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O museu pós-moderno. O Museu Guggenheim de Bilbao.

O museu é o espelho colossal, no qual cada


homem se autocontempla em cada aspecto,
finalmente acha-se literalmente admirável, e
abandona a si mesmo no êxtase expressado
em todas as artes.

Georges Bataille 1

4.1
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O museu pós-moderno

4.1.1

Modernismo e pós-modernismos

Até a criação do Centro Georges Pompidou, a história do conceito de


museu e de seu estabelecimento institucional pode ser entendida como uma
sucessão de histórias institucionais individuais, que abrigaram diacronicamente os
debates museológicos mais significativos de suas épocas. Essa história remonta a
Paris em 1790 (com o Louvre pós-revolucionário); na segunda metade do século
XIX, sua narrativa volta-se para Londres (com a reformulação do British Museum
e a criação do Victoria & Albert Museum), e no início do século XX transfere-se
para Berlim (concentrando-se na Ilha dos Museus e no Altes Museum). Em
Seguida, em 1929, com a fundação do MoMA-NY, ela se transfere para os EUA

1 BATAILLE, Georges, Museum. (1930) In: Dictionnaire critique. apud LEACH, Neil (1997).
Rethinking Architecture – a reader in cultural theory. London/New York: Routledge, 2001, p.
300.
172

(com a arte moderna incorporada), retornando à França nos anos 1970 com a
criação do Beaubourg2 .

Esta história poderia ser construída a partir de outros ângulos, como o das
proposições dos curadores – Dominique-Vivant Denon (Louvre), Wilhelm Bode
(Ilha dos Museus), Louis Hautecœur (OIM), Alfred Barr (MoMA-NY) e Pontus
Hulten (MNAM-Fr), entre os mais importantes. Esta história também poderia ser
escrita a partir da apresentação, em seqüência, dos edifícios projetados para os
museus, como o do museu de Kassel (1769-1777), o do Museu do Prado (1784), o
da Gliptoteca de Munich (1816-1830), o da Alta Pinacoteca de Munich (1826-36),
o do Altes Museum (1823-30), o do British Museum (1823-47) e ainda o do
MoMA-NY (1939), o do Museu do Crescimento Ilimitado (1929), o do Museu
para Cidade Pequena (1942) e o do Guggenheim de Nova York (1943-58),
modelos aqui estudados3 .
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Conforme a história do conceito de museus, foi o advento do Centro


Georges Pompidou, sob a égide de Pontus Hulten, que coroou a transformação da
narrativa museológica linear e hegemônica da arte moderna, iniciada pelo MoMA-
NY, em múltiplas narrativas. Esta nova prática expandiu-se para outras
instituições, tornando-se um novo modelo. Os museus abriram-se para novos e
antigos artistas que não estavam inseridos no circuito institucional, e novas
curadorias sugeriram outras possibilidades de leitura, tanto da arte do passado
como da de seu próprio tempo.

A partir dos anos 1980, o estabelecimento de modelos conceituais e de


realização únicos tornou-se cada vez mais restrita, em meio à crescente
pluralidade. Há poucas instituições cujas práticas metodológicas são referenciais,
como o foram as de meados do século XX. Grande parte das instituições adapta as
práticas reconhecidas, aplicando-as de acordo com seus próprios contextos

2 A história da evolução do conceito de museu é contada por SCHUBERT, Karsten. The


curator’s egg. The evolution of the museum concept from the French Revolution to the
present day. London: One-Off Press/Christie’s Books, 2000.
3 A história dos museus segundo seus edifícios foi escrita, entre outros, por PEVSNER, Nikolaus.
Museos, In: ______. Historia de las tipologias arquitectonicas. Capítulo 8. Barcelona: Gustavo
Gili, 1980.
173

(nacional, político, cultural e econômico). Muitas questões são partilhadas entre as


instituições, como adaptações da arquitetura, metodologia de exposição,
enfrentamento de intenções políticas externas aos objetivos do museu, conflitos
entre fundos privados e do Estado e, no caso de instituições dedicadas à arte
contemporânea, relacionamento com os artistas. O resultado das práticas
institucionais é bastante diferenciado, muito embora os problemas sejam comuns,
instaurando-se um processo autocrítico e auto-analítico a partir da década de
19604 .

De um ponto de vista mais amplo, essa transformação das diretrizes do


conceito de museu – de centrada em um discurso homogêneo e linear para
múltiplas narrativas – está em consonância com seu tempo, como parte da
alteração do discurso hegemônico da modernidade, a grande narrativa, para os
múltiplos discursos que caracterizam a chamada pós-modernidade. A história
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apresentada pelos museus através de um discurso linear iniciou-se com a


constituição do conceito de museu iluminista e foi revisada junto com os limites
do moderno.

Fredric Jameson aponta as origens do que denomina pós-modernismo em


um conjunto de rupturas ocorridas no fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960,
com a atenuação dos princípios do movimento moderno5 . O aparecimento do pós-
modernismo está relacionado com a canonização e institucionalização acadêmica
do movimento moderno, que remonta ao fim da década de 1950. A continuidade
do estilo internacional na arquitetura, o expressionismo abstrato na pintura, o
existencialismo filosófico são alguns exemplos do impulso final do modernismo
que se exauriu na sistematização. A geração surgida nos anos 1960 confrontou-se
com um modernismo situacionista, acadêmico, ao invés do oposicionismo dos
áureos tempos.

4 Os problemas e as práticas dos museus atuais são abordados por SCHUBERT, Karsten. Op. cit.,
p. 67.
5 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria
Elisa Cevasco. Rev. Trad. Iná Camargo Costa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
174

No âmbito da arquitetura, os problemas estéticos foram mais frontalmente


encarados e articulados do que em outros campos, e serviram de base para a
emersão da teoria de Jameson. A valorização do vernáculo promovida por Robert
Venturi6 chamou a atenção de Jameson para o aspecto populista dessa nova
proposta, dirigindo sua atenção para o caráter fundamental e presente em todos os
pós-modernismos, que é “o apagamento da antiga (característica do alto
modernismo) fronteira entre a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou
comercial”7 , mais evidente no caso da arquitetura.

O termo pós-modernismos é aqui apresentado no plural, tal como Jameson


o cita, não somente para manter a coerência com o autor em questão, mas para
reforçar esse aspecto plural. Decorrida mais de uma década após o lançamento do
livro do crítico norte-americano (1991), as teorias do pós-moderno multiplicaram-
se, e o significado do termo vem-se alterando paulatinamente. Pós-modernismo é
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um termo com diferentes significados, em diferentes conceitos, e não cabe aqui


mapeá-los.

O ponto de vista de Jameson é adotado neste trabalho por abordar a


questão da cultura neste novo estágio socioeconômico, possibilitando cerzir os
diversos aspectos da instituição-museu. Para Jameson, qualquer ponto de vista a
respeito do pós-modernismo na cultura é necessariamente uma posição política
sobre o capitalismo multinacional. O pós-modernismo é entendido não como um
estilo, mas como uma dominante cultural do capitalismo tardio. Sociedade pós-
industrial, sociedade de consumo, sociedade das mídias, sociedade da informação,
sociedade eletrônica ou sociedade high-tech, são termos adotados por outros
campos de conhecimento, cujas interpretações, assim como as teorias do pós-
moderno, demonstram como a nova formação social não mais obedece à lógica do
capitalismo clássico e da luta de classes8 .

6 VENTURI, Robert. Complexidade e contradição na arquitetura (1966). Trad. Álvaro Cabral.


São Paulo: Martins Fontes: 1995.
VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; COTT BROWN, Denise. Learning from Las Vegas:
The forgotten symbolism of architectural form. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1977.
7 JAMESON, Fredric. Op. cit., p. 28.
8 Ibid., Introdução.
175

Conforme apontado no capítulo anterior, Jameson apóia-se na teoria de


Ernest Mandel, cujo livro Capitalismo Tardio demonstra o estágio do capitalismo
nesta nova sociedade. Mandel delineia três rupturas fundamentais na evolução do
sistema capitalista: o estágio do capitalismo de mercado, o do monopólio ou do
imperialismo e o do capital multinacional, entendido como o estágio puro do
capital. Jameson corresponde sua periodização cultural ao esquema do capital de
Mandel: realismo, modernismo e pós-modernismo9 .

Segundo Jameson, a era da informação ou da sociedade de mídia é uma era


na qual, além de o capital atingir sua pura forma, os métodos industriais atingiram
outras esferas, como a do lazer, a do esporte e a da arte. A mecanização, a
estandardização, a superespecialização e a divisão do trabalho, que no passado
pertenciam ao âmbito da produção industrial, penetraram em todos os setores da
vida social. A cultura na época do capitalismo tardio já não é dotada da
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autonomia, ainda que relativa, dos momentos anteriores. A cultura expandiu-se


por todo o domínio do social, até o ponto em que tudo da vida social pode ser
considerado como cultural, dos valores econômicos ao poder do Estado.

No entanto, Jameson ressalva que nem toda produção cultural pós 1960 é
pós-moderna, em seu sentido mais amplo. O pós-moderno é um campo de forças
com variados impulsos culturais, e, quanto mais nos afastamos do período de
formulação das teorias pós-modernistas, mas isto se esclarece.

No que concerne às relações do campo da arte com o da arquitetura, em


fins da década de 1980, o termo pós-modernismo foi muito bem circunscrito por
Yve-Alain Bois, em função daquele a que se opõe diretamente, o modernismo 10 .
Embora os dois termos tenham histórias diferentes, eles têm adquirido uma
mesma significação dentro dos dois campos, uma das conseqüências do pós-
modernismo. Os arquitetos rejeitaram a arquitetura moderna em bloco. Nas artes
visuais, ao contrário, o pós-modernismo atacou primeiro a teoria modernista, em
lugar das obras.

