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Conteúdo imprimível da exposição virtual

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Conteúdo imprimível da exposição virtual

Campinas no centenário
da Independência
a modernidade em exposição?
Prefeitura Municipal de Campinas
Dário Saadi

Secretaria Municipal de Governo


Michel Abrão Ferreira

Diretoria de Gestão da Informação/


Documentação e Atendimento ao Cidadão
Karen dos Reis

Coordenadoria Setorial do Arquivo Municipal


Antônio Carlos Galdino

Colaboraram nesta exposição


Caio Victor Justino Santos
Juliana Maria de Siqueira
Rita de Cássia Francisco

Arquivo Municipal de Campinas.

Conteúdo imprimível da exposição virtual “Campinas no


Centenário da Independência: a modernidade em esposição?”
Campinas : Prefeitura Municipal, 2022.

36 p.

1. Campinas. 2. Arquivos - acervos 3. Brasil: Centenário da


Independência. 4. Exposições universais
I. Arquivo Municipal de Campinas. II. Título.


Arquivo Municipal de Campinas

Conteúdo imprimível da exposição virtual

Campinas no centenário
da Independência
a modernidade em exposição?

Prefeitura Municipal de Campinas

2022
Apresentação
No ano que marca o bicentenário da Independência do Brasil, tor-
na-se oportuno revisitarmos nossa história para concebermos projetos
de futuro, especialmente em âmbito local. Tal exercício será tão fecundo
e potente quanto for capaz de acolher a diversidade de sujeitos sociais e
seus pontos de vista.
Nesse sentido, os acervos documentais oficiais são uma fonte
indispensável - mas não única - para alimentar processos de diálogo e
reflexão sobre o país que queremos e o que significa sua independência.
Para cumprir essa função social, é necessário que tais acervos sejam não
apenas bem preservados, mas igualmente acessíveis e incorporáveis pelo
público, via processos de mediação. Essa é a proposta da presente expo-
sição.
O Arquivo Municipal de Campinas guarda um conjunto documental
relativo à participação do município na Exposição Internacional do Cen-
tenário da Independência. Nesta exposição, ao trazermos a público tais
documentos, procuramos contextualizá-los e ampliar suas possibilidades
de leitura por meio de fontes complementares.
Assim, além de apresentarmos como o município de Campinas
figurou na Exposição Internacional do Centenário da Independência,
procuramos interrogar os sentidos desse evento, bem como confrontar
a imagem projetada pelo município aos desafios econômicos e sociais
experimentados pelos seus cidadãos.
Esperamos que as reflexões trazidas pela leitura desses documentos
ganhem, com o público, as ruas da cidade e se incorporem nos modos de
ver, sentir, ser, estar, fazer e conviver, em sentipensares que convoquem
nossa capacidade de ação coletiva, como protagonistas/curadores históri-
cos e culturais que somos.

Sobre o Arquivo
O Arquivo Municipal de Campinas é a instituição arquivística do
Poder Executivo, responsável pela custódia de um acervo de mais de
2 milhões de documentos. Desde 2016, a equipe tem trabalhado para
fortalecer seu papel cultural, efetivando ações para comunicar o acervo e
estabelecer laços com públicos diversos, para além dos especialistas expe-
rientes em pesquisas com fontes documentais e inserção nos temas mais
buscados. Tais ações de natureza cultural-educativa vêm contribuir para
estreitar a aproximação com os cidadãos, favorecendo o cumprimento de
sua função social.

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As exposições universais
e a comemoração do
Centenário da Independência
no Rio de Janeiro
Uma exposição é uma manifestação que [...]
persegue o objetivo fundamental de educação
do público, procedendo ao inventário dos meios
de que o homem dispõe para satisfazer as
necessidades de uma civilização e pondo em
relevo, em um ou mais domínios da atividade
humana, os progressos alcançados ou as
perspectivas de futuro. (Convenção de 1928)

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As exposições internacionais
como palco da modernidade

As exposições internacionais ou “universais” (expos) surgem em


meados do século 19, com o desenvolvimento da sociedade industrial e a
partir do desdobramento de exposições regionais e nacionais promovidas
pelas indústrias desde o fim do século 18. Nelas, os participantes com-
petem entre si, recebendo premiações pela excelência de seus produtos
ou pela relevância de suas contribuições. Diferentemente das feiras, seu
principal objetivo não é comercial, mas a exibição do progresso técnico,
a difusão de inovações e a reafirmação do triunfo capitalista, calcado na
evolução positiva da ciência e no desenvolvimento humano.
As primeiras exposições internacionais foram realizadas na Inglater-
ra, sob os auspícios da Royal Society of British Arts, e tiveram importan-
te papel na disseminação de tecnologias e equipamentos que mudaram o
perfil da produção. Elas contribuíram para a transição de uma sociedade
manufatureira, com caráter artesanal - e, portanto, local - para uma socie-
dade mecanizada, seguindo técnicas e ritmos padronizados e difundidos
internacionalmente.
Para além de corroborar o processo de estandardização da produ-
ção industrial, fortalecendo o caráter “sem fronteiras” do capitalismo, as
expos colocavam em situação de disputa os próprios Estados Nacionais.
No certame, não apenas as indústrias competiam em nome das inovações
e da excelência: também as nações - sobretudo as potências imperiais
europeias - buscavam construir seu prestígio, ostentando seu poderio
econômico e cultural. Organizar e sediar uma exposição bem-sucedida
era demonstração da capacidade de um país.
Concebidas como eventos para as massas, na medida em que bus-
cavam atrair e encantar o público com uma mescla de invenções úteis,
entretenimentos populares e acontecimentos raros, as exposições inter-
nacionais se tornaram elemento de propaganda da sociedade industrial.
Com forte caráter pedagógico, inauguravam formas de percepção do
espaço e do tempo, bem como disseminaram novos hábitos e costumes,
valores e ideologias. Por um lado, projetavam a imagem de solidariedade
entre as nações, harmonia entre as classes sociais e progresso humano
ilimitado, baseado nas virtudes da razão, no domínio da natureza e na
engenhosidade técnica. Por outro lado, ocultavam as realidades da com-
petição imperialista - com a dominação de extensos territórios do planeta
e a subjugação dos seus povos - e as contradições do capitalismo - com
efeitos sobre a sociedade e sobre o ambiente.

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Aproveitando datas comemorativas nacionais Gradativamente, as exposições começaram
(efemérides), os países propunham exposições a se multiplicar, até que em 1928 criou-
internacionais ou universais. Assim, elas também se o Bureau International des Expositions,
constituíam oportunidades para os governos regulamentando a realização desses eventos.
rearranjarem os elementos da memória e da cultura A comunicação passou a ser organizada em
na difusão de um discurso histórico favorável. escala internacional e, a partir daí, as exposições
Processo que poderia ser caracterizado pelo que Eric alcançariam proporções gigantescas. Esses
Hobsbawn denominou “invenção das tradições”. megaeventos têm sido realizados até o presente
Outros recursos valiosos de que os Estados lançavam e com crescente vigor, sendo uma peça
mão eram a arquitetura - responsável por formular e importante de geração de poder brando no jogo
projetar uma simbologia moderna no espaço público da diplomacia internacional. Elas contribuem
- e as intervenções infraestruturais e urbanísticas de para promover a imagem dos países no exterior
grande impacto sobre as cidades-sede. e o engajamento do público estrangeiro.

