A.H. Cinquenta e dois anos. Moço da limpeza no hospital P. Casado, um filho: D, de sete anos.
Internado na atenção gratuita pela oitava vez em Pinel pelo Doutor H, médico da prisão que acompanha o
caso há treze anos. Interrupção do trabalho três meses antes da última hospitalização. Mal-entendidos familiares.
Recrudescimento da sensação de perseguição no trabalho e dos pensamentos obsessivos (“fugas”). Vontade de ir
embora a outro lugar. Diminuição dos problemas e da ansiedade desde o começo da hospitalização.
Amnesia, advertida pelo próprio paciente, pelo Doutor K e por uma enfermeira do serviço que o
conhece desde 1964. É difícil para ele se lembrar do seu passado, mas nunca é dolorido, o que ele diz às
vezes resulta contraditório.
Pai desconhecido. É reconhecido pelo primeiro marido da sua mulher (sic)1 que lhe dá o seu
nome, mas a quem ele não conheceu. Um meio-irmão e uma meia-irmã (de pais distintos). Ele é
abandonado “dentro de um berço em um descampado”, acolhido e educado pelos avós maternos.
Escolarizado até os catorze anos. Vários empregos, dentre eles aprendiz de açougueiro.
Ele entra na marinha aos 17 anos até o afundamento na baía de Toulon, de onde volta para “sua
casa”.
Participa na resistência enquanto trabalhava no Ministério da Marinha em Paris. É chamado para
as linhas nos barcos franceses sob o controle americano no Pacífico. Rescinde seu contrato após quatro
anos devido a uma licença na França onde conhece a uma prostituta que o “subjuga” em Pigaille, que teria
desejado que fosse proxeneta e lhe apresenta o pessoal desse ambiente. Roubo junto dois cumplices
auxiliados por um informante na solitária casa de um médico de Loire et Cher em 1946, seguido
imediatamente da sua detenção.
A condena é a trabalhos forçados em cadeia perpétua, depois a morte, depois foi perdoado. (Um
dos seus cumplices é guilhotinado). A sua pena de morte é comutada pela cadeia perpétua de trabalhos
forçosos, seguida por uma redução progressiva da pena por boa conduta, após ter passado seis anos em
celas isoladas. Progressivamente apreende a profissão de linotipista, aprende contabilidade, construção
civil, vidraceiro.
Saída da prisão.
Sob liberdade condicional, após ter passado 18 anos (desde os 22 aos 40 anos), com proibição de
permanência em dois departamentos, procura retomar o contato com o meio. Trabalha na gráfica. Depois,
sete hospitalizações em três anos, interrompidas por breves saídas ou estâncias em casas de repouso. Ele
conhece uma enfermeira do seu serviço (divorciada, dois filhos) e se casa com ela em 1966. Nascimento
de um filho em 1969. Ele começa trabalhar no hospital P. Casa de repouso em 1973, ele disputa com a sua
mulher. Trabalha até outubro de 1975. Ele deixa de trabalhar; hospitalização atual, última notícia do dia
2 de fevereiro de 1976: acabou de ser demitido do seu trabalho.
Os pés e os órgãos genitais da vítima foram queimados com um maçarico, depois se encafifou com ele
durante o processo achando que ele mesmo era o chefe da banda. Ao longo da preparação do “assalto”,
descobriu o assassinato realizado por um dos seus cumplices que tinha ficado impune. Durante o processo
denunciou seu cúmplice quem confessou ter instigado ao Sr. H, que se mostrava reticente, para convencê-lo
de realizar o “assalto” que estavam preparando. Daí a redução da pena e a execução do cumplice. (Parece que
os outros dois não foram condenados à morte).
A primeira vez que apareceram os problemas foi durante as progressivas reduções da pena por
“boa conduta” na prisão. E, a aproximação da saída definitiva, enquanto goza de maior liberdade nos
ateliês da prisão, dá a impressão de que os demais presos falam dele, sabem o que ele pensa, chama-o de
trouxa etc.: hospitalização de dois meses na Santé. Volta à prisão com regime de semiliberdade: os
mesmos fenômenos ficam mais graves, ele tem vontade de fugir, refugia-se nas estações, quando tem
licença escuta apitos na rua, pensa que colocaram microfones, que a polícia o está seguindo aonde ele for:
segunda hospitalização sob regime penitenciário ao longo de um ano, com diminuição dos problemas,
até a saída definitiva em liberdade condicional. Imediata recaída nos mesmos problemas e começo das
oito hospitalizações em Pinel.
Idênticos fenômenos: impressão de que lhe adivinham o pensamento, de estar sendo vigiado,
perseguido, de ele “cheirar” a prisão, de que o seu registo penal foi divulgado.
Duas tentativas de suicídio, até a sexta hospitalização em Pinel, uns dois anos depois de ter saído
da prisão, um cortando-se as veias das dobras do cotovelo, o outro, pouco tempo antes de voltar com a
sua mulher, tomando barbitúricos, pelo qual precisou de reanimação.
Período qualificado “de felicidade” entre seu casamento em 1968, apesar da presença mínima dos
mesmos fenômenos e, em 1973, agudizam-se os mal-entendidos conjugais e acentuam-se os fenômenos
do tipo: pensamentos obsessivos, aumento dos xingamentos dirigidos para ele mesmo (seu trouxa, veado,
merda etc.) mais concretamente quando está em uma relação de intercâmbio com alguém (encender um
cigarro, por exemplo). Aquilo chamado de “fugidas”, então, necessidade de sair do quarto ou de pensar
no filho dele. Impressão de se ouvir pensando. Estes fenômenos aparecem especialmente em março de
1973 no seu trabalho: “Alguém me devolvia a palavra que eu tinha lançado” (xingamento) “Me dava a
entender pela sua risada sarcástica ou pela sua atitude”. Ele nunca pronúncia os xingamentos. “Eu deixo
os xingamentos para mim mesmo”. O sentimento de perseguição nunca sumiu desde o começo dos
fenômenos. As duas tentativas de suicídio não parecem ter estado diretamente relacionadas com a
magnitude destes fenômenos.