9 No capítulo anterior, o esquema de Mandel foi apresentado segundo as variações tecnológicas.


10 BOIS, Yve-Alain. Modernisme et postmodernisme. Encyclopedia Universalis. Symposium
des Enjeux, III – Création et Culture, v. 1, 1988, p. 473-490.
176

Yve-Alain Bois esclarece que, na França, o termo modernismo nas artes


visuais circula nos textos que comentam a teoria norte-americana do moderno. O
historiador da arte parte da definição de modernismo como teoria da arte moderna
articulada por Clement Greenberg. Na leitura de Greenberg, uma parcela da arte
depois de Manet almejava sua redução e sua purificação, através da circunscrição
de seus próprios limites e da eliminação de tudo o que não fosse essencial a cada
linguagem artística. Estava em acordo com Mondrian, para quem cada arte
marchava, depois de um século, em direção a seu grau zero – busca da autonomia
e autocrítica total de cada uma das linguagens, do que lhe é essencial –, à plena
manifestação de sua essência em toda a sua pureza.

O ponto de vista greenberguiano repousa sobre a necessidade de


determinar critérios de avaliação internos à arte e à lógica de seus meios, e
coincide com o ponto de vista de grande parte de artistas do século XX. No
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entanto, Greenberg sabia que todo grau zero era um mito. Mesmo assim, ele
conduziu sua teoria ao dogmatismo. Embora essa teoria possa ser aplicada à maior
parte da arte moderna, ela não dá conta de sua totalidade, excluindo movimentos
como o surrealismo e a pop art. Como uma teoria geral da arte moderna, ela se
tornou uma teoria restrita, que já não se ocupava dos fenômenos artísticos da
década de 1960, cujos artistas também já não se identificavam com ela.

Os primeiros a questionarem a teoria modernista foram os próprios


artistas, inicialmente Robert Rauschenberg, Robert Ryman e, depois, os
minimalistas. Estes últimos rejeitaram a exclusão da teoria modernista e
propuseram uma arte em termos de inclusão, considerando o espaço real e
estruturas híbridas (arquitetura e objeto, arquitetura e paisagem, não-arquitetura e
paisagem).

O limite da teoria de Greenberg foi reconhecido pela crítica


contemporânea, em razão de sua incapacidade de analisar os fenômenos artísticos
a partir da década de 1960. A visão da história do discurso modernista se
apresentava como uma sucessão de peças enfileiradas, a partir de Manet,
culminando no color field. Em 1972, Rosalind Krauss criticou a concepção linear
da história, a favor de uma concepção mais dialética. Como muito bem aponta
177

Yve-Alain Bois, o limite da teoria greenberguiana reside na incapacidade de


pensar a historicidade e sua própria situação histórica.

A visada essencialista de Greenberg o impediu de conceber o grau zero de toda


arte como um signo vazio e historicamente mutante, o impediu de analisar a
instituição artística como uma das condições históricas da arte, produtora de
julgamentos de gostos históricos determinados.11

A demonstração dessa limitação está presente na incompreensão de


Greenberg da obra de Marcel Duchamp. Os ready made de Duchamp anunciaram
uma das condições fundamentais da arte do século XX: para que uma obra seja
percebida como obra de arte, é suficiente que ela esteja no museu, ou seja,
integrada em uma série histórica.

O processo de ampliação do campo da arte – interno a ela própria –,


ocorrido a partir da década de 1960, alterou sua relação com o espaço expositivo.
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Os artistas foram se tornando conscientes da estrutura linear e do espaço de culto,


este, legado sobretudo da última fase do modernismo americano. A força estética
que a parede e o recinto da galeria adquiriram tornou possível modificar o
conteúdo do que era colocado sobre e dentro deles. O contexto da arte começava
então a se transformar, ele próprio, em conteúdo. O Minimalismo teve uma atitude
contestatória em relação à riqueza, ao poder e à sociedade, buscando redefinir a
relação do artista com as instituições12 . Estas, por sua vez, transformariam sua
prática interna, obedecendo não somente à sua ampliação e aos novos conceitos
artísticos, mas à lógica do mercado.

4.1.2

O museu sem paredes

O museu mudou progressivamente ao longo dos dois últimos séculos, de


instituição iluminista com preceitos pedagógicos para empresa geradora de

11 BOIS, Yve-Alain. Op. cit.


12 A transformação dos espaços expositivos em função da própria arte foi tratada por Brian
O’Doherty, No interior do cubo branco, op. cit., p. 19. A ampliação do campo da arte foi
analisada por KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Gávea – Revista de História
da Arte e Arquitetura. Rio de Janeiro: Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura
no Brasil, PUC-Rio, n. 1, p. 87-93, [s. d.].
178

proventos. Este é o museu a partir dos anos 1980, que, na falta de uma
nomenclatura mais adequada, é aqui denominado pós-moderno. Tal como
Jameson havia apontado, o museu na era da cultura de massa incorporou os
procedimentos industriais13 . O museu pós-moderno é uma empresa que, como
todas as outras, busca altos índices de produtividade. Os grandes museus têm
atualmente departamentos de marketing e de desenvolvimento, raridades no início
dos anos 1990.

A audiência tornou-se a chave do sucesso e a questão central do


reconhecimento. As maneiras de se referir àquele que observa a obra foram se
transformando: observador, visitante, espectador e público são expressões que
revelam a ideologia museológica, mas sobretudo a concepção da relação do
observador para com o objeto artístico observado. Para Karsten Schubert, a
história do museu, da Revolução Francesa aos dias atuais, pode ser vista como um
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deslocamento gradual do público da periferia para o centro da prática


museológica, do século XVIII, no qual os visitantes eram vistos como imagem do
curador, admirador solitário, letrado e recluso, até os anos 1980, quando o público
se tornou o interesse central da instituição14 .

Para Rosalind Krauss, em termos conceituais, a releitura de importante


obra sobre museologia, de meados do século XX, desempenhou um papel de
legitimador do novo museu. A tradução de Le Musée Imaginaire (1947), de André
Malraux, para o inglês, por The Museum Without Walls, reflete a maneira
equivocada como seu conteúdo foi entendido. Em francês, a idéia-mestra de
Malraux trata o espaço puramente conceitual das faculdades humanas: a
imaginação, o conhecimento, o juízo. Em inglês, designa um lugar físico. No
entanto, o livro de Malraux não aborda especificamente as questões de arquitetura

13 JAMESON, Fredric. Op. cit.


14 SCHUBERT, Karsten. Op. cit., p. 70. A passagem que Schubert nos aponta é importante para
pensar o deslocamento histórico da ênfase operada no objeto para o sujeito, a ser abordada adiante,
partindo da proposta do Minimalismo .
179

ou do lugar físico das obras; a questão, para Rosalind Krauss, situa-se na maneira
como a proposta de Malraux foi lida e compreendida nos anos 198015 .

O Museu Imaginário foi concebido por André Malraux como um campo


aberto à imaginação do espectador, em uma releitura moderna da própria idéia do
museu, na qual este era terreno da universalização do poder do artista e do ato
criador. No entanto, em meados da década de 1980, a concepção de Malraux foi
entendida como uma espécie de profecia para a alteração que se processava,
determinada por um viés da crítica pós-modernista.

As possibilidades ilimitadas de construção de uma leitura individual do


espectador, propostas por Malraux, foram entendidas como antecedentes do pós-
modernismo. Malraux propõe disponibilizar ao observador a multiplicidade de
formas artísticas, deixando-o livre para construir sua própria leitura da arte.
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Segundo Rosalind Krauss, a implosão cultural que marcou a prática estética dos
anos 1980 entendeu a proposta de Malraux como uma colagem de estilos
históricos, em um período no qual a arte elevada (alta cultura) e a cultura de
massas só se imitavam16 .

Na compreensão pós-moderna, a releitura do passado proposta por


Malraux tornou-se um pastiche, e o museu imaginário foi transformado em campo
de exploração de todas as direções. Traduzido por museu sem paredes (Museum
without walls), surge como um novo lugar físico, uma nova arquitetura.

Como exemplos de novos edifícios, Rosalind Krauss aponta o Stadtisches


Museum Abtielberg Monchengladbach, de Hans Hollein, e o Museum Für
Kunstlandwerk, de Richard Meier, em Frankfurt, que não têm afinidades em
termos formais e, em termos de agenciamento de layout interno, dizem muito
pouco, porque a experiência espacial transcende a parede e o piso como
obstáculos17 . Em termos conceituais, a idéia é abrir um campo perspectivo sobre

15 KRAUSS, Rosalind. Le musée sans mur du postmodernisme. Les Cahiers du MNAM. Paris:
Centre Georges Pompidou, n. 17-18, L’œuvre et son accrochage, p. 152-158, 1986.
16 KRAUSS, Rosalind. Le musée sans mur du postmodernisme. Op. cit.
17 Ibid.
180

diversos planos; nas paredes, inesperadas aberturas que permitem avistar um


objeto ao longe, construindo referências entre as obras da coleção.

A circulação é simultaneamente física e visual, através de aberturas nas


separações, janelas internas e balcões abertos. O olhar é constantemente solicitado
por outra coisa, motivado pelo interesse e pela distração. Segundo Rosalind
Krauss, é a descoberta do museu como mercado de pulgas.

Retomo Fredric Jameson – cuja leitura é a base da teoria do museu de


Rosalind Krauss –, para quem o espectador pós-moderno é solicitado a ver todas
as coisas ao mesmo tempo – no caso, obras diferentes, sem unidade, com questões
próprias e radicais, inseridas em um espaço arquitetônico que está além das
capacidades “do corpo humano de se localizar, de organizar o espaço circundante
e mapear cognitivamente sua posição em um mundo exterior mapeável”,
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concluindo uma experiência de desorientação18 . Resta-nos formular a seguinte


questão: o espaço museológico e o discurso linear moderno teriam sido
substituídos por um espaço aberto e de desorientação, no qual o juízo estético é
desmerecido em face de um discurso de inclusão?

4.1.3

Minimalismo e museu pós-minimalista

Segundo Fredric Jameson, na época do capitalismo tardio, as operações da


indústria atingem outros campos, como o lazer e a arte, e a idéia de cultura é
ampliada a todas as instâncias da sociedade19 . Apoiada na teoria de Jameson,
Rosalind Krauss analisa as transformações operadas nos museus de arte moderna
no início dos anos 1980. Essa autora é uma das primeiras a denunciar a
apropriação dos discursos e práticas artísticas para fins estranhos a elas,

18 JAMESON, Fredric. Op. cit., p. 70.


19 Ibid.
181

exemplificando a maneira como o Minimalismo foi utilizado por Thomas Krens,


como parte de uma estratégia para legitimar a nova concepção do museu20 .

