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RESUMO ABSTRACT O Psicanalista entre o Mestre e o Pedagogo Diana S. Rabinovich' Versdo para o portugués: Luis Fldvio S, Couto? Este texto apresenta uma primeira aproximagao com os cha- mados “quatro discursos em psicandlise”: 0 discurso do Mes- fre, 0 discurso da Universidade, 0 discursa da Histérica e o discurso do Analista. Apresenta, de forma diddtica, os termos que compdem os discursos ($1, $2, a @3), bem camo as posi- 960s invaridveis (agente, outro, produgao e verdade). Detaiha, em seguida, cada discurso separadamente, mostrando o sig- nificade de cada termo em sua posi¢ao especifica e em sua relagéo com os demais termos que compdem cada discurso. Tem como referéncia basica a figura dos quatro discursos tal como Lacan apresenta no Semindria O avesso da Psicandlise (1969/70), em Radiofonia (1970, p. 99), e na Conteréncia de Miao sobre a Discurso Analitico (12/05/1972/1978a). Palavras-chave: Psicandlise, Lacan, os quatro discursos This paper presents the first step towards what are called, “four Jectures in Psychoanalysis”; the lecture of the Teacher, the lecture of the University, the lecture of the Hysteric and the lecture of the Analyst. The terms that make up the lectu- es (S1, S2 and S) are represented, as weil as the invariable positions (ageni, other, production and truth). Each lecture is thereatter detailed separately, demonstrating each term in its specific position and in its relation to the rest of the terms that make up the Jecture. The text uses the figure of the four lectu- res from those such as Lacan presents in his Seminar: The other side of Psychoanaysis (1969/70), in Radiofonia (1970, p.99) and in the Milan Conference about Analytical Discourse (1972) as a basic reference. Key words: Psychoanalysis, Lacan, the four lectures. 1 Psicanatisia, Professor da Faculdade da Psicologia da Universidade de Buenos Airas 2 Paicanalisia, Pds-doutorado na Universidade Paris 8, Professor da UFMG, PUCMinas e Instituto Newton Paiva. 9 En seu seminario O avesso a psicangise. Lacan (1969-70) intro- i atro di I. Guz Oe ce enrenie 2 uma teoria do discurso que domina as ciéncins chamadas “humanas” para as quais esse é o produto de um suelo centro, de um sujeito pleno, unitario — a primazia da cadela signi Waa que se desloca além de qualquer sujeito voluntario, consciente, @ Cua arti- culagdo produz 0 discurso. | — So eee é um modo de uso da linguagem como vinculo. S6 ha vin- culo social naquilo que se designa como discurso, vinculo possivel apenas entre seres que falam, os “falasser" — [pariétres| (Lacan, 1971). Odiscurso nao Se funda, entaéo, no sujeito, mas na estrutura da linguagem e, por fim, na do significante. A psicanalise descobre um sujeito cindido, sujeito atravessado pelo de- sejo e pelo gozo: 0 sujeilo do inconsciente O inconsciente, diz-nos Lacan, gta estruturado como uma linguagem que se chamara “Falingua”, diferen- te de “alingua’. linguagem atravessada pelo desejo, 0 gozo e 0 impossivel da sexualidade e da morte (CI. Miller, J-A. 1977). Q discurso nao e. pois, realidade primeira a ser interpretada em seu sentido, mas etfeito da cadeia significante. Lacan continua, assim, a sua tarefa incessante de descentramento, a sua critica ao todo. ao centro, a estera. O movimento dos seminarios reintro- duz a falta, a descontinuidade, a nado complementaridade, a hiancia..., toma inutil toda restauragao de um centro. O discurso concebido como produto da articulagao significante é um discurso sem palavras, que, como tal, gera pala- wras; 6 um discurso sem sentido, que gera a propria proliferagao do sentido. Os quatro discursos sao quatro contiguragdes significantes que sé di- ferenciam e se especificam por sua distribuigao espacial. Quatro postos fixos, quatro significantes que rodam nesses mesmos postos e que deter- minam, na sua rotagdo, a emergéncia da prépria trama discursiva. Em 1957, na “Instancia da letra no inconsciente", Lacan escreve o al: . $s i iti goritmo — — (leia-se significante sobre significado) que, em um ato Unico de escritura, transforma radicalmente © signo saussureano. Pontualizemos bre- vernente os alvos conceituals dessa transformagaéo. A solidariedade entre ambos os membros do algoritm desaparecer o circulo que, em Sausure (1961), Os ongiobe. eo ern se esfuma ao trasladar-se 0 peso da determinagdo do significado ao signi- ficante cuja primazia Lacan postula; a barra ganha um valor novo e insdlito ao se tornar “barreira” resistente 4 significaco. 10 Assim, nada une um significante a um significado determinado; o signi- ficante detxa de ser “representagao” do significado, do sentido pré-existen- te, e a significagdo, articulada como produgao, deve vencer uma “barreira” Para poder emergir. O significante, em sua concatena¢ao (metaférica e metonimica), deter- mina 0 efeito de sentido. Nao existe, portanto, sentido algum, qualquer “ver- dade” que 0 significante represente ou traduza. O sentido cai enquanto in- tencionalidade do discurso da consciéncia que “conhece”, que “sabe”, para surgir, em troca, como produgao — cifrada — da articulagao significante. Desse modo, os valores de verdade e falsidade se rompem no jogo significante do inconsciente freudiano de onde o sujeito fala sem saber o que diz, diz a sua verdade sempre “pela metade”, disfarcada, no proprio equivoco de seu sintoma, de seu lapso, de seu sonho... Verdade dita "a meias” por um sujeite dividido, cuja cisao constitutiva ndo admite nenhuma