adolescentes, mas já o não ser levar a que
outrem pratique actos heterossexuais de relevo com os mesmos adolescentes… A razão lógica, e a legitimidade
jurídica, de tal discrepância, todavia, escapa-se-nos.
18 Maria João ANTUNES, Idem, ibidem.
19 Activo ou omissivo, assim permita a razão imaginar actos omissivos de natureza, conteúdo ou significado sexual.

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sexualidade, e, atendendo ao bem jurídico protegido pelos tipos em questão, com a liberdade
de determinação sexual de quem o sofre ou pratica 20.

***
Tradicionalmente, na delimitação do que fossem actos sexuais de relevo alguma doutrina
exigia uma conotação subjectiva para os mesmos, com isso se querendo referir a uma intenção
libidinosa, i.e., uma intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a
excitação sexual21. Com tal exigência pretendia tal doutrina excluir relevância típica a alguns
comportamentos que objectivamente poderiam ser recolhidos no tipo ( os exemplos tradicionalmente
dados a este respeito eram, v.g., a carícia aos filhos, os comportamentos médicos implicados na observação de
pacientes, etc.). Contudo, a maioria doutrinal entende hoje preferível uma interpretação
objectivista do conceito acto sexual de relevo, considerando por conseguinte irrelevante o
motivo da actuação do agente, que tanto pode ser uma verdadeira e própria intenção
libidinosa, como pode ser uma plêiade de outras intenções, nomeadamente o desprezo, o
cinismo, a curiosidade mórbida, etc. No dizer de Figueiredo Dias, “não significa desconsiderar o
circunstancialismo de lugar e tempo, de condições que o rodeiam e que o façam ser
reconhecível pela vítima como sexualmente significativo”22.

Ora, sem querer aqui entrar em polémicas de extensão excessiva para uma abordagem
incidental ou instrumental de tal questão, diga-se, porém, que a nosso ver nenhum acto poderá
ser considerado como um acto sexual de um ponto de vista estritamente objectivo. Isto é,
caberá necessariamente ponderar a subjectividade que anima e carrega o acto praticado, sob
pena de poder considerar-se acto sexual um acto que animicamente o não era. Isto sem
prejuízo de quanto abaixo se dirá sobre a desnecessidade típica de acompanhamento ou
compreensão pela vítima da natureza e alcance do acto com que é confrontada.

O que se pretende ressaltar é que um acto não pode ser, de um prisma exclusivamente
objectivo, um acto sexual, porquanto o carácter sexual do mesmo pressupõe necessariamente
um animus. Assim é pela própria natureza humana, natureza essa em que a sexualidade
assume contornos marcadamente emocionais ou racionais, e não puramente físicos.

E mais: nem sequer se pode aceitar a crítica que à dita orientação subjectivista é feita de que a
intenção pode não ser libidinosa, mas antes uma qualquer das outras intenções atrás referidas.
Com efeito, o estudo das “razões” motivadoras dos referidos comportamentos sexuais permite
concluir que o desprezo, o cinismo ou a curiosidade mórbida, nesses casos, funcionam ainda
como um caminho, ou meta, para despertar, ou satisfazer, uma excitação sexual. Que o

20 A concepção objectiva de acto sexual de relevo tem vindo a ser defendida, entre outros, por Tröndle, Maiwald, etc.
21 Entre nós, nesta perspectiva, Eduardo Correia, Maia Gonçalves, etc.
22 Jorge de Figueiredo DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de

Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 172º, § 1.

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mesmo é dizer que a existência de qualquer outra intenção de permeio, por parte do agente do
acto sexual, não afasta que, em última análise, tal intenção imediata visa outra intenção,
mediata, de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual.

Por fim, esclareça-se mais um pormenor do nosso entendimento sobre a questão: é que se é
certo que não pode ser sempre exigível, de um ponto de vista típico e até político-criminal, que
a vítima do acto sexual acompanhe ou compreenda a natureza e o alcance sexual do acto, não
menos certo é que, na maioria dos casos, nos tipos penais existentes, tal acompanhamento ou
compreensão tenham que existir. E mesmo nos casos em que é mais duvidoso que tal
acompanhamento ou compreensão sejam completos e inteiramente esclarecidos, ainda assim
terão que existir num qualquer grau, por leve que seja, sob pena de ter de se concluir que
inexiste crime. Quer com isto recordar-se ser bem jurídico tutelado pelos tipos, nos art.ºs 173º e
ss. CP, a autodeterminação sexual da vítima. Ora, se a vítima nem sequer compreende o
significado e alcance do acto, dificilmente poderá falar-se de verdadeira limitação ou
constrangimento da autodeterminação da vítima. Um acto que é totalmente incompreendido, ou
nem sequer acompanhado, não poderá, por definição, ter qualquer potencialidade limitativa do
livre arbítrio da vítima.
Acrescente-se, ainda, outro juízo conclusivo que as considerações retro expendidas impõem:
teoricamente apenas quem não esteja determinado preteritamente em termos sexuais pode ver
limitada ou constrangida a respectiva autodeterminação. Assim que, uma vez determinada a
sexualidade de um indivíduo seja impossível limitar ou constranger a determinação, pretérita,
havida. A partir desse momento, os actos sexuais que envolvam a pessoa já determinada ou
são consentâneos com tal determinação e queridos, caso em que razão alguma autoriza a
criminalização do comportamento, ou não são consentâneos com tal determinação, sendo
rejeitados, caso em que o comportamento poderá ser subsumível a outro tipo criminal, mas não
aos previstos nos art.ºs 173º e ss. CP.
***
Posto isto, e uma vez determinado o que seja um acto sexual, cabe apurar o que seja um acto
sexual de relevo, na medida em que é clara intenção do legislador afastar a tipicidade de actos
insignificantes. Por outras palavras, e mantendo no horizonte o bem jurídico protegido pelo tipo,
cabe encontrar quais dos actos sexuais pensáveis são relevantes de um ponto de vista de
constituírem limitação da liberdade da vítima, rectius um constrangimento à autodeterminação
da vítima.
Assim caberá remeter para o âmbito da irrelevância penal todos aqueles actos que, sendo
actos sexuais, não são de molde a prejudicar a livre determinação sexual da vítima, seja pela
sua falta de expressividade (quantitativa, temporal), ou pela sua intermitência.

- 10 -
E também este entendimento confirma quanto atrás afirmado sobre a irrelevância penal, à luz
do disposto nos crimes pp. e pp. nos art.ºs 174º e ss., de actos sexuais praticados contra, ou
com, pessoa maior de 14 anos cuja sexualidade já esteja preteritamente determinada, posto
que aí o acto sexual em questão não será de relevo por falta de aptidão do mesmo para
cercear a autodeterminação sexual da vítima. Quanto muito serão actos sexuais relevantes
para efeitos do disposto nos tipos pp. e pp. nos art.ºs 163º e ss.
Sendo inequívoca a dificuldade de delimitar o que seja um acto sexual de relevo, certo é que
ainda mais difícil era concretizar o conceito, anteriormente utilizado no nosso direito pátrio, de
atentado ao pudor. E não só era difícil tal circunscrição, como era inclusivamente incorrecta de
um ponto de vista técnico, porquanto na, e para a, utilização da arma penal do Estado não é
admissível a remessa para quaisquer cânones de moral sexual ou de sentimentos gerais da
colectividade, sempre expressões mais ou menos arbitrárias de aferição de normalidades
estatísticas, as mais das vezes oficiais e inconstantes (inconstantes porque mutáveis e porque
conflituantes, i.e., porque geradoras por si mesmas de índices de conflituosidade social ). O abandono do
conceito de atentado ao pudor é ainda mais de elogiar quanto se ponderar que assim se
afastou definitivamente do âmbito dos juízos penais conotações de censurabilidade social ou
religiosa que tal conceito implicava.
De sublinhar, também, porque manifestamente importante nesta sede, é o facto de a evolução
vivida no direito penal sexual português se ter norteado por um propósito político-criminal de
descriminalização. Paralelamente se concluiu que a interpretação do elemento típico tem de
ocorrer à margem de todo o conteúdo moralista.
O que será, então, o acto sexual de relevo? Obviamente que o acto sexual de relevo hoc sensu
não pode, por definição, para o legislador ser a cópula, nem o coito anal ou oral23, porquanto
tais actos integram já um patamar distinto de gravidade e são expressamente autonomizados
daquele conceito genérico por parte do legislador. Assim resulta quer da análise comparativa
dos art.ºs 163º e 164º, quer do cotejo intra-típico dos art.ºs 172º a 175º. Mas tal
conceptualização afigura-se insuficiente, porque meramente negativa, i.e., limitando-se a
excluir os actos mais pesadamente ou declaradamente sexuais.
Assim que a densificação do que sejam actos sexuais de relevo tenha de passar,
necessariamente, por uma apreciação casuística, caminho este em que o melhor arrimo inicial
deverá ser o resultante da concretização jurisprudencial.
Nesta senda, a jurisprudência foi identificando como actos sexuais de relevo ( ou, na vigência de
legislação anterior, como actos atentatórios do pudor), entre outros, os seguintes: beijos, toques ou

23 Atente-se que o que se afirma pondera o sentido em que o conceito é pelo legislador utilizado, posto que
ontologicamente quer a cópula, quer o coito anal e o coito oral são, obviamente, actos sexuais de relevo. São é, para o
legislador, nos art.ºs 163º e ss. CP actos sexuais de relevo especiais, porque encimando a lista daqueles por ordem de
gravidade ou intensidade.

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carícias em zonas genitais, toques ou carícias direccionadas às zonas genitais, toques ou
carícias com os genitais, masturbação, etc. 24. Quanto a nós acrescentaríamos ainda,
ampliando a esfera do conceito, actos de manietação e spanking, actos fetichistas, etc.25
Por fim, e ainda com o propósito de determinar o significado do elemento típico em análise,
sublinhe-se que para a existência de um acto sexual de relevo não é exigida pela Doutrina,
como atrás referido, a existência de consciência ou acompanhamento do mesmo acto por parte
da vítima, termos em que igualmente não tem que ser por esta compreendido tal acto com o
respectivo significado.
Tal é particularmente notório no caso do art.º 172º CP, posto que a ser diferentemente se
deixariam de fora do tipo comportamentos que notoriamente têm que o integrar. Além de que,
conforme atrás anotado, entendendo-se o tipo do art.º 172º CP como um crime de perigo
abstracto, então é patente e óbvio que a existência de um dano ou de um perigo concretizado é
tipicamente irrelevante para o preenchimento do tipo. Mas ainda assim se mantêm as
considerações atrás expendidas quando o que se trata é da definição de actos sexuais de
relevo relativamente a menores entre os 14 e os 16 anos, para os efeitos do disposto nos art.ºs
173º, 174º e 175º CP, sem que com isto se quebre qualquer unidade conceptual.
***
Percorrido todo este caminho, resta então apurar o significado de actos homossexuais de
relevo por confronto por actos sexuais de relevo. Ora, a este propósito, e como se antecipa
uma vez conhecidas as considerações anteriores, afigura-se-nos inatacável o conceito
apresentado por Maria João Antunes, quando escreve: “…acto homossexual é todo o acto
praticado entre pessoas do mesmo sexo, que de um ponto de vista predominantemente

24 De salientar que antes da inclusão do coito oral e o coito anal no tipo do art.º 164º CP – Violação –, ambos os
comportamentos eram jurisprudencialmente considerados como atentados ao pudor, i.e., e na nova categorização
legal, como actos sexuais de relevo. A partir do momento em que foram equiparados à cópula, nos demais tipos
verificou-se igual sistematização, termos em que os actos sexuais de relevo passaram, por definição, a ter de abranger
apenas outro tipo de actos sexuais menos pesadamente sexuais.
25 Questão particularmente interessante é a de discutir se os comportamentos descritos no n.º 3 do art.º 172º (acto de

carácter exibicionista; conversa obscena, escrito, espectáculo ou objecto pornográfico; utilização de pessoa em
fotografia, filme ou gravação pornográficos; exibir ou ceder materiais pornográficos), são ainda actos sexuais de
relevo hoc sensu, e por isso compreendidos no conceito do n.º 1, tendo sido autonomizados pelo legislador apenas por
razões da sua maior habitualidade ou gravidade, o que justificaria a punição agravada, i.e., equivalente à punição dos
mais pesados dos actos sexuais de relevo – os enunciados no n.º 2 –, ou se sendo conceptualmente actos sexuais de
relevo, não integram por regra o conceito jurídico-penal de acto sexual de relevo. A questão não é de todo irrelevante,
podendo ter consequências práticas de profunda importância. Com efeito, se se entender que a autonomização dos
actos descritos no n.º 3 do art.º 172º CP é uma verdadeira autonomização conceptual, ontológica ou essencial, então a
referência do legislador, noutros tipos, a actos sexuais de relevo não abrangerá tais comportamentos, que serão
considerados um tertium genus entre os actos sexuais de relevo, por um lado, e a cópula e os coitos anal e oral, por
outro. Assim, v.g., no art.º 175º CP. Ao invés, considerando que tais actos descritos no 172º n.º 3 CP integram o
conceito jurídico-penal geral de actos sexuais de relevo, apenas tendo sido autonomizados por razões de política-
criminal, então é óbvio que a referência genérica feita no art.º 175º n.º 1 CP os abrange directamente, apenas sendo
irrelevantes para agravação da pena respectiva. Cremos ser esta segunda via a única consentânea com o espírito
legislativo, além de a única justificável de um ponto de vista dogmático e de política-criminal.

