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PESQUISA TEÓRICA
nacionais, induzindo saídas individuais e negando a di- conseguidos no que concerne a modelos de proteção
mensão coletiva da sociabilidade. social no trintenário anterior; e na desorganização dos
A fim de explorar esta assertiva, o caminho a ser trabalhadores. Paulatinamente, as experiências de
percorrido inicialmente explicitará a relação medular condução política neoconservadoras retiram da órbi-
entre questão social e política social para, então, ve- ta do Estado as funções de proteção social conside-
rificar de que maneira a proposta de universalização radas “ineficientes” do ponto de vista mercantil, bus-
desta última derivou em políticas particularistas, de- cando outros “responsáveis” para sua produção e
nominadas Políticas de Ação Afirmativa (PAA) e a administração. Desta forma, as crises e a crítica do
sua configuração no caso brasileiro. Para tanto, o Estado permitiram o avanço da tese liberal-conser-
exemplo utilizado será o da reivindicação de cotas vadora no campo das políticas sociais, reforçando o
étnico-raciais para o ingresso de negros na universi- processo de reforma do Estado mediante a justifica-
dade pública. tiva da necessária redução da esfera pública.
Tudo isso tem como chão uma crise cronificada,
que manifesta um pico de exasperação do movi-
Questão social e políticas sociais mento social; o tecido social se crespa e está quase
rompido. Está-se falando de um tensionamento que
As políticas sociais têm sua gênese no final do vai aumentando lentamente até se incorporar ao co-
século 19, a partir da emersão da chamada questão tidiano, não causando mais qualquer reação; torna-
social, espraiando-se internacionalmente no século 20 se natural. As resultantes mais visíveis encontram
como o resultado da consolidação da transição do eco nos movimentos dos trabalhadores (uma enor-
capitalismo concorrencial para o monopolista (PAU- me dominância corporativista) e no conjunto do mo-
LO NETTO, 1992; BEHRING; BOSCHETTI, 2006). Nes- vimento social (uma atomização e uma pulveriza-
te sentido, a atenção à questão social na sociedade ção absolutas). Simplesmente joga-se na fragmen-
capitalista vem sendo pensada como uma forma de tação e transfere-se para organismos da ressi-
regular os conflitos com a intenção de obter a gnificada sociedade civil o ônus de projetos estrate-
legitimação da ordem e o consenso social, dando res- gicamente dirigidos pelo Estado, entrando aí um so-
postas a algumas das reivindicações dos setores su- berano desprezo por este.
balternos que possam colocar em perigo a ordem Há uma expansão mundial da “desproteção soci-
capitalista e a necessária coesão social. al”. O desemprego estrutural (fomentado principal-
É evidente que as políticas sociais não podem ser mente pela reestruturação produtiva) e o aumento
analisadas exclusivamente a partir do Estado (como da pobreza e da miséria sociais (causados pela con-
mecanismo de dominação dos grupos no poder), nem jugação de desemprego, retirada de direitos e demo-
tampouco unicamente a partir da sociedade civil lição de políticas sociais), provocam a ascensão de
(como produto das pressões e vindícias dos setores uma franja social que começou a ser considerada
subalternos frente ao Estado). Devem, sim, ser com- “desnecessária” ao capital, ou seja, não se inseriria
preendidas como uma relação, como uma mediação na economia – seja ela formal ou informal. Esta franja
entre o Estado e a sociedade civil, depositários de social manifesta-se por meio de uma horda de
uma dupla característica de coerção e consenso, de neofamélicos e neomiseráveis, que não só colocam
concessão e conquista (PASTORINI, 1997). em xeque as maravilhas propaladas pelos arautos do
Para que as políticas sociais pudessem ser neoliberalismo, como também ameaçam a sua conti-
viabilizadas, o modelo do laissez-faire3 deu lugar ao nuidade, pois são a prova cabal da falência do novo
protecionismo estatal. O Estado foi chamado a inter- modelo. São estes os segmentos mais pauperizados
vir na economia e um pacto social foi estabelecido da sociedade e, não raro, aqueles também mais his-
com a classe trabalhadora. Entrava em cena o Estado toricamente marginalizados. Novamente, a subjetivi-
de bem-estar social, baseado no modelo fordista- dade dos trabalhadores precisa ser capturada e
keynesiano, que inaugurou os chamados “30 anos glo- reconfigurada a partir de um padrão de individualis-
riosos do capitalismo”. É óbvio que este modelo deve mo no qual a luta de classes deve ser obscurecida,
ser considerado à luz de cada país no qual se instau- dando lugar a um estranhamento interclasse.