Aumento circunstancial dos fenômenos elementares: impressão de que a sua mulher está traindo-
o ao longo de uma extensa separação em 1973, de que as suas enteadas sejam “putas” quando forem mais
velhas, aumenta a frequência de “pensamentos ruins” quando se encontra, por exemplo, com o médico
do serviço onde ele trabalha, e quem fez três cirurgias para seu filho (hérnias). Cessação quase completa
dos problemas desde que está hospitalizado.
Sensação de que a Polícia nunca o deixou tranquilo desde que ele esteve na prisão (intercepções
de cartas, vigilância, interrogatórios etc.).
Dúvidas sobre a significação persecutória ou não dos acontecimentos objetivos e reais pós-
penitenciários (trabalho com antigos presos no hospital P, retirada de seu crachá de proibição de
permanência).
2
Comentário sobre a entrevista de Lacan
Homem de 52 anos, com barba cinzenta, consciente e bem orientado, atento às perguntas,
progressivamente descontraído até o final da entrevista. Tranquilo. Expressa-se clara e diretamente,
vocabulário não carcerário; não carece de sentido do humor.
O Sr. H cita a frase de um dos seus colegas de prisão: “Você vai ver, a pena se expia depois”. Foi
no momento que começaram a dar para ele um pouco de liberdade durante a “fase três”, quando teve a
sua primeira “depressão”, por utilizar as palavras dele.
No entanto, soube-se rapidamente que se tratava de um caso de psicose e que o Sr. H não voltaria
nunca a ser um criminoso. Mas o crime antes da detenção sem dúvida constituiu uma proteção contra a
psicose.
Até o dia da apresentação seu estado ficou mais grave: na véspera fugiu. A apresentação, segundo
o que ele diz, teve um efeito reparador e sente-se melhor. O Sr. H acaba de ser demitido do seu trabalho
e a sua mulher quer largá-lo.
O efeito beneficioso da apresentação se deve, sem dúvida, ao fato de que Lacan põe o acento sobre
a denúncia do Sr. H para o seu cumplice, o que causou a execução do último. “Denunciou seu cumplice,
diz assim (diz para si)” (p. 16 do original). Lacan, através de suas intervenções, identificou ele como
“dedo-duro” e como “merda”, daí a sensação de perseguição.
Poderia se dizer que o fato dele ser um dedo-duro foi foracluído e que é o que vem de fora em
forma de convicção de ser escutado? Como uma vez disse algo que não devia dizer, a partir de então o
que não se diz escuta-se, sabe-se. Nunca falou, ele diz, porém comunica-se (p. 22 do original).
O assunto da confissão está presente na sua história: os avós forçaram à mãe a que dissesse onde
o tinha abandonado.
Mas, não tem mais a ver com desconhecimento? Embora o desconheça, sabe que é um dedo-duro
e poderíamos dizer que, inclusive, tentou fazê-lo saber quando se ocupava da contabilidade, procurando
“colocar ordem” e erguendo-se como justiceiro.
O assunto do “seu merda” parece ser fundamental. Ele está convencido de que todo mundo pode
ver que é uma pessoa “suspeita”, dito de outra forma, que não se tem dúvida de que é um “sacana”, um
dedo-duro. Se ele escutar ou achar que está escutando que a enfermeira fala de um merda, está
convencido de que se trata dele.
Poderíamos dizer que se identifica com ser um merda, adotando a linguagem do Outro em
relação a ele: teria, no seu caso, uma coalescência entre $ e A. Na prisão é tratado como um merda, foi
abandonado pela sua mãe em um desacampado como se fosse uma merda. A psicose se manifesta a partir
do momento em que a sua “boa conduta” foi reconhecida, o qual era incompatível com a sua própria
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convicção fundamental.
2º a convicção de que os outros estão pensando nele, sabem dele e dizem dele.
Tal concepção de seu destino como objeto do pior, leva-nos a perguntarmos o que deu nele na
hora de suicidar-se.
O assunto do indulto entra em jogo aqui. Enquanto o reconhecimento da sua boa conduta precipita o
delírio (o Outro já não o reconhece como um merda), ele é indultado ou salvo por ser merda: a primeira vez
pelos seus avós que o acolhem, a segunda vez pelo Presidente da República (o “Doutor”, seu lapsus p. 5 do
original), depois pelo Doutor H e, por fim, por sua mulher que o salva da hospitalização.
O que diferencia ele dos outros paranoicos e limita suas manifestações delirantes é sua fé no Outro.
Ele atribui todas as faltas a si mesmo, justificando o Outro. Se a mãe o abandonou “foi pelo desespero em que
ela estava” (p.9). A mulher dele, “acredita nela” como dirá Lacan e “não acredita nela” quando lhe diz que
quer largá-lo: ela não pode desfalecer. Aquele que indulta confirma o não desfalecimento do Outro.
Assim, podemos temer o pior para ele se sua mulher chega a largá-lo.
Dr. Lacan – Vamos lá, como você está hoje? Tudo bem?
Dr. Lacan – Eu dou a palavra para você, porque tem muitas coisas para contar. Quantos anos você tem
agora?
Dr. Lacan – Dou a palavra para você, tente falar a verdade. Sem esperança, nunca chegamos a
dizer a verdade, mas se você fizer um esforço, não lhe irá mal.
Sr. H – É, há faz alguns meses, faz um ano, três anos, veio na minha mente a sensação de ouvir-
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me pensando.
Sr. H – Parece que quando penso em algo, tenho a impressão de que todo mundo consegue me ouvir.
Quando penso em algo... em maldade por exemplo... os xingamentos que vem na minha mente... me dá a
impressão de que as pessoas os ouvem... quando me ouvem, dói. Vai fazer três anos no mês de março; antes,
não tinha esta doença.
Sr. H – Há momentos, assim mesmo, em que estou realmente desconcertado... por exemplo, quando
há amigos em casa.
Dr. Lacan – Em casa, em qual casa?
Sr. H – Na minha casa.
Sr. H – Em D, na periferia. Está muito bem, agora é habitável... Quando a comprei não era habitável,
era um barraco velho. E olha lá. Desde então moro com minha mulher, mas me parece que já não nos
entendemos muito bem.
Dr. Lacan – Ela disse isso para você? Não será algo que você entendeu? Ela falou isso?
Sr. H – É, ela me falou. E fica nisso, eu continuo morando na casa. Sempre estou chateado, e além...