A Expo do Centenário como


tela de uma nação moderna

Até hoje, o Brasil é o único país da América Destinada a celebrar e exibir internacional-
Latina a sediar uma exposição internacional, a Ex- mente uma nação independente e moderna, a Ex-
posição comemorativa do Centenário da Indepen- posição do Centenário ocorreu em um momento
dência, ocorrida no Rio de Janeiro, entre setembro de turbulência política, com a Revolta Tenentista
de 1922 e julho de 1923. A Expo do Rio reuniu dos 18 do Forte de Copacabana expondo as con-
13 países além do anfitrião, e foi a primeira a ser tradições da República Velha. Nesse período de
realizada após a Primeira Guerra Mundial - even- ebulição, ela se constituiu como tela e caixa de res-
to que desnudou a competição imperialista entre sonância para as projeções de futuro dos segmen-
as nações europeias, contrariando o discurso da tos sociais de elite - o empresariado dos setores
cooperação e convivência pacífica entre os povos. agrários, industriais e de serviços - e do Governo
Participaram da expo: Argentina, México, Estados republicano - representante das oligarquias rurais
Unidos, Portugal, França, Inglaterra, Itália, Bélgica, do Sudeste.
Dinamarca, Noruega, Suécia, Tchecoslováquia e As representações e materialidades das
Japão. matrizes culturais coexistentes no território foram,
A Expo de 1922 foi motivada pelo desejo de então, mobilizadas, selecionadas e articuladas na
marcar grandiosamente o Centenário da Indepen- construção de uma narrativa histórica hegemônica.
dência do Brasil. Essa efeméride é considerada Dirigindo-se tanto aos cidadãos brasileiros
um marco decisivo no debate histórico e cultural quanto aos corpos diplomáticos e aos visitantes
do país, fomentando o processo de elaboração e estrangeiros, o discurso oficial foi rigorosamente
afirmação da identidade nacional que mobilizou calculado para difundir a imagem de uma
sobretudo a intelectualidade dos principais centros nação apta a inserir-se no jogo do capitalismo
urbanos: internacional. Os elementos constitutivos desse
Ao forçar a busca das origens e a avaliação do papel discurso visavam à exaltação da excelência da
das figuras históricas, ao julgar o passado colonial produção agroindustrial nacional. Supunham o
e imperial, bem como as realizações republicanas, controle técnico e científico sobre a natureza - não
a comemoração de 1922 suscitou debates sobre a mais vista em sua exuberância, mas como recurso
formação e as perspectivas da sociedade brasileira, para a produção econômica - por uma população
recolocando de forma especialmente urgente os dilemas
educada e embranquecida, “civilizada” pelo modo
da “salvação” nacional. (Motta, 1993, p. 1-2).
de vida urbano.
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Intervenções perenes, arquitetura efêmera

A fim de dar sustentação à narrativa moderna, pavilhões estrangeiros e outros de companhias


o Estado brasileiro não hesitou em utilizar todos industriais, além de parque de diversões, cinema,
os recursos para a remoção dos elementos que bares, lanchonetes, o restaurante oficial e diversos
destoassem ou divergissem de seu ideal. Exemplo quiosques de alimentação. A segunda, na Praça
emblemático foi a destruição do Morro do Caste- do Mercado, contava com onze pavilhões nacio-
lo, arrasado para dar lugar à esplanada que serviu nais (da fiação, da caça e pesca, das pequenas e
de recinto da expo. das grandes indústrias, da música, da festa e das
O morro não apenas continha os vestígios diversões, além dos Estados), descritos na época
históricos de um passado colonial, que devia pela imprensa como “deslumbrantes monumen-
enfim ser superado, mas principalmente abrigava tos”, representativos “de nossa riqueza e de nossa
um contingente humano numeroso e indesejado capacidade de trabalho”.
pelas elites: os mais pobres (imigrantes e negros, A despeito dessa monumentalidade, como
sobretudo) habitavam ali em cortiços, o que era costuma ocorrer nas expos internacionais, os
considerado uma “degradação” do espaço. Frente pavilhões erguidos constituíam uma arquitetura
às polêmicas levantadas, o higienismo positivista, efêmera, tendo resistido até os dias atuais apenas
mais uma vez, forneceu os argumentos “cientí- os edifícios da Administração e do Distrito Fede-
ficos” para a sua retirada definitiva. O próprio ral (atual Museu da Imagem e do Som), da França
desmonte do morro foi, em última instância, espe- (hoje Academia Brasileira de Letras), da Estatísti-
táculo técnico visto na expo. Enquanto poderosos ca (Serviço de Saúde dos Portos) e o Palácio das
jatos de água desmanchavam o monte, seus restos Indústrias (abrigando agora o Museu Histórico
iam sendo conduzidos em dutos para aterrar o Nacional).
fundo do mar, originando a Avenida das Nações e
sua esplanada.
Rapidamente, foram sendo adaptadas velhas
construções e erguidas novas, para receber os
pavilhões dos países e estados participantes da
Expo. Os principais projetos brasileiros couberam
a Archimedes Memória, um expoente da arqui-
tetura neocolonial, que despontou nas primeiras
décadas do século 20 como representação de uma
modernidade ancorada na história, em oposição
ao ecletismo que havia marcado o final do período
imperial. O estilo, que combinava técnicas e mate-
riais construtivos contemporâneos e uma estética
“antiga”, vinha dar expressão a um nacionalismo
exacerbado, no contexto de um autoritarismo polí-
tico do qual se originaria o movimento integralista.
Para os padrões nacionais, o recinto da expo
era monumental. Com 2,5 km de extensão, seu
percurso era organizado em duas partes. A primei-
ra, ao longo da Avenida das Nações, com entrada
pela Praça Floriano Peixoto, abrigava os treze

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O público, a crítica
e o povo ausente
a repensarem suas estratégias para atração do
público, programando eventos de diversão mais
populares como exibições de cinema ao ar livre,
desfiles e bailes carnavalescos.
A forma como o centenário da
Independência vinha sendo comemorada,
porém, suscitou preocupações e desagrado
entre alguns intelectuais, como foi o caso de
Lima Barreto. Em suas crônicas, o escritor
questiona a arbitrariedade da data eleita para
assinalar a emancipação política brasileira (o 7
de setembro de 1822), bem como alguns dos
símbolos escolhidos à memória para se erguer
uma narrativa histórica - os quais, segundo ele,
não guardariam relação direta com os processos
de constituição da nação. Além disso, critica a
“criação de tradições” que cristaliza a memória,
encerrando-a sobre si mesma. Indaga sobre
a relevância das programações oferecidas,
primando pelas diversões musicais, pelos eventos
esportivos e pelo consumo, deixando de lado os
aspectos reflexivos e educativos. Por fim, expõe a
contradição entre os vultosos gastos envolvidos
Lima Barreto - Fonte: Wikimedia Commons. nas comemorações e a situação de penúria vivida
pela população mais pobre, evidenciando que as
A expo do Rio inseriu-se numa variada gama festividades promoviam, com a cumplicidade da
de eventos oficiais destinada a comemorar o imprensa, o encobrimento da dura realidade -
centenário da Independência. Entre congressos, crise fiscal, alta da inflação e queda dos preços do
inaugurações, eventos musicais e publicações, ela café, principal produto exportado pelo Brasil.
atraiu, ao longo de dez meses, mais de 3,6 milhões Por trás de suas críticas, é possível notar
de visitantes, com uma média diária de 12.723 a preocupação em tecer consistentemente
pessoas. os sentidos que emergem da urdidura entre
No dia 7 de setembro, a exposição foi memória e identidade, estimulando a reflexão
lançada sem que a totalidade dos pavilhões coletiva sobre o passado e sua relação com
estivesse concluída ou aberta ao público. Quando os projetos de futuro. Percebe-se, ainda, o
se encerrou, dez meses depois, alguns deles já seu descontentamento com as ausências e os
tinham sido fechados à visitação. E, embora a silêncios nessa produção discursiva (falta “o
data de estreia tenha sido concorrida, a ponto povo”):
de provocar um grande “engarrafamento” Nas nossas democracias sul-americanas, sequiosas
no trânsito do Rio de Janeiro, no decorrer da todas de medalhas e considerações, os poderosos não
primavera e em boa parte do verão, o fluxo deixam aos humildes nem o direito de dizerem tolices
de pessoas foi considerado insuficiente pelos em prosa ou verso. Eles o tomaram também para si.
expositores. Esse fato levou os organizadores (BARRETO, 2004, p. 168)

