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ANA CRISTINA CESAR e a AUTOFICÇÃO

Ana Cristina Cesar trabalha com gêneros da intimidade, como cartas, confissões, relato
de viagens, biografia, diários, que segundo Bakhtin, enquadram-se em um grupo
especial de gênero. Mais precisamente, a poeta opera a desconstrução desses gêneros,
posto que sua obra é de certo modo inclassificável: conforme Caio Fernando Abreu, na
contracapa de A teus pés: "Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio
proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. (...) Intimidade dentro
de um espaço particular, onde não há diferença entre poesia e prosa, entre dramático e
irônico, culto e emocional, cerebral e sensível".
O objetivo deste artigo é analisar o livro Luvas de pelica (1980), entendido aqui como
Autoficção e narrativa da pós-modernidade, que foi lançado independentemente, e
integrou posteriormente A teus pés (1982). Ana Cristina Cesar (Doravante Ana C.) foi
poeta, escritora e tradutora. Nasceu em 2 de junho de 1952 e ergueu o mito do poeta
romântico em torno de si, suicidando-se em 29 de outubro de 1983. Desse modo,
juntou-se ao grande filão de poetas/escritores que deixaram esta vida pelas próprias
mãos; somente para citar alguns: Vladimir Mayakovsky, Sylvia Plath (inclusive essa foi
uma das escritoras que Ana C. traduziu intensamente), Florbela Espanca, Virginia
Woolf, dentre muitos outros.
A partir de sua morte trágica, buscou-se intensivamente ler nas linhas que deixou sua
vida. Como se a poeta transcrevesse fielmente sua existência em sua obra. Na verdade,
ela ficcionaliza bastante, embora tenha semeado traços de sua história; o que
definitivamente desconcerta seu leitor. Isso repercute nos gêneros escolhidos, pois não
se sabe ao certo onde começa um gênero e termina outro. Assim, tanto a vida quanto o
ficcional e a poesia e a prosa; os próprios gêneros mencionados, são mixados e
fragmentados. Esse traço é característico do pós-modernismo.
Luvas de pelica, o último de seus livros em edição independente, foi lançado na
Inglaterra. É como se fosse um diário de viagem, contudo não há menção há datas
específicas, a não ser “Dia seguinte”; “cinco dias”; menção a tempo transcorrido. Luvas
de pelica, composto por vários blocos separados, como se fossem fragmentos, ou
estrofes, misturam em si prosa e verso. Há menção à escrita de cartas, como se alguns
dos blocos que seguissem fossem cartas, mas permanece suspenso no ar, é um vazio.
É curioso seu conteúdo; se em Correspondência Completa (1979) a carta termina
assinada por Júlia, fechando vestígios de identificação entre autor e narrador, embora a
voz narrante seja mulher; em Luvas de pelica além de o sujeito do texto ser feminino, há
diversas correspondências.
Não é objetivo de este artigo enumerá-las completamente, nem acrescentaria muito para
a Literatura um estudo como esse: averiguar até que ponto a vida influenciou a arte
neste ou naquele escritor. O que importa aqui, é que independente da vida que levou, a
artista, no caso, Ana Cristina, soube muito bem realizar a escrita de si.
Dessa forma, busca-se refletir acerca da autoficção, como estratégia de escrita em Luvas
de pelica, assim como apontar alguns dos procedimentos do pós-moderno na referida
obra. Nota-se que Ana C. considerava esse livro um romance, pois afirmou em carta a
Maria Cecilia Londres Fonseca, que seu novo romance se chamava Luvas de pelica
(CESAR.1999.P.192). Se aceitarmos que a partir do momento em que Marcel Duchamp
exibiu um mictório, A fonte, como obra de arte; tudo o que um artista definir como obra
atinge simultaneamente seu status. Assim, já que Ana C. definiu Luvas de pelica como
romance, a obra em questão se torna efetivamente uma das variantes do gênero.
O presente texto se organiza da seguinte forma, primeiramente serão tecidos
comentários teóricos acerca da autoficção; em seguida, sobre o pós-moderno,
