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aa BRL ic) | CAMINHOS E PERSPECTIVAS Carmen Maria Bueno Neme (org.) Mie tis EE INTRODUGAO Carmen Maria Bueno Neme Este livro € 0 resultado de um projeto, iniciado ha dezesseis anos, que oferece reflexGes e buscas que, dadas a amplitude da psico- -oncologia e a diversidade de contribuigées, possibilidades e po- tencialidades que abarca, desafiam profissionais, educadores e pesquisadores da area. Embora relativamente recente, a psico-oncologia e seus temas diversificados tém despertado cada vez mais interesse entre profis- sionais de satide e pesquisadores, bem como ensejado publicagdes que relatam experiéncias praticas, reflexdes teéricas e resultados de estudos que demonstram a necessidade de solidificar 0 conheci- mento j4 acumulado e de avangar na direcao de novas perspectivas. A psico-oncologia surgiu da necessidade de oferecer ao pa- ciente com cancer um modelo de atencao integral — biopsicossocial ~capaz de melhorar sua qualidade de vida, aumentar sua sobrevi- da e as possibilidades de reversio da doenga, fortalecer seus recursos e modos de enfrentamento da doenga e dos tratamentos, além de criar, desenvolver e promover servigos e programas de aten¢ao pri- miria, secundaria e terciéria no campo da oncologia que atendam também as necessidades dos familiares e dos profissionais de satide envolvidos. O reconhecimento de que o modelo biomédico tornou-se in- suficiente para abarcar as necessidades psicossociais dos doentes crénicos, os resultados de pesquisas no campo da psicoimunolo- gia, as contribuicées da psicossomitica e os significativos avangos Digitalizado com CamScanner (Carmen Maria Bueno Neme observados em teorias e praticas psicoldgicas e psicoterdpicas em instituigdes e contextos diferentes dos tradicionais nos situa, hoje, em novo patamar. Porém, como sabemos, a cada ponto de chegada, novos caminhos se abrem & nossa frente. Profissionais e pesquisadores que vém construindo a psico- -oncologia no Brasil e no mundo tém demonstrado as necessidades diferenciadas dos pacientes com cAncer em fases diversas do ciclo vital, as necessidades dos familiares e dos principais cuidadores dos doentes e as dificuldades enfrentadas pelos profissionais de satide que tratam o paciente oncoldgico, apontando diferentes aspec- tos que permeiam a trajetéria de todos esses participantes — desde © diagnéstico até o controle da doenga ou sua terminalidade. No campo da psicologia e das intervengdes psicolégicas com pacientes hospitalizados, é preciso aprimorar, descrever e divulgar alternati- vas e modalidades interventivas que se mostrem eficazes e respon- dam as necessidades dinamicas das instituigdes e dos pacientes, cujas condi¢ées geralmente imprimem um cardter de urgéncia ao que vivenciam no enfrentamento da doenga e dos tratamentos. Além dos multiplos fatores ligados a assisténcia psicoldgica e multiprofissional ao paciente oncoldgico e a seus familiares e cui- dadores, ampla gama de questdes ainda se coloca aos profissionais € aos pesquisadores quanto ao esclarecimento das complexas va- ridveis envolvidas na génese das diferentes neoplasias malignas; descoberta de novas possibilidades de intervengao médica para o tratamento dos canceres; ao desenvolvimento e fortalecimento de politicas de satide em oncologia que, de fato, correspondam a neces- sidade do diagndstico precoce e sejam dgeis e resolutivas na oferta de tratamentos de qualidade a todas as camadas da populacao. Embora o estigma associado ao cancer e a solidao a qual o doente era socialmente relegado tenham diminuido, nao se che- gou ainda ao final ou a um termo satisfatério na histéria do cancer. Cabe aos profissionais e aos estudiosos penetrar com maior pro- fundidade nas muitas questées silenciosas que persistem no longo caminho frequentemente percorrido pelos doentes que lutam pela 14 Digitalizado com CamScanner Psico-oncologia - Caminhos e perspectivas vida ou por uma sobrevida com qualidade. Parte dessa