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mesma.

É uma forma a priori, se assim o quisermos, mas “diferente daquele


conhecimento das formas do princípio de razão que sabemos a priori”, como o espaço,
tempo e a causalidade, pois diz respeito “não à forma dos fenômenos, mas ao seu
conteúdo; diz respeito não ao seu como, mas ao seu quê” (Schopenhauer, p.297).
Tudo isso significa dizer, para o platonismo sui generis Schopenhauer que passou
pela clivagem do criticismo kantiano, que a Ideia que se manifesta no belo é expressão
imanente de uma essência do mundo e não exatamente, portanto, um conhecimento
transcendente divino como defende Winckelmann. No artista, a beleza “ocorre com tal
clareza que ele a mostra como nunca se vira e, por conseguinte, supera a natureza com
sua exposição, tudo isso é apenas possível devido ao fato de que Vontade [...] somos nós
mesmos”. Nós, seres humanos, podemos trazer à luz, por antecipação, o que a natureza
se esforçou por expor, mas não conseguiu realizar com perfeição. Nós somos capazes de
clarividência, de perceber as coisas isoladas na Ideia, somos capazes de entender “a
Natureza em suas meias palavras” e exprimir então “o que ela apenas balbuciava”
(Schopenhauer, p.297).

Nietzsche

Daqui é possível partir para o modo como Nietzsche compreendia a relação entre
natureza e cultura, nos termos em que essa última representa um aperfeiçoamento da
primeira que corrige e completa suas intenções a despeito também de sua inépcia, já que
essas passagens do O Mundo aparecem anotadas pelo filósofo em suas notas escritas para
seu curso sobre os diálogos de Platão ministrado pelo então jovem professor de filologia
na universidade da Basiléia entre os anos de 1871 e 1876. O homem, aponta Nietzsche,
“vê nas coisas não aquilo que a natureza efetivamente formou, mas antes aquilo que ela
se esforçou por formar, mas não chegou a atualizar”. O homem “compreende a natureza
por caminhos inconclusos e pronuncia com pureza o que ela apenas balbucia; ele imprime
ao duro mármore a forma da beleza, que a natureza falha em milhares de figuras e grita
como que a esta última: Sim, ai está o que tu querias dizer. Só assim o grego podia
encontrar o arquétipo e erigi-lo como cânon da escola do escultor” (Nietzsche, p.194).1 A
mesma ideia persiste nas reflexões de Nietzsche sobre a relação entre Natureza e Cultura

1
Nietzsche, F. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão, trad. Marcos S. P. Fernandes & Francisco J.
D. de Moraes, São Paulo: Martins Fontes, 2020.
e aparece novamente dessa vez na sua terceira Extemporânea, Schopenhauer como
educador. A natureza é inábil para realizar seus fins e necessita dos homens, e da cultura,
portanto, para se lançar para além de seus balbucios. Isso acontece concretamente na força
clarividente do indivíduo humano consegue erguer para além da necessidade biológica e
reprodutiva da Natureza e exprimir como um todo aquilo que, em várias tentativas, ela
apenas balbuciou “de modo que nem enriquecer, nem ser honrado ou erudito, pode
soerguer o indivíduo singular de sua profunda repulsão em relação à ausência de valor de
sua existência, haja vista que a aspiração por esses bens só tem sentido através de um
objetivo transfigurador total. Conseguir poder para, através dele, auxiliar a physis e para
ser um corretor de suas maluquices e inabilidades (Nietzsche, 2020, p.29).2
O homem a que Nietzsche refere-se aqui é também uma particularidade; não trata-
se de um homem qualquer, mas do gênio; ele é eleito pela Natureza para dar forma ao
mundo informe do homem comum, é o escolhido para organizar todo o cosmos em torno
de sua onicompreensão. É no coração raro do gênio que a natureza se aperfeiçoa, que se
eleva para além da constituição animal séria e rude. A disposição estética, que nos eleva
até a liberdade, “ela tem de ser um presente; somente o favor dos acasos pode soltar as
correntes do estado físico e conduzir o selvagem à beleza” (Schiller, p.123). É pelas mãos
prometeicas do gênio que a natureza joga, que o seriedade física da natureza rude se
espiritualiza e se apraz no caráter lúdico de uma existência simbólica mais alta: o horror
trágico do caráter violento e autolacerante da Natureza, que no jogo ainda físico aparece
na crueza da cultura primitiva dos gregos. Adiante, entretanto, nas mãos prometeicas do
gênio de Homero, ela espiritualiza em direção ao mundo livre do épos:

2
Nietzsche, F. Schopenhauer como educador, trad. Clademir L. Araldi, São Paulo: Martins Fontes, 2020.

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