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2016

2017

DIREITO
CONSTITUCIONAL
1º TESTE
Marta Vieira de Sousa
Direito Constitucional

1. INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE
CONSTITUIÇÃO

O QUE ESTUDA O DIREITO CONSTITUCIONAL? O objeto de estudo de DC é a Constituição.


Nas disciplinas de Direito Constitucional ocupamo-nos do estudo da Constituição da República
Portuguesa, aprovada pela Assembleia Constituinte a 2 de abril de 1976 e alterada por seis leis de revisão:
1982, 1989, 1992, 1997, 2001 e 2004. É, no entanto, impossível estudar a CRP sem antes se saber o que é
uma constituição.

O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO?


Há uma diferença profunda entre os significados atribuídos a constituição. Antes do século XVIII, de
acordo com os textos clássicos e a cultura grega, constituição significava a ordem fundamental de uma
comunidade politica.

Depois do século XVIII, o termo passou a designar uma realidade mais precisa, onde a constituição é a lei
fundamental de um Estado.

Entre os dois significados há uma relação de generalidade e precisão: o antigo é mais vasto, menos
preciso. Não se opõem, o termo moderno apenas acrescenta mais precisão.

TERMO ANTIGO – aceção mais vasta – constituição como ordem


O significado mais amplo de Constituição: é a ordem fundamental de uma comunidade política. Uma
comunidade política designa o facto de os seres humanos viverem sempre em relação, neste caso
associadas ao fenómeno político. Para os antigos, político associava-se ao termo polis, cidade: não era
uma comunidade humana igual às outras, pois só esta permitia a realização da totalidade de fins e
anseios vitais (subsistência, trabalho, criação, etc). Este caráter teleológico (fins que prossegue) é abalado
pela entrada de uma matriz moderna, relacional e intersubjetiva, inaugurada por Maquiavel (século XVI),
que atribui uma identificação dos meios à comunidade política, e não com os fins: o poder, que é um
meio, capacita alguns a ditar os comportamentos a seguir, autoritariamente, podendo usar recurso à força
física (fenómenos de poder organizados, que podem ser impostos autoritariamente).

Nesta altura, as comunidades políticas tinham uma ordem fundamental que não era revelada de forma
sistemática, por nenhum documento escrito.

As constituições antigas não têm nenhuma intenção reguladora ou prescritiva, decorriam de praticas
reiteradas e tradições sedimentadas, e não se decretavam, pois transformavam-se com o fluir da história e
das novas exigências da vida.

Nesta aceção, o termo é de uso muito antigo, tendo os primeiros textos históricos e filosóficos da cultura
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grega clássica já o empregado. Foi o caso de Tucídides, na sua obra Guerra de Peloponeso, quando narra
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um discurso de Péricles, onde ele elogia o ideal em nome do qual as pessoas tinham morrido: o modo de
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vida de Atenas. Aristóteles dedica um capítulo de A Política ao estudo dos diferentes tipos de
constituições. Propõe a definição: “os termos constituição e governo têm o mesmo significado, e o
governo é a autoridade máxima dos Estados, autoridade máxima que se encontra ou nas mãos de um só,
ou nas mãos de um pequeno número, ou na massa dos cidadãos”. A palavra grega usada nestes textos,
mais tarde traduzida para constituição, era politeia (forma da cidade, estrutura real da comunidade
política, tal como ela é).

Este termo tão antigo não significa, porém, que as constituições sejam antigas. As primeiras escritas só
surgiram nos finais do século XVIII.

TERMO MODERNO – aceção mais precisa – constituição como Lei


Ao afirmar, hoje, que uma constituição é sempre a Lei Fundamental de um Estado, estão a precisar-se
duas ideias essenciais: está a dizer-se que as comunidades políticas, no mundo contemporâneo, que
agregam as pessoas e nas quais se constroem vidas, tomam a forma e a designação de Estado e que a
ordem fundamental destes não é sedimentada pela tradição nem imposta por uma só pessoa ou grupo,
mas sim estatuída por uma lei, à qual se dá o nome de Constituição.

Estas comunidades são e estão constituídas por um documento escrito, adotado por uma autoridade ou
poder, onde se sistematizam as questões relativas à ordem fundamental (três questões vitais, de modo a
serem dotados de uma ordem fundamental: sabem quem exerce o poder político; sabem quem pertence
ou não à comunidade; sabem quais são os valores fundamentais por que se guia a vida coletiva).

As constituições modernas, para além de revelar e descrever o modo essencial da vida da comunidade
política, determinam como é que esta deve ser: texto escrito decretado por autoridade que arroga o mais
intenso dos poderes – o poder constituinte.

As primeiras constituições a surgir em sentido moderno foram a Constituição Americana (1787) e a


Francesa (1791), em consonância com as revoluções, para, em França, se dar uma rutura com o Antigo
Regime, e nos EUA, unir os vários Estados. Mais tarde a Constituição Espanhola (1820) e Portuguesa
(1822).

Antigas Modernas
- ordem fundamental de uma comunidade política - lei fundamental de um Estado
- numa comunidade política, política associava-se - numa comunidade política, política surge
ao termo polis, cidade: não era uma comunidade associado aos meios: o poder organizado, que
humana igual às outras, pois só esta permitia a pode ser imposto autoritariamente, que dita os
realização da totalidade de fins e anseios vitais comportamentos
- as comunidades políticas tinham uma ordem - as comunidades são e estão constituídas por um
fundamental que não era revelada de forma documento escrito, adotado por uma autoridade
sistemática, por nenhum documento escrito ou poder, onde se sistematizam as questões
- as constituições antigas não têm nenhuma relativas à ordem fundamental
intenção reguladora ou prescritiva, decorriam de - as constituições modernas revelam e descrevem
praticas reiteradas e tradições sedimentadas, e o modo essencial da vida da comunidade política,
não se decretavam, pois transformavam-se com o como é que esta deve ser: texto escrito decretado
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fluir da história e das novas exigências da vida. por autoridade que arroga o mais intenso dos
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poderes – o poder constituinte.


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O PODER CONSTITUINTE DAS CONSTITUIÇÕES MODERNAS - ordem fundamental decretada e


legitimada por um poder constituinte – poder de criar a constituição
O poder constituinte implica o poder de “decretar” uma forma para o Estado (fixar como é que a
comunidade política deve viver), e de fundar essa mesma comunidade política justificando a legitimidade,
a razão de ser, da sua nova ordem – poder de criar uma nova constituição. Por outro lado, é um poder
que se manifesta na modificação de uma constituição existente (revisão e controlo da constituição).

Em 1976, quando a Assembleia Constituinte aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa,


deu-se este fenómeno: definiu uma nova ordem para a comunidade política portuguesa, e também se
fundou, legitimou e validou uma nova república.

É difícil, pois, definir o que seja este poder constituinte. Sabemos que se exerce em momentos de
profunda viragem histórica, onde um ser político pretende nascer, renascer ou reafirmar-se.

Porque é que o poder constituinte é um fenómeno moderno por excelência? Linha cronológica do
nascimento do poder constituinte e a sua afirmação

A Idade Moderna trouxe consigo o triunfo crescente de ideias como a igualdade e o antropocentrismo,
que veio alterar a conceção do fenómeno político.

No mundo Antigo, esta crença na capacidade do homem, capaz de conformar por vontade própria o
futuro, quer o individual quer o coletivo, não era generalizada, pois o universo era uma coisa ordenada na
qual cada ser vivo ocupava sempre um lugar fixo, não podendo imaginar alternativas ao próprio ser e ao
próprio viver. Isto começa a mudar no Renascimento.

Pico della Mirandola, em a Oração sobre a dignidade humana, exprime a rebelião renascentista contra
esta ordem: a ti, Adão, não atribuiremos nem um lugar determinado, nem um aspeto particular, nem um
património exclusivo, de forma a que tu possas escolher e conservar, segundo o teu próprio desejo e a
tua própria vontade, o teu lugar, o teu aspeto, o teu património (…) limitar-te-ás a ti próprio segundo a
tua livre vontade que eu te confiro.
O homem, a partir daqui, pode e deve descobrir e usar em proveito próprio as leis fixas que governam a
natureza. A politica, a vida coletiva e a sua forma – a constituição – ficam à disposição da racionalidade e
da vontade humana. A génese da teoria do poder constituinte encontra-se aqui.

Poder originário Poder derivado

Não é regulado por uma revisão prévia Poder constituinte + poder constituído
(constituição).
Cria normas constitucionais e ao mesmo tempo
Poder atribuído a um nº determinado de seres subordina-se a elas.
humanos, que irão exercer um poder soberano em
Este poder seria derivado do poder constituinte
nome de todos os demais integrados.
originário, sendo usado nas alterações do texto
constitucional ou sua reforma.
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ESTADO

Origem do termo
Aconteceu ao termo “Estado” o mesmo que ao termo “constituição”. Ambos são termos antigos, porém
ganham novos sentidos.

Em 1513, Maquiavel, em O Príncipe, usou, pela primeira vez, a palavra “Estado”, para designar a forma da
comunidade política. Não era um termo novo, novo foi o significado atribuído por Maquiavel. Até aí,
designava bens fundiários e a condição dos detentores do poder. A partir de Maquiavel e do
Renascimento, a palavra passa a designar toda a comunidade politicamente organizada, no seu conjunto
(vale hoje o que valia a palavra polis para a Grécia Antiga).

O Estado é anterior ou posterior à constituição?


Enquanto que “estado” vai ganhando o novo sentido a partir do Renascimento, “constituição” fixa o novo
sentido a partir do Iluminismo. O Estado é, portanto, anterior à Constituição, não dependendo desta, mas
sendo antes seu pressuposto - o movimento iluminista das constituições escritas nunca teria acontecido
sem a transformação para um mundo organizado de Estados a partir do Renascimento.

O que é o estado moderno?


Os três elementos que integram a definição do conceito de Estado: um povo, um território, um poder
político. O Estado é o ente social que se forma quando, num determinado território, se organiza
juridicamente um povo que se submete à vontade de um governo. A Constituição da República
Portuguesa mostra, logo no inicio, o que Portugal é (três elementos do Estado Português):

a) quem é o seu povo


Artigo 4º da CRP
(Cidadania portuguesa)
São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção
internacional.
qual é o seu território e a quem pertence
Artigo 5º da CRP
(Território)
Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da
Madeira.
de que modo se exerce o poder político que o governa – poder soberano
Artigo 3º da CRP
(Soberania e legalidade)
A soberania, una e indivisível, reside no ovo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.

O que define um Estado soberano?


Artigo nº 1
(República Portuguesa)
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Para entender o que é um Estado e o que é uma constituição, é necessário perceber do que se trata a
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soberania. Ao contrário dos termos “constituição” e “estado”, o termo “soberania” é recente, tendo sido
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inventada no século XVI para designar o fenómeno histórico da independência e emancipação do poder
do rei face ao poder do Papa e o fenómeno da concentração e supremacia do poder régio face aos
senhores feudais.

Os textos constitucionais modernos respondem à questão vital sobre a quem pertence o poder no seio
daquela comunidade, através da soberania popular ou nacional. Soberano é aquele que na ordem interna
do próprio Estado detém a titularidade última do poder.

O termo “soberania” assume duas funções, e aparece enquanto:

1. Qualificativo do Estado, da República ou da comunidade política: emite uma mensagem que se


destina aos outros Estados; significa dizer que é auto fundada, autodirigida, não depende de
ninguém nem de nenhum poder exterior, sendo autodeterminado, sem dependências externas e
por vontade própria.
2. Critério de identificação do titular último do poder que se exerce no seio do Estado: emite uma
mensagem que se dirige aos próprios cidadãos; é o fundamento da autodeterminação de 1, onde
o soberano é aquele que, na ordem interna do próprio Estado, detém a titularidade última de todo
o poder.

A CONCENTRAÇÃO DO PODER NO MONARCA ABSOLUTO ENQUANTO CONTRIBUTO PARA A


ESTADUALIDADE MODERNA

O processo da soberania, no inicio da era moderna, onde se dá a centralização progressiva de toda a


autoridade nas mãos do rei, foi um fenómeno estratégico para a solidificação da própria realidade que
será o Estado moderno, marcado pela racionalização, institucionalização e monopolização das formas de
exercício do poder, que, depois de absoluto, se transformará num Estado limitado por constituições
escritas. Sem este processo de formação do Estado moderno não seria possível as constituições em
sentido moderno.