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A face oculta da modernização e
sua persistência, cem anos depois
A fabricação da identidade nacional vinculada estavam bem vivas numa sociedade marcada por
à imagem de um Brasil moderno, que permeia estruturas anacrônicas e valores e racistas. Mesmo
as comemorações do centenário e avança pela o imigrante europeu era bem-vindo apenas quan-
primeira metade do século 20, apresenta uma do estivesse disposto a abrir mão de sua identidade
face brilhante e sua contraparte obscura. De um étnica e política, assimilando-se ao local. Com seu
lado, a partir da abolição do trabalho escravizado nacionalismo exagerado e sua xenofobia, o que as
e desde a instauração da República, as elites elites buscavam era, na verdade, conformidade e
propalavam a ideia de elevação da pátria e do subserviência. Os que não se enquadravam nessa
povo. De outro lado, essa nova nação “civilizada” estreita moldura eram considerados indesejáveis
iria erguer-se às custas do racismo e da intolerância e perigosos, devendo o Estado salvar a sociedade
com a alteridade, sobre alicerces profundamente de sua ameaça. Foi o caso dos ciganos, bem como
autoritários. dos comunistas e dos anarquistas, que poderiam
De modo sistemático, o discurso oficial, as encontrar, no cenário de instabilidade econômica,
teorias científicas e a ação da imprensa se coor- desemprego, miséria e fome que caracterizou o
denaram, manipulando o imaginário coletivo e entre-guerras, ressonância para seus ideais revolu-
difundindo uma hierarquia de valores que inte- cionários.
ressava à elite agrário-exportadora - a ordem e a Cem anos depois, é possível detectar a per-
coesão social, por exemplo, acima da equidade ou sistência dos mesmos valores e medos irracionais
do bem-estar dos cidadãos. Alegava-se que tais va- implantados na sociedade brasileira, identificados
lores seriam mantidos com uma sociedade “pura”, falsamente como garantias do desenvolvimento
livre de raças consideradas inferiores ou avessas ao econômico e social.
trabalho. O projeto de formação do “povo brasi-
leiro” supunha, então, o branqueamento da po-
pulação por meio da miscigenação com europeus.
Esperava-se construir uma homogeneidade étnica
e cultural, apagando a diversidade que fundamenta
uma verdadeira democracia.
Com a justificativa de “povoar os vazios
demográficos” (na verdade, territórios ainda
indígenas) e atrair mão-de-obra qualificada para
o trabalho, o país buscou propagar uma imagem
positiva para os imigrantes. Projetava-se como
uma sociedade harmônica, um hospedeiro cordial
e aberto a todas as etnias, semeando o mito da
democracia racial que iria florescer nos anos 30.
Para fora, mostrou-se como nação que combina-
va o idílio tropical com o progresso capitalista. A
modernização da produção agrícola, o crescimento
urbano, o avanço dos meios de transporte, bem
como as oportunidades de integração nacional
eram os atrativos prometidos.
Na prática, porém, esse discurso não ia
além de um jogo de ilusões; as heranças coloniais Revista O Imigrante. Acervo Museu da Imigração

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A participação de Campinas
na Expo do Centenário
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Campinas orgulhosamente prepara sua participação

O município de Campinas seria o único a Cometimento notável, que teve como promotores um
figurar com um pavilhão particular na Exposição pugilo de beneméritos cidadãos, cujos assinalados ser-
Comemorativa do Centenário da Independência. A viços ao torrão natal são incontáveis, não seria justo
documentação preservada no Arquivo Municipal que desaparecesse, encoberto pelas brumas do tempo,
permite afirmar que, em meados de 1922, houve que tudo destrói, sem deixar uma documentação
eloquente por meio da qual a posteridade, recons-
uma mostra preparatória destinada a selecionar
tituindo-o, possa premiar os grandes e verdadeiros
os seus melhores representantes para a expo do
campineiros.
centenário. A realização de etapas regionais prévias
Além de registrar todas as sessões da exposi-
era um procedimento comum à organização de
ção preparatória, a Haraldo Filmes propõe à mu-
exposições internacionais. Para a sua consecução, a
nicipalidade a produção de um documentário a ser
municipalidade contou com o auxílio do Instituto
distribuído nas salas de cinema de todo o país e do
Agronômico (IAC), conforme atesta um ofício
exterior, a fim de atrair investimentos industriais e
de autorização enviado pelo Secretário do Estado
comerciais para Campinas. A sugestão de roteiro
dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras
apresentada ao prefeito previa a filmagem aérea
Públicas, Heitor Penteado.
e panorâmica de diversos pontos da cidade, suas
Tendo em vista que a participação na
ruas, monumentos e dos chamados bairros (Ame-
mostra do Rio era um empreendimento longo
ricana, Cosmópolis, Souzas, Valinhos e Rebouças),
e dispendioso, a etapa regional permitiu a uma
além do registro das indústrias, do comércio e dos
diversidade de pequenos e médios atores tomar
serviços municipais (de assistência, hospitais e
parte nas celebrações do centenário. Assim,
escolas).
ao lado de grandes instituições e indútrias,
A correspondência enviada por Haraldo
inscreveram-se na exposição preparatória dezenas
revela um aspecto importante do desenvolvimento
de artistas e artesãos, fotógrafos, inventores,
capitalista da época: a competição entre as cidades
estabelecimentos de ensino, produtores agrícolas,
pela atração de capitais e o uso de recursos da co-
confecções de roupas e chapéus e fábricas de
municação social na construção de uma imagem e
vassouras, fogões, equipamentos diversos e
uma reputação favoráveis aos municípios. Ainda, é
produtos químicos. Os melhores produtos e
interessante notar o papel que se atribui ao registro
serviços apresentados receberam premiações.
fílmico nesse documento - simultaneamente, um
Podemos imaginar que o evento local des-
suporte de memória e um instrumento de propa-
pertou o entusiasmo e orgulho dos campineiros.
ganda fidedigno, eficaz e “completo” (ainda que,
Haraldo Egydio de Souza Santos, tenente oficial
àquela época, o cinema fosse silencioso). Final-
da reserva, responsável por um estúdio fotográfico
mente, ressalta a visão que os campineiros proje-
na Rua César Bierrenbach, e S. Moraes Salles, ad-
tam de sua terra - talvez, exageradamente otimista,
vogado, respondendo conjuntamente pela empresa
tendo em vista os próprios relatórios anuais da
Haraldo Film, enviam à Câmara Municipal pro-
prefeitura, que evidenciam as dificuldades financei-
posta para produzir uma película cinematográfica
ras e administrativas em dados objetivos.
destinada a registrar a memória daquele aconteci-
Possivelmente por essa mesma razão (a falta
mento:
de recursos orçamentários), a proposta de Haraldo,

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estimada em oito contos de réis, é aceita apenas gica que como uma forma de arte, comunicação
parcialmente: ao custo de um conto, o prefeito ou registro histórico. As projeções previstas, mor-
autoriza a filmagem da exposição preparatória em mente de cunho documental, couberam à comis-
125 metros de película. Do filme cuja produção são organizadora, designada pelo Ministério da
foi contratada (assim como do empreendimento Agricultura, Indústria e Comércio para controlar a
de Haraldo) não há outros vestígios: a preservação qualidade “técnica” das películas exibidas - ou, an-
cultural não depende apenas da geração de regis- tes, a adequação das imagens captadas à constru-
tros, mas igualmente, de sua guarda, conservação, ção discursiva que agradava às elites da época. É
estudo e difusão. Ainda assim, a documentação do que, mesmo contra a vontade de seus realizadores,
Arquivo revela um dado desconhecido na história os documentários (então ditos “naturais”) acaba-
do cinema campineiro: a existência da Haraldo vam por “tornar visível a desigualdade, a desarmo-
Film não é mencionada nos estudos no campo. É nia e a desproporção [...e], apresentar, ainda que
possível que, ao lado dos produtores mais conhe- involuntariamente em muitos casos, nossa carência
cidos e documentados, tenham emergido outros, tanto espiritual [...] quanto material” (Morettin,
cujos vestígios se perderam no tempo. 2013, p. 150). Para esse autor, os muitos trabalhos
Em todo caso, consta que o ano de 1922 foi feitos nesse período projetaram, para as gerações
muito prolífico para a produção fílmica brasileira. futuras, uma imagem da sociedade congruente
Sobre a presença do cinema na expo do centená- com as visões da elite, fazendo com que o cinema
rio, vale ressaltar que, na programação oficial, ele desempenhasse um papel cívico de monumentali-
foi classificado mais como uma inovação tecnoló- zar seu empenho modernizador.

