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D. A.

LEMOYNE
Copyright © 2020
D. A. LEMOYNE

Copyright © 2020

Título Original: Isolados - Depois Que Eu Acordei

Primeira Edição - abril de 2020


Segunda Edição - novembro de 2020

Carolina do Norte - EUA

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta

publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida


por qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo

fotocópia, gravação ou outros métodos eletrônicos ou

mecânicos, sem a prévia autorização por escrito da autora,

exceto no caso de breves citações incluídas em revisões


críticas e alguns outros usos não-comerciais permitidos

pela lei de direitos autorais.


Capa: AMARa Literária

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens,

lugares, negócios, eventos e incidentes são ou produtos da

imaginação da autora ou usados de forma fictícia. Qualquer

semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas ou

eventos reais é mera coincidência.


Atenção: temática forte. Pode conter gatilhos.

Lucas

Pensei que estava morto por dentro.


Não havia motivo para acordar.

Até que que sua culpa e desprezo por si mesma vieram

ao encontro dos meus.

Ela está mergulhada em autodestruição e talvez, ao

tentar salvá-la, eu consiga resgatar a mim mesmo.

Clara

Eu passei a vida dentro de uma bolha que a minha

irmã criou para me proteger e quando ela finalmente


estourou, não sobrou nada de mim.

Todos o temem ou repudiam, mas ele não me assusta.

Ao contrário, sua escuridão é bem-vinda.

Nenhum dos dois tem algo a oferecer.

Nenhum dos dois espera algo em troca.

Mas os dias que passam juntos servem para anestesiar

a dor.
E nessa jornada de sensualidade e desespero, talvez

eles finalmente encontrem o que passaram a vida inteira

procurando.
Essa dedicatória será diferente: é endereçada a todos

aqueles que precisam de um descanso mental nesse


momento difícil que estamos atravessando.

Um vírus de repente obrigou nosso planeta a tirar férias


forçadas.

Espero que meu livro possa ser um grãozinho de areia

a ajudá-los a continuar acreditando no amor.

Carolina do Norte, novembro de 2020.

(Segunda Edição)
Nota d a A u t o r a :

Isolados é o último livro da série Corações Intensos, o


encerramento das histórias desse grupo de amigos que
tanto afeiçoei-me.
Quando olhamos de fora, eles parecem possuir uma
vida de sonhos - são jovens, ricos e bonitos.
Mas por trás da fachada de perfeição, cada um esconde
segredos e traumas que os impede de viverem
plenamente.
Isolados trará o romance de Clara e Lucas, duas
pessoas quebradas que inicialmente, unem-se para dar
suporte um ao outro em um momento em que a vida de
ambos se encontra destroçada.
Mas então o amor, sempre ele, mostra que não é tão
fácil assim ficar sozinho, pegando-os completamente
desprevenidos e arrastando-os em uma teia de paixão.
Eu adorei os personagens, mas Lucas tornou-se muito
especial para o mim.
Espero que gostem desse romance repleto de amor,
perdão e segundas chances.
Aconselho a quem não acompanhou a série desde o
começo, ler ao menos o conto Sedução no Natal para a
melhor compreensão de Isolados, pois apesar de tratar-se
de um livro único, as histórias se entrelaçam.
Um beijo carinhoso e boa leitura.

D. A. Lemoyne
Lucas

Aos dezessete anos

“Você é uma vagabunda! Pensa que eu não a vi


olhando para todos os homens no jantar?”

“George meu bem, eu não sei do que está falando. Não

saí do seu lado a noite inteira.”

Deus, eles estão brigando novamente.

Não importa o quanto eu aumente o volume do fone,

ainda consigo ouvir seus gritos.


“Não seja sonsa. Não esqueça que são quase vinte

anos convivendo com suas mentiras. Você não me engana.

É isso que dá tentar salvar vadias da sarjeta.”

“Por favor, fale baixo. Lucas ainda está acordado.”

“E você acha que ele já não sabe a puta que tem como

mãe?”

“George, por favor…"

“Cale-se. Não quero mais ouvir sua voz traiçoeira. Eu

jamais deveria ter me casado com você. Bem que a minha


mãe avisou para não me envolver com a ralé. Você nunca

pertenceu ao nosso meio.”

Sinto os olhos encherem de lágrimas.


Eu odeio meu pai.

Não é desse jeito que se deve tratar uma mulher.


Principalmente a mãe do seu filho.

Mas uma parte de mim não consegue amá-la também.


Ela permite que ele desfaça dela.
Abuse física e verbalmente.
Por mais de uma vez eu intervim e, no fim, acabei com
ambos sem falar comigo por semanas.

Sempre que a discussão chega ao ponto da agressão


física, eu o enfrento.

Nunca tive medo dele, mesmo quando era uma criança


e muito menos agora que meu corpo já se equipare a de
um homem adulto.

O problema é que ela sempre fica contra mim. Ela o


defende não importa o que ele faça.

Ele a desrespeita até mesmo na frente dos amigos e ela


tolera tudo calada.

Um sentimento ruim por mamãe cresce em mim. Tento


combatê-lo, mas ele está se tornando maior a cada dia.

Eu a desprezo.
Ficar com ele é uma escolha. Ninguém é obrigado a se

submeter a tanta humilhação.


Eu já implorei para que ela o deixasse. Para que

reconstruíssemos nossas vidas sozinhos. Minha mãe ainda


é jovem e tão bonita. Ela não precisa aceitar as merdas
que ele joga em cima dela.

Mas sei que sequer considerou a possibilidade.

Continua repetindo que o ama, que não poderia viver longe


dele.
Como ela pode amar alguém que a trata como lixo?
Sinto vergonha quando meus amigos vêm aqui.

Por mais de uma vez, peguei Gabriel e Enrico de


punhos cerrados, enquanto ouvíamos os dois discutindo e
mamãe chorando. Tenho certeza de que ambos se
seguravam para não o confrontarem.
Qualquer homem que ouvisse uma mulher ser

desrespeitada daquele jeito interviria.


Só que ela não quer ajuda.
Sempre afirma que está tudo sobre controle e que papai
só está estressado com o trabalho.

A vida toda?
Porque desde que me entendo por gente, meu pai grita,
xinga e a humilha.
“Já que sou tão inútil, por que não nos divorciamos?”

A pergunta me surpreende e eu desligo o fone porque


se ela realmente estiver decidida a partir, irei junto.
Sou quase um adulto. Posso cuidar da minha mãe.
Ela é muito dependente dele. Parou de trabalhar assim

que se casaram e recomeçar a vida quase aos quarenta


anos não será fácil. Mas estarei ao seu lado para o que
precisar.
“Bem que você gostaria, não é? Desse modo, estaria

livre para exercer sua imoralidade e me envergonhar na


frente dos nossos amigos, mas eu nunca deixarei que
parta. Você é minha. Eu sustento toda a sua família.
Paguei um preço alto por você e não abrirei mão do que
me pertence.”

Estou ansioso por sua resposta. Talvez finalmente ela


tenha se dado conta de que precisa fugir dele.
Temo que um dia, em um ataque de fúria, ele acabe
matando-a.

O som do seu choro arranca qualquer esperança que


eu pudesse guardar.
“Eu não quero realmente partir. Você sabe o quanto eu
o amo. Eu sempre o amei, George. Não há ninguém mais
importante no meu mundo do que você.”

“Prove isso. Deixe-me ver que está arrependida.”


Eu preciso sair daqui.
Sei o que virá a seguir.
Eles farão sexo e ela mais uma vez alimentará a ilusão

de que é amada, apenas para que amanhã todas as


humilhações recomecem.
Mal posso esperar pelo próximo mês, quando
finalmente terei minha carta de alforria.

Muito mais do que iniciar a faculdade de arquitetura,


quero esquecer desse lugar assim como da relação doentia
da qual sou testemunha desde criança.
Dois meses depois

“O que você está fazendo?” - Christian pergunta, assim

que atendo o telefone.


“Estudando.”

“Cara, você é patético. Será que não entendeu ainda


que não precisa estudar tanto? Somos milionários, otário.

Não importa a maneira que terminará a faculdade, você

receberá a empresa do seu pai de mão beijada.”


Ele não sabe de nada.

Apesar de atualmente ser meu amigo mais próximo,

não tem qualquer ideia dos meus planos.


Eu prefiro morrer de fome a trabalhar para o meu pai.
Montarei minha própria empresa. Não quero qualquer

tipo de favor daquele miserável.


Mas não gosto de compartilhar meus sonhos, no

entanto.

Além disso, sei que ele debocharia.


Christian não leva nada a sério e não pela primeira vez,

pergunto-me o que diabos faço andando com ele.


Eu o conheci através de Gabriel e Enrico há cerca de

seis meses. Eles são primos.

Não éramos realmente amigos no começo, mas depois


que me mudei para o campus, ele passou a aparecer com

cada vez mais frequência e apesar de não gostar muito de


farras e noitadas, às vezes fico entediado trancado sozinho

aqui no quarto e acabo aceitando seus convites para

festas.
“Você ainda está respirando?”

“O que você quer?”


“Curtir, claro. Só se vive uma vez, amigo e estou mais
do que empenhado em fazer cada fodido segundo valer à

pena. Temos um churrasco na casa da Sara daqui a uma


hora. Apronte-se.”

Sara é uma menina linda que eu tenho saído algumas

vezes.
Nós não temos nada oficial, mas já insinuei que gostaria

de namorá-la.

Guardo a esperança de que ela acabe aceitando.


“Certo. Vou tomar um banho. Encontro você lá.”

“Agora sim você está falando como um homem de


verdade.”

O que estou fazendo aqui?


Essas festas são tão idiotas.
Eu não entendo qual é o ponto em beber até ficar

inconsciente e depois transar com uma garota só para


anotar mais um nome no caderninho.

Até conhecer Sara, eu só havia tido uma namorada - a

mesma com quem perdi a virgindade - mas estou bem


assim.

Não gosto de ficar, para ser franco.


Procuro alguém para compartilhar mais do que sexo e

álcool e torço para que seja ela.

Sara é tão animada. Não parece ter qualquer


preocupação, enquanto eu, penso demais sobre tudo.

Tenho dezoito anos recém completados, mas por

dentro, sou um idoso. Meu futuro está cuidadosamente


planejado em minha cabeça.

Vou terminar a faculdade, abrir minha própria empresa


de arquitetura e encontrar uma companheira para a vida

que desejo construir.

Eu quero filhos. Um monte deles.


Cresci sozinho, então a ideia de uma casa cheia de
crianças me agrada.

Mas principalmente, anseio por uma mulher forte ao

meu lado. Exatamente o oposto da minha mãe. Alguém


que nunca tenha medo de mim. Uma relação de iguais.

Entro na casa já arrependido.


A música está alta e isso é, com certeza, pelo fato dos

pais dela terem viajado.

Vou até a cozinha e pergunto por ela.


A maior parte desse novo grupo de amigos sabe que

nós estamos juntos.


Eles não são realmente meus amigos, mas dela e de

Christian. Muitos nem fazem faculdade ou se fazem, são

bem mais velhos.


Christian já está há três anos cursando medicina, mas

no ritmo que segue, me formarei antes dele.

Um dos caras diz que a viu entrar no quarto.


Talvez tenha sido impressão minha, mas posso jurar

que ele estava com ar de deboche.


Não importa. Não vim aqui por causa deles.

Eu sei onde fica o quarto dela. Já estive lá.

Sara deu a entender que quer fazer sexo comigo, só


que eu ficaria mais confortável se estivéssemos

namorando. Transar por transar não é nada mais do que

uma troca de fluídos e o que eu quero mesmo é uma


ligação por mais de uma noite.

A porta do aposento está fechada, o que é incomum e


eu bato uma vez antes de entrar.

O ambiente está na penumbra, mas posso ouvir vozes

no banheiro.
Mesmo sem ver a cena ainda, escuto gemidos, o som

de corpos batendo e sei que estou no lugar errado.


Viro as costas para sair, mas antes que eu alcance a

porta Christian aparece nu, com Sara logo atrás, suada,

também sem qualquer roupa e sorrindo.


“Finalmente você chegou. Achei que não viria mais.”
Ela age como se fosse natural estar despida na frente

de dois homens e provavelmente, transando com o meu

amigo.
Sinto o estômago embrulhar.

“Vai ficar parado como uma estátua, cara? O que está


esperando para se juntar à brincadeira?”

Eu não consigo falar. Tenho a sensação de que acordei

em uma realidade paralela.


Essa é a garota que eu pensei que seria minha

namorada e agora ela está me convidando para fazer sexo

à três?

Continuo andando para a porta. Só quero ir embora.


Estou enojado.

“Lucas.” - escuto-a chamar.

Paro com a mão na maçaneta.

Não há mais nada para falar, mas no fundo ainda tenho

esperança de que aquela merda seja uma piada de mau


gosto.

“Sim?”

“Você não achou realmente que seríamos exclusivos,

né? Pelo amor de Deus, só temos dezoito anos e muitas


pessoas para foder ainda.”

Sim, eu pensei - mas de jeito nenhum admitirei isso em

voz alta.

Qual é o ponto em continuar me humilhando?

“Claro que não. Somente não gosto de mercadoria


usada. Ou pelo menos, não na mesma noite.” - as palavras

saem como veneno da minha boca e sinto-me

instantaneamente envergonhado.

Apesar disso, a raiva e a decepção levam a melhor e

quero atingi-la do mesmo modo que me feriu.


Christian observa toda a cena.

“Se eu soubesse que você era tão fácil, não teria me

dado ao trabalho de levá-la para jantar antes de fodê-la,


mas a vida é um aprendizado.” - falo e sorrio, apesar de ter

a sensação de que ácido corrói meu estômago.

“Seu idiota.”

Volto-me para olhá-la.

Observo o rosto bonito e depois, seu corpo nu.


Pela primeira vez, penso que talvez meu pai não esteja

totalmente errado, que mulheres têm a traição em seu

DNA.

“Tchau, Sara. Fique tranquila que quando eu estiver

entediado considerarei seu nome para aliviar o estresse.”

Fecho a porta atrás de mim e prometo-me que não


serei mais enganado.

Talvez achar a mulher perfeita requeira treinamento.

Trabalho de campo - penso ironicamente.

Provavelmente terei que fazer anos de pesquisa antes

de encontrar alguém que valha à pena.


Entro no carro decidido a nunca mais fazer papel de

otário.
Acabo de chegar à conclusão de que não é um cara
legal o que as meninas procuram.

Estou cansado de ser o nerd bonzinho.

Hora da mudança.
1

Lucas

Dias atuais - durante o coma

Eu oscilo entre querer acordar e permanecer no escuro.

A solidão no momento é como um bálsamo, aliviando

um pouco a dor da culpa.

Mesmo que eu consiga despertar, não terei tempo

suficiente nessa vida para expurgar os meus pecados e a


cada dia que passa, fico mais confortável aqui sozinho.

Samantha está viva?

Eu não lembro do que aconteceu completamente. A

única memória é de seu rosto aterrorizado quando se deu

conta de que Christian estava ali para machucá-la.

Pensar que ele conseguiu lhe fazer mal me desespera.


É o único momento em que lamento não poder

levantar. Se houvesse uma maneira de me assegurar que

ela está bem, poderia continuar dormindo para sempre.

As lembranças daquela noite são confusas, nubladas. A

única coisa que tenho certeza é de que mais uma vez, eu a

coloquei em risco.

Eu e ele já não nos víamos há anos.

Se eu olhar para trás, nunca sequer fomos amigos. Ele

foi só um pedaço do lado podre do mundo que eu quis


conhecer depois da experiência com Sara.

É irônico pensar que quando eu ainda era um

adolescente, achava que minha vida estava toda


planejada.

Das minhas metas, a única que alcancei foi conseguir


me estabelecer com a minha empresa de arquitetura.

Se tem algo do qual posso sentir orgulho, é de nunca,


depois de formado, ter usado um centavo do meu pai.
Também os via muito raramente. A dinâmica do
relacionamento deles sempre me deixou enojado.

Comecei como empregado de uma pequena empresa


de arquitetura, mas minha dedicação quase compulsiva fez

com que, em um período curto, os frutos surgissem e em


pouco mais de dois anos, eu já era dono do meu próprio
negócio.

As pessoas não entendiam porque eu não trabalhava


com meu pai e isso tornou nosso relacionamento ainda

mais tempestuoso, mas a verdade é que eu não podia


suportar a ideia de voltar a conviver com eles.

Ambos são o exemplo de tudo o que eu jamais quis me


tornar, apesar de que, até entrar nesse sono do qual não

consigo acordar, eu vinha fazendo um trabalho de merda


com a minha vida pessoal.

Após a decepção com Sara, eu passei a viver como um


promíscuo. Se antes eu sequer considerava a possibilidade

de transar sem me sentir conectado a alguém, comecei a


sair com uma garota diferente a cada dia. Às vezes, mais
de uma no mesmo dia - separadas ou ao mesmo tempo.

A coisa sobre sexo é que ele vicia.

Quando você, noite após noite, envolve-se em relações


puramente físicas sem se preocupar sequer em lembrar
seus nomes no dia seguinte, chegará o momento em que
todos os rostos e corpos se confundirão e não fará a menor

diferença quem você está fodendo.


Não havia qualquer ligação afetiva com as mulheres
com as quais eu transava.
Passei anos assim até conhecer Samantha.
Desde a primeira vez em que a vi, mesmo depois de ter

concordado com a aposta estúpida de Christian sobre


quem a levaria para a cama primeiro, fiquei preso a sua
doçura.
Ela não precisou de mais do que um dia para me fazer

duvidar da maneira como vinha direcionando minha vida


até ali.
Ainda assim, consegui destruir a única coisa boa em
minha existência podre.
Egoísta como sempre fui, mesmo após anos terem-se

passado daquela noite em que ela foi embora, não havia


compreendido a extensão do mal que lhe causei.
Ao contrário, optei por sentir raiva, culpando-a por
arruinar nossa vida futura.

Eu nunca deveria ter me envolvido com ela.


Até namorar Samantha, tudo o que eu sabia sobre
mulheres era que seus corpos pareciam um lugar perfeito
para despejar, através de fodas duras, meu desprezo pelo

mundo.
Quando Christian mostrou-a no meio da rua, claro que a
achei linda, mas então eu já havia tido, por mais vezes do
que posso lembrar, dezenas de modelos e atrizes
cobiçadas em minha cama.

Desse modo, a proposta dele quase me fez rir.


Que chance uma garota do interior teria contra minha
experiência?

A arrogância foi um dos grandes erros que cometi com


ela.
Samantha me nocauteou com sua pureza.
Então, sem qualquer aviso, me descobri apaixonado
pela garota linda e ingênua.

A partir da hora em que a fiz minha, uma decisão foi


tomada. Eu a tornaria minha esposa.
Eu precisava de sua bondade e entrega como um
homem morto de sede precisa se hidratar e a necessidade

só piorava com o tempo.


O desejo de dominá-la, de não permitir que me
deixasse, fugiu ao controle e me tornei um maníaco.
Tentava sufocar sua personalidade, transformando a

menina feliz que conheci em uma mulher assustada.


Fazendo-a chorar vezes sem conta.
Eu jamais soube como lidar com o que ela me
despertou.

Não houvera boas coisas em minha vida até então.


Meu único exemplo de relacionamento entre homem e
mulher foi totalmente contaminado por desrespeito e
agressão física.
O único ensinamento que eu consegui tirar disso, é que

desse modo, meu pai evitou que mamãe o deixasse e me


pareceu uma maneira segura de conduzir minha relação

com Samantha.

Tirando a agressão física.


Eu vivi a maior parte do nosso namoro como um

atormentado, doente de ciúme, mas nunca a machuquei

fisicamente.
No entanto, acreditei que se eu conseguisse

impossibilitá-la de pensar, mantendo sua mente


aprisionada e sem lhe dar espaço para escolha, talvez

com o tempo ela viesse a me amar.


Parecia uma bom plano no mundo das ideias, mas

quanto mais eu reprimia sua personalidade, mais ela


escorria por entre meus dedos.

O controle obsessivo estava causando o efeito contrário

e eu a sentia cada vez mais distante. Ela tentava fugir em


toda oportunidade que dispunha, enquanto eu a vigiava o

tempo todo.
Preso pela loucura do ciúmes, criava traições em minha

mente, pressionando-a a confessar que estava interessada

em outros homens.
Não percebi na época que eu estava me transformando

em meu pai.
Já desesperado pela ideia de perdê-la, concordei com

Christian quando ele disse que o que ela precisava era

experimentar outros caras ou jamais aceitaria se casar


comigo.

Ele contava que a tinha visto com um grupo de amigos

em um shopping e que ela sorria e flertava. Que qualquer


um podia perceber que ela desejava novas experiências.
Então eu lembrei das palavras de Sara na noite em que

a flagrei com Christian.


Só temos dezoito anos e muitas pessoas para foder.

Sam era ainda mais nova que ela e talvez, se eu não a

deixasse experimentar agora, ela poderia querer fazê-lo


depois que estivéssemos casados.

No entanto, mesmo concordando com seu plano

estúpido, eu não sabia que ele a havia drogado naquela


noite, apesar disso não me isentar de culpa.

Nunca foi minha intenção forçá-la se ela dissesse não,


afinal, era por ela que eu estava fazendo aquilo.

A ideia de outro homem tocando-a me causava ânsia

de vômito.
Ela não sabia que havia alguém além de nós dois no

apartamento naquela noite, mas eu pretendia contar.


Tínhamos um plano.

Ele chegaria e eu os apresentaria.


Deixaríamos que tudo corresse de maneira natural e se

ela ficasse a fim dele, mesmo que aquilo me matasse, eu


permitiria que ela provasse um outro cara.

Por dentro, torcia para que Sam não quisesse nada

com ele. Que dissesse que me amava e que não


precisava de mais ninguém.

Só que assim que bebeu o vinho, Samantha passou a


agir de modo estranho.

Imediatamente, eu soube que algo estava errado.

Assustado, chamei-o no quarto. Ele era médico e disse


que ela provavelmente ficou apenas um pouco tonta com a

bebida.

Aquilo não foi o que combinamos e pedi que ele saísse


porque eu cuidaria dela, então, quando ele forçou a

situação e quis dar seguimento ao plano e tocá-la ainda


inconsciente, eu enlouqueci.

Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, ela

acordou e ficou apavorada quando o viu lá.


O seu olhar naquele momento me disse que eu a havia
perdido e que ela jamais confiaria em mim novamente.

Eu não sabia que Sam sofria de asma e somente

depois que começou a passar mal foi que o canalha


admitiu que colocou algo em sua bebida.

Assim que a ajudei a usar o inalador e deixei-a na casa


dos seus pais, tive certeza de que era o fim da linha para

nós dois, ainda que ela não tivesse dito nada diretamente.

Depois que eu descobri que ela foi embora da cidade,


primeiro pensei em ir atrás e pedir seu perdão, mas a

verdade é que eu sabia que não havia absolvição para o


que fiz.

Eu estava muito envergonhado e pela primeira vez,

coloquei o bem-estar de alguém à frente do meu e deixei


que ela seguisse seu destino.

Quando a reencontrei há poucos meses, eu vivia em

meio ao caos.
Há mais dez anos - só excetuando o pequeno intervalo

de três meses em que namoramos - eu pulava de cama em


cama com mulheres que não significavam nada.

Retomei o mesmo estilo de vida após terminarmos.

À exceção da minha amizade com Christian.


Ele ter planejado abusar sexualmente de uma garota

inconsciente - porque hoje vejo que era o que ele tinha em

mente o tempo todo - pôs um fim a nossa relação tóxica.


De tudo o que aquela noite fodida representou, ela

serviu para me abrir os olhos sobre ele.


Claro que não o responsabilizo por todas as merdas

que fiz, mas sendo três anos mais velho, Christian foi o pior

mentor que eu poderia escolher.


Revê-la lá na fazenda, trouxe um pouco de ar puro em

minha estrada feia e escura.


Só que mais uma vez, ao invés de tentar reconquistá-la,

continuei agindo da única maneira que sabia.


Impondo-me e não lhe dando espaço para decidir
sozinha.

Hoje, depois de todo esse tempo adormecido, me

pergunto o que se passou em minha mente.


Não havia qualquer chance de retomarmos o passado.

Eu apenas fui arrogante demais para admitir que a perdera.


2

Lucas

Apesar de no fundo sempre ter sabido que Christian

não era um homem bom, jamais passou pela minha cabeça

que fosse também um estuprador ou pudesse se tornar um

assassino.
Após encontrar Samantha em uma visita aos escritórios

dos Lambertucci[1], descobri que ela estava em um

relacionamento com Gabriel, meu amigo de infância e


mesmo sendo difícil para caralho admitir a derrota, decidi

que já tinha tido minha chance e fodi tudo, então, era hora

de deixá-la ir.

Só que Christian e ela se reencontraram em uma

reunião de família.
Ele percebeu na hora que Sam se lembrou de tudo e

me telefonou falando que fecharia aquela porta do

passado.

O instinto me dizia que eu não poderia permitir que ele

a encontrasse sozinho.

Olhando para trás, vejo como fui estúpido.

Eu deveria ter avisado Gabriel ou Enrico dos seus

planos, mas como um maldito arrogante, acreditei que

tinha a situação sob controle.


A verdade é que, mesmo desprezando-o, nunca o vi

usar de violência física contra alguém.

É certo que não convivíamos há quase sete anos e eu


não sabia o que se passara em sua vida amorosa nesse

intervalo, mas ele se tornou um médico renomado, então


não cri que cometeria uma loucura - havia muito a perder.

Apesar disso, não confiava em deixá-lo sozinho com


Samantha e fingindo concordar com sua estratégia de
assustá-la para que não contasse nada do que aconteceu
no passado, acompanhei-o à casa de Gabriel.

E agora, não faço a menor ideia se ela está bem.


Dormir por tanto tempo não me assusta. Não tenho

qualquer lugar para onde ir. Só gostaria de ter certeza de


que Sam está segura.
Sofia passou a me visitar e essa é a única hora em que

consigo esquecer que não mereço qualquer compaixão.


Ela é engraçada e tão bondosa.

É curioso como podemos conviver por anos com


alguém sem conhecê-lo realmente.

Nunca fala sobre Samantha, mas guardo a esperança


de que ela vir aqui seja um sinal de que sua amiga está

bem.
Não posso acreditar que mesmo com seu coração

generoso, Sofia viesse caso Sam tivesse sido seriamente


machucada.

A porta abre-se e sei que há mais alguém aqui comigo.


Quando você somente pode usar os sentidos do olfato
e audição, passa a identificar as pessoas até mesmo

através do som que fazem ao caminhar.

Então eu sei que, quem quer que tenha entrado agora,


é a primeira vez que vem.
“Lucas?”
Não reconheço a voz.

“Eu não quero incomodar, mas preciso falar com


alguém.”
Ela já me conhece?
Mesmo de olhos fechados, posso sentir sua hesitação.
“Eu só preciso falar um pouco. Não quero conversar

realmente, então espero que você não se importe por eu


vir.”
Ela soa frágil e insegura.
Acho também que é jovem. Sua voz não demonstra

autoconfiança.
“Estou há dias sem dormir.” - continua - “Não leve a mal
o que vou dizer, mas você tem muita sorte. Eu daria
qualquer coisa para poder dormir um pouco. Não consigo

desligar minha mente.”


Ela pausa e eu não tenho noção de quanto tempo
passa até que volte a falar.
“Meu pai morreu.” - conta - “Não, não é esse o motivo

de eu não estar conseguindo dormir. Não totalmente, de


qualquer modo.”
A voz novamente torna-se mais distante. É como se ela
não pudesse ficar parada. Posso sentir sua inquietude.

“Ele teve o que mereceu. Foi assassinado.”


Tento relacionar a garota triste a alguém do meu
passado, mas não consigo.
“Não há um dia em que eu não receba mensagem de
ex-amigos perguntando se já vi as recentes notícias sobre

ele. Sim, o bastardo é mundialmente famoso. Na verdade,


ele sempre foi, mas agora, por outros motivos.”
Eu nunca tive muita paciência para drama.
Pessoas que reclamam o tempo todo sempre me

cansaram rapidamente porque jamais consegui entender


qual é o ponto em ficar queixando-se de uma situação e
não fazer nada para modificá-la.
No entanto, a dor que percebo na garota é real.
Sua fala não tenta despertar piedade ou empatia.

E talvez por isso, ela consiga me atingir tão


profundamente.
Eu não sei quem ela é ou o que aconteceu para que
pareça tão quebrada, mas pressinto o sofrimento saindo de

cada uma de suas palavras e mesmo que eu não entenda


a razão, me conecto a ela.
“Esse lugar é legal.” - a voz demonstra um pouco de
entusiasmo - “Quero dizer, para um hospital. Do lado de

fora, parece até um spa.” - ouço o som de uma cadeira


sendo arrastada. - “Ele era um pedófilo sabia? Meu pai.” -
incrivelmente, o que me choca não é o teor da revelação,
mas a velocidade com que muda de um assunto para
outro, como se não conseguisse se concentrar em algo por

mais do que poucos minutos.


“Ele abusava de crianças inocentes. Ele comprou-as.
Quão fodido é isso?”
Não existem muitas coisas que são capazes de me
chocar.

Eu sou o tipo de cara que já viveu as maiores loucuras,


mas até mesmo para mim, o que ela está dizendo é

pesado para caralho.

Ouço-a chorar.
A voz torna-se nasalada, apesar de não ser um pranto

alto como algumas pessoas fazem para demonstrar

sofrimento.
Não.

O dela é silencioso e doído.


“Você talvez esteja pensando que eu sou uma pobre

coitada por ter um monstro desse como pai, não é?


Acredite Lucas, você não sabe de nada. Eu sou a sortuda

da família.”
Ela ri, mas noto que não há qualquer senso de humor.