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objectivo assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionado com
a esfera da sexualidade.” A tal definição acrescenta, e bem: “… o acto homossexual integra o
tipo objectivo de ilícito do crime se se considerar de relevo do ponto de vista do bem jurídico
tutelado. Exigência esta que desempenha a função negativa de excluir do tipo os actos
insignificantes ou bagatelares e a função positiva de exigir do intérprete que indague do relevo
do acto na perspectiva do bem jurídico protegido”.

Em suma, um acto homossexual de relevo não é mais do que um acto sexual de relevo
praticado entre duas pessoas do mesmo sexo. Nada mais. Inexiste especificidade no que
concerne ao conteúdo do acto sexual. Todos os actos sexuais de relevo poderão ser actos
homossexuais de relevo, tanto mais que a cópula, o coito anal e o coito oral não integram na
conceptualização sistemática utilizada pelo Código tal categoria, e mesmo o coito anal e o coito
oral poderão ser praticados entre pessoas do mesmo sexo.

Pelo que um elenco dos actos homossexuais de relevo, para efeitos de indiciação de
preenchimento do tipo, se obtém aqui por mera reprodução do atrás exposto relativamente ao
entendimento do que são actos sexuais de relevo.

Por fim, no que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, de salientar a exigência de dolo quanto a
todos os elementos objectivos do tipo, nos termos gerais. Em especial sublinhe-se a
possibilidade de surgirem situações de erro relativamente à idade das vítimas, a resolver nos
termos gerais, possibilidade esta estatisticamente muito expressiva, senão mesmo cada vez
mais expressiva em face do desenvolvimento físico cada vez mais precoce de cada novas
geração.

4 – Análise sintética do art.º 174º do Código Penal

4.1 – Introdução

Dispõe o art.º 174º CP que “quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com
menor entre 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2
anos ou com pena de multa até 240 dias”.

A origem histórica próxima do tipo em apreço pode encontrar-se no art.º 392º do Código Penal
de 1852-1886, quando punia “aquele que, por meio de sedução, estuprar mulher virgem, maior
de 12 e menor de 18 anos”. Segundo informa Figueiredo Dias, “o crime de estupro (…), deste
modo delineado, chegou a ser entre nós – e em tempos ainda relativamente recentes – o crime

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sexual que conduzia, de muito longe, ao maior número de condenações em Portugal: 391 em
1953”26.

A evolução sócio-cultural, e doutrinal, vivida no início do terceiro quartel do Século XX, levou a
que a amplitude legal e jurisprudencial dada ao tipo nos cem anos anteriores viesse a ser
amplamente restringida, termos em que o art.º 204º do CP “de 1982 – de resto na esteira do
art.º 246º do ProjPE de 1966 – tivesse operado um radical estreitamento da criminalização do
estupro, que agora passava a abranger apenas quem tivesse ‘cópula com maior de 14 anos e
menor de 16 anos, abusando da sua inexperiência ou mediante promessa séria de
casamento”27.

Os trabalhos da Comissão Revisora de 1991 vieram, por seu turno, a optar por “manter ainda a
criminalização, mas operando uma nova restrição do seu âmbito, nomeadamente na parte em
que considerava ainda tipicamente relevante a sedução se ela tivesse tido lugar ‘com
promessa séria de casamento’, e diminuindo ainda mais os limites da punição, a ponto de
permitir (…) que fosse cominada pena de multa em alternativa à pena de prisão”28. A
justificação para tal movimento é dada por Figueiredo Dias quando refere que o crime de
estupro perdeu o papel que tivera de instrumento de uma certa moralidade em termos de
costumes sexuais.

A mais recente alteração típica veio a ocorrer com a revisão de 1998, data em que:

 Desapareceu a nomenclatura “estupro”, tendo passado o tipo a denominar-se actos


sexuais com adolescentes;

 Passou a exigir-se, quanto ao agente do crime, que fosse pessoa maior; e,

 A acção passou a compreender não só a cópula mas também o coito anal e o coito
oral29.

26 Jorge de Figueiredo DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de
Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 174º, § 1, p.560. De sublinhar a
expressividade dos dados estatísticos fornecidos pelo Autor, quando, a p. 562, informa sobre o número de
condenações havidas pela prática do crime de estupro nos anos subsequentes, e após o processo de restrição de
criminalização. Assim: 349 condenações em 1970, 137 condenações em 1976, 69 condenações em 1982 e 1 em 1988,
data a partir da qual nenhuma outra condenação foi estatisticamente registada.
27 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, p. 562.
28 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, ibidem.
29 O que tendo significado, num primeiro plano, a assimilação de dois actos que anteriormente eram vistos como

actos sexuais de relevo, rectius, como actos atentatórios do pudor, à cópula, permitiu, num segundo plano, subsumir
no tipo não só comportamentos praticados por, ou contra, seres do sexo feminino, mas também comportamentos
praticados por, ou contra, seres do sexo masculino. E as consequências não se quedam por aqui, quando se constata,
sem margem para dúvidas, que o coito oral pode ser praticado contra seres do sexo masculino, por seres de sexo
feminino ou masculino, e que o coito anal pode ser praticado contra seres do sexo masculino, por seres do sexo
masculino. Questão esta, de alargamento típico, a que abaixo se regressará.

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Quanto ao significado de tais alterações, abordar-se-á a questão infra aquando da análise do
tipo de ilícito do crime em apreço, momento em que igualmente se apreciará da bondade do
vaticínio segundo o qual “o crime em análise continua a sua marcha inexorável (…) para o total
desaparecimento”30.

4.2 – O bem jurídico protegido

A doutrina unanimemente encontra como bem jurídico protegido pelo tipo do art.º 174º CP o
livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente de 14 a 16 anos, de qualquer sexo, face a
processos proibidos de sedução conducentes à cópula ou ao coito anal ou oral”31.

A nosso ver impõe-se uma simplificação da identificação do bem jurídico, sob pena de se fazer
introduzir na análise a ponderação de elementos espúrios que verdadeiramente não constituem
identificação do bem jurídico, mas antes determinação da modalidade ou fim da acção.

Assim, dir-se-á que o que se protege com a incriminação do art.º 174º CP é a


autodeterminação sexual dos menores entre os 14 e os 16 anos, i.e., pretende proibir-se
comportamentos que possam limitar ou constranger o processo de livre determinação dos
menores entre os 14 e os 16 anos no que respeita à respectiva sexualidade. Porém, o
legislador entendeu por bem restringir os comportamentos puníveis à cópula, ao coito anal e ao
coito oral, deixando de fora todos os demais actos sexuais de relevo para além daqueles.

Também aqui, por consequência, nos afastamos do pensamento de Figueiredo Dias, quando
entende que o bem jurídico protegido por este tipo não pode ser “aqui, sem mais, a ‘livre
disposição da personalidade sexual, isto é, a liberdade de determinação sexual’;”, afirmando
que se assim fosse “ficaria sem se perceber a que viriam os limites etários estabelecidos no
tipo”. Ora, os limites etários estabelecidos no tipo, a nosso ver, nada brigam com o bem jurídico
protegido identificado: é precisamente a liberdade de determinação sexual dos seres humanos
entre os 14 e os 16 anos – período por excelência de cristalização de tal determinação sexual, que hoje se
entende iniciar-se num período ainda anterior à puberdade –, que o tipo quer proteger, exclusivamente32.

E tal entendimento é, além de tudo o mais, claramente consentâneo com a estrutura


sistemática prevista e desejada pelo legislador. As crianças até aos 14 anos não se encontram
ainda sexualmente determinadas, por isso será crime qualquer comportamento de carácter
sexual em que as mesmas sejam envolvidas. Isto porque se entende, e bem, que o
envolvimento em tais comportamentos põe em perigo o desenvolvimento da personalidade

30 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, p. 564.


31 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, pp. 563 e s.
32 Por se entender, a nosso ver admissivelmente, que a partir dos 16 anos de idade não se está, por regra, sexualmente

indeterminado.

- 15 -
respectiva. Daí que seja tipicamente desnecessário apurar da existência de qualquer lesão ao
bem jurídico, ou sequer de qualquer concreta colocação em perigo do dito bem – cfr. art.º 172º CP.

Já a partir dos 14 anos, e concomitantemente com a assunção pelo legislador de que os


comportamentos sexuais com esses menores são possíveis e, em alguns casos, até
desejáveis (v.g. comportamentos entre menores, na descoberta da sua própria personalidade e sexualidade),
apenas poderão ser criminalizados comportamentos sexuais em circunstâncias precisas, a
saber, circunstâncias que possam limitar ou constranger o processo de determinação sexual.
E, sublinhe-se, não são proibidos comportamentos conducentes à cópula, ao coito anal e oral,
mas sim a cópula, o coito anal e o coito oral, posto que o legislador expressamente deixou de
fora da punição outros actos sexuais que, por maior relevo social, psíquico ou emocional que
tenham, não se entende que sejam aptos a limitar ou constranger a determinação sexual que
nessas idades está em curso33/34.

Por fim, pode também concluir-se que afastada está a protecção de outros bens jurídicos que
legislações pretéritas pretendiam tutelar com o tipo do estupro, v.g., ainda e sempre, a
virgindade pré-matrimonial da mulher, a moral ou decência das filhas família, a gravidez
indesejada, a desonra familiar, etc. Conforme bem refere Figueiredo Dias, “esta faceta
subsidiária do bem jurídico protegido desapareceu hoje porém completamente, uma vez que a
realização do coito anal e do coito oral foi tipicamente equiparada à cópula”35.

4.3 – O tipo objectivo e subjectivo de ilícito

Conforme atrás antecipado, as alterações legislativas verificadas em 1998 têm, a nosso ver,
um alcance muito maior do que aquele que pela doutrina lhes é reconhecido, posto que o que
se verificou foi um verdadeiro alargamento do tipo, principalmente ao nível dos sujeitos
envolvidos. Como passa a demonstrar-se.

Quanto ao agente do crime, pode sê-lo qualquer pessoa maior, independentemente do


respectivo sexo. Com efeito, não só o tipo não apresenta qualquer limitação ao quem
introdutório, como os comportamentos sexuais descritos, i.e., a acção típica, pode ser a cópula,
o coito anal ou oral, tudo actos que podem ser levados a cabo por homens ou mulheres,

33 Cfr. Ponto 3.2 retro.


34 Assim que não seja típico o comportamento daquela Mulher que se limite a masturbar um Rapaz com idade
compreendida entre 14 e 16 anos, apesar de a masturbação ser um acto social, psíquica e emocionalmente carregado
de conteúdo sexual. O mesmo se diga para o comportamento daquele Homem que acaricie os seios de uma menor de
idade compreendida entre os 14 e os 16 anos. Igual solução para actos preliminares, comportamentos fetichistas,
actos sádicos e/ou masoquistas em que um maior de 18 anos se envolva com um menor entre os 14 e os 16 anos,
conquanto não haja cópula, coito anal ou coito oral.
35 Idem, ibidem.

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indistintamente. Aliás, nem sequer é necessário um grande apelo à imaginação para encontrar
exemplos para cada uma das categorias de acção.

No que respeita à irrelevância típica dos comportamentos sexuais levados a cabo contra
menores entre os 14 e os 16 anos por outros menores, ainda que mais velhos do que as
vítimas, acompanhamos integralmente a doutrina de Figueiredo Dias, e que entretanto foi
vertida no tipo: na maioria, senão na totalidade dos casos, tratar-se-á de puro e simples jogo
sexual próprio da idade, verdadeiro caminho para a determinação sexual e para o
desenvolvimento da personalidade adulta. A questão apenas muda de figura, e passará a
integrar comportamento criminoso, se de extorsão de contactos sexuais se tratar, caso em que
intervirão os tipos penais dos art.ºs 163º e ss. CP.

Já quanto à determinação de quem possa ser vítima do tipo em apreço não pode acompanhar-
se Figueiredo Dias, quando defende que os actos sexuais previstos no tipo do art.º 174º CP
sejam “exactamente”, i.e., exclusivamente, actos heterossexuais36.

Com efeito, o único argumento que pode ser convocado em abono de tal interpretação é o
facto de ao art.º 174º CP suceder o art.º 175º CP, cuja epígrafe é “actos homossexuais com
adolescentes”. Isto porque, a nosso ver, o preenchimento do tipo do art.º 174º CP tanto se
pode dar através da comissão de actos heterossexuais como de actos homossexuais.