Correspondências no dossiê relativo à participação de Campinas na Exposição Internacional do Rio

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O pavilhão campineiro:
empenho, dificuldades e
recompensas
Para articular a participação de Campinas na
exposição do Centenário, constituiu-se uma comis-
são municipal. Os Prefeitos Raphael de Andrade
Duarte (até 1922) e Miguel Penteado (a partir de
1923) encarregaram Augusto Leovigildo Cerri,
adgovado e integrante do Centro de Ciências,
Letras e Artes, dos assuntos relativos ao pavilhão.
Este fora construído em local de destaque, entre
o Parque de Diversões e o Palácio das Indústrias
Portuguesas, na Avenida das Nações. Ali, marca-
ram presença os expoentes da nascente indústria
local, os quais receberam importantes premiações
no certame promovido. Conforme o Livro de Ouro
Commemorativo do Centenário da Independência e da guarda da locomotiva fabricada nas oficinas da
Exposição Internacional (1923, p. 312): companhia (exposta ao sol e à poeira, em local de
É modesto e simples o edifício, mas encerra difícil acesso e que exigiria a realização de obras
entre suas paredes ricos e variados mostruários, onerosas). Em seguida, informa que a mesma
demonstrando o progresso iniludível daquela havia sido devolvida a Campinas.
famosa região paulista. Nas diferentes salas do A despeito de certas dificuldades, os repre-
pequenino pavilhão encontram-se amostras de café, sentantes da indústria campineira saem-se bem no
principal riqueza do município, tecidos elásticos,
certame promovido, sendo indicados para várias
fitas e gravatas de seda, tintas, couros, produtos
premiações. Em janeiro de 1923, o encarregado do
de selaria, fumo, milho, algodão, tecidos diversos,
pavilhão escreve ao prefeito, listando alguns dos
objetos de cirurgia, artefatos de cimento, vidra-
çaria decorativa, arroz, bebidas, camas de ferro,
expositores contemplados com medalhas. No dia
perfumaria, pregos, giz de cores, licores, calçados, 25 de julho, o pavilhão começa a ser desmontado
chapéus, artefatos de ferro, brinquedos, produ- e os mostruários e produtos expostos são devol-
tos químicos e farmacêuticos, botões, ladrilhos e vidos aos seus fabricantes, conforme os ofícios
mosaicos, etc. Vários mapas e gráficos, demons- arquivados. Apenas em maio do ano seguinte,
trativos do desenvolvimento da região, pendem das porém, é que a Associação Comercial de São Paulo
paredes. No vestíbulo do pavilhão encontra-se recebe os 71 diplomas concedidos pelo juri (as
curiosa maquete do monumento do Ipiranga medalhas chegariam somente em março de 1925).
trabalhada em madeira. O vereador Álvaro Ribeiro pede que o Prefeito
Podemos supor que a comissão esforçou-se intervenha e mande buscar os diplomas, para que
por causar a melhor impressão aos visitantes da se possa fazer a distribuição em uma sessão solene
expo, planejando exibir o progresso industrial do na Câmara, já que o município havia patrocinado
município por meio de elementos impactantes. As o empreendimento. A demora na remessa das
condições objetivas, porém, limitaram a consecu- medalhas e a insistência de alguns expositores em
ção de certas ideias. É o que demonstra o ofício da receber seus diplomas o mais rápido possível fez
Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e Nave- com que a prefeitura desistisse de realizar a sessão
gação ao Prefeito Raphael Duarte. No dia seguinte solene, e os diplomas e medalhas foram colocados
à inauguração da expo do Rio, o Diretor Manoel à disposição de seus destinatários na Secretaria da
de Moraes envia queixa relativa às condições de Prefeitura, a partir de 25 de abril.

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Prenúncios de um novo tempo:
a mecanização da indústria e o
desenvolvimento urbano
A lista dos expositores campineiros premia- Tais empreendimentos assinalam o início
dos na expo do Rio oferece uma visão do desen- da transição da base econômica local - do setor
volvimento econômico do município no início dos agroexportador para o industrial e de serviços. A
anos 20. Considera-se o período como o ápice da partir dela, Campinas ganharia uma nova feição,
sua gênese urbana, marcado ainda pela força da tanto urbanisticamente quanto nos costumes e
agricultura cafeeira, pelo avanço da ferrovia e a relações sociais. Despontavam também alguns dos
gradativa substituição da manufatura quase arte- setores que décadas mais tarde iriam se consolidar
sanal pela mecanização industrial. Estavam em na economia campineira: as indústrias alimentícia,
plena atuação dois dos três “agentes geradores da química e farmacêutica e a pesquisa científica e
cidade”, conforme Lewis Mumford: a fábrica e a tecnológica. Muito do que compõe o desenvolvi-
ferrovia (o terceiro sendo a mina). mento metropolitano atual - incluindo suas voca-

Em 10 de janeiro de 1923, a firma José Mi-


lani & Cia envia ao prefeito ofício de agra-
decimento pelas felicitações recebidas em
função da “distinção obtida por nossos
produtos na Exposição Internacional do
Rio de Janeiro, os quais foram contempla-
dos com uma medalha de ouro.”

José Milani nasceu em Veneza e imigrou


para o Brasil. Em 1897, iniciou uma peque-
na fábrica de sabão em Campinas. Anos
mais tarde, a fábrica ficaria conhecida pelo
seu principal produto, o sabonete Gessy.
Em 1932, a José Milani & Cia passou a se
chamar Companhia Gessy Industrial. Nos
anos 60, a companhia foi comprada pela
Lever Brothers, passando a se chamar Ges-
sy Lever. Em 2001, a razão social passou a
seguir a identidade corporativa internacio-
nal, denominando-se Unilever.

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ções e seus principais atores econômicos e políti- revelando relações entre os atores sociais, o tempo
cos - encontra ali suas raízes. e o espaço - dependem de uma prática integral da
Constituindo marcos essenciais para a leitura preservação, isto é, uma abordagem que ultrapas-
histórica da paisagem urbana campineira (e em al- se a manutenção de fachadas e outros aspectos
guma medida, de sua Região Metropolitana), diver- visuais, alcançando os significados históricos e os
sos edifícios e conjuntos arquitetônicos formados valores culturais que eles evocam. Existe uma lição
pelas fábricas e vilas operárias erguidos em torno das coisas. É preciso nos habilitarmos a desco-
dos anos 1920 foram tombados pelo Conselho de dificar os elementos da paisagem que entrelaçam
Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Con- afetos (emoções) e linguagens, e os recodificarmos
depacc). Suas funções sociais - dentre elas, a de ilu- em gestos criativos, capazes de conceber uma vida
minar os processos atuais de produção da cidade, mais plena para todos os cidadãos.

Indústrias química e farmacêutica

Os sabonetes produzidos por José Bachl, Carlos Fernandes recebeu menção honro-
em sua fábrica de sabões da rua Major sa pelo anil japonês, produzido na fábrica
Solon, 2B, receberam menção honrosa. que funcionava na Rua Francisco Teodoro.

Julio N. de Toledo & Cia recebem medalha


de prata pela sua perfumaria.

Irineu J. Miranda, farmacêutico licencia-


do pela Escola de Farmácia de São Paulo
e atuante em Valinhos (Rua Cel. Antônio
Cachas, 21), recebeu menção honrosa por
seus produtos farmacêuticos.

17
Indústria alimentícia

A. Franceschini & Cia recebeu a medalha Os produtos de A. Franceschini & Cia,


de ouro por suas cervejas, xaropes e bebi- elaborados com matéria-prima importada
das. da Alemanha, receberam medalhas de
ouro e diplomas de honra nas exposições
A fábrica de bebidas com nome fantasia de Torino, em 1911, e Roma, em 1913. A
“Columbia” era propriedade de Ângelo Columbia teve vários produtos renomados
Franceschini, um italiano que chegou ao e chegou a empregar 70 trabalhadores,
Brasil em 1875. Em 1880, o empresário, marcando a vida e a paisagem urbana de
em sociedade com A. Belluomini, fundou Campinas na primeira metade do século
a Fábrica de Cervejas Guarani, localizada 20. Meio século após sua inauguração,
onde hoje é a rua Cônego Scipião. Em seu edifício-sede seria transferido, com
1906, ele aluga parte da quadra 24 da toda a fábrica, para a Companhia Antárc-
Avenida Andrade Neves, que então per- tica Paulista, que estava em processo de
tencia à fundição MacHardy, para construir expansão. Então, o imóvel passou a fun-
uma nova fábrica. Com problemas finan- cionar como depósito, e os produtos da
ceiros, porém, a MacHardy coloca à ven- Columbia gradativamente foram retirados
da o edifício de tijolos à vista, situado no do mercado.
número 103 da Avenida Andrade Neves.
Assim, em 1907 começa a funcionar ali a No início dos anos 2000, a fusão entre
Fábrica de Cerveja e Gelo Columbia. as gigantes Antárctica e Brahma cria

18
a Ambev. O edifício da Av. Andrade A fábrica de bebidas de Caetano
Neves, com 2,6 mil metros quadrados, Scognamiglio, com sede na Rua 13 de
fica alguns anos abandonado, sendo Maio, 70, também recebeu medalha
adquirido pela Sanasa em 2004 para a de ouro por seus licores, xaropes e
instalação de oficinas e um museu da conhaques.
água. Abre-se um processo de estudo
visando o tombamento do bem pelo
Condepacc (processo no. 09/04), o que Em Valinhos, Dona Amélia Ramos Noguei-
finalmente é obtido, com a resolução no. ra destacou-se pela produção de doces
76 de 2008. Sem implementar os projetos cristalizados, além de licores, vinagres e
previstos, a Sanasa tenta leiloar o prédio vinho de frutas, que receberam medalhas
em 2010, mas não encontra compradores. de ouro e prata, respectivamente.
A Prefeitura de Campinas, então, adquire
o bem em 2020 por 8 milhões de reais.
Até o momento, a área permanece
desocupada e em estado de depredação,
mantendo-se íntegras apenas as
fachadas externas, passíveis de serem
recuperadas e incorporadas no caso de
atribuição de novo projeto de uso.