Dr. Lacan – Com os convidados também está chateado? Está chateado com eles por esse sentimento
desagradável que você experimenta? O que você quer dizer com aquilo que você pensa? O que você pensa?
Sr. H – Idiota, safado, trouxa etc. não sei. Coisas assim, que vem na minha cabeça.
Sr. H – Isso.
Sr. H – Eu conheci minha mulher quando era enfermeira; eu estava doente, faz mais ou menos
8, 9 anos... quando estava doente aqui.
Sr. H – Há 9 anos que a conheço, 8 que estou casado; tenho um menino com ela, agora ele tem 7
anos. Com a minha mulher me dou mais ou menos bem.
Dr. Lacan – O que você quer dizer com mais ou menos bem?
Sr. H - Não, é porque a minha mulher me reclama que já não faço nada em casa, que passo o dia todo
dando voltas etc. estou confuso. Quando chegam os amigos em casa, sempre fica difícil para mim. Ou não falo
nada, ou enfio o meu nariz no prato... coloco a cabeça para baixo, como se fosse me acontecer uma desgraça;
isso deixa desconfortáveis aos meus convidados, a mim, a minha mulher.
Dr. Lacan – Sim… Por que você esteve aqui, dez anos atrás?
Sr. H – Estive aqui porque tive uma depressão. Eu tinha mania persecutória. Saí da prisão, não
faz tanto tempo... bom, já faz doze anos....
Sr. H – Estive 18 anos na prisão por um ataque à mão armada, com uns amigos.
Sr. H – Conheci uma mulher que trabalhava na rua; concordei em algumas coisas com essa puta.
Sr. H – Ela não queria que eu trabalhasse; eu fazia parte da Marinha; conheci ela nos últimos dias;
foi antes de terminar com ela; não durou muito... quis me fazer de forte... juntar com os meninos
malvados... até o dia que... até então... foi meu primeiro golpe.
Sr. H – A minha mãe estava doente; precisava de dinheiro e não queria trabalhar. E bom, comecei
assim, tontamente. Tropecei um dia com uns meninos do mal. Disseram-me: queremos te colocar nisto; é
bem fácil, temos só de pegar o dinheiro e irmos embora. Quando cheguei lá era totalmente diferente. A
vítima chegou quando estávamos na sua casa.
Sr. H – Era um velho doutor aposentado, acho que já fazia uns anos.
Sr. H – Então, amordaçamos ele, batemos nele para saber onde estava o dinheiro.
Sr. H – Bom, queimamos os pés dele para que nos falasse onde estava o dinheiro.
Dr. Lacan – Queimaram os pés dele com quê?
Dr. Lacan – Foi condenado a cadeia perpetua com trabalhos forçados; não em vão. Como...?
Sr. H – Naquela época foi para dar exemplo. A condena foi demasiado dura. Apelei à sentença.
Fui transferido ao Loiret, em Orleáns, onde fui condenado à morte. Fui indultado em seguida. Estive um
ano com correntes... acorrentado. Depois, me transferiam a um centro de reeducação e lá com a minha
boa conduta consegui que me indultaram sucessivamente, até conseguir a liberdade.
Sr. H – Os coacusados tinham muitos mais cargos do que eu. Tinham muitos crimes nas suas
costas. Um deles foi executado; eu consegui o indulto.
Sr. H – Não é o habitual, claro que não é o habitual. Não acontece todos os dias. Mas o Presidente
da República, naquele momento era o Sr. Auriol, que considerou que merecia um indulto, indultou-me
da pena de morte após um ano.
Dr. Lacan – Se você estava condenado, o que fez com que ele pensasse em te conceder o indulto? Como
você disse, queriam dar exemplo. Então...
Sr. H – Um dos coacusados foi guilhotinado e eu consegui me salvar, que me indultaram da pena
de morte.
Sr. H – Disso eu não sei. Teríamos que perguntar ao Presidente Auriol. Não me lembro. Fui
indultado só assim mesmo, muito bondoso, porque pensou que era a primeira vez que eu fazia algo assim
e talvez merecesse clemência.
Sr. H – Fiz, tive uma boa conduta. Estive acorrentado ao longo de um ano, tive boa conduta e
isso ajudou.
Sr. H – Éramos quatro com o informante. E todo mundo foi condenado à cadeia perpetua com
trabalhos forçados.
Dr. Lacan – É, vamos abreviar. Segundo o que me disseram – porque não deixei de coletar, não boatos,
mas sim coisas, que me permitiram saber da sua grande aventura – tem se realizado uma pesquisa. Não tem
nada a ver com que se descobrisse o assassinato?
Sr. H – Foi, quando ligaram para mim, quando me chamou o inspetor, me disse: você estava
sabendo disso. Então, eu falei para ele, disse que estava sabendo disso sim.
Sr. H – O dia que fomos embora, tomamos o trem para T. No caminho eu fiquei sabendo.
Disseram-me no caminho. Eu quis descer em Orleáns, para ir embora e depois não sei, continuei meu
caminho. Continuei meu caminho com eles.
Dr. Lacan – Continuou seu caminho porque tinha vontade de dar um golpe.
Sr. H – Forçado, não. Não me forçaram. Deslumbraram-me com que podia ter muito dinheiro e
isso me permitiria curar minha mãe, que estava muito doente.
Sr. H – Da minha mãe? Minha mãe me abandou quando eu era muito novo. Eu fui abandonado
por ela e foram os meus avós, os pais dela, que a forçaram a dizer onde que eu estava. Então, foram e me
buscaram no descampado onde ela tinha me abandonado. Foram meus avós os que me cuidaram. Aos 14
anos, quando tive idade para trabalhar, a minha mãe me pegou para trabalhar. Mas, depois, por causa do
ambiente familiar, entrei na Marinha.
Sr. H – Eu fui com a frota de Toulon, ao 13º arsenal de mercadorias; e fiquei lá e, em seguida, foi
o afundamento. Certeza que você sabe que naquela época a França estava dividida em duas partes, uma
parte ocupada pelos alemães e uma parte livre. Em um momento dado, os alemães invadiram toda
França. Então, afundaram a frota. Naquele momento, eu tinha sido enviado de volta a casa, e entrei na
Resistência quando a guerra terminou. Ao longo da libertação de Paris, a guerra ainda não tinha
terminado, voltei entrar na Marinha, em um aviso colonial2
Dr. Lacan – Eu achava que naquele momento tinha feito... que tinha sido destinado ao Ministério da
Marinha.