Rosalind Krauss identifica a existência de uma tendência de tratar a


coleção do museu como patrimônio capital, em lugar de cultural. A fim de
enfrentar a crise do espírito do mercado livre dos anos 1980, diretores e trustees
de museus norte-americanos colocaram partes dos acervos em circulação,
convertendo-as em recursos financeiros. O museu guardião do patrimônio público
foi substituído pelo museu como entidade corporativa, com alto inventário
comercial e elevadas expectativas de crescimento. Ocorreu uma reestruturação do
original estético pelo mercado, através da transformação da obra como patrimônio
em obra como recurso financeiro21 .

No capitalismo tardio ou pós-industrial, a infra-estrutura necessária para


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suportar a conexão das diversas atividades especializadas em rede é baseada em


um sistema internacional de comércio e de crédito. O que torna possível esta
industrialização expandida é o excedente de capital não investido, que circula de
acordo com as margens de lucro. O capitalismo tardio atinge o mundo dos museus
quando o acervo passa a ser visto como excedente de capital não investido,
embora o mercado em questão seja o mercado de arte, e não o mercado de massa,
e o modelo de capitalização não seja o industrial, mas o do comerciante de arte.

Rosalind Krauss aponta que uma das instituições que mais aderiu a essa
lógica foi a Fundação Guggenheim. Seu diretor, Thomas Krens, passou a se referir
ao museu utilizando termos emprestados da linguagem econômica, como indústria
do museu, overcapitalização, fusão, aquisições e administração de recursos, em
lugar de obras. Ele aplicou também termos da indústria referindo-se às atividades
do museu, exposições e catálogos, como produtos.

A reformulação do museu coincidiu também com uma revisão crítica do


Minimalismo. Rosalind Krauss analisa a maneira como o Minimalismo foi

20 KRAUSS, Rosalind. The cultural logic of the late capitalist museum. October. The second
decade 1986-1996. Cambridge: The MIT Press, 1987, p. 427-441.
21 KRAUSS, Rosalind. The cultural logic of the late capitalist museum. Op. cit.
182

utilizado por Thomas Krens como emblema para legitimar a nova concepção do
museu.

Em 1990, Thomas Krens, entrevistado por Rosalind Krauss, discorreu


sobre seu entendimento da transformação da natureza dos museus. Ele
apresentava a falência da natureza enciclopédica do museu e de suas salas de
escala reduzida. Como alternativa, propunha investir no aspecto cumulativo de
determinada obra, selecionando poucos artistas e expondo-os mais
profundamente. Tratava-se sobretudo de uma mudança de discurso institucional e
da maneira como a arte é entendida, da substituição de um discurso diacrônico por
um sincrônico.

O museu diacrônico reúne as obras segundo sua própria leitura da História


da Arte. O museu sincrônico antecede à história em nome da intensidade da
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experiência estética, que não é tanto temporal (histórica), mas substancialmente


espacial. Para Krens, o modelo dessa qualidade de experiência se dá a partir do
Minimalismo. O Minimalismo mudou a maneira de o observador olhar a arte e
também nossa demanda em relação ao olhar. A partir dele, necessitamos
experimentar o objeto em relação ao espaço no qual ele é inserido, assim como
necessitamos da acumulação crescente, quase serial, dessa experiência.

Rosalind Krauss admite a existência de uma contradição interna do


Minimalismo, que permitiu sua apropriação por um tipo de discurso estranho à
arte. Duas questões abrem essa possibilidade: a reprodutibilidade do original
estético através da incorporação da tecnologia industrial e a revisão do sujeito.

A ruptura com a idéia de estética do original fez parte das questões iniciais
do Minimalismo, em vários trabalhos das décadas de 1960 e 1970, gerando
problemas no mercado de arte. Alguns trabalhos traziam em si o estatuto
conceitual da replicação, permitindo a refabricação dos objetos. Algumas vezes, a
refabricação do objeto era feita pelo próprio artista, para substituir uma peça
danificada. Em outros casos, os projetos (plantas e desenhos) foram vendidos a
colecionadores, junto ou separadamente do seu objeto original, permitindo que o
183

colecionador refabricasse certas peças22 . A valorização mercadológica das obras


minimalistas incentivou a reduplicação das obras. Rosalind Krauss aponta a
superposição da reestruturação do original estético pelo mercado, ocorrida através
da própria arte, ao fazer uso da tecnologia da produção de massa, e através da
transformação da obra/patrimônio em recurso financeiro.

O outro ponto contraditório do Minimalismo é a negação do objeto


artístico como um encontro entre duas entidades previamente fixadas: o trabalho –
como um depositário de formas conhecidas, cubo ou prisma, com um tipo de
geometria apriorística – e o observador – como um sujeito biograficamente
elaborado, integral, um sujeito que capta cognitivamente estas formas, porque as
conhece previamente.

Para realizar a interface entre o trabalho e o observador, é preciso retirar


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tanto a inteireza do objeto quanto a autoria absoluta do artista para colocar em


evidência, antes de mais nada, a natureza do encontro entre ambos. A opção pela
utilização da tecnologia industrial foi feita nestes termos, para corroer a noção
idealista de criatividade autoral e reestruturar a noção de sujeito observador.

Não se trata da idéia de “morte do autor”, ou de criar um observador todo


poderoso, mas de colocar em suspensão a noção de sujeito. Não se trata tampouco
do velho sujeito cartesiano, nem do sujeito biográfico tradicional, mas do que
Rosalind Krauss chama de sujeito minimalista. Este estabelece relações, é
contingente das condições do campo espacial e adere um momento após o outro
no ato da percepção. Trata-se do sujeito descrito por Merleau-Ponty em A
Fenomenologia da Percepção. O sujeito de Merleau-Ponty não é espectador; sua
experiência passa pela primazia da vivência do corpo. A imersão do corpo no
mundo estabelece a “experiência pré-objetiva” e serve como pré-condição de
significação do mundo percebido23 .

22 O protesto contra a refabricação partiu dos próprios artistas, Donald Judd e Carl Andre
(KRAUSS, Rosalind. The cultural logic of the late capitalist museum. Op. cit.)
23 KRAUSS, Rosalind. The cultural logic of the late capitalist museum. Op. cit.
184

O Minimalismo incorpora essa noção de imediaticidade da experiência


entendida como imediaticidade do corpo, a partir da vivência do corpo,
libertando-se da experiência eminentemente visual e descorporificada da pintura
abstrata modernista. Segundo Rosalind Krauss, a revisão do sujeito pelo
Minimalismo, recuperando-lhe o corpo como condição básica da experiência em
detrimento da visualidade autônoma, objetivo da pintura óptica, recupera também,
num ato de resistência contra a serialidade e a banalização da produção de bens de
consumo, um sujeito plenamente corporal e profundamente estético.

Mas, ao mesmo tempo em que o Minimalismo luta contra o mundo de


cultura de massa (com suas imagens comerciais descorporificadas) e cultura de
consumo (com os objetos banalizados), ao fazer uso dos métodos materiais
industriais, abre uma brecha para o mundo da produção capitalista. Nesse
momento, Krauss se pergunta: como um movimento que se pretendeu ser contra a
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banalização do mundo em mercadoria e a primazia da tecnologia pode carregar os


códigos de seu oposto? Como uma arte que insiste na especificidade pode
programar sua própria violação? A resposta, Rosalind Krauss a encontra no
conceito de revolução cultural de Jameson e na leitura que esse autor faz para
compreender como a lógica do capital funciona na arte moderna.

Este tipo de paradoxo é comum na história da arte na era do capital. Na


arte moderna, ao oferecer resistência a uma manifestação particular do capital, o
artista produz uma alternativa ao fenômeno que pode ser lida em outra versão, em
função dele ou favorável a ele. Por revolução cultural, compreenda-se que,
enquanto o artista tenta criar uma alternativa utópica para o pesadelo induzido
pela industrialização ou pelo consumo, ele está, ao mesmo tempo, projetando um
espaço imaginário formado pelas mesmas características estruturais que produzem
o pesadelo, sugerindo a possibilidade de ocupar um território que poderá ser um
nível mais avançado do capitalismo.

No caso do Minimalismo, não somente o objeto poderia ser tomado pela


lógica da produção de bens; também o sujeito poderia ser reprogramado. A partir
da vivência corporal, o sujeito-experiência, fundido no momento do encontro com
o objeto, poderia ser empurrado mais adiante e ser quebrado até o sujeito
185

fragmentado pós-moderno da cultura de massa, o que pode ser sugerido a partir da


perda do antigo sujeito de ego centralizado da arte tradicional. Desta maneira, o
Minimalismo, sem a intenção, prepara a fragmentação do sujeito pós-moderno.

No entanto, Rosalind Krauss ressalta ainda, há que se diferenciar o sujeito


minimalista, da experiência vivenciada do corpo da década de 1960, do sujeito
disperso e submerso em um labirinto de signos, do pós-modernismo do final da
década de 1980. Este é o sujeito que não percebe, que fica atordoado para
decodificar os signos ao seu redor, o sujeito que se tornou foco de várias análises
do pós-modernismo. Nestas, o espaço não mais é dominado pelo sujeito; trata-se
de um espaço grandiloqüente, que lhe escapa ao alcance e ao entendimento. É o
espaço aberto do museu sem paredes descrito anteriormente.

A revisão do Minimalismo processada nos anos 1990 coincide com a


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revisão e o reprocessamento do museu. Esta releitura sobre o Minimalismo


explora aquilo que já era potencial dentro do movimento, mas foi a revisão que
efetivamente gerou o sentido atordoado e eufórico do espaço pós-moderno do
museu, e não o movimento artístico, tal como o sugeriu Thomas Krens.