incumbén- cia deve ser assumida pelos psico-oncologistas, instrumentalizados por resultados de pesquisas, teorias, técnicas e reflexdes bioéticas, bem como por suas vivéncias com os pacientes e familiares. Cabe as universidades e aos professores a responsabilidade de aprimorar a formagao dos futuros profissionais de satide, capacitando-os, nas diferentes Areas e especialidades, a diagnosticar e tratar as variadas necessidades biopsicossociais de representativa parcela da popula- ao: atuais e futuros doentes de cancer. Este livro oferece estudos e relatos de experiéncias desenvolvi- das em hospitais, apontando uma diversidade de métodos, técnicas eaportes tedricos que refletem diferentes praticas e estilos dos auto- res — aqui respeitados e valorizados — e demonstram o crescimento e a riqueza da psico-oncologia. O jogo de contrastes, superposigdes e semelhangas nessa area diversificada permite constatar as contri- buigGes e os limites especificos de teorias, técnicas e métodos de pesquisa que confirmam a complexidade e a abrangéncia da psico- -oncologia como rea de interface necessariamente interdisciplinar. Apresenta, portanto, estudos, praticas e contribuigdes tedricas, re- presentativos do que alguns pesquisadores e profissionais tem de- senvolvido, buscando enfrentar desafios e corresponder aos amplos objetivos que norteiam a psico-oncologia no Brasil. 15 Digitalizado com CamScanner PARTE! SERVICOS E PRATICAS HOSPITALARES: ATUAGAO DO PSICOLOGO [..] Para ser grande, sé inteiro; nada teu exagera ou excluis sé todo em cada coisa; poe quanto és no minimo que fazes; assim em cada lago, a lua toda brilha porque alta vive ...] Fernando Pessoa (Ricardo Reis) Digitalizado com CamScanner 1, PSICO-ONCOLOGIA: CAMINHOS, RESULTADOS E DESAFIOS DA PRATICA Carmen Maria Bueno Neme A psico-oncologia representa hoje ampla area de estudos e de atuagio profissional. Entre seus objetivos estao a prevencao do can- cer, 0 tratamento ¢ a assisténcia integral ao paciente oncolégico ea seus familiares, a formagao de profissionais de satide ¢ a realizagao de pesquisas que possibilitem a sistematizagao dos conhecimentos produzidos e conduzam a novos conhecimentos. Nos Estados Unidos, Holland (1990) propés a psico-oncologia como uma subespecialidade da oncologia, definindo seus princi- pais objetivos e relacionando-os com a elucidagao das variveis psi- colégicas envolvidas no impacto do cancer na vida emocional do paciente, de seus familiares e dos profissionais de satide e com 0 estudo dos aspectos psicol6gicos e de comportamento implicados na incidéncia e na reabilitagao do cancer. ‘Ao definir a area no Brasil, Gimenes (1994) propoe conside- rar a psico-oncologia uma subespecialidade da psicologia da satide, ampliando as possibilidades de intervengao da psicologia clinica utilizando os conhecimentos da psicologia em um enfoque psi- cossocial que, além da assisténcia aos doentes, aos seus familiares e aos profissionais de satide, se ocupe da pesquisa e da organizacao de servicos oncolégicos interdisciplinares. Segundo Gimenes (1996),0 necessario investimento dos profis- sionais de satide na criagdo de espacos sociais e politicos de atenao 9 Digitalizado com CamScanner Carmen Maria Bueno Neme a satide em oncologia visa ampliar os beneficios 4 populagao por meio de divulgagao e utilizagao dos conhecimentos cientificos e das experiéncias praticas, Desenvolyendo-se com base na necessidade de interligar co- nhecimentos, estudos ¢ interesses da oncologia e da psicologia, a psico-oncologia reconhece que 0 aparecimento e a evolu¢do de doengas como o cancer necessitam de um nivel de compreensao e ago que transcendam 0 modelo biomédico-mecanicista tradicio- nal, buscando esclarecer os fatores biolégicos e sociais implicados na génese ¢ nos tratamentos do cancer, bem como elucidando os aspectos psicoldgicos envolvidos na doenga, em sua remissao ou re- cidiva ¢ em seu impacto nas familias e nos profissionais de satide, Dada sua amplitude de agao e de objetivos