“Foi bom falar com você, mas preciso ir. Tenho uma

festa da minha ex-turma da faculdade essa noite. Acho que


eu não contei que tranquei o curso.” - continua, como se

estivesse absolutamente certa de que sei quem ela é -


“Gosto delas porque a música é tão alta que eu não preciso

conversar com ninguém. Ou pensar. Também há muito

álcool nessas festas. É a única maneira que encontrei para


desligar minha mente por algumas horas. Já tentei beber

sozinha em casa, mas não é a mesma coisa. Além disso,


preciso transar e sempre encontro alguém antes que a

noite termine.”

Jesus Cristo, eu estou longe de ser um puritano.


Nunca julguei quem quer que fosse, mas essa garota

precisa de ajuda urgentemente.

Ela disse que o pai está morto, mas e quanto ao resto?


Mãe, irmãos?
E o que foi aquilo de que ela é a sortuda da família?

Como diabos alguém pode ser sortudo sabendo que seu


pai é um maldito pedófilo?

De uma maneira destorcida, a garota misteriosa

despertou minha atenção.


Eu gostaria mais do que tudo de saber quem está aqui

comigo.
3

Clara

Não sei por que continuo vindo - penso, enquanto estou

parada na porta da clínica em que Lucas está internado,

em coma.
Eu soube do escândalo, claro.

O mundo inteiro viu as notícias.

É difícil manter algo assim oculto quando dois jovens

filhos de milionários são vítimas de uma tentativa de

homicídio, sendo que o criminoso é um famoso médico da

elite.
Arthur me contou onde Lucas estava e tenho vindo

visitá-lo desde então.

Passei boa parte da minha adolescência tentando

chamar a atenção de Arthur, enquanto ele parecia não me


enxergar, mas desde que comecei a visitar Lucas, ele de

vez em quando me envia mensagens de texto.

Só que eu não quero vê-lo. Não quero ver ninguém da

minha antiga vida.

À exceção de Lucas - mas isso é porque ele não pode

me julgar.

Arthur é como um príncipe encantado. O homem

perfeito.

Já eu, não sou nada mais do que uma vadia alienada


que viveu toda a vida centrada no próprio umbigo.

Poder falar com alguém sem que a pessoa me olhe

com piedade por causa do escândalo sobre Gregory é um


fodido alívio.

Minha aparência atualmente também não é das


melhores.

Pude perceber no rosto de Sofia e Enrico, quando os


encontrei uma vez aqui, como ficaram chocados.
Eu não ligo a mínima.
Tenho espelho em casa e sei que perdi peso.
Também fiz um monte de tatuagens - a maioria

enquanto estava bêbada.


E meus piercings já incomodavam as pessoas mesmo

antes de eu ter emagrecido tanto.


Arthur não chegou a ver as tatuagens ou os piercings.
Eu os fiz um pouco depois do reencontro da turma na

fazenda de Gabriel.
Bela reclamou um monte.

Também pudera. Ela não tem sequer as orelhas


furadas, então imagino como deve tê-la horrorizado ver

meu piercing na língua.


Minha irmã é careta, não gosta de qualquer tipo de

marcas, sejam elas tatuagens ou brincos.


No momento em que penso nisso, imediatamente volta-

me à mente tudo o que ela já passou e sinto vergonha por


julgá-la.
Meus dias têm sido assim - oscilando entre o desprezo
por mim mesma e o remorso.

A última vez em que nos encontramos, eu joguei em

sua cara o fato dela não ter feito faculdade - e isso


somente porque ela ficou aborrecida por eu trocar de curso
pela terceira vez.
Olhando para trás, mesmo antes de eu saber de

qualquer coisa do que aconteceu, ela sempre me tratou


como uma mãe faria, enquanto eu fui egoísta e mimada
demais para valorizar.
À exceção de quando bela me telefona, não falo com
alguém já há muito tempo.

Digo, falar com alguém que possa me responder.


Fora Lucas, não suporto sequer estar perto das
pessoas.
Os caras com quem transo nas boates que vou quase

em uma base diária, não contam.


Eu nem lembro dos seus rostos.
Depois que tranquei o curso, só saio de casa para vir
aqui ou para me entorpecer de álcool e sexo à noite.
A verdade é que não quero pensar em minha vida.

É mais fácil viver no modo automático.


Se sexo e álcool não conseguem dar conta, as pílulas
para dormir são muito bem-vindas.
A única coisa boa nessa minha existência inútil é saber

que Bela está feliz.


Ela se casou com o cara que estava na casa de
Gregory na noite em que ele foi morto.
Não tenho certeza de que tenha sido ele quem matou o

desgraçado que eu chamei a minha vida toda de pai, mas


espero que sim. Desse modo, ao menos alguém terá
vingado-a.
Eu não concordo em encontrá-la, mas por muitas vezes
observo-a na rua.

Sigo-a sem que ela saiba.


Ela mudou-se para uma casa grande e às vezes, fico
escondida e a vejo sair com os três cachorros.

Bela está tão bonita grávida.


Eu sinto muita saudade, mas não estou pronta para
estar com ela. Não sei se algum dia estarei.
Não há nada que eu possa fazer ou desculpas o
suficiente que eu possa pedir que vá aplacar o sofrimento

que ela passou durante boa parte de sua vida, enquanto


tentava me proteger.
Eu enviei a Ethan - é esse o nome do seu marido.
Estava escrito no convite de casamento que ela me

mandou - através de uma remessa anônima, todas as


fotografias e vídeos de Bela que peguei na casa de
Gregory, acreditando que ele saberá como dar um fim a
aquilo.

Antes, no entanto, eu me obriguei a verificar todo o


material.
Era o mínimo que eu devia a ela. Compartilhar sua dor.
No fim, eu estava destruída.
Nada do que eu fizer poderá compensar minha irmã por

tudo o que ela passou por mim.


Minha mente não para de buscar uma forma de me
redimir, mas eu sei que é impossível.
E é por isso que não há maneira do meu corpo poder
descansar sem a ajuda de pílulas para dormir.

Quando acordada, eu passo o tempo todo sentido cada


nervo vibrando de dor.

Eu não consigo lidar com a culpa.

Isabela é uma mulher incrível. A mais corajosa e


resiliente que já conheci.

Tenho certeza de que se fosse eu em seu lugar durante

todos aqueles anos em que foi violentada por Gregory, eu


teria me matado.

Sim, essa sou eu.


Uma maldita covarde que jamais suportaria tamanho

sofrimento.
De todas as coisas que Gregory falou na noite em que o

confrontei, não posso deixar de concordar com uma - eu


não sirvo para nada.

Estou com vinte anos e o que foi que fiz até hoje a não

ser torrar minha herança e destruir a vida da minha irmã?


Eu tenho pensado em pôr um fim a tudo.

Estou tão cansada.


Só não fiz ainda porque sinto medo de que ela sofra

com a minha partida.

Relembrando o passado, percebo que havia algo errado


com a nossa família.

Minha irmã nunca parecia feliz.


Os meus amigos da escola riam quando ela não estava

por perto, colocando-lhe apelidos como loira gelada ou

princesa de gelo e por mais de uma vez, eu ri e concordei


com eles.

As pessoas se apressam a rotular e comentar sobre a

vida dos outros sem fazerem a menor fodida ideia da


batalha que às vezes é simplesmente acordar.
Eu não mereço o amor de Bela.

Não há uma ocasião importante da minha infância e


adolescência que ela não estivesse presente.

Do jeito dela - introspectiva, calada, às vezes um pouco

ácida - mas sempre ao meu lado.


E no entanto, até Ethan aparecer, ninguém esteve lá

por ela.

Falar com Lucas, mesmo sabendo que ele não pode me


escutar, é o que tem evitado que eu enlouqueça.

Ele também está sozinho. Nenhum membro de sua


família vem visitá-lo, nem mesmo os pais.

Acho que sentem vergonha do escândalo.

Ninguém sabe direito o que aconteceu naquela noite


em que ele e Samantha foram atacados, mas não é preciso

ser um gênio para intuir que a história que os jornais


relataram é incompleta.

É esquisito como a vida pode nos surpreender.


Eu nunca fui próxima a ele.

Lucas não me tratava mal, mas também jamais perdeu


tempo conversando comigo. Nós temos uma diferença de

onze anos, ele é mais velho até do que Arthur então, devia

me achar uma boba.


No entanto, agora, em meio ao caos em que estou, me

sinto estranhamente ligada a ele.


Talvez seja pelo fato dele ter se tornado um pária.

A alta sociedade é assim - se você se envolve em um

escândalo, é imediatamente descartado.


Meus antigos amigos nunca mais me convidaram para

nada.

Quem desejaria ser amigo da filha de um pedófilo?


Eu não me importo.

Não preciso de qualquer um deles.


Não preciso de ninguém.
4

Lucas

Eu não sei exatamente quanto tempo dura um dia

enquanto estou aqui adormecido.

A única coisa que percebo é que Sofia vem em


intervalos grandes.

Já a outra, a garota triste, está sempre falando comigo,

então eu imagino que suas visitas sejam mais frequentes.

Já me acostumei com a voz dela e fico ansioso

esperando sua volta.

Nunca fui de conversar com mulheres.


Não tenho amigas, que eu me lembre - bem,

aparentemente agora tenho Sofia - mas eu gosto de estar

com a garota misteriosa.

A porta abre-se e um perfume suave chega até mim.


Não consigo acreditar que seja verdade.

Eu sei a quem ele pertence.

Samantha.

Aquela que foi por muito tempo, minha obsessão e que

uma vez eu pensei, completaria meu mundo.

Antes de ficar preso nesse sono, desejei tê-la vindo

para mim, mas a única coisa que sinto agora é alívio por

saber que está viva.

Ela começa a falar comigo e sua voz continua tão suave


como sempre.

Diz que me perdoa, mas sei que não sou digno do seu

perdão.
Jamais conseguirei perdoar a mim mesmo.

Também conta que já se passaram cinco meses desde


que adormeci e que ela estava grávida quando Christian

nos atacou.
Estranhamente, saber de sua gravidez não traz dor.
No entanto, descobrir que a expus novamente, dessa
vez enquanto esperava um bebê, me faz querer quebrar

coisas e agitado, forço-me a levantar.


Como das outras vezes em que tentei, meu corpo não

aceita o comando.
Sinto sua mão tocando meu braço e quero pedir que se
afaste porque não mereço piedade, mas então a porta

torna a abrir e a voz da mulher misteriosa mistura-se à


dela.

Samantha chama seu nome.


Clara.

A irmã de Isabela.
Finalmente descubro sua identidade.

A Clara que me lembro era uma coisinha inquieta e feliz


e talvez por isso eu não a tenha reconhecido antes.

Todas às vezes que vem, ela chora.


A primeira, foi quando contou sobre a irmã.
Eu não sabia que se tratava de Isabela, mas algumas
coisas que disse me chocaram para caralho.

Acho que ela não faz ideia de que posso ouvi-la.

Dificilmente teria coragem de me falar tudo aquilo se


soubesse que estou escutando.
A porta bate e sei que uma delas se foi.
“Eu não queria brigar com ela, mas não acho que seja

bom para você que Samantha venha aqui. Obsessões


nunca fazem bem.” - ela fala, enquanto ouço o som de uma
cadeira sendo arrastada.
“Hoje eu pensei em procurar a minha irmã,” - continua,
mudando totalmente o tópico - “mas não consegui. Não

poderia lidar com a dor que provavelmente veria em seu


rosto. Jamais esquecerei das últimas palavras de Gregory.”
- ela está chorando - “Eu e ela quase não nos falamos,
mesmo por telefone. Não estou pronta para vê-la ainda.” -

sinto que uma parte da cama afunda e sei que deve estar
com a cabeça repousada nas mãos. Apesar de nunca me
tocar, ela se mantém geralmente próxima. - “Chega desse
assunto.” - diz, como se esperasse que eu fosse insistir
para que continuasse contando da irmã. - “Estou pensando

em ir embora. Talvez para sempre.”


Todas às vezes em que veio me ver, o que me chamou
a atenção foi como seus pensamentos são desordenados.
Ela não se prende a um mesmo tema além de um

instante, como se sua mente estivesse sobrecarregada de


mais emoções do que consegue lidar.
“Acho que seria o melhor para todos. Estou sufocando,
Lucas.” - diz, com a voz angustiada - “Semana passada eu

achei que estava grávida. Um dos caras com quem transei


falou que o preservativo poderia ter estourado e quando
minha menstruação atrasou alguns dias, eu pirei.” - Deus,
alguém precisa cuidar dela. Não sei por quanto tempo uma
menina como Clara pode manter-se sã, atravessando tanta

merda. - “Se fosse verdade, eu faria um aborto. Não quero


filhos ou qualquer responsabilidade sobre outro ser
humano.”

Ela soa amarga.


“Acho melhor eu ir embora.”
Não. Não vá ainda.
Estou agitado pela perspectiva de sua partida e de que
o que falou sobre ir viajar e não voltar mais possa ser

verdade.
Sua desesperança vai ao encontro de como eu me sinto
e quero pedir que fique.
“Obrigada por me ouvir esses últimos meses. Espero

que dê tudo certo para você.”


Preciso impedi-la.
Tento mexer as mãos e forço-me a abrir os olhos.
Sei que me resta pouco tempo antes que parta.

A cabeça dói pelo esforço, mas finalmente consigo ver


uma luz embaçada a minha frente.
“Não.” - tento falar, mas pode ser que a voz esteja
apenas em minha mente.

O quarto está silencioso e não sei se ela já se foi.


“Lucas?”
Esforço-me para responder.
“Clara, não vá embora.” - minha voz agora sai mais
firme.

Está na hora de despertar.


Finalmente.
5

Lucas

Três meses depois

Observo a superfície da água usufruindo do silêncio a

minha volta.

Estou morando aqui há cerca de um mês, desde que fui

liberado pela equipe médica depois que acordei do coma.


Jamais imaginei que apreciaria o silêncio. Sempre fui

um cara agitado e vivia acelerado.

Eu tinha a sensação de que precisava correr o tempo

todo. De que eu não teria tempo de vida suficiente para

fazer tudo o que eu queria, mas hoje em dia, a ausência de

pessoas é mais do que bem-vinda.


À exceção de algumas idas ao hospital duas vezes por

mês para conferir se meu cérebro está se comportando

como deveria, eu não saio de casa.

Comprei essa cabana com o primeiro milhão que

ganhei no trabalho.

O terreno era enorme e a paisagem, de tirar o fôlego.

A casa estava bem destruída, deteriorando-se e eu a

reformei, cuidando de cada detalhe pessoalmente.

Na época, pensava em usá-la futuramente como um


lugar de férias para quando me casasse - sim, por mais

perdido que estivesse, ainda guardava o sonho de formar

minha família.
Do desenho à reforma, tudo foi feito com minhas

próprias mãos.
Desde pequeno sempre gostei de planejar e construir

coisas, mas em algum ponto da minha carreira, passei a


me focar em superar a empresa do meu pai e ganhar muito
dinheiro, esquecendo totalmente que o que me fazia sentir
vivo mesmo era tirar as ideias do papel e torná-las
realidade.

Ainda antes que eu entrasse em coma, meus negócios


já se autocomandavam.

Tenho dezenas de arquitetos e estagiários trabalhando


para mim e só pegava pessoalmente projetos muito
especiais, como o novo edifício dos escritórios

Lambertucci.
Depois que vim para cá, resolvi cortar algumas pontas

soltas em minha vida e ofereci para passar o projeto dos


escritórios da família de Gabriel, já pronto e sem nenhum

custo, a outra empresa de arquitetura, mas para minha


surpresa, Vittorio, o pai dele, disse-me que gostaria de

continuar o contrato conosco.


Apesar disso, coloquei meu melhor profissional à frente

e mantive-me nos bastidores, apenas supervisionando.


É melhor assim.

Evita constrangimento de ambas as partes.


De qualquer modo, não gosto de sair daqui.
Tenho trabalhado de casa desde que cheguei do

hospital e cada vez mais, aprecio a solidão.

Meus pais nunca me visitaram depois que eu acordei e


acho que a razão é não quererem seus nomes
relacionados ao escândalo da tentativa de homicídio que
sofri.

Outro dia, li o que os jornais relataram na época do


ataque e tenho certeza de que houve a mão de Vittorio e
de Matheus, o pai de Samantha, ali.
O nome dela quase não aparece, o que me deixou
satisfeito. Sam nunca gostou de chamar a atenção e

merece um pouco de paz.


Há cerca de dois meses, um jornalista me telefonou.
Não sei como, ele desencavou uma foto minha e de
Samantha juntos da época em que namoramos, então

queria saber como eu estava me sentindo com o


nascimento da filha da minha ex-namorada com meu
amigo de infância.
É assim que funciona a alta sociedade.

Escavar a vida alheia, criar intriga, constranger as


pessoas.
Eu não respondi.
Qualquer coisa que eu falasse ele modificaria, então

nem perdi tempo.


A verdade é que saber que Samantha está bem com
sua família é o que ainda me permite dormir um pouco à
noite.

Eu fui apaixonado por ela, mas hoje percebo que não


era um sentimento saudável, mas algo muito próximo à
obsessão.
Não a enxergava como uma garota capaz de pensar
por si só ou de tomar as próprias decisões e sim como

alguém que eu poderia moldar de acordo com as minhas


vontades.
Sam é hoje uma lembrança de como fui estúpido e
tentei destruir uma mulher doce.

Penso em Clara todos os dias.


Nunca mais a vi desde que saí do coma.
Ela ficou apenas o suficiente para que a enfermeira
chegasse e depois se foi.
Eu ainda estive internado por cerca de uma semana,

mas ela nunca voltou.


Aliás, ninguém apareceu.
Sofia telefonou e queria me ver, mas eu agradeci e
respondi que precisava de um tempo para colocar a

cabeça em ordem.
Gostaria de poder um dia conversar com ela e dizer
como suas visitas foram importantes para me manter
conectado a esse mundo, mas no momento, não sinto

qualquer vontade de interagir.


Arthur ligou. Houve um tempo em que fomos bem
próximos. Eu o conheci pouco antes de começar a namorar
Samantha. Ele nunca participou das minhas noitadas com
Christian à caça de mulheres para farrear. Nem tenho

sequer certeza se os dois se conheciam.


Christian está preso, aguardando julgamento. Ele fez
um acordo com a promotoria e declarou-se culpado das
acusações de suas pacientes.
Dezenas delas denunciaram-no por abuso sexual

enquanto estavam sob seus cuidados como obstetra.


No entanto, ele ainda será julgado pelo ataque contra

mim e Samantha.

E eu terei que depor.


Não queria vê-lo novamente, mas devo isso a ela.

Meus advogados disseram que a promotoria a pouparia de

ser chamada se eu depusesse.


Hoje em dia, não acredito que seus crimes se

restringiram as suas pacientes.


Ele me deu uma pequena amostra naquela noite

longínqua em que drogou e tentou abusar de Samantha


ainda inconsciente, do que era capaz.

Um pássaro começa a cantar ao longe e eu penso em


como nunca me senti tão calmo como nessa fase da vida.

Então, como em uma espécie de aviso de que não

posso controlar tudo, ouço o telefone dentro da casa tocar.


Deve ser Arthur. É a única pessoa que tem o número

do telefone fixo.
Geralmente mantenho meu celular no modo vibrar.

Qualquer tipo de interferência eletrônica me incomoda.

Espero um pouco, torcendo para que ele desista, mas


depois de parar por alguns segundos, o aparelho torna a

chamar e sigo para atender.


Entro na casa um tanto ansioso.

Atualmente, qualquer coisa que mexa com a minha

rotina me deixa assim.


“O que você quer, Arthur?”

“Lucas? Sinto muito telefonar, mas eu preciso da sua

ajuda. Arthur me deu seu número.”


“Isabela?” - falar com a irmã de Clara me põe
totalmente em alerta. Só há uma razão pela qual ela ligaria.

- “Clara está bem?”


Ninguém precisaria ser um grande observador para

perceber que a garota estava à beira de um colapso.

“Ela foi internada há algumas horas. Será que você


poderia vir até aqui?”

“Internada?”

“Sim, teve uma overdose de pílulas para dormir.”


Mesmo contra a minha vontade, meu coração acelera,

mas ainda hesito por um instante.


“Eu não sei como poderia ajudar.”

“Ela chamou seu nome algumas vezes enquanto esteve

inconsciente. Sei que o visitava no período em que você


estava em coma. Ela está desistindo de lutar, Lucas. Por

favor, venha. Ela não reage a mim ou a qualquer outra


pessoa.”

Isabela está chorando.


Tento relacionar a jovem assustada ao telefone à garota

que eu vi crescer, mas é difícil.


Todas as lembranças são sobre uma adolescente

indiferente e um pouco cruel.

Francamente, não sei se estou em condições de ajudar


quem quer que seja, mas então lembro da tristeza de Clara

enquanto falava comigo no período em que estive em


coma e nas coisas que contou sobre a própria família -

principalmente sobre Isabela.

Ambas já sofreram demais e talvez tenha chegado a


hora de fazer algo positivo com a merda da minha vida.

“Estou indo.”
6

Clara

Escuto vozes ao longe, mas não quero abrir os olhos.

Apesar de não ter tido a intenção de me matar, eu sabia

que não estava tomando uma dose segura de pílulas para


dormir, mas ontem foi um dia particularmente difícil.

Eu tenho pesadelos quase todas as noites, mesmo com

meu sono à base de drogas, mas na passada foi pior.

Nele, eu via Gregory sorrindo enquanto machucava a

minha irmã.

Eu não quero mais lembrar, mas minha cabeça não


para de repassar as imagens daqueles vídeos e

fotografias.

Estou enlouquecendo.

Sinto falta de falar com Lucas.


O seu silêncio era um consolo. Uma forma de

desabafar.

Quando estamos na merda, surgem vários especialistas

na vida alheia dando conselhos para não desistirmos.

A verdade é que ninguém sabe de porra nenhuma do

que se passa dentro de cada um.

Bela está aqui no quarto comigo, mas eu ainda não

estou pronta para conversar.

Há um homem tentando consolá-la enquanto ela chora


baixinho e sei que é Ethan.

Pensando bem, Isabela sempre manteve todas as suas

emoções em silêncio.
Mesmo quando assumia uma atitude arrogante - que

agora eu vejo, não era nada mais do que um mecanismo


de defesa - ainda assim ela não gritava.

As poucas vezes em que a vi chorar também foram do


mesmo modo.
Deus, permita que eu durma novamente. Eu não quero
enfrentar o mundo agora.

“Você precisa descansar. Nem deveria estar aqui. Está


com quase nove meses de gravidez, amor.” - Diz.

“Eu sei, eu irei. Só estou esperando que ele chegue.”


Ele? Quem é ele?
“Quanto tempo mais?” - ouço-o perguntar.

“Não sei, mas tenho certeza de que virá.”


Tento muito forte desligar minha mente de tudo ao

redor.
Gostaria de apagar novamente, mas sei que depois da

overdose, não há a menor chance dos médicos me darem


algo para relaxar.

A porta do quarto abre e mesmo de olhos fechados,


sinto a atmosfera mudar.

Ninguém fala nada e gostaria de poder saber quem


chegou, mas sou uma covarde.

“Obrigada por ter vindo.”


“Eu disse que viria.”
Lucas?

“Sim, você disse.” - Bela responde - “Esse é o meu

marido Ethan.”
Não escuto a resposta de qualquer um dos homens,
mas depois de um tempo, meu cunhado fala.
“Vamos.”

A seguir, sinto que alguém se aproxima da cama.

Sei pelo perfume que é Bela[2] e gostaria de lhe dizer


que ficarei bem, que ela deve descansar, mas daí eu teria
que dar um monte de explicações e não posso lidar com

isso agora.
Ela acaricia meus cabelos e sinto vontade de chorar.
Eu a amo tanto.
A seguir, porta do quarto bate e sei que agora somos só

nós dois aqui.


Estranhamente, sinto-me mais confortável com ele do
que com a minha família, apesar de Lucas ainda manter
silêncio.
A ansiedade finalmente vence e abro os olhos.
Nenhum de nós dois fala.

Eu estudo seu rosto e postura atentamente.


O Lucas aqui perto de mim, não é mais o que estava
em coma no hospital. Sua aparência está bem próxima da
de quando eu o conheci.

Apesar disso, de alguma maneira, ele não é o mesmo.


O cabelo loiro ainda continua muito curto, quase
raspado, como na época em que esteve em coma e não
mais como usava antigamente, na altura dos ombros.

Seu corpo também se recuperou totalmente, não


havendo mais nada da aparência frágil de quando esteve
internado e a pele voltou ao tom dourado.
Sinto-me subitamente envergonhada.
Sei como devo parecer.

Eu perdi oito quilos nos últimos meses.


Sempre fui magra e agora lembro alguém em um
período pós-guerra.

A única coisa que me faz ter certeza de que eu não


sonhei as visitas que fiz a ele no hospital é a cicatriz na
parte esquerda de sua testa.
Nem mesmo ela é capaz de danificar sua beleza, no
entanto. Eu sempre o achei lindo, apesar de um pouco

assustador.
Seu olhar também está diferente.
Os olhos azuis mais distantes do que sempre foram,
mas apesar disso, sereno, como se ele não estivesse com

pressa - o que vai na contramão do Lucas que eu me


lembro.
Ele exalava energia por todos os poros e isso era algo
que tínhamos em comum.

Estou presa ao seu rosto.


Tenho medo de que se piscar, ele desaparecerá e então
tomo a iniciativa.
“Minha irmã o chamou?”
Ele não fala nada, apenas me encara.

Não há qualquer sinal de repulsa ou pena em seu rosto.


“Você foi embora do hospital sem se despedir.”
Eu sei do que ele está falando.
No dia em que despertou do coma, eu fugi tão logo me
assegurei de que os enfermeiros iriam cuidar dele.

“Eu não gosto de hospitais.” - explico, sentindo-me uma


idiota.

Quem gosta?

Ele não responde e nós dois sabemos que não foi esse
o motivo que me fez correr.

Sei que ele escutou quando eu disse que estava

pensando em ir embora, caso contrário, não teria me


pedido para não partir assim que acordou.

Desse modo, assumo que ouviu todo o resto também.


Ele não parece preocupado em preencher o silêncio e

isso, de alguma forma, me acalma e deixa ansiosa ao


mesmo tempo.

“Arthur contou que você não está mais morando na


cidade.”

Ele move a cabeça, concordando.

“Onde mora agora então?”


“Por que isso é importante?”

Sacudo os ombros. Não sei a resposta.


Como explicar que me senti ainda mais perdida ao

descobrir que ele havia ido para longe?

“Vivo em uma cabana a duas horas daqui.”


Pela primeira vez em meses, minha curiosidade é

despertada.
Lucas é a última pessoa do mundo que eu imaginaria

isolando-se.

“Deve ser bom poder não ver ninguém.”


Silêncio.

“Eu gostaria disso.” - continuo - “Quero dizer, manter

distância do mundo.”
Antes que possa me conter, vejo-me pedindo.
“Leve-me com você.” - eu nem sabia que queria isso,

mas depois que as palavras saem, não posso segurar o


resto. - “Só por um tempo, prometo. Não posso mais ficar

aqui.”

“Eu não quero companhia.”


Ele soa um pouco rude, mas não me ofendo. Depois de

ter convivido com tanta mentira, a franqueza, ainda que

brutal, é bem-vinda.
O que estava passando pela minha cabeça? É claro

que ele não quereria alguém como eu atrás de si.


Ainda assim, faço uma última tentativa, cada vez mais

convencida de que me afastar de tudo é a única solução.

“Eu posso ficar em silêncio. Eu só quero dar um tempo.”


“Você não pode fugir da sua própria mente.”

De algum modo, sei que ele fala aquilo por experiência


própria.
“Eu sei. Tenho tentado por meses. Não tem

funcionado.”
“Então o que a faz pensar que dessa vez funcionará?”

“Não tenho certeza realmente, mas as razões estão se

esgotando.”
“Razões?”

“Para continuar lutando.”


7

Lucas

Encaro-a e não consigo relacionar de jeito nenhum a

menina de olhar perdido à Clara brincalhona e feliz que eu

conheci.
Mesmo na época em que era apaixonada por Arthur e

que ele não dava qualquer abertura para que ela se

aproximasse, Clara nunca deixou seu jeito faceiro de lado.

A garota aqui comigo parece tão sem esperança que

algo estala em meu coração.

Apesar disso, não quero ser responsável por alguém.


Estou bem vivendo minha rotina diária. Não desejo

conversar e sei, com a mais absoluta certeza, que sou a

pior pessoa possível para alguém como ela.


Clara precisa de apoio e carinho e não tenho nada a

oferecer.

Ela não parece disposta a ficar com a irmã e de certa

maneira, posso entender. Isabela está no final da gestação

pelo que observei e se a aliança em sua mão e o cara

grande de barba que estava ao seu lado forem alguma

indicação, casada também. Faz sentido que Clara não

queira invadir a felicidade da irmã.

Engraçado que eu vi as duas crescerem e elas sempre


me pareceram não ter nada em comum, mas depois de

reencontrá-las hoje, foi como se o jogo da vida houvesse

virado de cabeça para baixo.


Isabela está mais aberta e os olhos inchados pelo choro

me fizeram ter certeza do quanto ama a irmã e que talvez,


tenha ocultado do mundo sua real personalidade.

Clara por sua vez, emana sofrimento em cada pedaço


do seu corpo pequeno e frágil.
Quase posso sentir a culpa fluindo dela e sei por
experiência própria, que não há nada que alguém possa

dizer que fará isso passar.


“Eu só preciso dar um tempo de tudo. Não quero que a

minha irmã sofra mais. Se eu ficar por aqui, ela não


conseguirá a paz que necessita.”
“Clara…"

“Por favor, Lucas. Você nem saberá que estou lá. Serei
invisível.”

Passo a mão pela cabeça sem saber o que fazer.


Eu fui honesto quando falei que não queria companhia.

Quando me mudei, estranhava o silêncio.