totalizagao, nenhuma unidade, nenhuma plenitude de sentido. O que é, entao, um significante? Lacan (1975) nos diz: “um significante € 0 que representa um sujeito perante outro significante”. Representa pe- rante outro significante — em caraler de representante, nao de representa- G40, pois 0 outro significante nada sabe nem se representa — a um sujeito. O significante, em sua articulagao, nao representa o que nao esta, engen- dra-o; aquilo que nao esta na origem e é engendrado pelo significante é justamente o sujeito; significante e sujeita sao, pois, solidarios. Esse sujeito que Lacan conceitualiza esvaziado de toda substancia — fenomenal, metafisica ou biolégica — para fundar uma subjetividade que recolhemos diariamente na pratica psicanalitica, esse sujeito do inconsci- ente pode ser dito, tomando-se como referéncia 0 cogito cartesiano, do seguinte modo: “... penso de onde nao sou, logo sou de onde nao penso... nao sou, ali de onde sou o joguete de meus pensamentos, penso no que sou, ali de onde penso nao pensar” (Lacan, 1975). Introduzimos, com a propria definigao de significante, trés dos quatro significantes que intervém na estrutura de cada um dos discursos: S,, 0 significante que representa © sujeito; S,, 0 significante ante 0 qual o S, re- presenta 0 sujeito € em concatenagao com o qual se estrutura a cadeia minima necessaria para o surgimento da significagao S, —> S,; e 8, 0 sujei- to sempre cruzado pela barra que 0 marca como dividido. Essa operagao de constituigao do sujeito por agao do encadeamento significante entre S, e S, deixa um resto — nosso quarto termo — o objeto “a’, objeto-causa de desejo, também denominado por Lacan mais-de-gozar. Eis aqui 0s quatro discursos, tais como so estabelecidos em Radiofo- nia (Lacan, 1970, p. 99). 1 DISCURSO DO MESTRE DISCURSO DA UNIVERSIDADE I 1 i ts Impossibilidade 5 Is Impoténcia a " a ' | . mL a > | a 5 a! §. ~ 8 | | se esclarece por regressao do se esclarece por seu progresso em DISCURSO DA HISTERICA DISCURSO DO ANALISTA a i a + a $s Impoténcia , la Impossibilidade, | * ¥ . { ¥ I | a | a ™ s | s,- ~ s. | Quadro 1 Lugares O Agente © Outro A Verdade A Producgao Termos S, - 0 significante-mestre S, - osaber 8 - osujeito a - omais-de-gozar A rotagao progressiva 6 delinida por Lacan como aquela i 1 r ue se realiza ‘em sentido contrario 4 rotagdo horéria. O seu inverso, come regressiva. Desse modo, cada rotagao de um quarto de circul » mado, =e ulo marca a passagem 12 Esses discursos nao representam nenhum progresso histérico ea pas sagem de um a outro néo marca progressao ou regressdo evolutiva, ne nhum crescimento, nenhuma conclusdo, nenhuma hierarquia. Os discursos mantém entre si relagdes de oposi¢ao e suplementacar (wer quadro 1). O titulo do seminario no qual Lacan formula os quatro discursos — ¢ Avesso da psicandlise — ja marca que a relagao entre os discursos deve ser pensada como uma relacao de trama, de textura, de direito e de avesso como um pano cujo desenho varia segundo a disposi¢ao dos fios significan- tes: 0 seu horizonte tedrico é a banda de Moebius — sem direito nem aves: $0 — desprovida de borda até que introduzimos um corte, uma descontinui- dade, possivel apenas pela acao do significante. Nao ha entre os discursos qualquer relagao de causa e efeito; eles nao se explicam um pelo outro. Nenhum desses discursos é “a verdade”. A verdade como lugar esta pre- sente em cada um deles, sempre oculta, e sempre em disjungdo com a sua produgao. Esses discursos nao os elegernos. Eles nos elegem e nos arrastam além de nossa vontade, de nosso “querer dizer’, nos falam apesar de nds. Examinemos agora, mais detalhadamente, os quatro significantes cuja articulagao configura os quatro discursos. Ss, Qualquer significante pode ocupar, em principio, esse pos- Significante to, pois, par definigao, todo significante pode representar Mestre um sujeito para outro significante. S, 6, entao, o significan- te que representa o sujeito como diferente do individuo vi- vente, como sujeito atravessado e determinado como tal pela acao do significante. E 0 significante primeiro, condi¢ao para a articula~ cao da cadeia. Nome do pai, trago unario, significante da lei, falo simbolico, so essas algumas das denominagées do S, na algebra lacaniana. “G, @ entre todos os significantes esse significante do qual nao ha sig- nificado, ¢ que, enquanto sentido, define o seu fracasso” (Lacan, 1971). E um significante vazio de significagao. Ele surge gragas 4 subtragao de tudo aquilo que tem como fungado suportar sentide ou significagao. E por exceléncia “pas de sens”, sem sentide que desliza em duas diregdes: a falta de sentido e o nonsense inglés — o equivoco, o absurdo. Ss, s, 5. Designa a bateria significante, aqueles significantes que ja oO esto ali. O saber liga os significantes em uma relagdo de Saber rede — um significante S, com um significante S,. A psicandlise 6 o descobrimento de um saber qué nao se sabe — 0 inconsciente — cuja articulagdo é a do S,, articulagao reticular 13 de significantes. O ventre do grande Outro — diz-nos Lacan (1969-70) — esta cheio de significantes, fundando, assim, a fantasia do saber como tota- lidade. O saber tem uma articula¢ao peculiar com © gozo. O ser humano, en- quanto parlétre, falasser, é solidario da insisténcia de uma escritura, de uma cadeia significante cuja repetic¢ao leva-o além, (camo dizia Freud), do hori- zonte homeostatico do prazer para abrir a dimensao do gozo (Cf. Freud, 1920). ; repeti¢ao nao é um ciclo natural, é