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Idas e vindas: olhando através das antropologias vividas e sentidas

Estou ficando velho. Dentro de catorze dias farei 81 anos. E eu que fui sempre um
peregrino (talvez mais mesmo do que Tim Ingold, quase da minha idade), um andejo
pelo meu País e o mundo, um “excursionista” (quando ainda não havia a palavra
“trilheiro”) e um “escalador de montanhas” (acabo de escrever um longo livro sobres
montanhas, montanhistas e sherpas no Himalaia1), me vejo quase prisioneiro em minha
casa. Recluso devido à invasão de um estranho ser microscópico e letal, com que a
natureza mais uma vez nos estará avisando sobre o que pode vir a acontecer com ela,
com a vida e com os seres humanos, se continuarmos tratando-a como uma “coisa” e
não como um “ser”. Ou como um cenário onde as coisas acontecem, como Clifford
Geertz escreveu certa feita sobre o que seria a... cultura.

Estou ficando velho e velhos não escrevem ciência. Escrevem lembranças, memórias,
lembramentos. Ao final de sua memorável aula, quando tomou posse de uma cátedra no
Colégio de França, no último parágrafo Roland Barthes lembra que há na vida “uma
idade em que se ensina o que se sabe”. E logo a seguir ele oferece o que eu considero a
melhor definição do que seja investigar. Pois... “vem a seguir uma outra idade, em que
se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar”. E logo adiante ele fala de uma
terceira idade: “vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender.
(Barthes, Aula, página 49).

Eu cheguei a ela e não abro mão. Ainda mais quando ao final do parágrafo e da aula que
virou depois um livro, Barthes associa o “desaprender” ao direito ao “esquecimento”, e
associa este acontecer a uma palavra que a quem o leia ele pede para escrever em seu
original em latim: Sapientia. Imagino que a maior parte de quem escreveu algo neste
excelente e inadiável livro medirá por anos o que eu já há algum tempo meço por
décadas. Por exemplo: sou antropólogo há cinco décadas.

Quando há cinco décadas atrás, envolvido com o projeto de minha pesquisa de


Mestrado em Antropologia, na Universidade de Brasília, em uma das conversas como o
meu orientador, Roberto Cardoso de Oliveira, perguntei a ele por algum bom manual de
1
Artesãos do absurdo – dilemas do humano nas escaladas de alta-montanha no Himalaia; um livro ainda
inédito.
pesquisa em antropologia, ele me respondeu que não conhecia nenhum. Provavelmente
eles não existissem naqueles tempos. E ele me disse algo assim: “não sei se existem; se
existem, não leia. Se você quiser ler algo proveitoso sobre ‘métodos e técnicas em
antropologia’, leia as introduções das boas monografias. Ali um antropólogo não estará
dizendo a você ‘como se faz’, mas ‘como eu fiz o que eu fiz”. Desde então segui o seu
conselho e o passei às gerações de minhas e de meus orientandos.

Lendo inúmeras e sucessivas “introduções”, desde monografias “clássicas” até as mais


atuais, descobri que entre divisões teóricas, a respeito das quais livros e livros foram
escritos, repartem-se também em três vocações diversas de estilo de escrita.

A primeira delas é a de antropólogas e antropólogos “confidentes-convidantes”. São as


pessoas que desde as primeiras páginas de suas monografias não só falam de si e na
primeira pessoa, mas buscam estabelecer um diálogo direto com quem o leia. Não foi
preciso ler o “diário secreto” de Bronislaw Malinowski, para descobrir logo entre as
primeiras páginas do Argonautas do Pacífico Ocidental que ele pertencia à primeira das
três curiosas categorias de profissionais da antropologia. “Imagine-se o leitor...” é uma
das passagens mais relembradas do “Argonautas”. Vindo de uma formação graduada de
cinco anos de psicologia, devo dizer que estive, e sigo estando filiado a esta primeira
vocação.

A segunda é a dos “confidentes”. Tal como os do parágrafo acima, eles pensam e


escrevem na primeira pessoa, falam de si-mesmo como condição essencial para falar
dos outros, e não raro colocam-se em seus textos quase como se fossem mais atores do
que viveram do que autores do que escreveram. Sem propriamente estabelecerem um
diálogo com leitores, eles se apresentam como pessoas que algo viveram e que do que
viveram possuem algo a narrar... pessoalmente.

Finalmente, uma terceira vocação será a dos “impessoais”. E esta palavra entre aspas
deverá ser lida não como uma desqualificação, mas como uma opção. Mais próximos
das “ciências duras”, eles objetivamente retiram-se de seus escritos, e em uma
respeitosa “terceira pessoa” procuram profissionalmente dar conta de um “relatório de
pesquisa”.