Expliquemo-nos: conforme atrás referido, actos sexuais, para efeitos penais, são
comportamentos que de um ponto de vista predominantemente objectivo assumem natureza,
conteúdo ou significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade, preocupando-
se o legislador, sempre, com a selecção daqueles que sejam penalmente relevantes, i.e., não
bagatelares e com aptidão lesiva do bem jurídico protegido. Por outro lado, e como também
resulta de quando se expôs, nenhuma diferença ontológica, i.e., ao nível do conteúdo,
significado ou natureza, se detecta entre actos heterossexuais ou homossexuais. A única
diferença entre tais tipos de comportamento depende, respectivamente, da diversidade ou
identidade de sexo dos intervenientes no comportamento em questão. Assim que mesmo
alguns dos mais intensos dos actos sexuais (“lato sensu”), como o coito anal e o coito oral,
possam ser equivalentemente praticados entre pessoas do mesmo ou de diferente sexo.
Apenas a cópula, por definição, pode ser praticada com intervenção exclusiva de pessoas de
sexo diferente.

Ora, o único argumento utilizado pela doutrina citada para defender a exclusividade de
abrangência de actos heterossexuais pelo tipo do art.º 174º CP, é o facto de existir o art.º 175º

36Jorge Figueiredo Dias, Idem, p. 563, afirmando: “actos sexuais (e isto significa exactamente: heterossexuais, cf.
Artigo seguinte) com adolescentes”. Igual referência surge sob o § 14, p. 565, onde se afirma: “mas em todo o caso
sempre de sexo diferente do do agente: o preceito só incrimina actos de natureza heterossexual”.

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CP, o que constitui, a todos os títulos, o mais estranho e frágil dos argumentos e processos
hermenêuticos. Dir-se-ia que para a doutrina o facto de existir a previsão do art.º 175º CP leva
a afastar a possibilidade de subsunção de um determinado comportamento sexual, no caso
homossexual, na previsão típica do art.º 174º CP – o que se não compreende nem se
acompanha.

Com efeito, o percurso hermenêutico deve ser outro e bem diverso, iniciando-se por olhar
exclusivamente para o tipo p. e p. no art.º 174º CP, e procurando determinar quais os tipos
objectivo e subjectivo de ilícito respectivo. Se alguma razão permitir concluir que no dito tipo
apenas se recolhem comportamentos heterossexuais, então sim, aceitar-se-á a limitação. Caso
contrário, caberá depois extrair conclusões relativamente ao relacionamento eventualmente
sobreposto, ou não, entre os dois tipos penais.

Ora, a própria doutrina que nega a abrangência de comportamentos homossexuais no art.º


174º traz em si o gérmen demonstrativo da conclusão inversa. Assim que, para concluir que a
vítima no art.º 174º CP pode ser um menor entre 14 e 16 anos de qualquer sexo, se afirme:
“Nem ao nível de uma interpretação literal do tipo de ilícito, nem ao nível da teleologia do
preceito, nem ao nível da experiência da vida, nem – sobretudo – ao nível do bem jurídico há
aqui a mais leve razão para se fazer acepção de sexo. Para já se não argumentar em termos
morais…”37.

É inequívoca a razão do argumento exposto: inexiste qualquer razão, literal, teleológica,


sistemática, ou mesmo vivencial ou social, que permita afastar a protecção dada pelo tipo a
menores entre os 14 e os 16 anos de ambos os sexos, que é o mesmo que dizer que tanto
podem ser vítimas do crime p. e p. no art.º 174º CP rapazes como raparigas38.

Ora, exactamente a mesma rajada argumentativa permite concluir não só que o agente do
crime tanto pode ser um homem como uma mulher (como a doutrina maioritária aceita), como
igualmente permite concluir que todos as combinações sexuais são, e têm de ser, abrangidos
pelo tipo.

Com efeito, a interpretação literal do tipo de ilícito não permite, de per si, excluir a prática de
actos homossexuais – i.e., quando proíbe a prática do coito anal e oral com menores entre 14 e
16 anos, em nenhum momento o tipo exclui que o acto seja praticado por alguém do mesmo
sexo que a vítima. Na verdade, apenas o cotejo com a epígrafe e o tipo do art.º 175º CP pode
levar a pensar que o legislador não quereria subsumir no tipo do art.º 174º CP a prática de

37 Jorge Figueiredo DIAS, idem, p. 565.


38 É eloquente, aliás, a argumentação expendida por Figueiredo Dias a respeito de tal equivalência de sexo das
vítimas, ao referir: “Coisa diferente só poderia defender-se se fosse uma impossibilidade física o homem ser vítima
de cópula ou de coito obtidos por sedução. Mas porque assim não é, o bom fundamento da doutrina exposta é
inegável e assim tem sido tomado pela doutrina (…) e pela própria jurisprudência (…).”.

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actos homossexuais com adolescentes. Mas o facto de o pensamento do legislador ter sido
esse39, não pode ser argumento determinante, tanto mais quando é dado adquirido pela
Doutrina, partindo do art.º 9º do Código Civil, que o determinante não é o pensamento do
legislador, mas sim o muito mais objectivo espírito legislativo40.

Tanto mais que, convocando a teleologia do preceito, a experiência de vida e o bem jurídico
protegido, nada autoriza, nem sequer aconselha, excluir da previsão típica do art.º 174º CP a
prática de comportamentos homossexuais (in casu, de actos de coito anal e coito oral)41. Com efeito,
sendo o bem jurídico aquele que é (liberdade de determinação sexual dos seres humanos entre os 14 e os 16
anos), tanto faz sentido censurar penalmente, à luz do tipo vertente, a prática de actos
heterossexuais como homossexuais, ambos com potencialidade ou aptidão limitativa ou
cerceadora da dita autodeterminação sexual. De um prisma da teleologia da norma, as
conclusões são as mesmas. E apelando como critério hermenêutico à experiência de vida,
igualmente cabe concluir que quer a prática de uns como de outros actos merece igual
previsão e repressão. Aliás, precisamente a experiência de vida é que levou à previsão da
punibilidade dos comportamentos homossexuais a par dos comportamentos heterossexuais
com adolescentes nos art.ºs 174º e 175º CP. Mas essa mesma experiência de vida não impõe,
não autoriza, nem aconselha a que se preveja tal punição em moldes distintos.

Tudo razões pelas quais cabe concluir que no tipo objectivo de ilícito do art.º 174º CP cabem
não só agentes de ambos os sexos, como vítimas de ambos os sexos, como, ainda,
comportamentos heterossexuais e homossexuais, indistintamente.

Quanto às condutas subsumíveis ao tipo, as mesmas reduzem-se à cópula e aos coitos anal e
oral, ficando de fora todos os demais actos sexuais de relevo (“stricto sensu”). Manteve, pois, aqui
o legislador o mesmo entendimento que em toda a matéria dos crimes sexuais foi utilizado:
incriminar com graus diferentes de gravidade a cópula, o coito anal e o coito oral, por um lado –
por se tratar dos actos sexuais de relevo mais intensos ou pesados –, e os actos sexuais de
relevo, em geral, por outro lado. De fora deixou o legislador, presume-se que intencionalmente,
a prática de actos sexuais de relevo, stricto sensu, contra menores entre os 14 e os 16 anos.

39
Por certo influenciado pelo facto de ter criado este tipo a partir da transformação do clássico crime de estupro, que
apenas protegia raparigas e não já rapazes, e apenas contra actos de cópula, e não também de coito anal e oral. Mas
que a interpretação deve, e tem de ser, actualista, é hoje dado adquirido, não podendo o argumento histórico ser
suficiente para determinar o sentido normativo do tipo, muito menos num ramo do Direito como o Direito Penal,
sujeito ao inarredável princípio da precisão típica.
40 Por outras palavras, para que o art.º 174º abrangesse, no seu tipo objectivo de ilícito, apenas actos heterossexuais,

teria que referir, a par da cópula, a descrição de coito oral e/ou anal heterossexuais. O que não faz.
41 Atente-se ainda no facto de ninguém ter dúvidas de que no tipo do art.º 172º CP se subsumirem quer

comportamentos heterossexuais quer comportamentos homossexuais, ambos igualmente nocivos na perspectiva do


bem jurídico, seja contra meninas, seja contra meninos, praticados por homens ou por mulheres. Tudo quanto permite
ainda mais fortemente reiterar as conclusões enunciadas no texto.

- 19 -
Mas o tipo objectivo de ilícito do crime de actos sexuais com adolescentes previsto no art.º
174º CP não se basta com os elementos enunciados. Com efeito, exige a lei que o agente
abuse da inexperiência do menor entre os 14 e os 16 anos.

Ora, entende a doutrina que com tal modalidade típica de acção quer o legislador referir-se ao
antigo elemento normativo “sedução”, enquanto exploração ou aproveitamento da
inexperiência sexual do visado pelos actos sexuais praticados. Prevendo a existência de tal
aproveitamento ou exploração está a dar-se relevância típica à reduzida força de resistência da
vítima perante os actos de que é alvo.

A nosso ver afigura-se correcta a adição desta exigência típica para a modalidade de acção,
posto que também a teleologia da norma, o bem jurídico protegido e a experiência da vida
demonstram que nem sempre que um menor entre os 14 e os 16 anos se envolve em actos
sexuais o faz mercê da sua menor experiência, ou, muito menos, por total falta dela. Com
efeito, inexistindo inexperiência – o que poderá mesmo ter-se transformado, mercê da evolução
da vida verificada nas últimas décadas, na regra e não na excepção –, nenhuma menor
resistência existirá por parte do menor. Isto para já não referir que a exigência de tal elemento
ou modalidade da acção permite ainda, a nosso ver, excluir relevância típica a todas aquelas
situações em que o envolvimento sexual parte simultaneamente de agente e visado, ou mesmo
exclusivamente do visado: porque experiente ou porque visando desenvolver a sua
experiência. Tudo casos em que não faria sequer sentido falar em menor força de resistência
do visado, nem, muito menos, qualificar o menor de vítima.

Acrescente-se, ainda, que com a referência ao abuso da inexperiência da vítima se consegue


de modo muito mais coerente e racional (i.e., sem intervenção de conceitos indeterminados ou mesmo
indetermináveis de origem religiosa ou moralista), dar relevância às situações da vida que os antigos
legisladores pretendiam recolher nos tipos com a referência, nos crimes de estupro, aos
elementos promessa séria de casamento e carácter sexualmente impoluto da vítima42/43.

42 Pensamos que o acerto das considerações e conclusões anteriormente expendidas acaba por ser confirmado, se tal
fosse necessário, pela própria argumentação subjacente ao pensamento de Jorge Figueiredo DIAS, quando aborda a
questão da eliminação da promessa séria de casamento e do carácter sexualmente impoluto da vítima. Com efeito,
refere o Professor: “Deste ponto de vista bem se aceita (e se deve aplaudir) que a Reforma de 1995 tenha eliminado a
promessa séria de casamento como meio típico de sedução. Compreende-se que, ao individualizá-la, tenha sido
intenção do legislador de 1982 ainda restringir (como era indispensável face ao entendimento anterior, sobretudo
por parte da jurisprudência) o âmbito de protecção da norma. A verdade porém é que uma tal promessa, se não se
traduz em abusar da inexperiência da vítima, torna-se ipso facto meio inidóneo de sedução (de um permis de séduire
falava já em análogo contexto VOUIN, Mélanges Constant 1971 403), podendo inclusivamente privilegiar o ‘perfeito
sedutor’ que não precisa, para alcançar a cópula, de prometer seriamente casamento. Da mesma forma deixa de ter
relevo autónomo a exigência (…) do carácter (sexualmente) impoluto da vítima. A parte dessa exigência que
continua a ter significado típico está completamente incluída na necessidade de que o agente abuse da inexperiência
da vítima. É claro que uma tal inexperiência, no sentido do tipo, será afastada se o processo que conduziu à cópula
tiver ficado a dever-se a instigação ou iniciativa da mulher; mas já não terá de o ser só porque a vítima dispõe de

- 20 -
Por fim, no que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, é de exigir dolo quanto a todos os
elementos objectivos do tipo, nos termos gerais, anotando-se em especial a possibilidade
estatisticamente muito elevada de poderem surgir situações de erro relativamente à idade das
vítimas, como também referimos a propósito do tipo do art.º 175º CP.

Por fim, cabe retomar a apreciação da afirmação segundo a qual “o crime em análise continua
a sua marcha inexorável (…) para o total desaparecimento”44. Ora, ressalvado o devido
respeito, não só não partilhamos de tal vaticínio, como entendemos mesmo que antes de um
eventual próximo desaparecimento deste tipo – se calhar aconselhável, senão mesmo imposto
por força da evolução futura da vida social –, desaparecerá o tipo do art.º 175º CP, não só
mercê das razões que abaixo se exporão na análise do Acórdão do TC, mas principalmente
mercê da respectiva inutilidade em face de um correcto entendimento do tipo p. e p. no art.º
174º CP.

5 – Conclusões intercalares e Sequência

Chegámos, até ao momento, a uma série de conclusões cujo elenco neste momento se afigura
conveniente em termos de sistematização de pensamento, em ordem a uma sumária análise
que se seguirá do Acórdão do TC que constitui objecto primordial de atenção.