Estado Absoluto: a seguir ao Renascimento, morre a preocupação das monarquias com os senhores
feudais, centralizando a autoridade politica na instância monárquica. Em vez de vários centros de
decisão, há apenas uma única instância de exercício de autoridade, a instância monárquica, que exerce a
soberania num certo território e de modo igual a todos os seus súbditos – identificação entre autoridade
do rei e autoridade do Estado.

Estado Constitucional: com o surgimento das constituições escritas, o Estado absoluto passa então para
um Estado limitado pelo direito. O que muda é a resposta à questão da titularidade do poder, onde se
dá uma devolução da titularidade da soberania ao povo ou à nação.

CONSTITUIÇÃO COMO NORMA

Conceito de norma
Normas-regras: lógica de tudo ou nada (ou se cumprem ou não se cumprem): normas do código da
estrada.
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Normas constitucionais: normas cuja sua aplicação implica sanções (igual às normas-regras) ; normas
que não têm precisão, têm um grau de abstração maior; são princípios ≠ regras; são comandos abertos a
uma pluralidade de interpretação; são suscetíveis de serem cumpridas segundo um plano de lógica
gradual; lógica de adesão; lógica de gradualidade; não nos dão uma resposta automática.

Estas apresentam-se assim porque tem de haver um espaço de adaptação do Estado à realidade que se
apresenta. Se as normas constitucionais fossem precisas o Estado não tinha forma de se movimentar (art.
24º, nº2 da CRP é uma exceção, uma vez que se apresenta como norma-regra).

Conteúdo da constituição
A aceção moderna de constituição só tem em linha de conta a forma do fenómeno, não o conteúdo,
sendo, por isso, ainda vasta. O conteúdo e a linguagem da lei fundamental dos Estados divergem:
liberdade, democracia, direitos do Homem, liberdades fundamentais e o Estado de Direito são comuns a
Portugal e a UE.

As constituições integram dois elementos estruturantes: uma parte subjetiva, que assegura a garantia dos
direitos das pessoas, e uma parte orgânica, que regula o modo de exercício do poder no seio do Estado –
separação de poderes. Nos EUA, existe o Bill of Rights e o Frame of Government.

Ideal racional-normativo
O fundamento da liberdade moderna está na racionalidade das escolhas que se fazem. A Constituição
que ordena a vida coletiva através de um ato de vontade que resulta do exercício de um poder
constituinte é uma Constituição da liberdade: regular a vida da comunidade política de modo a que o
poder que nela se exerça seja um poder efetivamente limitado pelas suas próprias normas. Limita-se o
poder pelo Direito através de duas técnicas: fixação de elenco de direitos subjetivos para que se
defendam da ação invasora da coletividade; organização das instâncias de autoridade de modo a que
não possa vir a ser exercida por uma só pessoa ou grupo, fechado, de pessoas. Estas técnicas coincidem
com o Bill of Rights e com o Frame of Government (anglo-saxónicos), ou parte subjetiva e parte orgânica
(Europa continental), ou com os dois elementos dos revolucionários franceses como componentes do seu
conceito de constituição: garantia dos direitos e separação de poderes.

A este conceito, materialmente definido, chamamos conceito racional-normativo de constituição. É


material porque define a norma constitucional atribuindo-lhe um conteúdo.

FUNÇÕES DE UMA CONSTITUIÇÃO NO CONTEXTO ATUAL

- Estabilizadora: um texto escrito com as normas basilares de uma sociedade estabiliza as relações sociais
e da vida politicas.

- Representativa de consensos, valores e princípios: reforça uma identidade coletiva, de forma inclusiva,
com valores à volta doas quais se criam consensos.

- Organiza o poder político: prescreve os centros de poderes e os seus equilíbrios. Descreve o modo de
ser de uma comunidade e legitima o poder, assim como o seu exercício.

- Estatuto jurídico do cidadão: conjunto de direitos e deveres que definem o estatuto dos cidadãos
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perante os poderes.
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Segundo o artigo 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão toda a sociedade na qual não
esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais nem determinada a separação de poderes não
tem constituição.

2. INTRODUÇÃO AO CONSTITUCIONALISMO

ORIGEM DA EXPRESSÃO

A expressão “constitucionalismo”, de origem anglo-saxónica, é uma expressão pouco difundida. Porém,


recentemente, sobretudo desde 1990, o termo ganhou relevância na linguagem dos juristas da Europa
continental, graças a dois motivos: transformações resultantes do processo de integração europeia depois
de 1992 que levaram os juristas a refletir sobre a ordem fundamental da nova comunidade política – a
Europa – abrindo um debate que discute se a Europa precisa de uma Constituição ou se basta que
cuidemos todos de garantir o seu constitucionalismo; em 1990, surgiram novas constituições nas recentes
democracias de Leste, onde todas incluíam o ideal do conceito racional-normativo de Constituição*. Com
este movimento, uniformizaram-se os textos constitucionais, que passam a integrar a mesma linguagem
fundamental.

Normativização dos textos constitucionais


Visto que o direito não é feito apenas de texto, as normas também fazem parte do universo jurídico, e a
conversão não é um processo fácil. Este processo envolve ver para além dos textos constitucionais,
alcançar a raiz das coisas. O termo nomeia essa raiz, pois designa a origem a linguagem comum que é
hoje partilhada pelas constituições dos Estados da Europa.

SIGNIFICADOS DA EXPRESSÃO
O sentido atribuído ao termo constitucionalismo nem sempre é uniforme. Pode surgir conforme dois
significados:

i. Certa tradição de pensamento: pertencendo ao domínio das ideias, surge enquanto o ideal
constitucionalista, ideia do governo moderado ou limitado; fala-se no singular (evocação
histórica), enquanto ideia do governo limitado para fins de garantia.
ii. Certos instrumentos de técnica e prática jurídica: pertence à linguagem do direito; fala-se no
plural, dada a existência de vários constitucionalismos, com diferentes tradições que vivem de
modo diferente o ideal do poder político moderado (evocação histórica).

Tanto na história das ideias como na técnica jurídica, a expressão está sempre associada a um único
objetivo: limitar, equilibrar ou moderar o exercício do poder político, de forma a que este respeite a
autonomia e a liberdade dos indivíduos. O exercício do poder tem de respeitar a Constituição e todo o
poder é legítimo desde que adquirido constitucionalmente e exercido respeitando as suas normas.
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O CONSTITUCIONALISMO ENQUANTO TRADIÇÃO DE PENSAMENTO: GOVERNO MODERADO


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Direito Constitucional

“A Constituição está para a liberdade como a gramática está para a língua” (Thomas Paine). Isto descreve
muito do ideal do constitucionalismo, enquanto tradição do pensamento que defende um poder politico
limitado, equilibrado e moderado. É difícil, porém, dizer com precisão, quando é que esta ideia se
começou a esboçar nas preferências do pensamento ocidental.

Teoria da constituição mista


A primeira formulação do constitucionalismo surge na teoria da constituição mista, própria do mundo
antigo e medieval, apenas concebível antes da formulação da noção moderna de “soberania”.

Numa comunidade política, ao existir diferentes grupos, interesses ou facões, todos eles com visões
conflituantes sobre os fins e os modos de governação, as instituições desta comunidade deveriam ser
desenhadas e organizadas de modo que nelas pudessem participar e exprimir as concorrentes pretensões
os diversos grupos da sociedade. A melhor constituição era aquela que não fosse “pura”, que combinasse,
na sua organização institucional, elementos das várias formas (pura significava uma comunidade política
estruturada de tal ordem que apenas um interesse pudesse governar, crescendo a corrupção e a
degradação da vida coletiva).

O constitucionalismo moderno e os nove postulados


A ideia da soberania, noção moderna, é incompatível com a ideia e com a prática da constituição mista.
Um poder politico monopolizado e centralizado em órgãos do Estado e que se exerce tendo por
destinatários indivíduos que partilham um território, é, por definição, um poder puro, na aceção
aristotélica do termo, e não um poder misturado. Por isso, o constitucionalismo moderno formou-se
como uma doutrina herdeira natural do ideal antigo do governo/poder moderado ou equilibrado, que
integra inevitavelmente postulados de rutura face à tradição clássica, exigidos pelas novas condições da
estadualidade moderna.

Os nove postulados do programa do constitucionalismo moderno:

i. Novo fundamento do poder: legitimação do poder; deixa de ser de origem divina, passa a
fundamentar-se o exercício do poder na constituição;

ii. Relativo à forma da constituição: a ordem fundamental da comunidade política deve constar
de uma constituição escrita, traduzinho um pacto entre os membros;

iii. Relativo à legitimidade dos poderes constituídos/do exercício do poder: o exercício do poder
tem de respeitar a constituição; esta regula a forma como o poder é exercido; todo o poder é
legitimo desde que adquirido constitucionalmente e respeitando as suas normas;

iv. Relativo à pertença à comunidade politica: o individuo passa a deter o estatuto de cidadão,
graças a uma tendência igualitária derivada dos direitos e deveres fundamentais;

v. Relativo aos valores fundamentais: os direitos do Homem têm primado sobre qualquer outro
valor;

vi. Relativo à separação entre o poder religioso e o poder politico: a legitimação está na
constituição, não na igreja;

vii. Relativo à separação entre os poderes políticos: separação equilibrada e racional do poder
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politico por diversos órgãos;


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viii. Relativo à supremacia da lei: o mais importante dos poderes deve ser o legislativo; a lei é a
expressão de uma assembleia geral;

ix. Relativo ao principio da maioria: os votos são contados e não pesados, ganhando quem tiver
mais.

Dificuldades de realização do constitucionalismo moderno e a sua superação


Cada um destes postulados conviveu com postulados contrários, ambíguos e contraditórios. À ideia de
vontade, no primeiro postulado, opôs-se a ideia de natureza; à ideia de constituição escrita, no segundo,
opôs-se a ideia de constituição histórica; à ideia de legitimação pela soberania nacional, no terceiro,
opôs-se a legitimidade monárquica; à ideia de cidadania igual opôs-se a ideia de cidadania desigual; à
ideia de direitos do homem, como ser individual, opôs-se a ideia dos direitos do homem noutro sentido.
Estas tensões dificultaram a realização do constitucionalismo na Europa. Mostrou-se diversificada e
encontrou soluções harmoniosas para estes polos de tensão.

CONSTITUCIONALISMO ENQUANTO INTRUMENTO DE TÉCNICA E PRÁTICA JURÍDICA

Tradição anglo-saxónica e o mundo europeu continental


Existe uma diferença que separa, quanto à pratica constitucional, o mundo anglo-saxónico do mundo da
Europa continental. A tradição do constitucionalismo anglo-saxónico e a tradição do constitucionalismo
europeu continental divergem no ponto crucial das relações entre texto e realidade ou prática
constitucional:

- Inglaterra: desde 1688 (Glorious Revolution), a Inglaterra tem vivido em constitucionalismo sem nunca
ter escrito uma constituição, assim, a prática constitucional afirmou-se e desenvolveu-se sem que
adotasse um texto chamado “constituição”, escrito por um poder constituinte.

- Estados Unidos da América: desde 1787, os Estados Unidos da América vivem sob apenas um texto,
Constituição elaborada em 1787, com 7 artigos e 27 aditamentos.

- Europa: os Estados da Europa viveram uma realidade diferente que, depois das revoluções que deram
origem às primeiras constituições escritas, desenvolveu-se a partir de uma multiplicidade de textos.

A partir da segunda metade do século XX, começa a suavizar-se o fenómeno que sempre opôs o carater
profundo do constitucionalismo da europa continental ao caráter do constitucionalismo anglo-saxónico.
As constituições escritas de depois de 40 são duradouras e as disparidades na linguagem diminuem,
passando a haver uniformidade entre as leis fundamentais.