rou. No Brasil, nas lúcidas palavras de Francisco de Sem desconhecer as especificidades de cada país,
Oliveira (2003), o que tivemos chegou muito mais per- essa década marca um giro extremamente impor-
to do que poderíamos chamar de um Estado de mal- tante em nível mundial, enquadrado pelo avanço da
estar social devido à formação político-social do país. ofensiva neoliberal em duas das suas principais ca-
Em face de uma nova crise internacional do capi- racterísticas: o desmonte da responsabilidade públi-
talismo, nos anos 1970, a resposta encontrada foi a ca em relação às grandes problemáticas sociais e a
instauração do neoliberalismo, baseado principalmente proposta de Estado mínimo. Contudo, em todos os
no enxugamento do Estado no que diz respeito às quadrantes do planeta, é notório que a ofensiva
políticas sociais; no solapamento dos direitos sociais, neoliberal exige a reconfiguração do Estado.
Para tanto, instaura-se um período de investida o princípio da subsidiariedade do Estado); e, por outro
do pensamento conservador que não encontra pre- lado, a privatização e a consequente transformação
cedentes antes dos últimos 30 anos do século 20. O em mercadoria dos serviços sociais a serem adquiri-
conservantismo consegue de tal forma obnubilar o dos no mercado pelo “cidadão consumidor” (MOTA,
real, que o traveste de uma irracionalidade pós-mo- 2005). Essas mudanças foram comandadas pelo Con-
derna, caucionando o fragmentário, o caótico, as no- senso de Washington, que estabeleceu regras a serem
vas “identidades sociais” e os “novos movimentos implementadas nos países periféricos para enfrentar a
sociais”. O capitalismo incorpora essa irracio- crise do capitalismo.
nalidade. Isto porque o problema é superar não uma A pobreza, caracterizada pelas franjas anteriormen-
racionalidade, tomada como tal, mas uma racio- te aludidas, passa a ser vista como algo inarredável e
nalidade que foi instrumentalizada pelo capital. Mas ineliminável, posto que faz parte do ordenamento soci-
isto significa colocar em questão a ordem vigente, e al. Desta forma, há que mantê-la em níveis suportá-
é próprio dos pensadores pós-modernos caucionar veis, ou seja, há que se combater a pobreza absoluta4.
a ordem vigente. Porque sustentar o fim ou a É esta que é posta em condições de ser erradicada. O
exaustão do modelo societário precedente é sus- fundamental passa a ser “controlar a pobreza”.
tentar também todo um bloco sociocultural que foi Neste contexto, é incentivado o surgimento de
extremamente funcional ao capital. segmentos sociais, agrupados quer por suas “identi-
A conjugação destes elementos implica em uma dades”, quer por suas “necessidades” e “diferenças”,
nova sociabilidade, que se inicia com o redimen- que começaram a ganhar proeminência para a inter-
sionamento da classe trabalhadora e envolve o apro- venção de políticas sociais específicas para cada um
fundamento da questão social. destes segmentos. Seguindo o receituário neoliberal
e das agências financeiras internacionais multilate-
rais, estas políticas não mais seriam conduzidas ex-
Políticas sociais sob a égide do neolibera- clusivamente pelo Estado, e sim pela “sociedade ci-
lismo no Brasil vil”, pelas organizações não governamentais (ONG),
pelas empresas e pelo denominado Terceiro Setor.