Passei boa parte da vida frequentando festas e cercado

de pessoas que não tinham qualquer ambição a não ser


curtir o momento. Então, quando me encontrei sozinho na

cabana, os primeiros dias foram como uma desintoxicação


- a ausência de qualquer barulho era um pouco sufocante.
Depois de uma semana, no entanto, eu cada vez mais
valorizava não precisar conversar.

É bom só pensar ao invés de ter que explicar o que está

se passando dentro de nós.


Dessa maneira, consigo entender o que ela anseia, mas
acontece que no caso dela, assim como no meu, o
problema não está nos outros, mas em si mesma.

O pior tipo de veneno que pode existir é aquele do qual


você mesmo serve-se em doses diárias - a culpa.
Eu daria qualquer coisa para não me lembrar do que já
fiz.
Samantha não foi meu único pecado.

Eu já usei mulheres, brinquei com seus sentimentos,


tirei a virgindade de garotas, iludi-as e o pior, nunca as
conheci o suficiente para me importar.
Elas não passavam de corpos para mim.

Sei que para boa parte delas, o contrário também era


verdadeiro - mas com a Sam não.
Eu conheci a menina pura. Eu me apaixonei por ela e
como uma espécie de punição inconsciente por me fazer
amá-la, eu quase a destruí.

Então, ninguém precisa falar comigo sobre remorso.


A culpa pode ser como uma droga paralisante,
impedindo-nos de seguir em frente.
Assim, não acho que seja uma boa coisa permitir que

Clara aproxime-se. Não estou pronto para lidar com sua


dor.
Gostaria de poder virar as costas e ir embora, mas
tenho na memória todas as vezes em que ela foi me visitar,

das coisas que contou e sei que não conseguirei deixá-la


mergulhada nesse mar de autodestruição.
Não pretendo ficar próximo demais. Apenas o suficiente
para ter um olho nela.
“Se eu permitir que vá, terá que seguir algumas regras.”

“Eu farei qualquer coisa.” - diz, apressada e tenho um


vislumbre da menina que conheci.
“Escute primeiro antes de se comprometer.”
Ela me olha um pouco assustada e apesar de não ter

sido essa minha intenção, preciso que saiba que não está
saindo de férias para um resort.
“Não quero álcool ou drogas de qualquer tipo em minha
casa.”
As bochechas ganham um tom forte de vermelho e

reconheço sua vergonha ao comprovar que eu escutei tudo


o que ela disse ao longo dos meses em que estive
internado.
“Eu não uso drogas, mas eu precisava dormir.”

“Não importa. Medite, exercite-se, arranje uma forma


alternativa. Nada mais de pílulas para dormir. Você terá
que me deixar ver sua mala ao chegar lá.”
Sei que a estou empurrando, mas alguém precisa puxar

o freio dela antes que a menina caia no precipício de vez.


“Eu não sou mais criança.”
“Minha casa, minhas regras Clara.”
“Tudo bem.”
“Eu ainda não acabei.”

“Desculpe-me.”
“Tampouco quero homens lá dentro. Não me importo
com quem você queira sair, mas não os leve para dentro
de casa.”
O rubor em seu rosto aumenta, mas não me comove.

“E você terá que ajudar nas tarefas diárias. Eu não


tenho empregados, então nós nos revezaremos

cozinhando e limpando.”

Espero que vá protestar, mas ela continua calada.


“Não há qualquer aparelho de televisão lá. Se quiser

algum ou outro eletrônico, mantenha-os dentro do seu

quarto. Não gosto de barulho quando estou trabalhando.”


Sinto que uma parte dela quer se rebelar e quase

anseio por isso, por uma maneira de me livrar daquela


obrigação.

“E o que mais?”
“Você poderá fazer o que quiser com seu tempo livre,

desde que não fique tentando conversar.”


Ela não desvia o olhar do meu e eu admiro sua

coragem quando por dentro, tenho certeza de que está

com medo.
Espero que me mande para o inferno, mas ela

surpreende mais uma vez.


“Eu posso fazer isso. Farei tudo certo se você permitir

que eu vá. Eu só não quero ficar aqui.”

“Ainda tem mais uma coisa.”


“O que?”

“Você terá que comer. Todas as refeições e quero dizer


exatamente isso. Não precisamos fazê-las ao mesmo

tempo, mas você terá que se alimentar.”

Ela suspira e fecha os olhos por um tempo.


“Você não conseguirá fazer com que eu desista. Estou

dizendo sim para todas as suas maldi...“ - ergo uma

sobrancelha, desafiando-a a continuar - “estou


concordando com todas as suas regras” - ela conserta
rápido, para logo em seguida, completar com uma rebeldia

mal disfarçada - “senhor.”


8

Lucas

Já se passaram dois dias desde que estive no hospital

e estou de volta à cidade para pegá-la.

Os médicos optaram por mantê-la sob vigilância, pois


independente do que disse, ainda tratam o que aconteceu

como tentativa de suicídio.

Hoje cedo recebi um telefonema do marido de Isabela.

Ethan.

Ele é, sem medo de errar, um dos caras mais frios que

já conheci - e isso dito por mim, não é pouca coisa.


A diferença da maneira protetora com que ele tratou a

esposa naquele dia em que nos encontramos no hospital,

para o cara que telefonou hoje, é gritante.


Sua voz não passa qualquer tipo de emoção. Nem

raiva, nem ameaça. Nada.

Ele somente disse que estava sabendo da vinda de

Clara para ficar comigo e que Isabela concordava.

Depois me deixou ver, sem qualquer sutileza, a

importância dela na vida de sua esposa.

É óbvio que estava dando-me um aviso.

O que ele não faz ideia, é que não tenho a menor

intenção de me envolver com ela ou com qualquer outra.


Eu encaro a vinda de Clara como uma retribuição por

ela ter me feito companhia nos meses em que estive em

coma.
Talvez se eu não a tivesse conhecido antes, não me

importaria com o que ela está passando agora, mas eu vi a


Clara feliz do passado e lamento que o desgraçado que a

natureza designou para ser seu pai tenha arruinado a vida


de ambas.
Lembro de cada palavra do que ela contou.
Ele abusou de sua irmã por mais de dez anos, desde
quando a mãe delas morreu e ninguém desconfiava de

nada.
Isabela protegeu Clara durante todo o tempo, sendo

chantageada pelo pai. Ele dizia que se ela contasse a


alguém, faria o mesmo à Clara.
Eu conheci o fodido doente.

Gregory frequentava o mesmo círculo social que os


meus pais e posso dizer que era um homem que

aparentava estar acima de qualquer suspeita.


Sou um cara naturalmente desconfiado no que diz

respeito à natureza humana, mas ele era gentil, estava


sempre sorrindo e nunca aumentava o tom de voz.

Até mesmo o meu pai, que é de longe a pessoa mais


difícil de se lidar que eu conheço, o admirava.

Ninguém poderia imaginar o monstro escondido por trás


da imagem de cidadão do bem.
Porque eu sei o que ele fez e foi muito além do que os
jornais relataram.

Depois que voltei da visita à Clara no hospital, pesquisei

seu nome na internet.


Não precisei procurar muito.
Digitar Gregory Ashby é como abrir a caixa de Pandora.
Na época de sua morte, que foi tratada como homicídio,

as notícias começaram a aparecer na mídia sobre uma


suposta compra de menores em um país pobre.
Havia uma entrevista com o tio de uma das crianças
narrando o que ele o viu fazer com a garotinha e aquilo fez
meu estômago embrulhar.

Mas então, eu meio que já sabia da história porque


batia com o que Clara havia desabafado.
Apesar disso, seria esperado que com a sua morte, as
notícias esgotassem-se, no entanto, elas parecem renovar-

se espontaneamente.
Li em uma das reportagens, que um hospital que havia
batizado uma ala com o nome dele, mudou para outro
homenageado.

Olhando o quadro inteiro, sua morte foi muito fácil para


o rastro de destruição que causou.
As pessoas sabem o que ele fez às garotinhas que
negociou como se fossem mercadoria, mas ninguém tem

ideia de como ele traiu a confiança das próprias filhas.


Esse é um dos motivos que não me permite abandonar
Clara, mas mesmo assim, não quero me envolver demais.
Talvez ela esteja certa e seja bom se afastar de tudo

por um tempo, mas não é bom que pense que serei uma
constante em sua vida ou uma espécie de porto seguro.
Tudo o que tenho a oferecer é um lugar para que tente
colocar a cabeça no lugar.
Tenho meus próprios demônios para lidar.

Se pudermos manter as coisas assim, talvez funcione.


Enquanto estaciono em frente ao hospital, digo a mim
mesmo que não há motivo para ficar nervoso.
A verdade, no entanto, é que nunca tive qualquer
responsabilidade sobre a vida de alguém e por mais que

saiba que ela é uma adulta, não posso fechar os olhos para
o fato de que a garota está quebrando.
Aquilo que ela disse sobre cada vez menos encontrar
razões para continuar lutando, foi o que bateu o martelo

para que eu a aceitasse em minha casa.


Chego à recepção ainda incerto se tomei a melhor
decisão, mas então a vejo.
Está sentada em uma das poltronas de espera e parece

tão pequenina e solitária.


O cabelo preso em um rabo de cavalo. A jaqueta jeans
parecendo enorme sobre o corpo magro.

No entanto, não é sua aparência o que me chama a


atenção - Clara é linda. Sempre foi, não importa o quanto
esteja odiando-se no momento - mas sua postura.
As mãos juntam-se no colo e a cabeça está baixa,
mirando-as. Os ombros estão caídos como se ela não

pudesse suportar toda a carga sobre si, mas o que me


acerta em cheio são seus olhos.

Ela ergue-os para me encarar e eles estão vazios.

Naquele momento consigo enxergar com o que ela tem


tentado lidar por meses.

A garota de apenas vinte anos não quer mais viver.

Tenho a sensação na verdade, de que ela aguarda


apenas um motivo para desistir. Como se o fio que a

prendesse ao mundo fosse tênue demais.


Ela deveria estar sonhando com o futuro, uma família,

filhos e não parecendo prestes a acabar com a própria


existência.

Olhamo-nos sem falar e creio que essa será a dinâmica


entre nós por muito tempo.

Não há maneira de colocar a dor em palavras.

Ela anda para mim, sem qualquer emoção em seu


rosto.

“Você veio.”
Eu não quero sentir sua dor, não quero sentir nada,

então forço-me a reagir.

“Não deixaria de cumprir minha palavra.”


“Nem todo mundo honra os pactos que faz.”

“Eu não sou todo mundo. Não estou nem perto de ser
uma boa pessoa, Clara, mas jamais fujo de uma

promessa.”

“Então leve-me daqui.”


“Desde que você obedeça às regras.” - repito, ainda

esperando que ela desista a qualquer momento.


“Eu prometo, Lucas. Nem abrirei a boca. Você sequer
notará que estou lá.”

“Vamos então. Telefonou para sua irmã?”


“Hoje ainda não, mas ela já está sabendo que estou

indo para sua casa.”

“Ligue. Ela está grávida e preocupa-se com você.”


“Ligarei mais tarde.”

“Não. Agora, Clara. A vida não é somente sobre o que

você quer, mas também pensar naqueles que a amam.”


Ela parece analisar o que estou falando e por fim, faz

um aceno imperceptível com a cabeça.


9

Clara

Finalmente chegamos.

Ele não falou durante todo o caminho e passei boa

parte da viagem olhando para fora janela.


Lucas me deixa acanhada, mas não tenho medo dele.

Entre nossos amigos ele é temido ou odiado, mas eu

me sinto segura ao seu lado - o que talvez não seja algo

muito inteligente da minha parte.

De vez em quando, eu o observava de esguelha, mas

ele estava totalmente concentrado na estrada.


Olho ao redor.

A paisagem parece saída de um conto de fadas.

Talvez seja a época - primavera - mas o tom das

árvores e folhas ganha o meu coração imediatamente.


Quando ele disse que estava morando em uma cabana,

imaginei algo simples, talvez com dois ou três cômodos,

mas a casa, apesar de ficar literalmente no meio do nada,

é um pedaço do paraíso.

Ela é toda de madeira e tem janelas do teto ao chão. A

sacada no andar superior parece dar volta na construção

toda.

Gostaria de perguntar se ele a projetou, mas Lucas não

aparenta estar disposto a falar e não quero quebrar nosso


acordo logo no primeiro dia.

O engraçado é que passei os últimos meses sem

qualquer vontade de conversar. Até ter outra pessoa no


mesmo ambiente que eu me incomodava, mas a

resistência dele em sequer olhar para mim, estranhamente


me faz desejar sua atenção.

Cresça, Clara. O mundo não gira em torno de você.


Chegou a hora de aprender a respeitar o espaço dos
outros - penso, enquanto me lembro do que ele disse
quando estávamos saindo do hospital.
Eu liguei para Bela como mandou e ela pareceu feliz

em falar comigo. No fim das contas, foi a coisa certa a


fazer.

De uma maneira esquisita, gosto das regras que Lucas


impôs. Pela primeira vez em meses, tenho a sensação de
direcionamento.

Todas as pessoas que eu conheço, sempre ficaram


tensas em torno dele.

Lucas não é muito de falar, nunca foi, desde que eu me


lembro e há algo quando ele finalmente nos dá atenção,

que impulsiona todos a obedecê-lo.


Suas ordens são reconfortantes no momento.

O que isso diz sobre mim? Sentir-me protegida com um


cara que no geral assusta todo mundo?

Desço do carro incerta do que fazer.


No hospital, ele pegou minha mala e colocou na parte

de trás da pick-up, mas não quero que pense que sou uma
inútil, então assim que saio, me posiciono à espera de que
tire a bagagem para que possa eu mesma, levá-la para

dentro.

Ele pega a mala como se não pesasse nada e não


consigo desviar os olhos do desenho dos seus músculos
sob a camiseta.
Nem pense nisso, Clara.

Passei o último ano usando e sendo usada por homens


os quais nem lembro o nome, mas que pelo menos me
queriam no momento em que estávamos fazendo sexo.
A última coisa que preciso é me sentir atraída por
alguém que já tem seu coração preenchido por outra

mulher.
“Eu posso ajudar.” - arrisco.
“Entre.”
A única palavra me faz estremecer e com as pernas

bambas, começo a caminhar.


Paro depois de subir os degraus que terminam na
varanda.
Posso notar através dos vidros, que os sofás são de

couro preto e já gosto do pouco que vejo.


Ele digita um código na porta e me espera passar.
A sala não tem enfeites, apenas algumas almofadas
nas poltronas, assim como mantas. Apesar disso, é

absolutamente aconchegante e sinto o coração aquecido


pelo ambiente acolhedor.
Gostaria de andar pelos aposentos e ver cada pedaço,
mas ele não parece confortável com a minha presença e

temo que mude de ideia sobre me deixar ficar.


Ele começa a subir as escadas que eu imagino, levará
aos quartos.
Sigo-o em silêncio e ele abre uma das portas e entra,
deixando a mala sobre o piso, mas eu continuo parada no

corredor.
Seu mutismo está me deixando insegura e questiono-
me se não foi um erro vir.

Depois de tudo o que ele passou, não é justo que eu


imponha minha presença.
“Não vai entrar?”
Só então percebo que ele está me observando, com os
braços cruzados em frente ao corpo.

Dou dois passos para dentro do quarto e ele toma


distância.
Envergonhada, desvio para a varanda.
Olho a paisagem e vejo, através das árvores, um lago

enorme com um deque e um barco a remo amarrado.


Nunca remei.
Já andei em lanchas e iates, lógico, mas nunca estive
em um barco que eu mesma pudesse direcionar.

Encantada com a ideia, aproximo-me do balcão da


varanda.
O dia está um pouco frio, mas quando inspiro o ar, o
cheiro das folhas me invade e fico sobrecarregada com a

beleza do lugar.
Esqueci completamente que não estou sozinha, então
tomo um susto quando ele pergunta.
“Bonito?”
Seu tom parece um pouco menos distante e isso me

encoraja a olhá-lo.
“Eu nunca vi nada tão lindo.”

Por um momento ficamos nos encarando.

Eu sei que a possibilidade de sermos amigos é remota,


mas eu gosto de ficar perto dele.

Não é só porque ele é lindo. Sua solidez me atrai.

Sem saber bem o que estou fazendo, dou um passo


imperceptível para a frente, mas a exemplo do que

aconteceu quando entrei no quarto, Lucas recua e muito


sem jeito agora, passo por ele e vou até a minha mala.
Deito-a no chão e fingindo tentar abri-la só para ter com

o que me ocupar, pergunto sem olhá-lo.


“Fará uma lista das regras que devo seguir?”

Ele demora para responder e me põe um pouco

nervosa.
“Você precisará de uma?”

“Talvez.” - respondo incerta, mas completo - “Sim, por


favor. Eu quero que você me diga o que fazer. Eu prometo

obedecê-lo.”

Estou abaixada demorando mais tempo do que seria


necessário para destrancar a mala, escondendo minha

insegurança, enquanto ele permanece a poucos passos de


distância.

“Encontre-me lá embaixo em meia hora. Veja se tem

tudo o que precisa no banheiro, caso contrário, posso


providenciar para que seja entregue amanhã.”

“Lucas?”
Ele está saindo e para de costas para mim, mas não
fala nada.

“Obrigada. Eu sei que não me queria aqui e farei o


possível para que não note minha presença.”

Ele passa a mão pela cabeça raspada, parecendo não

saber o que dizer.


“Quero você em meia hora lá embaixo.”
10

Lucas

Eu não tentei constrangê-la, mas nunca passei tempo

com uma mulher, além da minha mãe, sem que

estivéssemos envolvidos.
Deveria ser simples deixá-la no quarto depois de subir

com sua bagagem, mas há algo em Clara que me impede

de ir para longe.

Não sou um cara sensível, mas não consigo ignorar sua

solidão.

No passado, por vezes me peguei preso em sua


alegria. Ela sempre falava sem parar e sorria muito

também.

E eu nunca fui um cara feliz. Nem mesmo quando

criança.
Desde sempre, quando Clara chegava em algum lugar,

transformava-o, brincando, fazendo planos. No entanto, a

menina lá no quarto de hóspedes, parece ter posto de lado

qualquer esperança.

Ela tirou a jaqueta quando estávamos no carro e meus

olhos foram instantaneamente atraídos para os braços

cobertos de tatuagens.

Elas são novas - as tatuagens, quero dizer.

Eu teria reparado se já as possuísse antes. Tenho


memória fotográfica para qualquer tipo de arte.

Pergunto-me se as fez depois que entrou nessa fase

em que está mergulhada.


Também reparei nos piercings da orelha e na língua.

Não os tinha visto no hospital. Provavelmente eles os


retiraram quando ela foi internada.

No passado, seu visual atual seria o do tipo de mulher


que me atrairia.
Não que eu tivesse exatamente um gosto específico.
Olhava apenas o exterior delas.
Era tudo sobre aparência. Corpos.

Sempre gostei de piercings e tatuagens, mas em Clara,


o que me prende é a contradição.

Ela está quebrada.


Qualquer um pode ver isso, mas as tatuagens mandam
uma espécie de recado que, apesar de tudo, ainda é dona

do próprio corpo.
Só que quando estávamos no quarto, tive um vislumbre

da garota que eu conheci. Da Clara doce.


Talvez qualquer uma das duas, separadamente não

despertasse nada em mim, mas é a sua complexidade, a


mistura de inocência e autodestruição que está mexendo

com a minha cabeça - e eu não quero sentir isso.


No estado em que encontramos, a última coisa que

precisamos é qualquer tipo de envolvimento emocional.


E a verdade é que ela é a primeira mulher depois de

Samantha que desperta meu interesse além do plano


físico.
Não consigo parar de olhá-la.

Talvez seja a sensação que me passa de que tanto faz

continuar respirando ou não.


Estive assim por muito tempo.
Quando chegamos, eu continuava meio arrependido por
permitir que outra pessoa invadisse meu lugar, mas daí a vi

na sacada, o rosto relaxado admirando a paisagem e eu a


quis aqui.
No entanto, o que explodiu minha mente foi o que ela
falou a seguir.
Ela quer que eu lhe diga o que fazer e por mais que eu

combata esse desejo dentro de mim, seu pedido é


irresistível para um maníaco por controle como eu.
Devo estar ficando louco.
Não posso me permitir pensar dessa maneira.

Desço para preparar algo para o jantar. Eu estava


falando sério sobre ela ter que comer, mas não havia
pensado em fazermos as refeições juntos.
Mas de que outra maneira eu poderei ter certeza de que
se alimentou?

Tenho um monte de comida pré-pronta.


A esposa do dono de um mini mercado na cidade as
traz uma vez por semana, apesar de eu gostar de preparar
as refeições eu mesmo na maioria das vezes.

Tiro duas embalagens de lasanha do freezer.


Mesmo não sendo muito fã de massas, ela precisa
comer direito.
Coloco a mesa ou comemos na bancada?

Depois de hesitar por alguns instantes, decido-me pela


bancada e estou pegando os talheres, quando sinto um
perfume de frutas invadir meus sentidos.
Estou de costas, fingindo procurar algo no armário e sei
que ela está parada atrás de mim, apesar de não falar

nada.
“Sente-se.” - Desisto de ignorá-la.
Quando não percebo qualquer movimento, volto-me
para onde acho que está.

Ela continua imóvel e ergo uma sobrancelha.


Finalmente parecendo despertar, começa a andar para
a bancada.
Tomou banho e vestiu shorts e um casaco de moletom.
Suas coxas também são tatuadas, posso ver agora.

Não parece seguir um padrão. São diversas pequenas


frases.
“Será que você poderia me emprestar o carro mais
tarde?”

“Por que você quer sair?”


“Eu... huh... você tinha dito que se eu precisasse de
algo…"
“Eu já disse que bebidas e drogas não serão permitidas

aqui dentro, Clara.”


“Eu sei... não é isso.... eu preciso, eu esqueci... quero
dizer…"
Ela está tão sem jeito que desligo o forno e viro-me
para observá-la.

Seu rosto está rosado e ela olha para todos os lugares


da cozinha, menos para mim.
“Do que você precisa? Apenas diga.”
“De coisas... de mulher... estou no meu período.”
Sinto-me um idiota.

A despeito de toda atitude, ela é só uma garota.


“Eu a levarei após comermos.”

“Eu não quero que se sinta obrigado a ficar atrás de

mim. Posso ir sozinha.”


“Não. Isso não está em discussão. Agora coma que

sairemos a seguir.”

“Sim, Lucas.” - responde e eu tento de toda forma afastar


da minha cabeça como me agrada tê-la tão obediente.
11

Clara

Não sou tímida, nunca fui, mas desde sempre, além de

mim mesma, só contei com Bela para cuidar de qualquer

problema que eu tivesse, desse modo, quase morri de

vergonha de ter que falar com ele que eu precisava


comprar absorventes.

Nós jantamos em silêncio, só que por mais que eu

tentasse me concentrar na comida, eventualmente

levantava o rosto para olhá-lo.

Eu devo ser muito louca mesmo, porque quanto mais

fechado ele se mostra, mais me atrai.


Olhando para trás, todos os caras com quem estive e

até mesmo Arthur - que nunca quis nada comigo - jamais

representaram um desafio.
Os rapazes que eu saia na faculdade e depois, nas

noitadas nas boates, eu demorava exatamente cinco

minutos para conseguir.

E sobre Arthur, com o que sei hoje, vejo que nunca

realmente investi nele.

Finalmente enxergo o porquê.

Falta-lhe uma intensidade que sobra em Lucas.

Estamos no carro e o ar parece pesado.

Sei que por mais que ele se mostre indiferente, não


está.

Talvez não porque tenha qualquer interesse em mim.

Provavelmente o oposto. Pensando em como livrar-se da


minha companhia.

Volta e meia me pego observando o perfil bonito ou


suas mãos no volante.

Não sou tão ingênua ao ponto de não perceber sua


escuridão. Eu quase posso tocá-la, na verdade. Há algo de
frio nele, como se as emoções não o alcançassem.
 Só que
eu já passei da fase de me interessar por príncipes.

Então, quanto mais ele me deixa ver seu lado escuro,


mais me fascina.

Ele estaciona em frente à farmácia e desço do carro.


Desde que fui para a universidade, deixei de esperar
que as pessoas fizessem qualquer coisa para mim, por isso

tomo um susto quando ele dá a volta e surge ao meu lado.


Não passou pela minha cabeça que fosse entrar

também. Tudo o que ele tem demonstrado até aqui, é que


a última coisa que deseja é me ter por perto. De modo que

só posso imaginar que ele tenha vindo junto porque não


confia em mim com o carro.

Antes que eu possa concluir o pensamento, ele


surpreende-me colocando a mão na parte de trás do meu

pescoço enquanto caminhamos - o que desperta meu


corpo na hora, porque sempre fui sensível nessa região - e

direciona-me para a farmácia.


Combato ferozmente a sensação deliciosa de estar sob
seu domínio, mas os dedos ásperos e quentes estão me

deixando ligada muito rápido.

No entanto, uma voz dentro de mim debocha.


Se você não conseguiu seduzir Arthur, que chance teria
com Lucas?
O problema é que o calor que se espalha nesse exato

momento, não tem nada de racional.


Ele não fala.
Apenas quando estamos dentro do estabelecimento,
afasta-se, provavelmente para me deixar à vontade. Ainda
assim, seu olhar segue-me enquanto ando entre as

prateleiras e sinto as pernas moles.


Pego rapidamente o que preciso, mas quando vou para
o caixa, antes que eu possa abrir a carteira, ele coloca o
cartão de crédito em cima do balcão.

“Você não precisa…"


Ele me ignora, enquanto voltamos para o carro, sem me
tocar dessa vez.
Estou mais confusa do que nunca.

De repente, seu desprezo torna-se além do que posso


suportar.
Daria qualquer coisa para poder sair essa noite e
entorpecer a cabeça com álcool.

Sei que não conseguirei dormir.


Há três dias, desde que dei entrada no hospital, não
tenho mais do que uns poucos cochilos.
Fecho os olhos e recosto a cabeça no assento.

A sensação de estar no lugar errado, de rejeição,


propagando-se rápido.
Aperto os olhos para evitar chorar.
Não sou mais um bebê, posso lidar com o que quer que
seja que a fodida vida jogue em mim.

Assim que ele estaciona, seguro a maçaneta do


automóvel.
“Obrigada.”
Subo as escadas correndo, ansiosa para lhe dar

espaço, para não sentir em cada célula do meu corpo, que


a última coisa que ele deseja é que eu esteja a sua volta.

Três dias depois

Já estou aqui há setenta e duas horas e sinto-me


exausta.
Eu não consigo dormir.
Por mais que eu tente desgastar o corpo durante o dia,
procurando trabalhos físicos para me ocupar, ainda assim
não é o suficiente para permitir a minha mente acelerada
relaxar.

Já varri o quintal diversas vezes, limpei o carro dele por


dentro e por fora e organizei todos os armários e mesmo
assim, não posso descansar.
Sinto-me instável e considero voltar para a cidade.
Só que então penso: o que me espera lá a não ser a

vida destrutiva que eu estava levando antes?


Olho para o relógio na mesinha de cabeceira e vejo que

ainda são três horas da manhã. Falta muito para o dia

clarear.
Lucas sempre dorme por volta desse horário, mas

incrivelmente acorda assim que amanhece.

Sempre fui o tipo de garota que adora dormir e


admiram-me pessoas que conseguem ficar bem com

poucas horas de sono.


Ele tem se exercitado na parte de trás da casa.
Há uma barra e pesos lá e por mais de uma vez,

observei-o enquanto treinava.


Sua aparência está tão perfeita como era antes do

ataque contra sua vida, talvez ainda melhor e o contraste

comigo é enorme.
Ganhei algum peso, já que, apesar de pouco falar

comigo, ele não levanta da mesa enquanto não termino


tudo o que está em meu prato, mas ainda assim, estou

longe de ser a garota que fui um dia.

Desistindo de tentar dormir, resolvo descer para fazer


um chá.

Vou para a cozinha e preparo a bebida, torcendo para


que seja o bastante para me permitir descansar nem que

seja por umas duas horas.

Não liguei o laptop ou acessei a internet desde que


cheguei aqui. Não quero saber do que está acontecendo

com a porra do mundo.


Só uso o celular para mandar mensagem para Bela. Ela
está a poucos dias de ganhar o bebê e preciso ter certeza

de que a minha irmã está bem.


Estou tentando equilibrar a caneca com o chá quente,

pensando que talvez tenha enchido-a demais, quando noto

a porta que dá para a varanda recostada.


Digo a mim mesma que estou indo até lá para conferir

se Lucas esqueceu-a aberta, apesar disso ser uma mentira

grande e redonda.
Já o conheço o suficiente para saber que ele pensa em

cada detalhe, não deixando margem para erros.


Ainda incerta sobre o que estou fazendo, ando até a

porta e como eu imaginava, ele está na varanda.

Tenho evitado ficar perto dele, dando o espaço que


acho que precisa, mas é uma luta árdua todos os dias

controlar a necessidade de contato.


“Você gostaria de um chá?”
Ele está de costas, sentado nos degraus e olhando para

as árvores.
Apesar de ser uma madrugada relativamente fria, veste

apenas shorts. Nunca o tinha visto sem camisa, e noto que

ele tem uma tatuagem entre as omoplatas. Parece um


dragão e quero perguntar por que a fez, mas não tenho

coragem.
“Não. O que eu gostaria mesmo é de ficar sozinho.”

Talvez seja a hora da madrugada, talvez seja pelo fato

de não estar esperando encontrá-lo ali, mas dessa vez sua


rejeição dói para caralho e sei que preciso sair rapidamente

de perto dele antes que fale algo que vá me arrepender.

Tenho tendência a me tornar agressiva quando sou


maltratada.

Minhas mãos tremem, enquanto volto para a cozinha e


despejo o chá na pia, mas quando me viro para ir para o

quarto, meu corpo esbarra em uma parede de músculos.


Não o escutei se aproximar e tampouco estou pronta
para enfrentá-lo, então mantenho a cabeça baixa - o que

não ajuda nada porque agora estou de frente para o seu

peito nu.
“Não consegue dormir?”