19
Godoy, Walbert & Cia., fábrica de tecidos
elásticos de seda recebeu o grande prê-
mio.

A fábrica pertencia aos sócios Silvino de


Godoy e Guilherme Roberto Valbert. Sua
sede, erguida em 1921 na rua José Pauli-
no, número 1829, é um marco importante
da industrialização de Campinas, tendo
sido tombada como patrimônio cultural A seção de cereais da Rawlinson, Müller &
pelo Condepacc em 1993 (Processo no. Cia. recebeu o grande prêmio.
1/89). Reportada como a primeira fábrica
de tecidos elásticos da América Latina, Essa empresa, localizada nas fazendas São
contribuiu para substituir as importações Domingos e Salto Grande, no bairro (dis-
procedentes de Inglaterra, Suíça e Itália. trito) de Americana, corresponde à afama-
Seus produtos, além de receberem o gran- da Fábrica de Tecidos Carioba (a palavra
de prêmio na Exposição do Centenário, fo- carioba, em tupi-guarani quer dizer “pano
ram premiados na Exposição de Bruxelas, branco”). Tendo sido uma das três primei-
em 1930. Funcionou até 1988 na referida ras tecelagens do Estado de São Paulo, ela
sede, fabricando elásticos para botinas e se tornaria um verdadeiro complexo fabril
sapatos, tendo sido encerrada em 1990. no início do século 20. Fundada em 1875
por Antônio e Augusto de Souza Queiroz
O sócio Sylvino de Godoy foi presidente e William Pultney Ralston, passaria ainda
da ACIC (fundada em 1920 com o objetivo pelas mãos de Clemente Willmot e seus
de lutar pela redução da carga tributária) sócios, antes de ser adquirida por Ingels
por três vezes: 1933 a 1936, 1938 a 1939 Rawlinson e os irmãos Franz, Hermann e
e 1948 a 1951. Em 1938 ele adquiriu o Theodor Müller (1901), já com uma cente-
jornal Correio Popular. Sylvino de Godoy na de teares elétricos.
Neto é hoje o diretor-presidente do Grupo
RAC. Após comprar a parte de seus sócios,
Franz Müller iniciaria um processo de
modernização e ampliação da fábrica,
buscando concentrar e controlar todas as
fases da cadeia produtiva e os insumos ne-
cessários à produção - o que seria seguido
pelo seu filho e sucessor, Hermann Müller.
A Carioba se ocupava desde a geração da
energia elétrica que movia os teares até o
melhoramento das sementes do algodão
cultivado, passando pela vida social dos
operários, instalados na sua vila.

20
Indústria têxtil
O complexo agro-fabril da Carioba pro-
duzia o próprio algodão para fiação, tendo
constituído um laboratório genético para a
seleção e o melhoramento das sementes,
que chegaram a ser premiadas e forneci-
das para todo o Brasil. Por meio de con-
vênio com o IAC, além das sementes de
algodão, a Carioba produzia milho, feijão
e feno para a pecuária de leite, itens que
abasteciam a vila operária. Além da tece-
lagem, havia seções de estamparia, fiação
e tinturaria. Em seu auge, a fábrica pos-
A Villa Operária de Carioba, erguida com suía 350 teares, 7 mil fusos, 720 operários
arquitetura de inspiração alemã, prospe- (a maior parte, imigrantes italianos), 287
rou por cerca de meio século como uma casas na vila, alcançando a produção de 7
experiência de social democracia onde milhões de metros de tecidos de algodão.
todos os equipamentos coletivos eram
controlados pela empresa: escola, comér- Em 1944, a indústria foi comprada pelo
cios, hotel, clube recreativo, salão de dan- Grupo JJ Abdalla. Aos poucos, tanto a em-
ças, cinema, igreja, parque e até mesmo presa quanto a vila operária foram entran-
aeroporto. As casas dos operários, dotadas do em declínio. Em 1976, em grave crise
de água encanada, luz elétrica e rede de econômica, os teares da Carioba foram
esgoto, também deviam ser mantidas de silenciados definitivamente. O patrimônio
acordo as rígidas normas da firma, como a arquitetônico foi preservado pelo municí-
exigência no cuidado dos jardins. pio de Americana, com os galpões sendo
locados para pequenas tecelagens locais.
As vilas operárias, que se tornariam um A sede da Fazenda Salto Grande passou a
fenômeno comum no Estado de São Paulo abrigar um museu e a residência da famí-
a partir dos anos 1920, propagavam-se lia Müller tornou-se uma casa de cultura.
como um modelo de harmonia entre o Quanto à vila operária, o grupo empresa-
capital e o trabalho. Na prática, como re- rial - agora denominado “Agro Imobiliária
velou o estudo de Bruno Braga Fiaschetti, Jaguari” - decidiu demolir e aguardar a va-
destinavam-se ao controle social de uma lorização dos terrenos arrasados. A única
grande massa populacional, sobretudo edificação restante foi a Igreja de São João
imigrantes recém-chegados, acomodan- Batista de Carioba.
do-os tanto aos preceitos higienistas quan-
to aos padrões de comportamento consi- Em 2020, um incêndio destruiu cinco
derados adequados pela moral burguesa, galpões que faziam parte do complexo de
num modo de vida disciplinado pelos fábricas da Carioba, datados do final do
ritmos do trabalho. século 19.

21
Ciência e tecnologia A Companhia MacHardy, com sede na Rua
Andrade Neves, destacou-se na exposição
O Instituto Agronômico de Campinas com máquinas de beneficiamento de
recebeu o grande prêmio por seus estudos produtos agrícolas: separador Polak,
de cruzamento artificial de espécies de canjiqueira, batedeira de arroz e máquina
café, cultivadas em terras preparadas de matar formigas.
segundo protocolos científicos. Fundado A Mc-Hardy era uma sociedade anônima
por Dom Pedro II em 1887, passou à que tinha como objetivo atuar na fabrica-
administração do Governo do Estado de ção e importação de máquinas, materiais
São Paulo em 1892. Importante instituto para estrada de ferro, abastecimento de
de pesquisa que conta com um centro de água e dependência para iluminação, im-
documentação histórica com preciosos portação em geral e empreitadas, explora-
registros documentais e fotográficos. ção de privilégios, concessões e contratos,
fornecimentos para construções civis, na-
Indústria metal-mecânica vais e hidráulicas, além de adquirir, vender
e fundar fábricas e fazer instalações, po-
dendo explorá-las, arrendar ou vendê-las.
​Em 1883, ela somava de 140 a 145
empregados. No ano de 1900 já eram
320 empregados. Como podemos
constatar pela fotografia abaixo, publicada
pelo blog Campinas Meu amor, alguns
desses empregados eram crianças ou
adolescnetes.

22
Agroindústria
Joaquim Duarte Barbosa recebeu medalha
de ouro pelo café torrado e medalha de
prata pelo café em grão.

O comerciante Joaquim Duarte Barbosa


vendia “secos e molhados” no atacado e
varejo, em um estabelecimento situado
à Rua Conceição, número 50. De origem
portuguesa, o negociante abriu a Casa
Mondego em 1898, onde cerca de dez
empregados faziam funcionar uma
pequena torrefação, com três moinhos e
um torrador de ar quente. Assim surgiu o
Café São Joaquim, que ainda hoje pode
ser apreciado pelos campineiros.
Passos, Marques & Cia. receberam
medalha de prata pelo arroz beneficiado.

A fecularia de Turibio Leite de Barros,


proprietário da Fazenda Santana,
produtora de café, recebeu a medalha de
prata.

Telles, Lima & Irmãos, proprietários da


Fazenda Chapadão, produziam fibras
de guaxumã para vassouras, recebendo
medalha de prata da exposição.

Na Rua Benjamin Constant, 71, Achilles


Zanaga mantinha uma fábrica de
beneficiamento de algodão e arroz,
Nicolau Purchio & Cia receberam medalha produzindo também botões de osso e
de ouro pelo açúcar refinado e filtrado. jarina. Estes botões foram premiados com
A refinaria de açúcar, situada na Rua Dr. a medalha de bronze na exposição do
Campos Sales, 15, também funcionava centenário. Zanaga tinha, também, uma
como fábrica de chocolates, importadora e casa de ferragens, tintas e louças, que
comércio de secos e molhados. funcionava na Rua Antônio Lobo, 10.