na pesquisa e na pritica profissional, a psico-oncologia vem demonstrando sua fe- cundidade ¢ forga, desenvolvendo-se progressivamente no mundo e em nosso meio. Hoje é reconhecida na rea da satide e esta presente cm diferentes tipos de instituigées e servicos. Considerando as dimensées e as discrepancias socioeconémi- cas e culturais entre as diferentes regides de nosso pais, a divulgacao de experiéncias em psico-oncologia, bem como das condigées que caracterizam as demandas ¢ os servigos de satide em oncologia nes- sas regides, pode beneficiar pesquisadores, profissionais, estudan- tes, pacientes ¢ familiares, além de legitimar conquistas, abrir novas perspectivas ¢ estimular avangos, UM POUCO DE NOSSA HISTORIA Ap6s dezesseis anos de trabalho na area da psico-oncologia, em atividades de ensino e supervisio clinica; atendimentos psico- teripicos ¢ de orientagao de pacientes e familiares; pesquisa; co- ordenagao de cursos ¢ projetos de extensio, em um momento de reformulagdes no servigo criado ¢ desenvolvido a0 longo desse Periodo, considerei pertinente, na organizacao deste livro, o relato dessa experiéncia, procurando refletir sobre 0 caminho percorrido 20 Digitalizado com CamScanner Psico-oncologia ~ Caminhos e perspectivas e também sobre novas perspectivas ¢ desenvolvimentos necessdrios para o atendimento integral e humanizado do paciente com cancer, Minhas atividades em psico-oncologia comecaram em 199] quando, a convite de um médico oncologista, aceitei 0 desafio de criar um programa de atendimento de pacientes em um Servico de Orientagao e Prevengao do Cancer (SOPC), ambulatério vin- culado a Secretaria da Satide da cidade de Bauru (SP) no qual a maioria dos pacientes era do sexo feminino. LA se realizavam, além de exames preventivos de canceres de mama, titero e ovarios, o acompanhamento médico-medicamentoso da doenga oncoldgica ja diagnosticada. Outros tipos de canceres em homens e mulheres também eram diagnosticados e acompanhados nesse servigo. Uma parte desses pacientes realizava a quimioterapia em um hospital geral da cidade (Hospital Manoel de Abreu, administrado pela As- sociagao Hospitalar de Bauru); os demais buscavam tratamentos quimioterapicos e/ou radioterdpicos em outras localidades préxi- mas de Bauru. Os aspectos psicol6gicos eram vistos pelos profissionais desse servico de oncologia como de grande relevancia para o tratamento ea prevengao do cancer em todos os sentidos, 0 que foi bastan- te motivador para nossa tarefa, Entre os aspectos apontados como importantes para a atuacao psicolégica com pacientes oncolégicos pela equipe de satide, composta por médicos, enfermeiros e assis~ tente social, destacavam-se: abandono dos tratamentos médicos e da quimioterapia; necessidade de reabilitacdo integral em caso de cirurgias, amputa¢6es ¢ outros tratamentos invasivos ou mutilado- res; necessidade de abordar a terminalidade ea morte com pacientes e familiares; aspectos relacionados com a situagao de estresse vivida por pacientes e familiares, 0 que dificulta tratamentos e recupera- Goes. As necessidades da equipe de satide, surgidas na rotina do tra- balho com pacientes oncolégicos, também foram apontadas como focos relevantes para a atuacao do psicélogo. Entre essas necessida- des podemos apontar: dificuldade de lidar com a comunicagao de diagnésticos e as reagdes emocionais de pacientes e familiares, bem 2 Digitalizado com CamScanner en Maria Bueno Neme como de enfrentar resisténcias e temores de pacientes diante dag indicacées terapéuticas médicas € de outros obstaculos decorrentes das relagdes paciente-familia-equipe. No ano seguinte, 1992, estendemos nossas atividades para pa. cientes oncoldgicos ¢ familiares atendidos no Hospital Manoel de Abreu, e dai em diante nao nos afastamos mais da Psico-oncologia hospitalar. Mantivemos o atendimento no SOPC por dois anos e, a partir de 1993, nossa dedicacao foi integral ao hospital e as suas demandas. ; © objetivo deste capitulo contribuir para o registro