Diferenças entre constitucionalismo anglo-saxónico e constitucionalismo europeu continental


Não obstante a recente aproximação entre as práticas constitucionais anglo-americanas e a práticas
constitucionais do continente europeu, as diferenças entre as tradições culturais continuam a ser
profundas. Algumas das razões:

i. O historicismo do direito inglês

A experiência inglesa integra um ideal de governo moderado e limitado pelo direito, concretizado por
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outros meios que não os postulados pelas teorias do poder constituinte, da soberania popular e da
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constituição escrita - matriz jurídico-historicista: a constituição inglesa foi sendo revelada pela ação do
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costume e da sua interpretação pelos tribunais, da leitura das declarações de direitos medievais. O
momento fundador britânico não se identifica com atos, mas com um longo ciclo histórico.

ii. As revoluções americana e francesa e o nascimento do direito constitucional

O direito constitucional decorre do movimento das primeiras constituições escritas, resultantes das
revoluções americana (1776-1787) e francesa (1789). Estes movimentos têm muitas afinidades, mas
algumas diferenças: a revolução americana não começa com a redação de uma constituição, mas culmina
com ela (sete artigos escritos em nome do povo americano pela Convenção de Filadélfia fundam os EUA),
que contém apenas um Frame of Government (regular o exercício dos poderes legislativo, executivo e
jurisdicional), enquanto que a revolução francesa redige um primeiro texto que emite, não um modelo de
organização do poder, mas uma declaração dos direitos; para a França, a lei é a amiga e o instrumento
dos direitos e das liberdades, enquanto expressão da vontade geral e voz da soberania popular, enquanto
que para o constitucionalismo americano a lei aparece, para a Bill of Rights (1971), para determinar o que
é que ela não pode fazer; o constitucionalismo americano nasce sob o signo da federação, que significa
agregar, juntar, contratar num resultado final as vontades plurais, enquanto que a francesa exprime-se em
estadualismo e legiscentrismo.

iii. Contratualismo norte americano

A questão de saber se se poderia fundar uma República sã num âmbito territorial tão vasto – principal fez
com que a Constituição americana de 1787 não contivesse um Bill of Rights, apenas um Frame of
Government.

A américa revelou-se um ente politico inteiramente novo, que tinha por referencia as repúblicas antigas
do mundo clássico ou pré-moderno. Desenvolveu-se um debate, com os antifederalistas (associam a
qualidade e a sanidade de uma República à virtude dos seus cidadãos, e que essa era impossível em
grandes espaços territoriais) de um lado, e os federalistas (defendem que dividir é mau, querem agregar,
acreditam que instituições de poder político que sejam comuns a todos os Estados e que controlem e
impeçam os excessos do poder central, permitiriam a força da união e moderação e equilíbrio do poder)
do outro. Em 1787, os federalistas saíram vitoriosos. Porém, uma constituição, sendo mais do que o texto,
não se resolveu imediatamente, e o contrato não estava ainda inteiramente selado.

Em 1791, os antifederalistas obtêm maioria e acrescentam os dez primeiros aditamentos à Constituição de


1787 – direitos fundamentais (o Bill of Rights foi pensado, inicialmente, para ser a carta dos direitos dos
Estados contra os excessos dos órgãos da Federação – órgãos centrais).

Nos EUA, a eficácia normativa da Constituição dependeu muito da judicial review of laws – controlo /
revisão jurisdicional das leis. Todo e qualquer juiz tem poder de verificar se uma norma que tem que
aplicar à lei é ou não constitucional; e recusar a aplicá-la caso entenda que esta é inconstitucional. É este
mecanismo de revisão constitucional que está na base da fiscalização da constitucionalidade portuguesa.

iv. O legiscentrismo e estadualismo francês

A frança deparou-se, com a revolução, com o problema de saber como é que se poderia constituir, a
partir da liquidação do Ancien regime, uma sociedade que fosse moderna – a resposta a isto era, para os
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norte americanos, como um dado, uma república formada por cidadãos livres e iguais que já existia. Esta
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transformação exigia a ação condutora do Estado, realizada por intermedio da lei e executada pela
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administração pública, exigindo também a neutralização do poder judicial, não havendo lugar para o
judicial review of laws. Assim, o constitucionalismo francês fez-se através do primado da lei, não da
constituição.

O primado da lei justifica-se com a necessidade de cortar com a tradição monárquica e valorizar o
conceito de soberania nacional, que variou em todas as constituições francesas. A partir de 1971, ao
introduzir a eficácia normativa à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a constituição
restringiu-se ao domínio da organização política dos diferentes poderes do Estado. Assim, a fonte dos
direitos tem de decorrer da Lei.

Constitucionalismo português: do Estado de Legalidade – estado liberal clássico- ao Estado


Constitucional
O constitucionalismo português apresenta muitas afinidades com a matriz legiscêntrica e estadualista
francesa. Recebemos, porém, influências norte-americanas, como o sistema de fiscalização da
constitucionalidade das leis.

Os traços do constitucionalismo europeu recordam e compreendem-se através do tipo de Estado-de-


legalidade: a ordem jurídica é caracterizada pelo primado hierárquico-normativo da lei ordinária e não
pelo primado hierárquico-normativo da constituição (questão relativa às fontes do direito. Nos séculos
XIX e XX, a lei ordinária (produto do poder constituído) ocupou o lugar cimeiro da hierarquia das fontes
do direito. Na Alemanha, Ferdinand Lassalle refere que as constituições escritas não são mais do que
simples folhas de papel. Em frança, Burdeau refere que “as constituições não enquadram as manifestações
da vida política. Em Portugal, “das três funções do Estado, a única livre é a de legislar (…) só o legislador
goza de desvinculação absoluta”. Já nos EUA, desde a vigência da constituição de 1787, o primado do
poder constituinte sobre os atos dos poderes constituídos era assegurado pelo funcionamento do judicial
review of laws.

Os Estados necessitavam tanto de uma política quanto de uma cultura de legalidade, sendo, para eles, a
política e a cultura da constitucionalidade algo desnecessário. Segundo esta política de legalidade, as
sociedades eram monistas em relação às conceções do mundo (não têm diferentes conceções quanto à
forma de viver), que se repercutia nas leis ordinárias (mais longas e mais firmes). Eram, porém, dualistas
do ponto de vista de legitimidade política: o principio da legitimidade fundado na soberania nacional
convive e concorre com o da legitimidade monárquica. A cultura de legalidade foi marcada pela
codificação: código civil francês, iniciado por Napoleão em 1810; código civil alemão em 1900; o primeiro
código civil português, o Código de Seabra, de 1867. O instrumento técnico-jurídico utilizado para a
efetivação do movimento codificador foi a lei ordinária, e não a constituição.

No Estado Constitucional, no lugar cimeiro da hierarquia das normas está a constituição e não a lei
ordinária. A constituição devia ser fonte de direito, conter e revelar normas jurídico-positivas, e devia ser a
fonte primeira e superior do ordenamento do Estado – se a constituição é fruto do poder constituinte e se
as normas eram criação dos poderes constituídos, o resultado do exercício do poder maior (constituição)
deveria vincular o resultado do exercício dos poderes menores (lei ordinária, atos administrativos). Este
tipo ideal de Estado, que se foi formando após a IIGM, é pluralista no que toca às visões do mundo
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(diferentes maneiras de viver, diferentes projetos, aderem a sistemas filosóficos e morais distintos). É
monista quanto à legitimidade: o poder pertence ao demos. A cultura da constitucionalidade relaciona-se
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Direito Constitucional

com a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, atribuindo-lhes força jurídica imediatamente
vinculativa (Lei Fundamental de Bona). Apesar da multiplicidade do direito, estes direitos e liberdades
formam uma unidade. Ao atribuir este valor supralegal às normas relativas aos direitos fundamentais,
decidiram atribuir a um poder judicial a competência para fiscalizar e sancionar os atos do Estado que
não respeitassem tal valor – o Tribunal Constitucional, que garante o cumprimento do principio do
primado normativo da constituição sobre todas as outras fontes de direito.

3. ORIGENS DE 1976 E O DESENVOLVIMENTO


DO ESTADO CONSTITUCIONAL EM
PORTUGAL

Em 1822, uma constituição progressista e inovadora para a época.

Em 1826, a Carta Constitucional, mais conservadora, mantém poderes do rei, foi outorgada por este e
recupera muito do poder régio perdido na constituição de 1822. Com esta carta é criado um novo poder,
o poder moderador, este permite que o rei controle todos os restantes poderes.

Em 1838, a constituição setembrista, vigorou 4 anos, situa-se entre o radicalismo da de 1822 e o


conservadorismo da carta constitucional de 1826. Foi, na verdade, uma tentativa de conciliar os interesses
vintistas e cartistas.

Em 1911, uma constituição criada com a implantação da república, tinha 70 artigos. Acabou com a
monarquia e institui um regime de base parlamentar. Pela primeira vez foi constituído um sistema de
controlo constitucional, marcadamente progressista em clara rotura com o passado.

Em 1933, uma constituição termina com o regime parlamentar e institui um regime presidencialista que
durará até 1959. No ano seguinte houve uma revisão constitucional acabou com as eleições presidências.
Continha elementos inovadores e progressistas, mas de facto, a constituição era meramente formal, na
medida em que não era respeitada. Designa-se esta constituição como constituição semântica (é uma
constituição que existe, de facto, mas não é posta em prática na realidade).

ESTADO NOVO
Em 1976, na sequência da revolução de 25 de abril de 1974, é criada uma constituição vasta e complexa
que assenta na democracia representativa e na liberdade política. Admite inicialmente um órgão de
soberania composto por militares- Conselho de revolução. Possui uma série de direitos fundamentais
muito desenvolvidos- desde as liberdades clássicas aos direitos dos trabalhadores, amplos direitos de
participação política, direitos sociais, etc.

A filosofia antiparlamentar, antiliberal, antidemocrática e corporativista que sustentou a ordem do Estado


Novo, preocupou-se em se dotar de uma constituição escrita, onde acolheram formas próprias da
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tradição constitucionalista. Porém, este acolhimento textual acabou por nunca existir na prática.
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O Estado Novo foi incompatível com um dos mais importantes valores do constitucionalismo: poder
político moderado e limitado que não seja capaz de aniquilar o conflito. É preferível viver com o conflito,
do que usar o recurso à força. Já no Estado Novo, achava-se que o conflito social devia ser combatido
pela ação tutelar do Estado. Ao mesmo tempo que recusava o pluralismo social, o regime acolhia
instrumentos formais que só podiam fazer sentido caso se desse livre curso a essa conflitualidade – estas
duas tendências opostas dão origem a realidades distintas, onde o direito no texto não corresponde ao
direito na realidade. No Estado Novo não se cumpria o princípio da constitucionalidade. Para além disso,
no que toca à organização do poder político, a constituição também falhou e acabou por ser letra morta
(os poderes não foram efetivamente separados).

APROXIMAÇÃO À CONSTITUIÇÃO

A primeira competição eleitoral efetiva realizada de acordo com o sufrágio universal foi a 25 de abril de
1975, com escolha de uma Assembleia Constituinte para redigir uma constituição que correspondesse aos
sentimentos do povo português. Foi aprovada a 2 de abril de 1976, e foi um compromisso dificilmente
obtido, um contrato social, uma constituição compromissória, um pacto.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA


A Constituição da República Portuguesa foi por sete leis de revisão: a de 1982; a de 1989; a de 1992; a de
2001; a de 2004; e a de 2005.

A CRP é uma constituição compromissória: resultou de um conjugar de compromissos dentre as diversas


forças politicas que resultaram da Revolução de abril, com normas por vezes incoerentes entre si,
refletindo de forma inequívoca a várias ideologias presentes. É rígida, sendo um documento que não
permite em si, ou dificulta, as revisões.

1982: culimar do processo constituinte de 1976; extinção do conselho de revolução; criação do tribunal
constitucional

1989: adequa a crp ao processo de adesão de portugal à ue;

1992: adequar a crp ao tratado de maastricht;

1997 – 2001: finalidade pouco definida

2004: resulta da alteração da carta dos direitos fundamentais;

2005: processo derivado da discussão do tratado da ue e da sua ratificação.