23
Bens de consumo
de Poiares. Em Campinas, foi presidente
da Sociedade Portuguesa de Socorros
Mútuos, fundada em 1904, com sede na
Rua Campos Sales, 12, e tesoureiro da Loja
Maçônica da Independência. A fábrica dos
calçados Dalva ficava na Avenida João
Jorge, 49.

Paschoal Laloni & Filhos receberam o


grande prêmio ao apresentarem seu
granito artificial. Diretor do Círcolo Italiani
Uniti, Laloni era fabricante de móveis,
sediado na Rua Duque de Caxias, 71.

Luiz Marsaioli, construtor e “consertador”


de instrumentos musicais, recebeu
diploma de honra pela sua harmônica.
Em 1904, ele participou da Exposição de O Curtume Firmino Costa, estabelecido na
Compras de Louisiana, St. Louis, expondo Vila Industrial e com um ponto comercial
acordeões. Sua loja ficava na Rua Dr. na Rua 13 de Maio, 14, expôs diversos
Quirino, número 101. produtos feitos de couro: coralete, selim
mexicano, pedaços de solas, atanados,
Horácio de Tulli recebeu medalha de prata capão para futebol e couro de bezerro.
pela produção aperfeiçoada de cerâmica.
Criado com o nome de “Cortume
Brasil”, funcionou até 1996. Em 2008, o
Damaso Simões Felgar, fabricante dos terreno da fábrica, com 174 mil metros
calçados Dalva e dono da Sapataria quadrados, é adquirido por uma empresa
Portugal, recebeu a medalha de prata de engenharia e construção, incorporada
pelos calçados finos expostos. Damaso pelo Grupo Camargo Correia, e se torna
nasceu em 1887 Em Vimieiro, Vila Nova um condomínio residencial.

24
Vicente Cury & Cia. mereceu a medalha de sendo a sua configuração final datada de
ouro pelos chapéus de pelo e lã. 1957. No auge, a fábrica chegou a ter 800
funcionários.
A afamada Fábrica de Chapéus Cury foi
inaugurada em 1920, sendo uma das Por volta dos anos 1970, os chapéus
primeiras do ramo no interior do Estado. começam a cair em desuso, com a mudança
Era propriedade de Vicente Cury e seu de valores, a simplificação dos estilos de
filho, Miguel Vicente Cury - personagem vida e a aceleração dos ciclos da moda.
que ocupou por duas vezes o posto Nos anos 80, os chapéus Cury tiveram
de Prefeito de Campinas, tendo sido uma sobrevida com o surgimento da
responsável por importantes mudanças tendência sertaneja. Nos anos 2000, cerca
urbanísticas na cidade. Localizada num de duzentos empregados davam conta
terreno de 5 mil metros quadrados, é da produção de 40 mil chapéus por mês.
considerada um importante marco na Contudo , o declínio não tardaria.
industrialização de Campinas, contando
com maquinário a vapor. Seus produtos, Desde os anos 1990, a preservação do
feitos de pelo de coelho, castor e lã de imóvel tem sido pautada. Sob a orientação
ovelha, distribuídos em todo o país e da Coordenadoria Setorial do Patrimônio
exportados, foram símbolos de uma Cultural, porém, o Condepacc tombou
época em que a indumentária tinha como apenas a fachada e a chaminé, em 2008.
valor a elegância e a durabilidade no Com o encerramento das operações
tempo. Seu edifício-sede, localizado na da fábrica, em 2012, o maquinário foi
Vila Itapura, foi diversas vezes ampliado, comprado por industriais da Bolívia, país
que importava muitos chapéus brasileiros. E
o terreno, finalmente, acabou vendido para
uma construtora.

Por anos, parte da sociedade civil se


manteve mobilizada com o objetivo de que
o conjunto arquitetônico pudesse abrigar
um centro cultural. Em 2022, todo o interior
da fábrica foi demolido para dar lugar a um
condomínio de uso residencial e comercial.
Do edifício que marca a paisagem de
Campinas, restaram a fachada e a chaminé.

CD
Na Expo de 22, a medalha de prata ficou
com os Irmãos Dedeca, pelos chapéus
de linho e imitação Panamá. A fábrica se
localizava na Rua Cônego Scipião e a loja,
na Rua Barão de Jaguara, 90.

25
Os artistas/escultores presentes
Alfredo de Camargo apresentou uma
miniatura em madeira do Monumento
do Ipiranga, feita a ponta de canivete. A
escultura recebeu menção honrosa.

Marcellino Velez, à frente da Marmoraria


Velez, apresentou a escultura do Saci
Pererê.

A Marmoraria Velez havia sido fundada


em 1876, sendo especializada em
esculturas para túmulos, arquitetura e marcado pela riqueza de alegorias e
ornamentação de fachadas e interiores. detalhes trabalhados no mármore branco
Situava-se na Rua Dr. Campos Salles, 33. e por uma simbologia que aludia à
Premiada na exposição universal de 1908, espiritualidade e à religiosidade ligada
orgulhava-se de seu maquinário movido a aos valores da sociedade burguesa.
eletricidade. Foi responsável pela ornamentação de
vários túmulos localizados na Avenida
Marcellino (16/08/1883-26/01/1953) era das Palmeiras, no Cemitério da Saudade,
filho de Patrício Velez, também escultor, bem como no Cemitério do Santíssimo
famoso pela arte tumular em Campinas. Sacramento da Catedral. Seus negócios
O pai, ativo durante a época da “belle também prosperaram em São Paulo, onde
époque” campineira (o auge da economia possuía uma filial.
cafeeira), possuía um estilo eclético,
Visando à continuidade de sua obra,
Patrício enviou seu filho, Marcellino,
à Itália, com o objetivo de aprender
a lapidar o mármore. Ele se tornaria
professor de desenho na Escola Normal
de Campinas. Após a morte do pai, passou
a comandar a Marmoraria Velez. Nesse
período, de transição para uma economia
industrial, a mentalidade e o gosto da
sociedade também se transformavam,
predominando as obras no estilo art déco.
Os materiais trabalhados se tornam mais
populares, como o granito. A estética
devém menos simbólica, mais direta. São
de autoria de Marcellino o Monumento
ao Dr. Thomaz Alves e o Mausoléu aos
Voluntários de 32 - ambos os projetos
escolhidos em concorrência pública.

26
Das contradições
e alterativas ao
projeto moderno

Tempos e contratempos:
a modernização imprimindo o ritmo urbano

No período que compreende as duas pri- infraestrutura rodoviária beneficiam diretamente


meiras décadas do século 20, Campinas atravessa o município - que já era um importante entron-
mudanças estruturais significativas, sem perder a camento ferroviário. Como resultado, Campinas
posição de destaque na economia nacional e sem fecha a década com 91 manufaturas onde traba-
que a riqueza mude, necessariamente, de mãos. lham 1340 operários. Consolida-se, então, a fase
Gradativamente, os capitais acumulados pelas da primeira industrialização, que se estenderia até
exportações de café propiciam a diversificação da 1948.
produção agrícola e o crescimento das atividades Correspondendo a este movimento, a popula-
industriais e de serviços. ção - que quase duplica entre 1900 e 1920, indo de
As grandes fazendas começam a ser reparti- 67 mil a mais de 115 mil habitantes, dos quais 20%
das e vendidas em pequenos lotes. A produção de eram imigrantes - passa a se concentrar cada vez
gêneros alimentícios se torna expressiva e prospe- mais no meio urbano (chega-se a 50 mil morado-
ram os fabricantes de máquinas e equipamentos res na cidade). Os núcleos populacionais consis-
destinados ao seu processamento - estabelecimen- tiam, então, de Campos Salles (Cosmópolis e Artur
tos pequenos e, via de regra, com recursos locais. Nogueira), Nova Veneza (Quilombo, Barreiro, São
A prefeitura desempenha seu papel, editando leis Bento e São Luiz), Nova Odessa e Visconde de
de incentivo à instalação de indústrias (a Fábrica Indaiatuba, além de Americana. A diversidade de
de Tecidos Elásticos e as Indústrias de Seda Na- mercados de trabalho e de consumo possibilitou
cional, por exemplo, recebem isenção de impostos sua inserção e ascensão social numa estrutura hie-
por uma década). Os investimentos do Estado na rárquica ainda liderada pela elite cafeeira.