Sacudo a cabeça sem qualquer vontade de falar.


O calor do seu corpo é como um ímã e dou um passo

para trás antes que eu possa envergonhar a mim mesma.

“Os primeiros dias serão assim. Eu andei pesquisando.


Seu organismo ainda está se acostumando a ficar sem as

pílulas.”
Lucas falou mais comigo em uma só frase agora do que

desde que cheguei.

Ele pesquisou sobre a minha saúde? Pensei que


sequer lembrava que eu existia.

Sem saber como responder, dou de ombros e começo a

me afastar, mas ele me segura pelo braço.


É a primeira vez que me toca desde o dia na farmácia.
“Vai passar.”

Suas palavras são simples.


Aliás, esse é um traço marcante de sua personalidade.

Lucas nunca tenta fazer as coisas parecerem mais

bonitas do que são e para alguém como eu, que viveu a


vida toda dentro de uma mentira, isso é reconfortante.

Ainda assim, não falo nada, apenas aproveito a febre

que seus dedos causam em minha pele.


Estou um pouco tonta com o seu cheiro e mesmo

sabendo que é a coisa errada a fazer, dou um passo para


mais perto e roço o rosto levemente em seu peito.

Ele parece parar de respirar, mas não me afasta.

“Boa noite, Lucas.”


12

Lucas

O que diabos fiz, trazendo-a para cá?

Está cada vez mais difícil ignorá-la.

Desde que vim morar aqui, não senti vontade de sair


com uma mulher.

Algumas ex telefonaram nos primeiros dias, quando

saiu nos jornais que eu havia despertado do coma e por

esse motivo, decidi bloquear todas.

Sinto falta de sexo, claro.

Eu sempre tive relações sexuais quase em uma base


diária, no entanto, ao contrário do passado, em que tudo o

que importava era satisfazer meu desejo, hoje não quero

mãos de mulheres desconhecidas em mim.


Só que então, basta sentir o perfume dela e cada célula

minha acorda em resposta.

Essa é a razão de me manter longe.

Clara está muito confusa e machucada e não tenho

nada a oferecer além de sexo.

E ainda há o fato de que ela é muito nova. A diferença

de idade entre nós vai além da cronológica. Eu já vivi muito

mais do que ela poderia supor.

Eu sempre dormi pouco. Tenho muita energia e não


gosto de desperdiçar meu tempo aqui na Terra

descansando, mas esses últimos dias têm sido exaustivos.

Eu fico consciente de seus passos no quarto.


Sei quando ela está acordada e até mesmo quando se

mexe na cama.
Desde a noite em que nos encontramos na cozinha,

tenho evitado-a com mais determinação.


Eu entrei para falar com ela porque fui um bastardo
enxotando-a da varanda, quando ela não tem qualquer
culpa pela atração que me desperta.
A intenção era consertar as coisas, mas assim que a vi

tão frágil, de rabo de cavalo, uma camiseta comprida e


descalça, não consegui resistir.

Pude sentir sua pele queimando e estremecendo sob


meus dedos, o que só fez piorar a minha necessidade.
Ela também me quer, mas pretendo combater nossa

atração.
Na noite passada, acho que ela conseguiu dormir por

algumas horas - o que está em concordância com o que eu


havia lido sobre o tempo que seu corpo precisaria para

limpar-se das pílulas - mas em algum momento da


madrugada, começou a chorar.

Eu não sou um cara de me comover facilmente.


Lágrimas tendem a me irritar bem mais do que

despertar empatia, mas foi uma luta fodida não levantar e ir


verificá-la.
Seu choro é quase envergonhado, como se não
achasse que tem o direito de sofrer.

Tenho subido só quando meus olhos não podem mais

continuar abertos. É isso ou ficar atento a cada vez que ela


respira.
Não sei se as paredes são finas demais ou se meus
sentidos estão todos ligados nela, o fato é que posso notar

cada pequeno movimento que faz no quarto ao lado.


Eu tenho me exercitado todos os dias e ela também não
para quieta. Acho que a casa nunca esteve tão limpa.
Não sou hipócrita e sei que o motivo pelo qual nos
mantemos ocupados é o mesmo.

Redirecionar a energia que está fazendo nossos corpos


queimarem.
Entendo que não é justo mantê-la aqui sem que tenha
alguém para conversar. Daqui a alguns dias precisarei ir à

cidade e a convidarei para vir comigo. Talvez ela queira


visitar a irmã. Seu sobrinho deve nascer em breve.
Estou subindo as escadas quando um grito arrepia
todos os pelos do meu corpo.
Vou até o seu quarto e abro a porta.

Mesmo no escuro, posso ver a silhueta debatendo-se


na cama.
“Perdoe-me, Bela! Eu não sabia. Eu juro por Deus que
eu não sabia.”

“Clara.”
Ela não responde e me aproximo um pouco mais.
“Eu queria matá-lo eu mesma. Eu o odeio, Bela. Você
pode me perdoar?”

“Clara, acorde.” - sento-me na cama, sacudindo-a de


leve, mas ela parece totalmente fora do ar ainda.
“Clara, é só um pesadelo. Ele já se foi. Isabela está
segura. Você está segura.”
Ao som da minha voz, ela para de se mexer.

Acendo o abajur e noto que, apesar dos seus olhos


estarem abertos, ela ainda não me vê.
“Acabou. Ele não está mais aqui.”
A respiração está normalizando e decido que é hora de

ir, mas então, ela me surpreende, pulando em meu colo e


agarrando-se ao meu pescoço.
“Lucas...”
Congelo, sem saber como agir, mas então tiro seus
braços de mim, deitando-a de volta no travesseiro.

Desvio o olhar do seu rosto banhado de lágrimas


porque se não o fizer, não terei coragem de ir.
“Durma.”
Ela vira-se para a parede, as pernas encolhidas em

posição fetal e sei que deve estar com muita vergonha.


“Desculpe-me.” - finalmente fala.
“Clara…"
“Eu sinto muito, Lucas. Não acontecerá novamente.”

“Você não sabia o que estava fazendo.”


Ela não responde.
Ao invés disso, levanta-se e caminha para o banheiro.
“Obrigada por me acordar.”
13

Lucas

Ela tem me evitado.

O mais irônico é que eu pensei que era o que eu queria.

Em uma semana, mal trocamos meia dúzia de palavras,


mas apesar disso, consigo enxergar a tensão construindo-

se a nossa volta.

Também parece que estamos disputando um tipo de

competição distorcida para ver qual de nós dorme menos.

Posso ouvi-la andando de um lado para o outro no

quarto.
Ela já ganhou algum peso e também passou a correr.

Aos poucos, sua aparência volta a lembrar a Clara que

eu conheci - mas não de todo.


As tatuagens deixam ver que ela não é mais, nem de

longe, a garota do passado.

Ela não quis visitar a irmã quando tive que ir à cidade,

mas em uma espécie de prestação de contas, disse que

falou com Isabela e que o bebê não nascerá até a próxima

semana.

Eu ainda não a vi hoje. É como se estivesse fazendo

um esforço consciente para não me encontrar.

Estaciono em frente à casa.


Acabo de voltar dos correios e a exemplo do que tem

acontecido os outros dias, não espero encontrá-la, mas

então pego um movimento perto do barco atracado no


deque.

Tento me convencer de que preciso conferir se é


mesmo ela quem está lá, ao mesmo tempo que me

conscientizo de que estou ficando bom nisso de mentir


para mim mesmo.
Foda-se!
Assim que me aproximo da água, percebo que cometi
um erro.

Clara está deitada, com o corpo molhado, vestindo


somente calcinha e sutiã.

Por mais que eu repita vezes sem fim que devo me


afastar, não consigo.
Faminto, deixo meus olhos percorrerem todo o pequeno

corpo delicioso.
É como observar uma obra de arte.

Não só por causa das curvas que começam a


reaparecer, mas por grande parte dele ser coberto com

tatuagens.
Ela é muito branca, fazendo com que os desenhos

coloridos tenham um efeito de 3D.


Sua beleza rouba meu fôlego.

Acho que faço algum tipo de grunhido porque ela


parece se assustar e ergue a cabeça.

“Lucas?”
A confirmação de que sou eu a faz relaxar novamente e
ao invés de tentar se cobrir, ela se mantém exposta ao meu

olhar como uma doce tentação.

“Vista-se.” - ordeno.
Ela parece considerar, mas então pega-me totalmente
de surpresa quando separa as coxas.
“Não.”

Minha pulsação acelera e minha mente implora para


que eu saia daqui.
“Não?”
Jesus Cristo!
Ela só sacode a cabeça de um lado para o outro e cerro

os punhos para não ir até lá.


“Você não sabe o que está fazendo.”
Seus dedos acariciam suavemente o próprio abdômen
e eu acompanho a trajetória, hipnotizado.

Meu corpo dói de desejo.


Preciso me sair daqui antes que tudo isso exploda em
meu rosto.
“Espero você para jantar daqui a uma hora. Não se

atrase.”
Ao invés de me responder, ela anda até o ofurô, que só
agora percebo, já estava ligado.
Afasto-me com a mente tomada pela visão dela

seminua, me provocando.
Estar com Clara é uma espécie de terapia masoquista
porque preciso usar todo o meu autocontrole para não a
tocar.

Cada célula minha grita para eu voltar.


A única coisa que me impede é a certeza de que ela
não faz a menor ideia de quem sou.
Talvez ela esteja pensando que estamos em uma
espécie de jogo, mas a verdade é que eu não passo de um

bastardo frio e egoísta que destrói tudo que toca.


Assim, reprimo a necessidade de prová-la e sigo para a
casa sem olhar para trás.

Em alguns minutos, ouço-a subir as escadas correndo.


Às vezes, tenho a sensação de que ela irá embora a
qualquer momento, que chegará a hora em que nosso
silêncio será demais e apesar de que isso devesse me
trazer alívio, não é o que acontece.

Então pego-me tentando mantê-la aqui comigo através


de pequenas coisas que a agradam.
Ela gosta de frutas, principalmente berries.
Morangos, mirtilos, cerejas. Qualquer coisa pequena e

azeda, pelo que pude reparar.


Clara come muito pouco, mas desde que observei isso,
passei a colocar um pote com elas do seu lado da mesa e
vejo que sempre as belisca assim que termina as refeições.

Ela nunca falou sobre elas e nem sei se meu gesto tem
qualquer importância, mas me agrada a sensação de lhe
dar pequenos prazeres.
Meu celular acende com uma mensagem e a seguir,
ouço um carro estacionar.

Arthur?
Vou até a varanda para encontrá-lo.
“O que diabos você está fazendo aqui?” - pergunto
irritado, porque só agora me dou conta de que não quero
mais ninguém invadindo nosso mundo.

“Eu vim buscar Clara.”


14

Clara

Jesus, o que deu em mim?

Ele poderia me expulsar pelo que acabo de fazer.

Talvez a privação de sono esteja prejudicando minha


mente mais do que supus.

Às vezes, acho que vou enlouquecer.

Tenho pesadelos todos as noites.

As imagens de Bela no vídeo jamais sairão da minha

memória.

Nos últimos dias, até mesmo acordada consigo ouvir


seu choro e ela implorando para ele não a machucar.

E então eu quero matá-lo de novo.

Eu gostaria que ele ressuscitasse a cada dia para eu

poder matá-lo novamente. Eu poderia fazer isso para


sempre.

Depois de hoje, acho que a melhor coisa a fazer seria ir

embora, mas tenho medo de cair na mesma vida que

estava levando antes de ser internada.

Não preciso ser um gênio para saber que não sou bem-

vinda aqui, mas apesar disso, a ideia de voltar para o meu

apartamento não é atraente.

Mesmo com Lucas me ignorando, aqui eu posso correr,

olhar a paisagem ou ficar sentada no deque.


A paz do lugar tem me feito bem.

Não estou pronta para pessoas ou os barulhos típicos

da cidade grande, então tenho considerado uma


alternativa.

Eu e Bela temos uma casa no sul da França e estou


pensando em ir para lá.

Talvez assim eu consiga realinhar minha mente.


Só esperarei o bebê de Bela nascer. Quando tiver
certeza de que ambos estão bem, partirei.
A atração que eu sinto por Lucas está começando a me
fazer agir como uma idiota.

Como agora há pouco, por exemplo.


Eu fui nadar para tentar desgastar o corpo. Tinha

esperança de que assim, conseguiria dormir à noite.


Honestamente, não imaginava que ele fosse voltar tão
cedo. Lucas costuma ficar pelo menos duas horas fora

quando vai à cidade.


Sei que sai para desenhar. Ele desenha o tempo todo.

Está constantemente com blocos e lápis à mão e já vi


rascunhos das casas antigas que ficam no caminho para

cá.
De qualquer maneira, não havia nada sequer perto da

ideia de provocá-lo passando pela minha mente.


Mas quando ele chegou, por um instante vi seu olhar de

desejo e meu corpo todo gritou em resposta.


Eu quis que ele viesse para mim. Quis suas mãos em

minha pele e sua boca me provando e sem pensar nas


consequências, instiguei-o deliberadamente.
Talvez eu não deva esperar para ir embora, afinal.

Já fiz muita merda na vida, mas nunca precisei agir

como uma vadia, oferecendo-me a um homem que


obviamente só me notou porque sou a única mulher por
perto.
Tentando interromper os pensamentos de autopiedade,

visto a camiseta e subo para o meu quarto torcendo para


não o encontrar.
Estou envergonhada pela tentativa tosca de seduzi-lo e
preciso de um pouco mais de tempo antes de enfrentá-lo
novamente.
Acabo de desligar o chuveiro quando ouço o som de um
carro estacionando.
Quem pode ter vindo aqui a essa hora?

Lucas não gosta de intrusos na propriedade e eu


também já me acostumei a sermos somente nós dois.
Não faço a menor ideia de quem chegou, então ao
invés de vestir um shorts e camiseta como de costume,

decido por um vestido curto e sem mangas. Talvez seja


alguém do trabalho dele e não quero constrangê-lo
aparecendo muito à vontade.
Começo a descer as escadas, mas o som de vozes me

faz congelar.
Arthur? Por que ele veio? Será que Lucas o convidou?
Há um ano, eu estaria emocionada por revê-lo, ansiosa
sobre parecer bonita o bastante para ele, mas agora sinto
vontade de voltar para o quarto.

“Você não deveria ter permitido que ela se mudasse


para cá.” - ouço-o dizer.
“Não foi exatamente uma escolha.” - Lucas responde e,
apesar de já estar ciente disso, a confirmação machuca

mais do que imaginei.


“Não se envolva com ela, Lucas. Clara é só uma
criança que está perdida.”
A condescendência em sua voz é a gota que faltava
para aflorar minha raiva.

Sei que preciso fazê-los saber que estou aqui antes que
eu comece a atirar coisas em ambos.
“Arthur.” - chamo, assim que entro na cozinha.
Em uma outra época, eu teria corrido para os seus

braços.
Qualquer contato físico com ele alimentava minhas
fantasias por meses inteiros, mas nesse exato momento,
eu não sinto nada.

Ironicamente, é ele quem toma a iniciativa de se


aproximar.
Seus olhos percorrem meu corpo e param nas
tatuagens.

Ele não consegue disfarçar o desagrado.


Eu não dou a mínima.
Estou esperando que vá começar a reclamar porque foi
isso o que fez desde sempre - agiu como um irmão mais
velho.

Então, ele me pega desprevenida quando me puxa para


os seus braços.

Fico tão chocada que não o abraço de volta.

Ele nunca tomou a iniciativa antes.


A primeira coisa que percebo é que seu contato, ao

contrário de antigamente, não me traz qualquer tipo de

desejo.
Ao invés disso, minha mente foca em quem está por

trás dele.
Lucas.
15

Lucas

Sinto cada pedaço do meu corpo enrijecer de tensão,

enquanto vejo Arthur tomar Clara em seus braços.

Sei que racionalmente, eu não tenho qualquer direito


sobre ela, mas apesar disso, uma voz no fundo da minha

mente grita para tirá-la de lá.

O que não faz o menor sentido.

Ela não é minha.

Além disso, Arthur seria a pessoa mais segura de quem

ela poderia estar próxima, enquanto eu sou a pior escolha


possível.

Ele veio com a intenção de levá-la e somente a ideia de

que ela irá embora, me faz querer expulsá-lo.


Não posso discordar do que disse sobre eu não ser

bom o suficiente para estar perto dela, mas de uma

maneira talvez não muito saudável, eu e Clara criamos

nosso próprio universo aqui.

Eu não quero que ela me deixe, mas sei que não posso

mantê-la contra sua vontade. Eu já percorri essa estrada

uma vez com Samantha.

Então, observo a interação entre os dois

silenciosamente, com os punhos cerrados ao lado do


corpo.

“O que você está fazendo aqui?” - ouço-a repetir a

pergunta que fiz, enquanto discretamente solta-se de seus


braços.

Estou atento a sua linguagem corporal.


Clara foi apaixonada por ele desde que a conheço, mas

agora, se eu não estiver lendo errado, está incomodada


com sua presença.
Ela aproxima-se de mim e mesmo que eu tente lutar
contra, um sentimento de posse me domina.

Estamos frente à frente e totalmente esquecidos dele.


É como se ter alguém de fora invadindo nossa vida,

finalmente nos obrigasse a reconhecer a necessidade


crescente entre nós.
Eu não consigo me impedir de dar um passo para ela e

fico satisfeito ao vê-la aproximar-se também.


“O jantar está pronto.” - não me importo que ele esteja

nos vendo.
Ela acena com a cabeça.

“Nadar me deixou faminta.”


Para quem está de fora, pode parecer uma conversa

banal, mas nós dois sabemos o que aconteceu lá no


deque. O desejo mal disfarçado e pulsante.

“Eu vim para levá-la comigo.” - Arthur fala e finalmente


lembro que há mais alguém conosco.
“O quê?” - ela parece ter saído de um transe, enquanto
volta-se para olhá-lo, ao mesmo tempo que dá mais um

passo para mim.

Mas então, torna a me encarar.


“Você o chamou aqui? Pediu que ele me levasse
embora?” - não é tanto a pergunta que faz, mas o tom
sentido que mexe comigo.

“Não.” - respondo e completo, mesmo que seja a última


coisa que desejo - “Mas talvez seja uma boa ideia.” - é
difícil para caralho lhe dar a opção de me deixar.
“Você pode ficar comigo.” - Arthur diz - “Eu tenho um
quarto a sua espera em minha casa.”

Ela sequer parece tê-lo ouvido. Os olhos perscrutam


meu rosto, como esperando que eu vá dizer algo, mas não
posso. A decisão de ficar tem que partir dela.
Com o meu silêncio, toda sua postura muda,

recordando-me a Clara ferida que me visitava no hospital.


“Tudo bem. Eu não preciso ficar aqui Lucas, mas
também não irei para o seu apartamento, Arthur. Sou uma
adulta e tenho meu próprio lugar. Partirei pela manhã.” - ela

escolheu ir embora? - “Você não precisava ter se dado ao


trabalho de vir.” - e então volta-se outra vez para mim -
“Era só ter me dito, Lucas.”
“Eu não pedi que ele viesse buscá-la.” - repito, sem

saber mais o que dizer.


“Por que ele veio então?”
“Não acho uma boa ideia você ficar aqui isolada com
Lucas.”

Permaneço em silêncio para ver o que dirá, mas sou


pego de surpresa quando ela começa a rir.
No começo é quase um ensaio de risada, como se
estivesse testando, mas então olha para nós dois, de um
para o outro e começa a gargalhar, sacudindo a cabeça.

Só que não há qualquer traço de alegria real em seu


riso.
É algo entre a incredulidade e o desespero.
Ela ri tanto que coloca a mão no abdômen como se não

pudesse se controlar, enquanto eu e ele observamos.


Aos poucos, no entanto, seu rosto vai mudando.
A feição linda e jovem transmuta-se na de alguém
esgotado, vencido e eu quero abraçá-la.
Quero que ele vá embora e nos deixe em paz, presos

em nosso mundo esquecido.


“Você veio para me proteger dele?” - ela ainda deixa
escapar uma risada histérica - “Está preocupado que Lucas
possa me usar?”

As palavras saem quase acusatórias, ao mesmo tempo


em que começa a caminhar para a porta.
“Deus, a vida pode ser mais irônica do que isso?”
“Aonde você vai?” - ele pergunta.

Ela volta-se rapidamente.


“Eu preciso de espaço. Foi ótimo vê-lo,” - diz, apesar de
sua expressão mostrar exatamente o contrário - “mas
vamos deixar algo bem claro - não sou sua
responsabilidade. Viva a sua vida e me deixe em paz,

porra.”
“Clara…"
“Você não faz ideia de como perdeu seu tempo vindo
até aqui. Diga a ele como nós mal nos falamos, Lucas.” - e
então, vira as costas e sai correndo.
16

Clara

Corra!

Se você conseguir ser rápida o bastante, talvez a dor

não possa alcançá-la.

Assim que coloco o pé na varanda, as lágrimas que


vinha segurando lá dentro caem abundantes, quase me

impedindo de enxergar, enquanto fujo em meio à

escuridão.

A sensação de ser rejeitada é uma merda.

Arthur e sua atitude arrogante de achar que pode

decidir o que é melhor para mim me irritou para caralho,


mas o que me derrubou mesmo foi ouvir Lucas dizer que

talvez fosse melhor eu ir embora.

Apesar de já estar pensando nisso, ouvi-lo falar que não

me quer aqui foi como levar um soco.


Ele não chamou Arthur, mas no fundo desejava que eu

partisse.

Deus, minha cabeça louca imaginou atração física onde

não havia nada?

Talvez a vontade de tocá-lo, a necessidade por ele,

tenha embaralhado minha mente.

Que estúpida , Clara!

Acabo de ficar encurralada entre os dois caras que

verdadeiramente me interessaram até hoje sendo que


nenhum deles me quer.

Chega de fazer papel de idiota.

Vou esperar o suficiente para que Arthur parta e então


juntar minhas coisas.

Se eu tivesse coragem, pediria para Ethan me pegar


hoje à noite mesmo, mas não quero preocupar Bela. O

bebê nascerá a qualquer momento.


Posso chamar um Uber amanhã cedinho. Quero sair
antes que ele acorde.
Estou exausta, física e mentalmente e depois de correr
por cerca de quinze minutos, resolvo voltar.

O carro de Arthur se foi, mas as luzes da sala estão


acesas e não me sinto preparada ainda para enfrentá-lo.

Assim, caminho até o deque e deito-me no barco para


descansar um pouco.
Agora que a adrenalina baixou, começo a sentir frio e o

tênis que estou usando, machuca meus pés. Eles não


foram feitos para corrida e posso sentir as bolhas

formando-se nos calcanhares.


Só que o incômodo causado pela falta de agasalho e a

dor dos calos não são nada comparados a sensação de


estar mais sozinha do que nunca.

Estou tão cansada. Vou ficar aqui só um pouquinho. Só


cinco minutos deitada e então voltarei.
“Clara.”

Ouço a voz dele e acho que estou sonhando.


É a primeira vez que diz meu nome sem parecer
irritado, mas assim mesmo, não abro os olhos.
“Eu já vou entrar. Só quero descansar mais um pouco.”

“Não. Está muito frio aqui fora.”


Estou pronta para contra-argumentar apesar de não ter
energia para começar uma briga, mas ele surpreende-me
ao me pegar no colo.
Tento não gostar do conforto e calor que está em seus

braços me traz.
“Eu posso andar.”
Ele, como sempre, não responde, o que faz com que eu
me lembre do motivo pelo qual fugi.
Ele não me quer aqui.
“Ponha-me no chão.” - peço, enquanto tento sair de
seus braços.

“Quieta. Eu não vou soltá-la.”


Debato-me entre discutir ou aproveitar a migalha de
atenção, mas meu coração carente de qualquer contato
dele rende-se rapidamente e eu recosto a cabeça em seu

peito, passando os braços em volta do seu pescoço.


Em resposta, ele me puxa ainda mais para si.
Fecho os olhos porque eu não quero pensar.
Mesmo sabendo que não durará, tê-lo tão próximo é a

melhor sensação que experimentei nos últimos meses.


“Você não comeu.”
“Eu não estou com fome. Quero ir para o meu quarto.
Ele acena com a cabeça.
Estou envergonhada do meu desabafo na frente dos

dois e algo dentro de mim avisa para me proteger enquanto


sobrou qualquer coisa a ser salva.
Entramos no quarto no escuro, mas ao invés de me
colocar direto na cama, ele parece relutar em me soltar e

quando finalmente o faz, o corpo reclina-se sobre mim.


Nossos rostos estão a pouco centímetros e meu
coração inicia uma corrida louca.
“Eu não quero que você vá embora.”
As palavras saem tão baixas que não tenho certeza se

ouvi direito.
Apesar da penumbra, sei que ele está me olhando.
“Por quê?”
Um pouco mais confiante, ergo-me sobre os cotovelos

fazendo com que a temperatura entre nossos corpos se


eleve.
“Fique.”
Pela primeira vez entendo que talvez ele, assim como

eu, não esteja pronto para analisar o estranho


relacionamento formando-se entre nós, mas ainda assim
quero ter certeza.
O sentimento de não ser bem-vinda não é algo que eu
saiba lidar.

“Eu não quero me impor a você. Falei sério lá embaixo,


posso me virar sozinha. Na verdade, antes mesmo de
Arthur vir, eu já estava pensando em passar um tempo em
minha casa na reviera francesa.”
“Não.”

“Não? O que isso significa?”


“Podemos fazer funcionar. Não quero que vá para

longe. Ou para qualquer outro lugar.”

“E Arthur?”
“Você está preocupada com o que ele irá pensar?”

Sacudo a cabeça, porque é a mais pura verdade.

“Então está decidido.”


Dentro de mim, sei que deveria protestar contra seu

controle e dizer que nada está certo ainda, mas eu nunca


fui de fazer joguinhos.
“Eu não estou exigindo nada.” - falo, encorajada por sua

proximidade e deixando os dedos deslizarem nos


antebraços musculosos.

Sinto meu corpo se arrepiar quando sua boca toca

minha orelha.
Ele não beija, morde ou qualquer coisa assim, apenas

deixa os lábios roçarem nela, mas é o suficiente para me


fazer contorcer de luxúria e um gemido escapar.

Ele desliza os lábios por meu pescoço, mas quando eu

tento puxá-lo para mim, uma de suas mãos segura as


minhas no alto da cabeça - o que me excita ainda mais - e

ao invés de continuar lutando, deixo que ele tome o


controle.

Estou morrendo de desejo, mole e ansiosa contra seu

corpo, mas então ele se levanta.


O choque de não o sentir mais é quase doloroso e

ainda não estou pronta para desistir.

Eu não imaginei aquilo. Ele me quer também.


Acendo a luz do abajur e vejo que ele ainda está de pé,
perto da cama.

Sem deixar de olhá-lo, tiro o vestido por cima da


cabeça, ficando apenas de calcinha e sutiã.

Ele não protesta, ao contrário, me observa avidamente -

o que eu entendo como permissão para continuar.


Como fiz mais cedo no barco, passo a mão em minha

barriga, mas agora vou um pouco além e deixo os dedos

encontrarem o cós da calcinha.


Vejo o movimento de sua garganta, enquanto engole

em seco.
Ele parece segurar a respiração, o que me dá uma

sensação de poder.

Ter Lucas me desejando atua como uma droga dentro


de mim.

Eu poderia ficar rapidamente dependente dos seus


olhos lindos.
Testando, faço a mão deslizar dentro da lingerie e

finalmente alcanço meu ponto de prazer.


“Ohhhh…"

Eu já fiz um monte de loucuras, mas nunca me toquei

na frente de um homem e nesse momento, estou excitada


além da razão.

Seus olhos absorvem as minhas reações, enquanto


continuo a brincar com o meu corpo.

“Tire-a.”

Sua voz sai rouca de desejo e eu estremeço em


resposta.

Nem passa pela minha mente desobedecê-lo e

enganchando os dedos na lateral da peça, desço-a por


minhas coxas.
17

Lucas

Eu sabia que não deveria ter ficado no quarto, mas

minha capacidade de contenção tem limite.

Quando Clara saiu correndo da casa, esqueci


completamente de Arthur. A única coisa que eu queria era

ir atrás dela.

Ele continuou insistindo nas razões pelas quais eu

deveria deixá-la ir embora e pela primeira vez que eu

lembre, quis mandá-lo para o inferno.

Eu não sou uma pessoa que gosta de seres humanos


de uma maneira geral, mas sempre tive mais paciência

com Arthur do que com o resto do mundo.

Mesmo quando ele tentava se intrometer em minhas

brigas com Samantha, eu conseguia manter o


temperamento sob controle.

Hoje, no entanto, eu lhe pedi que nos deixasse em paz.

A seguir, comecei a procurar por ela em todos os

lugares até finalmente encontrá-la no barco.

Não há como descrever o que senti quando vi que ela

não havia me deixado.

Olhá-la deitada no frio, dentro do barco, fez nossa

conexão mais forte do que nunca.

Eu sei qual é a sensação de ter a própria mente


brincando conosco.

Quando pensar torna-se doloroso demais.

Então, quando a trouxe de volta para a casa, não havia


nada de linear ou racional passando dentro de mim.

Eu queria protegê-la do frio, lógico.


Eu não queria que ela ficasse sozinha, por certo.

No entanto, a verdade é que eu precisava segurá-la


para ter certeza de que ainda estava aqui comigo.
Só que assim que senti o corpo pequeno junto ao meu
e o cheiro delicioso de sua pele, os braços me segurando

apertados junto a si, não consegui simplesmente deixá-la.


E agora, mesmo sabendo que estou mexendo com

fogo, permito-me passear a boca em sua orelha e pescoço.


Sei que tenho que parar antes que perca o controle.
Ela está triste e sozinha e não vou me aproveitar da

situação.
Apesar dessas certezas, peço.

“Fique. Eu não quero que vá.”