denotagao precisa de um trag¢o — © unario — (uma das formas de S,) —, trago que comemora a irrupgao do jozo. 8 Gozo e cadeia significante se ligam. O trabalho do inconsciente surge ‘como 0 proprio jogo da cadeia significante, jogo que produz esse gozo ins6- lito do qual Freud nos falava na identidade de percepcao do processo pri- mario. Esse desejo que se realiza na busca da marca primeira e mitica (Cf. Freud, 1895 e 1900). A linguagem detine-se, entao, como aparato de gozo com o qual a realidade € abordada. Esse saber que nao se sabe limita-se a esse gozo insuficiente, constituido pelo proprio fato de sua fala. © gozo 6, pois, inseparavel da repeti¢ao, ultrapassando, assim, 0 prin- cipio de prazer. A propria repeti¢ao funda-se em um rétorno do gozo, repe- tigao na qual se produz algo que ¢ fracasso, defelto, perda. Nesse ponto de perda, surgira a fun¢do do objeto “a”, fun¢ao que aponta, no campo freudi- ano, a situagao original do objeto perdido. Objeto 2 objeto “a”, conceito complexe, encruzilhada de um gran- ag” de numero de articulagdes tedricas de Lacan, nos obriga a uma abordagem parcial. Objeto “a”, objeto causa de desejo, mais-de-gozar sdo alguns de seus nomes. Nenhuma dessas denominagoes @, por certo, ao acaso. Detenhamo-nos na palavra-causa que vincula 0 abjeto "a" com o dese- Jo. Entre o “a” 6 0 desejo existe uma relagao de "causagao", de Provocaciio; © objeto "a" esta nele antes do desejo, ndo em sua Salislagao; nado 6 o : ‘objeto-fim ou a sua meta. O “a” desperta o desejo e, enquanto objeto mete, nimico que circula entre os significantes, escapa a toda captura, o O estatuto do “a” como causa nao deve confundir-nos; para vir a como tal, ele deve constituir-se. E um objeto-produto, resto, residuo de uma operagao: a do surgimento do sujeito pela agdo do sistema significanta: Nao se trata de um objeto “natural’, "dado", mas de um objeto-efeito da order simbdlica. 3 Somente apés surgir como efeito do significante, de ser esse Testo irre- 14 dutivel daquilo que, no campo da sexualidade humana, resiste ao signifi- cante, somente entao podera funcionar como objeto causa de desejo. No objeto “a” confiuem duas linhas de desenvolvimento do pensamen- to freudiano acerca do objeto: o objeto do desejo como objeto perdido e o objeto da pulsdo como objeto parcial (Cf. Freud, 1900, 1905 e 1915). Freud sempre enfatizou a importdncia do objeto perdido, proibido, na estruturagao do desejo inconsciente. Lacan nos diz que a problematica do objeto em psicanalise 6 a problematica da falta de objeto. Essa nado deve ser reduzida a presenga-auséncia fenomenoldgica: a falta atua para a “cria” humana através da propria estruturagdo da ordem simbdlica. A falta ndo causa 0 significante; @ este, em troca, quem a cria. E daf que Lacan insiste: no real, nada falta. E 0 significante que introduz a falta como tal no real. Recorde-se a conceitualizagao lacaniana da castragdo: se a mulher pode surgir como castrada. privada, para ser mais exato, é porque, na ordem simbolica, a primazia do falo. signilicante simbdlico, faz surgir esse objeto imaginario que falta ali de onde no real nada falta — 0 falo materno, atributo imaginario da mae falica O desejo humano e. cerlamente, sexual, mas se sustenta em “tracos” e € a busca repetitiva e incessante desse "primeiro trago” enquanto percep- gao que, no marco treudiano, aleanga a sua realizagdo. Nenhum objeto pode. ponanto. estar-Ihe predestinado; o sexo, em sua inscrigao significan- te. deixa de ser aparelhamento, complementaridade, para mostrar-se como conflitivo, desgarrado. suplementario. O desejo é, pois, ja em Freud, falta. Falta que. em Lacan, se transmuta: o desejo 6 desejo de um desejo, isto é, desejo daquilo que, no outro, é também falta, falta que faz surgir um quoci- ente. um resto a ser tomado ao pé da letra. Esse resto é 0 objeto “a”. O objeto -a", como resto, coloca-nos frente a outra de suas caracteris- ticas essenciais: sua parcialidade. Ja Freud, nos Trés ensaios, nos falava da pulsao como parcial, objeto parcial que os psicanalistas, sequindo mais Abraham que o préprio Freud, acreditaram necessario e imprescindivel ar- ticular em uma totalidade — chamando-a genital ou depressiva, tanto faz. Sem divida, esse objeto 6 parte, recorte, que se imprime por sobre o su- Posto objeto da necessidade — o paito nutriz, por exemplo —, esse outro objeto, para sempre desprendido desse todo que podemos chamar de mae, que é o seio, uma das mAscaras posslvels do “a”. Porque Lacan chama “a" o objeto do desejo? AResumamos, brevemen- te, a sua hist6ria na algebra lacaniana. Costumamos dizer o a em castelha- no como 0 pequeno "a", embora fosse mals correto chamé-lo "a" minusculo (petit a — em francés). Aparece, primeiro, na teoria lacaniana como simbo- lo do outra com minuscula (/‘autre), o outro da especularidada, o outro ima- ginario em torno do qual se estrutura a fung&o narcisica do eu (mo), tunda- 15 Mento da estrutura imaginaria do eu. Esse “outro” @ aquele em torng do qual surge 0 objeto de equivaléncia do transitivismo, objeto da concorréncig @specular, que nao deve confundir-se com o objeto do desejo. Com o tempo, o (a) continuara designando esse outro com [a] minis. culo que faz contraponto na teoria lacaniana com o Outro com maitisculg (grand Autre), aludindo o primeiro ao campo da intersubjetividade, 0 outro 4 fundagéo do sujeito no sistema significante. Porém o “a”, objeto do desejo, escapa ao campo imaginario, remete inexoravelmente a falta no Outro (A), ponto no qual nada aparece no espe. tho. © objeto “a” carece de imagem especular. O eu (moi) limita-se a vestir esse nada que 6 0 lugar do objeto perdido. Assim, 0 objeto do desejo e o objeto do narcisismo bifurcam-se. A psi- canalise abandona a busca do bem do sujeito para abrir a dimensdo de sua realizagdo através do reconhecimento de seu desejo. Nao obstante, tenha- mos presente que ambos os objetos confluem em sua determinagao ao lugar do A, do grande Outro. Dissemos que o gozo se articula com a repetigao da cadeia significan- te. No marco dessa repetig¢ao, encontramos um ponto de perda, de entro- pia, em termos freudianes, em que se produz um mais a recuperar. Esse mais-de-gozar a recuperar marca a fungao por exceléncia do objeto “a”. Esse resto a recuperar é 0 produto de uma operagao que Lacan cate- goriza logicamente. Essa operacdo se realiza entre dois termos: 0 sujeito,S € 0 Outro, A. A primeira operacao é a reunido entre S e A, a segunda é a sua interse- ¢ao. O produto dessa ultima 6 o objeto “a” (Ci. Lacan, 1973a). A intersegao como operag&e ldgica define, pois, o “a” como resto, pro- duto, quociente, Sem diivida, a imagem do circulo de Euler se presta 4 engano: a zona de intersegao nao tem qualquer substancialidade. E a inter- seco de dois nadas, de duas faltas. © “a" surge no lugar da falta no A e ocupara esse proprio posto no sujeito. Por isso, o A se transforma em A, isto 4, ele proprio é submetido 4 agao do significante, ele mesmo carente, incapaz de garantir o verdadeiro acerca do verdadeiro. 3 E 0 sujeite dividido, produto da irrupgéio do S, no campo da OSujeito _>ateria significante S,. S, marca, assim, a identiticagao inal gural do sujeito, na qual o proprio sujeito, enquanto tal, 5@ encontra ausente. Esse sujeito se caracteriza pela barra que o cruza, que? marea para sempre como cindido, cise que néo é um acidente da patolo- gia, da historia ou da biologia, mas essa barreira que o cria enquanto sujet to, que o separa do S,, 0 significante que o marca, barreira que nao é outa 16 coisa que 0 recalque primario freudiano, A je terapéutico pode reintegrar-Ihe a sua unidade, © on do tooo e 2 ti subst tuido pelo um do trago unario, um da diferenga significante. sucess Esse sujeito nao pode ser conceituado em termos de ‘organismos ou de necessidades. E Sujeito justamente porque essa barra que 0 divide o faz vir a ser sujeito desejante. Desejante de um objeto perdido, proibido, que insiste como objeto do desejo, escapando sempre as redes de S,, a0 mes- mo tempo que as sustenta. Sujeito da ordem si i : enredado na rede significante. mnoeice, cat pare semrpan Examinemos agora os quatro postos. Agente E aquele que, aparentemente, organiza o discurso, em cujo nome esse discurso se formula. E o lugar da aparéncia. Outro Qual é a alteridade 4 qual cada discurso se dirige? Em Lacan, o sentido dessa relagao escapa, radicalmente, a qualquer esquema da comunicagao — entendendo-se como comunica- Gao a transmissao de um sentido de um sujeito a outro. Se, por acaso, ha algum outro ao qual o discurso se dirige, esse 6 o grande Outro, alteridade irredutivel. Producdo Marca 0 lugar do produto engendrado pelo discurso. A linha superior corresponde ao nivel manifesto, e a inferi- or, ao latente. Nessa Ultima, entre a verdade é a produgao, se estabelece uma relacdo de disjungao. Verdade E esse o posto que fundamenta o discurso, que © mantém além do circuito agente-outro. O lugar da verdade é acessi- vel apenas por um “semidito” (midire), ja que a verdade nao se pode dizer toda, Além de sua metade, nada ha para dizer, E nesse contexto que se inclui a asseveracao lacaniana: néo ha metalinguagem. A unica metalin- guagem no campo da subjetividade 6 a da canalhice. Se o desejo do ho- mem é 0 desejo do Outro, toda canalhice descansa sobre o desejo de sero Qutro para alguém. Examinemos agora os quatro discursos. 17 Aqui, o S, esta situado no posto de agents situagao que designa 0 mito sobre o qual sq funda o discurso do mestre, a saber, a Suposta identidade entre © sujeito e o significante que o representa. Essa identidade entre o sujeito © significante sustenta um discurso suposta. mente univoco, cuja verdade, S, éa Condigaig g a necessaria em seu desconhecimento para que o discurso do mestre possa produzir-se. DISCURSO DO MESTRE s Impossibilidade | s 5, ——-5, Discurso marcado pela vontade de dominio (maitrisse), 9 ‘ S, nele funciona como significante imperativo, que desco- nhece a verdade da sua determinagao e a sua unidade impossivel. Discur- so da vontade e da legislagao, a sua linha superior — S, —> S,— nos mostra, no nivel manifesto, a tentativa de constituir uma rede, desconhe- cendo 0 sujeito em sua divisdo. E justamente essa escritura, diz-nos Lacan em Televisdo (1975), que é a escritura da sugestao, de uma palavra desti- nada a fascinar, a dominar (Cf. Miller, G. 1977). O discurso do dominio solda-se com o discurso da unificagao, da tota- lizagao, excluindo o sujeito em sua divisao. Ss, © discurso do mestre esconde, assim, o seu segredo: 0 — mestre esta castrado. g € esse segredo que o discurso histérico desmascara. AO apresentar-se como idéntico ao seu proprio significante, 0 discurso do mestre instaura o campo de uma suposta palavra também idén- tica a si mesma. Lasteia a verdade de sua metalinguagem, sabe o verda- deiro sobre o verdadeiro ¢ tenta fazer desaparecer a barra que cruza 0 Outro. A eliminagao da falta 6 a condicéo da eliminagao da subjetividade que o discurso do mestre