O museu do capitalismo tardio ou museu industrializado é conectado com


a indústria de lazer. Os problemas de circulação dos produtos do museu,
exposição e catálogos, exigem também um mercado conectado, capaz de escoar os
produtos, o que Krens chama de mercado partilhado. Rosalind Krauss contabiliza
os requisitos fundamentais capazes de permitir a expansão do mercado do museu:
um extenso inventário, filiais de escoamento e alavancagem da coleção –
requisitos presentes ou providenciados para a expansão promovida pela Fundação
Guggenheim.
186

4.2

O museu Guggenheim de Bilbao

4.2.1

A Fundação Guggenheim e a criação do museu

A Fundação Guggenheim entrou em franco processo de expansão, fazendo


parte de sua estratégia de ação os três itens apontados por Rosalind Krauss (a
alavancagem, e o aumento da coleção e das filiais de escoamento). A
alavancagem da coleção foi iniciada pela venda de importantes obras do acervo. o
que permitiu a captação de recursos para a aquisição de outras obras e a formação
do amplo inventário24 . A alavancagem da coleção passa não somente pela venda,
mas por sua entrada no setor de crédito, como circulação do capital.
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Tradicionalmente, a maneira de gerar recursos sem a irreversibilidade da venda é


a hipoteca. Outra possibilidade é fazer a coleção circular através de
“empréstimos” a outras instituições, ou aos satélites da própria.

Nesse contexto, surge a necessidade de mais estabelecimentos físicos que


possam receber a coleção em circulação, além de escoar os produtos (catálogos e
exposições) promovidos pela instituição. A primeira filial foi aberta em Veneza,
abrigando a coleção formada por Peggy Guggenheim. A sede principal foi
expandida através da filial Soho-NY. Foi realizado um projeto, não concretizado,
para uma filial em Salzburg, na Áustria; criou-se em Berlim um anexo, em
edifício existente – entre outras propostas.

A adoção e a implantação da prática da franquia foram relativamente


rápidas. Peggy Guggenheim já havia vislumbrado uma rede global de museus
controlada pela fundação de Nova York, cujos ramos seriam situados em satélites
de arquitetura espetacular, formando um sistema de arte local conformado por

24 A fim de adquirir a coleção Panza, com obras minimalistas, a Fundação Guggenheim leiloou,
através da Sotheby’s, três obras de sua coleção. A distinção das esferas da curadoria e da
administração gerou, nesse caso, a primazia do julgamento de valores esconsos aos interesses
específicos do museu como instituição cultural (KRAUSS, Rosalind. The cultural logic of the late
capitalist museum. Op. cit.).
187

diversos pontos. Thomas Krens, diretor da Fundação Guggenheim, expandiu


internacionalmente as atividades, rentabilizando o poder simbólico da instituição e
iniciando nova forma de comercialização da expansão cultural.

Serge Guilbault estabelece um nexo entre a nova atuação da Fundação


Guggenheim e a mundialização ocorrida após a queda do muro de Berlim, que
desterritorializou o mundo. A deslocalização das companhias foi copiada pelos
museus. O mundo das artes, tal como o mundo dos negócios, é apresentado pela
descentralização e pela diversificação. Para Guilbault, o Guggenheim de Bilbao é
o melhor exemplo de mundialização cultural25 .

Estes breves comentários sobre as novas práticas de gestão da Fundação


Guggenheim não têm por objetivo esgotar as possibilidades analíticas
vislumbradas pelos complexos envolvimentos com as companhias de seguros, os
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programas de financiamento americanos, a situação do mercado de arte e o perfil


dos próprios administradores, mas sim avaliar de que maneira as novas intenções
administrativas podem afetar a arquitetura do museu.

A Fundação Guggenheim associou-se à municipalidade de Bilbao,


principal núcleo da região basca, situada no norte da Espanha. O corpo
administrativo de Bilbao planejou dirigir seus recursos e estratégias do setor
secundário industrial e marítimo para o setor terciário de tecnologia e serviços.
Foi orquestrada uma grande regeneração urbana e arquitetônica. No cerne da
proposta, a intenção era transformar a cidade em um centro europeu de comércio,
turismo e cultura.

Previu-se uma série de edifícios e pontes, projetados por arquitetos de


renome internacional, convidados ou selecionados através de concursos,
conferindo à cidade o caráter de exposição de edificações. Entre as diversas
construções estavam previstos: o sistema do metrô, com estações projetadas por
Norman Foster; o aeroporto e a Passarela de Uribitarte, de Santiago Calatrava; a
Estação Intermodal, iniciada por James Stirling e finalizada por Michael Wilford;

25 GUIBAULT, Serge. Muséalisation du monde ou californication de l’occident? In: MICHAUD,


Yves (dir.). Qu’est-ce que la culture? Paris: Odile Jacob, 2001, p. 369-382.
188

e o Centro de Negócios de Bilbao, de Cesar Pelli. O museu Guggenheim, projeto


do arquiteto Frank O. Gehry, foi utilizado como símbolo desta mudança26 .

A localização do museu representa, no projeto de integração urbana, o


primeiro passo de regeneração dos antigos espaços comerciais e armazéns na beira
do rio Nérvion, além da conexão entre o rio e a cidade. O terreno escolhido
localiza-se ao lado da Ponte de La Salve, que liga a cidade aos bairros periféricos,
constituindo portanto sua porta de entrada.

4.2.2

O edifício

Bilbao é uma das grandes realizações da


arquitetura no século XX. Conceitualmente ele
combina uma colisão de espaços desconhecidos
com revestimentos de antropomorfismos.
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Imagem erudita é um sinuoso tipo de peixe


recoberto com a curvatura da garrafa de
Boccioni. É uma arquitetura de invenção
indefinida e liberdade ilimitada.
27
Richard Serra

O edifício do museu pós-moderno, além de destinar-se às funções


tradicionais da instituição – selecionar, conservar e expor –, assumiu funções
outras, como de catalisador urbano, resultando em significativas transformações
no caráter arquitetônico. No caso do Guggenheim de Bilbao, o fardo suplementar
de regenerador urbano concentrou sua proposição arquitetônica na força da
presença pública. Seu aspecto é impactante; exteriormente, é uma grande
montanha metálica e, interiormente, uma caverna luminosa.

26 Houve uma concorrência limitada aos arquitetos Arata Isozaki (responsável pelo projeto
Guggenheim Soho-NY), Coop Himmelblau e Frank Gehry. O concurso demandava uma
estimativa de escala e a indicação dos tipos gerais de espaço para exposição. O concurso foi
realizado em 1991, em Frankfurt, com um júri formado por Thomas Krens, Carmen Jimènez,
curadora do museu na época, e três membros do governo basco, tendo como árbitro Heinrich
Klotz, ex-diretor do Museu de Arquitetura de Frankfurt. Em três semanas, os concorrentes
deveriam apresentar um esboço do projeto, com a obrigatoriedade de integrá-lo ao viaduto de La
Salve e à cidade, e de propor espaços internos coerentes com as novas funções dos museus. O
canteiro de obras foi iniciado em 1993, e o museu, inaugurado em 1997.
27 Richard Serra apud BECHTLER, Cristina (ed.); Kunsthaus Bregenz (collab.). Frank O.
Gehry/Kurt W. Foster. Ostfildern-Ruit: Cantz, 1999, p. 23.
189

O edifício é localizado na cidade como um integrador, requerendo e


disponibilizando diversos acessos ao sítio urbano. As partes que compõem o todo
estão em referência às suas proximidades. A grande galeria sob a ponte relaciona
a escala do edifício com a da ponte. A torre que a finaliza cumpre um papel
formal no estabelecimento dessas relações de escala, fazendo parte do percurso
arquitetônico. Os diversos acessos ao edifício fazem parte do percurso ininterrupto
que o circunda – claro, limpo e amplo, na rampa da fachada voltada para o rio;
mecanicista, dramático e perigoso, na torre metálica; escuro, frio e recôndito, no
estacionamento28 .

A elevação norte, em vidro, voltada para o rio, relaciona a transparência do


edifício com a do ambiente natural, assim como o espelho d’água que o circunda.
O visitante pode avistar melhor a “fachada” do museu, através do distanciamento
criado na rampa de circulação, cuja forma interliga a avenida e a ponte, o museu e
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o rio. A fachada voltada para a cidade acompanha a escala dos edifícios ecléticos.
Um corpo em pedra calcária abriga as funções administrativas e faz a transição da
malha urbana, dos ritmos de vazios e da textura presentes nos edifícios vizinhos
para as partes metálicas do organismo, relacionadas com a escala do rio e das
construções à sua margem, os armazéns. As partes retangulares são revestidas em
pedra calcária, enquanto as curvas são revestidas com titânio 29 .

O interior de Bilbao poderia ser mais radical,


como o exterior o é. Mais salas esculpidas
misturando-se com as salas conservadoras.
30
Walter de Maria

A entrada principal realiza-se através de um grande átrio central, que se


destaca com altura superior a 50 metros. Seu teto escultórico termina em uma
grande “flor metálica” com iluminação zenital. O átrio reúne os diversos corpos
da edificação. Ele organiza a circulação, e nele localizam-se as escadas, os

28 As funções internas como carga e descarga de obras são feitas pelo nível inferior ou
diretamente na grande galeria, esquivadas dos olhares públicos ao lado do estacionamento, e
conectadas com a via pública.
29 O material anteriormente escolhido era o aço inoxidável, descartado em razão do aspecto de
frieza que impregnava no edifício.
30 Walter de Maria apud BECHTLER, Cristina (ed.).Op. cit., p. 88.
190

elevadores panorâmicos de vidro e pontes de linhas curvas concêntricas que


conectam as diversas galerias em três níveis, em uma espécie de panóptico, que,
ao invés de vigiar, intensifica a riqueza do percurso interno.

O átrio cumpre a função de grande hall central, monumental, destinado a


esculturas de grande porte e a eventos especiais do museu. Inicialmente, Gehry
pensou-o como um lugar para arte multimídia. No entanto, Thomas Krens decidiu
que ele deveria ser apreciado inicialmente como arquitetura. Três imagens foram
associadas com o seu design, sendo a dominante a do filme expressionista
Metropolis (1926), de Fritz Lang. Após terminado o edifício, Gehry associou as
formas do átrio a esculturas de Brancusi: Coluna sem Fim e Pássaro, e também à
escultura surrealista Mulher com Garganta Cortada, de Giacometti.