Uma outra não apenas curiosa correspondência deve ser também lembrada aqui. E ela
não me parece de menor importância. A antropólogos e a antropólogas das duas
primeiras categorias corresponde também uma certa maior “abertura de horizontes e de
leituras”. Isto não vale para Malinowski, um rigoroso seguidor de sua ciência, mas é
bastante visível em Geertz (entre filósofos e poetas) e, mais ainda, em Lévi-Strauss (na
verdade mais amante da arte e, sobretudo, da música, do que da própria antropologia).

Este dado aparentemente trivial é relevante, porque devemos acreditar que foi desde um
alargamento de olhares e leituras a outros criadores de imagens e de idéias que não os-
de-minha-ciência, que passo a passo pessoas da antropologia começaram a se perguntar:
“e porque não também os outros-que-não-nós?” E porque não ler a poesia mística dos
Guarani apenas como “material de pesquisa”, e começar a lê-la como uma outra poesia?
Como algo diferente do que escreveu Pablo Neruda, mas de modo algum desigual ou
inferior ao que está no “Canto General”.

Retomo décadas de minha vida e se recordo alguns fatos e feitos que vivi no começo
dos “anos sessenta” (a “década que não acabou”) é porque quero trazer a este livro de
depoimentos ousados, algo talvez relevante para um aprofundamento dos caminhos
percorridos em entre-lugares, ou em territórios de fronteira da antropologia. Eles são
muito mais conhecidos entre estudiosos e praticantes da pedagogia do que da
antropologia.

Como lembrei linhas acima, ingressei na antropologia vindo da psicologia. E de uma


rigorosa e neopositivista “psicologia experimental”. Durante anos o meu “campo” foi o
“laboratório”. Mas ingressei nela também vindo da educação. Melhor ainda, de uma
vertente ativamente insurgente de “militantes da educação popular”. Assim sendo, justo
entre tempos de ditaduras militares no Cono Sur, eu cheguei à antropologia por uma
trilha de teorias e de ações pedagógicas de vocação política que geraram não apenas
práticas, escritos e congressos, mas livros queimados, pessoas presas, torturadas
exiladas e mortas.

Logo após a Revolução Cubana, o Brasil fervilhava de mobilizações entre camponeses e


operários. E, entre nós, “jovens da academia”, surgiam de Norte-a-Sul do País pequenos
e aguerridos brotes de “Movimentos de Cultura Popular” e de “Centros Populares de
Cultura”. Assim, a palavra “cultura” me apareceu primeiro como ação política-
insurgente através de realizações culturais, entre a poesia, a música, o teatro, a
medicina, o direito e, claro, a educação. Naqueles tempos a antropologia, ainda frágil e
nascente no “Brasil dos anos sessenta” nos era alheia.
Anos antes de haver no Brasil qualquer programa acadêmico de “formação de
antropólogos”, o Movimento de Educação de Base, no qual ingressei no final de 1963
como integrante do setor de “Animação Cultural” (algo trazido de experiências do
Senegal, na África), tinha entre os profissionais contratados um antropólogo. Algo
absolutamente pioneiro naqueles anos. E em 1961 o MEB fez traduzir e distribuir entre
os seus educadores, espalhados pelas “regiões menos desenvolvidas do País”, um texto
mimeografado: “o conceito de cultura”, de Leslie White.

Assim, eu li os meus primeiros textos de antropólogos não para aprender antropologia,


pois isto começou 10 anos mais tarde, em Brasília. Lia e dialogava para aprender a
pensar a educação como cultura, e a cultura como política. E mesmo sendo o MEB uma
instituição originalmente católica, líamos mais Marta Haeneker, uma notável chilena
marxista, e Antônio Gramsci do que a Bíblia e os Evangelhos.

Em janeiro de 1963, Paulo Freire (de quem celebramos neste ano de 2021 os “100
anos”) e a sua “equipe nordestina”, organizaram no Recife, em Pernambuco, o
“Primeiro Congresso Brasileiro de Movimentos de Cultura Popular”.

No interior da Cultura Popular (escrita por nós com iniciais maiúsculas) congregavam-
se militantes cristãos, marxistas e humanistas de outras vertentes, vindos da academia e
de fora dela. E mulheres e homens provenientes de diversas áreas das ciências. Havia
então muitos sociólogos e pedagogos, mas raros psicólogos e antropólogos. Havia
estudantes e profissionais da medicina, do direito, da educação, da música, do teatro
(lembrar o “Teatro do Oprimido” de Augusto Boal) e de outras áreas afins.