Sr. H – Foi algo do tipo. Fui à Marinha em Paris, ao ministério da Marinha. Naquela época,
conheci uma mulher de vida ruim, então, me enviaram ao Pacífico para combater em um aviso colonial.
Sr. H – Fui, porque os alemães nos desmobilizaram... aos solteiros, e eu estava na frente do leste,
sob regime de Pétain. Alguns davam um jeito para trabalhar, para entrar na Resistência, para que França
voltasse a ser livre.
Sr. H – Não fiz muita coisa, a guerra terminou e me chamaram de novo, em novembro, ou
setembro de 1944, para ir ao Pacífico, à guerra contra os japoneses. Tinha dois barcos lá, o meu, a
Grangière, um aviso colonial. E havia outro barco, que se chamava... Havia dois barcos, no Pacífico.
Combatemos assim desse jeito. Voltei, fomos por todas as ilhas, fizemos isso pela França, como
propaganda; voltei a Paris, pedi a desmobilização. Eu não quis continuar com o contrato. Naquele
momento, como o General De Gaulle, podíamos revocá-lo, e pedi que revocassem meu contrato e voltei
para casa, onde não fiquei muito tempo e dei um jeito.
Dr. Lacan – Naquele momento, o que é que você chama de sua casa?
Sr. H – A da minha mãe. Eu estava na casa da minha mãe, e tinha um padrasto, naquele momento.
Sr. H – Não, acho que ele continua vivo. Deve ser bem velho, agora, mas acho que ele continua vivo.
Dr. Lacan – Sim, me explique como era a relação com a sua mãe.
Sr. H – Com a minha mãe era um pouco difícil. Ela tinha me abandonado quando criança.
Sr. H – Acho que foi pelo desespero que sentia. Em casa dos meus avós, a educação foi muito
ruim e então...
Sr. H – Eu fiquei com eles até a idade da razão. O meu avô morreu antes. A minha avó me deixou
2N.dat.: Um “aviso colonial” é um barco de guerra utilizado nas colônias para realizar serviços de
exploração e comunicação.
sozinho; quando tive idade para trabalhar, aos 14 anos, ao terminar os estudos, comecei trabalhar como
aprendiz de açougueiro, não durou muito tempo. Em seguida, fiz abarracamentos para os alemães;
fazíamos muitos abarracamentos, que iam para o leste naquele momento. E com a minha mãe... sempre
preferiu meu irmão... o meu meio-irmão, ao invés de mim. A primeira vez que derramou uma lágrima
por mim, foi quando fui embora para a Marinha.
Dr. Lacan – O seu meio-irmão... Quem é, seu meio irmão? É um irmão que ela teve com o seu
padrasto?
Sr. H – Não, a minha mãe teve três filhos diferentes, com três homens diferentes. A minha irmã
que se chama H, como eu. H me reconheceu e deixou a minha mãe pouco depois do meu nascimento.
Então, meus avós se ocuparam de mim e me criaram. Sempre tive uma boa relação com o meu meio-
irmão e a minha meia-irmã, mas também não era um grande amor; não era um amor desbordante. Nos
víamos... eu fazia a minha vida por um lado, eles faziam a deles pelo outro.
Sr. H - … no começo do ano. Eu amava meu irmão e a minha meia-irmã, mas eles, acho que eles não
me amavam.
Sr. H –Meu pai, segundo o que dizem... não pela minha mãe, porque eu lhe perguntei uma vez... quem
era o meu pai... nunca me respondeu, mas eu teria preferido estar com a minha mãe do que com os meus avós,
meus avós eram tão bons comigo que eu os amava.
Sr. H – Moravam na mesma casa que a minha mãe, em V; cada um tinha o seu espaço. Eu estava
com meus avós, e o meu irmão e irmã estavam com a minha mãe.
Dr. Lacan – Escute, o que mais nos interessa no momento, é o mal-estar que lhe está incomodando.
Sr. H – Sim, o incomodo que me afetou há três anos. Não lembro por qual motivo começou. De o
que eu posso me lembrar? Pensava coisa ruim naquele momento. Alguém passou por meu lado e me fez
sentir que compreendia muito bem o que eu acabava de dizer.
Sr. H – De pensar.
Dr. Lacan – Já aconteceram coisas parecidas a essa, a sensação de que os do seu redor sabem o que
você pensa? Os do seu redor que não são quaisquer, mas os seus convidados... especialmente com os seus
convidados.
Sr. H – Com todo mundo, acho, um pouco com todo mundo. Eu tive que pensar, do nada... até a
minha mulher me disse que eu estava falando bobagem, que si pensamos... escutamos.
Dr. Lacan – De qual ideia brotam? De que você é o que você mesmo disse- um rapaz ruim? Não
acha que é inverossímil?
Sr. H – De fato, acham que é inverossímil. Acredito que pensaram que eu era um rapaz ruim.
Sr. H – Olhe, faço um pouco de tudo: esfrego o chão, limpo os azulejos... há muito cancerosos; retiro o
mijo, a merda etc. Sempre fiquei com nojo disso, mas como não há trabalho e tenho um passado muito difícil,
tenho de ficar contente com isto.
Sr. H – Tive, aprendi em M, quando estava na prisão, a datilografar a máquina, em uma máquina
enorme intertipo, linotipo; realizei este emprego ao longo de mais de seis anos, eu acho. E depois, já estava
cansado, quando sai da prisão.
Sr. H – Pois, porque achei que já não era capaz de realizar o meu trabalho.
Dr. Lacan – Achou… Você teve alguma prova disso? Fez algo errado?
Sr. H – É, aprendi na prisão. No geral, os que trabalham na imprensa de M, são os mais valorados.
Aprendem várias profissões como construção civil, contabilidade e coisas do tipo. Mas, não fiquei muito tempo
na gráfica. Bom, sim, fiquei bastante, 5 ou seis anos e, depois, fiz de contável geral.
Sr. H – Fui contável geral porque pensei que podia colocar ordem nas contas.