Até a década de 1980, na maior parte dos países Assim, o combate à pobreza absoluta se dá por
latino-americanos, foi o Estado, por meio de suas meio de políticas denominadas de “ações afirmati-
políticas sociais, quem assumiu prioritariamente a aten- vas” (PAA).
ção das sequelas da questão social. É a partir deste
decênio que, em um claro ataque aos princípios do
Estado social, os neoliberais promoveram a redução Políticas de ação afirmativa à brasileira
de qualquer intervenção estatal no interior da dinâ-
mica do mercado, em particular aquelas portadoras No Brasil, o pioneirismo do Partido dos Trabalha-
de mecanismos democráticos que pudessem contro- dores (PT), em relação aos seus irmãos sul-ameri-
lar o movimento do capital. Não há um aumento sig- canos, no tocante à eleição de governantes oriundos
nificativo, em nenhum país latino-americano, do mer- de partidos de esquerda, materializado na legitimida-
cado de trabalho formal. Cresce a informalidade. O de conferida nas urnas, em outubro de 2002, à candi-
que se assiste, dos anos 1980 para frente, é um estí- datura de Lula da Silva, não impediu uma política de
mulo claro à organização dos informais. aprofundamento das medidas de caráter neoliberal.
Uma das transformações mais importantes foi a E isto se verificou, notadamente, no que diz respeito
redução da ação reguladora do Estado. Os estrategas à continuidade de uma política macroeconômica ab-
neoliberais argumentam, tout court, que somente um solutamente favorável ao capital financeiro – tão cara
Estado mínimo pode propiciar uma administração ra- aos governos anteriores, aos quais o PT, agora no
cional, que incorpore os diversos segmentos sociais governo, criticou sempre exacerbada e enfaticamente
aos bens socialmente produzidos por meio da (LEITE et al., 2008).
integração ao mercado. Argumentam que a ótica Eleito pela esperança de 53 milhões de brasileiros
patrimonialista e extremamente onerosa do Estado para levar adiante um projeto alternativo às medidas
(especialmente o Estado de bem-estar) é, na verda- ditadas pelos organismos internacionais (FMI, BM etc.)
de, ineficaz, e produz efeitos contrários aos deseja- e pelo governo dos Estados Unidos, Lula da Silva con-
dos, criando desigualdades onde supostamente se pre- templou a população brasileira com um conjunto de
tendia obter uma maior equidade. ações que, hoje, surpreendem até os seus formuladores
Assim, entra em curso a tendência a transformar originais (COGGIOLA, 2004). Esta foi a opção do PT,
os regimes universais de proteção social em uma par- anunciada desde antes das eleições: honrar todos os
ticularização de benefícios sociais. Tem-se, por um lado, contratos com o capital. Nenhum contrato foi honrado
a redução e a focalização da ação estatal para aque- com os trabalhadores (PAULO NETTO, 2004). O PT
les casos mais imediatos e urgentes (consubstanciando chega, portanto, ao governo, da mesma forma como
se executa uma melodia ao violino: segura com a mão É justamente por operar neste mosaico ideológico
esquerda e toca com a direita. que as PAA, notadamente a política de cotas (seja
Reformas que não medraram no governo qual for o seu naipe), prometem, em nome de “repa-
Fernando Henrique Cardoso (FHC) foram encami- rações sociais”, uma suposta mobilidade social as-
nhadas açodadamente no primeiro mandato do go- cendente adquirida a partir de uma desigualdade de
verno petista. Nesse sentido, a reeleição de Lula da gênero, etária, étnica etc. Tudo se transforma em um
Silva não aportou, no todo, maiores novidades – in- problema do idoso, da mulher, do jovem, do índio...
ternas ou externas. Ou seja, nulifica-se a classe social, porque tudo pas-
No processo eleitoral, o Bolsa Família foi a prin- sa a derivar de grupos específicos, que são descola-
cipal moeda de troca, notadamente entre os segmen- dos de uma totalidade social (LEITE, 2008).