Assim, assenta-se para o comentário subsequente nos seguintes pressupostos:

 Que o que o Legislador procura proteger nos tipos do Capítulo V do Título I da Parte II
do CP é exclusivamente a Liberdade e a Autodeterminação sexuais45, e não já permitir
a utilização da arma penal do Estado como instrumento modelador de comportamentos
social, moral e religiosamente considerados desviantes;

 Correlativamente, tem cada pessoa maior de 14 anos, como regra geral, direito de se
determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas, quanto à
oportunidade (onde e quando), seja quanto aos parceiros, maiores de 14 anos, com quem
as partilha, desde que o faça em privado e não haja oposição destes;

 Nos tipos penais compreendidos nos art.ºs 172º e ss., i.e., na Secção II do dito
Capítulo V do Título I da Parte II do CP, o que se protege é a autodeterminação sexual,

conhecimentos da vida sexual (…) ou teve já mesmo anteriormente experiências sexuais” (Idem, pp. 566-567).
Presume-se que a referência que é feita a “mulher” no texto citado tenha mero carácter exemplificativo.
43 Questão que pode revelar-se complexa, a nível probatório, será a de apurar o grau de experiência do adolescente,

bem como complexo será determinar, o que constitui já matéria de juízo e não de facto, em que medida é que alguma
experiência foi insuficiente para gerar força de resistência da vítima.
44 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, p. 564.
45 Sendo que na Secção II do referido Capítulo V da Parte II do CP se protege também o livre desenvolvimento da

personalidade das crianças e adolescentes que são identificados nos diversos tipos nela compreendidos.

- 21 -
i.e., uma faceta da liberdade sexual protegida sob forma particular: não já face a
condutas que constituam ou visem a extorsão de contactos sexuais, mas face a
condutas que, sem coacção nem violência, possam prejudicar gravemente o livre
desenvolvimento da personalidade do visado por tais comportamentos;

 Assenta-se em que actos sexuais, lato sensu, são comportamentos que assumem
natureza, conteúdo ou significado directamente relacionado com a esfera da
sexualidade;

 Já actos sexuais para o Direito Penal serão esses mesmos comportamentos,


seleccionados com base num critério primordialmente objectivo ( mas em que a
subjectividade que os anima e carrega não é irrelevante), e que, atendendo ao bem jurídico
protegido pelos tipos em questão, contendam com a liberdade de determinação sexual
de quem os sofre ou pratica (o que permite afirmar que o acompanhamento e compreensão do
comportamento pela vítima será tipicamente irrelevante nuns casos – v.g. 172º CP –, mas não noutros – v.g.
173º, 174º, 175º CP);

 Seleccionando de entre os possíveis actos sexuais aqueles que sejam de relevo, quer
o legislador não só remeter para fora do âmbito penal aqueles que sejam
insignificantes ou inexpressivos, como também assegurar que apenas integram a
matéria da proibição aqueles que forem aptos a constranger ou limitar a
autodeterminação da vítima;

 Como modalidades de acção sexual (actos sexuais de relevo lato sensu) o legislador parte do
binómio seguinte: actos sexuais de relevo (stricto sensu), por um lado; e cópula, coito
anal e coito oral, por outro;

 Tanto Homens como Mulheres podem envolver-se em (praticar e ser visados por) actos
sexuais de relevo, por coito anal ou por coito oral, sendo que apenas a cópula exige
necessariamente, como agente ou como vítima, a intervenção de uma Mulher.

Sendo assim, como se crê demonstrado, constata-se que o legislador, nas intervenções
tópicas a que procedeu em 1998, gerou uma situação de sobreposição típica parcial, cuja
solução no âmbito da aplicação dos tipos pode resultar complexa, além de que injusta, e que
urge rectificar sem qualquer delonga.

Com efeito, uma correcta determinação do tipo objectivo de ilícito do crime p. e p. no art.º 174º
do CP permite concluir que a prática de cópula, coito anal e coito oral por maiores, de ambos
os sexos, contra menores entre os 14 e os 16 anos, de ambos os sexos, se subsume no tipo p.
e p. no art.º 174º do CP, abrangendo-se aí, indistintamente, quer relacionamento heterossexual
(cópula, coito anal ou coito oral), quer relacionamento homossexual (coito anal e coito oral).

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Mais se constata que para o preenchimento desse tipo o legislador exige uma modalidade
típica de acção, a saber, que o agente abuse da inexperiência da vítima.

Paralelamente, uma análise do tipo objectivo de ilícito do crime p. e p. no art.º 175º do CP,
permite concluir que a prática de actos homossexuais de relevo, por maiores, de ambos os
sexos, contra menores entre os 14 e os 16 anos, do mesmo sexo do agente, se subsume no
tipo p. e p. no art.º 175º do CP.

Perante tal tipo, surgem duas perplexidades:

 Por um lado nele não se exige qualquer modalidade típica de acção, termos em que a
punição ocorrerá independentemente de ter ou não havido abuso da inexperiência da
vítima (o que implica aferição de legitimidade de tal solução, em si mesma e por relação com o art.º 174º
CP, perante a ordem constitucional vigente);

 Por outro lado, utilizando o legislador apenas o conceito genérico de acto homossexual
de relevo, e sendo certo que tal acto não se distingue ontologicamente do acto
heterossexual de relevo (dependendo a diferença, exclusivamente, da identidade ou diversidade de
sexo das pessoas envolvidas nos actos em questão), então de duas uma:

o Ou o legislador mantém no tipo do art.º 175º do CP a mesma categorização


conceptual que o norteia em todo o Capítulo V da Parte II do CP (art.ºs 163º a 174º
CP), i.e., pretende referir-se apenas a acto (homos)sexual de relevo stricto sensu,
termos em que apenas são recolhidos no tipo os actos menos graves, i.e., actos
sexuais que não o coito anal e o coito oral (precisamente porque esses actos se
subsumiriam, de acordo com a vontade do legislador, no tipo do art.º 174º CP);

o Ou o legislador no tipo do art.º 175º utiliza a expressão actos (homos)sexuais de


relevo em sentido lato, ao invés do que faz em todo o restante Capítulo V da Parte
II do CP, querendo com tal referência abranger todo e qualquer acto sexual, i.e.,
compreendendo também o coito anal e o coito oral ( caso em que não só se levantariam as
questões de constitucionalidade que abaixo se abordarão – emergentes do facto de não se exigir para a
prática de actos homossexuais com adolescentes a restrição emergente da tipificação da modalidade
de acção atrás referida –, como igualmente se estaria perante uma duplicação parcial de tipos, posto
que alguns comportamentos seriam, por manifesto lapso do legislador, simultaneamente subsumíveis
nas previsões dos art.ºs 174º e 175º CP).

A nosso ver, e antecipando desde já conclusões, a primeira das perplexidades não pode senão
ser resolvida no exacto sentido que emerge da jurisprudência fixada pelo aresto do TC:
inexistem razões que legitimem, à luz da Constituição da República, maxime do princípio da

- 23 -
igualdade, do princípio que garante o livre desenvolvimento da personalidade de cada ser
humano (i.e., livre de quaisquer discriminações, mas não – obviamente – de limitações), e do princípio da
restrição mínima das situações de limitação de Direitos Fundamentais, o tratamento
diferenciado dos comportamentos subsumíveis ao art.º 175º CP relativamente àqueles que se
subsumem no art.º 174º CP, no que concerne à exigibilidade, como pressuposto da punição,
de que tenha havido por parte do agente, em ambos os casos, abuso da inexperiência do
menor.

Quanto à segunda perplexidade, o posicionamento a tomar afigura-se mais complexo, posto


que a opção que se prefigura correcta de um ponto de vista hermenêutico, leva a um resultado
prático punitivo que, mercê da inexistência no tipo da exigibilidade do elemento abuso de
inexperiência do menor, é inverso ao dever ser. Senão vejamos.

Afigura-se-nos patente que o legislador no art.º 175º CP não pode ter utilizado um conceito
num sentido diverso daquele em que o utilizou em todos os demais tipos incriminadores do
mesmo Capítulo V da Parte II do CP. I.e., pensamos que com a referência feita, no art.º 175º
CP, a actos (homos)sexuais de relevo, o legislador só pode pretender tipificar a prática de
actos sexuais de relevo entre pessoas do mesmo sexo com o mesmo sentido com que em
todos os demais tipos utilizou a expressão actos sexuais de relevo. Por outras palavras, com a
referência feita a actos (homos)sexuais de relevo, o legislador não pode estar a querer
abranger actos que nos demais tipos assimilou à cópula, a saber, o coito anal e o coito oral
(163º n.º 2, 164º n.º 2, 165º n.º 2, 166º n.º 2, 167º n.º 2, 172º n.º 2, 173º n.º 1 e, mesmo, a contrario, no 174º CP), sob
pena de estarmos, não só, a admitir o funcionamento de uma presunção em sentido inverso
àquele que as regras hermenêuticas ditam (presunção de acerto do legislador), como, igualmente,
estaremos a aceitar que o legislador do art.º 175º CP desconhecia o significado intrínseco e o
significado sistemático do dito conceito.

Mas se assim for, e admitindo o nosso entendimento sobre o tipo objectivo de ilícito do art.º
174º CP, então a punibilidade dos actos homossexuais com adolescentes torna-se
intrinsecamente desequilibrada e dogmática e socialmente incompreensível, pois que então
caberá concluir que se o acto homossexual de relevo for o coito anal ou o coito oral, a punição
segue a previsão do art.º 174º, caso em que apenas se houver abuso da inexperiência do
menor é que há punição. Ao invés, se for qualquer outro acto homossexual de relevo mas
menos grave, a punição ocorre mesmo que não haja abuso da inexperiência do menor.
Estranha situação seria esta, em que se o menor visado for experiente o legislador pune a

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prática de actos sexuais menos graves mas não pune os comportamentos sexualmente mais
graves e densos46.

Sendo ilógica a solução interpretativa a que se chega, impõe-se procurar outra. Que no caso é
igualmente estranha, desde logo porque parte da constatação de que no art.º 175º CP o
legislador utilizou a expressão acto (homos)sexual de relevo num sentido diverso daquele que
utilizou em todos os demais tipos que prevêem e punem comportamentos sexuais.

Mas admitindo que o legislador incorreu em tal censurável oscilação conceptual, então caberá
concluir que com a referência a acto (homos)sexual de relevo o legislador quis abranger todo e
qualquer acto sexual de relevo praticado por um maior contra, ou envolvendo, um menor de
idade compreendida entre os 14 e os 16 anos, mesmo que tal acto seja o coito anal ou o coito
oral47.

E sendo assim, então não só temos dois tipos penais que literal, teleológica e racionalmente
prevêem e punem a prática de coito anal e coito oral homossexuais com menores entre os 14 e
os 16 anos48, como o fazem exigindo pressupostos de punição distintos: num caso exige-se o
abuso da inexperiência do menor e noutro não.

Tal cenário levará a que na aplicação concreta do direito os Tribunais se confrontem com uma
situação altamente anómala: havendo abuso da inexperiência do menor, são teoricamente
preenchidos ambos os tipos penais; não havendo tal abuso de inexperiência do menor,
preenche-se apenas o tipo do 175º. O que de imediato nos motiva outras questões: Para que
serviria ponderar o abuso da inexperiência do menor para o preenchimento do art.º 174º CP se
sempre a punição poderia ocorrer mesmo sem tal abuso de inexperiência à luz do art.º 175º
CP? Que solução dar ao concurso de normas referido? Qual a respectiva utilidade de um ponto
de vista sistemático?49 O que levou o legislador a criar tal situação? Que razões dogmáticas ou
de política criminal autorizariam a instituição de tal regime?

A nosso ver a solução da questão não é múltipla, mas una. Com efeito, e como resulta do atrás
exposto, em nosso entendimento a punição da prática, por maiores, de cópula, coito anal ou
coito oral com menores entre os 14 e 16 anos, sejam tais contactos heterossexuais ou
homossexuais, subsume-se sempre e só à previsão do art.º 174º do CP, inequivocamente. Já o

46 Exemplificando: se um maior masturbasse um menor entre os 14 e os 16 anos do mesmo sexo seria punido mesmo
que o menor fosse experiente, mas já o não seria se com ele se envolvesse em coito anal ou coito oral! Seria, em
rigor, um prémio à prática, pelo agente, dos actos mais gravosos, i.e., mais fortemente atentatórios do bem jurídico
protegido.
47 Reduzindo, assim, correlativamente o âmbito típico do art.º 174º - o que, parecendo ser a interpretação dada ao

174º CP por Figueiredo Dias, esbarra numa série de outros obstáculos que seguidamente se expõem.
48 Isto de acordo com a leitura que defendemos do tipo objectivo de ilícito do crime p. e p. no art.º 174º CP, que a

nosso ver recolhe na sua previsão a prática dos mais graves dos actos sexuais com adolescentes, sejam praticados
entre pessoas de sexo idêntico ou diverso.
49 Maxime ponderando a igual reacção punitiva prevista em ambos os tipos em presença.

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art.º 175º CP serve para compreender a prática de actos homossexuais de relevo que não o
coito anal e o coito oral, por parte de maiores com menores entre os 14 e os 16 anos. Mas
nesse caso, até por força da dignidade do bem jurídico protegido e da ponderação da
gravidade dos atentados a esse mesmo bem jurídico, outra solução não é admissível que não
a de julgar imprescindível a introdução no tipo do art.º 175º da mesma exigência que no art.º
174º é feita para a modalidade de acção, i.e., que haja abuso da inexperiência do adolescente.
Ou, por paridade de razão, à subtracção do dito elemento ao tipo do art.º 174º, de molde a
equipará-lo ao 175º50.