Sr. H – Estava tudo muito manipulado; a contabilidade sempre foi manipulada. Havia pessoas
que morriam de fome enquanto os outros comiam até ficar estufados. Eu quis me opor a isso. Eu estava
sozinho, não era o bastante forte; havia uma máfia entre nós que impedia colocar ordem nas contas. Não
era possível, eu briguei uma vez por isso.
Sr. H – Talvez estivesse demais... empenhado nos meus princípios. Primeiro tentaram me trocar.
A prisão é um meio fechado no qual as pessoas vivem amontoadas e onde, no final das contas, tudo se
sabe. Então, naquele momento teria adorado poder colocar ordem na contabilidade porque tinha tido
muitos colegas que tinham sido explorados e morriam de fome. Isso não deu certo, então me transferiram
e me colocaram na construção civil; também não dei certo ali. Logo, fizeram com que eu trocasse de fase,
porque há muitas fases: o centro de orientação, onde você está sozinho, onde você aprende fazer um
monte de coisas; fizemos lanternas... eu fazia cursos por correspondência naquele momento. Logo,
quando você sai de lá, está a fase 2 onde o trabalho se desenvolve em uma oficina ou de forma mais livre,
como a contabilidade ou outras coisas. Depois está a fase 3, uma fase de confiança, onde estamos um
tempo antes de sair livres.
Dr. Lacan – Foi na fase 3 quando você estava responsável pela contabilidade?
Sr. H – Foi na fase 3 quando fiquei responsável de fazer as contas. Depois, está a fase 4, de
liberdade meia na qual as pessoas trabalham no exterior e voltam dormir na prisão à noite. Aí é que entrei
na fase 4, mas não pude continuar. Tive uma depressão, embora a assistência social...
Sr. H – Isso, bastante. Quando estava fora, eu tinha medo de que soubessem. Tinha a impressão
de que estava escrito na minha cara, que saia da prisão. Sempre tive a impressão... Foi o doutor H quem
se ocupou de mim, quem me levou na sua unidade na S. Ele fez com que eu saísse da prisão. E agora,
durante 5 anos...
Dr. Lacan – Tinha alguma relação, a sua depressão, com a sensação de estar, como você disse,
perseguido?
Sr. H – O doutor H fez com que eu voltasse muitas vezes aqui, 7 ou 8, a Herne Rousselle.
Dr. Lacan – Não entendo. Você não conheceu a sua mulher em Pinel?
Sr. H – Sim.
Dr. Lacan – Ela continua lá?
Sr. H – Não, agora ela trabalha em E V. Não, conheci-a aqui, mas ela fazia outras coisas antes de
ir embora; trabalhava em outros pavilhões. Depois entrou em EV, indicada por uma tal senhora G, não
sei se conhece a Senhora G.
Sr. H – A chefe das enfermeiras, acho. A minha mulher foi recebida aqui como segunda do pessoal
de enfermagem. Então foi embora para EV, para fazer carreira lá.
Sr. H – Muito amigável; os dois nos amávamos. Conseguimos dar um jeito juntos. Faz quatro ou cinco
anos, comprei uma casa e a reabilitei e, bom, agora é aceitável. Eu curto muito de estar na minha casa.
Dr. Lacan – Como foi com ela?
Dr. Lacan – Do ponto de vista, por exemplo, da sua sensibilidade com a conduta dela.
Sr. H – Minha mulher sempre me amou. E eu sempre a amei. Só que, faz dois anos... Tive uma
depressão; é o que estava lhe contando há um momento, e me enviaram a uma casa de repouso, fizeram com
que eu acreditasse que era um corno, porra... não era verdade, mas eu acreditei naquele momento.
Sr. H – E passamos momentos muito difíceis juntos. Agora, está indo melhor, mas sempre me
reclama que eu sou colérico.
Sr. H – Que eu fico dando voltas em círculos quando estou em casa, que já não leio, que não tenho
nenhuma distração, que já não escrevo...
Sr. H – Eu escrevia coisas, como todo mundo. Escrevia com gente, escrevo para mim; eu queria
contar a minha vida, mas como tem sido tão espantosa, melhor nem nisso.
Dr. Lacan – Naquele momento, qual forma tomava o sentimento de ser corno? Ficou com
ciúmes?
Sr. H – Minha mulher é minha mulher. Naquela época, quando pensava nisso, eu tivesse querido não
pensar que a minha mulher tinha me feito de corno. Era algo que estava na minha imaginação. A minha mulher
nunca me traiu. Ela tem o trabalho dela, ama o seu trabalho, não seria ela a que... Oh, no!
Dr. Lacan – Mas, vamos ver, os convidados que você xingava mentalmente, depois de tudo; xingava
eles pensando nisso, que tinham feito você de corno?
Sr. H – Oh não, isso não, não! Não, mas é algo maquinal em mim; quando me encontro com alguém,
me sinto obrigado a...
Dr. Lacan – Há um momento, segundo eu entendi, é verdade que você denunciou – assim que se fala-
seu cumplice dizendo que estava sabendo...
Sr. H – Denunciei ele ridiculamente, porque naquele momento, era o inspetor B quem se ocupava do
caso, o Petit, talvez e me disse: “amigo, você tem para três anos, mas os outros estão fudidos. Temos todas as
provas de que cometeram um assassinato. Você também está sabendo disso, vai a falar para mim”. Não sei o
que aconteceu, mas efetivamente eu falei o que eu tinha ouvido no trem, que houve um assassinato. Isso é
tudo.
Sr. H – Sinto que esse tipo não valia grande coisa, ainda menos que eu. Mas agora eu me cobro
por isso. Talvez tivesse podido ficar calado.
Sr. H – Ele me embaucou, com o dinheiro, com outra vida, que poderia fazer muitas coisas e isso
foi o que me levou a T, ali que dei o golpe.
Sr. H – Bom, foram eles. Eles me deslumbraram com que podia ganhar dinheiro facilmente.
Sr. H – É, ele me deslumbrou com 2, 3 anos de prisão. Como eu era novato, podia sair facilmente.
Sr. H – E bom, foi assim que aconteceu. Faz doze anos disso, o Doutor H fez com que me
liberassem pela boa conduta que eu tinha mostrado na prisão e, depois, porque fiquei doente.
Sr. H –O que é para você a boa conduta? Para você, não para o doutor H?
Sr. H – Eu não atrapalhava ninguém. Ficava no meu canto.