A primeira parte da CRP refere-se aos direitos fundamentais. A parte I da CRP começa no artigo 12. Os
primeiros 12 artigos são princípios fundamentais. São artigos onde se encontra o núcleo identitário do
Estado Português. Aquilo que nos identifica como nação. A segunda parte da CRP refere-se à organização
do poder político- esta começa com a enunciação de um princípio geral, o princípio da separação e
interdependência dos órgãos de soberania
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Direito Constitucional

4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
FUNDAMENTAIS

Existe um corpo de princípios fundamentais que é, hoje, comum à maioria dos Estados. O estudo dos
princípios constitucionais fundamentais é uma das matérias em que esta convergência (influencias de
textos constitucionais estrangeiros e soluções parecidas) é mais notória. Na CRP, estes princípios têm
assento nos primeiros onze artigos da Lei Fundamental e precedem a parte primeira dedicada aos
Direitos e Deveres Fundamentais. Não fazem parte dos capítulos, não são uma parte, são uma síntese do
todo.

Os dois primeiros artigos da Constituição são particularmente ricos em fórmulas que nos remetem para
grandes princípios do constitucionalismo moderno: primazia da dignidade da pessoa humana, da vontade
popular, a caracterização da República Portuguesa como um Estado de Direito Democrático, a valorização
do pluralismo de expressão, a referencia à necessária separação e interdependência de poderes, a
incorporação do ideal da realização da democracia economia, social e cultural e o aprofundamento da
democracia participativa.

ESTADO DE DIREITO – DIMENSÕES FORMAIS E MATERIAIS

O que é o Estado de Direito?


“A expressão Estado de Direito significa que o poder do Estado só pode ser exercido com fundamento na
Constituição, e em leis que formal e materialmente sejam conformes com ela, e com o fim de garantir a
dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justiça e a segurança.”
Klaus Stern
O artigo 2º da CRP diz-nos que Portugal é um Estado de Direito: primazia do Direito e a sua aplicação a
todos, inclusivamente ao soberano, pondo um travão ao risco de uso arbitrário do poder - Estado
vinculado ao Direito.

Para existir um Estado de Direito, não basta a existência de uma Constituição, é preciso organizar de
modo a garantir que não haja abusos no exercício dos poderes. É necessário, num Estado de Direito, que
as pessoas saibam, a partir das regras, aquilo com que podem contar da parte do Estado (≠ Estado de
arbítrio), tendo segurança, certeza jurídica e espaço para o exercício da sua liberdade e direitos.

ELEMENTOS FORMAIS E MATERIAIS

A doutrina constitucional estabeleceu uma distinção entre elementos formais e elementos materiais, nos
quais se pode analisar o principio do Estado de Direito.

ELEMENTOS FORMAIS ELEMENTOS MATERIAIS – valores de um Estado de Direito – conceito


– organização de um material
Estado – conceito
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formal de Estado de
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Direito
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Traduzem uma certa No que se refere aos elementos materiais, tem-se entendido que um
continuidade entre a Estado de Direito tem necessariamente de respeitar e de se comprometer com a
conceção realização de determinados valores.
contemporânea e a
conceção clássica, ou
liberal - organizativa e
procedimental.
➔ PRINCÍPIO DA ➔ PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: até ao Renascimento,
SEPARAÇÃO DE existe uma tradição que se baseia numa ordem cósmica, onde cada um
PODERES: modo de tem um lugar definido; mais tarde, com Pico della Mirandolla, surge o
representar homem capaz, dotado de dignidade, Kant defende a natureza
conceitualmente a insubstituível do homem, dotado de valor intrínseco absoluto, Luhmann
atividade do Estado, defende que a dignidade não é uma qualidade do homem, mas uma
onde cada poder aspiração e Hasso Hofmann oferece um conceito relacional de dignidade
deve ser atribuído a – a dignidade significa o reconhecimento do outro na sua especificidade e
um órgão, que na sua singularidade; No artigo 1º da CRP, sendo considerado principio
permite haver estruturante do ordenamento jurídico português que traduz uma ideia
controlo do poder e fundamental de toda a ordem jurídico-constitucional: a pessoa enquanto
impedir abusos no fundamento e fim do Estado - a dignidade deve ser assegurada pelo
seu exercício. Não Estado; é um principio multifuncional: principio gerador de outras normas
basta, porém, a (nomogenético – fundamenta os direitos fundamentais); critério de
separação de interpretação das normas de direitos fundamentais.
poderes, é ➔ PRINCÍPIO DA IGUALDADE: com o advento do Estado de Direito liberal,
necessário que haja exalta-se a igualdade na aplicação da lei - a lei é igual para todos, todos
uma relação, uma são iguais perante a lei.No entanto, o legislador do Estado Social é
dialética entre eles, obrigado a atender às diferenças reais entre as pessoas – tratamento igual
de controlo do que é igual e tratamento diferente do que é diferente - justiça
recíproco – distributiva e a igualdade material (o legislador do Estado social pode e
interdependência: deve compensar as situações de desigualdade ou repor condições de
poder legislativo igualdade); Maria da Glória Garcia defende a igualdade enquanto
(Parlamento, obrigação de diferenciar, para compensar a desigualdade: proteção de
Governo e grupos sociais naturalmente diminuídos (grávidas, órfãos, deficientes);
Assembleias proteção contra desigualdades sociais construídas (fundadas em razoes
Legislativas económicas); proteção contra desigualdades culturais (escravatura,
Regionais); poder discriminação das mulheres). Pode ter três dimensões:
executivo e a. dimensão liberal: consubstancia a ideia de igual posição de todas as
administrativo pessoas;
(Governo e b. dimensão democrática: proibição de discriminações na participação
autarquias locais); no exercício do poder politico e acesso a cargos;
poder judicial c. dimensão sociais: eliminação de desigualdades fácticas, económicas,
(tribunais). sociais e culturais.
➔ INDEPENDÊNCIA ➔ SEGURANÇA: A atuação dos Estados face aos cidadãos é uma atuação
DO PODER limitada, é um dos fins prioritários do Estado de Direito - significa que,
JUDICIAL: os para os cidadãos, a atuação dos poderes políticos deve ser sempre ante
tribunais estão fora visível, calculável e mensurável. As pessoas devem saber com o que
contam
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da rede de
interdependência; o Publicidade dos Atos Estaduais e determinabilidade do seu
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exercem uma conteúdo: se a atuação do Estado não for conhecida não poderá,
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função reservada; por certo, ser confiável; necessidade de clareza e


dotados de determinabilidade dos atos do Estado.
autorregulação: a o Princípio da proteção da confiança: os cidadãos têm o direito de
estrutura fazerem as suas opções confiando em quadros normativos claros,
hierarquizada acessíveis e estáveis, obrigando o legislador a ser claro nos
garante que as comandos que dirige, pois, os cidadãos, podem ficar sem saber
decisões sejam aquilo com que podem contar e com impossibilidade de confiança
reversíveis através jurídica; as normas jurídicas não devem ter eficácia retroativa, pois
do recurso e da a confiança dos cidadãos é afetada por uma atuação do legislador
mesma forma, que que projeta a sua eficácia no passado (duas formas de
os diversos tribunais retroatividade: pura ou autentica - a norma afeta situações
se controlem entre jurídicas verificadas no passado -, e impura ou inautêntica -
si. retrospetividade, em que a norma se aplica apenas para o futuro.
➔ LEGALIDADE DE o Princípio da proporcionalidade - princípio da proibição do excesso:
ADMINISTRAÇÃO: justifica-se pelo facto de o princípio de Estado de Direito garantir
separação estrita de segurança e estabilidade jurídica - implica que os poderes públicos
podere - as funções têm que se pautar por determinadas regras, sendo importante que
da administração esta atuação possa ser medida, mensurada: o princípio da
pública não podem proporcionalidade tem a ver com a medida, o grau como que os
ser exercidas pelos poderes públicos cumprem o seu exercício. Se os poderes públicos
tribunais. Existe têm a legitimidade do uso da força e outros meios de coação, é
usurpação de poder necessário saber que a forma de aplicação das regras jurídicas não
quando se viola: vai ser desmesurada e desproporcionada.
Art.º 111º, n. 2º Os usos da força pelos poderes públicos são avaliados à luz do PP,
“Nenhum órgão de avaliando se havia ou não alternativa à forma de atuação
soberania, de escolhida. Este é analisado através de 3 critérios - teste da
região autónoma proporcionalidade/proibição do excesso:
ou de poder local •Critério da adequação / idoneidade: Todo o PP resulta da
pode delegar os análise da relação entre os meios utilizados e os fins a atingir -
seus poderes verifica-se a adequação dos meios usados, se são os mais
noutros órgãos”. corretos e aconselháveis para atingir o fim que se pretende.
➔ CONSTITUCIONALI •Critério na necessidade e da exigibilidade: avaliar é se não
DADE: Art.º 3.º n. 3 haverá outro meio igualmente apto para a prossecução do fim
“A validade das leis mas que seja menos oneroso/gravoso para os particulares.
e dos demais atos •Critério da proporcionalidade em sentido estrito ou de
do Estado, das equilibro: análise dos custos-benefícios - se a medida adotada
regiões autónomas, é equilibrada no sentido de as desvantagens dela não serem
do poder local e de superiores aos benefícios que se visam alcançar
quaisquer outras
entidades públicas ➔ PRINCÍPIO DA SOCIABILIDADE: artigo 2.º da CRP: realização de uma
depende da sua democracia económica, social e cultural como objetivo fundamental a
conformidade com prosseguir pelos poderes públicos. O Estado de Direito democrático e social
a Constituição.” deve promover a justiça social - não podem deixar de ser tidas em conta as
diferenças reais entre as pessoas, sendo exigível que se trate
diferentemente para atenuar essas desigualdades.
➔ PRINCIPIO DEMOCRÁTICO: Artigo 3º (Soberania e legalidade) 1. A
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soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas


previstas na Constituição. 2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se
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na legalidade democrática. 3. A validade das leis e dos demais atos do


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Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras


entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição:
titularidade da soberania, que pertence ao povo, e com as formas e
procedimentos que regulam o seu exercício - exige que todos, em
condições de igualdade, tenham uma palavra a dizer sobre os destinos
coletivos; as liberdades e garantias, de natureza politica, só se realizam
cabalmente em democracia, que funciona segundo uma regra da maioria,
mas não são completamente livres (estão sujeitas ao Estado de Direito e
aos seus princípios), sendo que as maiorias não podem tomar uma
decisão que contrarie o principio da igualdade, por exemplo - no domínio
da participação política parte-se do princípio segundo o qual todos os
cidadãos são rigorosamente iguais entre si e como tal devem ser tratados
(Aqui, e só aqui, o direito ignora as diferenças reais existentes entre as
pessoas porque a tal o obriga o postulado fundamental da democracia).
➔ JUSTIÇA: conceito de justo associado ao conceito de igualdade → um
determinado tratamento é justo quando se tratam as pessoas com
igualdade.

5. CONTROLO DA CONSTITUIÇÃO

A Constituição é a Lei Fundamental. A Constituição reconfigura o passado, descreve o destino, conforma


o futuro. Mas, acima de tudo, impõe limites rigorosos ao poder dos que governam: determina as regras
do jogo politico, limita a acumulação de mandatos sucessivos, regula o exercício da representação
democrática. É, por isso, que regula os procedimentos a seguir para a aprovação de todas as outras leis,
determina a forma das matérias, identifica os órgãos soberanos para as fazer e aprovar, assegura o
cumprimento e pune a sua violação.

As primeiras constituições eram vistas como documentos de natureza simbólica, sem força normativa.
Ferdinand la Salle diz, no século XIX, que as constituições são simples folhas de papel, são textos com
valor simbólico, não são normas, sintetiza todo o pensamento da época. Não havia necessidade de dotar
as Constituições de normatividade jurídica.