Ela acaricia meus braços e meus sentidos são

rapidamente capturados pelo nosso desejo.


Busco o último resquício de força de vontade e me

levanto, mesmo não querendo ir.


Ela, por outro lado, não parece disposta a facilitar meu

caminho e acende a luz, deixando-me vê-la.


Clara é tão bonita deitada, os cabelos longos

espalhados no travesseiro, o vestido subindo pela coxas


desenhadas e ligeiramente entreabertas.
Estou hipnotizado enquanto vejo-a tirar a roupa,

mostrando-se.

Suas contradições estão fritando minha mente


pragmática.
Eu sempre pensei que gostava de mulheres suaves,
que me deixassem guiá-las sem qualquer protesto, mas ela

me confunde demais.
Pede por regras, mas não recua diante dos próprios
desejos, deixando claro o que quer.
Assim, perco o fôlego quando, sem parar de me olhar,
ela começa a se acariciar.

Não há nada que eu diga a mim mesmo agora que fará


com que eu me afaste.
A pequena feiticeira me enlouquece, enquanto observo
sua mão deslizar para dentro da calcinha.

“Tire-a.” - comando.
Ainda guardo uma vaga esperança de que ela vá
recobrar o juízo - um de nós deveria - mas ela obedece.
“Separe as pernas, deixe-me vê-la.”

Sei que há centenas de razões pelas quais eu não


deveria estar aqui, mas eu não quero ir embora.
Clara é tão sensual em sua desinibição.
Ela não finge estar envergonhada ou mascara o próprio

prazer e quase me dá um ataque do coração ao deixar os


dedos brincarem com seu sexo.
Os quadris contorcem-se não ansiosos, mas em uma
dança lenta, necessitada.

“Mais amplas. Deixe-me ver o quanto está molhada.”


“Eu vou gozar.”
“Não. Eu ainda não disse que você podia.”
As palavras parecem enlouquecê-la, mas como uma
boa menina, ela desacelera o ritmo.

Não sei se ela faz ideia do efeito que tem sobre mim, de
como sua maneira sem vergonha de perseguir o próprio
tesão me excita.
Ela não parece seguir qualquer roteiro.

É como se tudo o que a guiasse fosse a sensualidade


nata.
“Você quer gozar?”
A pergunta sai difícil, arranhando minha garganta.
Ela move a cabeça, confirmando.

“Deixe-me ver. Mostre-me como dá prazer a si mesma.”


“Eu quero você dentro de mim.”
“Já está na hora de aprender que as coisas não são
sempre sobre o que você quer. Faça o que eu mandei.” -

não há mais qualquer filtro para o meu desejo.


“Oh, Deus!”
“Você gosta disso, não é? Gosta de se mostrar para
mim.”

“Sim.” - responde, enquanto trabalha para alcançar o


clímax. - “Eu vou gozar para você. Pensando que é você
deslizando dentro de mim, tomando posse do meu corpo.”
“Você não sabe o que está pedindo.”
“Eu não negarei nada. Tome-me. Prove-me de todas as

maneiras.”
“Diga-me o que está sentindo.”
“Eu adoro tê-lo me olhando.” - provoca - “Estou tão
quente por dentro, Lucas.”
“Empurre mais forte.”

Não há uma célula do meu corpo que não esteja


totalmente tomada por ela.

“Eu vou gozar. Eu poderia gozar só por sentir seus

olhos em mim.”
Quando seus quadris se erguem, ao mesmo tempo em

que ela solta um gemido longo, sei que alcançou o ápice.

Estou congelado no lugar, ainda incerto sobre ir embora


ou finalmente me entregar às promessas que seus olhos

me têm feito há dias, mas suas palavras seguintes tiram a


decisão das minhas mãos.
“Eu não ligo para o que Arthur disse. Não me importo se

o que acontecer entre nós me trará sofrimento. Estou


disposta a correr o risco.”

É como se eu despertasse de um sonho.

Olho o corpo delicioso me convidando, mas a seguir


para o rosto perfeito e ainda tão inexperiente.

Sou um bastardo.
Clara pensa que já viveu muito por ter tido seu caminho

com alguns caras, mas ela não faz ideia do que eu já fiz.

De quantas mulheres eu já quase destruí e descartei.


De como já manipulei e brinquei com seus sentimentos.

Sinto vergonha de mim por sequer ter considerado a


possibilidade de tomá-la.

Eu assisti sua transformação e quanto o sofrimento que

está passando fez com que ela se perdesse.


“Tudo o que dizem ao meu respeito é verdade, então

você deveria cuidar melhor de si mesma.” - falo, duro. - “Eu


posso te dar prazer, mas nunca passará disso. Não se
permita fantasiar comigo. Está perdendo seu tempo.”

Viro as costas e saio porque não posso ficar para assistir o


efeito do que eu disse em seu rosto.
18

Clara

Desde a noite em ele saiu do meu quarto, nós não

falamos mais do que o essencial e estou meio louca.

Ele pode fugir o quanto quiser, eu sei agora que a


atração é mútua.

Só que aparentemente, não forte o bastante para que

ele dê o passo seguinte.

Talvez Lucas tenha dito a si mesmo que quando me

deixou sozinha há algumas noites, estava tentando me

proteger e vou conceder que pode haver uma parcela


disso, mas o que eu desconfio que seja o fator

determinante, é que o seu coração ainda está tomando por

ela.

Samantha.
Quão estúpida posso ser por me interessar por um

homem que é apaixonado por outra?

Não importa, decidi que não ficarei chorando em um

canto.

Ele disse que me quer aqui e para ser franca, ainda não

estou pronta para ir embora, então permanecerei até o filho

de Bela nascer.

Depois disso, estou decidida a ir para a França.

Preciso de um tempo longe de tudo, agora inclusive e


principalmente, dele.

Quando vim para cá, não passou pela minha cabeça

seduzi-lo, até porque nunca imaginei que Lucas se


interessaria por mim.

Só que seu jeito obscuro me prendeu totalmente.


Depois que vi ele e Arthur lado a lado, não pude

acreditar em mim mesma.


Como diabos, em um universo em que existe Lucas, eu
pude achar que estava apaixonada por Arthur?
Sim, ele é lindo, educado, protetor. Um verdadeiro
príncipe.

O problema é que sua perfeição é sufocante.


Como se ele vivesse dentro de uma caixinha e nada

que não se moldasse totalmente ali servisse.


Não ligo para o julgamento dos outros. Se fosse esse o
caso, não teria feito as tatuagens, mas a maneira com que

Arthur olhou para o meu corpo desenhado me deixou puta.


Ele continua ligando todos os dias, mas ao invés de

atender, respondo por mensagens.


Não quero ser grosseira, mas sua insistência é irritante.

Prefiro estar aqui com Lucas com toda sua secura e


falta de delicadeza, do que com alguém que me julgará o

tempo todo.
Agora posso afirmar que jamais acontecerá nada entre

nós.
O que Lucas me desperta faz minha paixonite por

Arthur parecer ridícula e me pergunto como não reparei em


sua intensidade antes.
Na verdade, acho que já havia percebido sim, mas

sempre vi Lucas como pertencendo à Samantha, então

talvez de maneira inconsciente, preferi não lhe dar um


segundo olhar.
Apesar de ter me deixado logo após me ver gozar na
outra noite, ele está constantemente por perto.

É como se temesse que eu fosse embora e essa porra


não faz o menor sentido.
Se não quer investir em nossa atração, não seria um
arranjo perfeito me deixar ir?
Mas ao contrário, ele parece vigilante.

Cuida para que eu tenha tudo o que preciso, em


pequenos gestos que me prendem cada vez mais.
Ele nunca me deixa sair sozinha e se mantém tão
próximo que é como se suas mãos estivessem em mim o

tempo todo.
Isso está ferrando com a minha cabeça.
Meu celular vibra e o coração dispara quando vejo que
é o meu cunhado.
Ele nunca liga, então sei que o telefonema só pode

significar uma coisa.


“Está na hora?” - atendo com o coração aos pulos.
“Sim. Ela a quer aqui. Você virá?” - a voz soa descrente
e sei que não estou entre as suas dez pessoas favoritas.

“Vou falar com Lucas para ver se posso pegar o carro,


mas se não for possível, chamarei um Uber.”
“Não. Nada de Uber. Se ele não puder lhe emprestar o
carro, enviarei alguém para apanhá-la. Deixe-me saber.”

“Certo. Verei aqui e o aviso.”


Ele desliga sem se despedir, mas não levo para o lado
pessoal. Em seu lugar eu também não gostaria muito de
mim.
Não pense nisso agora, Clara. Deixe para se odiar

novamente amanhã. No momento, Bela precisa de você.


Não sei como me aproximar de Lucas para perguntar
pelo carro. Só temos nos falado por monossílabos e tenho

procurado lhe dar espaço.


Não é uma tarefa fácil, mas tenho tentado seguir seu
conselho e pensar um pouco nos outros antes de mim
mesma, para variar.
Desço as escadas e ele está do lado de fora, sem

camisa, cortando madeira.


A cada movimento do machado, os músculos
desenhados de suas costas sobressaem, deixando-me
completamente ligada.

“Lucas.” - chamo baixinho, tentando escapar da nuvem


de desejo.
“Clara?” - ele olha para trás e a mão coberta com a luva
limpa o suor da testa.

Engulo em seco enquanto observo o v em seu


abdômen que continua o caminho dentro do jeans
desbotado.
Quando torno a olhar em seus olhos, vejo que sua
postura mudou e ele está totalmente concentrado em mim.

Ele larga o machado, tira as luvas e se aproxima,


invadindo meu espaço pessoal.
Minha pulsação enlouquece.
Parecendo saber exatamente o efeito que me causa,
ele inclina-se como se estivesse tentando me cheirar, mas

se afasta um segundo depois.


Então, como se não controlasse a própria vontade, dá

mais um passo, colando o corpo ao meu.

A mão toca meu rosto e a seguir os dedos pousam em


meus lábios.

Eu quero resistir, mas não consigo então entreabro-os,

prendendo os dedos em minha boca.


Sua outra mão me segura pela cintura e me puxa para

si, fazendo com que as minhas pernas ganhem a


consistência de gelatina quando sinto a dureza do seu

corpo.
Fecho os olhos, cada pedaço meu implorando por ele,

mas quando torno a abri-los, ainda está somente me


observando, como em dúvida sobre o que fazer.

Temendo uma nova rejeição, resolvo tomar a iniciativa e

ser eu a me afastar.
Ao invés de me deixar ir, ele aumenta o aperto na

minha cintura.
“Mais um pouco.”

“Hein?”

“Eu preciso segurá-la mais um pouco.”


“Não faça isso comigo.” - imploro.

Foco no que vim fazer ou sei que estarei perdida.


“Ethan ligou. O bebê de Bela nascerá em breve. Você

pode me emprestar o carro?”

Ele ainda parece hesitar, mas finalmente me solta.


“Eu a levarei.”

“Não é necessário.”

“Eu sei que não, mas quero acompanhá-la.”


Sobrecarregada por suas mensagens cruzadas, desisto
de tentar entendê-lo.

“Tudo bem então.”


19

Lucas

Não consigo afastar meus olhos dela.

Não é que ela fique se mostrando. Bem ao contrário.

Desde a noite em que a deixei em seu quarto, ela me


evita como à peste negra.

Sou eu quem a persegue, dando a mim mesmo

qualquer pequena desculpa para verificá-la.

É como se meu corpo estivesse programado para

rastreá-la. Sei o lugar exato em que está na casa somente

pelo som de seus passos e é uma luta fodida não ir até lá.
Clara pensa que eu não a quero, o que parece a porra

de uma piada.

Há muito tempo não desejo alguém com tanta

intensidade.
A contenção com que tenho conduzido nossa relação

me diz que a cada dia, ela ocupa um espaço maior dentro

de mim.

Além dos projetos da empresa, aproveito toda

oportunidade para desgastar meu corpo.

Como uma espécie de tortura autoimposta, recuso-me a

me dar qualquer tipo de prazer. Não são minhas mãos que

quero.

A imagem dela se tocando, seus gemidos, são como


um filme repetindo-se sem cessar em minha mente.

Não sei por quanto tempo mais poderei me manter

longe.
Todos os dias quando acordo, temo que ela diga que

está indo embora.


Quando ela me chamou hoje e vi seu olhar de cobiça,

minha fome apagou qualquer racionalidade.


Eu deveria libertar a nós dois, mas não estou pronto
para perdê-la.
Foi somente ela ter contado sobre o bebê da irmã o que
me impediu de tomá-la ali fora mesmo.

Estamos no meu carro e ela olha pela janela. Como um


viciado, aproveito para observá-la.

Faço isso o tempo todo. Sempre que ela surge em meu


campo de visão, tudo em volta desaparece.
“Você pode dormir em meu apartamento.” - Falo.

Não sei quanto tempo durará o trabalho de parto e não


quero que ela se afaste para ficar com qualquer outra

pessoa que não seja eu.


Sim, minha cabeça está uma bagunça.

“Obrigada, mas não precisa. Passarei a noite em minha


casa. Há muito tempo não vou lá e quero verificar se tudo

está em ordem para quando eu voltar.”


“Você está pensando em ir embora?”

“Em algum momento, terei que ir.”


Suas palavras não soam como uma ameaça, mas como

se já tivesse decidido, não deixando margem para


argumentação, o que é mais assustador do que se ela
quisesse brigar.

“Não.”

“Não o quê?”
“Não vá embora.” - repito o que pedi há algumas noites.
“Lucas, você está me confundindo.”
Fico calado porque sei que é verdade. Não consigo

raciocinar com clareza.


“Algum problema se eu dormir em seu apartamento?”
“Por quê?” - ela finalmente olha para mim.
Porque eu tenho medo que você se vá para sempre.
Não respondo, apenas encaro-a.

Eu quero parar o carro e puxá-la para os meus braços.


Provar essa boca rosa, enrolar os dedos em seus fios
de seda. Fazê-la tremer sob meu toque e língua, mas não
tenho coragem de pôr isso em palavras.

Ela molha os lábios e vejo suas pupilas dilatarem.


“Tudo bem.” - diz simplesmente.
“Tem certeza?” - dou-lhe uma última oportunidade de
recuar.
“Sim.”

Estou no corredor aguardando que Clara retorne do


quarto para combinarmos o horário que virei buscá-la.
O bebê de Isabela nasceu saudável. É um menino, pelo
que pude saber e ela disse que ficará algumas horas com a

irmã.
Aproveitarei para resolver algumas coisas. Será uma
maneira de não pensar no que acontecerá logo mais. Sei
que não há como recuar agora.
Meu celular toca e fico surpreso com o nome que
aparece na tela.

“Célia, está tudo bem?”


Ela foi a enfermeira responsável por mim durante os
meses em que estive em coma e uma das melhores
pessoas que já tive a oportunidade de conhecer.
Mesmo depois que eu acordei, ela ainda ficava ao meu

lado, não me deixando sozinho por um instante sequer.


No começo, resisti a sua aproximação.
Não sou moldado para conversas ou qualquer tipo de
intimidade, mas a senhora de rosto bondoso não parecia

disposta a desistir e mesmo sem que eu tivesse


conscientemente permitido, um laço formou-se entre nós.
Depois que voltei para casa, não se passou um dia sem
que ela mande uma mensagem para saber como eu estou.

Sua persistência e dedicação acabaram por me vencer e


hoje fico um pouco ansioso quando ela passa muito tempo
sem dar notícias.
Nunca tive uma presença materna real em minha vida.
Minha mãe sempre viveu e ainda vive exclusivamente em

função do meu pai, então acho que Célia ocupou, de forma


inesperada, um pedaço vazio dentro de mim.
“Lucas filho, quando você vira à cidade? Gostaria de vê-
lo.”
Fico um pouco tenso porque desconfio da razão dela

querer conversar.
“Na verdade, eu estou aqui. Aconteceu alguma coisa?”

“Podemos tomar um lanche juntos daqui a pouco?

Gostaria que viesse a minha casa.”


Gosto dela, mas sei por que ela quer me ver - o que

não me deixa particularmente entusiasmado.

“Claro que irei. Passe-me o endereço e a que horas


devo chegar.”

“Eu não quero atrapalhar.”


“Sempre tenho tempo para você. Nos veremos em

breve.”
Quando desligo o telefone, percebo que Clara está

parada me observando.
Seu rosto não demonstra nada.

É como se tanto fizesse se eu estivesse ali e a

sensação de que a estou perdendo volta.


“Que horas devo vir apanhá-la?” - tomo a iniciativa,

tentando de alguma maneira reforçar nosso trato.


Ela olha-me uma última vez, ante de virar as costas.

“Enviarei uma mensagem.”


20

Lucas

Apesar da sensação de que não deveria sair de perto

dela agora, vou encontrar Célia.

Em menos de dez minutos estou em sua casa,

localizada em um bairro simples da cidade.


Assim que observo a construção antiga, imagino como

ficaria após uma reforma.

É uma das coisas que mais gosto de fazer na vida.

Pegar algo que está deteriorando e remodelá-lo.

Desço do carro e a porta se abre.

A figura arredondada e de rosto amistoso aparece e

antes que eu consiga adivinhar o que ela pretende, a

mulher pequena e doce atira-se em meus braços.

“Obrigada.”
Fico rígido, sem saber como agir.
Não fiz nada para obter reconhecimento. Eu só queria

retribuir um pouco da dedicação com que ela cuidou de

mim.

“Não precisa agradecer.”

“Preciso sim.” - diz, chorando. - “Ele está respondendo

muito bem ao tratamento. Eu não sei se ainda estaria

comigo se não fosse por você.”

“Eu não fiz esperando agradecimento.”

Depois que saí do hospital, quis saber sobre a vida de


quem ficou ao meu lado durante o tempo em que estive

internado e ao pesquisar, descobri que seu neto tinha um

tipo raro de câncer e que não havia qualquer esperança de


que seu seguro saúde o cobrisse, então resolvi custeá-lo

em retribuição.
O combinado com o hospital era de que seria uma

doação anônima, mas então eu já deveria esperar que


Célia não pararia até descobrir tudo.
Ela afasta-se para me olhar.
“Você está muito bonito.” - diz e aperta minha
bochecha.

Balanço a cabeça sorrindo.


Ela é uma das poucas pessoas que tem coragem de se

aproximar de mim sem fazer caso da minha expressão de


desdém para o mundo.
“Onde está o bolo que me prometeu?” - respondo,

tentando distraí-la - “Estou morrendo de fome.”

Olho para o relógio e vejo que já passa das oito.

Dei a Clara quase duas horas, então tenho esperança


de que seja suficiente.
Estou ansioso enquanto dirijo para o hospital. Ela não
enviou mensagem como havia prometido.

Quando chego ao corredor, não há mais ninguém em

frente ao quarto como pela manhã.


Hoje quando chegamos, encontramos uma garota loira
pequena e um cara moreno que parecia pronto a morder
qualquer um que se aproximasse dela. Soube por Clara

que era a irmã de Ethan e o marido.


Um pouco receoso de que Isabela esteja dormindo,
resolvo chamar uma enfermeira e pedir informações.
Uma senhora de uns sessenta anos diz que todos já
foram embora, mas eu ainda insisto e pergunto se há

alguém no quarto.
Somente o marido - segundo ela.
Como se notando vozes no corredor, Ethan aparece.
Seu semblante não é mais fechado como da primeira

vez em que nos encontramos, no entanto, ele está longe


de me dar boas-vindas.
Mas quem sou eu para julgar o mau humor alheio
quando não suporto a maior parte da humanidade?
“Clara?” - pergunto sem cumprimentá-lo.

Ele avalia-me por um instante.


Já entendi o que se passa com ele.
Isabela é o centro do seu mundo e ele sabe o papel da
irmã na vida da esposa, então sua desconfiança contra

mim é natural. Em seu lugar eu não agiria diferente.


“Foi embora.”
Eu ainda tento, apesar de já saber a resposta.
“Ela deveria ter me esperado.”

Ele dá de ombros como se tanto fizesse e a seguir vira


as costas, mas então volta-se e completa.
“Vá atrás dela então. Ela não precisa de espaço nesse
momento. O tempo está contra você.”
Sem dizer nada mais, volta para o quarto.

Suas palavras ficam girando em minha cabeça e sei


que chegou a hora de tomar uma decisão.
Tenho mil razões para deixá-la ir, mas uma voz dentro
de mim diz que se eu não sequer tentar, me arrependerei

para sempre.
Eu tenho o seu endereço.
Sei quase tudo sobre ela já há algum tempo porque
esse é quem sou. Um obcecado que se cerca de
informações e planeja, apesar de que com Clara, nada

segue um roteiro.
Entro no carro determinado a convencê-la a voltar
comigo para a cabana.
Clara é jovem e está sofrendo, mas não é nem de longe

a garota frívola e superficial que mostra ao mundo.


Envolver-me com ela é iniciar uma jornada ao
desconhecido, mas estou cansado de recuar.
Mando uma mensagem, mas não há qualquer resposta.

Desço do carro e toco o interfone, mas porteiro me


informa que ela esteve lá há cerca de uma hora e tornou a
sair.
A ansiedade de vê-la agora foi substituída pela
preocupação de que faça algo parecido com o que a levou

a ser internada e a necessidade de protegê-la toma o


controle.
O negócio é que não sei nem por onde começar a
procurar.
Arthur?

Não, ela não teria ido encontrá-lo. Não senti qualquer


vibração da parte dela quando ele esteve lá em casa.

Depois de pesar todas as possibilidades, resolvo ligar

para Ethan.
“Você sabe onde ela está?”

“Vou enviar o endereço.”

“Endereço?”
“Eu tenho alguém monitorando-a o tempo todo.”

“Tudo bem.” - respondo, apesar de achar aquilo


estranho para caralho.

“Lucas?”
“Sim?”

“Cuide dela.”
21

Clara

Entrei no hospital sem saber o que estava me

esperando, a cabeça ainda nublada da conversa com

Lucas.
Eu não sei se entendi o que ele disse no carro agora há

pouco.

Estou cansada de tentar decifrar cada pequena troca

entre nós, então acabo de decidir que vou deixar que as

coisas sigam o rumo natural.

Não há muitas maneiras de eu sair mais quebrada do


que já estou.

Bato na porta do quarto um pouco ansiosa.

Nunca fui eu aquela que apoia e a possibilidade de algo

acontecer com Bela ou o bebê me apavora.


Assim que entro, vejo minha irmã recostada a alguns

travesseiros. Seu rosto está coberto de suor e a expressão

é de dor.

É a primeira vez que nos olhamos desde aquele almoço

há quase um ano, quando então eu ainda não sabia de

nada e fui uma cadela egoísta.

Mesmo depois acordar da overdose, não abri os olhos

como a covarde que sou, então agora bebo sua imagem

com o coração cheio de saudade.


Eu me afastei de Bela por não perdoar a mim mesma

pelo modo como agi durante toda a vida com alguém que

só me deu amor.
Estou congelada no lugar e sinto que Ethan observa-me

atentamente, mas eu não me importo.


Ele não precisa gostar de mim, tudo o que eu quero é o

perdão da minha irmã.


Eu sempre fui de nós duas a que procurou contato
físico, mas agora não sei o que fazer para acabar com o
abismo entre nós.
Então ela me surpreende ao, sem falar qualquer coisa,

abrir os braços para mim.


Mesmo ainda receosa, caminho até onde está e aceito

a oferta generosa da única pessoa que eu sei que, não


importa o que aconteça, sempre me amará.
Não entendo como ela consegue gostar de mim quando

eu mesma mal posso me olhar no espelho.


Então, mesmo achando que não mereço, me aninho

nos braços da minha Bela.


Meu corpo treme violentamente. Toda a emoção que

sufoquei durante o tempo distante finalmente vindo à tona.


Só que eu sei que não é o momento ideal para

conversarmos. Vim aqui dar suporte e não para ser


consolada. Ela passou a vida sendo a minha fortaleza.

Chegou a hora de tentar retribuir, nem que seja um pouco.


“Será parto normal?” - não entendo muito sobre bebês,

mas desde que soube que ela estava grávida, andei


pesquisando.
“Sim, ele está com pressa de vir.”

Sua voz soa calma, apesar de eu notar que está

sentindo dor e mais uma vez, penso como minha irmã é


forte.
“Vocês já têm um nome?”
“Vários. Esse é o problema.” - ela ensaia uma risada.

Ficamos mais uns minutos conversando quando ela


subitamente dá um grito agudo e tanto eu quanto Ethan
nos pomos de pé.
“Vá chamar o médico.”
Saio da sala com as pernas bambas e pedindo a Deus

para proteger minha irmã e sobrinho.


Depois de examiná-la, o médico diz que está na hora.
Poucas vezes senti tanto medo na vida. Se acontecer
alguma coisa com ela, não poderei seguir em frente.
O bebê, um menino, nasceu saudável com três quilos e

seiscentos gramas.
É difícil acreditar que alguém delicado como Bela pôde
abrigar uma criança tão grande, mas então olho para o
lado e observo o gigante que é seu marido e chego à

conclusão de que não havia como um homem daquele


tamanho ter um filho pequeno.
O choro da criança é forte, determinado, como se
estivesse avisando ao mundo que chegou para marcar seu

território e mesmo um pouco insegura, me aproximo para


olhá-lo.
Deus, ele é a criança mais bonita que já existiu.
Pelo que andei lendo, os bebês nascem com os olhos
mais claros que vão mudando de cor com o tempo, mas os
do meu sobrinho são como os do pai, quase negros. A pele
branca e o cabelo loiro, no entanto, seguiram os traços da

nossa família.
Assim que chego perto da cama, ela sorri e oferecendo
a mão, puxa-me para junto de si.
Ethan está do outro lado, protegendo ambos como um
falcão, o que me tranquiliza. Sei que com ele, minha irmã

sempre estará segura.


“Quer pegá-lo?”
“Sim.”
No momento em que tenho o pequeno em meus

braços, ele abre os olhos, me encarando.


É normal que um bebê encare as pessoas desse jeito?
“Tristan.”
“O quê?”

Só depois que ouço a pergunta da minha irmã é que


noto que disse em voz alta o nome que pensei.
“Nada.” - disfarço, envergonhada - “Ele é perfeito, Bela.”
“Eu gosto de Tristan.” - Ethan fala, surpreendendo-me.
“Tristan.” - Bela repete como que testando. - “Sim, acho

que você acaba de ganhar um nome, meu filho.”

Sigo para encontrar Lucas.

Não imaginei que ele ficaria me esperando, mas a cada

vez que saí do quarto, ele estava no corredor.


Agora fala ao telefone e eu paro a alguns passos de

distância.
É a primeira vez que o vejo conversar com alguém sem

parecer entediado.

Age totalmente diferente do Lucas que eu conheço, a


postura relaxada e talvez por isso, não consigo me impedir
de ouvir.

“Sempre tenho tempo para você. Nos veremos daqui a


pouco.”

Um segundo depois, já estou arrependida.

Não preciso de super poderes para saber que está


falando com uma mulher e uma dor quase física me atinge.

Nunca gostei o suficiente de um cara para ter ciúme,


mas sinto vontade de tirar o telefone de sua mão e dizer

que ele é meu.

Quem será do outro lado?


Deus, sou patética.

Dentro da minha cabeça tola pensei que a única pessoa


a ocupar seu coração seria Samantha - o que por si só já é

uma merda, mesmo ela estando casada e sendo mãe -

mas é óbvio que alguém com a aparência dele tem uma


legião de mulheres atrás de si.

Quero sair correndo, no entanto, antes que possa fazê-

lo, ele vira.


Procuro qualquer traço de culpa em seu rosto, mas ele
age como sempre, o que me deixa mais puta.

“Que horas devo voltar para apanhá-la?” - pergunta e


quase rio.

Será que pensa que ficarei passivamente esperando

até que volte do seu encontro com outra?


Preciso sair daqui, antes que acabe me humilhando

ainda mais.

“Eu enviarei uma mensagem.” - digo.


De jeito nenhum.

Vou me despedir de Bela e a seguir, tentar fugir um


pouco da porra da minha mente.

A última coisa que necessito é ser a terceira opção na vida

de alguém.
22

Lucas

Uma boate?

Olho o endereço que Ethan acaba de enviar sem querer

acreditar que meus maiores temores se tornaram realidade


- que ela irá afundar novamente em meio ao caos em que

estava quando me visitava no hospital.

O que diabos desencadeou isso?

Será que foi rever Isabela? O nascimento do bebê?

Seu comportamento não faz o menor sentido. Ela

parecia feliz por estar perto da irmã.


Estou irritado para caralho e não consigo avaliar sequer

qual é a razão mais forte.

Ela deveria ter me esperado como combinamos.


Eu a assustei quando disse que queria ficar em sua

casa?

Não, Clara não é assim.

Ela é jovem e talvez um pouco confusa, mas não é o

tipo de garota que permite que a forcem a fazer o que não

quer. A maior prova disso, foi sua reação a Arthur lá na

cabana.

Ele parecia muito seguro, talvez ainda baseado na

paixão que ela sentiu, de que Clara o obedeceria sem criar


qualquer problema e tenho que admitir que surpreendeu a

mim também a maneira como o tratou.

Não, não foi por medo que ela fugiu de mim.


Aconteceu alguma coisa.

A temperatura baixou e só agora me dou conta de que


estou apenas com um suéter fino por cima da camiseta,

mas a adrenalina comanda meu corpo enquanto saio do


carro. O ar frio da noite não me incomoda.
A frente da boate está lotada, com uma fila interminável,
mas o dono da Hazard, Beau, é um conhecido de longa

data. Já estive aqui mais vezes do que posso lembrar,


então preciso apenas de dois minutos de conversa até

conseguir entrar.
Nem presto atenção às pessoas a minha volta.
No passado, eu já estaria analisando a próxima - ou as

próximas, melhor seria dizer - mulheres para levar comigo


no fim da noite.

Hoje, é só uma que eu quero.


A boate tem três andares, mas sei que a maior chance

de achá-la será na área vip.