Dr. Lacan – Ficou no seu canto, salvo quando foi da contabilidade e não pôde ficar no seu canto,
já que...
Sr. H – Não consegui aguentar mais na contabilidade. Não foi um logro naquela época... ele me
disse: vão te fazer trabalhar ao ar livre, respirará algo melhor; e me enfiaram no prédio.
Dr. Lacan – Sim. O que você pensa disto tudo? Eu falo do sistema.
Sr. H – Do sistema carcerário? O sistema pode estar bem se é feito com certa personalidade, se é
dirigido por um diretor como uma personalidade boa. Nesta prisão, do nada, sem saber o porquê, pegaram
pessoas reincidentes que queriam brincar de ser figurões (peixes grandes, chorudos). Havia uma maquinação
por trás, aconteciam muitas coisas. Sempre há conchavos, mas lá, eu achava que...
Sr. H – A minha ideia, era essa, era fazer respeitar certas coisas, para que todo o pessoal do
hospital comesse até ficar satisfeito.
Sr. H – É.
Sr. H – Oh! …, mas no final das contas... às vezes... temos a impressão de estar atados, faz falta um
descanso. Temos descansos, mas bom, não é igual a uma prisão, é outra coisa.
Dr. Lacan – Porque é você quem mencionou o hospital. Você teve o que chamamos de um
pequeno lapsus. É você quem acabou de falar.
Sr. H – Sim, no hospital, que agora eu conheço bem. Eu tenho ido lá. Fico muito entediado. Não
gosto de estar hospitalizado. O doutor H me disse: vamos pegar ao touro pelos chifres e vamos te
hospitalizar: então, poderemos te equilibrar na base de remédios e encontraremos a solução mais
facilmente.
Sr. H – Estou.
Dr. Lacan – Não lhe impede seguir pensando que estão escutando os seus pensamentos? Eu escuto os
seus pensamentos? Tem me tratado de qualquer jeito?
Sr. H – Sim.
Dr. Lacan – Saiba que eu não sei, é por isso que estou te perguntando.
Sr. H – Não trato eles mentalmente, não, mas é tão entediante, não é agradável, pois...
Sr. H – Não sei. Talvez teríamos de perguntar para eles. Bom, me custa muito; eu me esforço; me
custa sair disso. Quando estou me dando conta de que estou pensando coisas ruins, penso rapidamente
em outra coisa.
Dr. Lacan – Igualmente teria de se dar conta de que se você pensa que os outros pensam que você
pensa coisas ruins, é simplesmente pelo fato de que você pensa em coisas ruins.
Sr. H – É. Fico em pânico com estes interrogatórios, porque ontem fizeram um interrogatório que
durou 3 horas.
Sr. H – Do comissário de polícia. Ontem não, faz quinze dias, para tentar que pulasse à p.p, a
proibição de permanência, pois continuo tendo proibido permanecer, verdade? em S e em L; onde me
julgaram e onde trabalhei. Cada vez, tenho que dizer: estou em tal lugar. Isto é insuportável, porque
quando estou de férias, eu gostaria que fosse férias, não momentos nos quais tenho eles grudados nas
minhas costas; de vez em quando, de vez em quando penso que é assim, os policiais sempre estão ao meu
redor, me apitam nas orelhas, fazem com que as minhas orelhas apitem.
Sr. H – Não, mas é a sua forma de me fazer entender que estão aí, que não estão longe.
Sr. H – Apitam, já ouvi uma vez ou duas, mas não era completamente ruim.
Dr. Lacan – Em tudo caso, eles sabem que você está aqui?
Sr. H – Sabem, disso eu tenho certeza. Como de que voltarei de onde eu vim, para trabalhar. Não
há trabalho, não tenho título nenhum, então.... vou ter de voltar lá, ao hospital, para poder ganhar a vida.
Dr. Lacan – No hospital você estava... falando diretamente... estava sendo vigiado?
Sr. H – Talvez em um momento dado eu achei que sim, quando comecei trabalhar. Eu pensava que
estavam me perseguindo, mas agora não mais. Eu acho que não. Salvo uma vez, que quiseram me seguir, mas
eu consegui perdê-los, abordei rapidamente o metrô que passava do meu lado, e o tipo que me seguia no carro
continuou.
Sr. H – Há 7 anos, 6 anos... Queriam saber o que eu fazia. Tinha uma cara suspeita.
Dr. Lacan– Realmente não tem por quê! A que se deve isso que você disse?
Dr. Lacan – Que é isso que você não sabe? Parece com ele, por exemplo, ou com qualquer
um. Que seja suspeito não irradia da sua cara.
Dr. Lacan – O que você quer dizer com suspeito? Pensa que se deve notar a simples vista que tem tido
uma vida infernal?
Sr. H – Os rapazes do hospital com os que eu trabalho são novatos, mas não tão tontos. Tinham
me deixado ouvir mais de uma vez na mesa que eles achavam que eu acabava de sair da prisão.
Sr. H – Isso.
Dr. Lacan – Você tem certeza disso, de ter ouvido, de ter ouvido o que falavam entre eles?
Sr. H – Me parece que sim. Agora não tenho certeza, mas me parece que sim.
Dr. Lacan – Tem certeza ou não tem?
Sr. H – Eu chamo de sarcasmos. É um termo que talvez não utilizem aqui, mas se utiliza na
prisão. Mofas, significa tirar sarro, coisas assim.
Sr. H – Sarcasmo.
Sr. H – Agora, não sei. Vou tentar me curar desta doença e depois retomar o meu trabalho.
Sr. H – É a de pensar em coisa ruim, agir errado, de cara aos outros, a outras pessoas.
Dr. Lacan – Inclusive se pensar coisas injuriosas, você as guarda para você mesmo.
Sr. H – Tenho.
Dr. Lacan – Completa certeza. Assim, duro como o aço, tem certeza mesmo?
Sr. H – Tem vezes que não, mas tem outras vezes que sim. Às vezes, penso de repente e me digo
“olha, o hospital era a minha praça”. Um dia, uma enfermeira que gosta muito de mim, que se preocupa
por mim, diz para mim: “que cara merda!”, e pensei que dizia isso por mim, não estava sozinha no
escritório.
Dr. Lacan – Porém, segundo você, ela pensa que você é um merda.