tos mais pauperizados da população. Aliás, as políti-
cas assistencialistas foram cuidadosamente ministra-
das aos brasileiros, ao mesmo tempo em que políti- Um caminho – a luta coletiva
cas macroeconômicas de corte o mais ortodoxo pos-
sível os empobrecia. Produziu-se, assim, uma quími- Em 1995, foi realizada, em Brasília, a I Marcha
ca altamente apassivadora de prováveis conflitos Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidada-
advindos de uma horda de miseráveis (DIAS, 2006). nia e pela Vida. Entre os anos 2000 e 2001, ocorreu
Some-se a isso um discurso messiânico de péssima uma frenética mobilização, que culminou com a par-
envergadura e tem-se, facilmente, a maior parte dos ticipação na III Conferência Mundial das Nações
votos que reelegeram Lula da Silva. Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial,
Destarte, esse assistencialismo prima: não somen- Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, África
te retira, paulatinamente, toda e qualquer responsa- do Sul), que deixou como saldo um processo que agora
bilidade do Estado, no que diz respeito ao financia- auge com os manifestos pró e contra a adoção do
mento e à gestão das políticas sociais, como também sistema de cotas (VITÓRIA, 2004, 2007).
joga, pesadamente, essa responsabilização sobre as Este é o resultado mais visível do processo de or-
famílias e comunidades (outorgando-lhes, ainda, uma ganização do movimento negro no Brasil, sobre o qual
boa dose de culpabilização pela sua própria situação será feita uma breve digressão.
de penúria social). Em meados dos anos 1970, o regime militar co-
Garante-se, assim, a continuidade (sempre meça a dar mostras de exaustão. Presencia-se o res-
aprofundada) do projeto inicial de Fernando Collor surgimento da sociedade civil, a partir de militantes
(que desorganiza o Estado), assumido por FHC (que das Comunidades Eclesiais de Base, vinculadas à
o desmonta) e que, provavelmente, será coroado por Igreja Católica, sensível às organizações de esquer-
Lula da Silva (cuja missão é redesenhar o Estado). da e sindicatos. Articula-se uma rede de movimentos
Portanto, o fenômeno que se delineia e consolida, populares urbanos que buscam representar as mais
nos últimos 8/10 anos, é a assistencialização do con- diferentes reivindicações em espaços como fábricas,
junto das políticas sociais, ou seja, essas políticas, associações de moradores, movimentos por moradia,
antes universalistas, passam a assumir um cariz niti- contra o aumento do custo de vida, movimento estu-
damente assistencialista, focalizado, pontual, segmen- dantil, entre outros. E aí se encontram, também, as
tado, clientelístico e descentralizado (descentraliza- organizações do movimento negro. Em 1978 é fun-
se a tarefa, e não o recurso) (PAULO NETTO, 2004; dado o Movimento Negro Unificado contra a Discri-
IAMAMOTO, 2007). Trata-se, antes de mais, de minação Racial.
ordená-las segundo as prioridades que podem tornar Em um primeiro momento, as organizações soci-
mais perigosas as classes perigosas. ais e sindicatos buscam estabelecer uma posição de
Nenhum dos programas que, hoje, está em voga, autonomia frente a partidos políticos, instituições, igre-
oferece qualquer porta de saída. Apresentar esse tipo jas etc., sendo frequentes as tensões entre os movi-
de solução como algo mais que emergencial, não é mentos e partidos ou entre os movimentos e a Igreja.