hist6- rico do desenvolvimento da psico-oncologia em nossa regiao e no Brasil, relatando e compartilhando uma trajet6ria que, inicialmente isolada, em muitos momentos se equiparou ao que se fazia e se dis- cutia em congressos, reunides cientificas, publica¢des e em servicos disponiveis em instituicdes hospitalares do pais, mas representou para nés uma novidade desafiadora. Ou, ainda, coragem e ousadia. OS SERVICOS DE PSICO-ONCOLOGIA NO BRASIL E A CRIAGAO DO SERVICO EM BAURU Conforme relata Carvalho (1994, 1998), a atuagdo isolada de psicélogos e outros profissionais de satide em oncologia pode ser identificada desde a década de 1980. Como um campo de atuacao e pesquisa que comegava a se desenhar no pais, so pontos de referén- cia os congressos organizados a partir de 1989, com destaque para os de Curitiba (1989), Brasflia (1992), Sao Paulo (1994) e Salvador (1996), eventos em que um crescente ntimero de profissionais e es- tudantes apresentou e discutiu o que vinha se desenvolvendo em psico-oncologia no Brasil (Carvalho e Kovacs, 1998). ; Os Pesquisadores e profissionais que uniram esforgos para a solidificagao dessa area de parceria entre a oncologia e a psicologia em nivel nacional, por meio de participago em reuniges, organi- zacao de congressos e publicacées, foram frequentemente liderados por pioneiros como “Magui” (Maria Margarida M. J. de Carvalho), 2 Digitalizado com CamScanner ico Fsico-oncologa — Caminhos e perspectvas Maria Julia Kovacs, Elizabeth Ranier Martins do Valle ¢ Maria da Gloria S Gimenes, além de tantos outros nomes de destaque que contribuiram de forma definitiva para que a Psico-oncologia seja hoje reconhecida e respeitada no campo da satide. Meu envolvimento com a psico-oncologia hospitalar, e 0 de cerca de 135 alunos supervisionandos (em torno de seis a dez por ano, a partir de 1991), além de mais 50 alunos participantes de pro- jetos de extensao e de um numero pouco menor de orientandos (iniciagGes cientificas, monografias de especializacao e dissertacdes de mestrado), teve inicio de forma solitéria, em uma universidade publica do interior do estado de Sao Paulo (Unesp-Bauru), parale- lamente a organizacao da area no pais. Desde 0 inicio, trabalhei junto dos alunos e fomos construin- do, passo a passo, um servico de psico-oncologia hospitalar que cresceu e frutificou, resultando na criagao de um projeto de exten- s4o que conta anualmente com bolsas da Pr6-reitoria de Extensio da Unesp; na implantacao de disciplinas de estagio e de disciplinas optativas na graduagao do curso de Psicologia da Faculdade de Ciéncias da Unesp de Bauru; em contribui¢ées para a implantacao da disciplina optativa Psicologia da morte, desde a década de 1990 (Neme e Borrego, 1996) no mesmo curso de graduacao, bem como em varios cursos de extensao e especializacao (pés-graduagio lato sensu), nos quais a psico-oncologia tem posigao de destaque. Parte dessa experiéncia esta presente em trabalhos apresentados em con- gressos, em teses de doutorado (Neme, 1999) e de pés-doutorado (Neme, 2005a), além de outras publicagdes (Neme, 2005; Azevedo, Dameto e Neme, 2005), que relatam e avaliam essa prética apresen- tando resultados de pesquisas. ‘Assim como em outros servigos de psico-oncologia, 0 servigo que implantamos foi planejado com base na observacao da realida- de hospitalar em que se desenvolveu, na realidade sociopolitica local ¢ regional e no levantamento das necessidades de profissionais, pa- cientes, familiares e acompanhantes, com a inestimavel colaboragao do dr. Paulo Eduardo de Souza, que nos convidou para “ajuda-lo” 2B Digitalizado com CamScanner Carmen Maria Bueno Neme com seus pacientes ¢ chefiou 0 servico de quimioterapia do hospital durante todos esses anos. Depois, na época do doutorado, contamos também com a pre- senga € a colabora¢io de duas pioneiras que, a nosso convite, parti- ciparam de cursos e jornadas cientificas que organizamos, além do insubstitufvel apoio que disponibilizaram com suas orientages