Sr. H – Ela me mandou uma postal... foi praticar esportes de inverno, ganhei uma postal com os
seus melhores desejos.
Dr. Lacan – Uma postal com seus melhores desejos para um rapaz merda?
Sr. H – (dá risada) é! Oh, sabe, sei muito bem onde eu estou, sei que não sou um rapaz exemplar,
sou uma espécie de sacana.
Dr. Lacan –Você pensa que você é um merda? ...O quê?... Um merda?
Sr. H – Isso.
Dr. Lacan – Se você mesmo pensa isso, aceite que isso lhe ajuda acreditar que os outros também
pensam assim.
Sr. H – Um dia, me disseram: você não se ama; quando você se ame mais, tudo mudará. Quando olho
para mim, não me gosto nada de nada.
Dr. Lacan – Sim... O que vai acontecer agora? Pelo visto, sua mulher vai largá-lo como se fosse
uma luva; segundo o que parece, pelo que você mesmo disse, foi bem isso o que ela te falou; já não te
valora.
Sr. H – É.
Dr. Lacan – Não, mais escuta, é você quem acaba de falar isso.
Sr. H – Não acho que vamos deixar assim, de todos os modos, porque temos muitas memórias
em comum; ela começou do zero, eu também. Eu acho que...
Sr. H – Eu te falei há um momento. Partimos do zero. Temos um menino ao qual adoramos. O menino
manda bem na escola, estamos contentes, o menino é tudo para nós. Ele ama sua mãe ainda mais do que eu;
ela ama o menino e eu o adoro. Então, já temos isso. É algo muito grande. A minha mulher vai para um
kibboutz em Israel com o menino.
Dr. Lacan – Me fale um pouco dela, para ver como é... Mística? Não é judia?
Dr. Lacan – É judia…. Me fala um pouquinho dela... a o que você chama de ser mística.
Sr. H – Ela vai de uma religião a outra. Quer me arrastar a todas as partes. Eu não acredito em
nada. Agora, temos que passar uns dias em Arche, não sei se você conhece. Ela diz que vai ser bom para
mim. Nós iremos juntos oito dias para Arche.
Sr. H – Não sei grande coisa. Eu sei que é uma comunidade que se criou onde as pessoas
trabalham por seus próprios meios, vivem pelos seus próprios meios. É uma comunidade que parece
muito séria e estimulante. Nesse sentido, tivemos uma experiência ruim, estivemos em L, perto de L, em
uma cidadezinha onde passamos as férias. Lá tínhamos que trabalhar, aprender algo, escultura em pedra
ou em madeira. Pena que não houvesse cerâmica, porque a minha mulher tinha trabalhado a cerâmica e
depois tecelagem antiga. Minha mulher conseguiu fazer para ela uma espécie de casula. Foi elogiada. Ela
estava muito bem. Ela gostou, mas eu, eu ficava entediado; sou bastante selvagem; eu ia pescar ou por aí
a procurar cogumelos.
Sr. H –O B.
Sr. H – Os jovens que o tinham fundado e que tinham ficado no interior, que empreenderam essa
iniciativa.
Sr. H – O B, simplesmente, onde fazem escultura em pedra, também em madeira, e depois fazem
tecidos.
Sr. H – É isso.
Sr. H – Não sei, nunca soube, nunca corri atrás disso. Pensei que era pela liberdade condicional. São
presos, que estão em liberdade como eu e dos que certas pessoas se ocupam, os educadores.
Dr. Lacan – Os policiais dos que estamos falando, são pessoas às que você se encontra na rua?
Sr. H – É isso.
Sr. H – Estava muito bem com um educador. Ele me ensinou música, coisas de arte, isso tudo. Era
um educador com quem eu simpatizava muito.
Sr. H –Ele era um policial, se você quer dizer assim. Estava do outro lado da barreira, isso com
certeza.
Sr. H – Na prisão, está a parte dos supervisores, a parte dos policiais. Eu acho que estava bem
mais com os supervisores. Ele gostava muito de mim, ensinou-me coisas extraordinárias. Uma assistente
social me disse: é, você deveria escrever. Com este educador tão gentil, criamos uma certa amizade. Eu
escrevi para ele, não me respondeu. A carta foi interceptada pelos policiais, não sei.
Dr. Lacan – Por que as interceptam? Por que algumas e não todas?
Sr. H – Talvez esteja exagerando ao dizer que as interceptam todas e não algumas. A carta que
escrevi para o Sr. X, o educador... acredito que ele teria me respondido, por que éramos bons amigos. Mas
nunca me respondeu e compreendi que tinham interceptado a minha carta, ou que não a tinha recebido,
uma coisa ou a outra.
Dr. Lacan – Não é o primeiro que vem na sua cabeça, que simplesmente já tinha feito demasiado
por você?
Sr. H – É, não sei, não posso lhe dizer, não sei.
Dr. Lacan – O primeiro que veio na sua cabeça foi que a carta tinha sido interceptada.
Sr. H – Isso, é assim, o primeiro. Depois refleti, pensei que talvez estivesse cansado de mim.
Dr. Lacan –Mas você pensou isso só depois, não é? E não lhe pareceu o mais verossímil? De fato,
voltou à ideia de que a carta tinha sido interceptada. Você voltou a...
Dr. Lacan – Veio isso na sua cabeça? Que a carta não havia sido interceptada?
Sr. H – Talvez. Ou senão, pode ser que... Como agora ele está em Nice, é provável que tenha
recebido a carta, e depois pensou em outra coisa, como você acabou de dizer, pode ser que tenha algo
melhor a fazer, como agora eu estou livre e tenho a minha casa, não estou debaixo de uma ponte. Então,
talvez ele tenha se dito: agora que ele está a salvo, vou deixá-lo em paz, pois...
Dr. Lacan – No entanto, se voltasse ao assunto, você enviaria uma segunda carta para ele.
Provavelmente ele lembre de você, soará de algo.
Dr. Lacan – Quando te conhecem, não se esquecem de você, isso está implícito no que você diz.
Sr. H – Talvez. Também me dedicou uma campanha de imprensa (publicitária) em meu nome. Me
perguntaram... um jornalista me perguntou se podia escrever sobre mim em Canard Enchaîné, para me
ajudar...