Mas aqui a opção não é, nem pode ser de um ponto de vista de tutela do bem jurídico
protegido e de teleologia da norma, arbitrária. Cabe, isso sim, ponderar se o abuso da
inexperiência do menor deve ou não integrar os tipos que criminalizam tais comportamentos
sexuais desenvolvidos por maiores com menores entre os 14 e os 16 anos. E a resposta a tal
questão, conforme se adivinha, não pode deixar de ser afirmativa. O abuso da inexperiência do
menor não pode em caso algum deixar de ser uma exigência típica da acção em qualquer dos
ditos tipos. Não só por razões dogmáticas, que atrás se deixaram enunciadas, mas igualmente
por razões de política criminal, mercê do princípio da intervenção mínima do direito penal, por
força do princípio da excepcionalidade da restrição dos direitos liberdades e garantias51, e, the
last but not the least, por força do Princípio da Igualdade e do Direito ao Desenvolvimento da
Personalidade (art.ºs 13º e 26º n.º 1 da Constituição da República).

Por resolver fica apenas uma outra questão, a da bondade do critério de política criminal que
norteou o legislador na redacção do art.º 174º (em si mesmo e por relação com o art.º 175º CP), a saber:

50 Repare-se que o TC parece admitir expressamente esta possibilidade, quando, após constatar a verificação da
situação de inconstitucionalidade que lhe havia sido submetida para apreciação, expressamente refere, sob o Capítulo
II Ponto 7, que a conclusão de inconstitucionalidade a que chegou “não tem implícito – e não poderia ter – qualquer
juízo sobre a conformidade ou desconformidade constitucional do disposto no artigo 175º do CP isoladamente
considerado; o que significa que dos estritos limites do juízo agora feito não decorrerá, necessariamente, a eventual
inconstitucionalidade de uma solução legislativa que viesse a igualar o tratamento jurídico-criminal das situações
confrontadas ao nível do que agora é dado à prática de actos homossexuais…”
51 Precisamente neste sentido se compreende o afirmado na Declaração de Voto da Sr.ª Juiz Conselheira Dr.ª Maria

João Antunes ao Acórdão que ora se anota, quando refere que teria votado ainda a declaração de
inconstitucionalidade da norma contida no art.º 175º CP por violação do art.º 18º n.º 2 da Constituição da República.
Como se pode ler em tal declaração de voto, “se se estabelece uma diferença de tratamento jurídico com base na
orientação sexual e sem fundamento racional e se do elemento típico ‘abuso da inexperiência’ decorre a legitimação
da intervenção penal por só nestas circunstâncias poder haver dano ou perigo para o bem jurídico da
autodeterminação sexual, forçoso será então concluir, ainda no plano da comparação das duas incriminações, que a
intervenção penal não é necessária quando esteja em causa a prática de actos homossexuais de relevo que envolva
um maior e um menor entre os 14 e os 16 anos sem haver abuso da inexperiência deste. Dito de outra forma, nestas
circunstâncias não é necessário restringir o direito à livre expressão da sexualidade (artigo 26º n.º 1 CRP) e o
direito à liberdade, enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigo 27º n.ºs 1 e 2 CRP), para
salvaguardar o direito à autodeterminação do adolescente, uma vez que não haverá dano ou perigo para o livre
desenvolvimento da personalidade deste. Pelo que, havendo tal restrição, ela é ilegítima à luz do que dispõe o artigo
18º n.º 2 da CRP. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos”.

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quais as razões que justificam a irrelevância penal da prática de actos heterossexuais de relevo
(i.e., todos os actos que não a cópula, coito anal e coito oral), praticados por maiores com, ou contra,
menores entre os 14 e os 16 anos, em que haja abuso da respectiva inexperiência?
Principalmente quando tais actos, se homossexuais, justificam a intervenção penal, mesmo
que abuso de inexperiência do menor inexista? Por outras palavras, porque razão no art.º 174º
CP não existe a mesma autonomização de comportamentos que o legislador se preocupou em
prever nos art.ºs 163º n.º 2, 164º n.º 2, 165º n.º 2, 166º n.º 2, 167º n.º 2, 172º n.º 2 e 173º n.º 1
CP? Será, porventura, impossível encontrar situações em que a prática de actos
heterossexuais de relevo stricto sensu, por maiores contra menores entre os 14 e os 16 anos,
constranja ou limite a autodeterminação sexual destes últimos?52

Ora, o cenário legal criado pelo legislador e não corrigido pela jurisprudência, só pode
encontrar arrimo no “desvalor especial da homossexualidade” e na convicção da anormalidade
das relações homossexuais que se encontram referidas nas Actas da Comissão Revisora de
1993. Porém, a afirmação da anormalidade da homossexualidade e do especial desvalor de
comportamentos homossexuais constituem qualificações de fenómenos que se verificam
inteiramente ao nível da identidade pessoal, da dignidade da pessoa e da sua personalidade,
de aspectos emocionais, psíquicos e, qui çá, até orgânicos de uma parte dos seres humanos.

Tal equivale a afirmar a existência de uma diminuição ou deficiência por parte dos portadores
de tal anomalia ou desvio, o que tendo sido consentâneo com critérios médicos oficiais até há
bem pouco tempo inquestionáveis, foi entretanto objecto de evolução mesmo ao nível da
ciência médica e da psicologia internacionais. Ademais, mesmo que a evolução dos conceitos
médico-psíquicos não tivesse sido essa, a conclusão poderia ter que manter-se. É que não se
trata apenas, com tal afirmação da existência de uma anomalia, de uma mera verificação da
existência de uma diferença entre seres humanos para efeitos jurídicos gerais – o que só por si já
poderia ser incorrecto de um ponto de vista de tutela da Igualdade num Estado de Direito Democrático como é
Portugal, fosse no sentido de criar uma discriminação negativa, fosse no sentido de promover um tratamento de favor
–, mas, pior do que isso, de fazer assentar a intervenção penal do Estado nessa mesma
diferença ou anomalia, que do mesmo passo se erigia em critério determinante da punibilidade
dos comportamentos.

Nestes termos, uma interpretação lógica (que atenda aos elementos literal e teleológico), racional,
sistematicamente correcta, respeitadora do bem jurídico protegido com as incriminações em
causa e conforme à Constituição da República, não permitirá nunca a condenação de qualquer

52 Por outras palavras, e exemplificando: será irrelevante, de um ponto de vista da possibilidade de limitação da
autodeterminação da vítima, um Homem masturbar uma rapariga de 15 anos, mas será (sempre) relevante, nessa
mesma perspectiva, uma Mulher beijar os seios dessa mesma rapariga? Mais: se no primeiro caso se abusar da
inexperiência da menor, e no segundo caso tal abuso inexistir? É que de acordo com a doutrina e a jurisprudência
tradicionais, assim será!

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Arguido pela prática do crime p. e p. no art.º 175º CP sem que tenha havido, por parte desse
agente, abuso de inexperiência do adolescente.

E nem sequer se diga que tal interpretação é correctiva, e como tal inadmissível. Com efeito,
correcções hermenêuticas ao tipo que constituam reduções do âmbito da incriminação são
perfeitamente admissíveis, além de que serão desejáveis, e mesmo obrigatórias, quando se
trata de garantir a integridade do princípio da igualdade constitucionalmente imposto. Ademais,
no caso vertente, e como demonstrado, todos os argumentos, desde o sistemático, ao racional,
ao teleológico (nomeadamente o da ponderação da ofensividade da conduta em relação a um bem jurídico-penal),
impõem tal conclusão53.

Por outro lado, os mesmos cânones interpretativos impõem que se questione da


admissibilidade à luz da Constituição de o legislador prever e punir a prática de actos sexuais
de relevo, stricto sensu, de maiores com adolescentes se os actos forem homossexuais e o
não fazer se forem actos heterossexuais. Aqui de duas, uma: ou a própria base motivadora da
punição feita pelo art.º 175º CP é ilegítima à luz da Constituição por violação directa dos art.ºs
13º n.º 2 e 26º n.º 1 CRP, ou existe inconstitucionalidade por omissão, violadora dos mesmos
preceitos, por se não incriminar no art.º 174º CP a prática de actos heterossexuais de relevo
entre maiores e menores entre os 14 e os 16 anos, com abuso da inexperiência destes 54/55.

Deixámos para o fim a análise de uma modalidade especifica da acção que se encontra
prevista no art.º 175º CP e que não encontra equivalente no art.º 174º CP. Referimo-nos à
punição daquele que leva a que os actos homossexuais de relevo sejam pelo menor praticados

53 Com argumentação que claramente respalda as conclusões apontadas, confira-se o Acórdão n.º 247/2005, que ora
se comenta, mais precisamente sob o Capítulo II Ponto 6.4 (a passagem em questão transcreve-se sob o n.º 6 infra).
54 A solução, a nosso ver, teria de passar por uma intervenção legislativa num de dois sentidos: a) revogação do art.º

175º CP, pura e simples, termos em que a prática de coito oral e coito anal entre maiores e menores entre os 14 e 16
anos, com abuso de inexperiência destes estaria compreendida no art.º 174º do CP, ficando isenta de punição a prática
de outros actos sexuais de relevo entre os mesmos sujeitos, fossem tais actos heterossexuais ou homossexuais; b)
revogação do art.º 175º CP, sendo que a previsão típica do actual o art.º 174º CP passava a constituir o respectivo n.º
1, e criava-se um novo número 2 que passaria a ter a seguinte redacção (ponderando já também na redacção que ora
se propõe a crítica que no texto apenas adiante se faz à modalidade de acção do agente que leva a que o menor
mantenha actos sexuais de relevo com terceiro): “Quem, sendo maior, praticar actos sexuais de relevo com menor
entre 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até … anos ou com pena de multa
até … dias”. Isto sendo certo que a moldura punitiva teria de ser, logicamente, inferior à do número 1, e por paridade
de razão com o critério seguido nos art.ºs 163º, 164º, 165º, 166º, 167º, 172º e 173º CP.
55
De relevo a referência que no Acórdão que ora se comenta é feita, sob o Capítulo II Ponto 6.7, às Propostas de Lei
n.ºs 80/VII e 160/VII, “onde nas respectivas exposições de motivos se justificou a proposta de alteração do artigo
175º do CP – elemento do crime aí previsto seria, também, o abuso da inexperiência da vítima por parte do agente
com o fim de ‘harmonizar as incriminações do estupro e dos actos homossexuais com menores’. Alteração que viria
a ser eliminada (…) sem que se tornassem públicas as razões que levaram a tal, na discussão e votação, na
especialidade, da Proposta de Lei n.º 160/VII, ocorridas na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias (…).”. E segue: “recentemente a Proposta de Lei aprovada em Conselho de Ministros, em 24
de Junho de 2004 e a Proposta de Lei n.º 149/IX (…) propõem mesmo a revogação do artigo 175º e a alteração do
artigo 174º, no sentido de ser punida a prática, por um maior, de quaisquer actos sexuais de relevo com
adolescentes, independentemente da natureza heterossexual ou homossexual do acto, sempre que haja abuso de
inexperiência do menor”.

- 28 -
com outrem56, quando inexiste punição para aquele que leva a que actos heterossexuais de
relevo sejam pelo menor praticados com outrem. Ora, em face das considerações que
antecedem seria ocioso repetir aqui a análise dos argumentos que impõem a correcção da lei
num de dois únicos sentidos admissíveis, que abaixo se retomam. Com efeito, não se
compreende a bondade, nem se conhecem argumentos jurídicos racionais, teleológicos ou
impostos pela ponderação do bem jurídico protegido (recorde-se: a autodeterminação sexual dos
menores entre os 14 e os 16 anos de idade), que permitam concluir pela admissibilidade da
estigmatização penal daquele que leva o menor entre os 14 e os 16 anos a praticar actos
homossexuais de relevo com outrem e pela irrelevância penal do mesmo agente que, na
mesma circunstância, leva a que o menor pratique actos heterossexuais de relevo.

Razões pelas quais, ou se expurgaria do art.º 175º CP tal modalidade de acção, ou se


acrescentaria tal modalidade de acção no art.º 174º CP, em ambos os casos igualmente
esclarecendo o legislador se pretende abranger apenas os casos em que o outrem é maior, ou
também aqueles casos em que o outrem é menor. Tudo dependerá, exclusivamente, da
ponderação da necessidade de pena, critério inultrapassável na incriminação de
comportamentos em razão do princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

***

Exposto o entendimento que sustentamos relativamente aos tipos enunciados, passa-se a


respigar do aresto n.º 247/2005 do TC as questões que nele se nos afiguram essenciais em
face dos entendimentos que sustentámos retro.

6 – Discussão e Conclusões

Do Acórdão em apreço entendemos, como início, de sublinhar, a correcta identificação que foi
feita pelo Recorrente, não só das normas constitucionais que considerava violadas, mas
também das contradições normativas, perspectivadas as questões do prisma da ordem
constitucional vigente, relativamente aos pressupostos da punição no art.º 174º CP e no art.º
175º CP57.