parece instalar. E o discurso da “eucracia’, discur- so m'étre (jogo de homofonia entre maitre e m’étre, que pode traduzir-sé como “ser-me"), que é, por exceléncia, o discurso da ontologia. © lugar do outro é ocupado pelo escravo, aquele que sabe. Lacan in- troduz a parelha senhor-escravo hegeliana na linha superior, marcandd, assim, 0 carater, a seu ver imaginaria, do desconhecimento da ordem sim- bolica que a define. oO e@scravo aparece como aquele que sabe por haver perdido o seu corpo, que quisera conservar em seu acesso ao gozo. Produz o objeto “a’, 9 mais-de-gozar, justamente porque queria conservar o corpo, que aqui 5¢ torna saber. E um saber que ndo deve tomar-se em seu sentido habitual, mas, tal como ja definimas, © conjunto dos outros significantes dos quais © 18 senhor se encontra desconectado, dividido, separado, ao apresentar-se como idéntico ao seu préprio significante. O corpo é, aqui, o lugar da inscrigao significante. Esse corpo, que o senhor arrisca e que o escravo prefere con- servar, 6, justamente, o corpo-sede da inscrigéo que faz o gozo e que pro- duz, como resto, 0 objeto “a”. O setor inferior da férmula nos mostra a disjungdo entre o S € 0 “a” que impede a articulagado da fomula da fantasia tal como apresentou Lacan: $ 0 a. Q “a", acessivel ao sujeito apenas através da realidade da fantasia, revela-nos a impoténcia do senhor para captar 0 objeto-causa de seu dese- jo, por mais que o escravo se lhe oferega. O senhor aparece separado de sua verdade subjetiva, desconhecendo o seu desejo. Sita Odiscurso da histérica é um modo fundamen- tal e particular de relagdo com a linguagem. ‘ Nao @ um discurso patoldgico no sentido tra- ry \ a Nac Ppatolog 8 __'mpoténcia _, | dicional. E 0 modelo por exceléncia do dis- | | | | \ DISCURSO DA HISTERICA " ~ curso do analisando, discurso cuja escuta fun- da, com Freud, a psicanalise e o seu produto central: o inconsciente. Dai que o S, esteja a 5.1! eolocado no lugar da produgao. O discurso histérico funda, assim, um saber, provoca a produgao de um saber (Cf. Cnemama, 1977). No lugar do agente, vemos surgir aquele que o mes- nm tre encobria: %, 0 sujeito dividido, que se apresenta i em seu carater sintomal a ser decifrado. O sintoma @ 0 que se apresenta, portanto, como a dominante s do discurso histérico, dominante que solicita a in- terpretacao. O S, 60 outro ao qual seu discurso se dirige. Aquilo que 8 >S1 dele espera sao significantes. Sua esperanga, sempre frus- trada, é que ele Ihe descubra o significante-chave de seu destino. Essa busca de significantes nos desvela a propria origem da su- gestibilidade histérica: buscando © significante-mestre (S,) de seu destino ahistérica se coloca nas mos do mestre a quem confunde com esse signi- ficante. Espera, pois, do significante, 0 caminho pelo qual se gesta a sua su- gestibilidade. E engravidada por esses significantes, sem ter acesso, por 19 ele, a0 objeto de seu desejo, — condenada a ser objeto do desejo do oy —, por isso mesmo solicita a interpretagao apenas para melhor rechaga-ig, No campo da verdade, vemos surgir 0 objeto “a”, objeig all s, que esta em disjungao com o saber. O discurso histériog produz redes que sempre deixam escapar o ‘objeto “a” Por nao poderem captura-lo. “Para a histérica, ¢ a impoténcia do saber 0 que provoca o seu discurso a animar-se do desejo, — o qual nos ensina em que 0 educar fracassa” (Cf. Lacan, 1970). . Ahistérica ndo descobre o “a” no outro. E ela que se torna objeto-causa de desejo para o outro. Enquanto objeto do desejo do mestre, cria um ho- mem animado pelo desejo de saber. Buscando nele seu S,, torma-se o sey objeto de desejo e cria, assim, um senhor sobre o qual reinar. O discurso do mestre nos colocava frente a suposta identidade entre o sujeito e o significante. Ja o discurso histérico, colocando a verdade do mestre (8) no lugar dominante, desmascara, juntamente com a sua divisdo, esse mal-entendido que, na espécie humana, constitui a relagao sexual. A férmula lacaniana “A relagaa sexual nao existe’? (Cf. Lacan, 1970) aponta para esse mal-entendido. A sexualidade no ser humano, o pariétre, © “falasser”, esta muito longe do acoplamento animal. Nela, o significante introduz 0 corte, a falta, cuja formula privilegiada 6 denominada — desde Freud — de castragao. A unidade dos contrarios “naturais” macho-fémea num todo reintroduz a problematica da unificagao que assinala © discurso do mestre. A unidade impossivel, a impossivel complementaridade sao, justamen- te, aquilo que o discurso da histérica apresenta como ferida aberta frente a0 projeto manolitico do mestre. Homem e mulher sda, no campo do “falasser”’, significantes, nao reali- dades bioldgicas. O mito da relagdo sexual como unido plena 6 a arena donde a histérica nos mostra a presenga de uma hiancia que ela sustenta através da promogdo de seu desejo como insatisfeito, que simboliza essa primeira insatisfagao que faz com que, na relagdo sexual, 0 portador do falo 0 oferega como presente a uma companheira supostamente desolada por nao o ter, reavivando, assim, a ferida da privagdo. O elxo da relagao sexual 6 0 significante falico, Tudo nela gira em torno de um sujeito que nao a tem — esta privado — e um outro que o tem, porém nao sabe o que fazer com ele. Ambos os membros estdo atravessados pela castragao, mas se tornam homem ou mulher somente apés haver transitado por ela: ..."o discurso da 3_No original, proporciin, NA. Utilizamos @ excalenta tradugao sugenda por J: Delmont Mauri O team? rancés “relation” joga com os dois sentidas possivels am casteinano: relagdo e propor’. 