Sr. H – Foi enviado… um dia nos ligou pelo telefone. Eu não estava, foi minha mulher quem
atendeu o telefono e me falou dele. Eu liguei para ele ontem.
Sr. H – Para lhe dizer que tinham me dado a liberdade, já que sempre tive boa conduta, e que não me
dão a opção de pular a p.p., a proibição de permanência.
Dr. Lacan – Então, o que você pensa, já que foi você quem lhe disse isso? O que você acha que ele
vai fazer? O que você espera, ao lhe dizer isso? Que te publique em Canard?
Sr. H –Foi a ideia da minha mulher, sobretudo. Ele acha ridículo que não tenha me reabilitado
depois de doze anos de liberdade e como temos um menino, então...
Sr. H –Minha mulher é a que dirige um pouco a casa. Para começar, tem um salário muito mais
alto do que o meu. Ela tem relações que eu não tenho. Então...
Sr. H – Ela não movimenta os fios, mas como aconteceu assim mesmo, aproveitamos.
Sr. H –Acho que Canard. Acredito que foi o jornalista quem conseguiu o meu endereço através de
uma assistente social, ou algo assim, para se ocupar de mim. A assistente social que fez com que eu saísse,
sempre continua se ocupando de mim; é uma mulher muito corajosa, que faz muito por mim. Por
desgraça, está em pugna com os de cima. O procurador de E é muito severo.
Sr. H – O procurador que se ocupa de... sabe que há um procurador em cada departamento... o
procurador de E seria mais tipo eu, aquele do departamento de E.
Sr. H – Agora, sim. Ele tirou o meu crachá de proibição de permanência. Não se tira o crachá de
permanência de alguém que tem proibição de permanência, seja quem for, é um crachá muito...
Sr. H – Que sempre é preciso levar por cima. Se você é parado na rua, tem que mostrar
obrigatoriamente o crachá de proibição de permanência.
Sr. H – Foi.
Sr. H – Isso, tiraram ele de mim, levaram-no embora, tiraram de mim. Ontem...
Dr. Lacan – Tiraram ele de você ontem. De qual identificação agora você dispõe?
Dr. Lacan – Em resumo, tudo vai dar certo quando você for...
Sr. H –É ela a que se ocupa de mim, não me farão nada. Eu me deixarei levar.
Sr. H – Queria ter uma casa própria e educar ao meu filho lá. Comprei uma casa com um terreno
enorme. Essa casa eu a reabilitei. Agora, estou bem na minha casa. Já não tenho vontade...
Sr. H – Não é que não tenha vontade de estar na casa. Quando estou em casa, estou muito bem.
Mas, virei uma pessoa instável e tivesse preferido ir ao Sul, onde é mais quente, onde tudo é mais gentil.
É difícil de entender, mas é assim.
Dr. Lacan – Eu o compreendo. O que você acaba de dizer parecia uma verdadeira declaração de
que por fim tinha alguém, algo... e agora, diz que já não tem mais vontade de nada. Tem vontade de estar
com a sua mulher?
Dr. Lacan – Enfim, você já não tem vontade de beijá-la? Chamo as coisas pelo nome.
Dr. Lacan – Compreende…. Melhor dizê-lo claramente. Tem de pôr os pingos nos is.
Sr. H - Tenho 52 anos, eu já não sou jovem, além disso, não sei; encima com suas diretrizes me faz
pensar mais em uma mãe do que em uma mulher.
Sr. H – Porque nunca tive. A minha mulher também é um pouco a minha mãe. Ela é muito gentil, apesar
do seu caráter impossível, mas no final das contas, é muito gentil.
Dr. Lacan – Com isso quero dizer, como você disse, que ela é a que traz convidados em casa. Por
que não vai com ela a Israel?
Sr. H – Para começar, eu não quero ser judeu, e depois, se algum dia eu tenho que virar, eu farei
isso pela minha mulher, não porque deixei...
Sr. H – Ela não me falou disso; vai levar ao menino, mas não a mim. E depois, não tenho tempo,
porque tenho que voltar a meu trabalho; para as férias que são longas, vamos ver.
Dr. Lacan – As férias longas, aonde irá?
Sr. H – Irei com minha família, sua família, melhor, por Narbonne; a família dela, eu já não tenho
família.
Dr. Lacan – Então, a sua ideia de ir ao Sul toma a forma da família da sua mulher?
Sr. H – Sim, tem me aclarado um pouco as ideias. Aportou um pouco de claridade em todas as ideias
que vêm na minha mente, com as que eu viro mal-educado. Libertou-me um pouco.
Dr. Lacan – Bom, beleza... a senhora me falou de você... Quando tempo vai passar na sua casa?
Sr. H – Eu vou embora esta noite, volto na segunda-feira de manhã. Três dias, dois dias, dois dias e
meio.
(o paciente sai)
Dr. Lacan – Sim, é inquebrantável. Acha... acha... duro como o aço. Acredita na sua mulher.
Evidentemente... Não só acredita na sua mulher, senão que diz que é a mãe dele. Devido a mãe que teve,
é algo sublime. Então, se ele se vai esta noite, vai seguir o seu caminho.
Dr. Lacan – Ia de mal a pior? Isso, como podemos sabê-lo? Já me dará notícias da sua evolução. (À
Dra. Sch.) Olhe o que eu disse quando você não estava aqui. Coloquei em destaque a forma da palavra
inquebrantável. Ele me disse que vai de mal a pior. Não sei se o fato de ter mantido uma conversa.... me deu a
impressão de que está realmente aferrado à vida... a sua mulher. É incrível.
Dra. Sch. – Não acha que ele possa virar um perigo para a mulher dele? É uma pergunta que eu lhe
faço.
Dr. Lacan – Se a mulher dele ultrapassa certos limites, evidentemente poderemos lamentá-lo ....
Não acredito em absoluto que, apesar de haver lhe queimado os pés a alguém, possa fazer isso com a sua
mulher. Você acredita que sim?
Dr. Lacan – Eu acho que ele espera muito da sua mulher, evidentemente; isto pode trazer
consequências. Se ela ultrapassa certos limites, terá consequências catastróficas para ele. Isso é o que eu
acho.
Dr. Lacan – Não, para ele. Eu não tenho esquecido das tentativas de suicídio. Evidentemente,
para ele.