É onde as pessoas do nosso meio geralmente ficam,

tomando uma distância seletiva do resto dos mortais.


Parece arrogância, mas é a realidade. A própria boate

nos direciona para lá porque as revistas de celebridades


estão esperando de boca aberta pela próxima fofoca que

destruirá a reputação de alguém.


Porra, daria qualquer coisa para não ter que entrar, mas
não há maneira de que eu saia sem levá-la comigo.

O cheiro de cigarro e álcool me incomodam.

Apesar de ter tido uma vida selvagem boa parte da


minha existência, nunca usei drogas ou fui de beber.
Jamais precisei do que quer que fosse para entorpecer
meu cérebro. Sou louco o suficiente a minha própria

maneira.
A música está alta demais e minha cabeça dói. As luzes
fazendo-me piscar.
Não suporto multidões desde que saí do coma.
Ando sem parar pelo ambiente à procura do seu cabelo

loiro platinado e quando finalmente a vejo, não quero


acreditar.
Clara está dançando em cima de uma mesa com um
copo de bebida na mão e pelo menos seis caras ao seu

redor acompanhando a performance.


Ela usa um vestido curto, branco que deixa suas costas
totalmente nuas e a cada movimento dos quadris, a saia
sobe perigosamente.

Eu nunca senti tanto ciúme em minha vida.


Apesar de toda a neurose na época em que namorei
Samantha, agora percebo que ela jamais me deu um
motivo real para me preocupar.

Mas Clara? Ela está aqui intencionalmente.


Parte de mim diz para ir embora e deixá-la viver a vida
do jeito que acha que deve, mas a outra grita para que eu a
tire de lá porque ela é minha.

Por mais que tente me convencer de que vim para


protegê-la de fazer alguma loucura, isso é mentira.
Essa é apenas uma das razões.
O sangue ferve dentro do meu corpo, tornando meus
pensamentos confusos enquanto me aproximo da mesa,

juntando-me, ainda que involuntariamente, à fila de


admiradores.
Tomo algumas respirações e cruzo os braços à espera
de que ela me veja, ao mesmo tempo em que estou

hipnotizado pelo movimento sensual do seu corpo.


Percebo o exato momento em que nota a minha
presença.
Ela congela, mas quando penso que venci, volta a
dançar, como que me desafiando.

Ergue os braços deixando a saia subir mais alguns


centímetros.
Os aplausos dos caras me fazem querer matá-los.
“Desça.” - falo apenas movendo os lábios.

Ela me encara em uma batalha de vontades, mas não


cede.
Faço um gesto chamando-a com o dedo.
Ela hesita, mas como eu imaginava, sua imprudência

leva a melhor e depois de alguns segundos, inclina-se para


falar comigo.
Seguro-a pela nuca, enquanto sussurro em seu ouvido.
“Nós vamos sair daqui em cinco segundos. Você pode
escolher a maneira que deseja ir. Andando como uma boa

menina ou sobre meus ombros.”


Ela poderia me afastar, mas ao invés disso, sinto seu
corpo estremecer enquanto a orelha oferece-se ainda mais
a minha boca.
Estou um pouco tonto de raiva e desejo, nenhuma parte

de mim conseguindo pensar com clareza.


Ela está de joelhos em cima da mesa e sei que todos

ao redor prestam atenção à cena.

Afastando-se um pouco, ela olha em meus olhos e


sacode a cabeça.

Está negando-se a vir?

“Você bebeu?” - pela lei eles não poderiam lhe servir


álcool, já que Clara não tem vinte e um anos completos,

mas sei também como as boates podem facilmente ignorar


regras.

“Não.”
“Não minta.”

“Eu não estou mentindo. Estou bebendo água com gás,


apesar disso não ser da sua conta. Não sou nada sua.”

E é isso.

A resposta debochada é a gota que faltava para libertar


minha loucura.

Puxando sua cabeça para mais perto, beijo sua boca


sem qualquer delicadeza. Chupando, mordendo, tomando-

a profundamente até sentir que ela se desmancha em

minhas mãos. Somente quando os braços estão em volta


do meu pescoço, diminuo o ritmo.

Meu coração está muito acelerado e decido que já dei


toda a oportunidade de que ela precisava, mas ainda

assim, tento uma última vez.

“Vamos embora.”
Para minha surpresa, mesmo após o beijo, ela move a

cabeça de um lado para o outro.

Dessa vez, não meço as palavras.


“Você quer foder? É essa a razão de estar dançando
em cima de uma mesa? Eu posso lhe dar isso.”

Penso que ela vai ficar louca com o que eu disse - me


xingar, empurrar ou algo assim - mas ao invés, ela toma a

iniciativa do beijo dessa vez.

Os aplausos e risadas parecem distantes e eu não dou


a mínima.

Mesmo com o tanto que já vivi, sempre fui um cara

discreto, mas agora não me importo se a porra do mundo


inteiro estiver nos observando desde que eu consiga levá-

la comigo.
Pego-a no colo e enquanto andamos para a saída,

posso ver os flashs das câmeras dos paparazzi.

Só que a única coisa que importa é que eu a tenho


onde quero.

Em meus braços.
23

Clara

Estou tão puta comigo mesma.

Eu fiz isso outra vez - fiquei a fim de um cara que não

me quer realmente.
Como se eu já não tivesse merda o bastante ao meu

redor.

Foda-se.

Chamo um Uber e vou até o meu apartamento.

É estranho voltar em casa depois de tantos dias

vivendo na cabana.
É muita loucura que eu não veja mais isso aqui como o

meu lar?

Estou tentando ser forte, mas está doendo para cacete.


Sei que não posso mais morar com Lucas depois de

hoje. Não deixarei que ele destrua o pouco de autoestima

que me resta.

Deus, o apartamento agora parece tão solitário.

Pensar que terei que acordar sem a paisagem linda ou

o canto dos pássaros me dá vontade de chorar, mas o que

machuca mesmo é saber que não o verei mais.

Não estou pronta para me afastar ainda, mas não há

alternativa.
Vou esperar somente que Bela e Tristan estejam bem

acomodados em casa e comprarei a passagem para a

França.
Há mensagens na secretária eletrônica do telefone fixo

e enquanto abro a geladeira para pegar uma água, escuto-


as recostada ao balcão.

Repórteres pedindo entrevista sobre Gregory.


Apago-as rapidamente.
Ex-amigos perguntando das novidades.
Leia-se - querendo saber quando darei um novo
vexame.

Nos últimos meses tenho aparecido frequentemente em


fotos nos tabloides e a maioria não é muito lisonjeira.

E por fim, Arthur.


Ele reclama que não respondo as mensagens de celular
e honestamente, eu já estou de saco cheio de suas

demandas.
Alguma coisa mudou na forma como eu o via.

Não é só a chegada de Lucas. É o próprio Arthur quem


me chateia mesmo.

Vou tirando a roupa pelo caminho para o banheiro e


quando passo em frente ao espelho fico admirada como o

meu corpo mudou nesse tempo que passei longe de casa.


Já ganhei algum peso e minha pele voltou a ter um

aspecto saudável, assim como o cabelo.


Será que ele me acha bonita ou a atração era somente

por eu ser a única mulher por perto?


Não pense nisso, idiota. Nada de sentir pena de si
mesma.

Além do mais, que diferença faz quando o coração dele

está ocupado por outra - ou outras?


Depois do banho, seco o cabelo rapidamente e decido
que não quero ficar sozinha hoje.
Já lidei com a rejeição de Arthur por tempo demais para

continuar aceitando esse tipo de merda de Lucas.


Visto-me e após colocar alguns cartões de crédito e
documento em uma bolsinha, saio deixando o celular em
cima da bancada.
Não estou afim de ter alguém me monitorando.

Nem Ethan e nem Lucas, com seu fodido jogo de


quente e frio.
Irei à procura de quem realmente queira estar comigo,
mesmo que seja apenas por uma noite.
A Hazard - a boate mais famosa da cidade - não é tão

divertida como eu lembrava.


Na verdade, começo a considerar que foi um erro vir.
Poderia ter ficado com meia dúzia de caras se eu
quisesse e há alguns meses, provavelmente já teria saído

com um, mas agora estou travada porque nenhum deles é


Lucas.
Pensei que bastaria entrar aqui e tudo seria como
antes: que eu beberia até quase perder a consciência e

então me entregaria nos braços de um corpo sem rosto.


Mas então lembrei de Tristan.
Meu sobrinho lindo e tão inocente.
Ele lendo nos jornais quando crescer que sua tia era
uma vadia.
Isso instantaneamente me freou.
E agora, a despeito de estar dançando em cima de uma

mesa como no passado, não sou a mesma de algumas


semanas atrás.
Olho para os caras à espera de que eu dê uma
pequena abertura para se aproximarem e só vejo o rosto
de Lucas.

Então, parece um sonho quando giro, entre uma batida


da música e outra e ele está olhando para mim.
Minhas pernas tremem e tenho medo de que perceba.
A rigidez de sua postura me diz que ele está zangado.

“Desça.” - leio em seus lábios e um arrepio atravessa


meu corpo.
Sua atitude dominadora me mata de tesão.
Ainda assim, não obedeço.

Ele me chama com o dedo e não consigo mais lembrar


das razões pelas quais eu deveria me afastar.
“Nós vamos sair daqui em cinco segundos. Você pode
escolher a maneira que deseja ir. Andando como uma boa

menina ou sobre meus ombros.”


Deus, seu autoritarismo não deveria me deixar excitada,
mas faz.
Tentando recuperar um pouco de racionalidade, sacudo
a cabeça negando, apesar de saber que meu corpo já

decidiu por mim.


Sei que estou desafiando-o e também sei, pelo pouco

tempo de convivência que tivemos, que essa não é uma

boa ideia, mas não aguento mais o seu autocontrole


enquanto eu não consigo estar ao seu lado sem que meu

cérebro vire gelatina.

Não estou preparada para a maneira possessiva com


que ele toma minha boca e mesmo ajoelhada, sinto as

pernas fracas.
Nunca fui beijada assim.

Lucas não deixa espaço para que eu recue.


É como se cada célula dele exigisse uma reposta e eu

não consigo fazer nada além de me entregar.


“Vamos embora.” - pede e nego outra vez, mas na

verdade eu nem sei para o que estou dizendo não.

“Você quer foder? É essa a razão de estar dançando


em cima de uma mesa? Eu posso lhe dar isso.”

Apesar das palavras rudes, ele está me oferecendo o


que tenho desejado nos últimos dias e ainda que uma voz

avise que estou escolhendo o pior caminho possível, isso

já não está mais em minhas mãos.


24

Clara

Fecho os olhos recostada em seu ombro enquanto

saímos da área vip da boate.

Por que tem que parecer tão certo estar em seus


braços?

A pele de Lucas é quente e por um instante, faço de

conta que sou sua garota e nós estamos indo passar a

noite juntos porque não conseguimos resistir a atração

mútua.

Infelizmente, minha imaginação não é tão fértil assim e


após alguns passos, lembro do motivo de eu ter fugido dele

hoje.

“Ponha-me no chão.” - Falo perto do seu ouvido porque

a música está alta demais.


De repente, toda a situação parece absurda e sinto

vergonha de mim mesma por ter cedido tão facilmente.

Sou uma imbecil carente!

Ele para de andar e me olha.

Mesmo na iluminação fraca da boate, posso ver suas

dúvidas, mas finalmente acata meu pedido.

“Você não vai voltar para lá.” - a voz soa contida e eu

sei que estou brincando com fogo, mas também estou

muito chateada.
“Por que não? Sentiu-se solitário? Seu encontro não foi

suficiente?”

Assim que termino de falar, tenho vontade de me


esmurrar.

Jesus Cristo, será que jamais cansarei de me humilhar?


Envergonhada até o último fio de cabelo, solto da mão

que segura meu braço e ando de volta para o lounge.


Preciso ficar sozinha ou quebrarei na frente dele.
Sinto vontade de gritar e chorar.
De sair correndo e só parar quando minhas pernas
perderem a força.

De tomar um vidro inteiro de pílulas e só despertar


novamente daqui a um ano.

Entro no banheiro e viro para trancar a porta, mas um


pé me atrapalha.
Só então noto que Lucas me seguiu.

Seu olhar está meio louco, mas ainda assim não tenho
medo.

Não temo a loucura, mas a indiferença. É disso que


tenho fugido a vida toda.

Ele não desvia os olhos dos meus, enquanto bate a


porta do banheiro atrás de si e gira o trinco.

Recuo instintivamente.
Não estou assustada, mas muito embaraçada por

deixar meu ciúme vir à tona.


Meu afastamento não o para, o que causa uma mistura

de excitação e receio porque consigo vislumbrar o Lucas


de antigamente.
Só agora percebo como ele vinha segurando seu

temperamento comigo.

“Eu não quero conversar.” - falo, enquanto ainda tento


manter alguma racionalidade.
“Nós não vamos conversar.” - sua voz soa calma, mas
eu posso ver a agressividade por trás de cada palavra e

um arrepio de luxúria desce pela minha coluna.


Mas mesmo morrendo de vontade de pagar para ver,
uma parte minha sabe que se eu o provar, afundarei
irremediavelmente na atração que sinto, então viro as
costas, tentando entrar em uma das cabines.

Não consigo sequer alcançar a porta e ele já está lá


dentro comigo.
Ele prende meus braços acima da minha cabeça e
nossos olhos se bloqueiam.

Sua pegada não é suave.


Ele não está brincando.
A boca se aproxima tanto que sinto o calor de sua
respiração.
Tenho que falar algo para quebrar o transe sensual.

Estou louca de desejo.


“Você não respondeu à pergunta.” - provoco.
“Isso porque ela não merece uma reposta.”
Suas palavras me fazem ferver novamente.

Cretino arrogante.
Quem ele pensa que é para sair com uma mulher à
tarde e agora vir aqui como se tivesse qualquer direito
sobre mim?

“Ah, seu silêncio é a melhor resposta. Quer dizer que


seu encontro não deu conta de saciá-lo e você precisa de
mais uma rapidinha antes de dormir?”
As palavras me machucam para caralho somente por
imaginar que é isso que sou para ele.

Ele me olha, parecendo pensar.


Quando estou esperando que diga que aquilo não é da
minha conta, ele toma minha boca em um beijo selvagem.

Hesito apenas por segundos antes de corresponder


apaixonadamente. Toda a determinação de me afastar,
esquecida.
Mesmo com as mãos presas, meu corpo ondula de
encontro ao dele.

Gemo em sua boca.


Ambos estamos descontrolados e sinto sua ereção
roçando meu ventre.
A seguir, a mão livre me puxa pela bunda.

Ergo uma perna em volta da sua cintura trazendo-o


para mim.
“Não existe ninguém.” - ele se afasta e sussurra em
minha boca.

Estou tão entorpecida de desejo que custo a lembrar do


que ele está falando.
Nada mais importa além da minha necessidade por ele.
“Eu não quero ouvir isso.”
“Mas precisa.” - diz e me beija outra vez, deixando-me

tonta. - “Não quero ninguém além de você.”


Ele sobe meu vestido e deixa a mão pousar sobre
minha calcinha.
“Ahhh…” - eu não queria me entregar tão rápido, mas o
desejo rouba qualquer bom senso.

“Você gosta disso?” - ele me provoca - “Eu posso sentir


pelo seu calor que você já está pronta para mim.”

Seus dedos brincam com o elástico da calcinha,

prometendo sem concluir o caminho e meus neurônios


viram mingau.

“Sim.”

“Sim?” - ele repete e finalmente a mão escorrega para


dentro da lingerie - “Ah, eu posso ver o quanto você gosta.”

- diz tocando-me e eu estremeço forte.


“Oh, Deus.”

“Eu quero provar você, Clara.”


Eu nunca estive com um cara que me fizesse perder a

cabeça.
Lucas é como a mais deliciosa fantasia sexual virando

realidade e quase desmaio quando ele se abaixa e sem

sequer terminar de tirar minha calcinha, mostra-me o


quanto me deseja.

Fico na ponta dos pés para pegar mais do que eu


preciso.

Como se meu desejo aumentasse sua urgência, ele

rasga a peça.
Eu monto seu rosto sem qualquer resquício de

vergonha.
“Doce Senhor!” - gemo, oferecendo-me cada vez mais.

Meus suspiros parecem estimulá-lo.

“Tão gostosa, porra.”


Eu tremo com a crueza de suas palavras, dando mais

um passo em direção ao orgasmo inevitável.

“Mais. Estou tão perto.”


Ele ergue minhas duas pernas sobre seus ombros e
agora não tenho mais qualquer apoio.

Lucas me devora como se não pudesse ter o suficiente


e sei que mesmo que eu viva cem anos, jamais esquecerei

dessa noite.

São muitas sensações de uma só vez e precisando


estreitar nosso contato, passo a mão em sua cabeça

raspada incentivando-o a pegar mais de mim.

Ele não para até os tremores em meu corpo cessarem e


ainda assim, beija e mordisca minha coxa.

Eu estou em transe pelo orgasmo de tremer a Terra,


mas meu tesão não está nem perto de passar.

“Eu quero você.” - falo, quando ele finalmente me

coloca de volta em meus pés.


“Eu não vou tomá-la às pressas, em um banheiro.”

Ele me dá um beijo suave nos lábios e coloca uma


mexa do meu cabelo atrás da orelha.
O gesto de carinho me assusta mais do que se ele

tivesse atendido meu pedido e me possuísse sem qualquer


delicadeza.

Eu não quero que ele seja bom para mim.

Sou estúpida o bastante para me apaixonar em tempo


recorde.

Então, tentando quebrar a magia do momento, opto por


ser uma vadia, reduzindo a melhor experiência sexual da

minha vida a nada.

“Não seria a primeira vez para qualquer um de nós.”


Antes de terminar a frase, sei que atingi o alvo.

A expressão dele muda instantaneamente.

O rosto lindo, que antes deixava transparecer toda a


paixão, agora mostra a escuridão que ele tem dentro de si.

Os movimentos são rápidos e brutais.


Em um segundo ele me encara com o olhar totalmente

vazio e no seguinte, as mãos abrem o botão e depois

descem o zíper da calça.


Apesar de me sentir um pouco mal, olho fascinada
enquanto ele retira o membro rígido da cueca boxer e

ergue-me, colocando minhas pernas em volta da sua

cintura e entrando em mim sem aviso.


Gememos alto.

Nunca me senti tão perfeitamente preenchida em minha


vida e não demoro nada até começar a cavalgar seu corpo

para satisfazer a ânsia de possuí-lo tanto quanto ele me

possui.
Não estamos fazendo um sexo amoroso, mas

necessitado.
Olhamo-nos nos olhos e de repente tê-lo dentro de mim

não é o suficiente. Querendo aumentar a intimidade, busco

sua boca.
Para minha surpresa, ele se afasta.

“Não.”

Olho-o confusa e a seguir, um pouco insegura.


Ele não diminui o ritmo com que está me tomando, mas

não há qualquer vínculo em nosso ato além do contato


entre os sexos.

“Estamos transando como ambos já fizemos tantas

vezes, não é? Então, nada de beijos. Eu não beijo minhas


fodas de fim de noite.”

As palavras me acertam em cheio e mesmo sabendo

que as mereci, tento descer do seu corpo.


Mas então ele passa a mexer os quadris em um ritmo

lento e profundo, fazendo com que o sinta em partes que


eu nem sabia que existiam em mim.

Esquecida da mágoa, sigo sua dança, deixando-o me

ensinar o que gosta.


Estou totalmente exposta, mas não quero me esconder.

Então, mudo a forma quase violenta com que estava


correspondendo a sua posse e espelho seus movimentos,

querendo arrastá-lo para minha loucura.


“Goze de novo para mim.” - a voz já não demonstra
raiva e em pouco tempo, me derreto para ele em outro

orgasmo.

“Você está tomando pílula?”


Eu estou, mas jamais permiti algo tão íntimo.

Antes que eu responda, ele completa.


“Eu quero enchê-la.”

Tenho certeza de que nunca ouvi nada tão sexy em

minha vida e sei que no momento, não há maneira que eu


vá conseguir me impedir de viver aquilo.

“Sim, eu estou. Faça. Eu quero sentir você.”


25

Lucas

Ela está apagada, enquanto dirijo para o meu

apartamento.

Desde que passamos a conviver, nunca a vi tão serena.


O rosto bonito relaxado de todas as tensões que a tem

atormentado por meses.

Minha vontade é de pegar a estrada de volta para a

cabana agora mesmo, porque tenho medo de que se não o

fizer, tentará ir embora novamente. Só que ela

provavelmente vai querer ver o sobrinho amanhã.


Clara achou que eu estava com outra mulher.

Como chegou a essa conclusão?

Repasso mentalmente o dia de hoje, mas não consigo

pensar no que fiz para levá-la a acreditar nisso.


E então eu me lembro.

O telefonema.

A expressão em seu rosto no corredor.

Célia.

Ela pensou que a enfermeira era uma das minhas

antigas amantes.

Nós não conversamos após o sexo explosivo e não

estou pronto para analisar o que vivemos.

Não. Isso é mentira.


Eu não consigo analisar ainda.

Mesmo depois de gozarmos, depois de tê-la trazido

para o carro e sua pele não estar mais em mim, eu a sinto


em cada pedaço do meu corpo.

Eu nunca transei sem preservativo, tanto por causa da


quantidade de parceiras que tive, como por medo de

engravidá-las.
Também jamais perdi o controle durante o sexo.
Não importava quanto desejo estivesse sentindo, meu
lado racional sempre dominou.

Agora? Minha cabeça está dando nós.


Com Clara, me entreguei totalmente.

Não havia nada além da necessidade de possuí-la.


Apesar da minha mente jogar comigo sobre o fato de
que ela não me pertence, não consigo manter esse

pensamento quando estamos juntos.


É o pior momento possível para nos envolvermos e isso

não só porque somos uma bagunça nesse instante, mas


pelo o que virá em meu caminho em pouquíssimo tempo.

O julgamento de Christian.
Não tenho a menor dúvida de que os repórteres

acamparão em minha casa vinte e quatro horas por dia.


É uma boa coisa que só Arthur e Clara saibam da

existência da cabana.
Não.

Ethan provavelmente também sabe.


Ele vigia a cunhada, então não há possibilidade de que
não tenha conferido onde ela passou as últimas semanas.

Assim que o julgamento começar, estarei no olho do

furacão e se ela estiver comigo, será arrastada junto.


Não é justo que pague pelos meus pecados.
Paro no sinal e a vontade de tocá-la é irresistível.
Tranco as mãos no volante para me impedir.

Não sei para onde estamos indo ainda e não quero


confundi-la - ou a mim mesmo.
A coisa é que com ela, nos poucos minutos roubados
no banheiro da boate, eu me senti inteiro.
Mesmo com Sam, ainda no início do namoro onde as

coisas pareciam quase perfeitas, nunca experimentei uma


ligação tão forte.
Agora sei que Samantha nunca se entregou
totalmente.

Nós não estávamos destinados.


Já com a garota linda adormecida ao meu lado, a
despeito da raiva mútua no início da noite, cada pedaço
nosso estava conectado.

Eu deveria me afastar.
Ela é nova demais para mim e está atravessando um
inferno, mas não quero desistir do que poderíamos ser.
Saindo do carro, dou a volta para pegar minha beleza

adormecida. Clara não pesa nada.


Ela resmunga, mas a seguir os braços circulam meu
pescoço, aconchegando-se e como da primeira vez que a
tive tão perto, a sensação é boa demais.

Aperto o botão do elevador para a cobertura e de


repente, sinto-me fora do lugar.
Antes de chegar ao apartamento, sei que não pertenço
mais a aqui.
Minha cabana emana calor e grita lar por todos os

cômodos e agora, enquanto coloco o dedo no identificador


de digitais para abrir a porta, tudo parece árido e sem
graça.

Tenho cinco quartos e hesito em levá-la para o meu.


Por fim, escolho um dos de hóspedes.
Puxo o edredom macio que cobre a cama e deito-a com
cuidado.
Não posso ficar muito tempo olhando-a ou não

conseguirei ir.
Tomo um banho rápido, visto uma boxer e me deito sem
qualquer esperança de conciliar o sono, apesar da minha
mente estar exausta.

As luzes daqui do segundo andar estão todas apagadas


e no momento, a penumbra é bem-vinda.
Meu cérebro inquieto começa a me mandar verificá-la
para ter certeza de que está bem acomodada, apesar de

eu saber que não é uma boa ideia.


Nem levo muito tempo me debatendo porque a seguir,
ela entra no quarto.
Em silêncio, para ao lado da cama.
Sem qualquer hesitação puxa o vestido por cima da

cabeça, ficando completamente nua.


Sua desinibição mais uma vez aperta o botão certo.
Mal respiro, enquanto ela sobe na cama e deita-se
sobre o meu corpo.
Ela segura minhas mãos, fazendo com que eu a

abrace.
“Você me trouxe, então cuidará de mim. Não quero ficar

sozinha essa noite.”

E só agora percebo que eu também não.


26

Clara

Movo-me de um lado para o outro na cama imensa e de

lençóis macios, enquanto a noite de ontem passa como um

filme em minha cabeça.

Lucas acordou cada célula do meu corpo e isso é


assustador para caralho.

Eu não lido bem com vícios e sei que poderia

rapidamente ficar dependente dele.

No entanto, não consigo me preocupar no momento

sobre o quanto é arriscado mergulhar em nossa atração.

Não há nada de moderado em Lucas.


Ele é exigente, intenso e cada grama minha quer se

entregar.

Eu acordei quando ele me colocou na cama ontem e

sabia que o mais inteligente a fazer seria manter nem que


fosse uma mínima distância, mas meu corpo pensava

diferente.

Nosso relacionamento tem todos os ingredientes para

que eu me machuque feio, mas ainda assim, não consigo

resistir.

Enquanto ele me quiser, ficarei.

Tentarei me manter alerta. Quando notar o menor sinal

de que estou incomodando ou de que ele quer ficar

sozinho, partirei para a França.


Apesar do risco de acabar com meu coração em

pedaços, não há nada que eu deseje mais do que estar ao

seu lado.
Lucas amortece a dor.

De uma maneira estranha, sei que entende o que estou


sentindo, de como eu me odeio em alguns dias e ainda

assim, não me julga.


Ouço o chuveiro e me levanto.
Não faço ideia do que ele espera no dia seguinte ao
sexo, mas sei do que eu preciso - sua pele em mim.

Abro a porta e há uma cortina de fumaça, o que dá uma


atmosfera de sonho ao aposento.

Sei que ele pode me ver.


A despeito de eu estar nua, ele olha para o meu rosto
enquanto me aproximo.

Preciso tomar muito cuidado ou me apaixonarei.


Tudo nele me atrai.

É como se eu entrasse em um shopping center de


homem e encontrasse o cara que eu preciso prontinho.

Assim que o pensamento vem, me dou um chute


mental.

Ele não é seu. Aproveite o sexo incrível e deixe o


coração idiota longe da equação.

Empurrando a racionalidade para o fundo da mente,


dou mais alguns passos.

Ele continua imóvel por um instante, mas então abre-a.


“Eu não tenho nada a oferecer.”
Penso no que diz.

Sei que está me dando a opção de deixá-lo. Também

intuo que isso é o mais perto de se importar com alguém


que ele já chegou.
Suas palavras deveriam causar medo, mas ao
contrário, a honestidade me faz querê-lo ainda mais.

“Nem eu.” - Respondo, entrando sem esperar convite.

Nós tomamos o café da manhã e eu aguardo uma


mensagem de Ethan avisando que posso visitar Bela e
Tristan.
Ficamos quase duas horas transando. Primeiro no
chuveiro e depois no quarto.
Dessa vez, não houve nada de apressado. Foi como se

ambos quiséssemos estudar o corpo um do outro.


Eu nunca dei a mínima para o que os caras com quem
eu transava sentiam, mas com Lucas prestei atenção a
cada mudança de expressão.

Aprendi como seu maxilar tranca quando ele está


próximo a gozar, as mãos em mim aumentando a pegada.
Estou me tornando uma aluna aplicada no que diz
respeito a ele.

Sempre priorizei meu próprio prazer, mas o desejo de


satisfazê-lo é algo que não consigo combater.
Não sou ingênua. Sei que ele é experiente, mas
também sei agora, sem qualquer sombra de dúvidas, que
ele deseja meu corpo e que, pelo menos durante o ato, ele

é totalmente meu.
Adoro a maneira como me domina no sexo, me
guiando, intensificando o prazer de ambos, exigindo.

Lucas é totalmente envolvente, denso.


Nós não nos falamos em nenhuma das vezes que
transamos.
À exceção dos gemidos, sussurros e das vezes em que
provocávamos um ao outro com perguntas sensuais, não

houve promessa sobre dar continuidade ao que vivemos


hoje, mas no momento, não me importo. Vou me permitir
fantasiar que somos um casal conhecendo-se e não duas
pessoas quebradas sobrevivendo juntas, tentando não nos

afogar em um mar de culpa.


Porque sei que a culpa está tão presente dentro dele
quanto em mim.
Posso não conhecer sua história com Samantha como

eu imaginara ou o que aconteceu há poucos meses


durante o ataque perpetrado por Christian, mas não
necessito de todos os dados para ver que Lucas é
atormentado pelo remorso.

Tentando me concentrar em coisas mais leves, olho


para uma pintura abstrata perto da escada.
Já andei pelo apartamento inteiro e amo tudo o que
vejo.
A cobertura duplex parece um loft.

Do segundo andar, de qualquer lugar que você olhe,


consegue ver a sala e a cozinha.

Estou meio apaixonada pela estrutura.

Ele está sentado com uma caneca de café na mão e


sinto seus olhos em mim o tempo todo.

“Gosta?” - enfim, toma a iniciativa.

“Sim. Eu adoro seus dois lugares, apesar de ambos


serem tão contrastantes. Você os projetou?”

Estamos a cerca de cinco metros um do outro, mas a


energia flui em ondas entre nós.

“Sim, mas atualmente prefiro a cabana.”