A referência ao filme Metropolis é mais evidente, por conta do enorme pé-


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direito e de suas zonas opacas e translúcidas, proporcionando grandes contrastes


entre claro e escuro. No entanto, os fundamentos não-formais desta evidência
serão retomados na próxima parte deste trabalho. Apesar da escala monumental, o
átrio é um local agradável e fluido, que tende a acolher o público e a arte, como,
por exemplo, as grandes peças vindas dos balcões, como as de Claes Oldenburg e
de Coosje van Bruggen.

A referência ao projeto de Frank Lloyd Wright para o Museu Guggenheim


de Nova York é evidente. Se compararmos seus esquemas de circulação,
perceberemos que ambos ostentam a rotunda ou o átrio como gerador do espaço e
organizador do esquema de circulação. O átrio de Bilbao tem uma vez e meia a
altura do Guggenheim de Nova York, e é baseado na curvatura suave do projeto
de Wright. Ele é a área central que organiza as galerias, e, tal como no projeto de
Wright, a energia presente contrasta com a tranqüilidade das galerias
organicamente relacionadas; contudo, a força que atua na espiral de Wright é
centrífuga, e, na de Gehry, é centrípeta. O espaço de Wright é circular,
centralizado, e o de Gehry é descentralizado.

Embora a concepção de arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright


exerça forte influência na obra de Frank Gehry, este considera o espaço de Wright
tóxico para a arte, a não ser para os artistas que tiram partido do caráter impositivo
191

do ambiente. Foi o diretor da fundação, Thomas Krens, que dissuadiu Gehry de


propor espaços retilíneos, solicitando um edifício com o mesmo impacto e o
dobro da escala do de Wright. No entanto, a opção de Gehry não implica espaços
neutros para a arte. Sua aproximação pessoal com diversos artistas31 o fez
repensar a falsa neutralidade das galerias brancas e sua “agressividade” para com
a arte, e levou-o a considerar suas preferências não por espaços neutros, mas por
espaços especiais e singulares32 .

Em uma escala de 100, Bilbao no exterior


ganharia 125, no interior 85, e as exposições 75.
Walter de Maria 33

A interferência de Thomas Krens na concepção dos espaços internos foi


bastante forte. O programa da Fundação Guggenheim demandava espaços de
galeria para apresentação da coleção permanente, exposições temporárias com
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temas diversificados, além de espaços para a arte contemporânea. Em resposta a


essas necessidades, foram criados três diferentes tipos de espaços, pensados
inicialmente para atender a este tipo de demanda; contudo, em face da necessidade
e de sua versatilidade, foram cambiando suas funções. Os espaços destinados à
coleção permanente são eventualmente utilizados para exposições temporárias. A
variedade de espaços foi pensada não a partir da condição de abrigar obras
permanentes ou temporárias, mas a partir do “tipo” de arte a ser exposta.

Para a coleção de arte moderna foram criadas seis galerias – conformadas


em três salas quadradas, consecutivas e sobrepostas, em dois níveis, no segundo e
no terceiro pisos. As galerias do nível superior empregam iluminação zenital
provinda de clarabóias. Um recorte central quadrado, aberto no piso superior,
permite a ilusão de iluminação natural no piso inferior. O guarda-corpo que cerca
esse quadrado do piso superior foi transformado em parede expositiva. As galerias
são enfileiradas de maneira clássica e posicionadas para permitir a comparação

31 Frank Gehry é amigo pessoal de Daniel Buren, Claes Oldenburg, Coosie van Bruggen e
Richard Serra, entre outros, e estabeleceu parcerias com eles e com vários outros artistas.
32 GEHRY, Frank O. Le musée emblème de la ville: Le Guggenheim museum de Bilbao et projets
en cours. Seminário. Musée du Louvre. Construire le musée: l’architecture du musée, em 9
abr. 1999. Depoimento gravado.
33 Walter de Maria apud BECHTLER, Cristina (ed.). Op. cit., p. 56.
192

entre os trabalhos. O piso em madeira, bem como as paredes pintadas de branco,


reforça a escala doméstica das obras da primeira metade do século XX.

Uma grande galeria, livre de apoios internos, foi criada para as exposições
temporárias e as grandes peças da coleção. O volume, sob a Ponte de La Salve,
termina, em seu extremo, em uma torre. As paredes são brancas e o piso é de
concreto polido. A grande galeria é idéia de Thomas Krens, para quem era
importante suprir o museu com um espaço destinado a esculturas monumentais,
tais como Labyrinth, de Robert Morris, e Knife Ship, de Claes Oldenburg,
sugerindo para o ambiente a forma da escultura Snake, de Richard Serra,
encomenda da Fundação34 . O arquiteto foi contrário à demanda, às dimensões
gigantescas e à própria forma, pois a tornou a “galeria de Serra”. Uma solução
para minimizar a monumentalidade foi provê-la de dimensões humanas, como o
balcão na entrada, do qual se pode ter uma vista aérea da galeria, possibilitando
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um novo ângulo de observação das obras.

Para as obras de artistas contemporâneos, foi criada uma série de galerias


com qualidades espaciais distintas umas das outras. Os pés-direitos variam de três
a dezenove metros, constituindo uma estratégia que permite a contemplação de
obras juntamente com as de outras galerias. São sete galerias não-lineares, com
iluminação zenital ajustável, mezaninos e sistemas de iluminação diferentes.
Internamente, são de gesso pintado. Algumas têm paredes curvas e teto dividido
em partes que, junto com o sistema de iluminação, formam vistas bastante
complexas. Os espaços expressivos das galerias individuais fluem em torno das
galerias reservadas para a arte moderna. Cinco outras galerias – retilíneas, mas
não completamente ortogonais, com variações em suas formas, nos tratamentos de
teto e da iluminação – também se destinam a obras de artistas vivos.
Freqüentemente a vista para a cidade surge em diferentes janelas.

O sistema de iluminação conta com um conjunto de passarelas de tipo


teatral para as galerias monográficas e a grande galeria, luzes indiretas nas paredes
e luz natural de clarabóias controlada por persianas. A iluminação zenital das

34 A galeria tem 137 metros de comprimento por 24 metros de largura, com 7 metros de pé-
direito. Snake tem 4 metros de altura, 33 metros de comprimento e pesa 172 toneladas.
193

galerias foi uma imposição da diretoria, com a qual o arquiteto não concordou,
tendo em vista que na maioria dos casos seu efeito não é real, mas psicológico.

Eu nunca achei que espaços de museus fossem


sagrados, eu sempre achei que sagrada fosse a
arte.
Richard Serra 35

A forte presença externa do edifício, em contraste com a expansividade


interna, provoca a imaginação e a experiência do visitante através de um apelo
dramático. Uma qualidade do museu de Bilbao é o fato de a força de sua
arquitetura ser consonante com sua função de bem expor obras do século XX36 .
Espaços variados, adequados a obras igualmente variadas, foram pensados em
seus mínimos detalhes, integrando sempre a expressão arquitetônica à sua
funcionalidade. A orientação do espaço interno deve-se sobretudo a Thomas
Krens. Profissional experiente do ramo, Krens é conhecedor dos artifícios a serem
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empregados para se obter os efeitos desejados.

O edifício é bem proporcionado para eventos públicos e se oferece para


trabalhos inesperados advindos da arte contemporânea. A estratégia aplicada à
espacialidade e à tipologia das galerias é proveniente das leituras consagradas da
arte. Espaços pequenos, reduzidos e linearmente dispostos são destinados à arte
das vanguardas históricas. Um grande espaço ininterrupto, com características
mais rudes, como piso de concreto, é destinado a obras minimalistas, pós-
minimalistas e da pop art, remetendo aos espaços industriais dos ateliês nos quais
foram criadas. Galerias de dimensões e formas variadas acolhem a pluralidade da
arte contemporânea. Instalações, pinturas, vídeo arte são instaladas em galerias
curvas, retilíneas, abertas, fechadas, claras, escuras, neutras, exageradas, baixas e
altas.

Comparando este estudo de caso com o Museum Abteiberg, em


Mönchengladbach, projeto de Hans Hollein, observa-se que neste, as galerias
também foram desenhadas para vários tipos de trabalhos artísticos, mas trata-se de

35 Richard Serra apud BECHTLER, Cristina (ed.). Op. cit., p. 83.


36 Esta qualidade é ressaltada pela crítica, mas não é consenso entre os artistas, conforme
explicitado na citação de Walter de Maria.
194

um caso diferente, pois o museu era destinado a abrigar uma determinada coleção
particular, e não uma coleção institucional, na qual o ritmo de aquisições, a
capacidade e a variação do acervo, além de sua rotatividade, são normalmente
mais dinâmicos. No caso de Bilbao, as galerias não foram desenhadas para
determinados trabalhos, mas para tipos de trabalhos, o que Krens chama de ritmo
interno entre os espaços.

De maneira geral, no museu de Bilbao, na altura do olho e até mais ou


menos dois metros de altura, o ambiente é neutro, pouco interferindo na leitura da
obra. A expressividade arquitetônica concentra-se próxima ao teto, no sistema de
iluminação, natural ou artificial, ou em formas inusitadas. Os locais destinados ao
público, como o átrio, o restaurante, os acessos, etc. detêm forte apelo
arquitetônico.
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A lógica do museu do capitalismo tardio está impregnada no espaço físico


e na dinâmica administrativa, de maneira sutil ou evidente. Ela é sugerida no
espaço físico pela disposição centralizada e impositiva das bilheterias no meio do
saguão, pela cafeteria, cujo acesso é feito pelo meio da grande galeria, pela
disposição conveniente da butique, que tem acesso tanto na entrada como na
saída, mas sobretudo no espaço aprazível, movimentado e dinâmico da circulação
no interior.

O átrio configura-se como o espaço do prazer de Proust, do museu como


centro de lazer, ao passo que as galerias procuram simular o espaço contemplativo
de Valéry, o suficiente para permitir a complacência do público especializado e
não entediar o turista comum. A política de exposições, a organização de eventos
destinados à classe dirigente local mas também à população, a política de
gratuidades e de valor dos ingressos, o horário reduzido das atividades gratuitas,
também refletem as prioridades da instituição, que merecem os comentários
reprovadores da crítica especializada.