apenas um equívoco. É muito mais que isso: é uma Na relação destes movimentos com o Estado, o
orientação política de natureza claramente ideológi- potencial deste último como indutor de demandas,
ca. Dá-se aos pobres o seu lugar para conservá-los acaba por ficar oculto no discurso das organizações,
como tais. que destacam a autonomia e o caráter antiEstado dos
Neste quadro de assistencialização do conjunto movimentos sociais, configurando uma relação de
das políticas sociais, o que se tem é uma cronificação negação do Estado ditatorial e de oposição ao gover-
do combate à pobreza. E, na medida em que este no militar. O Estado procura garantir alguma
conjunto se cronifica e se transmuta em políticas sis- legitimação pelo consenso passivo e passa a respon-
temáticas, os resultados para a sociedade brasileira der às reivindicações dos movimentos mediante a
e a sua grande massa de trabalhadores – emprega- efetivação de políticas sociais nas áreas de saúde,
dos ou não – serão deletérios. saneamento básico, sistemas de transporte, dentre
outras, o que redunda na ampliação das demandas descola-se dos trabalhadores, para se tornar “me-
populares. Essas medidas, já no início da década de recedor” de políticas de exceção, porque é “dife-
1980, em função da crise econômica e das manifes- rente” dos demais. Que os outros trabalhadores
tações de ação direta, encontram um Estado inca- busquem seus espaços específicos, quer para te-
paz de dar respostas rápidas aos anseios dos setores rem acesso aos estudos, quer para conseguirem um
sociais atingidos pela recessão. lugar no mundo do trabalho. Instala-se o reinado do
No enfrentamento desses dilemas, a sociedade “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
brasileira vai apurando a construção de um novo pa- Neste encadeamento, o ingresso nos cursos de
drão de organização, que ganha um corpo político. nível superior apresenta-se como a mais rápida opor-
Pessoas antes sem nenhuma participação política tunidade para a ascensão social. Troca-se o diploma
surgem em cena com uma disposição militante dife- de “doutor” pelo silêncio das reivindicações por uma
rente daquela existente na lógica populista anterior. educação integral, formadora e propedêutica desde
É fundado o PT que, no leque de partidos políticos a infância. A universidade resolverá os problemas de
gerados pela reforma partidária de 1979, viria a re- antanho. Verdadeiro elixir de catuaba.
presentar um canal institucional de participação das O fato de que o ingresso no mercado de trabalho
camadas populares que para ele acorreram por meio é um problema estrutural não importa; será resolvido
dos novos movimentos sociais e sindicais. É também com a implementação de novas cotas, preferencial-
criada a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em mente para o setor público (mais “garantido”).
1983, articulando as forças do novo sindicalismo, nas- Para o alcance destes objetivos, não interessa a
cido, principalmente, nas greves do ABC paulista. sua forma final, não interessa o conteúdo das dis-
No PT e na CUT, entidades construídas como ins- cussões. A máxima de que “o fim justifica os mei-
trumentos da luta de classes, a geração de militantes os” é posta em movimento, n’importe qui,
negros oriunda dos anos 70 encontra seu espaço para n’importe quoi. Assim, trabalhador passa a desco-
continuar desenvolvendo sua luta antirracial. nhecer trabalhador, a partir da sua cor de pele, de
Nesse cenário, as questões trazidas pelos mili- seu gênero, de sua idade.
tantes negros eram vistas como mais uma das
consequências da divisão da sociedade em classes
sociais, inerente ao capitalismo e, desta forma, Outro caminho – ... e continuaremos negros5
inseridas no que, desde o século 19, conhece-se como
questão social. A implementação do sistema de cotas raciais para
Até o final da década de 80, percebe-se que a o ingresso de estudantes negros no ensino superior e
mobilização política da população negra logrou al- a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial são,
cançar espaços de participação política institucional hoje, os principais temas colocados pela população
por meio dos Conselhos de Participação e Desen- negra na pauta de discussão da sociedade brasileira.
volvimento da Comunidade Negra, órgão que surge É notória a existência de desigualdades a serem
primeiro em São Paulo, sob o governo de Franco enfrentadas pelos negros que, nesta sociedade, pos-
Montoro, e que depois servirá de modelo aos demais suem – na média geral – menos escolaridade, salá-
governos estaduais. Outra mostra do avanço da luta rio, saúde, emprego e moradia que os brancos e asi-
negra é o fato de a existência da discriminação raci- áticos. Entrementes, não é suficiente ancorar a luta
al ter sido admitida, no interior do processo de elabo- contra o preconceito e a discriminação que atingem
ração da Constituição de 1988, não como contra- a população negra brasileira com um imperativo mo-
venção penal (como aparecia na Lei Afonso Arinos, ral que se estabelece exaltando a particularidade.