precedidos por exemplificação com base no referido "romance". Para ambos os
assuntos, a exemplificação ocorrerá simultaneamente. A conclusão permanece em
aberto, assim como a obra de Ana C., como veremos a seguir.
A AUTOFICÇÃO
O termo teórico autoficção foi cunhado por Serge Doubrovsky, em
1977, na quarta capa de seu romance Fils (1977). Segundo o autor, esse
termo designaria práticas ficcionais de fatos reais da vida do próprio autor.
Doubrovsky criou o neologismo, pois se sentiu desafiado por Philippe
Lejeune, que em O pacto autobiográfico (2008) questiona-se se seria
possível um romance, em que o narrador-personagem assumisse o nome
próprio do autor.
A partir da criação do termo teórico, apareceu um surto de teorização
em torno desse vocábulo. Principalmente na França, onde o termo surgiu; ao
que tudo indica por causa do grande problema, como bem apontou Antoine
Compagnon, do demônio da Teoria, em seu livro de título homônimo. A
despeito disso, esses teóricos concordam ao menos no aspecto de que a
autoficção têm como características serem narrativas descentradas,
fragmentadas e com sujeitos instáveis.
O segundo teórico de importância a tratar da autoficção seria Vicent
Colonna, que defendeu em 1989 uma tese sobre autoficção, distinguindo
tipologias dentro dessa prática: autoficção fantástica, biográfica, especular,
intrusiva. Têm em comum apenas coincidir o nome do autor, narrador e
personagem. Essa tese foi publicada somente 15 anos após a criação do
termo, quando os debates já estavam acirrados.
É intrigante que apesar do vocábulo já constar dos dicionários
franceses, ainda não haja um consenso acerca de seu significado. A
definição que consta no dicionário Robert Culturel: “Ficção de fatos e
acontecimentos estritamente reais. (2014.P120)”. Como bem aponta
Doubrovsky, essa definição não pode coincidir com aquelas formuladas por
Colonna, posto que para esse a coincidência entre autor-narrador-
personagem é imprescindível.
Ainda conforme o criador do termo teórico, somente esse termo seria
novo. No entanto, designaria uma prática antiga. Para exemplificar isso,
Serge aponta obras de grandes autores, como O nascimento do dia; De
castelo em castelo; Diário de um ladrão; Nadja; de Colette; Céline; Genet;
Breton, respectivamente.
A autoficção enquanto gênero; inclusive seu criador não sabe ao
certo se essa prática seria um gênero, gravita em torno de um problema.
Ainda que um escritor decida escrever suas memórias, contar sua história,
ele enfrenta um grave problema para o qual não há solução eficaz: a
falibilidade da memória, na qual entraria tanto rememoração, quanto
fabulação. A própria Ana C. reconhece isso, em uma entrevista: “A
realidade não é comunicável literariamente”. Assim vemos que há algo que
sempre escapa.
No ensaio “A decadência da ilusão ou a morte da biografia”, de
Marcio Markendorf (2010) é apresentada uma ideia interessante e plausível.
Após a morte do autor, nada mais natural que se seguisse a morte da
biografia. Compreendendo que “a vida vê-se completamente ágrafa”
(MARKENDORF, 2010, p. 24-25), podemos afirmar que mesmo as partes
de cunho autobiográficas podem ser entendidos somente como ficção.
“A narrativa biográfica é um artifício mínimo contra a falta de
sentido máxima do mundo” (MARKENDORF, 2010, p. 19-20). Ou seja,
“qualquer biografia a respeito de um sujeito só pode ser compreendida como
ficção” (MARKENDORF, 2010, p. 24).
Desse modo, até mesmo as Confissões, de Jean-Jacques Rousseau,
poderiam ser encaradas como autoficção. O que não invalida a criação do
termo, embora possa se assemelhar à autobiografia, muitas vezes sendo
considerada um sinônimo. O distinguiria uma da outra seria, portanto, a
intenção. Quando se pretende contar a história de sua vida, sem fabulação,
seria autobiografia. Já quando se pretende contar sua vida, sem se ater a
fidelidade, autoficção.