27
Redesenho urbano para
acomodar as massas
A “belle époque” campineira vai, aos Um novo modelo de cidade está prestes a se
poucos, saindo de cena. Até então, ruas e praças consolidar. O território se especializa entre o cen-
ajardinadas configuravam a cidade como lugar tro e os bairros - estes, diferenciados segundo as
de idílio e fruição subjetiva, movimentado pelos classes sociais. Cria-se o zoneamento segundo os
passeios vespertinos das famílias, ao ritmo e ao usos autorizados dos terrenos: o traçado interno
som dos bondes elétricos. A partir daí, começa da urbe passa a comportar as funções industriais,
a conviver com as chaminés fumegantes das comerciais e de serviços, enquanto se formam
fábricas, o trabalho nas linhas de produção, a novas zonas, exclusivamente residenciais e de ocu-
simplicidade organizada das vilas operárias e o pação mais rarefeita, nos arredores. Nos terrenos
roncar dos velozes automóveis. A velha Campinas recém-valorizados, destinados à moradia, surge um
“perde seu fausto”. novo modelo de habitação: a casa isolada no lote,
O poder público, que havia se empenhado em concebida como um refúgio familiar para os mais
higienizar e embelezar a cidade, “mergulhando-a” abastados, seguindo o estilo de vilas e bangalôs.
num bosque, entende agora seu papel como indu- Para os trabalhadores de menor renda, colocam-se
tor do progresso, procurando atrair as indústrias e à disposição plantas-modelo de caráter popular,
o operariado, considerados os motores do cres- cuja construção era autorizada em regiões prede-
cimento econômico. Ao mesmo tempo, ele terá terminadas pela municipalidade (setor entre a linha
que lidar com as exigências da democratização dos da ferrovia e a avenida João Jorge). Os padrões
recursos e administrar a massificação dos serviços. construtivos são simplificados e homogeneizados:
Para isso, a resposta é a universalização - isto é, a diminui a altura do pé direito, criam-se os porões
homogeneização e padronização das relações - nos habitáveis, enquanto o recuo em relação à rua e a
contratos de trabalho, na organização da cidade, na espessura das paredes são reduzidos. Nas fachadas,
arquitetura dos edifícios, na difusão dos transpor- o estilo eclético dá lugar aos adornos geométricos
tes, nos procedimentos burocráticos e até mesmo e naturalistas. Os novos padrões da cidade vão
no sistema de ensino. requerendo, também, um novo padrão humano.

Mapa de implantação da Vila Itapura e vista aérea da Vila Cury, destinada em parte aos operários da
fábrica de chapéus Vicente Cury

28
Novas e velhas
ondas em choque
Nesse período de transição, o velho e o novo
convivem em disputa: os automóveis e as carroças
pelas ruas; as boiadas e os bondes elétricos; os
antigos habitantes e a massa de imigrantes recém-
-chegados. Assim, o desenvolvimento urbano aca-
ba por desnudar as várias tensões e contradições
do processo modernizador, na medida em que
faz concentrar num mesmo espaço percepções,
valores, comportamentos e concepções de mundo
conflitantes. Além disso, evidenciam-se os limites
próprios da dinâmica capitalista, que implica exclu-
sões e acessos desiguais aos diferentes segmentos
sociais. O rearranjo das forças econômicas, po-
líticas e culturais numa nova hegemonia expõe bre-
chas a serem aproveitadas por setores sociais que
buscavam contestar o já estabelecido e disputar os
espaços de poder.
Enquanto a grande imprensa vocalizava os
interesses da elite, propagando o tão desejado
progresso, os segmentos culturais, que se manifes- Casa Genoud, editora da revista A Onda.
tavam principalmente por meio das revistas ilus- Fonte: Pró-Memória de Campinas
tradas, ironizam graciosamente as expectativas de em dia com as novidades tecnológicas e civilizada
modernização. Assim, à imagem da urbe próspera, pelos novos hábitos culturais e costumes, esboça-
da pelos jornais diários, os artistas e literatos vão
opondo o desenho mais matizado de uma cidade
imersa em problemas sociais e econômicos, cujos
serviços públicos deixam a desejar.
É o caso da revista A Onda, editada pela Casa
Genoud e estudada por historiadores como Lívia
Correa, Maria Sílvia Hadler e Eustáquio Gomes.
Entre artigos de fundo, crônicas jocosas e caricatu-
ras ácidas, suas páginas denunciam o desemprego,
o custo de vida elevado, a alta dos aluguéis e a
escassez de moradias adequadas, o desabasteci-
mento de água, a falta de ambulâncias, o aumento
do número de pessoas vivendo em situação de rua.
A crítica também recai sobre os novos hábitos e
comportamentos sociais - especialmente, sobre as
liberdades experimentadas pelas mulheres no estilo
de vida moderno. A influência da música dançante
e do cinema americano sobre a moda e o compor-
tamento feminino é frequentemente alvo de recri-
Exemplar de A Onda. Fonte: Hora Campinas minações, contestadas ativamente pelas mulheres.
29
Operários na greve de 1917 em São Paulo.

Reexistências
Fonte: Wikimedia Commons

na urbe
A documentação constante no Arquivo Muni- Essa tarefa necessita de nosso empenho
cipal, relativa às comemorações do Centenário da coletivo e permanente, para abarcarmos e
Independência do Brasil, em 1922, nos mostra reconectarmos uma pluralidade de experiências
um lado oficial da história - que, como vimos, se e sujeitos sociais. Evidentemente, no âmbito
identifica com as projeções dos segmentos sociais desta exposição virtual não conseguiríamos
da elite. esgotar as múltiplas perspectivas que podem ser
Para que possamos ter um entendimento mais assumidas. Ainda assim, é importante trazermos
amplo dos processos sociais que se desenrolavam alguns exemplos de iniciativas e lugares nos quais
naquele momento, portanto, é preciso interrogar- possibilidades outras (alterativas) eram gestadas,
mos sobre o que está ausente das documentações abrindo caminho para um inédito viável:
e buscarmos os vestígios das ações dos grupos que
O “inédito-viável” é na realidade uma coisa inédita,
estão invisibilizados e silenciados nessa narrativa
ainda não claramente conhecida e vivida, mas
hegemônica. Em outras palavras, é importante
sonhada e quando se torna um “percebido destacado”
recebermos esta exposição não apenas pelo que
pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então,
ela é capaz de nos mostrar, mas, também, pelas
que o problema não é mais um sonho, que ele pode se
ausências que ela contém. Que elas sejam entendi- tornar realidade. (Freire, 1992, p. 206)
das não como inexistências, mas pontos de partida
para novas buscas, rumo às emergências e insur- Dessa maneira, escolhemos rememorar as
gências que, no tempo e espaço que observamos, lutas operárias, a organização do movimento negro
contestavam e invertiam os sentidos propostos na imprensa e o papel desempenhado pela ferrovia
pela minoria instalada no poder. na direção da mobilidade social.

30
Lutas operárias

No Brasil, a questão de classes, sobreposta à de Santos, no litoral, reivindicando aumento de