Ao redor da cultura e da “Cultura Popular” nós, jovens universitários em maioria, nos


lançamos então em uma rota de dupla mão. Na direção da “ida” era nosso empenho “ir
ao povo” e buscar compreender fundamentos, processos e brotes de resistência e
insurgência presentes não tanto em suas “criações folclóricas”, mas, entre elas e a partir
delas, em uma “cultura profunda” do povo brasileiro.

Na direção da “volta”, nosso sonhado, mais do que realizado projeto, era fazer
dialogarem “culturas do povo” com a nossa emancipadora “Cultura Popular”, alicerçada
em pensamento de Antônio Gramsci e de Mao-Tse-Tung, de quem eu, jovem cristão,
traduzi escritos do Espanhol para o Português, para serem levados a camponeses do
Centro-Norte do Brasil)2.
2
Muito se escreveu sobe os Movimentos de Cultura Popular e a Educação Popular no Brasil. A melhor
compilação de escritos dos anos sessenta está em um Livro organizado por Esmar Fávero: Cultura
Uma grande “Cruzada Nacional de Alfabetização” estava pronta para começar no Brasil
em 1964, sob coordenação de Paulo Freire, com base em suas propostas pedagógicas e
na experiência ainda nascente dos Movimentos de Cultura Popular, e ainda na
experiência de Cuba”, quando os militares se anteciparam e deram o seu “golpe”
justamente no dia 1º de abril, o “dia universal da mentira”.

O restante da história é conhecido. Tal como depois na Argentina, no Uruguai e no


Chile, a cultura voltou a ser “o folclore que mostra ao mundo a criatividade de nossa
gente do povo”; os MCPs e os CPCs foram destruídos (inclusive o MEB); e o destino de
várias mulheres e homens militantes foram os que imagino que todas as pessoas deste
livro conhecem. A antropologia iria surgir e florescer no Brasil justamente entre fins dos
anos 60 e os anos 70.

Escrevo este breve depoimento sobre algo pesado, vivido entre nós nos “anos sessenta”
e depois, para que histórias e projetos de uma antropologia que pretenda ser mais do que
“boas teorias sobre outros-que-não-nós”, parta do reconhecimento do que se viveu
através da “idéia de cultura”, e foi depois em boa medida esquecido pela própria
antropologia.

Imagino que outras pessoas das antropologias praticadas na América Latina haverão de
trazer, de seus povos e de suas vidas outros depoimentos equivalentes e talvez mais
convincentes do que o meu. Recordo que na América Latina dos sessenta aos oitenta
surgiram teorias, propostas de ação e práticas insurgentes, associadas aos movimentos
populares, que por uma primeira vez nos tornaram, exportadores de idéias e de ações.
Falei da Cultura Popular, da Educação Popular, do Teatro do Oprimido, dos MCPs e dos
CPCs. Devo estender a relação de criações emancipadoras latino-americanas até a
sociologia da libertação proposta por Orlando Fals-Borda, a investigação-ação-
participativa, a teologia da libertação, a releitura marxista-latino-americana, a música de
protesto, outras “experiências” mais.

Em termos mais extremos e provavelmente não aplicáveis sempre, sabemos que a


sociologia tende a ser mais uma “ciência do nós”, enquanto a antropologia tende a ser
uma “ciência do outro”. E cada uma a seu modo e entre os seus dilemas, ao longo das
décadas tem-se visto às voltas com um mesmo dilema com uma dupla face: Afinal,
“quem somos nós?” E, afinal, “quem são os outros?” Ou, melhor ainda: “quem é o
outro aqui, diante de mim?” E desde muitas décadas atrás, enquanto Émile Durkheim
Popular e Educação Popular – memória dos anos sessenta.
pesquisava entre “os outros como eu” as causas sociais do suicídio, Bronislaw
Malinowski, em um extremo distante do seu mundo, perguntava aos seus “nativos” e
“ilhéus”, porque eles nunca se matavam, e talvez sequer possuíssem em sua “língua
nativa” uma palavra para “suicídio”.

Ora, mesmo quando desejando estar situada fora e muito além de qualquer projeto
“colonialista”, a antropologia foi por muito tempo uma ciência do “outro distante”. E
não apenas “distante”, porque situado nas ilhas Trobriand, em Bali ou no Planalto
Central Brasileiro, mas “distante” por ser a contraparte distinta e desconhecida de quem
“nós somos”. E neste caso, quanto mais o outro pode ser o “selvagem”, o “nativo”, o
“primitivo” e, por extensão, o “exótico”, tanto melhor. Nada mais decepcionante do que
um indígena da Amazônia vestido de calça jeans, com aparelho celular nas mãos, e
óculos escuros no rosto.