20 histérica demonstra que nao ha qualquer estesia do sexo oposto (nenhum conhecimento no sentido biblico) que dé conta da pretensa relacao sexual. “O gozo do qual se suporta é, como todos, articulado pelo mais-de-gozar, pelo qual, nessa relagéo, o parceiro n&o se alcanga: 1) para ele, vir mais que identificando-o ao objeto “a”, fato sem diivida indicado claramente no mito da costela de Addo, 2) para a virgem, mais que o produzir-se 0 falo, seja 0 pénis imaginado como érgdo da intumescéncia, seja o inverso da sua fungdo real. Dai as hiancias: 1) da castragéo na qual o significante mulher se inscreve como privagao, 2) da inveja do pénis, donde o signifi- cante homem é vivido como frustragao" (Cf. Lacan, 1970). Diante do discurso histérico, o mestre perde a sua mascara. Ele nado é idéntico ao S, (recordemos que um dos nomes possives do S, 4 0 signifi- cante falico), ele tambem esta castrado: “Assim, o discurso do mestre en- contra a sua razao no discurso da histérica, pois, ao fazer-se agente da onipoténcia, renuncia a responder como homem a quem lhe solicita sélo; a histérica nao obtinha sendo saber ... E 0 saber do escravo o qual, a partir do seu (do “seu” saber), ele ndo obteria que a mulher fora a causa de seu desejo (eu nao digo: objeto).” Assim, o discurso histénco sustenta, na sua linha superior, a fungao do pai idealizado para. na linha inferior, mostrar a queda dessa idealizagao atraves da incapacidade do saber em apoderar-se do objeto “a”, iluminando a castracao do pai. A fantasia da histéerica também nao pode escrever-se como Soa, escritura possivel apenas no discurso do analista; por isso, Lacan (1961, 19/04) formula-a como a — oA “@ CO discurso da universidade se apresenta DISCURSO DA UNIVERSIDADE como um prolangamento do discurso do mes- tre. Ea sua versdo moderna (segundo Lacan, “5 __Impoténcia_, | 0 discurso da burocracia). Aqui. 0 $2, 0 sa- Oy al | per, esta em posig¢ao dominante. O saber, dis- cursive nesse contexto, inscreve-se no fan- a tasma do saber como totalidade. O objeto “a” 8 g ocupa 0 lugar do outro para o qual o discurso se dirige, lugar do estudante, ou, como prete- re chamar-lhe Lacan, o “a” — estudante, que 6 quem realiza 0 trabalho. 21 O Eu do mestre 6 a verdade do discurso da Univers aquele que, — sem o saber, obedece ao sey imper, saber mais. O sujeito universitario sustentado pelo g mestre é um sujeito simulado, que supde um autor do. ber (irrompe novamente o sujeito unilario e voluntario), autor sobre o a Por sua vez se sustenta. s Esse discurso gera um produto sintomal (8) a dani. ~ frar que aponta para o discurso histérico. Aliinha gy. ‘ parior nos mostra uma relagao manifesta entre Osa. ber @ o objeto do cesejo, mito do ensinar como Pro- cesso educaliva. Esse ensinamento gera, finalman. fa, sintoma, ®, por isso, tamos, na linha inferior, Sus sujeito dividclo () am disjungdo com o S,, 0 signifi canté que origina a sua propria divisao. Q discurso do analista, reverso do discurso do mestre, implica, como tal, uma rendncia a lodo discurso de dominio, a toda tentativa de legislacdo. Ja Freud (1937) nos dizia que go- vernar, educar e psicanalizar eram trés tare- fas impossiveis. O discurso analitico adquire s -§ 0 Seu estatuto, renunciando, coma propunha . Freud, a toda tentativa de educagao ou de go verno. E um dispositivo através do qual se re produzira, para ser reencontrado pelo sujeit, , ele ou os significantes fundarnentais nos qua’s se viu capturado. A sua produgdo é, justame” te, 0 S,, significante que dara ao sujeito a cha: s. ve da sua divisao. DISCURSO DO ANALISTA O analista ocupa o lugar do agente na aparéncia a—>$% objeto “a”, aceitando cumprir assa fungao de rest da produgao subjetiva que 6 o “a”. Interroga. ponto, o Linlco sujeito da pratica psicanalltica “ 8 nao 6, enquanto tal, intersubjetiva — 0 analisando- uma interrogagéo que cuimina, entéo, com a Pr s, ¢éodo S,, signilicante através do qual o suj@ito Poo” a resolver a sua relagdo com a verdade, O ae at colocado am lugar da verdade, caracteriza 0 O™ 80 do analista. Lacan, am Aladiofonia , escrev® © 22 pelo contrario, por estar em progressao em relagao ao discurso da universi- dade — que 0 discurso do analista Ihe permitira xdelimitar o real do qual taz fungao a sua impossibilidade, seja que ele queira submeter-se a pergunta do mais-de-gozar que tem, ja em um saber, sua verdade, a passagem do sujeito ao significante-mestre,” "E supor o saber da estrutura aquilo que, no discurso do analista, tem o lugar da verdade" (Lacan, 1970). O saber colocado no lugar da verdade nos remete ao mito em sua articula¢do com a verdade. O saber mitico se opde ao saber do dominio, ao saber do mestre. O mito 6 o campo do semidito, que é a lei mesma, interna, de toda enunciacao da verdade. A verdade surge na andlise na dimensao do dito, do dizer em analise, de um dizer que nao é da planificagao consci- ente, 0 que Freud apontava ao estabelecer a regra da associacdo livre. Aregra fundamental propée ao sujeito criar por seu dizer, sem restrigao, a seqléncia das associagées livres. Assim, a verdade no contexto do dizer psicanalitico, aquele que, pela via da associagao livre, nos conduz as forma- goes do inconsciente, se opde a todo conceito de verdade fundado na pre- senga plena, na origem clara. A verdade 6, por isso, um posto em cada dis- curso, posto sempre latente, posto aberto a rotagao significante. E, pois, essa