O PÓS-MODERNO

LUVAS DE PELICA
O “romance” pode se enquadrar no grupo de narrativas, que segundo
Serge, são práticas de autoficção, posto que em seu conteúdo ocorre a
ficcionalização de fatos estritamente reais. Somente para citar algumas
referências diretas, tendo como exemplo passagens de Luvas de pelica: é
possível observar que o livro foi produzido na Inglaterra, onde se passa a
maior parte do relato, e onde a autora estava fazendo um mestrado em
tradução literária, então.
Eu só enjôo quando olho o mar, me disse a
comissária do sea-jet.
Estou partindo com um suspiro de alívio. A paixão,
Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente.
Esquece a paixão, meu bem; nesses campos
ingleses, nesse lago com patos, [...]

Para além da alusão ao local, seria plausível imaginar que o partir


“com um suspiro de alívio” se trata de uma menção á ditadura no Brasil, que
vigorava naquela época, embora também possa se referir a situações de
relacionamentos problemáticos. Isso não se trataria de uma entrelinha, o que
a própria Ana C afirmou não existir, mas de um procedimento de leitura que
consiste em “puxar o significante”. Ou seja, de um signo, extrair outros, que
remetessem a outros. Isso está representado em seu depoimento no curso de
LITERATURA DE MULHERES NO BRASIL, em 1983
Tem esse jogo... porque é um livro que tem várias...
Como é que eu podia dizer?... Eu não sei porque falei
muito de pato. [...] Acho que pode pegar esse significante
e puxar por vários lados... Pato é uma porção de coisas, é
pathos, é um certo drama que você vive... [...] Pato é uma
coisa meio ridícula, não é? É um bicho meio ridículo. [...]
Ele não afunda na água. Às vazes quando você lê um
texto você pode cair que nem um patinho. [...] Sabe, tem
aquela música do João Gilberto também, o pato
(cantando), sabe? Pato, por acaso é um significante que
puxa muitos outros. Acho que agente pode puxar. Quanto
mais puxar, melhor, não é? Ele migra...
Público: Não estaria caindo na entrelinha?
Ana C: Não, não é entrelinha isso. Acho que isso é puxar
o significante, é diferente. A entrelinha quer dizer: tem
aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor
está insinuando uma terceira. Não tem insinuação
nenhuma, não. Fala em pato, você puxa as associações
que você quiser com aquilo. Eu posso lembrar de várias,
mas não vou chegar nunca na verdade de meu texto. Não
vou dizer nunca para você, que para mim, o símbolo pato
significa... Dá pra você puxar. Então, [...]
(CESAR.1999.P.263,264)