e ex- periéncia, a dra. Mathilde Neder (orientadora do doutorado) ea dra, Maria Margarida M. J. de Carvalho (membro da banca e incentivado- ra). Posteriormente, os trabalhos da dra. Elizabeth Ranier Martins do Valle, referéncia na psico-oncologia pediatrica, representaram grande incentivo, aprendizagem e experiéncias inestimaveis. Para criar o servigo em Bauru, observamos, procuramos |i- teratura (muito escassa na época), planejamos e nos lancamos em uma Area de atuacao ainda nova, certos de que teriamos de ousar, criar, avaliar e redirecionar rumos sempre que necessério, além de superar obstéculos institucionais e outros decorrentes dessa tare- fa, Inicialmente, elaboramos um projeto para 0 SOPC, submetido a aprovacao da Secretaria Municipal de Satide. No ano seguinte, ou- tro projeto foi submetido a aprovagao da Associagao Hospitalar de Bauru, além de cuidarmos dos aspectos legais ¢ institucionais ne- cessdrios, como a celebragao de convénios de parceria entre a uni- versidade (Faculdade de Ciéncias da Unesp-Bauru) e as instituicdes que receberiam os estagidrios. No projeto destinado a Associagao Hospitalar de Bauru (Hospital Manoel de Abreu) solicitavamos a contratacao de um psicdlogo para o servico de oncologia, 0 que s6 veio a ocorrer anos depo: O trabalho planejado e desenvolvido no hospital caracterizou- se principalmente por atendimentos breves de pacientes interna- dos, psicoterapia breve com pacientes em esquema de tratamento ambulatorial, grupos teméticos com profissionais, grupos psicoe- ducativos em sala de espera, grupos de orientagao, relaxamento ¢ Visualizacéo em sala de quimioterapia e outros programas, além da Pesquisa, que consideramos sempre indissocidvel nessa area em de- senvolvimento, 24 Digitalizado com CamScanner Psico-oncologia ~ Caminhos e perspectivas ; Nossa eerie na Associagao de Pacientes ¢ Familiares (cuja organizagao estimulamos), bem como no Conselho Municipal de Satide, na oe da Oncologia, foi extremamente enriquecedora, colocando-nos diante de outras questdes a serem compreendidas e enfrentadas por aqueles que estavam “em campo”, lidando direta- mente com as dificuldades concretas dos doentes, de seus familiares e dos profissionais. Tais dificuldades eram agravadas pelas condi- goes socioeconémicas de um pais que apresenta tantas diferengas, caracterizado, ao mesmo tempo, por recursos encontrados em na- goes de primeiro mundo e por mazelas de paises subdesenvolvidos. Nossa breve inser¢ao no ambito das politicas puiblicas em redes so- ciais e espacos consultivos foi determinante para a consolidagao de nosso projeto e para outros avan¢os. Durante esses anos, compartilhamos e acompanhamos melho- rias obtidas no atendimento dos pacientes oncoldgicos na institui ¢ao hospitalar, como a inauguracao, em 1997, do “Centro Regional de Oncologia”, um ambulatério novo ¢ equipado para o tratamen- to quimioterépico e radioterapico da populagdo de Bauru e regizo, que apenas contava com o Hospital Amaral Carvalho em Jat (SP) e um hospital universitario na cidade de Marilia (SP) ou em outras localidades mais distantes. A inauguracao desse ambulatério abriu novas possibilidades de atuagao, e pudemos vivenciar esforgos con- juntos de profissionais que, com nossa participacéo, engajaram-se na busca de uma pratica que de fato caminhasse para a interdisci- plinaridade, Nessa tarefa, experimentamos intimeros avangos, mas também muitos retrocessos, relacionados, entre outros motivos, 4 alta rotatividade de profissionais no hospital e a continuas mudan- as e instabilidades institucionais. AINSTITUICAO HOSPITALAR © hospital em que atuamos até margo de 2008 foi fundado em 29 de janeiro de 1951, como Sanatério de Tisiologia, e foi pro- jetado e construfdo pela Campanha Nacional contra Tuberculose, 25 Digitalizado com CamScanner ‘Carmen Maria Bueno Neme de acordo com 0 Decreto-lei Federal n. 9.387, de 20 de junho de 1946, no governo do presidente general Eurico Gaspar Dutra, quando Raphael de Paula Souza ce