questão racial, dá sinais iniciais de efervescência salário e melhores condições de trabalho.
por volta de 1906, quando o movimento operário Rapidamente, os operários das fábricas ade-
funda a Confederação Operária Brasileira, orga- rem à paralisação. Um dos líderes do movimento
nizando as primeiras greves. Mas irá emergir com em Campinas, Ângelo Soave, foi identificado e
força no final dos anos 1910, quando as contradi- preso, sendo determinada sua transferência em
ções do incipiente processo de industrialização das comboio para São Paulo, onde seria julgado. Os
cidades brasileiras permitir a tomada de consciên- trabalhadores ocupam, então, os trilhos da ferrovia
cia dos trabalhadores em relação à sua situação de na passagem da Porteira do Capivara, visando im-
extrema opressão. A partir da acumulação propi- pedir a saída de Soave. A polícia reage com bruta-
ciada pela exploração do trabalho na economia lidade desproporcional. Dezesseis operários foram
cafeeira, o processo de industrialização havia se detidos e três – Antônio Rodrigues Magotto, Tito
acelerado nos primeiros anos do século XX, fazen- Ferreira de Carvalho e Pedro Alves, esse com ape-
do com que em trinta anos o número de fábricas nas 18 anos de idade – são sumariamente executa-
no país passasse de 600 para 13 mil, e o número de dos, provocando indignação entre os trabalhadores
operários, de 54 mil para 275 mil. As condições de e a imprensa.
trabalho eram extremamente aviltantes e insalu- O fim da greve foi negociado com importan-
bres. As jornadas extenuantes de 10 a 16 horas, em tes concessões. Mas, em geral, elas não chegaram
troca de um salário irrisório e por vezes pago em a ser postas em prática, tampouco a atuação do
atraso, não poupavam mulheres nem crianças. empresariado seria fiscalizada. A repressão que
Não havia direitos garantidos aos trabalhado- se seguiu foi violenta, visando criminalizar os
res, e até mesmo a violência física era empregada movimentos trabalhistas e reprimir sobretudo
para garantir a produtividade. Entre junho e julho os anarquistas. Esse movimento, preponderan-
de 1917 eclodem paralisações em todo o país e te na organização do operariado, seria asfixiado
logo em seguida é declarada uma greve geral dos pela supressão das condições de sua mobiliza-
trabalhadores da indústria e do comércio. Sob a ção. Agentes policiais foram infiltrados no meio
orientação dos anarquistas e com a participação dos trabalhadores para mapear as lideranças. Os
dos principais líderes sindicalistas, socialistas e estrangeiros eram identificados e punidos com a
democratas, cerca de 70 mil operários grevistas extradição, determinada pela Lei de Expulsão de
tomaram a cidade de São Paulo por quarenta e 1919, e os jornais operários seriam silenciados pela
cinco dias, sendo apoiados por toda a população Lei de Imprensa, de 1923. Governo e empresaria-
pobre. As reivindicações diziam respeito à redu- do alegavam tratar-se de uma conspiração inter-
ção da jornada de trabalho; ao direito a descanso, nacional destinada a ‘subverter’ a ordem social e,
férias, aposentadoria, condições de segurança, dessa forma, justificavam suas ações arbitrárias. De
melhores salários e à redução do desemprego. modo geral, as legislações que se seguiram no perí-
Além da situação ‘calamitosa’ dos trabalhadores, odo atendiam aos empregadores e prejudicavam a
as notícias sobre a revolução russa foram decisivas classe trabalhadora como um todo. Não obstante,
para desencadear a onda de protestos. Inspirados esses continuariam permanentemente mobilizados,
pelos operários paulistanos, os ferroviários do ampliando-se a organização dos comunistas a par-
interior também deflagram uma greve abrangendo tir dos anos 1920. Em 1922, o Partido Comunista
as cidades de Campinas, Sorocaba e Jundiaí, além Brasileiro seria fundado.

31
A imprensa para a defesa
dos homens pretos

No início do século 20, a imprensa desempe- 1925) e contextualiza a imprensa negra do período,
nhava um importante papel na conformação do demonstrando que mais do que ocupar um espaço
espaço público, sendo um instrumento indispen- com competência técnica, os seus jovens produ-
sável para que os diferentes grupos sociais pu- tores afirmavam sua plena existência e concebiam
dessem vocalizar seus pontos de vista e defender um projeto outro de nacionalidade, calcado no
seus interesses. Assim, a existência de numerosas pertencimento.
iniciativas dos movimentos negros nessa arena é O grupo de editores e jornalistas do Getulino
significativa para expressar a sua organização e rompeu com o modelo de atuação social estabe-
suas pautas. lecido para as pessoas negras durante a primeira
Num contexto histórico marcado pelo pre- república, antecipando um nível de consciência,
conceito e pela segregação social ancorados num organização e disposição para luta que iria flores-
racismo supostamente científico, floresceram em cer décadas mais tarde, com a fundação da Frente
Campinas vários jornais produzidos por grupos Negra Brasileira. Em seu tempo histórico, sua
negros - incluindo O Bandeirante, “primeiro jornal ousadia resultou na indisposição com a sociedade
do preto paulista”, lançado em 1910, A União, de campineira e mesmo com os setores mais con-
1918 e A protectora, de 1919. Gonçalves (2012) es- servadores da sua comunidade negra. Segundo
tudou o jornal O Getulino (publicado entre 1923 e Gonçalves (2012,p. 237-238):

O grupo produtor do “Getulino” defendia a nacionalidade do negro


brasileiro como um direito a ser reconhecido para além das leis, que já lhes
garantiam este status. Eles lutavam para que a sua nacionalidade fosse
reconhecida na prática social, pois tinham para si, corretamente, que foi sobre
os ombros dos negros que o Brasil foi construído; e que tanto eles quanto seus
pais e avós nasceram em terras brasileiras, sendo, portanto, brasileiros desde
sempre.
Ao reivindicarem seu direito de serem tratados como cidadãos
brasileiros que eram, [...] também tocavam na ferida aberta da questão do
preconceito e discriminação racial, que tanto o Estado como sociedade civil se
esmeravam em escamotear e negar.
Lino Guedes, jornalista, um dos [...] Defendiam a livre circulação do negro em todos os espaços da
editores de O Getulino urbe, sem restrições ou a criação de guetos voluntários. A estratégia adotada
era do confronto controlado, dentro da lei e em grupo, minimizando assim a
possibilidade de neutralização da ação pela intimidação do indivíduo isolado.
Defendiam, até mesmo, o boicote por parte dos trabalhadores e
trabalhadoras negros às ofertas de emprego em estabelecimentos [...] que não
respeitassem a dignidade do negro. [...]
Este grupo de jovens negros demonstrou não só a disposição para a
quebra dos paradigmas sociais, mas também o domínio dos códigos e formas
de fazer literatura e imprensa, confrontando assim os que apregoavam a
incapacidade de o negro [...] interagir no meio social valendo-se dos códigos
estabelecidos socialmente de maneia plena.

32
Ferrovia e
mobilidade
social

Tendo sido Campinas importante entronca- Assim, como veículo da modernidade, a


mento ferroviário do interior paulista, não pode- ferrovia iria desempenhar um papel ambíguo.
mos ignorar, no contexto atual, os significados ins- Por um lado, seu traçado é cicatriz urbana,
critos pelo complexo da ferrovia no tecido urbano dividindo o espaço e segregando as populações.
e que ainda possuem reverberações na memória Por outro lado, propiciava não apenas mobilidade
social de várias gerações de seus habitantes. física como social, contribuindo para inserir no
Tomando como referência o trabalho de espaço urbano e no mundo do trabalho tanto os
Santos e Zanini (2012), podemos encontrar na imigrantes recém-chegados quanto a população
sociedade campineira do início do século 20 negra e camponesa, ainda que com diferentes
elementos análogos aos que ambas identificam status.
em seus estudos sobre ferrovias, etnicidade e Para aqueles que conseguiam colocar-se
processos migratórios. Aqui, também temos uma nesse complexo, a ferrovia trazia a possibilidade
cidade configurada como ponto de passagem, de prestígio social, pertencimento e estabilidade,
relevante centro logístico e comercial - o que gerando uma cultura ferroviária que, fortalecida
faz dela um palco de encontro entre grupos pelos laços de solidariedade, foi transmitida
sociais e mundos distintos. Pela estrada de ferro de pai a filho durante gerações. Apropriada
chegavam as gentes e as novidades, criando pelos trabalhadores, ela foi se constituindo,
um clima favorável à adoção dos valores e dos gradativamente, num espaço de convivência mais
hábitos modernos e à contestação dos elementos democrática, possibilitando uma experiência de
identificados com o passado ou as tradições. diversidade étnica e racial numa sociedade ainda
A intensa circulação propiciada pela ferrovia marcada por valores profundamente racistas,
torna o espaço urbano complexo, seja pela aristocráticos e conservadores.
diversidade cultural que ela fomenta, seja pelas Seria interessante que as políticas de
dinâmicas sociais e econômicas capitalistas que preservação que ora a têm por objeto fossem
com ela se instituem. A percepção de que pela além do fachadismo e se debruçassem sobre esses
ferrovia a cidade se conecta aos grandes centros significados históricos e culturais. Muito mais
urbanos mundiais, suas ideias e estilos de vida, que a manutenção de esqueletos sem carne e sem
converte-a numa força política e social, com alma, a serviço de interesses especulativos, a sua
influência sobre a estética, o gosto, os com- rememoração poderia contribuir para atualizar
portamentos, as relações, as sensibilidades, as possibilidades de afirmação da democracia e do
sociabilidades e o crescimento populacional. exercício do direito à cidade.
33
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A presente publicação foi editorada pelo Laboratório do Bem-Viver,
com o software InDesign, utilizando caracteres Avenir Next Regular,
Ultra Light e Bold, e Garamond 12/16, para distribuição em formato digital,
juntamente com a exposição virtual homônima, em setembro de 2022.
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