verdade a meias que 0 conceito de recalcamento freuciano formula: 0 dito entre linhas, entre letras, apesar de nds, palavra em chave do inconsciente, aquilo que nos define, enquanto analistas, como decifradores de um sistema significante que, se bem podemos conhecer sua légica, nao deixa, por isso, de se nos apresentar como uma incognita no comeg¢o de cada analise. Frente a pergunta o que é o saber como verdade, a resposta de Lacan é “um enigma”. O enigma é, por exceléncia, um dito a meias, — tal qual a quimera, meio corpo destinado a desaparecer quando se encontra a solu- ¢ao. Enigma de uma metade de sujeito, §$, que, situado como agente do discurso da histérica, se desenvolve no processo analitico. Como escuta-la sem responder em termos de saber, a nao ser pela busca do S, que, como sujeito, o constitui? . A estrutura do discurso analitico nos indica 0 caminho: colocando o saber no lugar da verdade, definigao, para Lacan, da interpretagao na qual se articulam o enigma e a citagao. . O enigma é uma “enunciagdo sem enunciado" que surge como possi- vel de ser colhido na trama mesma do dizer do sujeito. A citacdo é um “enunciado com reserva de enunciagdo" capturado no Prdéprio texto, reconhecido apenas no contexto do autor, marcado por sua pertinéncia a um certo discurso (Chemama, 1977). Essa caracterizacao do trabalho ani 0 abre a pergunta acerca des- se dizer que, em analise, torna-se acontecimento, cuja queda éo "a". © analista colocado no lugar da aparéncia do “a” é, pois, produto desse 23 dizer, seu dejeto. Dizer contingente que, no trabalho analitico, torna-se ne. cessario. Essa transformagao da contingéncia em necessidade de dizer da a. sociagdo livre leva-nos a tese lacaniana do sujeito suposto saber. J.A. Mille, (1979) assinala que 0 sujeito 6 suposto saber e nao pertence 4 fe logia da transferéncia. Inclui-lo nesse campo redunda na degradarao gp Proprio conceito, que 6 formula nos seguintes termos: “O sujeito supostg saber é transfenoménico, efeito constituinte da transferéncia, que deve dig. tinguir-se dos efeitos constituidos que o sucedem ... Se Freud da o co da formulacdo do sujeito suposto saber, ndo 6 de modo algum na fenome. nologia da transferéncia. E no enunciado, ou melhor, nos diferentes enunci. ados que ele deu da regra chamada fundamental, enunciado que Lacan, se se quer, estabiliza na expressao sujeito suposto saber ... A regra fundamen- tal, com efeito, convida o analisante a criar com 9 seu dizer, ¢ sem calcula, a seqiiéncia significante chamada de associagées livres, ou seja, nao re- cursivas ... Ela, nisso, é totalmente obrigatoria, ao estipular a sequinte res- trigdo: que toda restrigdo em sua criacado esta proibida, o que quer dizer que ela proscreve todo algoritmo que por calculo se daria ao sujeito.” A seqiiéncia aparentemente contingente do dizer do analisante toma- sé, através de sua transmissao no contexto analitico, necessaria: é esse efeito, em resumo, o que Lacan denomina sujeito suposto saber, fundador estrutural da transferéncia. O discurso psicanalitico instaura a especificidade da tarefa psicanaliti- ca ao redor da disposigao de quatro significantes-chaves. O exame de algu- Mas teorizagdes no campo da psicandalise mostra-nos o deslizamento que se produz, devido a falta de rigor tedrico, no proprio conceituar desses qua- tro significantes, até de outros discursos. Esse deslizamento € um traco inerente @ propria estrutura do discurso. Considero, sem divida, que o rigor ‘tedrico surge como uma necessidade da nossa pratica, definindo a especi- ficidade do discurso do analista, que tende a perder-se entre a multiddo de discursos “terapéuticos” e, Inclusive, “psicanaliticos" que se aproximam mais da didatica, dos sermdes ou do governo que da psicanalise. Podemos to- mar como exemplo aquelas formulagdes que, ao definirem o objeto da psi- canalise desde uma perspectiva, no meu entender, errada, culminam em Propostas apartadas do discurso analitico, __ O objeto “a" se enraiza, diziamos, na tradig4o freudiana do objeto par a da pulsso pce objeto do desejo. Seu carater de objeto parcial, de obje- era oad nel mages ares 2 om come nos dizia Freud, tora impose “real (1975a), ji otalizante"” quanto a um abjel Esse objeto paradoxal que o psicanalista descobre 6 que Lacan forma- 24 liza como objeto “a” tende a ser reabsorvido por uma teorizagdo convencio- nal que obscurece, juntamente com a sua originalidade, o proprio sentido da descoberta freudiana. Uma das raizes da inflexdo peculiar que sotre a nogao de objeto reside nos canceitos esbogados por Karl Abraham (1959). A obra de Abraham contém muitos elementos ainda hoje valiosos para o pensar psicanalitico. Porém, a partir dela, fol gerada uma série de confu- sdes centrais relativas a fun¢ao do objeto. Como Abraham entoca © problema do objeto? Estudioso, em.principio, da embriclogia, considera o objeto sob o Angulo da evolucdo maturativa dos instintos. O objeto da pulsdo é parcial como conseqiéncia da imaturi- dade do sujeito, da crianga nesse caso. A pulsdo deixa de ser uma subver- sdo do instinto, como Freud articulou, para achatar-se, em sua dimensdo. conceitual, ao ficar reduzida a uma problematica da imaturidade perceptual ou outra, que substitui a dimensdo do desejo e a sexualidade perversa po- limorfa dos Trés ensaios. O objeto do desejo, o objeto da pulsdo viram-se em diregdo a problematica do objeto de amor. Surge, entdo, a oposicdo entre 0 amor parcial e 0 amor total; 0 primeiro, imaturo, o outro, maduro. O adjetivo total, ausente da obra de Freud, exceto no contexto do nar- cisismo, apodera-se da cena analitica. O amor deve totalizar-se. Desenha- se, assim, um novo modelo: 0 objeto de amor total (toda a pessoa), € o objeto pds-ambivalente (Eros e Tanatos fusionados em uma unidade que elimina a ambivaléncia, entendida tao somente em sua vertente amor-ddio, representante Unico e direto da oposigdo fusional do Além do principio do prazer). 