Entretanto muito avançamos. Afinal, aprendemos com o tempo, conosco, entre-nós-


mesmos e, mais do que tudo, com-eles... os outros-que-não-nós. E de uma maneira
muito semelhante à “ida-e-volta” dos tempos militantes da Cultura Popular, realizamos
na antropologia uma equivalente “ida-a”, para voltar não mais com algo “sobre-o-
outro”, para ser retraduzido e partilhado entre os “outros-como-nós, mas com um:
“com-o-outro”. Primeiro um outro presente em nossos trabalhos como “objeto de”, e
que passou a “sujeito em” e, depois, a co-autor. E em um limite desejável e já presente,
a autor-de-si-mesmo. Por que não?

“Eles” deixam de ser para nós e os que nos leem, os “selvagens”, os “nativos”, os
“primitivos” e os “exóticos”, e nos ensinam a pensá-los como atores-autores de seus
mundos e de suas culturas. E os descobrimos em um primeiro momento como sábios e
doutores em, e de suas próprias culturas. E, depois, como mestres de outros saberes, que
quando aprendidos por nós-mesmos, poderiam ser um dos mais realistas e assertivos
caminhos de criação de novos modos de vida entre nós, e de novas formas de interações
entre nós e os seres e sujeitos do mundo natural.

Na viagem de volta começamos a aprender que a antropologia não é apenas o que nos
faz eminentes “pesquisadores de campo”, participantes de congressos internacionais e
doutores laureados na academia. E para além de mais do apenas “dialógica” ou
“transversa”, que ela venha a se tornar uma ciência de partilha e de compromissos
mútuos.
Este livro coletivo e francamente latino-americano é uma viagem de ousadia, de
consciência crítica e de esperança. Confesso que até hoje não vi reunidos em uma única
coletânea, uma tão criteriosa e desafiadora soma de estudos-propostas-de-ação tão séria
e tão radicalmente realista. Dos fundos não apenas da selva, mas de todos os redutos
onde seres humanos se reúnem e co-existem, vozes vindas da antropologia eis aqui uma
antropologia transgressivamente rebelde, e comprometida não apenas com os saberes
transformáveis em teorias do “outro”, mas sobretudo e essencialmente com os seus
dramas e as suas falas e lutas.

Não podemos deixar de aprender que a quase totalidade dos “outros” cujas culturas
estudamos, são “outras pessoas” que em diferentes cenários, entre a grande cidade e o
coração da floresta, tornaram-se visíveis para os nossos estudos justamente pela sua
condição “nativa”, “excluída”, “oprimida”, “marginalizada”, “ameaçada de extinção”,
etc.

E há anos eles tem esperado de nós não o que a nossa ciência tem a dizer sobre eles,
mas o que ela tem a partilhar com eles. Ou, melhor ainda, através deles.

Como imagino que em boa medida são jovens as pessoas que escreveram o que aqui se
lerá, eu quero também felicitá-las. E por uma dupla razão. Em primeiro lugar por
estarem vivendo agora o que durante décadas foi esquecido, ou mesmo negado pela
antropologia “central”.

Em segundo lugar, mas não menos essencial, por estarem sendo elas próprias, as
pessoas que se negam a serem apenas testemunhas do que está acontecendo. E que se
lançam a serem criadoras, autoras-atoras de uma antropologia que, redescobrindo no
outro a sua própria imagem, haverá de descobrir com ele, entre a sua vida, os seus
saberes e as suas lutas, a sua verdadeira vocação. E, através dela, a sua efetiva e real
esperança.

Que eu termine este breve escrito com a lembrança de um antropólogo brasileiro. E um


também educador, político e criador de universidades. Falo de Darcy Ribeiro, que pouco
antes de nos deixar, escreveu isto.

Sou um homem de Causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um


cruzado, por causas que me comovem. São muitas, demasiadas: a
salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o
socialismo em liberdade, a universidade necessária... Na verdade, somei
mais fracassos que vitórias nas minhas lutas. Mas isso não importa. Seria
horrível ter estado ao lado dos que se venderam nessas batalhas.

Carlos Rodrigues Brandão

30 de março de 2021

Referências

Barthes, Roland
Aula
2013, Editora Curtrix, São Paulo

Fávero, Osmar
Cultura Popular e Educação Popular – memória dos anos sessenta
1983, GRAAL Editora, Rio de Janeiro

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