diretor do Servicg Nacional de Tuberculose. Destinado ao atendimento de pacientes tuberculosos, apés 0 controle dessa doen¢a no pais, esse hospital passou a receber pacientes com diferentes diagndsticos para tratamentos clinico-mé. dicos, uma vez que nao dispée de centro cirtirgico e UTI. A maioria dos doentes internados nesse hospital realiza exames ou tratamen- tos clinicos ou quimioterdpicos para cancer, recebe atendimento em casos de doencas oportunistas ligadas ao HIV ou é idosa, com doengas crénicas ou terminais. Na clinica oncoldgica, sao atendidos pacientes de diversas faixas etarias e com todos os tipos de cancer, em diferentes estadiamentos. No inicio de 2008, o Hospital Manoel de Abreu foi encampado pelo Hospital Estadual de Bauru, vinculado a Faculdade de Medici- na da Unesp de Botucatu. Os servigos de oncologia esto sendo gra- dativamente transferidos para 0 Hospital Estadual, em uma nova condigao fisica e institucional que poderd representar um marco positivo no atendimento médico-medicamentoso dos pacientes on- cologicos de nossa regiao. ‘Até 2008, os pacientes oncoldgicos que necessitavam de ci- rurgias ou de terapias intensivas eram atendidos em outro hospital (Hospital de Base), também administrado pela Associagao Hospita- lar de Bauru; quando algum paciente em atendimento psicoldgico era transferido e necessitava do atendimento psicoldgico, nés nos locomoviamos para esse hospital. A despeito das dificuldades, aprendemos muito e oferecemos rara oportunidade a graduandos de psicologia, que puderam vivenciar si- tuagdes das mais positivas as mais negativas no que se refere 4 realidade das instituigdes de satide que atendem, prioritariamente, pacientes ca- rentes por meio do SUS. Como afirma Severo (1993, p. 18), io jatimlgbes que se destinam ao atendimento do cidadao carente s40 mal suportadas pelo Estado e pela comunidade. Sob uma forma ca- %6 Digitalizado com CamScanner Psico-oncologia ~ Carinhos e perspectvas muflada de rejeigao em que a palavra é uma e a agao seu desmentido, as instituigdes esto sob constante ameaca de faléncia. Nessa estrutura de luta pela sobrevivencia, todos esto ameacados; a sociedade, 0 aten- dido, o atendente. Decorre dat, inevitavelmente, a dificuldade de traba- Ihar numa instituigao. No entanto, 0 espaco fisico do Hospital Manoel de Abreu, uma constru¢ao horizontal cercada de grandes e antigas arvores, situada em um espago amplo e agradavel, parecia compensar muitas das dificuldades representadas pela frequente “falta” de verbas, de re- médios, de profissionais, entre outros problemas, conferindo um clima paradoxalmente ameno e humanizado que todos os que nele atuavam pareciam apreciar, embora ainda conservasse, aos olhos da comunidade, muito do estigma ligado a doengas como a tuberculo- se, a aids e 0 cancer. A organizagao deste livro coincide com um momento de gran- de transicao nesse percurso que, esperamos, possa trazer novas perspectivas e significativos avangos no atendimento dos pacientes, na pesquisa e na pratica da psico-oncologia em nossa regio. PERCURSO, DESCRICAO DO SERVICO IMPLANTADO E RESULTADOS Ao realizar essas reflexes, constatamos que, desde o inicio, fo- mos criando uma pratica em psico-oncologia nos moldes do que foi definido posteriormente por Gimenes (1994), atendendo pa- cientes e familiares a partir do diagnéstico, durante todo o proces- so de tratamento, até o controle da doenga ou o acompanhamento final, na morte e no luto (inclusive com atendimentos domicilia- res), buscando construir parcerias entre a psicologia e a oncolo- gia e outras especialidades de satide. Procuramos abarcar também as demais facetas que envolvem 0 trabalho em psico-oncologia: a atencdo & formacao de psicdlogos e demais profissionais de sade dessa Area, as dificuldades dos profissionais no trato cotidiano com a Digitalizado com CamScanner Carmen Maria Bueno Neme 5 e familiares, aos acompanhantes e aos cuidadores prin- acientes dependentes ou acamados. Buscamos a partic). que