Ao observar a CRP atual, vemos um documento que entrou em vigor em 1976 e que rege a nossa vida
desde então. O TC tem vindo a ter um papel na transformação das normas constitucionais efetivas,
deduzindo valor jurídico a muitas normas com base nos princípios constitucionais. Hoje reconhecemos
que a Constituição tem uma força normativa específica, fundamentalmente no art.º 3.º, n. 3, onde se
afirma o lugar cimeiro no quadro normativo Português.
“A validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras
entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.”
Decorre também que a violação das normas constitucionais tem consequências, nomeadamente a
invalidade de outras normas, tornando-as atos sem validade jurídica, ou seja, tornando-as nulas.
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A Justiça constitucional é um dos mais relevantes instrumentos de controlo do cumprimento e


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observância das normas e princípios constitucionais. Conduz à existência de um tribunal ou órgão


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jurisdicional, distanciando-se de um controlo meramente político. Quando falamos de Constituição temos


que considerar que falamos de um texto com eficácia normativa. Posto isto, afigura-se necessária a
existência de mecanismos de controlo da eficácia da constitucionalidade (jurisdição constitucional).

DO CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE À JUSTIÇA CONSTITUCIONAL – inserção histórica


O controlo judicial da constitucionalidade das leis conseguiu afirmar-se no direito constitucional americano sem
aparente violação do principio da separação dos poderes. Das três formas naturais da atividade do Estado –
Legislativa, Executiva e Judicial – apenas duas correspondem a efetivos poderes, deixando de fora os tribunais.
Assim, os Tribunais não participam na luta do pensamento liberal Estado VS sociedade, protagonizada pelo
monarca constitucional e pelo parlamento.

Na Inglaterra, a inexistência de constituição escrita torna irrelevante o tema da fiscalização judicial das leis.
Desde 1688, desde a Glorious Revolution, o Parlamento detém a suprema autoridade em matéria constitucional.

Na Europa continental vai persistir a rejeição de qualquer papel dos tribunais no controlo da conformidade dos
atos com a Constituição. A supremacia do parlamentarismo era inatacável, sendo impossível um ato do
parlamento ser considerado inconstitucional.
“Nos momentos iniciais do constitucionalismo revolucionário europeu, as constituições eram vistas sobretudo
como documentos políticos que se direcionavam primordialmente aos poderes do Estado, em particular ao
legislador.”
A constituição era uma instituição de regras básicas sobre a organização do poder. A ordem jurídica é
caracterizada pelo primado da lei ordinária e não pelo primado da constituição. Porém, mais tarde, no século
XX, o Estado legalidade torna-se Estado constitucional e a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis foi
admitida como legitima

No século XX surgem, através de Hans Kelsen, as primeiras tentativas de aplicação de fiscalização da


constitucionalidade. Ele revolucionou o quadro constitucional europeu, afirmando que “não é, pois, com o
Parlamento que devemos contar para realizar a sua subordinação à Constituição. É um órgão diferente deste,
independente deste e independente de qualquer outra entidade estatal que deverá encarregar-se da anulação
dos seus atos constitucionais – jurisdição ou tribunal constitucional”.
Carl Schmitt discordava de Kelsen, defendendo que era impossível realizar um TC, na medida em que este seria
sempre um órgão político e não um tribunal. A constitucionalidade devia ser confiada a uma segunda comarca,
e não a um tribunal especifico. Passaram, então, a disputar modelos de justiça constitucional:
- modelo de fiscalização política: de tipo francês, na Europa no século XVIII e XIX;
- o modelo austríaco ou europeu da fiscalização concentrada: modelo concentrado no topo -
abstrata; uma única instancia especializada de fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos do poder
público;
- modelo norte-americano do judicial review: modelo difuso na base - concreto; controlo jurisdicional
difuso – o controlo é feito pelos diferentes tribunais; qualquer tribunal tem o poder de considerar a
inconstitucionalidade.
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MARBURY VS MADISON
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Direito Constitucional

Os juízes podem declarar a inconstitucionalidade de atos infraconstitucionais. Esta possibilidade existe na


Europa recentemente, nos EUA já existe desde os primórdios do constitucionalismo
Em 1803, o Supremo Tribunal Federal dos EUA, na decisão de um caso concreto (Marbury VS Madison), exerce,
pela 1ª vez, o controlo judicial da constitucionalidade das leis, reclamando para os juízes o poder de recusar a
aplicação de leis inconstitucionais. O relator da sentença foi John Marshall e foi ele que enunciou o “paradoxo”:
Com que finalidade se limitou o poder e com que finalidade foi tal limitação reduzida a escrito, se tais limites
puderem ser ultrapassados, em qualquer altura, por aqueles que se pretendia limitar?
Ora, tentando condicionar o poder judicial, o presidente dos EUA (John Adams) nomeou 42 juízes para os
tribunais distritais de Columbia. Mas, para azar do presidente, o Senado atrasou a confirmação dos juízes
nomeados e esta só saiu na véspera do dia em que o sucessor do presidente, Thomas Jefferson, iria iniciar
funções. Este considerou as nomeações inválidas. Contudo, Marbury (um dos juízes nomeados), não se
conformou e requereu ao Supremo Tribunal uma intimação para obrigar o Secretário de Estado a concluir o
processo de nomeação. Contudo, o tribunal declarou-se incompetente, com fundamento em que havia uma
norma que violava a distribuição de competências entre o Supremo Tribunal os tribunais inferiores (esta
interpretação da norma não iria vencer). Pelo contrário, os argumentos de John Marshall a favor do
reconhecimento da competência dos juízes para fiscalizar a constitucionalidade das leis iriam vingar, até aos
dias de hoje.
Uma análise mais detalhada deste caso acaba por revelar que esta forma de controlo judicial da
constitucionalidade difuso (“judicial review”) consegue evitar, em parte, a acusação que de o poder judicial
estaria a apoderar-se das funções próprias do poder legislativo. De facto, o Supremo Tribunal limitou-se a
decidir o conflito que as partes lhe submeteram, sendo que não revogou nem criou qualquer lei. Contudo, se o
fundamento invocado pelo Supremo para recusar a aplicação de leis inconstitucionais se baseia na própria
função judicial, então qualquer juiz estaria, igualmente, obrigado a proceder de igual forma. Assim, o poder de
controlo da constitucionalidade das leis fica circunscrito à resolução de um caso concreto que lhes seja
submetido. E temos de perceber que é apenas por “princípio do precedente” que esta reivindicação vai
transformar a Constituição na Lei Fundamental.

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL EM PORTUGAL


Partindo das duas tradições que têm vindo a ser reconhecidas em matéria de controlo da constitucionalidade, a
tradição americana e a tradição austríaca, nós vamos encontrar, dois modelos de justiça constitucional. Em
quase todas as Constituições europeias do pós-guerra veio a ser criado um TC.
De 1822 a 1922, a fiscalização esteve a cargo das cortes, sendo puramente política.
A constituição de 1911 foi a primeira Constituição portuguesa a prever a competência dos tribunais para
apreciar a constitucionalidade das normas jurídicas. Porém, só após o 25 de abril de 1974 é que são criadas as
condições para a instalação de uma jurisdição constitucional autónoma. Neste período existiu um modelo de
fiscalização judicial difusa. Com a Constituição de 1976 distribui-se o controlo da constitucionalidade por 3
órgãos: tribunais, comissão constitucional e conselho de Revolução. Isto deu origem a um modelo de
fiscalização jurisdicional concentrado, integrada com fiscalização difusa.
Em 1982, nasce um órgão jurisdicional autónomo, o Tribunal Constitucional, e elimina-se o Conselho de
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Revolução. Cria-se, assim, um sistema misto – não é difuso (existe um órgão especifico para o controlo) nem
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concentrado (o TC não é o único órgão). O nosso sistema é difuso na base (qualquer tribunal a pode invocar e

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Direito Constitucional

aplicar) e concentrado no topo (quando a apreciação é efetuada pelo TC). Todos os juízes têm o poder-dever
de fiscalizar a constitucionalidade das normas jurídicas aplicáveis aos casos que tiverem de julgar e ao Tribunal
Constitucional cabe a ultima parte em matéria de constitucionalidade. O Tribunal Constitucional é composto
por 13 juízes, dos quais 10 são escolhidos pela Assembleia da República e 3 são escolhidos pelos restantes
juízes.
Neste sistema existe a fiscalização abstrata da constitucionalidade, concentrada no Tribunal Constitucional, e a
fiscalização concreta, onde todos os tribunais têm acesso direto à Constituição.
1911 – 1933 : fiscalização judicial difusa
1933 – 1974: fiscalização judicial difusa, limitada
1974 – 1976: fiscalização judicial difusa, comprimida por órgãos políticos revolucionários
1976 – 1982: fiscalização judicial difusa, fiscalização concentrada na Comissão Constitucional e fiscalização
política cometida ao Conselho de Revolução
Desde 1982: fiscalização judicial difusa e fiscalização concentrada no TC

MECANISMOS E CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE


Não existem mecanismos para controlo de atos políticos regulares, pois estes não são controláveis pelos
tribunais, é insindicável, pertence ao exercício da ação politica e a sua sanção deverá existir no âmbito político.
Já a constituição pode ser controlada, dando a possibilidade de os juízes atuarem e declararem a
inconstitucionalidade de atos infraconstitucionais.
- Controlo preventivo;
- Controlo sucessivo;
- Controlo da inconstitucionalidade por omissão;
- Recursos de constitucionalidade;

FISCALIZAÇÃO CONCRETA
Artigo 280º (Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade)
1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
No que toca à fiscalização concreta: fiscalização em que se ajuíza a constitucionalidade de uma norma da qual
se duvida num caso concreto. Combinação do modelo difuso com o modelo concentrado. Todos os tribunais
podem aferir a inconstitucionalidade, assim como o TC. Começa sempre por ser uma fiscalização difusa, na
medida em que está em causa a fiscalização de uma norma em consequência de um caso concreto que está a
ser discutido em tribunal, e que suscitou suspeitas de inconstitucionalidade. A fiscalização concreta surge
porque num litigio concreto as normas para a sua resolução, ou algumas delas, podem levantar problemas de
inconstitucionalidade. O juiz tem a obrigação de levantar o incidente de inconstitucionalidade de que tenha
suspeitas.
Esta pode ser:

- Concreta sucessiva difusa: qualquer tribunal pode conhecer da questão da constitucionalidade.


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Uma vez verificado o incidente: o tribunal está obrigado a resolvê-lo, se constatar que esse problema de
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Direito Constitucional

inconstitucionalidade é essencial para a decisão da questão de fundo. Tem de haver interesse processual
da questão da constitucionalidade.

- Concreta sucessiva concentrada: a decisão sobre a questão de inconstitucionalidade está sujeita


a recurso para o TC (artigo 280º). Se se tratar de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade
tenha sido suscitada durante o processo, é necessário: que a decisão recorrida tenha aplicado norma cuja
inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo; que tenha sido o recorrente a suscitar essa
inconstitucionalidade durante o processo; que a decisão recorrida não seja passível de recurso ordinário.
Se se tratar de decisão que recuse a aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade: há
recurso para o TC, independentemente da via ordinária de recurso, desde que a norma desaplicada fosse
determinante na solução do caso concreto.

Nas decisões com base num juízo negativo de constitucionalidade só se pode recorrer ao TC depois de
esgotadas as vias ordinárias – pode-se recorrer para a relação, depois para o supremo e após este, para o
TC – recurso per-saltum.

CONSEQUÊNCIAS E SEGUIMENTO DA FISCALIZAÇÃO CONCRETA:


- o TC concorda com a decisão do tribunal recorrido: o recurso é improcedente e mantém a decisão
recorrida.
- o TC não concorda com o juízo de inconstitucional do tribunal de que decorreu: o caso volta ao tribunal
recorrido e a decisão revista à luz da decisão do TC. Se o recurso for devido à recusa da aplicação de
qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, o recurso é considerado procedente, a
decisão é revista aplicando-se a norma em causa. Se o recurso for devido à aplicação de uma norma cuja
constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, o recurso é procedente, a norma é
inconstitucional, o processo volta à instancia de onde partiu, revendo-se o caso como se a norma não
existisse.
Na fiscalização concreta, as decisões só têm validade para o caso considerado, não tendo caráter de força
geral, apenas se deixa de aplicar a norma àquele caso concreto (o art.º 281 n.º3 “O Tribunal Constitucional
aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer
norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos.” Estabelece-
se desta forma a regra de que quando uma norma é considerada inconstitucional mais de três vezes, à
quarta passa a ser uma fiscalização abstrata sucessiva com carácter de forma geral).