0 mito da unicidade projeta-se sob uma nova mascara no campo da psicanalise: o amor objetivo, genital, pés-ambivalente. Essa unicidade as- sim reintroduzida marca, ndo apenas a unidade do sujeito e do objeto, como também a unidade e a harmonia entre o sujeito e o real, a unidade conse- guida do sujeito consigo mesmo. O sujeito dobra-se ante o principio da realidade: passa de uma aper- cep¢ao iluséria do mundo ao servigo do principio de prazer (tese que sus- tenta grande parte do desenvolvimento da crianga na teoria kleiniana que 86 encontra como continuagéo direta com a de Abraham) a uma plena cap- tagao do real. _ © objeto parcial da pulsao, porem, ‘@ a marca que constitui, em sua fepetico incessante, 0 objeto do desejo nao sao erros perceptivos, nao sao “percebidos” como parciais devido a uma imaturidade da percepcao que se articula, em algumas teorias, com o conceito de fortaleza instintual que potencia a deformagao da imaturidade. Estruturam-se como tals pela agao do significante, ndo por uma suposta debilidade da crianga, pequeno selvagem necessitado de salvagao (Cf. Lacan, 1973). 25 O processo primario busca a identidade de percepcao, e ela d da insisténcia da cadeia significante. O processo secundario busca aj tidade de pensamento, ¢ ela depende, também, de uma cadeia significant, nao de uma realidade pré-estabelecida. * Nossa fungdo, enquanto analistas, @ colaborar no advento @ no repo, nhecimento do desejo inconsciente, fun¢éo que se indica no discurso do analista, através desse impossivel que, no manifesto, articula a sua primgj. ra linha: $ <> “a", a formula da fantasia, através da qual o “a” chega ao sujeito. Nossa fun¢do se afasta, pols, da onlopedia do desejo. Nao cremos que tornar consciente o inconsciente seja sindnimo de “secundarizar’, dg adaptar o desejo ao processo secundario, formula¢ao que somente se pode sustentar no desconhecimento dos enunciados da teoria freudiana. Fazer surgir 0 objeto-causa de desejo do dizer do analisante nada tem que ver com uma suposta adequa¢do do paciente a “realidade", no sentido habitual do termo. Nao implica qualquer juizo sobre qual seja 9 melhor objeto para o sujeito, a nao ser a recuperagao da sua dignidade enquanto sujeito. Em seu Seminario sobre a transferéncia (1961), Lacan assinala que a dignidade do sujeito toi confundida com a sua individualidade enquanto cor- poralidade. O advento do desejo na analise marca, pelo contrario, esse algo irredutivel, Unico. insubstituivel, essa relagao privilegiada a qual culmi- namos enquanto sujeitos no desejo. A realizagao do desejo nao é a posses- sao de um objeto, mas a emergéncia, como tal, da realidade do desejo. Frente a proposta lacaniana, alga-se a figura do analista “mestre", aquele que sabe (S, no lugar de agente) antes onde esta a verdade do sujeito. Corrigir sua “parcialidade perceptiva’, corigir sua visdo fantasmatica dos outros, conhecer o “todo” desses outros (o grande Outro obviamente nao existe), dos outros imaginarios que aqui deslizam, seria essa a fungao do analista. Curioso contra-senso, aquilo que, em sua estrutura, sustenta 0 drama subjetivo passa pelo reconhecimento da auséncia, da falta sobre 4 qual 0 Outro se apdia, se sustenta. Esse drama se chama castragao. Esse deslizamento que gira em torno do nado reconhecimento da cas- tragao, do carater estruturalmente cindido do S, cai facilmente na queda do discurso do senhor. Nao somos, entao, apenas mestres, somos senhores idénticos a nosso prdéprio significante, por exemplo, “o analista", cuja carica- lura grotesca brota na mania interpretativa do “aqui, agora, comigo" a todo custo. Confundimos o sujeito suposto saber que opera de maneira transte- nomenica na transteréncia com nossa propria pessoa. Somos a satide, 4 maturidade, o modelo saudével e salvador, Identificando-se a ele, 0 anall sante chegara a sua realizacao. Oscilamos, entéo, entre uma variante do discurso universitério, 98 26 qual a analise se torna aprendizay J8M € o inconscis b ceptiva. Liberamos 0 sujeito de s sciente deformagao per: S ‘6U erro, permitindo-lhe alcancar o “real” —euma variante do discurso do mestre, cuja linha superior ora, diriamas, da sugestao, desnudando a tendéncia a lagislar od C esejo — como se isso fosse possivel —, oferecendo-nos como modelo da plenitude subjetiva, manchando 0 nosso discurso, sem conseguir, jamais, o todo, a barra que cruza 0 Outro, A. , A A em AMbOS os casos, estamos longe do saber como verda- > le, possivel, apenas, aceitando ser esse desejo do discur- . 0 do analisante, que é o objeto “a”, e abrindo a pergunta obrigatoria sobre a verdade de nosso desejo enquanto psicanalistas (1978). REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Abrahan, K. (1989). Un breve estudio de la evalucién de la libido a la luz de los wanstornos mentales, cap. XXIV, en Psicoandilsis Clinico, Paidds: Buenos Aires. Chemama, R. (1977). A propos du aiscours oe Nhysterique. Lettres de I'Ecole Freudi- enne de Paris, n° 21, 1977. Freud, S. (1895). 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