possivel, nas esferas sociais e politicas na area da paciente: cipais de p pacao, sempre Satide e a realizacao de pesquisas, com enfoque clinico e psicosso- cial, atentos as necessidades de educacdo para a satide e de preven- ao do cancer entre a populagao. Em 2003, elaboramos um manual de orienta¢ao para pacien- tes e familiares, editado com verba da Pré-reitoria de Extensao da Unesp e apoio da Rima Editora (Sao Carlos). Esse manual é forne- cido gratuitamente aos pacientes ¢ aos seus familiares, auxiliando no trabalho de atencdo integral 4 pessoa com cancer (Neme et al, 2003). No mesmo ano, organizamos e publicamos um livro com re- sultados de pesquisas realizadas por alunos do curso de especializa- cao em Psicologia da Satide (Unesp-Bauru), no qual foram incluidos trés capitulos sobre psico-oncologia (Neme e Rodrigues, 2003). Em nossa pratica com os pacientes, foi fundamental que de- senvolvéssemos ¢ utiliz4ssemos de modo flexivel todas as inter- vencoes psicolégicas possiveis ao novo setting terapéutico, das tradicionalmente praticadas as adaptacdes, além de novas técnicas e recursos interventivos que procuramos conhecer, aprender ou desenvolver, pois, conforme indicado por Carvalho (1994, p. 17), a psico-oncologia ¢ uma 4rea que “compreende todas as interven- Ges psicolégicas possiveis no trabalho com o paciente com cancer e seus familiares”. No atendimento de pacientes de diversas faixas etdrias, com diferentes diagnésticos de cancer e em variados niveis de gravida- de da doenga, constatamos a necessidade de langar mao de amplas possibilidades interventivas, capazes de auxiliar no enfrentamento da doenga e dos tratamentos e na diminuigao das dores fisicas e psiquicas dos atendidos. Os tipos de atendimento realizados, as in- tervengdes breves ou “brevissimas’, tal como esclarecidas por Ne- der (1961), e os demais programas implantados no hospital foram quase sempre registrados e avaliados, demonstrando os beneficios 28 Digitalizado com CamScanner (Carmen Maria Bueno Neme e os hordrios de plantao de todos os estagidrios eram divulgados entre os profissionais e nos diferentes setores diretamente ligados ao nosso trabalho, de modo que o servi¢o de psicologia pudesse ser conhecido e contatado por todos. Com a contratagao do psicdlogo, providéncia pela qual sem- pre lutamos, as atividades do servigo de psicologia foram facilitadas e foi possivel oferecer atendimento grupal e um curso de aprimora- mento (realizado no hospital em 2004 2005), fortalecendo 2 ser- vico e nossas realizagbes na area da formagao de profissionais em psico-oncologia. Nesse perfodo, chegamos a idealizar a instalagao de um servigo no modelo de hospedaria (hospice) para pacientes em quimioterapia que necessitassem de internagdo de curta duragao, aproveitando uma construcao que estava desativada no complexo hospitalar e seria ideal para essa finalidade. No entanto, a falta de investimento e de equipes de profissionais impediu a continuidade dessa proposigao, mas isso nao nos levou a abandonar projetos e expectativas futuras. AROTINA DO SERVICO DE PSICOLOGIA HOSPITALAR NA ONCOLOGIA Para viabilizar nossos objetivos, a rotina do servico de psicolo- gia foi organizada de maneira que pudesse funcionar independen- temente da presenga didria do psicdlogo na instituicdo. Essa rotina foi seguida durante todos os anos, o que conferiu estabilidade e se- guranga aos estagidrios e aos profissionais do hospital. A rotina nas enfermarias Diariamente, os estagidrios-plantonistas verificavam a entrada de novos pacientes oncoldgicos no setor de internacao do hospital, anotando os dados de identificagéo (nome, sexo, idade, procedén- cia, médico responsdvel, ntimero do leito e enfermaria). 