O sucesso de público do Guggenheim de Bilbao pode ser equiparado ao do


Beaubourg em sua época. L'effet Bilbao pode ser estendido à crítica arquitetônica,
195

que considera o museu como um dos casos mais bem sucedidos do século XX,
fato que não ocorreu, ao menos na época, ao Beaubourg37 .

Victoria Newhouse afirma que o Guggenheim Bilbao aponta efetivamente


para um novo tipo de museu, ao propor novas formas para o conflito continente
versus conteúdo. Suas formas esculturais oferecem um novo contexto para a
apresentação da arte contemporânea, sendo ele o único museu, segundo ela, a
alcançar diversidade no uso de uma grande escala. Newhouse acredita que o
museu de Gehry é tão revolucionário quanto o de Wright ou o de Piano e Rogers,
marcos do século XX para este tipo de programa 38 .

As críticas favoráveis são dirigidas ao edifício e à sua relação com a obra


de arte, atributos obtidos por meio do encontro do cabedal arguto da direção com
um arquiteto talentoso, que soube tirar partido das relações entre a arte e a
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arquitetura, assunto da próxima parte deste capítulo.

37 Apropriei-me da expressão utilizada por Jean Baudrillard, para designar o sucesso do


Beaubourg em face dos meios de comunicação de massa, L’effet Beaubourg.
38 NEWHOUSE, Victoria. Towards a new museum. New York: Monacelli, 1998. Uma das
análises mais competentes no gênero. Há uma certa unanimidade da crítica especializada quanto
aos aspectos positivos do Guggenheim de Bilbao. Ver bibliografia “Arquitetura de museus”.
196

4.3

Disposições em arte e arquitetura

4.3.1

Arte e arquitetura: novas afinidades

A colaboração entre Frank O. Gehry e artistas é conhecida, e já foi tema


abordado por diversos críticos, que nela identificam a origem do caráter
escultórico da poética do arquiteto39 . A convivência de Gehry com o campo das
artes visuais e da dança parece fundamentar sua obra para além dos critérios e
questões da arquitetura, atribuindo-lhe uma aura artística. Suas obras são
entendidas com um caráter de assemblage, situando-se em um híbrido entre
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arquitetura e escultura, entre construção e colagem. De fato, Frank Gehry foi um


dos primeiros arquitetos contemporâneos que manifestaram a preocupação de
estabelecer uma relação entre arte e arquitetura, tão almejada e discutida a partir
da década de 1970. O percurso da poética de Gehry pode ser encarado como uma
tentativa de ampliação do campo da arquitetura, similar ao ocorrido na escultura
no final dos anos 1960, apontado por Rosalind Krauss40 .

Julia Schulz-Dornburg analisa as relações entre os domínios da arte e da


arquitetura nas duas últimas décadas do século XX, período marcado pela
tendência de uma percepção sensorial do espaço e pela ênfase no papel do
observador. Na arte, o foco de interesse deslocou-se dos trabalhos autônomos e
auto-referenciais para os site specific. Na arquitetura, predominam programas
mais flexíveis e interativos. Tanto a arte como a arquitetura trocaram a criação de
objetos para serem olhados pela criação de ambientes para serem experimentados

39 No âmbito da crítica especializada, pode-se destacar as análises de Kurt Foster, Anthony


Vidler, Giovanni Lista, Peter Arnell e Fiona Ragheb, entre outros. Ver bibliografia.
40KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Op. cit.
197

e utilizados, exigindo um novo tipo de solicitação do sujeito e intercambiando as


fronteiras de suas linguagens41 .

Anthony Vidler também analisa as relações entre arte e arquitetura na


contemporaneidade, esclarecendo que uma nova compreensão de espaço é
produzida pela interseção de diferentes meios (cinema, fotografia, arte e
arquitetura), de maneira a quebrar as fronteiras de gênero e de separação das artes
em resposta à necessidade de representar o espaço de maneira nova e sem
paralelos. Os artistas, em lugar de manterem seus trabalhos em termos
tridimensionais, apropriaram-se das questões da arquitetura como parte integral e
analítica das instalações, buscando criticar os termos tradicionais da arte.
Arquitetos, de maneira análoga, exploraram os processos e formas da arte, nos
termos apresentados pelos artistas, a fim de escapar dos códigos rígidos do
funcionalismo e do formalismo. Esta interseção gerou um tipo de “arte
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intermediária” – cujos objetos, embora se situem dentro de um determinado meio


ou linguagem, requerem termos interpretativos de outros42 .

A poética de Frank Gehry apresenta alguns pontos de inflexão. Estes são,


de algum modo, relacionados com as questões artísticas, e responsáveis pela
originalidade e pelo amadurecimento do seu trabalho, mas também pelos
desacertos, por vezes causados pela ausência crítica, não em termos formais, mas
em termos de produção de significado. Frank O. Gehry é herdeiro da tradição
moderna da forma, e trabalha em sua revisão.

Em fins dos anos 1960 e início dos 1970, período em que travou contato
mais acirrado com os artistas da cena californiana, ocorreu a primeira grande
transformação na obra do arquiteto. No projeto da casa/estúdio do artista Ron
Davis (Malibu, California, 1968-72), Gehry se afastou mais incisivamente da
linguagem ortogonal moderna que orientara sua obra até então, para assumir o
diálogo crítico com a perspectiva. Trata-se de um volume trapezoidal, que cria

41 SCHULZ-DORNBURG, Julia. Arte y arquitectura: nuevas afinidades/Arte e arquitetura:


novas afinidades. Trad. castellana: Elena Llorens Pujol. Trad. portuguesa: Mônica Trindade
Schramm. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
42 VIDLER, Anthony. Warped space: art, architecture, and anxiety in modern culture. 2. ed.
Cambridge, Mass./London: the Mit Press, 2001.
198

uma distorção perspéctica e se complementa com a própria pintura de Ron Davis,


que explorava o uso da cor e da forma geométrica discutindo o espaço
perspectivado. Gehry tentou estabelecer um diálogo com as condições visuais da
perspectiva no volume construído e relacionou a inclinação da cobertura com a
das montanhas próximas.

Nesse projeto, pode-se antever questões que seriam mais tarde


desenvolvidas na poética do arquiteto. O material utilizado, aço galvanizado
corrugado, era inusitado para uma residência, conferindo ao edifício uma
aparência de container, de ambiente industrial, cuja escala e simplicidade eram
apreciadas pelos artistas americanos da época. O uso do mesmo tipo de material
no fechamento lateral e na cobertura já anunciava uma das prerrogativas de suas
obras posteriores.
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Nos projetos de residências realizados durante a década de 1970,


começavam a se configurar as questões que fariam parte da nova etapa de sua
obra, na qual se apresentava a singularidade do arquiteto. Nesses projetos, Gehry
reconsiderava o uso dos materiais, as dimensões e escalas, e a relação com a
cidade. Em 1977-78, ele realizou um projeto emblemático de suas novas
pesquisas: sua própria casa, em Santa Mônica, Califórnia. O projeto consistiu em
envelope arquitetônico de uma casa convencional existente. Essa segunda pele era
afastada da primeira, criando espaços dinâmicos que revertiam a habitual
convenção entre interior e exterior, através da manutenção dos elementos da pele
da casa original transformados em interiores, e das inusitadas aberturas da
segunda pele.

O uso de materiais pouco convencionais na arquitetura – como chapa


ondulada galvanizada e tela de arame, empregados na casa do arquiteto e em
outros projetos, e presentes nas estruturas efêmeras encontradas na cidade –
reforça a aparência de algo inacabado. O aspecto de inacabado é antes de tudo
uma intenção, pois “edifícios em construção parecem mais agradáveis do que
199

edifícios acabados”43 . O interesse pelo processo da fatura, cujas marcas estão


presentes no objeto artístico, é uma das motivações do arquiteto em relação à arte:

Eu observo muito a pintura [...]. Há uma imediatidade nas pinturas, você sente
como o pincel traçou o que fez. Eu penso em pinturas o tempo todo, assim como
parte da arquitetura, eu sinto um interesse em explorar como trazer estas idéias para
edifícios.44

Uma das maneiras de atingir a idéia de processo é revelando a estrutura do


edifício, o que Gehry faz constantemente. A idéia de apreender o processo é para
ele mais importante do que a simples contemplação de algo acabado, bem
finalizado e belo, no sentido clássico. Frank Gehry despreza e desvia-se do belo
aprazível, porque, segundo ele, este é falso e não condiz com a realidade da
cultura e da sociedade contemporâneas.

O método de trabalho é também para Gehry um processo. O arquiteto


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nunca pensa no desenho ou na maquete como algo acabado – ao contrário de


Frank Lloyd Wright –, mas como um caminho para uma idéia. Todo o processo
passa por uma relação entre a imaginação, o corpo (a mão) e o olho. Para ele, sua
maior habilidade é a conquista da transformação de um croqui em uma maquete, o
que fica fácil perceber quando se observa o grau de abstração de seus desenhos. A
habilidade consiste em construir a imagem ou a forma que está buscando, ou seja,
a coordenação da mão com o olho 45 .

A cultura de massa, com todas as suas implicações, bem como sua


intrínseca lógica processual, é completamente apropriada pela concepção do
arquiteto. Da cultura pop e da relação com a concepção artística de Claes
Oldenburg, Gehry desenvolveu a capacidade de lidar com o banal e o
extraordinário a partir da idéia de objeto. A cooperação entre os dois, Gehry e
Oldenburg, resultou em projetos que transformam o objeto comum, através do
gigantismo, em objetos especiais, monumentos da cidade, que, se em um primeiro
instante provocam uma ironia imediata, não se estabelecem como consciência

43 Frank Gehry, em entrevista com Peter Arnell, em 24 fev. 1984. In: ARNELL, Peter;
BICKFORD, Ted (ed.). Frank Gehry - Buildings and projets. New York: Rizzoli, 1985.
44 Frank Gehry em entrevista com Peter Arnell, em 24/02/1984. Ibid.
45 Ver entrevista na Revista El Croquis nº 74-75, p. 6-36.
200

crítica46 . É o caso do projeto de Chiat Day (Venice, Califórnia, 1985-91), em


colaboração com Oldenburg, no qual um grande par de binóculos é inserido, ainda
que de maneira adequada, no contexto de uma via expressa da cidade, cuja
paisagem urbana contém muitos apelos promocionais. Gehry incorpora essa
relação de escala agigantando figuras em volumes arquitetônicos. São imagens
que ele transforma em objetos urbanos. É o caso da forma do peixe utilizada em
tantos projetos – entre eles, a escultura peixe da Vila Olímpica de Barcelona
(1989-92).