FISCALIZAÇÃO ABSTRATA
(abstratas porque tem, por base, o controlo de uma norma, independentemente da sua aplicação a um caso
concreto)
No que se refere à fiscalização abstrata por ação, podemos distinguir dois tipos de controlo:

- Fiscalização abstrata preventiva:


Artigo 278.º
1. O Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da
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constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para
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ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo
internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura.
2. Os Representantes da República podem igualmente requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação
preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de decreto legislativo regional que lhes tenha
sido enviado para assinatura.
3. A apreciação preventiva da constitucionalidade deve ser requerida no prazo de oito dias a contar da data da
receção do diploma.
Tem lugar antes da entrada em vigor do diploma; é um exclusivo do TC, uma vez que só este órgão pode
fiscalizar preventivamente; previne a inconstitucionalidade, fazendo um juízo antecipado à entrada da norma
em vigor; atua num âmbito mais restrito que o do controlo abstrato sucessivo, apenas respeitando as normas
de convenções internacionais e de diplomas com o valor formal de lei; incide só sobre a constitucionalidade;
decisões chamam-se pronúncia de inconstitucionalidade: depois de solicitada, de remetida ao TC, este vai
apreciar a Constitucionalidade das normas imperfeitas abstratas, sem ligação a nenhum caso concreto. O TC
pode fazer um juízo positivo de inconstitucionalidade e declarar a inconstitucionalidade, ou fazer um juízo
negativo do pedido, fazendo um juízo de não inconstitucionalidade da norma.
Consequências e seguimento da fiscalização abstrata preventiva:
➔ Pronúncia (decisão) de não inconstitucionalidade: O resultado é o diploma votar ao PR, que pode
promulgar ou vetar politicamente, Art.º 136 (Promulgação e veto) “No prazo de vinte dias
contados da receção de qualquer decreto da Assembleia da República para ser promulgado
como lei, ou da publicação da decisão do Tribunal Constitucional que não se pronuncie pela
inconstitucionalidade de norma dele constante, deve o Presidente da República promulgá-lo ou
exercer o direito de veto, solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada.”
Esta pronuncia tem carácter não preclusivo, que significa que não exclui que a mesma norma
possa ser objeto de nova fiscalização depois de ter entrado em vigor. Art.º 204.º: A norma, em
caso concreto, pode ser alvo de incidente de inconstitucionalidade, ou mesmo em novo processo
no TC
.
➔ Decisões positivas de inconstitucionalidade: O TC considera as dúvidas procedentes,
pronunciando-se pela inconstitucionalidade da norma em causa. O diploma é remetido ao TC e
pelo PR. Neste caso, é devolvido à procedência, sendo este obrigado a vetar o diploma por
inconstitucionalidade. Após o veto, o diploma é devolvido ao órgão que o aprovou. Art.º 279.º n.º 1
“Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto
ou acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República ou pelo Representante da
República, conforme os casos, e devolvido ao órgão que o tiver aprovado.”. Após a devolução, podem
acontecer 3 coisas:
▪ O órgão pode desistir do processo legislativo.
▪ Reformulação, art.º 279.º nº 2 “No caso previsto no n.º 1, o decreto não poderá ser
promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado expurgue a norma julgada
inconstitucional ou, quando for caso disso, o confirme por maioria de dois terços dos
Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de
funções.”
▪ Confirmação, com exceção dos atos legislativos do governo, o TC declara
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inconstitucional, o PR veta o diploma, esta volta à AR, esta teima na norma, e por
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maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria
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absoluta dos Deputados em efetividade de funções (existe na medida que até 1982
a fiscalização de inconstitucionalidade era feita pelo conselho da revolução, órgão
não eleito, assim deu-se primazia a um órgão eleito democraticamente, a AR).
Após a criação do TC, esta norma manteve-se. Até hoje nenhuma AR usou a
capacidade de confirmação. Após a confirmação, o diploma regressa ao PR.

- Fiscalização abstrata sucessiva:


Artigo 281º e 282º (Fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade)
Artigo 281.º “1. O Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral:
a) A inconstitucionalidade de quaisquer normas”
Tem lugar após a entrada em vigor do diploma; significa declarar normas inconstitucionais com força
obrigatória geral ou não; qualquer norma pode ser objeto desta fiscalização, ao contrário da preventiva. Esta
fiscalização não se aplica a um caso concreto. O TC adota um conceito formal-funcional de norma que inclui
atos normativos, mas exclui atos políticos, administrativos, jurídico-privados e decisões judiciais; as decisões
relativas ao sentido da inconstitucionalidade chamam-se declaração de inconstitucionalidade. É o processo mais
simples. A fiscalização abstrata sucessiva pode ser pedida por:
Artigo 281º nº 2:
Podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força
obrigatória geral:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro-Ministro;
d) O Provedor de Justiça;
e) O Procurador-Geral da República;
f) Um décimo dos Deputados à Assembleia da República;
g) Os Representantes da República, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes das
Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes dos Governos Regionais ou um décimo dos
deputados à respetiva Assembleia Legislativa, quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar
em violação dos direitos das regiões autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação
do respetivo estatuto.

CONSEQUÊNCIAS E SEGUIMENTOS DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA SUCESSIVA

A fiscalização abstrata sucessiva permite declarar normas inconstitucionais com força obrigatória geral ou não:

- se sim, emite um juízo positivo de inconstitucionalidade, declarando a norma inconstitucional com força
obrigatória geral, sendo esta subtraída ao ordenamento jurídico. Esta subtração pode ter dois efeitos: ex tunc
(produz efeitos desde o inicio da norma) ou ex nunc (produz efeitos desde agora, data da resolução). Há uma
opção pelo ex tunc relativo à entrada em vigor das decisões positivas de inconstitucionalidade:

Art.º 282º, nº 1 “A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz
efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das
normas que ela, eventualmente, haja revogado.”
- se não, temos uma decisão negativa de inconstitucionalidade, o que impede de voltar a ser analisado, não tendo
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por isso efeito preclusivo (exemplo das leis com origem anterior à entrada em vigor da CRP, 1976: a norma não era
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inconstitucional quando foi criado, mas tornou-se quando entrou em vigor):

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Artº 282º, nº 2 “Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma


constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.”
Esta fiscalização detém um efeito repristinatório, quando uma norma considerada inconstitucional substitui outra
norma repristina, voltando a vigorar uma norma antes revogada.

CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE POR AÇÃO E OMISSÃO

No que se refere à fiscalização concentrada (modelo austríaco), podemos distinguir entre:

- controlo da inconstitucionalidade por ação: inconstitucionalidade positiva - violação da CRP por força de
atuação do legislador; fiscalização preventiva abstrata (art.º 278 e 279) e abstrata sucessiva (art.º 281 e 282);

- controlo da inconstitucionalidade por omissão: inconstitucionalidade negativa, resultando do silencia de


qualquer órgão de poder, que deixa de praticar o ato exigido; legitimada por:

Artigo 283.º “1. A requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em
violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas,
o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas
legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.”
O TC afere se, perante uma exigência constitucional concreta e determinada de legislar, o legislador incumpriu essa
exigência; concentra-se na omissão dos poderes públicos que viola a CRP; está em causa o não cumprimento da
Constituição, por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constituições –
inação do legislador, ele devia ter legislado num sentido e não o fez.

RECURSO

A possibilidade de recurso decorre da combinação do art.º 204.º com o art.º 280.º da CRP:

Artigo 204º
(Apreciação da inconstitucionalidade)
Nos feitos submetidos a julgamento não podem Artigo 280º
os tribunais aplicar normas que infrinjam o (Fiscalização concreta da constitucionalidade e
disposto na Constituição ou os princípios nela da legalidade)
consignados. 1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional
das decisões dos tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma
com fundamento na sua inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante
o processo.

O momento de recurso depende do sentido de decisão do tribunal ordinário. No recurso sobre a recusa da
aplicação de uma norma, com base na inconstitucionalidade, pode-se recorrer de imediato da primeira instancia
para o TC.
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OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
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O QUE SÁO DIREITOS FUNDAMENTAIS?


São os que têm previsão constitucional (seja na Constituição formal, seja na Constituição material). Garantia
constitucional de direitos ou liberdades perante os poderes públicos.

PROCESSO DE RECONHECIMENTO
A ideia de que aos seres humanos deve ser reconhecido um estatuto especial, um conjunto de direitos e de deveres
adequados à sua especial natureza foi sendo desenvolvida por diversas correntes filosóficas. Desde a Antiguidade
Clássica, encontramos autores que refletiram sobre valores como a dignidade e a igualdade. O Cristianismo e a
ideia de que somos todos filhos de Deus, cada um é único dotado de igual dignidade marcou a nossa cultura e o
modo de manifestação dos nossos direitos fundamentais. A Magna Carta de 1215, Petition of Rights em 1628,
Habeas Corpus de 1679 e o Bill of Rights de 1689 são os direitos ingleses que se vão transportar para frutificar as
revoluções.

Porém, apenas no século XVIII se positivaram estas ideias: é com o Estado constitucional das Revoluções Americana
e Francesa que surgem as primeiras consagrações com valor constitucional dos direitos fundamentais (já iniciado na
Inglaterra há uns séculos atrás) – direitos de 1ª geração.

Em Portugal, a partir da revolução liberal, as sucessivas constituições deram abrigo a direitos fundamentais.

GERAÇÕES DE DIREITOS
Normalmente, quando os autores se referem ao problema do reconhecimento progressivo de um acervo
de direitos fundamentais, costumam usar uma figura, uma metáfora – que é a metáfora das gerações:
remonta aos anos 70, de autoria de Karel Vasak, que defendeu que tal como a história humana se faz pela
sucessão de gerações, também a história dos direitos se poderia contar usando a mesma metáfora.

I. Direitos de primeira geração: direitos de defesa do indivíduo perante o Estado – associavam-se ao


ideal de Liberdade; liberdade física, as liberdades intelectuais e espirituais – de pensamento, de
consciência, de religião, de expressão, de criação artística.
II. Direitos de segunda geração: direitos sociais – estavam ao serviço do ideal da Igualdade; direito à
saúde, o direito à educação.
III. Direitos de terceira geração: direitos de solidariedade entre povos e gerações – estavam ao serviço
da Fraternidade; direito dos povos à autodeterminação, o direito ao desenvolvimento e o direito
ao ambiente.

Esta metáfora foi usada por muitos autores. Temos a proposta de Vieira de Andrade, com um grupo de
direitos que coincidem com os anteriores:

i. Primeiro grupo: direitos à liberdade, direito à propriedade, reconhecidos como direitos de defesa
do indivíduo perante o Estado, direitos que exigem do Estado, fundamentalmente, uma postura de
abstenção perante as pessoas - função de defesa do indivíduo perante os poderes públicos.
ii. Segundo grupo: direitos de participação política – direitos que reconhecem na pessoa um ser
capaz de participar no processo de autodeterminação comunitária – votando, manifestando-se,
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reunindo-se, associando-se, sindicalizando-se.


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iii. Terceiro grupo: direitos sociais – direito à saúde, direito à educação, direito à habitação, direito à
segurança social – direitos que exigem do Estado um conjunto de prestações de serviços ou
pecuniárias para satisfazer as necessidades individuais – direitos a prestações (visão do Estado não
como inimigo das liberdades, mas como um ente que necessita de intervir para garantir os direitos
fundamentais).

Crítica à teoria das gerações


Ela indicia que os direitos das novas gerações se substituem aos da geração anterior e não é assim. A
evolução do acervo de direitos reconhecidos como fundamentais tem obedecido a uma lógica de
acumulação e não de substituição.

E a cada nova geração não são só novos direitos que se acrescentam aos existentes, mas são também
novos sentidos e novas dimensões que vêm enriquecer o sistema dos direitos fundamentais.

Em função desta evolução, podemos caracterizar o sistema de direitos fundamentais com certas ideias-
força.