Ele se levanta e começa a vir para mim e sinto as

pernas tremerem.
Apesar de estar vestindo a camiseta dele, seu olhar faz

com que eu me sinta nua.

Porra, ele é bonito demais.


Está apenas de cueca boxer, me deixando ver o

contorno do corpo sexy.


“Eu também.” - obrigo-me a responder.

Ele para a poucos passos.

“Você vai voltar comigo.”


Não falo nada em um primeiro momento, mas a

necessidade de alguma garantia leva a melhor.


“Por quê?”

Estou esperando que ele vá dizer algo arrogante que

me irrite e ao mesmo tempo, me dê a oportunidade de


despertar da teia sensual em que sempre me enrosca, só

que mais uma vez ele mostra que o que temos é diferente

de tudo o que já vivi.


“Venha. Não posso prometer nada, mas quero você
comigo.”

Sinto a forte vibração entre nossos corpos, ambos


precisando do contato.

Eu nunca fui acusada de ser prudente, então, passo os

braços em volta do seu pescoço.


“Não me importo. Eu não acredito em promessas, de

qualquer maneira.”

Suas mãos estão em meus quadris e nossos olhos,


trancados.

“Mas nunca minta para mim. Eu não estou pedindo por


um conto de fadas ou qualquer tipo de planos para o futuro.

Aceito que o que teremos será temporário, mas deixe-me

saber quando tudo estiver terminado.”


Ele me ergue em seus braços e passo as pernas em

volta da sua cintura, já completamente perdidos na atração


que sentimos.
“Não fuja mais. Eu não estive com ninguém ontem e

nem estarei enquanto estivermos juntos. O mesmo vale


para você.”

Eu beijo-o.

Agora sei que o que ele disse no banheiro da boate veio


da raiva, reflexo do que eu tinha falado, porque todas as

outras vezes em que transamos, ele me beijou sem parar.


“Enquanto durarmos, só haverá você.” - respondo.
27

Lucas

Observo-a, sentado em sua cama, enquanto ela veste-

se para irmos ao hospital.

Ela pediu para que viéssemos ao seu apartamento para


se trocar e também pegar mais roupas.

Passamos o dia todo na cama e eu não consigo ter o

suficiente.

As mulheres com quem me relacionei, cada uma delas,

uma vez satisfeito meu corpo, havia a necessidade de me

afastar rapidamente.
Não sou mesmo o tipo de ficar em torno de uma garota

uma vez alcançado meu objetivo.

Isso pode não ser muito bonito de confessar, mas ainda

assim, é a verdade.
Você deve estar se perguntando sobre Samantha, mas

também com ela, de uma certa maneira, meu desejo era

muito mais sobre querer dominá-la, não lhe dar espaço

para escapar - porque no fundo, eu sabia que estava

forçando uma situação insustentável a longo prazo.

Ela era suave demais para mim.

Com Clara, não consigo ir para longe.

E sabe o que é mais estranho? Sinto que ela é

totalmente independente e ainda assim, não se importa


que eu esteja ao seu redor como um stalker.

Ela está nua enquanto entra e sai do closet, totalmente

à vontade com a minha presença em sua casa e a maneira


como aceita minha necessidade de vigiá-la vai ao encontro

dos meus sonhos mais secretos.


Eu não sei pegar leve.

Tenho tentado me controlar porque não deu muito certo


da última vez em que fiquei obcecado por uma mulher, mas
não é uma tarefa simples.
Clara é um espetáculo para os olhos.
Ela é magra, mas tem a cintura fina e os seios cheios.

As pernas são longas e a pele macia.


Não há uma parte dela com a qual eu não esteja

familiarizado agora.
Passei horas testando cada uma de suas reações,
aprendendo o que gosta e a cada vez que transamos, sinto

uma intimidade crescente entre nós. Apesar do que


combinamos, não quero colocar um prazo final no que

temos.
Meu celular vibra com uma chamada e ela para o que

está fazendo para me olhar.


Não conheço o número, mas o nome consta da lista de

não atender, o que significa que deve ser alguma mulher


do meu passado.

Ela me encara e parece saber exatamente o que estou


pensando.

É como se me desafiasse a tomar uma atitude.


Eu toco o aparelho para recusar a ligação e solto-o em
cima da cama, cruzando os braços e encarando-a de volta.

“Eu não me importo se você atender.”

Suas palavras me irritam porque não quero sua


indiferença.
“Não?” - pergunto com ironia, deixando-a perceber que
não compro seu blefe.

Lembro bem de sua reação ao telefonema de Célia.


“Eu não.”
“Mentirosa.” - devolvo, sem qualquer piedade.
“Bastardo convencido.” - ela joga de volta, parecendo
furiosa e voltando a entrar no closet.

Sigo atrás dela um pouco puto agora porque ela me


deixou falando sozinho.
“Seu bastardo, baby.” - digo, enquanto abraço-a por
trás, deixando as mãos acariciarem os seios já totalmente

excitados.
Ela luta comigo por cerca de cinco segundos, tentando
escapar, mas a seguir, parece mudar de ideia e ainda de
costas, move a própria mão para trás de si, tocando minha

ereção por cima do jeans.


Louco de desejo, mordisco sua orelha e ela estremece
ao mesmo tempo em que desce o zíper da minha calça.
Ela gira em meus braços e então ajoelha-se.

Sem me dar tempo para pensar, desce meu jeans e


segundos depois toma-me tão profundamente em sua
boca, que receio não conseguir continuar de pé.
Eu sou sempre aquele no comando e ela me

surpreendeu totalmente.
“Você está certo.” - diz, me provocando - “Eu estava
mentindo. Não quero que mantenha contato com outras
mulheres.”
Não consigo mais impedir meus quadris de moverem-se

e minha reação a faz sorrir.


Ela sabe exatamente o quanto está me enlouquecendo.
“Enquanto estivermos juntos, você é só meu.”
Com qualquer outra mulher, a declaração me faria

gargalhar, mas apesar de ter uma porrada de defeitos, ser


um mentiroso não é um deles.
“Eu sou.”

Ela está no quarto com a irmã e o cunhado e eu espero


no corredor.

Não quis invadir a privacidade da família, apesar de


Ethan não demonstrar mais tanta animosidade comigo.
Então, fico surpreso quando vejo-a sair com um
pacotinho embrulhado em uma manta azul.
Eu sempre gostei de crianças e talvez por não estar
esperando aquilo, uma emoção totalmente nova me

invade, enquanto observo-a caminhar com o bebê nos


braços.
Ela parece apaixonada pelo sobrinho, mas então
lembro do que disse no hospital quando eu estava em
coma - que se engravidasse, faria um aborto.

Teria coragem?
Nós não usamos preservativos nenhuma vez e apesar

dela afirmar que está tomando anticoncepcional, nenhum

método é cem por cento seguro.


De repente, a necessidade de obrigá-la a um pacto,

cresce incontrolável.

Caminho para eles.


Olho a criatura pequena e tão perfeita e a seguir, para

ela.
“Prometa que caso engravide, me contará antes de

tomar qualquer decisão.”


Ela que estava focada no bebê, agora parece à beira de

um ataque de pânico.
“Do que você está falando?”

“Qualquer método anticoncepcional pode falhar.

Prometa.”
Ela me encara confusa, parecendo tentar entender de

onde veio aquilo.


A verdade é que nem eu mesmo sei, mas apenas a

possibilidade de que possa dar fim a um filho nosso sem

me deixar ter conhecimento, mexe com a minha cabeça.


“Prometa, baby.”

Ela olha para Tristan por um longo tempo.


“Sim. Prometo.”
28

Clara

Eu não quero pensar no que ele acaba de pedir e

enquanto coloco o bebê novamente no berço ao lado do

leito de Bela, tento não pirar.

“Preciso falar com você.” - a voz da minha irmã me traz


de volta à realidade.

Ela faz um movimento de cabeça para Ethan que, a

seguir, sai do quarto.

Seu tom mais do que suas palavras, me deixam

imediatamente em alerta.

“Eu não estou pronta para conversar sobre Gregory


ainda.” - respondo defensivamente.

“Não é sobre ele.” - minha irmã suspira, mas então

corrige-se - “Quero dizer, não totalmente. Não é sobre o

que ele me fez.”


Sinto-me mal por fazer com que Bela envergonhe-se do

passado. Ela não teve qualquer culpa do que aconteceu.

“Tudo bem.” - concedo por fim.

“Lembra das reportagens nos jornais sobre as meninas

que ele comprou?”

Sinto meu estômago embrulhar só de pensar nisso.

Todas as vezes que um pecado daquele daquele

desgraçado emerge, quero voltar no tempo e matá-lo

novamente.
“Sim.” - respondo de cabeça baixa.

“Existe uma garotinha, a que sobreviveu. Khayla[3].

Ela…" - sua voz fica subitamente rouca, o que me faz voltar


a encará-la - “ela foi vendida a ele.”

Bela seca as lágrimas e pela primeira vez, estamos na


borda de tocar no assunto que vem me assombrando há

quase um ano.
“Nós a trouxemos para a Confiar Outra Vez.”
Apesar de não manter proximidade, sei do que ela está
falando. Eu acompanho tudo ao seu respeito e sei que Bela

e a cunhada Lilly estão à frente de uma instituição para


recuperação de crianças abusadas.

Elas chamaram a atenção do país com sua dedicação e


trabalho sério.
Os jornais também nunca deixam de fazer um paralelo

sobre o fato de nosso pai ter sido um pedófilo e Bela


combater isso.

É como se ela tivesse se tornado um contraponto às


maldades de Gregory e a mídia não se cansa de elogiar

sua coragem.
Apesar disso, sei como os jornalistas, principalmente os

tabloides, funcionam e temo que um dia alguém consiga


trazer à tona tudo o que a minha irmã já sofreu.

Não quero que ela atravesse o inferno novamente. Não


agora que sua vida parece finalmente estar no rumo certo.
“Estamos tentando ajudá-la, mas não é tão simples. Ela
não conversa com ninguém além de mim e da psicóloga.

No começo, eu achei que era por causa da barreira do

idioma, mas ela aprendeu nossa língua rapidamente.


Então, só posso pensar que ela não quer interagir. Eu
entendo totalmente. Só que por outro lado, fico com medo
de que o isolamento dificulte ainda mais sua recuperação.

Ela já mudou muito desde que chegou, mas apesar disso,


não fica confortável com outros homens além de Ethan,
nem mesmo os funcionários da instituição. Eu visito-a
diariamente, mas agora com o nascimento de Tristan, não
sei quando poderei voltar. Então, eu queria pedir que você

fosse vê-la pelo menos uma vez por semana para que ela
não se sinta abandonada.”
“Bela…"
“Clara, escute-me. Sei que não é fácil para você. Não é

para mim também, mas se esconder não ajuda na cura.”


Analiso o que ela está dizendo, mas ainda não tenho
certeza se posso fazer aquilo.
“Vou pensar.”

Saio do quarto e vejo Lucas e Ethan sentados lado a


lado.
Eles não conversam, mas estranhamente, sinto uma
cumplicidade ali, como se estivessem bem na companhia

um do outro - o que é esquisito, já que cada um deles é um


pouco assustador a sua maneira.
Mas antes que eu possa chegar até onde estão, Arthur
aparece, interceptando meu caminho.
Eu nunca pensei que diria isso, mas seu rosto perfeito,
sem qualquer fio de cabelo fora do lugar, me aborrece cada

vez mais.
“Você não retornou os meus telefonemas.”
Pela visão periférica, vejo que tanto Lucas quanto Ethan
se levantaram.
“Eu não tinha nada para falar além do que já disse -

agradeço o convite, mas não vou ficar com você.”


Apesar da aparência impecável, ele não tem mais agido
comigo como sempre fez.
Toda a condescendência que me chateava durante a

minha adolescência se foi, dando lugar à irritação.


“Você não está pensando com inteligência.”
Conto mentalmente até dez não querendo acreditar que
ela acaba de me chamar de burra.

“Qual a parte do que ela disse você ainda não


entendeu?” - Lucas aparece ao meu lado.
Ainda assim, Arthur não olha para ele.
Ao invés disso, me encara e sacode a cabeça, com um
sorriso irônico.

“Isso só pode ser uma piada.”


Sinto a tensão de Lucas, mas o comportamento bizarro
de Arthur é o que me prende no momento.
“Piada? Talvez você queira compartilhá-la então,
amigo.“ - a despeito das palavras supostamente suaves, já

conheço Lucas o bastante para saber que está controlando


o temperamento.

Também noto que Ethan acompanha a cena

atentamente.
Quando Arthur finalmente responde, se dirige a mim.

“Você passou boa parte da sua vida me perseguindo e

agora que finalmente estou lhe dando uma chance, vai


bancar a difícil?”

As palavras debochadas são um contraste tão grande


com o cara pelo qual pensei estar apaixonada no passado,

que dou um passo para trás.


Meu movimento é exatamente o oposto ao de Lucas,

que no instante seguinte, está em cima dele.


“Nunca mais fale esse tipo de merda. Não importa o

que ela sentiu por você, não ainda é não e ela já lhe disse

isso vezes sem conta, idiota.”


Sinto-me mal por ele brigar com seu único amigo por

minha causa, mas ao mesmo tempo, estou abalada demais


para conseguir falar.

“Você acha que suas apostas serão melhores ao lado

dele?” - continua como se Lucas não tivesse dito nada -


“Será uma eterna substituta, Clara. Ele sempre foi e

sempre será apaixonado por Samantha.”


“Cale-se.” - Lucas diz, mas o estrago já está feito.

Arthur acaba de desmanchar a nuvem de ilusão em que

tenho me escondido nos últimos dois dias.


O que ele falou não é nada mais do que a verdade.

“Por quê? Ela precisa saber onde está se metendo.”


Lucas segura-o pela camisa, mas Ethan surge ao seu
lado, pondo a mão em seu ombro.

Faço uma força fodida para não chorar.


Não deixarei que ele veja o quanto me machucou.

De uma só vez perdi um amigo e a tentativa de viver

algo normal com Lucas.


“Saia.” - Ethan fala e a única palavra é mais

assustadora do que se ele fizesse uma ameaça.

Depois de me encarar mais uma vez, Arthur passa a mão


pelo cabelo, ajeita a gola da camisa e vai embora sem

olhar para trás.


29

Lucas

O que diabos acaba de acontecer? Tem algo me

escapando nessa situação.

Eu conheço Arthur quase metade da minha vida, mas

hoje foi como se eu me deparasse com um estranho.


Não é só por causa das merdas que ele disse à Clara.

Aprendi o suficiente sobre a natureza humana para

saber como as pessoas - eu incluído nisso - podem ser

cruéis às vezes.

É mais como uma intuição de que há algo ruim

aproximando-se sem que eu consiga identificar.


Arthur é o tipo de cara que nunca perde a calma.

Sei disso em primeira mão porque já tivemos algumas

discussões, principalmente sobre Samantha e mais de uma


vez, eu o instiguei a reagir, mas ele nunca embarcou em

minhas provocações.

Então hoje, simplesmente vai para cima de Clara sem

qualquer motivo?

Sei que ele pode tentar justificar dizendo que está

protegendo-a de mim, mas nem mesmo com Samantha foi

tão cuidadoso.

Não, tem algo mais por trás de sua agressividade.

Será que a ideia de não tê-la adorando-o foi o que


desencadeou o comportamento bizarro?

Clara não fez nada para merecer suas palavras além de

dizer que não queria ficar com ele.


Ela saiu correndo depois que ele se foi e estou indo em

seu encalço.
Quando chego ao estacionamento, vejo-a encostada

em meu carro, a cabeça baixa e a postura tão derrotada


que tenho vontade de ir atrás do cretino e socá-lo.
Ninguém precisa me dizer que eu não sou uma boa
aposta, mas ele não sabe de porra nenhuma além disso.

Não sou o mesmo de antes do coma.


Não, para falar a verdade, a mudança é anterior a isso.

Chega um momento na vida, que é como se uma


cortina fosse aberta e enxergamos que precisamos deixar
o passado para trás.

Encontrar Samantha na garagem dos Lambertucci, ver


o medo que ela sentia de mim mesmo após tantos anos,

me fez perceber que a porra da minha vida estava toda


errada.

Eu sou cheio de defeitos - louco, egoísta, obcecado


quando me apaixono, mas eu não quero ser o tipo de

homem que inspira medo nas mulheres.


Não depois de ter assistido de perto o comportamento

do meu pai com a minha mãe.


Além disso, o que Arthur falou é um absurdo.
Clara nunca será uma substituta. Ela é por si só capaz
de fazer um homem ficar de joelhos.

Só mesmo alguém muito míope pode não enxergar seu

encanto.
Preciso descobrir o porquê dele querer afastá-la de mim
com tanto empenho.
A resposta óbvia é que não sou o tipo de cara que outro

homem quereria perto de uma amiga, irmã ou filha - mas


olhe para Ethan.
Eu não tenho dúvida que ele sabe a minha história do
avesso.
Clara deixou escapar que ele possui uma empresa de

segurança, logo deve ter revirado todos os meus segredos


antes de permitir que ela fosse morar comigo.
Então, mesmo sabendo quem sou, ele não está
tentando tirá-la de mim. De modo que eu não compro essa

suposta proteção de Arthur.


Tenho que descobrir o que está fazendo com que o cara
mais pacato que já conheci esteja tornando-se um
desequilibrado.

Ela sente minha aproximação, mas ainda assim não


levanta o rosto.
Não sei o que dizer.
Colocando-me em seu lugar, palavras não seriam

suficientes para apagar o que Arthur falou.


Pelo menos para mim é assim que funciona.
Eu acredito mais em ações.
Então, faço a única coisa que posso. Abraço-a.

No começo, é só para impedi-la de fugir, mas então o


seu calor prende-me de tal maneira que não quero soltá-la
mais.
Ela não retribui, mas também não me repudia.
Minha boca percorre a pele macia do seu rosto e sinto o

corpo amolecer contra o meu.


Deixo pequenos beijos por toda a face e no começo, ela
parece indiferente, mas então, o rosto ergue-se e os braços

circulam meu pescoço.


“Vamos para nossa casa.”
“Ela é nossa?”
Olho para o rosto bonito e tão desalentado, os olhos
azuis tristes.

“Por tanto tempo quanto você quiser, ela será nossa.


Não tenho qualquer intenção de pôr um prazo final para
nós dois.”
Isso é o mais próximo de uma promessa que já fiz a

uma mulher. Nem mesmo com Sam eu coloquei projetos


em voz alta.
Com Clara, tenho necessidade de dar garantias. De
fazer com que entenda que ainda que não consigamos

rotular o que estamos vivendo, não quero que termine.


“O que nós falamos hoje cedo ainda está de pé?
Seremos só nós dois? Sem outras mulheres ou caras
enquanto durarmos?”
Eu não preciso pensar antes de responder.

“Pode apostar. Eu não quero mais ninguém.”


Não sei se ela vai acreditar, mas de novo, não sou bom
com palavras então, espero ter tempo o bastante ao seu
lado para que possa perceber isso por si só.
“Não estou pedindo por declarações. No momento,

desejo apenas ficar com você enquanto me quiser por


perto.” - fala.

“Não quer promessas? Tudo bem, mas não duvide por

um instante sequer de que não há ninguém além de você


para mim agora.”

“Isso é bom o suficiente.” - diz, estreitando o abraço e

pousando a cabeça em meu peito. - “É mais do que eu


esperava.”
30

Clara

Ele dirige em silêncio, mas diferente das outras vezes,

sua mão segura minha coxa esquerda.

Minha cabeça está uma bagunça e eu não quero

pensar, então começo a fazer algo que deixei de lado há


muito tempo - zapear as redes sociais para ver o que há de

novo.

Assim que abro o Facebook, vejo em meu feed uma

foto de Lucas comigo em seus braços, saindo do lounge da

Hazard ontem.

Eu não desejo mais me prender a esse tipo de merda,


mas não consigo resistir a ler a reportagem.

Depois de acordar do coma, playboy reencontra o

amor
Lucas Ward, o famoso playboy e conhecido por não

ficar muito tempo com a mesma companhia feminina,

parece enfim ter sido atingido pelo cupido.

Ontem, o jovem milionário foi protagonista de uma cena

romântica.

Lucas foi visto saindo do lounge da Hazard com Clara

Ashby nos braços.

Pessoas em volta disseram que a temperatura entre os


dois poderia aumentar o aquecimento global.

Será que finalmente a carreira de destruidor de

corações de um dos solteiros mais cobiçados do país


chegou ao fim?

Se for verdade, dezenas de mulheres pelos quatro


cantos do planeta chorarão a saída do milionário pegador

do mercado.
Clara é a filha caçula do médico que virou sinônimo de
pedófilo em todo o mundo, o falecido Gregory Ashby.
Separados, ambos parecem tóxicos, mas até mesmo
esse cético colunista que vos escreve não pode deixar de

notar a forte ligação do casal.


Acompanhem o desenvolvimento desse romance

escaldante aqui em nossa coluna.


Vamos torcer pelo amor, apesar de não ser segredo que
a grande paixão da vida de Lucas foi Samantha

Devereaux, agora Samantha Lambertucci, que há cerca de


dois meses deu à luz a primeira filha com o marido, Gabriel

Lambertucci.

Depois de ler a última parte, solto o aparelho como se


tivesse sido mordida por uma cobra.

“O que há de errado?” - ele pergunta e joga o carro para


o acostamento.

Após o que Arthur disse, essa merda de reportagem foi


a gota d’água. Ainda assim, tento manter a dignidade.

“Nada.”
Saio do carro e começo a andar.
Porra, eu não deveria ter concordado em voltar para a

cabana. Arthur estava certo, não passo de uma substituta.

Ele ainda não veio atrás de mim e pelo pouco que já


conheço de Lucas, deve estar lendo a maldita matéria.
Ótimo. Eu já não me envergonhei o suficiente.
“Clara.”

“Já vou voltar. Um minuto.” - peço, tentando controlar as


emoções um mínimo que seja.
“Baby.” - chama, enquanto segura meu braço e a
palavra carinhosa me faz explodir.
“Pare com essa merda. Você não precisa mais me

conquistar. Nós já fodemos. Guarde seu arsenal para a


próxima.”
“Do que diabos você está falando?”
Ele parece muito puto, mas não dou a mínima. Quero

feri-lo tanto quanto estou me sentindo machucada.


“Sobre eu ter sido uma conquista fácil. Eu quero você e
já combinamos que foderemos enquanto isso durar, então
poupe a nós dois de suas mentiras.”

“Minhas mentiras?” - ele segura os meus dois braços


agora, mas não estou disposta a ceder e tento me soltar.
Ele me deixa ir e imediatamente sinto falta de suas
mãos.

Cristo, eu sou uma merda confusa.


Fico em pé no lado do carona com a cabeça encostada
na porta.
Sei que ele está atrás de mim.

“Minhas mentiras?” - repete a pergunta e é como se


cada uma das palavras fossem gelo.
Ele cola o corpo no meu, os braços formando uma
prisão.
Estou muito irritada, mas para minha desolação, não

consigo conter um estremecimento.


“Eu não quero brigar.”
“Tarde demais.”
Apesar de saber que ambos estamos um pouco loucos

de raiva, é inegável o tesão que sentimos e quando ele


mordisca meu pescoço, eu empurro meu corpo para trás,
esfregando-me em sua ereção.
Isso parece ligar um gatilho nele.
Em um momento suas mãos estão em meus quadris,

sobre meu vestido e no seguinte, o dedo tateia a lateral da


calcinha.
“Abra as pernas.”
Estamos no acostamento de uma estrada relativamente

movimentada e sei que deveria impedi-lo, mas não consigo


ter um único pensamento lúcido quando se trata dele,
então obedeço e gemo deliciada enquanto me toca.
Posso perceber que ao mesmo tempo em que me

acaricia, com a outra mão ele abre o zíper da própria calça


e saber que o descontrolo ao ponto de não poder esperar
para transar comigo, faz ruir o que sobrava do meu
autocontrole.

Ele não está sendo gentil e erguendo meu corpo, ainda


de costas para ele, entra em mim sem qualquer
preparação.
“Oh, Deus!”
“Fale outra vez sobre minhas outras conquistas. Diga

que não dará a mínima se eu foder outra como estou


fazendo com você e que não se importa se eu estiver

profundamente enterrado nelas desse mesmo jeito.”

Apesar de estar desesperada de tesão, suas palavras


me enlouquecem de ciúmes e tento fazê-lo sair de mim.

Só a ideia dele estar com uma mulher, me faz querer

matar alguém.
“Admita que você é uma mentirosa.” - ele passa o braço

em volta do meu pescoço e levanta meu queixo,


impedindo-me de baixar a cabeça.
Os movimentos dos seus quadris diminuem para golpes

profundos e que remetem a tanta intimidade que quase me


fazem chorar.

“Onde está sua coragem agora?”

A provocação das palavras cruéis segue o caminho


oposto do que seu corpo diz.

A boca parece querer me ferir, mas há uma emoção tão


forte entre nós que eu desisto de lutar.

“Eu não quero que você esteja com mais ninguém

desse modo.” - entrego - “De nenhum modo. Você é meu.”


Ele vira meu rosto e toma minha boca enquanto

continua a me possuir.
“Eu não quero mais ninguém. Não sei como fazê-la

entender.”

“Tome-me Lucas. Leve-me tão intensamente que não


reste espaço para dúvidas.”

Ele parou de falar e posso sentir que está tão perdido

em mim quanto eu nele.


“Diga que se importa. Que não é indiferente a mim, a
nós.” - ele volta a imprimir um ritmo selvagem.

“Eu não sou indiferente, eu nunca serei indiferente a


você.”
31

Lucas

Nós dois gozamos, mas eu não consigo sair do corpo

dela.

Porra, o que eu acabei de fazer?


Clara parece saber o caminho certo para me

enlouquecer.

Saí do carro com a intenção de conversar.

Entendo que ela tenha ficado puta com a reportagem,

mas certamente não é a primeira e nem será a última vez

que nossos nomes aparecerão nas colunas sociais.


Eu estou pouco me fodendo para o que esse bando de

parasitas da imprensa, que vive através dos outros, pensa.

Apesar de sempre ter sido discreto sobre meus

relacionamentos, já fui protagonista de artigos de fofoca


vezes sem fim.

Sei que ela ainda é muito nova para lidar com a

mesquinhez do mundo, mas ou ela aprende ou sofrerá

para caralho.

Não sou a melhor pessoa para consolar ou dar suporte.

Eu nunca fiz isso antes, mas fui atrás dela para explicar

que não importa o que dizem e sim o que estamos

sentindo.

Só que quando ela me soltou aquele monte de merda,


reduzindo-nos a uma foda sem importância, eu perdi a

cabeça.

E agora estou com raiva de mim.


Ainda não estou pronto para quebrar a conexão, mas

temos que sair daqui.


Ela gira em meus braços, mas não quero encará-la.

Estou me sentindo exposto e um pouco perdido.


Preciso me afastar.
Abro a porta do carro, sento-a e após conferir se o cinto
de segurança está fechado, dou a volta e me acomodo em

meu lugar.
Depois que conversamos no hospital, achei que

havíamos nos acertado, mas agora estou com a sensação


de que ela mal pode esperar para me deixar. Que só quer
um motivo para partir.

“Eu sinto muito pelo meu descontrole.” - fala.


Foram vários minutos de silêncio e agora estamos

quase chegando em casa.


“Eu não deveria ter dito aquelas coisas.” - continua.

Não respondo.
“Lucas? Eu... nós…"

De repente, tudo se torna demais para mim.


Vivi em menos de vinte quatro horas o que venho

evitando há anos.
Emoção.

Sensação de perda.
Necessidade por alguém.
Por ela.

Eu só queria que ficássemos na cabana, sem qualquer

interferência do mundo exterior.


“Não fale mais nada. Já dissemos o que precisávamos
por hoje.”
Estaciono, mas quando vou dar a volta para abrir sua

porta, ela sai correndo e entra na casa sem olhar para trás.

Tomei um banho e estou deitado há quase uma hora


sem conseguir dormir, atento a qualquer som que venha do
quarto ao lado.
O que vivemos ontem e hoje foi um divisor de águas.
Ambos sabemos disso, mas o que ela espera de mim?
Ela espera alguma coisa?

Às vezes acho que estamos caminhando para algum


lugar, mas em outras, tudo parece voltar ao começo.
Uma sombra emoldurando a porta chama minha
atenção.

Minha pulsação acelera em uma demonstração de que


Clara tornou-se um vício contra o qual não consigo lutar.
“Eu sinto muito.” - diz, sentando-se ao meu lado na
cama.

“Pelo que exatamente?” - estou chateado e sem


qualquer vontade de facilitar sua vida.
“Você sabe do que estou falando.”
“Não, eu não sei.”
Ela suspira, parecendo irritada.

“Eu não tinha o direito de julgar você como fiz.”


“Tudo bem, desculpas aceitas. Você pode ir agora.”
Passei de chateado para puto para caralho em uma
fração de segundos por ela continuar tentando diminuir o

que temos.
Então o que um fodido jornalista escreve é mais
importante do que o que vivemos?
“Não faz isso.”
“O que exatamente não devo fazer, Clara?”

Ela vem para a cama e gostaria de dizer que estou


indiferente, mas seria uma mentira.
“Eu quero que a gente funcione. Eu quero você.” - diz,
subindo em meu colo.

As mãos acariciam minha nuca e mesmo contra


vontade, aperto-a contra mim.
Minha boca busca a sua e toda a determinação de
manter as coisas em um plano meramente físico se vai.

Não é suficiente. Eu preciso de mais do que somente


seu corpo.
Estico a mão para acender o abajur e giro-a em meus
braços, prendendo-a embaixo de mim.

“Não fale mais aquilo. Não nos reduza a nada


novamente.”
“Existe um nós dois?”
Ao invés de responder, jogo algo para ela pensar.
“Você pode optar por acreditar em mim ou no que

Arthur fala. Você pode optar por enxergar o quanto quero


você comigo ou o que um cretino de um colunista especula

a nosso respeito. Você pode optar por se permitir viver o

que temos sem medo ou virar as costas ao que podemos


ser, mas terá que lidar com cada decisão que tomar. Eu

não a forçarei a nada.”