de 1951), mas sim, tipificada como crime inafiançável As especificidades precisam ser vistas também
e imprescritível. no que possuem em comum e, por este prisma, é
Toda esta construção começa a ruir quando, ini- necessário considerar que as dificuldades encontra-
cialmente com o Comunidade Solidária, de FHC, e das pelos estudantes negros são as mesmas enfren-
posteriormente mediante a implementação, a gra- tadas por estudantes pobres, filhos de trabalhadores
nel, das PAA, pelo governo de Lula da Silva, os não negros, que chegam às portas da universidade e
setores menos politizados do movimento negro não conseguem adentrá-las, em função de uma edu-
anteviram formas mais céleres e menos “trabalho- cação formal deficitária, oferecida por uma rede pú-
sas” (como a luta coletiva) para alcançarem seus blica desqualificada pela falta de investimentos dos
objetivos. O negro, de segmento historicamente ex- sucessivos governos. Também eles são componen-
plorado, passa a ser portador de uma dívida históri- tes de um segmento da sociedade que vive em pre-
ca, hipotecada pelo seu caráter de opressão. O ne- cárias condições socioeconômicas. Mesmo aqueles
gro, doravante, não mais pertence à parcela dos ferrenhos defensores das cotas – que por vezes in-
explorados pelo capital – portanto, “igual” a todos correm no equívoco de confundir racismo com aces-
aqueles pertencentes à classe trabalhadora –, mas so – reconhecem esta realidade:
importante dessas novas formas de políticas para aten- rão de um contexto de espera de “benesses”, para
der o social – e escamotear as expressões da ques- uma realidade de transformação histórica.
tão social – materializa-se como “instrumentos para
eliminar o caráter da luta política, convertendo os
conflitos e tensões sociais em expressões vazias de Referências
sentido transformador, com a intencionalidade de
convertê-las em expressões neutras”. ABRAMO, P. Sociedade: velhos partidos e novíssimos
As políticas sociais, travestidas doravante em movimentos. Teoria e Debate. São Paulo, Fundação Perseu
“programas para grupos historicamente oprimidos”, Abramo, n. 24, p. 27-31, mar./abr./maio, 1994.
mediante as PAA, funcionam exatamente como ins-
trumento de divisão da classe trabalhadora, a partir BEHRING, E.; BOSCHETTI, I. Política social –
de sua característica residual, pontual e fragmen- fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006.
tadora. Perde-se, com isso, o horizonte da luta co-
letiva. Além disso, a focalização despolitiza as polí- BRASIL. Ministério da Saúde (DST/Aids). Brasil
ticas, tirando o foco da totalidade do real, naturali- Afroatitude: primeiro ano do programa. Brasília, DF, 2006.
zando, banalizando e – ato contínuo – criminalizando (Série Anais, Seminários e Congressos, n. 6).
as refrações da questão social, transformando-as
em expressões individuais. CASTEL, R. Les metamorphoses de la question social:
É evidente que o combate a essa lógica demanda une chronique du salariat. Paris: Gallimard, 1993.
relações com a dinâmica do movimento das classes
sociais e dos movimentos sociais, que são interlo- CICONELLO, A. O desafio de eliminar o racismo no Brasil:
cutores extremamente significativos. Portanto, na a nova institucionalidade no combate à desigualdade racial.
trilha do método já sobejamente empregado, estes In: OXFAM INTERNATIONAL. (Org.). From Poverty to
são interlocutores que devem ser cooptados ou, caso Power: how Active Citizens and Effective States can
necessário, corrompidos. Mas é preciso lembrar duas Change the World. Oxfam International: Londres, 2008.
coisas: primeiro, que o movimento social é capaz de
ajudar e promover a emancipação política. Mas – COGGIOLA, O. Governo Lula – da esperança à realidade.
segundo – movimento social nenhum promove a São Paulo: Xamã, 2004.
emancipação humana. Se os movimentos sociais não
encontrarem uma outra instância, uma instância de DIAS, E. F. Política brasileira: embate de projetos
universalização de interesses sociais, serão hegemônicos. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa
corporativizados. Isto porque é notório que os movi- Sundermann, 2006.