A referência à palavra pato seria porque em seu livro aparece esse


signo seis vezes somente nas primeiras páginas. Mas o importante aqui é a
prática de leitura, instigada pela escritora. Ela gostaria que sua escrita fosse
lida desse modo.
Assim, é necessário explicitar que Luvas de pelica, em particular, e
toda sua obra em geral, é muitas vezes considerada hermética, devido ao
intenso trabalho com a linguagem. À primeira vista parece que as palavras
foram colocadas ao acaso, à maneira surrealística. Certos críticos
interpretam como se as palavras fossem escolhidas aleatoriamente; outros
buscam significados ocultos, as entrelinhas, que como já mencionado, a
própria Ana C. argumentou em diversas entrevistas, não existem. O que de
fato existe em sua poesia são os silêncios e os não ditos. Esses espaços
devem ser preenchidos pelo leitor. Isso condiz com o posicionamento crítico
de Ana C. que prefere um leitor ativo a um passivo. Ela acha que o leitor
deve puxar os significantes a cada leitura, fazendo associações, as mais
diversas possíveis. Que o leitor pense, reflita. Dentro do corpo do texto, os
signos deixam uma abertura para que o leitor complete com a sua
interpretação, como foi o caso exemplificado aqui do pato.
Assim sendo, para a própria Ana não é interessante em seu texto e
em literatura, no geral, que procuremos o sentido original; o que o autor quis
dizer, mas dentro do texto, o que os signos nos permitem inferir. Ou, até
mesmo, o que os signos nos permitem produzir em nível de sentido.
Principalmente quando se trata de poesia.
A fragmentação encontrada em seus textos são saltos, silêncios
produzidos intencionalmente; manipulando o não dito a autora deixa
brechas, espaços em branco para que o leitor complete, contribuindo para a
sua significação. Isso vai ao encontro a seu pensamento crítico que prefere
um leitor ativo a um passivo.
A cada leitura, uma nova atualização acontece; nunca lemos do
mesmo modo. O campo de virtuais do texto está pronto, à espera de um
leitor que o atualize.
Ao estudar esse livro percebo que Ana faz uma autoficção na medida
em que encena o segredo e a impossibilidade de dizê-lo: “Não consigo
contar a história completa”. Ela busca aguçar o desejo do interlocutor
semeando pequenos fragmentos de sua vida, apenas para enganá-lo, para
que ele tente buscar correspondência entre vida e texto. Mas como ela
mesma disse em seu Depoimento: “A intimidade... não é comunicável
literariamente” (CESAR. 1999. P259).
Após essa digressão, buscando explicitar alguns procedimentos da
obra da autora supramencionada, volta-se a tratar da autoficção: no que
desrespeito às referências diretas, há referência a algumas pessoas de seu
convívio. Há que se notar que no período de gestação desse livro, a
publicação era independente e circulava majoritariamente entre amigos.
Assim, através dos nomes, as pessoas poderiam se reconhecer. Reinaldo,
que aparece logo na abertura, é um deles. Inclusive Mick e Shirley,
namorado e amiga, respectivamente; entre outros.
Outro referência direta importante em sua autoficção remete ao que
estava fazendo na Inglaterra: um mestrado em tradução literária do conto
Bliss, de Katherine Mansfield. É muito interessante e uma característica do
pós-modernismo. Após uma “suspenção didática”, porque a narradora não
estava lidando bem com uma situação, é inserido um subtítulo “Primeira
tradução”, em que a narradora comenta o que teria acontecido após a morte
de Katherine Mansfield, identificada pelas iniciais KM. Figura também sua
companheira Ivona, tembém enfermeira em alguns momentos, pelas iniciais
L.M, como era conhecida na realidade empírica: “KM acaba de morrer. LM
partiu imediatamente. [...]Na manhã seguinte LM e Jack foram à capela.
Havia diversas pessoas circulando. LM ficou ali ao lado dela por um tempo
mas acabou indo buscar a manta espanhola e a cobriu.” Depois de esse
fragmento narrar o que teria acontecido após a morte de Katherine Mansfield, a
narradora, singular e anônima, dirige-se a uma “Querida”, mencionando
correspondências sem resposta. O que, aliás, é um dos tópicos preferidos de
Ana C.
Ela, autora empírica, passa por um dilema quanto às cartas, porque
enquanto estava na Inglaterra sua missiva se tornou muito intensa. Isso é
transposto no romance: “Estou há vários dias pensando que rumo dar a
correspondência. Em vez de rasgos de Verdade embarcar no olhar
estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz azul)”.
Verdade é grafado assim mesmo com V maiúsculo, sinalizando uma questão
capital em sua obra, posto que essa se escreve no limite tenso entre a
confissão e o ficcional. Por isso foi proposto vê-la sobre a ótica da
autoficção. Até mesmo em seus poemas há uma dicção intimista, como se a
voz que falasse no poema estivesse se confessando; tom próximo do gênero
diarístico. Inclusive, essa técnica faz parte da construção hermética de seu
trabalho.
Através desse tom intimista, a narradora se dirige a um interlocutor,
questionando práticas que ela mesma utiliza; é como se estivesse falando com seu
duplo: “Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me
escreve alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual o
filme, onde foi, com quem foi”. Essa prática irônica chega aos extremos: “É quase
indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim, para mim. É um abandono
quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de neorrealismo, na veia”.
Chega a ser cômico o modo como fala de si, falando de um outro. É possível
observar isso como uma ironia às pessoas que julgam o outro, apontando no outro
os defeitos que elas mesmas possuem. É como se a autora estivesse representando
uma espécie de recalque.

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