30 Digitalizado com CamScanner Psico-oncologia — Caminhos e perspectivas A seguir, no setor de enfermagem, verificavam os prontuérios de pacientes novos ¢ antigos e anotavam informagées relativas ao diagnéstico médico, indicagdes e procedimentos médico-medica- mentosos, intercorréncias e outras observagdes desse setor sobre cada paciente. Com essas informagées, dirigiam-se aos leitos dos pacientes antigos (j4 contatados e/ou em atendimento psicolégico) para dar prosseguimento ao trabalho (com o paciente e, quando possivel, com seus familiares) e, conforme a disponibilidade de tempo no dia ou mediante solicitagao da equipe hospitalar, realizavam contatos com pacientes novos para uma entrevista inicial e a proposi¢ao do atendimento psicol6gico de rotina do servigo de psicologia. Quando o paciente concordava com 0 atendimento psicolégi- co e.com suas condicées, passava a ser visitado rotineiramente (uma ‘ou mais vezes por semana) por um ou mais membros da equipe de psicologia, observando-se que um dos estagiarios (0 que realizava 0 primeiro contato) assumia a responsabilidade pelo atendimento da- quele caso. Os demais estagiérios apenas atuavam como auxiliares para o caso de o paciente necessitar de algum tipo de atendimento em dia ou horério indisponivel para seu terapeuta no hospital. Essa conduta também visava garantir uma distribuigdo equitativa de pa- cientes por estagidrio. Para a viabilizagéo desse procedimento, o terapeuta respon- sdvel pelo caso devia apresentar um ou dois outros estagidrios ao paciente e a seus familiares ou acompanhantes (dependendo da avaliacao de gravidade ou da necessidade de cada caso), explicando que faziam parte da equipe de psicologia do hospital e podiam au- xilid-los, se necessdrio, na auséncia de seu terapeuta. Cada estagid- rio-plantonista cumpria uma carga horaria de oito horas semanais, de modo que, durante toda a semana, havia um ou mais estagidrios do servico de psicologia no hospital. Apés cada perfodo de plantao no hospital, os estagiarios re- gistravam em um “livro de plantao” os nomes € os niimeros de lei- tos dos pacientes atendidos, bem como as informages importantes 31 Digitalizado com CamScanner Carmen Marie ieee que deviam ser transmitidas aos demais plantonistas sob dimento psicol6gico e/ou as intervencoes realizadas, sobre as condi¢des gerais e psicolégicas dos atendidos, Desse moq evitava-se que um paciente novo fosse duplamente enttevistado garantia-se a transmissdo de informagées necessdrias sobre os Pa cientes em atendimento aos demais integrantes da equipe, Os pacientes internados recebiam atendimento Psicolégico até sua alta hospitalar; alguns continuavam a psicoterapia em esquema ambulatorial (conforme possibilidades e necessidades de cada caso), Muitos pacientes foram atendidos quando transferidos para outros hospitais, quando foram para casa ou até 0 ébito. Porém, poucos casos (cerca de trés a quatro por ano) continuavam a receber aten- dimento psicolégico domiciliar apés a saida do hospital, em virtude das dificuldades da equipe para a viabilizacao de atendimentos domi- ciliares. Além disso, muitos pacientes residiam em outras localidades, © que impedia os atendimentos psicolégicos de prosseguir. Quando Possfvel, o paciente e seus familiares eram encaminhados para servi- cos de atendimento psicoldgico em suas cidades de origem. Sempre que necessario, os familiares dos pacientes eram con- tatados pelo terapeuta responsdvel pelo caso nos horarios de visita. Em alguns casos, buscou-se a parceria entre o servico de psicologiae 0 servico social para a localizacao e/ou soli ‘itagdo de visita a pacien- tes que se encontravam afastados da familia, distantes ou “abando- nados” por seus familiares. Muitos dos pacientes internados tinham como tinica rede de apoio os profissionais do hospital ou a ajuda de algum vizinho ou conhecido. Em alguns casos, realizamos interven- 0es € aces para reaproximar filhos ou familiares de pacientes que Se encontravam em total desamparo e residiam sozinhos. Nesses dezesseis anos de atua¢ao, visando auxiliar na retomada de contatos ena resolucao de quest6es familiares — em geral causadoras de mais sofrimento que a propria doenga —, em trés casos, os terapeutas es-

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