Em segundo lugar, e ainda à guisa de introdução, não pode passar sem nota o facto de, em
nosso entender e sendo fidedigna a fonte de que nos socorremos, o Acórdão Recorrido, do

56 E repare-se que o legislador nem sequer clarifica que este outrem referido no art.º 175º CP seja um maior, termos
em que cabe literalmente na matéria da proibição a conduta daquele que leva a que os actos homossexuais de relevo
sejam pelo menor entre os 14 e os 16 anos praticados com outrem que seja também ele menor. Caso em que é notório
que só a ponderação do especial desvalor da homossexualidade na ordem jurídico-penal portuguesa, tal como esta
parece ter sido desenhada inicialmente pelo legislador, justifica a incriminação.
57 Cfr. Conclusões D) a H) das Alegações do Recorrente.

- 29 -
STJ, ser um bom exemplo de falta de fundamentação das nossas decisões jurisdicionais, tanto
mais censurável quando se pondera que se estava perante uma decisão da mais alta instância
jurisdicional comum portuguesa. Não falta de fundamentação no sentido mais habitual com que
estatisticamente somos confrontados, i.e. no prisma da explicitação racional e comunicativa do
juízo que levou à formação da convicção do julgador com base na prova junta aos autos 58, mas
numa faceta menos habitual mas igualmente nociva: a falta de fundamentação de direito,
emergente de uma leitura acrítica da lei, e, principalmente, da não compreensão integral e
integrada dos tipos penais que cabe aplicar.

Com efeito, afirmar-se no Acórdão do STJ que “O legislador, ao proceder assim, não
estabelece diferenciações sem fundamento material bastante, de forma irrazoável, movido por
uma injustificada e arbitrária razão, antes trata de forma desigual à luz de um padrão objectivo
o que o deve ser, e que são as relações homossexuais de relevo de pessoa maior com
menores entre os 14 e os 16 anos, quando comparativamente com actos entre pessoas de
sexo diferente, entre menores de 14 e 16 anos e maior…”, de nada vale em termos de
fundamentação de direito. Não compreende o destinatário da decisão, nem compreende a
comunidade, qual é o padrão objectivo referido pelo STJ que por si foi utilizado para poder
concluir que o tratamento diferenciado dado pelo legislador no art.º 175º CP é justificável. Mais,
que é justificável e admissível à luz da Constituição da República, pois essa era a questão que
especificamente havia sido colocada.

Ademais, afigura-se difícil que não tenham sido constatadas e sindicadas as patentes
contradições normativas que entre os dois tipos penais em apreço existem e que haviam sido
apontadas pelo Recorrente.

Por outro lado, também de repudiar, pelas razões que fomos antecipando ao longo do texto, é
“argumentar em termos ‘morais’, neste contexto completamente descabidos”59, tanto mais
quando a doutrina já havia alertado sobejamente no sentido de “que o direito penal português
do futuro deve caminhar no sentido de não discriminar as relações homossexuais,
nomeadamente exigindo também que o agente abuse da inexperiência do menor e prevendo

58 Sobre a questão veja-se o nosso texto “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, in
Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 221 e ss.
59 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, p. 565. Ainda a propósito, refira-se o afirmado pelo mesmo Autor em Nótula prévia

à anotação que faz ao art.º 163º CP, a p. 441 da mesma obra: “…a Reforma de 1995 fez dos chamados crimes sexuais
autênticos (e exclusivos) crimes contra as pessoas e contra um valor estritamente individual, o da liberdade de
determinação sexual (…); deixando definitivamente de os considerar como crimes atentatórios dos ‘fundamentos
ético-sociais da vida social’, ligados aos ‘sentimentos gerais de moralidade sexual’ (…) e portanto iluminados por
bens jurídicos supra-individuais, da comunidade ou do Estado. (…) As alterações introduzidas no CP em 1998
(L65/98), tendo incidido sobre muitos destes crimes (…) não modificaram no que quer que seja (…) esta opção
político-criminal”. Sublinhando esta mesma passagem ora transcrita, confira-se o afirmado no Capítulo II n.º 3 do
Acórdão que ora se comenta, aí se referindo ainda Rui PEREIRA, Liberdade Sexual na reforma do Código, in Sub
Judice, n.º 11, 1996, pp. 44 e ss.

- 30 -
que o tipo legal dos actos sexuais de relevo também seja preenchido quando o agente pratica
actos sexuais de relevo que não a cópula, o coito anal ou o coito oral”60. Principalmente num
sistema de fiscalização de constitucionalidade que comete aos Tribunais o dever de não
aplicarem normas inconstitucionais 61.

Assim que não seja admissível, nem constitua a nenhuma luz fundamentação de direito
suficiente, afirmar que “larguíssimos sectores sociais e humanos, na esmagadora maioria dos
cidadãos” considerem “objectivamente mais grave” a prática de actos homossexuais com
menores do que a prática de actos heterossexuais com menores. Com efeito, sendo ambas
condenáveis (para utiliza a expressão do STJ), não cabe aferir de maior ou menor normalidade, de
acordo com padrões morais ou estatísticos, do acto sexual praticado, mas antes aferir dessa
mesma normalidade de um ponto de vista de ofensividade ao bem jurídico protegido62.

Aliás, se nem em termos de ciência médica é hoje pacífico afirmar que as experiências
homossexuais são “condutas altamente desviantes por serem contrárias à ordem natural das
coisas” e que constituem um “uso anormal do sexo”63, não se pode admitir que a repressão
penal de quaisquer condutas fique dependente de tais asserções, e que as mesmas sejam
precisamente a fundamentação de Direito de uma condenação penal.

Posto isto, caberá declaradamente entrar na apreciação da análise feita pelo TC da questão
problemática que lhe foi posta. Reitere-se, contudo, o facto, logo de início anunciado, de as
presentes notas terem por preocupação perspectivar a questão do ponto de vista de um

60 Maria João ANTUNES, Idem, p. 571.


61 E se assim entendemos, claramente que se não pode acompanhar a Declaração de Voto expendida pelo Sr. Juiz
Conselheiro Dr. Pamplona de Oliveira ao Acórdão que aqui nos ocupa. Se a todos os Tribunais compete, no nosso
sistema, a fiscalização difusa da constitucionalidade das normas, e assim dos tipos penais, não se compreende como
poderia um Tribunal Constitucional demitir-se de sindicar os comportamentos do legislador. Principalmente quando
estão em causa Direitos, Liberdades e Garantias das pessoas não cabe “salvaguardar o ‘primado político do
legislador’.” Nenhuma violação do princípio da separação de poderes se poderia vislumbrar no caso vertente, sem
assumir definitivamente que em nenhum caso era admissível fiscalizar a constitucionalidade das normas legais. Todas
estas são emergentes do primado político do legislador, mas num Estado de Direito Democrático nenhum poder é
insindicável. Nem o poder soberano exercido pelo conjunto dos órgãos de soberania, escapa, em tese, ao primado
supremo da tutela dos Direitos, Liberdades e Garantias do Titular de todo o Poder Soberano: o Povo que constitui o
pilar fundamental do próprio Estado.
62 A este propósito sublinhe-se quanto é escrito no Acórdão do TC em comentário: “…estes parâmetros de

normalidade / anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação ‘estatística’ da sociedade, afiguram-se


imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13º n.º 2 e 26º n.º 1, da Constituição.
É precisamente no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou
sociologicamente desfavorecidas que o princípio constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando,
sempre ou de algum modo, um direito ‘à diferença’ ou ‘de diferença’.”
63 De todos os argumentos utilizados no referido aresto do STJ, atente-se em especial no seguinte, segundo o qual a

experiências homossexuais de adultos com menores entre os 14 e os 16 anos desencadeiam “também, colateralmente,
efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os
actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual”. A que efeitos danosos de um ponto de vista
social, e a que fenómenos disfuncionais em grau mais elevado (“à partida”), se pretendia o Tribunal referir,
desconhece-se, por a decisão o não referir. Aliás, nem sequer se atinge o que pretendia o STJ salvaguardar com a
referência “à partida”, mas apenas parece poder significar um “deixar a porta aberta” para um entendimento oposto
àquele que motivou a decisão proferida.

- 31 -
penalista e não de um constitucionalista, logo centrando o comentário essencialmente naquela
primeira perspectiva.

Iniciamos, assim, por aferir da bondade da auto limitação que foi feita pelo Tribunal do âmbito
dos problemas que lhe cabia conhecer. Afirma a propósito o TC que “não poderá, no entanto, o
julgamento deste Tribunal (em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade), atender, no caso à
previsão típica de um distinto conteúdo da acção ( actos homossexuais de relevo / cópula, coito anal ou
coito oral) e à não previsão de uma outra modalidade de acção ( ter cópula, coito anal ou coito oral /
praticar actos homossexuais de relevo com menor ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem ). O
recorrente foi condenado pela prática de coito oral com menor entre 14 e 16 anos de idade –
‘actos sexuais de relevo’, actos homossexuais de relevo, que igualmente integrariam o tipo
legal de crime previsto no art.º 174º do CP. E sendo assim, um eventual julgamento de
inconstitucionalidade assente na previsão de um distinto conteúdo da acção ou de apenas uma
modalidade de acção nunca teria qualquer incidência no julgado, o que seria contrário à
instrumentalidade do recurso em sede de fiscalização concreta”64.

Ora, ressalvado o merecido respeito, não cremos que assista razão ao TC para se sentir
vinculado a tal processo de auto limitação devido ao facto de se estar perante um caso de
fiscalização concreta da constitucionalidade.

Com efeito, a situação vertente subsume-se à prevista no art.º 70º n.º 1 al. b) da LTC,
normativo este que prevê que “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das
decisões dos tribunais: (…) b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo”. O sistema instituído pela LTC prevê, assim, uma via de
fiscalização concreta da constitucionalidade, via essa que se traduz, nomeadamente, na
possibilidade que é dada a uma parte no processo, que se viu desatendida na pretensão da
inconstitucionalidade que havia suscitado relativamente a determinada norma, de ver a questão
ser apreciada pelo TC. Assim, suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma perante
o STJ, como sucedeu no caso vertente, e tendo este Supremo Tribunal desatendido à
alegação de inconstitucionalidade feita pelo Arguido, pode este solicitar a intervenção do TC, o
qual, no caso de declarar a inconstitucionalidade da norma invocada pelo Arguido, mandará os
autos baixarem ao Tribunal a quo para reformulação da decisão recorrida em conformidade
com o juízo de inconstitucionalidade proferido.

Ora, no caso vertente o Arguido Recorrente havia sido, enquanto pessoa maior que era,
condenado pela prática de coito oral com dois adolescentes com idade compreendida entre 14
e 16 anos, com base no tipo p. e p. no art.º 175º CP. Em face de tal cenário, e cumpridos os
demais pressupostos legais, o Arguido recorreu para o TC, invocando a inconstitucionalidade

64 Cfr. Capítulo II n.º 1 do Acórdão.

- 32 -
de tal tipo penal com fundamento em violação do princípio da igualdade (“tratamento desigual, em
termos incriminatórios, das relações homossexuais face às relações heterossexuais”), desigualdade essa que
se traduzia em várias diferenças, a saber:

a) previsão no art.º 175º CP de um conteúdo de acção distinto do previsto no art.º 174º CP


(actos homossexuais de relevo vs. cópula, coito anal e coito oral);

b) previsão no art.º 175º CP de uma modalidade de acção a mais por relação com a prevista no
art.º 174º CP (incriminação do comportamento daquele que levar a que os actos homossexuais de relevo sejam
praticados com terceiro);

c) previsão no art.º 174º CP de uma modalidade típica de acção que inexiste na previsão do
art.º 175º CP (os actos sexuais de relevo serem levados a cabo com abuso de inexperiência do adolescente ).

Invocando estar-se em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, entendeu,


contudo, o TC que não poderia apreciar das eventuais inconstitucionalidades emergentes da
previsão de um distinto conteúdo de acção e de distintas modalidades de acção. Diz-se, a esse
propósito, no aresto em apreço: “O recorrente foi condenado pela prática de coito oral com
menor entre 14 e 16 anos de idade (…), actos homossexuais de relevo, que igualmente
integrariam o tipo legal de crime previsto no art.º 174º do CP. E sendo assim, um eventual
julgamento de inconstitucionalidade assente na previsão de um distinto conteúdo da acção ou
de apenas uma modalidade de acção nunca teria qualquer incidência no julgado”.

Ora, mal andou, a nosso ver, o TC ao proceder a tal restrição, porque, conforme resulta do
exposto em 5 retro, não é, nem pode ser, linear, a descrição utilizada pelo legislador para
circunscrever o conteúdo da acção no art.º 175º CP, o que tem consequências necessárias, e
profundas, na delimitação da matéria da proibição deste tipo. Com efeito, e como atrás
deixámos enunciado, a utilização da expressão acto homossexual de relevo no art.º 175º terá
que ter, em princípio, o mesmo significado que em todos os tipos do Capítulo V da Parte II do
CP é dado a acto sexual de relevo, com a única especificidade resultante, respectivamente, da
identidade ou da diversidade de sexo das pessoas envolvidas nos actos em questão. Tal
entendimento de uniformidade conceptual é imposto não só pela regra interpretativa da
presunção do acerto do legislador, mas também pela relevância do elemento sistemático nos
cânones interpretativos.