Características do sistema de direitos fundamentais – Vieira De Andrade


➔ Acumulação: cada época histórica formula novos direitos. Os direitos típicos de cada geração
subsistem a par dos da geração seguinte, somam-se;
➔ Variedade: o leque abre-se e acrescentam-se novas dimensões e sentidos ao sistema, que se
torna cada vez mais complexo e multifuncional.
➔ Abertura: os catálogos não são nunca obras acabadas, vão-se descobrindo sempre novas
dimensões aos direitos pré-existentes e vão-se descobrindo e acrescentando novos direitos.

TENDÊNCIAS ATUAIS E NOVOS DIREITOS


Últimas décadas do século XX surge uma nova geração dos direitos fundamentais: a geração dos direitos
ecológicos; a geração dos direitos contra a manipulação genética; direitos que se prendem com a
utilização informática; direitos das minorias e direito à diferença. A cada nova geração - novos sentidos e
novas dimensões que vêm enriquecer o sistema dos direitos fundamentais.

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CRP


A Constituição Portuguesa dispõe de um catálogo de direitos fundamentais extenso, que as diversas
revisões constitucionais têm enriquecido progressivamente e onde estão presentes direitos das diversas
“gerações” e mesmo vários dos chamados “direitos novos”.

A CRP consagra no seu art. 1.º o princípio da dignidade da pessoa humana: deve entender-se o princípio
da dignidade da pessoa humana como o princípio de valor que confere unidade de sentido e
fundamento ao conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais.

O catálogo de direitos fundamentais constante da CRP tem também explícita a nota característica de
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abertura que acima referimos. Esta encontra-se no artigo 16º da Constituição. De acordo com esta
“cláusula aberta”, os direitos fundamentais reconhecidos na ordem jurídica portuguesa não são apenas
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aqueles que constam do catálogo contido na Parte I da Constituição, mas são também todos os direitos
consagrados em normas de direito internacional ou mesmo na lei a que deva reconhecer dignidade de
direitos fundamentais.

Deveres previstos na CRP


Dever cívico Deveres fundamentais conexos ou associados a Deveres autónomos:
previsto no artigo direitos: - Dever (implícito) de
49º, nº2 - Deveres dos pais relativamente aos filhos – art. 36º, pagar impostos – art. 103º
nº5 - Dever de
- Dever de proteção da saúde – art. 64º, nº1 recenseamento eleitoral –
- Dever de proteção do ambiente – art. 66º, nº1 art. 113º, nº2
- Dever de proteção do património – art. 78º, nº1 - Dever de defesa da
Pátria – art. 276º

Estrutura e regime geral dos direitos fundamentais na constituição portuguesa: sistematização dos
direitos fundamentais
As normas de direitos fundamentais previstas na CRP dividem-se em normas relativas a direitos,
liberdades e garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas relativas a direitos económicos, sociais
e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da CRP). Dentro das normas relativas a direitos, liberdades e
garantias podemos distinguir entre:

- direitos, liberdades E garantias pessoais (artigo 24.º a 47.º);

- direitos, liberdades e garantias de participação política (artigo 48.º a 52.º);

- e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (artigo 53.º a 57.º).

Esta distinção marca de modo acentuado o regime aplicável aos direitos fundamentais: há um regime
específico para os direitos, liberdades e garantias – artigo 18º, artigo 165º/1/b), 288º/d) – que não se aplica
aos DESC.

Critérios distintivos dos direitos, liberdades e garantias:

DLG DESC
direitos de defesa das pessoas antes de direitos a prestações estaduais sujeitas a determinação
mais face ao Estado. política.
direitos de conteúdo constitucionalmente encontram-se sob reserva do possível: políticas de
determinável, habitação, saúde, segurança social, educação, cultura,
não se cumprem apenas através de meras etc., não estão determinadas nos textos constitucionais:
ações estaduais negativas- são também a sua realização implica opções dos órgãos de
direitos a prestações estaduais. soberania.
aplicabilidade direta. carecem de intermediação do legislador para que
possam ser aplicáveis (Direitos sob reserva do passível).
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Críticas
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Tem havido da parte da doutrina alguma contestação a esta separação estabelecida na Constituição.
Jorge Reis Novais tece várias críticas à consagração de regimes diferenciados para os DLG e DESC:
considera que a ideia de hierarquização dentro dos direitos fundamentais, com uma pretensa
superioridade dos direitos, liberdades e garantias (gozam de um regime de proteção mais reforçado), é
contrária à ideia de direitos fundamentais em Estado de Direito e não é compatível com a vivência prática
destes direitos. Jorge Reis Novais defende a aplicação de uma dogmática unitária extensível a todos os
direitos fundamentais: Proteção conferida pelos princípios da igualdade, da proibição do excesso, da
proteção da confiança legitima - também extensível às afetações negativas de DESC; Norma
jusfundamental de direito social: se após a concretização do legislador é suficientemente determinada –
não há razão para distinções de regime

Estrutura e regime geral dos direitos fundamentais na constituição portuguesa: regime dos direitos
fundamentais
Antes, porém, de entrarmos nas particularidades de regime de cada tipo de direitos, vamos analisar os
traços comuns do seu regime. A nossa Constituição estabelece, antes do mais, um regime geral dos
direitos fundamentais, ou seja, um regime que se aplica quer a direitos, liberdades e garantias, quer a
direitos económicos e culturais e que está previsto no Título I da Parte I da CRP.

Vamos então fazer uma breve análise desse regime.

1) Regime geral dos direitos fundamentais: aplicável a todos os direitos fundamentais (DLG + DESC).

• Princípio da universalidade
Artigo 12º
(Princípio da universalidade)
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos
deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
Isto não invalida que certos direitos pressuponham uma certa idade e que haja certas categorias de
pessoas (1).

• Princípio da igualdade
Artigo 13º
(Princípio da igualdade)
1.Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Os cidadãos devem gozar dos direitos fundamentais previstos na CRP em condições de igualdade. Tal
não implica, necessariamente, uma igualdade absoluta, visto que o princípio da igualdade visa apenas
proibir as discriminações arbitrárias, sem fundamento razoável. O princípio da igualdade poderá
inclusivamente justificar tratamentos diferenciados das pessoas quando haja fundamento objetivo para tal
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diferenciação.
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• Princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas que se encontram ou residem em Portugal

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Artigo 14º
(Portugueses no estrangeiro)
Os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro gozam da proteção do Estado para o
exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país. No que
se refere a direitos fundamentais de cidadãos portugueses residentes no estrangeiro: gozam dos direitos que não
sejam incompatíveis com a ausência do país, nos termos do artigo 14º. Essa determinação só se pode fazer caso a
caso (ex: capacidade eleitoral passiva) Artigo 15º
(Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus)
1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos
aos deveres do cidadão português.
- Exceções:
2. Excetuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos (direitos eleitorais, titularidade de órgãos de
soberania), o exercício das funções públicas (que não tenham caracter predominantemente técnico) que não
tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei
exclusivamente aos cidadãos portugueses.

2) Regime específico dos direitos, liberdades e garantias: aplicável aos direitos, liberdades e garantias
do catálogo e aos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias.

Dentro da categoria dos direitos, liberdades e garantias distinguimos:

• Direitos de garantias: os direitos dizem respeito à fruição de um bem


jurídico, sendo principais, enquanto as garantias servem para assegurar
essa fruição, mas em termos acessórios.
• Direitos de liberdades: traço específico típico das posições subjetivas
identificadas como liberdades: possibilidade de escolha de um
comportamento. A componente negativa das liberdades constitui
também uma dimensão fundamental da liberdade (ex: ter ou não ter
religião – artigo 41.º; pertencer ou não pertencer a uma associação –
artigo 46.º).

O Regime específico dos direitos, liberdades e garantias visa proteger com especial intensidade estes
direitos, tendo três planos: regime material, orgânico e de limite material de revisão.

a. REGIME MATERIAL ESPECÍFICO DOS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS

O regime material específico está previsto no artigo 18º da Constituição:


Artigo 18º
(Força jurídica)
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e
vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
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devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses


constitucionalmente protegidos.
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3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter
efeito retractivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Este regime material específico consubstancia-se em:

a. Aplicabilidade direta: significa que não é necessário existir legislação sobre estes direitos
fundamentais para que sejam exercitados e exigíveis nos tribunais, ou seja, para que
sejam justificáveis.
b. Vinculação das entidades públicas: significa que o legislador (órgão legislativo), a
Administração e os tribunais (órgão jurisdicional) estão obrigados a respeitar os direitos
fundamentais dos cidadãos.
c. Vinculação das entidades privadas: significa que também nas relações horizontais se
aplicam as normas de direitos fundamentais.

O papel do legislador na resolução de conflitos entre direitos fundamentais: restrição VS delimitação da


previsão normativa dos direitos fundamentais (JRN)

Não existe qualquer modelo de solução para, de forma geral e abstrata, se resolverem os eventuais
conflitos entre direitos fundamentais. Há situações que têm que ser resolvidas pelo legislador ordinário
ou, em casos de imprevisão deste, pelo poder judicial. Estes são os verdadeiros casos de limitação ou
restrição de direitos.

Restrição

Quando falamos de restrições estamos a referir-nos a uma ação ou omissão que afeta desvantajosamente
o conteúdo de um direito fundamental, ou seja, a restrição implica um enfraquecimento do âmbito de
proteção do direito. Só estamos perante uma lei restritiva quando esta comprime o âmbito de proteção
do direito, tal como ele resulta da norma (ou das normas) que o consagra(m): tarefa prévia essencial para
se concluir quanto à verificação ou não de uma restrição.

As causas envolvem a solução genérica, por via legislativa, de conflitos de direitos ou de direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, limitando o espaço considerado protegido por direito
fundamental.

Esta atuação legislativa é problemática, porque permite ao legislador interferir no espaço de liberdade de
cada um, daí que a Constituição tenha estabelecido requisitos a ser verificados sempre que estejamos
perante leis restritivas. A nossa Constituição prevê seis requisitos substanciais para a restrição de DLG:

• Princípio da reserva de lei;


• Não podem ser restringidos ou regulados senão por via da lei, nunca por regulamento;
• Carater prospetivo (eficácia projetada) das restrições:
• Respeito pelo conteúdo essencial do direito;
• Restrição justificada pela salvaguarda de um outro direito ou interesse
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constitucionalmente protegido:
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A restrição só se justifica se o interesse que se visa acautelar tem que ter suficiente e adequada expressão
no texto constitucional.

• Respeito pelo princípio da proporcionalidade:

Não basta que haja outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos a garantir. É ainda
exigido que a restrição se limite ao necessário para salvaguardar esses outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18º, número 2. Está aqui em causa o princípio da
proporcionalidade, que obriga a que entre o conteúdo de uma decisão estadual e o fim que ela
prossegue haja um equilíbrio.

• Carácter geral e abstrato das leis restritivas:

As normas que as preveem têm de ter como destinatários um número indeterminado ou indeterminável
de pessoas e devem aplicar-se a um número indeterminado ou indeterminável de situações.

• Proibição da retroatividade:

Se a possibilidade de leis retractivas – sempre indesejável num Estado de Direito, preocupado em garantir
e respeitar a segurança jurídica dos cidadãos – não é sempre inconstitucional, em matéria de restrições a
direitos, liberdades e garantias, é inadmissível. Ou seja, não deve haver aqui margem de ponderação no
sentido de perceber se o fim que legitima a restrição sobreleva as expectativas juridicamente protegidas.

• Exigência de previsão constitucional expressa da respetiva restrição:

Há muitos preceitos constitucionais que não preveem expressamente restrições legislativas. Ex: direito à
vida, à integridade pessoal e outros direitos pessoais (art. 24.º a 26.º), liberdade de aprender e de ensinar
(art. 43.º), direitos de deslocação e emigração (art. 44.º), de reunião e manifestação (art. 45.º) A doutrina
tem procurado diferentes vias para contornar este requisito de previsão constitucional expressa da
possibilidade de restrição, seja através da ideia de limites imanentes, da existência de restrições implícitas
ou ainda do apelo ao art. 29.º da DUDH.