A partir de sua primeira encomenda européia – a empresa Vitra o


encarregou de criar um pequeno museu para cadeiras modernas e contemporâneas
e um edifício fabril (Weil am Rhein, 1987-89) –, ocorreu considerável
transformação em sua obra. As experiências com a geometria e o uso de materiais
inusitados, que havia iniciado nas casas californianas, foram se transformando em
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edifícios esculturais de formas indefinidas. No museu da Vitra, introduziu a curva,


afastando-se da angulação das estruturas anteriores. As formas sinuosas passaram
a imperar a partir do final da década de 1980 e início da de 1990, aproximando
ainda mais seus edifícios da idéia de escultura.

Os procedimentos da escultura são aplicados à arquitetura, como, por


exemplo, a indistinção entre parede e cobertura, obtida pela utilização do mesmo
material em ambas, mas também pelo mesmo tratamento das superfícies, que, no
caso dos volumes de Gehry, não são superfícies únicas, mas partidas, retorcidas e
descontínuas. Para Gehry, arquitetura cerca o espaço; por isto, concentra-se na
manipulação da superfície envolvente. A lógica do gigantismo aplicada ao projeto
de Chiat Day (Venice, Califórnia, 1985-91), também é a da escultura, mas muito
relacionada a questões da pop art. Ao partir para as formas abstratas curvas,
Gehry intensifica a aproximação com a idéia de escultura tradicional.

Os problemas advindos da execução dessas formas sinuosas levam-no,


junto com a sua equipe, à busca de novas ferramentas de trabalho que o
conduzirão ao uso do computador. Um dos aspectos extraordinários do processo

46 Ver crítica à obra de Claes Oldenburg em ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
201

de criação do arquiteto, utilizado no projeto do museu de Bilbao, é a superação da


antiga distinção entre a mão e a ferramenta. O croqui livre e a maquete são
transpostos para o computador, e deste retornam ao desenho e ao volume, em uma
continuidade ininterrupta. Grande parte dos arquitetos utiliza o computador
apenas para as etapas de desenvolvimento do projeto e apresentações para
clientes; outros conferem a ele um papel conceitual no design. Não é o caso de
Gehry, não muito afeito à tecnologia eletrônica47 .

No Museu Guggenheim Bilbao, Gehry utilizou Catia, um programa


desenvolvido pela empresa aeroespacial francesa Dassault, que traduzia seus
croquis e maquetes artesanais realizados em papel e madeira para modelos
tridimensionais em computador. O emprego da tecnologia digital, nesse caso
Catia, tornou possível esculpir formas em diferentes materiais com inúmeros
eixos fora dos domínios da geometria euclidiana48 .
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4.3.2

“No, I’m an architect” (Frank O. Gehry)49

Apesar da incorporação de questões pertinentes a outras linguagens


artísticas, segundo Anthony Vidler, o trabalho de Frank Gehry mantém-se
substancialmente dentro do campo da arquitetura, transformando a tradição de
problemas propostos pela arquitetura moderna 50 . A relação estabelecida com a
tradição pode ser transformadora, irônica ou oposicionista, mas é nela que se
concentra a singularidade da obra de Gehry, e não simplesmente na importação de
questões e conhecimentos de outras artes. Vidler estabelece que, entre as
principais questões arquitetônicas retomadas por Gehry, duas se destacam: o

47 Posteriormente, Frank Gehry incorporou esse procedimento à sua prática usual, como
complemento do canteiro de obras.
48 O programa indica também o tipo de estrutura adequado às formas pretendidas, se aço,
concreto, etc. O edifício é sustentado por estrutura metálica, calculada sem desperdício por
computador.
49 Em entrevista com Peter Arnell. In: ARNELL, Peter; BICKFORD, Ted (ed.). Op. cit.
50 VIDLER, Anthony. Space, time and movement. In: KOSHALEK, Richard; SMITH, Elizabeth
A. T. At the end of the century: one hundred years of architecture. Los Angeles/New York:
Museum of contemporary Art of Los Angeles/ Harry N. Abrams, 1998, p. 101-125.
202

restabelecimento da frontalidade, banido da edificação moderna, e a retomada da


tipologia no contexto urbano.

Vidler afirma que na casa do arquiteto, em Santa Mônica, as referências


formais provêm das imagens construtivistas russas (especialmente do pavilhão
russo na Exposição das Artes Decorativas e Industriais de 1925, em Paris),
recusando, no entanto, seus aspectos compositivos. Embora a arquitetura de Gehry
contenha elementos torcidos e destorcidos, há forte referência à frontalidade na
remanescência de uma fachada residual, como no caso da Loyola Law School
(1981-84). Outros projetos sem fachadas convencionais também reproduzem a
idéia de frontalidade, como o California Aeroespace Museum (1985), através da
tensão estabelecida no contraponto entre a frontalidade e o movimento de torção
da massa51 .
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Pode-se verificar um sentido de frontalidade, como este segundo tipo


identificado por Vidler, mesmo em uma edificação de partes integradas, como no
Guggenheim de Bilbao, embora o autor não o tenha afirmado. Na fachada voltada
para o rio, o jogo de torção dos volumes é contraposto pelo volume com marquise
que define a frontalidade do conjunto, confirmada pela posição da rampa de
caminhada, paralela a ele. O deslocamento dos passantes estabelece a
frontalidade.

O segundo ponto levantado por Vidler é a reinserção da tipologia no


contexto urbano, ou seja, a preferência de Gehry por utilizar tipos existentes do
local ou das vizinhanças na criação de seu objeto, ao invés de inventar algo
completamente novo e estranho ao ambiente urbano. No museu, é o caso do uso
da pedra calcária espanhola, das aberturas e do volume ortogonal do edifício
administrativo, que se relacionam com o entorno mais tradicional do sítio, e da
torre metálica ao lado da ponte. É o caso também do ritmo e da forma dos vazios
do Edifício Nationale-Nedelanden (Praga, 1992-96, apelidado Fred & Ginger). A
leitura de Anthony Vidler sobre a obra de Gehry mostra que, apesar de esta se

51 VIDLER, Anthony. Space, time and movement. Op. cit.


203

reportar ao contexto urbano, está longe de ser uma colagem historicista, embora se
remeta a formas e a questões da tradição arquitetônica.

A partir dos anos 1990, Frank Gehry, que desde meados da década anterior
já era considerado um dos grandes arquitetos americanos, adquiriu importância
internacional, passando a ser convidado a trabalhar com variados programas
arquitetônicos, em diversas cidades européias. A contextualização urbana do
objeto arquitetônico como preocupação central permaneceu ponto importante no
processo de criação. É o diálogo dos “objetos” urbanos, presente tanto nos
projetos com diversos volumes, como nos de partido de corpo único. A questão
principal é a relação entre os diversos objetos urbanos.

A relação da arquitetura de Gehry com o entorno, ponto reconhecido por


diversos críticos abaixo representados, é uma característica que não pode ser
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desprezada. Tendo se formado para trabalhar com desenho urbano e urbanismo, o


arquiteto preparou-se para projetar em grandes escalas. No entanto, em sua
história profissional, ele trabalhou com urbanismo somente no início da carreira,
como colaborador de outros escritórios, sem no entanto poder explorar um lado
mais inovador. Em sua própria agência, começou fazendo programas pequenos,
mas suscetíveis à ousadia, como seu desejo inicial. De maneira bem sucedida,
incorporou alguns dos métodos de trabalho da escala urbana à sua criação
arquitetônica. O edifício passou a ser idealizado como uma “cidade”, um corpo
que congrega seu macro (entorno) e microcosmo (interior).

Germano Celant, em ensaio sobre Frank O. Gehry, utilizou a expressão


house-cities (casa-cidades), referindo-se às residências em cujo interior foram
inseridos os textos da cidade. Nelas, as fronteiras entre o edifício e sua vizinhança
são quebradas52 . Amplio o termo empregado por Celant a outros programas. O
Museu Guggenheim de Bilbao é um caso de edifício-cidade, que interliga e
conecta diversas partes da cidade, visualmente, através de suas múltiplas formas,
texturas e escalas, e literalmente, através dos percursos que propõe no edifício.

52 CELANT, Germano. Reflection on Frank Gehry. In: ARNELL, Peter; BICKFORD, Ted (ed.).
Op. cit., p. 4.
204

Jean-Louis Cohen é outro crítico que bem compreendeu a ligação


inexorável de Gehry com a cidade53 . Além das relações de escala apreendidas, a
cidade é vista como um ambiente impalpável, como lugar de emoções. Segundo
Cohen, a partir de sua relação com a cidade de Los Angeles, o arquiteto redobra
sua atenção à cultura urbana, aproveitando os recursos desta. Gehry adota três
estratégias: a distorção de tipos arquitetônicos convencionais; a preocupação dos
edifícios em relação ao espaço público; e, por último, o edifício fragmentado
encarado como uma cidade – o equivalente do conceito de house-cities,
desenvolvido alguns anos antes por Germano Celant.

A idéia de building-as-landscape também está presente na leitura de


Anthony Vidler, para quem a promenade architecturale de Gehry remonta à sua
origem anterior ao conceito de Le Corbusier, à tradição pitoresca romântica,
aproveitando os indícios visuais fornecidos pelo lugar. Mais radical do que a
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concepção de building-as-landscape é a idéia dos percursos intrincados dentro dos


volumes arquitetônicos, como labirintos dentro de labirintos. Embora o método de
trabalho de Gehry aparente ser intuitivo e casual, fundamenta-se em um modo
calculado de alcançar a desordem dos sistemas formais, orientado pela noção de
movimento54 .