Com efeito, consequência imediata da equiparação, quanto ao conteúdo, dos actos


heterossexuais de relevo com os actos homossexuais de relevo, será a da remessa para fora
de tal conceito (de actos sexuais de relevo stricto sensu) daquele “trio” de actos sexuais de relevo mais
relevantes (perdoe-se-nos a hipérbole), ou mais densos, i.e., a cópula (desde logo pela natureza das coisas,
posto que implica sempre relacionamento heterossexual), e os coitos anal e oral (que sendo também actos

- 33 -
sexuais de relevo, são sempre pelo legislador autonomizados dada a sua superior gravidade ). E se assim for,
como atrás sustentámos ser, então a prática de coito oral e/ou coito anal com adolescentes
será sempre punida à luz do art.º 174º CP e não do art.º 175º CP. Ora, as ponderações que
haviam sido pedidas pelo Recorrente ao TC acerca da constitucionalidade do art.º 175º CP
face ao regime estatuído no art.º 174º CP, quanto ao conteúdo da acção contida em cada um
dos tipos, eram, então, ponto fundamental do julgamento de constitucionalidade em apreço.

Mas sendo assim, como também atrás antecipámos, concluir-se-á que a punição da prática de
actos homossexuais de relevo stricto sensu (i.e., excluindo o coito anal e o coito oral) com menores
entre os 14 e os 16 anos (que na nossa perspectiva é tudo quanto remanesce no 175º CP numa correcta leitura
dos tipos), não é na nossa ordem jurídico-penal acompanhada da punição da prática de actos
heterossexuais de relevo stricto sensu com menores entre os 14 e os 16 anos, desde logo se
recolocando aqui todas as questões de constitucionalidade de tal opção à luz dos art.ºs 13º n.º
2 e 26º n.º 1 da Constituição da República.

Mas não só! É que o levantar das questões enunciadas não só é insusceptível de análise
autónoma, como igualmente é insusceptível, de um ponto de vista racional e de determinação
do conteúdo dos tipos, de ser levada a cabo sem apurar do sentido e alcance do facto de no
art.º 175º CP se prever uma modalidade de acção a mais. Que a questão é igualmente
incindível das anteriores e que briga directamente com os princípios constitucionais invocados
pelo Recorrente resulta patente quando se questione da ratio legis constitucional de punir o
comportamento daquele que leva a que o menor entre os 14 e os 16 anos pratique actos
homossexuais com outrem, e outrotanto não suceder se o mesmo agente levar o mesmo
menor a praticar actos heterossexuais com outrem.

Por outras palavras, e conclusivamente, entendemos que as três questões levantadas pelo
Recorrente não só são todas pertinentes à luz dos preceitos constitucionais cuja violação foi
pelo mesmo invocada, como são insusceptíveis de análise em separado, posto que
mutuamente se implicam, numa leitura integral, e sistematicamente integrada, do tipo do art.º
175º CP, principalmente em relação com o tipo do art.º 174º CP65.

Todavia, não foi isso aceite pelo TC no aresto em apreço. Assim que, mercê da autolimitação a
que procedeu, a questão sobre a qual o TC se ateve foi “a de saber se ofende os artigos 13º e

65 Além de que uma correcta ponderação do que seja o conteúdo da acção compreendido no art.º 175º CP por relação
com a acção descrita no art.º 174º CP, e ponderando a esquemática conceptual utilizada pelo legislador nos demais
tipos dos art.ºs 163º e ss. do CP (i.e., o argumento sistemático), poderia ter levado de plano a reduzir o âmbito de
aplicação do tipo do art.º 175º CP, remetendo a questão para o império do art.º 174º CP, com o que estaria afastada a
punição do Recorrente desde logo porque em tal tipo é relevante expressamente o abuso da inexperiência do
adolescente (isto dando aqui de barato que era suficiente para afastar a existência de abuso de inexperiência o facto
de ter sido dado como assente em Primeira Instância que os mesmos eram prostitutos – Conclusão M) das Alegações
do Recorrente).

- 34 -
26º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 175º do CP enquanto pune a conduta
(homossexual) aí prevista, ainda que não se abuse da inexperiência do menor, quando a norma
do artigo 174º apenas pune a conduta (heterossexual) nele prevista se for praticada com abuso
de inexperiência do menor”66.

No que concerne à identificação do conteúdo e extensão do princípio da igualdade, cristalizado


no art.º 13º CRP, padrão aferidor da constitucionalidade das normas penais sujeitas à
apreciação do TC, nada nos cabe apontar à excelência do aresto que comentamos. Com
efeito, acompanha-se integralmente a jurisprudência constante do TC reiterada agora no
acórdão n.º 247/2005, maxime quando nele se afirma que “o n.º 2 do artigo 13º da CRP
enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam
como que presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do
princípio da igualdade – mas que são enunciados a título meramente exemplificativo (...). A
intenção discriminatória em situações como a presente, não expressamente aludida naquele
catálogo, não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição
jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalísticos, de razoabilidade e de
adequação pressupostos pelo princípio da igualdade. Importa, a esta luz, decidir se a
normação em causa é materialmente fundada ou, pelo contrário, se mostra inadequada,
desproporcionada e, no fim de contas, arbitrária. (…). Constituindo a legislação penal um
domínio em que o respeito pelo direito à liberdade é mais directamente posto à prova e
cabendo ao legislador a escolha, no quadro constitucional, das condutas merecedoras de
sancionamento penal – opção onde não deixa de se reconhecer alguma margem de
discricionariedade –, compreende-se, de resto, o papel fundamental do princípio da igualdade,
onde a consideração de vários direitos e liberdades em presença, frequentemente
conflituantes, impõe soluções de complexa harmonização. (…) Também neste domínio (…) o
Tribunal Constitucional tem aferido a constitucionalidade de normas penais perante aquele
princípio. (…) E deles há que especialmente evidenciar o repúdio de diferenças baseadas em
critérios de valor meramente subjectivos e a identificação da proibição do arbítrio com
discriminações não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato
significado valorativo ‘compatível com o quadro de valores constitucionais’.”67.

Obviamente que também se acompanha a afirmação segundo a qual o art.º 13º n.º 2 CRP não
patenteia um “elenco fechado de categorias ou factores insusceptíveis de fundamentar

66 Cfr. Capítulo II n.º 1 do Acórdão.


67 Cfr. Capítulo II n.º 6.1 do Acórdão.

- 35 -
diferenças de tratamento jurídico, devendo considerar-se como meramente exemplificativo o
enunciado que aí se faz”68.

Por outro lado, uma questão emergente do Acórdão que julgamos merecer ponderação
específica é a da identificação da ratio legis da incriminação constante do art.º 175º CP. Lê-se,
a tal propósito no aresto em apreço que “o legislador terá partido do pressuposto de que a
prática daquele tipo de actos, ainda que não haja abuso da inexperiência do menor, pode ser
prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente numa das suas
vertentes essenciais – a orientação sexual. Tratar-se-á de assegurar ao menor um
desenvolvimento sem perturbações no que à esfera sexual diz respeito, especialmente quando
se trata de maiores a praticar actos homossexuais de relevo com menores de certa idade, já
que estas experiências poderão ser traumatizantes e fonte de prejuízos sérios para o
desenvolvimento psíquico, intelectual e social do jovem. Em causa estará, então, a protecção
de bens jurídicos constitucionalmente tutelados: a autodeterminação sexual e, em geral, o livre
desenvolvimento da personalidade, tudo com claro assento no disposto no artigo 26º n.º 1 da
CRP.” 69.

Mas logo segue afirmando: “Anote-se, contudo, que o que se deixa dito se reporta ao crime
previsto no art.º 175º do CP, isoladamente considerado, ou seja, sem a ponderação do seu
lugar relativo no contexto da punição dos crimes sexuais de que são vítimas adolescentes, em
particular dos que incriminam condutas heterossexuais”70.

Ora, se bem se compreende a transcrita afirmação feita pelo TC, não podemos deixar de a
acompanhar, mas com um esclarecimento: o bem jurídico que o legislador visou tutelar com a
incriminação do art.º 175º CP é a autodeterminação sexual e o livre desenvolvimento da
personalidade, o que se não contesta. Mas se assim é, e se estamos a falar de menores entre
os 14 e os 16 anos, não pode linearmente aceitar-se – mesmo numa leitura isolada de tal tipo – que a
protecção desejada pelo legislador possa legitimamente abranger situações em “que não haja
abuso da inexperiência do menor”. Senão vejamos: na eventualidade de um menor entre os 14
e os 16 anos já ter a sua orientação sexual firmada, ou pelo menos direccionada, no sentido da
homossexualidade, as considerações expendidas no aresto seriam rigorosamente aplicáveis à
sujeição do mesmo menor à prática, por um maior de idade, de actos heterossexuais.

Expliquemo-nos: se a prática por um maior de idade de um acto homossexual de relevo com


um menor entre os 14 e 16 anos, cuja orientação sexual indiciária é heterossexual “pode ser
prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente numa das suas

68 Idem, ibidem.
69 Cfr. Capítulo II n.º 4 do Acórdão.
70 Idem, ibidem.

- 36 -
vertentes essenciais – a orientação sexual”, igualmente verídico é que a prática por um maior
de idade de um acto heterossexual de relevo com um menor entre os 14 e os 16 anos, cuja
orientação sexual indiciária seja homossexual pode igualmente ser prejudicial para o livre
desenvolvimento da sua personalidade na vertente da orientação sexual. Por paridade de
razão. Usando as palavras do aresto, impor-se-ia em ambos os casos assegurar ao menor um
desenvolvimento sem perturbações no que à esfera sexual (heterossexual ou homossexual)
respectiva diz respeito71.

Assim sendo, então mesmo numa leitura isolada do art.º 175º CP, a ponderação da experiência
do menor terá sempre de ser elemento fundamental, tendo de se duvidar da legitimidade,
mesmo sem qualquer juízo comparativo com o tipo constante do art.º 174º CP, da abrangência
por aquele tipo de casos em que o menor seja experiente (rectius, de casos em que não tenha havido
abuso da inexperiência deste). Assim o impõe não só os art.ºs 13º e 26º da CRP, mas também o art.º
18º do diploma fundamental.

Mas que o pensamento radical, ou essencial, do TC subjacente ao aresto em apreço merece


total concordância, resulta da referência que nele é feita à identidade ou unidade do bem
jurídico que ambos os tipos penais referidos tutelam. Como bem está escrito no acórdão, “do
confronto dos artigos 174º e 175º do CP resulta que as duas incriminações têm em vista a
tutela do mesmo bem jurídico – a autodeterminação sexual do menor entre 14 e 16 anos de
idade, através da punição de actos sexuais de relevo susceptíveis de afectar o livre
desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual. Incriminações que constituem uma
excepção à regra (…) de que só até aos 14 anos é que a prática de actos sexuais prejudica o
desenvolvimento global do menor, à regra de que atingidos os 14 anos de idade o menor é livre
de se decidir quanto ao seu relacionamento sexual (…). Ao mesmo tempo que constituem um
desvio à regra geral segundo a qual o maior de 14 anos de idade possui o discernimento
necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento por si prestado (artigo 38º n.º 3
do CP), já que os comportamentos que supõem constrangimento da vítima levam antes ao
preenchimento de outros tipos legais de crime, nomeadamente os de Coacção sexual e de
Violação (artigos 163º e 164º do CP).”72.

Por outro lado, em face das considerações que tecemos em 5 retro à guisa de conclusões
interlocutórias relativamente à análise típica dos art.ºs 174º e 175º CP, não podemos deixar de
aplaudir também a afirmação pelo TC de que, na aferição da conformidade constitucional da

71 E a não aceitação da reciprocidade de situações atrás hipotetizada só poderá encontrar respaldo na assunção de que,
em princípio, todos os seres humanos são heterossexuais e só a verificação de um prejuízo no desenvolvimento da sua
personalidade poderá levá-los a perturbar a orientação sexual respectiva “transformando-os” em homossexuais. Ora
não se crê que o TC com a frase seleccionada tenha querido sustentar os pressupostos desta consequência.
72 Cfr. Capítulo II n.º 6.1 do Acórdão.

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inexigibilidade do abuso da inexperiência do menor no tipo do art.º 175º CP, cabe afastar
“qualquer hipótese de ponderação de um pretenso objectivo de prevenção de riscos de
aproveitamento das situações de carência social e económica das vítimas que, muitas vezes,
estão presentes nos casos de condutas homossexuais com menores. Com efeito, é
inquestionável que o artigo 175º do CP não confere qualquer relevância, na construção do tipo
legal, àquelas situações de carência”73.