Jorge Reis Novais, cuja tese de doutoramento trata precisamente o problema das restrições não
expressamente previstas na Constituição, considera, por seu lado, que a consagração constitucional de
um direito fundamental sem a simultânea previsão da possibilidade da sua restrição não deve constituir
qualquer indicação definitiva sobre a sua limitabilidade. Segundo este autor, “Tomado a sério, o limite do
n.º 2 do artigo 18.º CRP significaria serem inconstitucionais hipotéticas normas ordinárias que, por
exemplo, possibilitassem à Administração impor medidas de vacinação obrigatória em caso de epidemia
(por violação do art. 25.º, n.º 1), que permitissem a um corpo policial ou de bombeiros entrar, sem
autorização, no domicílio de alguém em caso de incêndio (por violação do art. 34.º) ou que proibissem
um culto religioso que envolvesse a prática de crimes (por violação do art. 41.º, n.º 1) (…).” Autor entende
que estas consagram garantias subordinadas a uma reserva geral imanente de ponderação ou
necessidade de compatibilização com valores, bens ou interesses dignos de proteção.

O reconhecimento de uma reserva geral imanente de ponderação despe de todo e qualquer sentido útil
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o requisito da necessidade de previsão constitucional expressa, pois onde a Constituição preveja, implícita
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ou explicitamente, a necessidade de restrição, já o legislador estava autorizado a restringir com base


naquela reserva.

Delimitação da previsão normativa dos direitos fundamentais

Deve permitir excluir aquilo que, com toda a evidência, não pode ser considerado pela consciência
jurídica própria de Estado de Direito como exercício jusfundamentalmente protegido (ex: profissão de
traficante de droga – liberdade de profissão).

Nem tudo o que é proibido pela lei penal se deve considerar excluído da proteção jusfundamental: lei
penal aprovada ou mantida em vigor num ambiente de controvérsia ou dissenso social e político – ex:
aborto, eutanásia – possibilidade de inclusão dos casos difíceis.

A delimitação pode ser:

• direta: é a que decorre da norma: artigo 45.º, n.º 1 CRP: reunir com armas e de forma não pacífica não
é, para a própria constituição, liberdade de reunião;
• indireta: implica uma tarefa de interpretação → o sacrifício humano não pode ser incluído no âmbito
de proteção da liberdade de religião porque colide com o bem jurídico protegido pelo artigo 24.º -
direito à vida.

O REGIME ORGÂNICO DOS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS

Os direitos, liberdades e garantias: fazem parte da reserva relativa da Assembleia da República, o que está
previsto no artigo 165º, número 1, alínea b) da Constituição: cabe apenas à Assembleia da Repúblicas
legislar sobre direitos, liberdades e garantias, com autorização do Governo.

Há, no entanto, determinadas matérias relativas a direitos, liberdades e garantias que estão abrangidas
pela reserva absoluta da Assembleia da República: é o caso das alíneas a), b), c), e), h), i), j), l), m) e o) do
artigo 164º.

REGIME DE REVISÃO CONSTITUCIONAL

Os direitos, liberdades e garantias são limites materiais de revisão constitucional:


Artigo 288º.
(Limites materiais da revisão)
As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

Pelo facto de os direitos, liberdades e garantias serem limite material de revisão, isso não significa que
não se possa alterar de forma alguma a parte da Constituição que os consagra. Não são os preceitos
constitucionais em si que são irrevisíveis, mas o sentido dos princípios ou normas que visam proteger.
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3) Regime específico dos direitos económicos, sociais e culturais (direitos de natureza análoga a DLG)
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Ao contrário do que acontece com os DLG, não há, na CRP, nenhum preceito que se refira
especificamente a um regime especifico, que deva ser aplicado aos direitos sociais. Apesar disso, nesta
sede há também: regime material, regime orgânico e regime de revisão.

REGIME MATERIAL ESPECÍFICO

A CRP acompanha direitos sociais e fornece estruturas para realização: de algumas normas constitucionais
que consagram direitos sociais, podemos retirar uma imposição legislativa concreta das medidas
necessárias para tornar exequíveis os preceitos constitucionais. Nesses casos, o incumprimento pelo
legislador das tarefas constitucionais ligadas aos direitos sociais é suscetível de ser qualificado como uma
inconstitucionalidade por omissão (há omissão legislativa sempre que o legislador não cumpre, ou
cumpre insuficientemente, o dever constitucional de cumprir imposições constitucionais concretas). A CRP
acompanha a previsão de alguns direitos sociais da imposição de tarefas legislativas destinadas a obter as
condições necessárias à sua realização, mencionando a própria estrutura fornecedora de prestações que
o Estado deve criar (ex: artigo 63.º, n.º 2 - sistema de segurança social e 64.º, n.º 2 – serviço nacional de
saúde).

Os preceitos constitucionais relativos aos DS servem de controlo de constitucionalidade e o principio da


proibição do retrocesso social: servem de padrão positivo de controlo da constitucionalidade das leis,
podendo sustentar juízos de inconstitucionalidade por ação. Mas as normas consagradoras de direitos
sociais são caracterizadas pela indeterminabilidade, criando um problema de apurar a
inconstitucionalidade da norma legislativa por violação do direito social. Levantam-se, nestes cados,
situações de inconstitucionalidade por ação (o Estado já tinha avançado na concretização, mas suprime-as
– retrocede no grau de proteção). Aqui, alguns autores entendem que, se o Estado já garantiu um
determinado grau de efetivação de DESC, não pode voltar atrás.

Os DESC são direitos sob reserva do possível e estão dependentes da lei.

Se nem todos os direitos económicos, sociais e culturais podem ser tornados operativos em certo
momento ou para todas as pessoas, há que determinar com que prioridade e em que medida o deverão
ser: tarefa de harmonização e concordância prática.

Os DESC são direitos universais. No entanto: porque há desigualdades, as prestações em que se projetam
hão de tomá-las em conta → é o princípio da igualdade que o exige. “É, por isso legítima – e até
porventura uma imposição do nosso tempo – a diferenciação, neste domínio, entre a igualdade como
ponto de partida e a igualdade como ponto de chegada, entendendo-se que o legislador, na
concretização dos direitos sociais, sobretudo em momentos de escassez de recursos, possa prosseguir a
igualdade pela diferenciação entre os que precisam e os que não precisam, ou entre os que precisam
mais e os que precisam menos (…)”

José Carlos Vieira de Andrade, “O direito ao mínimo de existência condigna como direito fundamental a
prestações estaduais positivas” - uma decisão singular do Tribunal Constitucional”.

Ao contrário dos DLG, os DESC não são diretamente aplicáveis. Mas em todo o caso vinculam e a sua
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força jurídica manifesta- se nos seguintes aspetos: poderão fundamentar restrições legítimas ou limitações
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aos DLG:

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- Direito à habitação que pode implicar restrições no direito do senhorio à sua propriedade (ex: denúncia
do contrato de arrendamento).

- Imposição legislativa concreta das medidas necessárias para tornar exequíveis os preceitos
constitucionais: tratando-se de direitos a prestações públicas, o dever que lhes corresponde da parte do
Estado é o dever de legislar.

Entre nós: mecanismo específico de garantia do cumprimento pelo legislador dos deveres de atualização
e aplicação das normas constitucionais: a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

E em que condições é que o incumprimento pelo legislador das tarefas constitucionais ligadas aos DESC é
suscetível de desencadear uma inconstitucionalidade por omissão?

- Incumprimento de uma certa e determinada norma; há omissão legislativa sempre que o legislador não
cumpre, ou cumpre insuficientemente, o dever constitucional de concretizar imposições constitucionais
concretas.
A CRP: imposição de tarefas legislativas destinadas a obter as condições materiais e institucionais necessárias à
sua realização, mencionando a própria estrutura fornecedora de prestações que o Estado deve criar (ex: artigo 63º,
nº 2 - sistema de segurança social, e 64º, nº 2 – serviço nacional de saúde).

Inconstitucionalidade por omissão: dever de legislar materialmente determinado ou determinável.

Os preceitos constitucionais relativos aos direitos sociais: padrão positivo de controle da constitucionalidade das
leis.

Se as normas consagradoras de direitos sociais se caracterizam pela indeterminabilidade, como apurar a


inconstitucionalidade da norma legislativa por violação do direito social?

Quando a Constituição fixa incumbências e tarefas precisas e bem determinadas que o Estado fica obrigado a
realizar.

Inconstitucionalidade por ação → quando o Estado já havia dado cumprimento às obrigações que resultam da
norma constitucional e vem posteriormente a suprimir ou restringir essas realizações.

Para aferir de uma eventual violação da Constituição por ação: princípio do não retrocesso social?
Sempre que o Estado tenha começado a dar alguma execução aos deveres de prestação: fala-se aqui em
direitos derivados a prestações.


A doutrina e a jurisprudência constitucionais têm procurado deduzir este princípio de outras proposições
normativas e de outros institutos:

A radicação na consciência jurídica geral; o princípio social; princípio da proteção da confiança; o princípio da
dignidade da pessoa humana; etc.
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O legislador não pode retroceder:


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• Em primeiro lugar, quando há uma imposição legislativa específica na constituição que foi
concretizada pelo legislador ordinário;
Acórdão 39/84, relativo ao Serviço Nacional de Saúde: “Note-se que, em qualquer caso, se está perante
normas constitucionais bem qualificadas: a) São verdadeiras e próprias «imposições constitucionais» e não simples
«normas programáticas»; b) Prescrevem concretas e definidas tarefas constitucionais ao Estado e não vagas e
abstratas linhas de ação”.

• Em segundo lugar, nas situações em que com esse retrocesso se viola simultaneamente algum
princípio constitucional fundamental (a igualdade, a proporcionalidade ou a proteção da confiança,
por exemplo).
Acórdão 188/09, em matéria de pensões: “A proibição do retrocesso social opera (…) quando a alteração
redutora do conteúdo do direito social (…) implique, pelo «arbítrio ou desrazoabilidade manifesta do retrocesso», a
violação da proteção da confiança (…).”

Assim, independentemente da divergência doutrinária, o Estado, se quiser retroceder, terá de fazê-lo tendo em
conta os princípios constitucionais estruturantes:
• O princípio da igualdade;
• O princípio da proteção da confiança;
• O princípio da proporcionalidade;
• O princípio da dignidade da pessoa humana.

• Em terceiro lugar, o legislador não poderá retroceder quando esteja em causa o mínimo para
uma existência condigna, ou o conteúdo essencial dos direitos.
Acórdão 509/02: “o princípio do respeito da dignidade humana (…) implica o reconhecimento do direito ou da
garantia a um mínimo de subsistência condigna.” Daqui se retira que o Tribunal considera que este mínimo contém
um efeito vinculativo mais intenso.
Acórdão 3/10: “Não há dúvida de que "os direitos sociais contêm também − ou podem conter − um conteúdo
mínimo, nuclear ou, porventura essencial diretamente aplicável" (…)”.

→ O direito a um mínimo para uma sobrevivência condigna: direito análogo aos DLG e gozando de
aplicabilidade direta.

Na última década: o TC alicerçou progressivamente este princípio:


- Dimensão subjetiva e negativa, a propósito da imposição às seguradoras da atualização das pensões por
acidentes de trabalho e da impenhorabilidade de prestações sociais na parte que excedam um rendimento
mínimo de subsistência.

→ Direito a não ser privado do que se considera essencial para uma existência minimamente condigna.

Posteriormente:

Acórdão n.º 509/02: fundamentou a inconstitucionalidade da norma como resultando de uma violação direta
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do princípio da dignidade da pessoa humana.


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O TC vem asseverar a existência do direito a um mínimo de existência como direito a prestações positivas do
Estado.

As normas de direitos sociais podem, então, em certas circunstâncias, vir a ter um efeito vinculativo mais
intenso: o direito social terá um conteúdo idêntico ao de um DLG.

REGIME ORGÂNICO

- Matéria concorrencial. A matéria concorrencial é toda aquela que não se encontre prevista nos artigos
164º; 165º e 198º.

Integram a reserva relativa: as bases do sistema de segurança social e do serviço nacional de saúde; as
bases do sistema de proteção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural; o regime
geral do arrendamento urbano.

Integram a reserva absoluta: as bases do sistema de ensino

Assim, são exceções: artigo 164º, i); artigo 165º f) e g) e h).

REGIME DE LIMITE MATERIAL DE REVISÃO


Artigo 288º, e): são limite apenas os direitos dos trabalhadores que se inserem nos DESC.

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