mentos e grupos que militam nestas áreas têm se
mostrado corporativos e restritos em suas demandas GLÓRIA, M. C. S. Políticas de ação afirmativa para
e formas de encaminhamento das lutas sociais, neles negros: novas propostas para antigos problemas.
predominando uma visão instrumental, moral e Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Programa de
conjuntural do Estado, das políticas sociais e das ins- Pós-Graduação em Serviço Social, Rio de Janeiro, UFRJ,
tituições que eles pretendem influenciar para orien- 2006.
tar suas ações. Sua ótica não é equitativa e/ou
universalista, mas particularista, e sua capacidade de IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital
mobilização está marcada pelo apelo emocional. fetiche. São Paulo: Cortez, 2007.
É por isso que as PAA, além de não serem políti-
cas sociais, também não representam sequer a possi- ______. A questão social no capitalismo. Temporalis,
bilidade de uma transição para políticas universalistas. Brasília, Abepss, ano II, n. 3. p. 9-31, jan./jul., 2001.
A consequência imediata é o enfraquecimento da luta
por novos direitos e a fragilização daqueles já conquis- LEITE, J. L. Política de assistência estudantil: entre o direito
tados. Esse é só um pálido quadro do peso das singu- e o favor. Universidade e Sociedade. Brasília: Andes-SN,
laridades e das particularidades na esfera onde só há n. 41, p. 165-173, 2008.
avanço possível no marco da universalização. A re-
versão deste quadro pressupõe a articulação das dife- LEITE, J. L. et al. Desfazer os enganos, superar os engodos,
rentes esferas da sociedade em uma perspectiva de resistir e lutar: construir o futuro. In: CONGRESSO DO
ampliação e politização do debate, a fim de que o dis- SINDICATO DOS DOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE
curso apassivador e anestesiante não encontre eco. ENSINO SUPERIOR, 27, 2008. Goiás. Anexo ao Caderno
Somente recuperando a matriz universalista e a luta de Textos. Goiânia: Andes-SN, 2008, p. 10-15.
coletiva, materizalizada na consciência de “classe para
si”, os horizontes presentes poderão transformar-se MOTA, A. E. Cultura de classe e Seguridade Social. São
em um futuro possível, quando então as “massas” sai- Paulo: Cortez, 2005.
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. particulares na cena contemporânea. Requer, no seu
São Paulo: Boitempo, 2003. enfrentamento, a prevalência das necessidades da
coletividade dos trabalhadores, o chamamento à
PASTORINI, A. Quem mexe os fios das políticas sociais? responsabilidade do Estado e ‘a afirmação de políticas sociais
Avanços e limites da categoria ‘concessão-conquista’. de caráter universal, voltadas aos interesses das grandes
Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, v. 18, n. maiorias, condensando um processo histórico de lutas pela
53, p. 80-101, 1997. democratização da economia, da política, da cultura na
construção da esfera pública’” (IAMAMOTO, 2001, p. 10-
PAULO NETTO, J. A. Capitalismo monopolista e Serviço 11, grifos da autora).
Social. São Paulo: Cortez, 1992.
3 Expressão usualmente utilizada para designar o liberalismo
______. Ética e crise dos projetos de transformação social. econômico clássico, ou seja, o modelo que propugna que o
In: BONETTI, D. A. et al. (Org.). Serviço Social e ética: Estado deve interferir o menos possível na economia,
convite a uma nova práxis. Brasília/São Paulo: CFESS/ limitando-se a ofertar bens públicos não interessantes para o
Cortez, 1996, p. 21-30. mercado, que deve fluir sem amarras.
______. conjuntura brasileira: o Serviço Social posto à 4 Aquela que envolve uma renda diária per capita de um dólar
prova. Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, e que é o principal objeto dos Objetivos do Milênio (FMI e
Ano XXV, n. 79, p. 5-26, Especial 2004. Banco Mundial) para ser erradicada.