Quanto à questão nuclear do acórdão, a mesma encontra-se perfeitamente delimitada e


correctamente enunciada, quando o TC afirma: “Na verdade, a categoria que aqui releva como
‘tertium comparationis’, referencial face ao qual se hão-de ‘comparar’ as situações em
presença, é a da orientação sexual que todos os cidadãos têm o direito de escolher livremente,
sendo que, para uns (os que praticam actos heterossexuais de relevo com menores entre 14 e 16 anos ) a
restrição do direito à livre expressão da sua sexualidade tem como limite o ‘abuso da
inexperiência’ do menor e para outros (os que praticam actos homossexuais de relevo com menores entre os
14 e os 16 anos) a restrição é total. Não sendo despiciendo considerar, neste contexto, o direito do
próprio adolescente de livremente exprimir a sua sexualidade, nomeadamente escolhendo de
forma livre a sua orientação sexual. Um direito que é restringido ao menor entre 14 e 16 anos
que pretenda praticar actos homossexuais de relevo com um maior, sem haver qualquer abuso
da inexperiência do primeiro, uma vez que tal prática está incriminada, diferentemente do que
sucede com o adolescente que pretenda praticar actos heterossexuais de relevo com um maior
nas mesmas circunstâncias”74.

Assim identifica, e bem, o TC a diferença que para ser conforme ao princípio da igualdade há-
de justificar-se em valores constitucionalmente protegidos. Precisamente por isso procede à
análise das possíveis razões que teriam levado o legislador a dar uma maior abrangência à
incriminação constante do tipo do art.º 175º CP.

Nessa senda o TC explicita a relevância típica do abuso da inexperiência do menor para o tipo
do art.º 174º do CP, em moldes que se aceitam porque consentâneos com o nosso
entendimento atrás expresso, e que aliás era também o apontado por Figueiredo Dias75, a
saber: “o abuso da inexperiência do menor (…) significa a exploração ( o aproveitamento) da
inexperiência sexual da vítima e, consequentemente, a menor força de resistência que por isso
terá diante dos actos sexuais de relevo especificados naquele artigo, com prejuízos para o livre
desenvolvimento da vida sexual do adolescente, nomeadamente para a sua orientação sexual

73 Idem, ibidem. A propósito da relevância das situações de dependência económica no âmbito dos crimes sexuais,
confira-se a relevância típica que é dada a tal elemento no art.º 163º CP, que todavia não cremos que quadrasse às
situações aqui hipotetizadas.
74 Cfr. Capítulo II n.º 6.2 do Acórdão.
75 Jorge Figueiredo DIAS, Idem, p. 566.

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(…). Por conseguinte, o legislador admite situações em que, por razões diversas, o menor
entre 14 e 16 anos ou já tem experiência sexual ou embora não a tendo não há abuso da sua
inexperiência, não ocorrendo então qualquer dano ou perigo para o livre desenvolvimento da
personalidade do menor, no que diz respeito à esfera sexual, o que justifica a especificação da
modalidade típica de acção abusar da inexperiência do menor. A não especificação desta
equivaleria, naqueles casos em que não há abuso da inexperiência, a uma incriminação que
não tutelaria qualquer bem jurídico”76.

Por outras palavras, entende o TC, e bem, que o tipo do art.º 174º CP constitui um crime de
perigo concreto, posto que a inexistência de concreto perigo ou dano para o bem jurídico
tutelado afasta o preenchimento do tipo. Paralelamente, a irrelevância do abuso da
inexperiência do menor na incriminação do art.º 175º CP equivalerá a afirmá-lo como um crime
de perigo abstracto, na linha do que o legislador previu no art.º 172º CP. Nas palavras do
aresto em análise, “da prática de actos homossexuais de relevo entre um maior e um menor
entre os 14 e os 16 anos de idade resultará sempre dano ou perigo para a autodeterminação
sexual deste.”77.

Subsequentemente, o TC procede a uma análise do que poderia estar na base de tal


diversidade de entendimentos, arrimando-se ao teor das actas da Comissão Revisora de 1993,
e concluindo que “seriam, assim, razões ligadas à maior ‘normalidade’ dos comportamentos
heterossexuais (e, consequentemente, ao algo de ‘anormal’ que existe nos comportamentos
homossexuais) e ao ‘desvalor especial da homossexualidade’ que justificariam a especial
punição prevista no art.º 175º do CP”.

E relativamente a tal possível justificação para a diferente incriminação de comportamentos,


conclui o TC em sentido que igualmente é consentâneo com o nosso entendimento da questão,
atrás exposto. Diz-se no acórdão comentado, “…estes parâmetros de normalidade /
anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação ‘estatística’ da sociedade,
afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13º
n.º 2 e 26º n.º 1, da Constituição. É precisamente no tratamento de situações que se inserem
em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidas que o princípio
constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando, sempre ou de algum modo,
um direito ‘à diferença’ ou ‘de diferença’.”.

Aliás, a importância do aresto em análise reside precisamente, a nosso ver, aqui, i.e., na
introdução consequente e precisa que faz do princípio da igualdade no âmago do direito penal
sexual, onde o tratamento diferenciado do que é diverso e igualitário do que é uno se impõe

76 Cfr. Capítulo II n.º 6.4 do Acórdão.


77 Idem, ibidem.

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com particular acuidade, evitando que a proclamação do princípio constante do art.º 13º CRP
se reduza a isso mesmo, uma mera proclamação de princípios.

Assim que seja de acompanhar, indubitavelmente, a consequência extraída pelo TC: “Se se
defender que não é a orientação homossexual que, em si mesma, se trata desfavoravelmente,
nem é o facto de ela representar uma orientação minoritária, ou anormal, que, também em si
mesmo, releva – por ela ser minoritária, o grau de consciência requerido ao adolescente é que
se torna mais exigente – então deve reconhecer-se que a diferença carece de fundamento
racional. Não se vê, de facto, razão para se entender que o menor entre os 14 e os 16 anos de
idade pode saber o que quer, por que quer e com quem quer relacionar-se, quando consente
em práticas heterossexuais, mas nunca quando consente em práticas homossexuais”78.

Uma nota apenas para “corrigir” a parte final do trecho transcrito do aresto em análise: é que
em rigor o entendimento sustentado pelo STJ (no acórdão infirmado pelo TC), não é o de que o
menor não pode saber o que quer, por que quer e com quem quer relacionar-se, se de práticas
homossexuais se tratar. O entendimento do STJ vai mais longe do que isso. É um
entendimento que diz que é irrelevante que o adolescente saiba ou não o que quer, por que
quer e com quem quer relacionar-se, por se tratar, no caso de actos homossexuais de relevo,
de práticas especialmente desvaliosas e algo anormais. É que esse é o único sentido a dar à
argumentação do STJ para justificar a irrelevância típica do abuso da inexperiência do menor,
i.e., à manutenção da punibilidade do comportamento do maior mesmo que o menor saiba tudo
aquilo.

Em face de tudo isto, compreende-se linearmente a afirmação do TC segundo a qual “se se


atender ao risco previsível de reflexos nocivos no livre desenvolvimento da personalidade na
esfera sexual, compreendida a orientação sexual do menor, não parece racionalmente
sustentável que a experiência de relacionamento homossexual, sem abuso da inexperiência
sexual do menor, afecte mais gravemente tal desenvolvimento ( e orientação) do que a
experiência heterossexual nas mesmas circunstâncias. Nada, de resto, a este respeito, tem
hoje qualquer base científica credível (…). Apelar ao efeito ‘traumático’ ou ‘mais traumático’ da
prática de actos homossexuais não tem, aliás, melhor préstimo, não deixando até de revelar,
mais claramente, um juízo de desvalor, pejorativo, da prática sexual ( homossexual)
‘traumatizante’, na base da qual se pretenda justificar a diferença de tratamento jurídico”79.

78Idem, ibidem.
79 Idem, ibidem. Seguidamente, sob o Ponto 6.5, afirma ainda o TC que “pressupor que a prática de acto
homossexual livre requer um grau de maturidade superior ao necessário para a prática de acto heterossexual de
relevo carece de fundamento racional (assim, Rui Pereira, “Liberdade sexual…”, p. 46 (…)”. Em sustento das
posições definidas, convoca ainda o TC a evolução legislativa da última década em vários países europeus, bem como
jurisprudência autorizada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e ainda doutrina, cuja conferência, para uma
integral perspectivação da questão, se aconselha.

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Vai, pois, o TC, neste particular, exactamente ao encontro daquilo que atrás defendemos
quando referimos que se a prática por um maior de idade de um acto homossexual de relevo
com um menor entre os 14 e 16 anos, cuja orientação sexual indiciária é heterossexual pode
ser prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente numa das
suas vertentes essenciais – a orientação sexual, igualmente verídico é que a prática por um
maior de idade de um acto heterossexual de relevo com um menor entre os 14 e os 16 anos,
cuja orientação sexual indiciária seja homossexual pode igualmente ser prejudicial para o livre
desenvolvimento da sua personalidade na vertente da orientação sexual.

Estas, pois, as razões que permitiram ao TC, acertadamente, concluir “que o artigo 175º do CP,
no ponto em que, contrariamente ao que se dispõe no artigo 174º do mesmo Código, torna
irrelevante o abuso da inexperiência da vítima, viola o disposto nos artigos 13º n.º 2 e 26º n.º 1
da Constituição: estabelece uma diferença de tratamento jurídico com base na orientação
sexual (homossexual) e sem fundamento racional”80.

Por fim, refira-se que se compreende, de um ponto de vista estritamente jus-constitucional mas
que se não aceita de um ponto de vista jus-penal, de política-criminal e de análise da vida
social que à Lei Penal portuguesa cabe regular, a chamada de atenção que o TC se preocupou
em salvaguardar.

Referimo-nos à expressa chamada de atenção do TC no sentido de que a conclusão de


inconstitucionalidade a que chegou “não tem implícito – e não poderia ter – qualquer juízo
sobre a conformidade ou desconformidade constitucional do disposto no artigo 175º do CP
isoladamente considerado; o que significa que dos estritos limites do juízo agora feito não
decorrerá, necessariamente, a eventual inconstitucionalidade de uma solução legislativa que
viesse a igualar o tratamento jurídico-criminal das situações confrontadas ao nível do que
agora é dado à prática de actos homossexuais…”.

A questão hipotetizada pelo TC, se bem compreendemos, é a de uma possível intervenção


legislativa futura que viesse a eliminar do art.º 174º CP a modalidade típica da acção que aqui
foi objecto de apreciação jurisdicional (i.e., a exigência de um abuso da inexperiência do adolescente),
igualando tal tipo penal com o actual tipo constante do art.º 175º CP. Nesse caso, a prática por
um maior dos actos sexuais nesses tipos descritos, contra menor entre os 14 e os 16 anos,
passaria a ser punida independentemente de ter ou não havido abuso da inexperiência do
adolescente, quer se tratasse de actos heterossexuais ou homossexuais.

Ora, se é certo que tal hipotética intervenção legislativa, aparentemente, garantiria o respeito
pelo princípio da igualdade que o aresto considerou violado, não menos certo é que, a nosso

80 Cfr. Capítulo II n.º 7 do Acórdão.

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ver, não permitiria satisfatoriamente eliminar todos os demais problemas que atrás se
detectaram como inquinando o tipo do art.º 175º CP. Assim, e como atrás referimos:

a) não só não permitiria esclarecer a razão de ser da oscilação conceptual em que incorreu o
legislador do art.º 175º CP quando parece ter utilizado a descrição da acção respectiva com
um sentido diverso da mesma descrição na maioria dos demais tipos do Capítulo V da Parte
II do CP, potenciando novas dúvidas de âmbito da matéria da proibição e de conformidade
das normas obtidas com a Constituição da República;

b) como não permitiria justificar a não punibilidade pelo art.º 174º CP da prática de actos
heterossexuais de relevo stricto sensu (i.e., outros actos sexuais de relevo que não a cópula, coito anal e
coito oral), por maiores com adolescentes, quando à luz do art.º 175º CP são puníveis todos os
actos homossexuais de relevo (stricto sensu, apenas, diríamos nós, pelas razões indicadas em 5 retro),
com os mesmos menores, assim se não garantindo a conformidade com a Constituição da
República de tais tipos, entre si relacionados;

c) como não garantiria uma efectiva igualização de regimes, desiderato que apenas se
efectivará com a subsunção de todos os actos sexuais graves (cópula, coito anal e coito oral) com
adolescentes, sejam eles actos heterossexuais ou homossexuais, no mesmo tipo ( o do art.º
174º CP);

d) como, por fim, transformaria ambos os tipos de crime em crimes de perigo abstracto, com o
aumento da área da punibilidade de modo porventura não suportado pelas exigências da
vida em sociedade e não consentâneo com o carácter fragmentário do Direito Penal (ademais
tornando de duvidosa legitimidade constitucional o regime penal assim gizado, precisamente à face dos art.ºs 18º n.º
2, 26º n.º 1 e 27º da CRP81).

Estas as breves notas que se nos oferece apresentar relativamente ao Acórdão n.º 247/2005
do Tribunal Constitucional, Acórdão que se considera constituir um passo fundamental no
processo de evolução do direito penal sexual português, nomeadamente de molde a garantir
que nesse âmbito “só a liberdade e a autodeterminação de expressão sexual podem figurar
como bem jurídico penalmente tutelado”82.

Paulo Saragoça da Matta


Lisboa, 10 de Julho de 2005

81 O que parece ser também consentâneo com a opinião expendida na Declaração de Voto da Sr.ª Juiz Conselheira
Dr.ª Maria João Antunes, ao acórdão em apreço.
82 Manuel da Costa ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, p.

388, citado também na Declaração de Voto referida na nota anterior.

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