4.3.3

A busca do movimento

A associação da arquitetura de Gehry com a arte não se resume às


experiências mais recentes, remontando às vanguardas históricas do início do
século XX. A continuidade entre a arquitetura digital de Gehry e as experiências
modernas é crucial para o ponto de vista aqui apresentado.

A arquitetura dinâmica de Frank Gehry freqüentemente foi comparada por


críticos às experiências expressionistas, futuristas e construtivistas. A assemblage

53 COHEN, Jean-Louis, Frankly Urban: Gehry from Billboards to Bilbao. In: RAGHEB, J. Fiona
(ed.). Frank Gehry, architect. New York: Guggenheim Museum Publications, 2001. Catálogo da
exposição Frank Gehry, architect, p. 322-336.
54 VIDLER,Anthony. Space, time and movement. Op. cit., p. 125.
205

espacial Merzbau de Kurt Schwitters (1933)55 é bastante comparada à bricolage


de formas utilizada por Gehry. As questões retomadas pelo arquiteto não se
limitam a um único movimento de vanguarda.

Giovanni Lista identifica a arquitetura de Frank Gehry com a escultura do


futurista italiano Umberto Boccioni, sobretudo o museu de Bilbao com
Desenvolvimento de Garrafa no Espaço (1913). Segundo Lista, Gehry teria tido
maior contato com a obra do escultor através da retrospectiva realizada no MoMA
de Nova York em 1988, na qual foi traduzido para o inglês o manifesto
Arquitetura Futurista (1913-14) de Boccioni, até então desconhecido do
público56 .

Embora a análise de Giovanni Lista tenha caráter essencialmente


formalista, o fato de ter apresentado o manifesto de Boccioni permite que
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relacionemos de forma pertinente as duas concepções. No manifesto, Boccioni


aplica à arquitetura suas idéias de “dinamismo plástico”:

Nós dissemos que em pintura localizaremos o espectador no centro do quadro,


tornando-o centro da emoção, ao invés de simples espectador. O enquadramento da
cidade arquitetônica tranforma-se, ele também, em um movimento que envelopa.57

A localização do observador, sua posição física e emocional, é questão


fundamental da obra de Gehry, ao mesmo tempo em que trata tanto a cidade como
a superfície arquitetônica como envoltórios em movimento. A idéia de um
envelope em movimento a partir do interior contínuo e fluído para o exterior é
presente em Gehry, mas também foi antevista inicialmente por Boccioni:

[...] mesmo a fachada de uma casa deve descer, subir, se decompor, estar recolhida
ou saltada, em função do maior ou menor grau de necessidade das peças que a
compõem. É o exterior que o arquiteto deve sacrificar ao interior, como o fazemos
em pintura ou em escultura.58

55 Conforme VIDLER, Anthony. Space, time and movement. Op. cit., p. 120.
56 LISTA, Giovanni. Boccioni et Gehry à Bilbao. LIGEIA, Dossiers sur L’art. Dossier: Art et
Architecture. Paris: Association Ligeia, n. 33-36, oct. 2000/juin 2001, p. 125-136.
57 BOCCIONI, Umberto. Architecture futuriste. Texto inédito. In: LISTA, Giovanni. Op. cit., p.
128.
58 Ibid., p. 129.
206

A representação plástica do movimento, questão central do futurismo, é


retomada por Gehry, para quem, no entanto, a idéia de movimento se localiza não
somente no objeto artístico, mas também no próprio sujeito.

Para Anthony Vidler, a referência histórica mais direta de Gehry está no


expressionismo. A associação entre as formas esculturais projetadas por Gehry e
as do arquiteto expressionista Herman Finsterlin (1919) não é mero formalismo 59 .
O expressionismo alemão entre 1910 e 1918 representa a primeira tentativa de
unir espaço, tempo e experiência psicológica. Através dos desenhos de Bruno
Taut e do cinema – meio espacial expressionista por excelência –, percebe-se a
tentativa de construção de um espaço novo, não-euclidiano60 . Esta conexão torna
pertinente a referência do átrio do museu de Bilbao ao filme Metropolis.

Segundo Vidler, as perspectivas despedaçadas do expressionismo fazem


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parte da modernidade, que distorceu, torceu, fraturou, comprimiu e descomprimiu


o objeto, ações estas ativas até nossos dias. Desde o início do século XX, as leis
da perspectiva vêm sendo transformadas, transgredidas e ignoradas, na tentativa
de representar o espaço da identidade moderna 61 .

Ao longo do século XX, o espaço foi sendo identificado cada vez mais
como um produto da projeção subjetiva do que como um contenedor estável de
objetos e corpos. O expressionismo é uma das vanguardas que mais explorou a
interseção do pensamento espacial com o pensamento sobre o enquadramento do
sujeito psicológico. A experimentação contemporânea preserva estes dois termos
(o pensamento espacial e o do sujeito), na medida em que distorce o espaço
tradicional do modernismo e questiona o sujeito humanista.

O espaço moderno, em muitas concepções, era apresentado pela


transparência. Vidler aponta que a antitransparência da arquitetura
contemporânea, incluindo-se a de Gehry, em lugar de diminuir a ansiedade do
sujeito moderno através da supressão da transparência e sua substituição pelos

59 VIDLER, Anthony. Warped space: art, architecture, and anxiety in modern culture. Op.
cit.
60 Id. Space, time and movement. Op. cit., p. 101-125.
61 Id. Warped space: art, architecture, and anxiety in modern culture. Op. cit.
207

jogos de reflexos, zonas de claro e escuro, efeitos de espelhamento, tende a


reformular as condições de interioridade e exterioridade do corpo62 .

Numerosos artistas e arquitetos, preocupados com as relações do espaço


com o corpo, com a psique e com os objetos, propõem uma resposta que coloca
em questão a estabilidade do sujeito observador em termos pós-psicanalíticos. As
deformações concebidas no espaço por Gehry, mas também por outros arquitetos,
colocam em xeque a noção do sujeito cartesiano, contribuindo para o surgimento
de uma nova ordem espacial arquitetônica, que transcende os limites físicos do
corpo e da visão.

A idéia de movimento, tanto da forma como do espaço, está presente na


obra de Frank Gehry. Desde suas experiências iniciais com distorções
perspectivas empregadas na casa-estúdio de Ron Davis, apresentam-se sucessivas
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transformações da idéia de movimento aplicado ao corpo e à visualidade. Segundo


Anthony Vidler, a idéia de movimento no trabalho do arquiteto assume diferentes
feições63 . Há o movimento da construção aparentemente incompleta, que sempre
seduziu o arquiteto. Há o movimento do deslocamento das massas –
desmoronamento de sólidos, escadas flutuantes e volumes justapostos e
retorcidos, como o fez em sua própria casa. Há o movimento estimulado pela
interseção, penetração e colisão de sistemas, mesmo que construtivamente
distintos, como é o caso da Familian House (1978, projeto não construído). Há o
movimento do deslocamento ou flexão dos eixos, tal como apresentado nos
diversos pavilhões da Loyola Law School. Há o movimento do próprio usuário ou
morador. E por fim, há o movimento da própria visão, representado nas inúmeras
vistas. Destes seis tipos de movimentos, há sempre uma ousadia que desconsidera
as regras estabelecidas e, mesmo nas partes mais estáveis do edifício, ignora a
simetria e a ordem, na tentativa de estabelecer as condições de existência do
movimento literal.

62 Neste ponto, Vidler refere-se sobretudo às poéticas de Rem Koolhaas, Coop Himmelblau e
Daniel Libeskind (VIDLER, Anthony. Warped space: art, architecture, and anxiety in modern
culture. Op. cit.).
63 VIDLER, Anthony. Space, time and movement. Op. cit.
208

Para Vidler, Gehry não explorou simplesmente a idéia do movimento na


arquitetura, mas precisamente o lugar do sujeito em movimento na arquitetura. Na
tradição clássica, o sujeito é central, é o observador primário, a origem da visão e
quem enquadra as vistas, ao qual a arquitetura é subserviente e do qual a
arquitetura imita a perspectiva. Na arquitetura moderna, foi submetido a todo tipo
de deformação: cubista, futurista, expressionista, etc. Gehry retoma este sujeito
como uma ambígua criatura – metade moderno, metade tradicional64 .

Segundo Vidler, a resposta de Gehry freqüentemente tem sido vista pela


crítica como uma simples reflexão sobre a fragmentação do sujeito pós-moderno.
No entanto, Vidler propõe outra interpretação, fundamentada na cuidadosa
experimentação da visão e do movimento, compreendendo o trabalho de Gehry
como uma tentativa de determinar os limites apropriados de seu próprio sujeito
em relação à arquitetura. Nas entrevistas que o arquiteto concedeu, pode-se
perceber, o individualismo, a auto-referência:
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Eu acho que todos nós, finalmente, só comentamos o nosso próprio ponto de vista,
aquilo que se passa no nosso cone de visão. 65

Para Vidler, o sujeito é autoconsciente da ilusão da projeção dos


deslocamentos visuais e psicológicos da mente. Esse sujeito contemporâneo
recusou a conformação saudável desejada pelo movimento moderno em prol de
uma rede complexa de relações nos seus aspectos conceituais, perceptivos, literais
e fenomenais. A arquitetura de Gehry detém uma autonomia relativa, na medida
em que, uma vez habitada, suas distorções trabalham com as do sujeito66 . A
ênfase de Anthony Vlider na produção do espaço como uma projeção do sujeito
não contradiz, mas avança as prerrogativas do sujeito minimalista
fenomenológico, apresentado por Rosalind Krauss. O que há de extraordinário no
edifício do Guggenheim de Bilbao não é o aspecto reverenciado pela crítica, que é
o bem expor, altamente intencional, nem tampouco o caráter espetacular da
arquitetura, mas justamente aquilo que não é valorizado: a estranheza que o
edifício causa no observador, que não se sente parte do objeto, mas do próprio
movimento.

64 VIDLER, Anthony. Space, time and movement. Op. cit.


65 Frank Gehry em entrevista com Peter Arnell, em 24 fev. 1984. Op. cit.
66 VIDLER, Anthony. Space, time and movement. Op. cit., p. 125.

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