Não quero realmente lhe dar qualquer opção. A ideia


dela me deixando torna-se cada vez mais assustadora,

mas enfim aprendi que não há como manter alguém que


não quer ficar conosco.
Suas mãos estão em meu rosto e ela mordisca minha

boca de leve.
“Eu escolho nós dois.” - diz, separando as pernas e a

seguir baixando minha cueca. - “Eu escolho ser sua por

tanto tempo quanto durarmos.”


Entro nela sem pressa, aproveitando a sensação do seu

corpo me abrigando.
Fazemos um amor lento e nossos olhos não se

desprendem.

“Eu tenho um passado, mas ele é apenas isso.


Passado.”

“E o que eu sou Lucas?”


“Você é o que eu quero. Meu presente.”

“E se eu quiser mais?”

“Nós só saberemos até onde podemos chegar se


tentarmos.”

Ela parece satisfeita com a resposta, o corpo delicioso

ondulando, imprimindo o ritmo que precisa.


“Sou sua namorada então?” - minha feiticeira sussurra
em meu ouvido.

Entro profundamente nela e mantenho-me parado,


apenas sentindo-a em mim, me completando.

“Você quer ser?”

“Não me importo com o que você queira me chamar,


desde que isso signifique que estamos juntos.”

“Nós estamos, Clara. Você já era minha mesmo quando

eu ainda estava dormindo.”


“Eu fiquei louca de ciúmes.” - ela confessa, entregando

sua vulnerabilidade.
“Você não precisa. Eu estou com você.”

“Você é meu?”

“Não duvide disso.” - respondo ainda um pouco frustrado


por não conseguir pôr em palavras o que ela me faz sentir -

“Nunca mais duvide de nós dois.”


32

Clara

Dormi melhor nesses dias do que no último ano inteiro.

Eu nunca passei a noite com um homem antes de

começar meu relacionamento com Lucas.

A sensação de despertar com um corpo quente


segurando-me é deliciosa.

Jamais gostei de qualquer tipo de restrição.

Isso diz respeito tanto ao meu corpo quanto à mente.

Tenho uma necessidade de me sentir livre que é quase

patológica.

Nunca permiti que um cara me dissesse o que fazer ou


cobrasse qualquer tipo de satisfação.

Lucas faz isso o tempo todo.

Cobra, empurra, exige.


E o que antes me assustava - as cobranças, quero dizer

- hoje ajuda a colocar meu mundo de volta no eixo.

Ontem, quando acordei em seu apartamento, ele havia

levantado antes de mim.

Essa manhã, estou deitada sobre seu corpo e ele me

segura apertado.

Todos os dias em que estive aqui, ele se levantou

quase ao nascer do sol.

Com a minha insônia, sempre soube a hora exata em


que acordava, mas hoje não parece estar com pressa.

Ergo a cabeça para ver se ainda está dormindo e

deparo-me com seus olhos em mim.


Ele não sorri. Não é assim que ele é.

Lucas não oferece seus sorrisos gratuitamente.


Sei, sem que precise dizer, que não está acostumado

ao nosso tipo de relação.


Talvez eu devesse ficar intimidada com sua expressão
fechada. É como se usasse uma espécie de placa: perigo,
não se aproxime.
Só que eu sempre fui imprudente, então subo mais em

seus corpo e beijo sua boca.


Eu só ia dar um beijo leve, mas em pouco tempo, estou

embaixo dele, completamente à sua mercê.


“Bom dia.” - falo entre um beijo e outro, tentando
diminuir a intensidade do que sinto.

Ele olha-me um pouco confuso.


Sei que quer transar.

Eu também quero, mas decidi que ainda que não


façamos qualquer promessa, não deixarei que aja comigo

como fez com as outras.


“Você pode sorrir. Eu não vou contar a ninguém.”

“Eu quero você.” - diz, parecendo tentar fugir da nossa


intimidade.

“Eu também. Sempre. O tempo todo, mas isso não


impede que me dê bom dia, namorado.” - brinco.
Ele encara-me em silêncio por uma eternidade e
quando acho que minha conversa está aborrecendo-o, a

sombra de um sorriso alcança os lindos olhos

amendoados.
“Você é louca.”
“Achei que isso já estivesse estabelecido.” - continuo,
mais determinada do que nunca a fazê-lo mostrar um

pouco de senso de humor.


“Talvez eu seja mais louco do que você.”
“Isso me agrada. Não é legal viver a loucura sozinha.”
Ele mordisca meu queixo.
“O que eu vou fazer com você, Clara?”

“Não pense muito, viva.”


Deixo minhas mãos passearem pelos músculos de suas
costas.
“Bom dia.” - ele finalmente responde, enquanto deixa

beijos em meu pescoço. - “Pronto, eu já fui um bom


menino, onde está o meu prêmio?”
Eu rio, deliciada com essa nova faceta de sua
personalidade.
É a primeira vez que relaxa desde que o conheço.

Mesmo no passado, ele não podia ser considerado um


cara leve.
Segurando seu sexo duro entre nossos corpos, começo
um movimento suave.

“Deixe-me montar você.”


Ele parece hesitar.
“Eu só quero brincar.”
Ele nos gira, deixando-me ficar por cima.

Apesar de eu ter a prova de que está totalmente


excitado, ainda assim se mantém passivo e eu gostaria de
poder ter tanto autocontrole.
Afasto os lençóis porque quero ver nossos corpos
unindo-se, mas ao invés de focar no meu sexo ou seios, as

mãos passam pelas minhas tatuagens.


“Você é linda.”
Eu já ouvi isso algumas vezes, mas por ser ele a dizer,
sinto calor em minhas bochechas.

Querendo escapar de qualquer coisa que me transporte


a sentimentos profundos, faço com que ele entre mim.
“Porra, Clara.”
“É tão gostoso, Lucas. Com você é tão bom. Eu adoro
senti-lo.”

As palavras são as piores possíveis a serem ditas para


um cara como ele, dado o seu histórico com as mulheres,
mas eu não consigo fingir. Nossa ligação é forte demais.
“Assim mesmo, linda. Deixe-me ver o quanto você me

quer.”
“Você ainda não sabe?” - inclino-me para a frente,
tomando seu rosto nas mãos. - “Eu nunca quis alguém
como quero você. Eu deveria ter medo, mas não tenho.

Não há qualquer lugar que eu queira estar, além de


mantendo-o dentro de mim.”
As palavras sem filtro parecem mexer com ele, pois
agora as mãos seguram fortemente meus quadris.

“Diga de novo que você não vai embora. Que quer


estar aqui por nós dois e não porque eu pedi.”
Não hesito.
“Eu quero.”
Ele gira, prendendo-me outra vez embaixo de si.

Posso ver o desejo no rosto que estou aprendendo a


adorar.

“Então não pense em mais ninguém além de nós. Eu

só quero você.”
Não sei como vou conseguir sobreviver quando o que

estamos vivendo acabar, mas não fugirei.


Estou deitada na cama com seu corpo erguido sobre o
meu. Minhas coxas ainda o prendem e ele não parece

disposto a se afastar.

As pontas dos dedos percorrem cada uma das


tatuagens em meu abdômen e braços.

“Fale-me sobre elas.”


“Começou como uma forma de me diferenciar das

pessoas. Eu não queria ser mais uma na multidão. Mas a

seguir veio o escândalo com Gregory e eu continuei a fazê-


las por raiva. Eu estava zangada com o mundo inteiro,

menos com Bela.”


“Por quê?”

Olho-o sem sorrir.

“Você sabe a razão.”


“Não foi culpa sua. Nenhuma de vocês teve culpa.”

Fecho os olhos, ainda incapaz de enfrentar aquele tipo

de conversa.
“Eu não consigo me perdoar.”
“Perdoar-se pelo que aconteceu à Isabela?”

Aceno com a cabeça.


“Vocês só viam o que ela queria mostrar, mas para mim

Bela foi mais do que uma irmã, foi uma verdadeira mãe.” -

aperto os olhos com força para não deixar as lágrimas


escorrerem - “Eu sempre a combati, briguei, agi como uma

criança mimada. Eu ria quando meus amigos lhe

colocavam apelidos por conta do seu jeito introspectivo. E


eu não tinha motivo para fazer isso. Ela era assim com o

mundo, mas nunca foi comigo. Eu cresci tendo a certeza


do seu amor e quando olho para trás, vejo que a sensação

de estar segura e de ser amada, eu devo a ela. Lembrando

do passado, Gregory nunca me deu a mínima. Minha irmã


fez um esforço consciente para que ele só prestasse

atenção nela. Foi a maneira que encontrou de me


proteger.”
Tento escapar debaixo do seu corpo porque preciso

ficar sozinha.
“Não.”

“Não o quê?”

“Não se afaste. Eu estou aqui com você. Por você.”


“Você sabe como estancar a dor?”
33

Clara

“Clara…”

“Não posso mais falar sobre isso, Lucas. Sobre o

passado. E também não quero pensar no futuro. Por

enquanto, basta o que temos hoje.”


Ele me olha em silêncio.

Lucas só fala quando realmente tem algo a dizer.

Mesmo quando ele está zangado comigo é assim.

“Eu entendo, mas não se feche a um futuro também.

Vamos andar devagar, mas não precisamos ficar parados.”

Meu coração dispara pelo pavor de arriscar e depois me


desiludir.

Como Samantha encaixa-se nessa história?

Eu não consigo esquecer as palavras de Arthur.


Não quero cobrar garantias, mas me conheço o

suficiente para admitir que Lucas está preenchendo minha

vida mais e mais.

“O que há de errado?”

“Eu tenho medo de me apaixonar por você.”

Droga, não era para ter dito essa merda em voz alta.

Lucas é famoso por pegar e largar e acho que o

caminho certo para fazer um cara correr é começar a falar

de sentimentos.
Então estou meio que preparada para ele levantar da

cama depois da minha declaração idiota, mas ao invés

disso, ele me traz ainda mais para junto de si.


Não sou forte o bastante para resistir ao carinho.

“Estou com muito medo.” - repito.


“Não sei o que dizer. Eu não sou uma boa pessoa.”

Escondo o rosto em seu pescoço.


“Eu também não.”
“Pare com isso. Você não fez nada de errado. Eu sim.”
Prendo a respiração.
Nunca imaginei que chegaríamos a um nível de

intimidade em que ele sequer considerasse se abrir


comigo.

“Em poucos meses, terei que depor no julgamento de


Christian.”
“Mesmo?”

“Sim. Eu fiz um acordo com a promotoria para poupar


Samantha.”

Imediatamente, todos os músculos do meu corpo


tensionam só com a menção ao nome dela.

Gostaria de ter coragem de perguntar se ele ainda a


ama, mas não estou pronta para a resposta.

“Eu vou ter que contar sobre a noite do ataque, mas o


julgamento não será aberto ao público.”

Ele está sofrendo, culpando-se e mesmo que eu saiba


que provavelmente é por causa do amor que sente por

outra mulher, não consigo deixar de sofrer junto.


“Posso ficar ao seu lado quando chegar a hora.” - falo,
morrendo de vergonha por estar oferecendo ajuda a um

cara que parece ser o dono do mundo, enquanto eu não

passo de uma garota perdida. - “Eu não sei nada do que


aconteceu, mas não me importo. Ainda assim estarei lá
para você.”
Sua reação me surpreende.

Achei que ele pudesse dizer tudo bem ou qualquer


coisa do tipo, mas sem levar realmente a sério a minha
oferta.
No entanto, ele me encara com o rosto carregado de
tensão.

Tenho a intuição de que está decidindo se levanta e se


afasta de mim ou fica para continuarmos a conversa.
Insegura, toco seu rosto.
O toque é leve, esperando que a qualquer momento ele

me mande parar.
Ele não o faz.
Encorajada, deixo os dedos percorrerem a cicatriz.
“Não estou tentando forçar entrada em sua vida, mas
você foi importante em uma época em que eu estava me

sentindo muito sozinha. Eu só quero retribuir.”


A mudez finalmente acaba com minha autoconfiança e
sem graça, tento me soltar, mas ele não permite.
Sua mão enorme sobrepõe-se a minha.

“Eu sinto muito.” - falo.


De repente me acho ingênua e fora de lugar.
O que diabos estava passando pela minha cabeça ao
me oferecer para apoiá-lo?

“Eu quero.”
As duas únicas palavras fazem meu sangue bombear
rapidamente.
“Você me quer por perto?”
“Sim. Obrigado por isso.”

Espero que ele explique melhor, mas ao invés, ele me


beija.
Não um beijo como o que damos quando queremos
transar.

Nada desse tipo.


Ele toca meus lábios com o dedo e a seguir roça os
dele em mim.
Depois beija meu queixo, morde e volta para a minha
boca.

Fica muito tempo só assim e eu me perco no homem


lindo e que agora eu vejo, é tão solitário.
Estou parada, deixando ele fazer o que quiser comigo.
Completamente sem defesa.

Eu não quero ter defesa.


Cair de amor por Lucas me assusta, mas não consigo
resistir.
“Depois que tudo acabar, podemos ir para a minha casa

na França por uns dias.”


Sei que talvez as palavras ponham tudo a perder, mas
também sei como é ter que enfrentar um escândalo.
A imprensa revirará sua vida do avesso antes e depois
do julgamento.

“Sem compromissos, além de pegarmos sol e


tomarmos margarita.”
Tento soar leve para contrabalançar o que estou
propondo.
Ele esconde a cabeça na curva do meu ombro por

alguns segundos e somente quando acho que não dirá


nada, faz minha mente flutuar.

“Sol, você e eu? Não consigo imaginar nada que eu

deseje mais.”
Há muito tempo não me sinto feliz.

“Nós temos um acordo então.”


34

Lucas

Entro na cozinha e ela está dançando, enquanto

prepara nosso café da manhã.

Seu jeito meio hippie me fascina. Clara é tão diferente


de mim.

Estou recostado à porta observando-a se movimentar e

pensando no que aconteceu hoje cedo.

Ela chegou sem que eu me desse conta do que estava

acontecendo e agora, não consigo me manter longe.

Veste um top curtinho e shorts, enquanto faz o que


suponho que sejam omeletes.

Ela balança os quadris de leve em uma música que

provavelmente está tocando em sua cabeça e eu não

consigo desviar o olhar.


Hoje cedo quando ela se ofereceu para ir comigo ao

julgamento, algo mudou entre nós.

Eu sempre fui autossuficiente.

Não me lembro de ter tido apoio de alguém em

qualquer momento, além da época em que estive em

coma.

Mas hoje minha garota linda e selvagem, mesmo com a

própria vida de cabeça para baixo, ofereceu-se para

atravessar o inferno comigo.


Não temo enfrentar sozinho o que sei que virá, mas é

tão bom ter alguém que goste de mim o bastante para

querer estar ao meu lado em um momento desses.


Será que ela faz ideia de onde está se metendo?

Baseado no artigo que li na coluna social sobre nossa


cena na Hazard, sei que se começarmos a aparecer em

público, a imprensa não nos deixará em paz.


Eu quero protegê-la, mas não desejo que pense que
estou desfazendo de sua ajuda.
Por mais jovem que seja, Clara é forte e não posso
impedi-la de crescer.

Na verdade, isso foi o que eu sempre quis em uma


mulher - alguém que não tivesse medo de encarar as

merdas que a vida jogasse.


Adoro como ela diz tudo o que pensa sem levar
desaforo para casa. Clara não tenta fazer uma imagem de

menina perfeita ou boazinha. Ela é do jeito que é.


Hoje depois que saí do banho, recebi uma mensagem

de Isabela para avisar que amanhã é o aniversário da irmã.


Ela faz vinte e um anos, mas Isabela disse que

provavelmente não vai querer celebrar.


Desde então tenho pensando sobre um presente.

Quero lhe dar algo que a faça feliz então, tenho um


plano. Só falta convencê-la a vir comigo.

Possuo um veleiro e vou levá-la para o mar. Para


passarmos a noite afastados de tudo que não sejamos nós

dois.
Nunca fiz algo especial para uma mulher.
A única que esteve em minha vida tempo suficiente

para isso foi Samantha, mas só lhe comprei presentes.

Nada que eu tivesse que pensar a respeito.


Mas quero fazer Clara sorrir.
Sou uma merda com palavras, mas talvez consiga
demonstrar o que ela significa para mim.

Liguei para a secretária e pedi que organizasse tudo


para essa noite.
Incapaz de continuar parado, sigo até onde está,
abraçando-a por trás e sentindo o perfume dos seus
cabelos.

“Estava me perguntando por que você demorava tanto.”


“Sentiu saudade?” - a pergunta foi feita em tom de
brincadeira, mas ela gira em meus braços e fica na ponta
dos pés para deixar um beijo em meu queixo.

“Eu senti. Não consigo ter o suficiente.”


As palavras me deixam totalmente acelerado e eu sei o
que está acontecendo dentro de mim.
Estou com medo de perdê-la.

Receio mergulhar no que temos e me tornar obcecado,


dependente e que depois ela vá embora.
“Estou bem aqui. Não irei par longe.“ - falo.
“Beije-me. Eu ainda não ganhei beijos o suficiente hoje.”

Balanço a cabeça.
Eu amo seu jeito maluquinho de dizer tudo o que quer.
Ela é exigente e nem um pouco tímida.
“Nós vamos sair à noite. Não dormiremos aqui.”

Ao invés de me mandar para o inferno por conta da


minha declaração arrogante, ela me abraça e repousa a
cabeça sobre o meu coração.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Não, eu só quero levá-la a um lugar.”

“Tudo bem.”
“Não vai perguntar o que é?”
“Não, eu confio em você.”
Ela não faz ideia de como suas palavras mexem comigo

e faço um pacto interior de que jamais destruirei sua


confiança.
Será que ela gostará da surpresa?
Estou louco para ver sua reação ao acordar com o sol
nascendo no meio do mar. É lindo e foi uma das coisas de

que mais senti falta enquanto estive em coma.


Nunca levei alguém para o meu barco. Nem mesmo
Arthur sabe dele.
Pensar nele me lembra do nosso último encontro.

“Qual é o papel de Arthur em sua vida hoje?” -


pergunto, quando ela me manda sentar e começa a nos
servir.
“Hoje, nenhum. No passado, ele foi alguém que eu

achava que queria.”


“Achava?”
“Sim. Olhando para trás, vejo que me encantava mais a
ideia de ser dele, do que um relacionamento entre nós

dois.”
“Como assim?”
“Lucas, eu me conheço. Não sou o tipo de garota que
fica sentada esperando o príncipe me resgatar. Faz mais
meu estilo jogar algo na cabeça do príncipe até que ele

note a minha presença.”


Sorrio porque consigo imaginá-la fazendo exatamente o

que descreveu.

“Então era curiosidade?”


“Acho que isso e mais uma combinação de orgulho

ferido.”

Ela não parece muito confortável em falar a respeito,


mas eu preciso saber onde estou pisando.

Mesmo com todas as coisas que ela contava enquanto


estive em coma, nenhum dos caras parecia ter qualquer
importância, só que Arthur pode muito bem ser o sonho de

uma mulher.
Ele aparenta ser talhado para relacionamentos sérios,

apesar de nunca o ter visto com uma namorada. Nem

mesmo em boates.
Como nunca percebi isso antes?

Provavelmente porque sempre pensei que ele era


apaixonado por Samantha.

Talvez fosse, de uma certa maneira, mas ainda assim é

esquisito que nesses quase oito anos que nos conhecemos


nunca o tenha visto com alguém.

Tudo bem, eu também não desfilava com garotas em


público, mas jamais escondi que estava atrás apenas de

sexo.

“Você falou do passado. E hoje?”


Ela para de comer e me encara.

“Ele está começando a me incomodar.”

“Ele não quer você comigo.”


“Arthur não tem que querer nada, Lucas. Sou capaz de
fazer minhas próprias escolhas sozinha. Sabe o que é

estranho? Ele nunca me procurou. Quero dizer, de vez em


quando nos esbarrávamos pela cidade, mas ele só passou

a me procurar depois que eu vim morar com você.”

“E o que mudou?”
“Eu não sei. Sou jovem, não boba. Não fiquei mais

bonita, inteligente ou interessante em algumas semanas.

Ainda mais considerando meu histórico de um ano para cá.


Então, realmente não entendo por que ele tem insistido.”

“Talvez seja porque ache que eu posso machucá-la.”


“Eu não preciso dele para me mostrar isso.”

“O que você está tentando dizer?”

“Que não sou estúpida. Consigo ver o mar de


experiência que separa nós dois. Não sou o seu tipo de

garota.”
“Você é a mulher que eu quero.” - sinto-me frustrado pra

caralho - “Sei que não é uma tarefa fácil, mas não me


julgue pelo meu passado.”

Ela sai de sua cadeira e vem para o meu colo.


“Eu não julgo. Não me importo com o que você fez.

Todo mundo erra, Lucas. Sei o que as pessoas falam de

você e não dou a mínima. Elas não o conhecem


realmente.”

“E você acha que sim?” - fico um pouco louco porque


ela está cruzando uma linha perigosa.

Eu não sei me apaixonar suavemente. Preciso ter tudo.

Cada pensamento da pessoa compartilhado comigo.


Dessa maneira, me assusta sua fé em mim.

“Provavelmente eu não o conheça totalmente, mas o

que eu vejo, adoro. Não preciso que me dê garantias. Só


quero viver nossa história.”

“Então não fuja cada vez que sente medo. Fale comigo.
Eu não suporto a ideia de não saber o que está pensando.”

“Por que você é um maníaco por controle?” - Pergunta

sorrindo.
Só Clara tem a capacidade de transformar algo tão
sério em uma brincadeira.

“Acho que nem mesmo eu poderia me descrever

melhor.”
“Posso lidar com isso.”

“Escondendo-se de mim?”
“Não. Sendo sua garota boazinha.”

“Linda, não há um grama de obediência em seu corpo.”

Ela gargalha.
“Tem razão, mas pode ser que eu não tenha encontrado

alguém que soubesse exercer o controle que preciso.”


“Você não tem ideia do que está falando.”

Ao invés de combater minhas palavras, ela inverte o

jogo.
“E quanto a mim?”

“O que tem você?”

“Lucas, se ainda não percebeu, sou ciumenta e


possessiva e infelizmente, enxergo muito bem. As
mulheres atiram-se em você. Sempre foi assim.”

“Eu não sei nada sobre isso.” - respondo, um pouco


incomodado - “Eu só quero você. Coloque isso na sua

cabeça a cada vez que estiver com ciúmes.”


35

Clara

Estamos deitados no veleiro dele, tomando sol.

Lucas me trouxe para passar o dia no mar e não sei de

onde tirou essa ideia, mas foi a melhor de sempre.

Tenho um braço cobrindo meus olhos, enquanto ele


está reclinado sobre mim, passando os dedos nas

tatuagens em minha perna.

Deus, ele é bonito.

Se fosse meu, acho que eu não teria um minuto de paz.

A reação das mulheres do momento em que descemos

do carro na Marina até entrarmos no barco, me fez ter


vontade de aprender a atirar.

Em defesa dele, Lucas não flertou em qualquer

momento, o que serviu para acalmar um pouco a minha

insegurança.
“E essa aqui? - Nada é tão nosso quanto nossos

sonhos.”

“Você está fazendo uma espécie de estudo sobre meu

corpo?”

Ele sorri - o que é raro - de uma maneira tão sexy que

sinto meu cérebro virar purê de batata.

“Pode apostar nisso.”

“Fiz essa como uma espécie de oração. Um lembrete

para mim mesma que houve uma época em que eu


acreditava ter uma vida inteira pela frente.”

“Você tem.”

Dou de ombros.
“Ninguém pode garantir isso. A vida é frágil demais.”

Passo os dedos no rosto de traços perfeitos, incapaz de


ficar muito tempo sem tocá-lo.

Ele segura minha mão e beija.


Já reparei que nós funcionamos em atos reflexos.
Assim que um toca o outro, a retribuição é quase
imediata.

“Fale-me sobre essa - Se respiro, ainda posso lutar”.


“Essa foi feita no dia em que acabei de assistir o

material sobre Bela.” - a garganta trava instantaneamente e


eu tento me levantar, mas ele parece ter outros planos e
puxa-me para seu colo, prendendo-me em um abraço de

urso.
“Bela será para sempre minha heroína. A pessoa mais

corajosa do mundo.”
Choro em silêncio e ele não fala. Só me segura

apertado e acaricia meus cabelos.


“Não foi culpa sua. Não se julgue tão duramente. Você

era só uma garotinha. Você ainda é.”


As palavras fazem o pranto vir ainda mais forte.

Toda a dor que venho carregando desde o dia em que


estive naquele maldito sótão, escapando como as águas

de uma tsunami.
“Não consigo esquecer, Lucas. Eu me obriguei a
assistir. Eu quis compartilhar sua dor e agora as imagens

não saem da minha cabeça.” - digo entre soluços - “Quero

voltar no tempo e fazê-lo pagar. Secar cada uma das


lágrimas dela e abraçá-la para que seu medo passe. Dizer
mil vezes o quanto a amo e como sou a pessoa mais
sortuda do mundo por tê-la em minha vida, mas sei que

ainda que eu consiga fazer isso tudo, não será suficiente.”


Estou agarrada a ele, pela primeira vez compartilhando
o meu desespero.
“Tenho medo de me perder para sempre. De que
chegue o momento em que a dor não permita mais que eu

lembre quem sou.”


“Tem algo que você pode fazer para tentar compensar o
que Isabela passou.”
Olho-o, ansiosa.

“Eu faria qualquer coisa.”


“Então, viva uma boa vida. Não estou falando sobre
cursar faculdade. Se não for isso o que quer, tudo bem,
mas viva a sua vida, não a destrua. Retribua a sua irmã

sendo feliz. Mostrando que seus sacrifícios não foram em


vão.”
“Não seria o bastante. Ela sofreu durante dez anos para
me proteger.”

“Talvez não, mas seria um bom começo. Lembra do que


falou sobre ela sempre ter sido como uma mãe para você?”
- diz, acariciando as minhas costas - “Sabe o que as mães
querem? Que os filhos sejam felizes. Dê isso a ela, Clara.”

Ergo a cabeça, totalmente presa nos olhos azuis


escuros.
“Obrigada.” - abraço-o forte. - “Vou pensar a respeito.”
Depois de passarmos o dia todo mergulhando - não,
mentira. Nós descemos várias vezes para a cabine para
fazer amor - estou recostada entre suas pernas olhando o
sol se pôr dentro do mar.
Ele tem um braço em volta de mim e sinto medo de não

conseguir mais viver sem isso.


Só a ideia de que terminaremos em um futuro próximo
me faz estremecer e sobreponho meu braço ao dele,
apertando-o para conferir que ainda está aqui comigo.

“Você está com fome?”


Viro o rosto para olhá-lo e dou de cara com a boca
deliciosa.
“Sempre.” - respondo sorrindo.

“Tão levada, baby.” - fala, mordiscando minha orelha.


“Obrigada por isso.” - começo - “Pelo dia de hoje, a
conversa e o monte de sexo.“

Ele não responde. Ao invés, puxa-me ainda mais para


si.
“Estou pensando em ficar na cabana em definitivo.”
Giro em seus braços.
“Tipo, para sempre?”

“Não sei se morar para sempre. Depende do que


acontecer no futuro.”

“Como assim?”

Ele me dá um beijo.
“O que você tem planejado?” - pergunta a seguir.

“Eu ainda não sei. Pensei em passar um tempo no sul

da França, como eu falei.”


“Mesmo antes de me convidar para ir junto?”

“Sim.” - baixo a cabeça porque não consigo olhar para


ele e dizer o que sei que preciso - “Isso que estamos

vivendo me assusta.”
“Por que?”

“Eu não quero me acostumar com nós dois juntos


porque sei que é temporário.”

“Você já decidiu ir embora então?”

Ele me solta e sinto imediatamente sua falta.


Ao invés de aceitar a rejeição, aproximo-me ainda mais,

montando em seu colo.


“Não, mas eu tenho medo de dar como certo algo que

só está acontecendo em minha cabeça.”

“Não está. Mesmo que não saibamos classificar ainda o


que somos, eu quero ficar com você. Não coloque um

prazo em nós dois, Clara.”


Eu o encaro por um tempo.

“Tudo bem.” - digo, sem vontade de continuar a

conversa - “Há algo que eu gostaria de pedir sua opinião.”


“Um instante. Ainda não acabamos.” - ele me dá um

beijo - “Eu quero você. Vamos viver um dia de cada vez,


sem nos preocuparmos com o que somos, mas com o que
sentimos.”

“Eu não faço o seu tipo.”


“O quê?”

“Nada.” - disfarço, envergonhada por deixá-lo ver minha

vulnerabilidade. - “Você leu o escândalo sobre Gregory?” -


mudo de assunto.

“Sim.”

“Uma das garotas que ele comprou - Deus, tenho


vergonha até de falar isso em voz alta.”

“Não é culpa sua, linda.”


“Tudo bem. Uma das meninas sobreviveu. Khayla. Ela

está na Confiar Outra Vez.”

“Eu li a respeito dessa associação. É para crianças


carentes?”

“Para crianças carentes vítimas de abuso.”


“Continue.”

“Essa menina está morando lá há alguns meses.”


Meus olhos enchem de lágrimas ao pensar no rastro de

destruição que o fodido do Gregory deixou para trás.


“Bela cuida especialmente dela, embora a criança não

aceite muita proximidade.” - pauso para respirar porque

estou sufocando. - “Minha irmã pediu que eu fosse visitá-la


nesses primeiros dias após o nascimento de Tristan.”

“Você quer fazer isso?”


“Na verdade não, mas não posso passar o resto da

minha vida com a cabeça enterrada em um buraco, então

decidi que irei lá amanhã.”


“Vou com você.”

“Mesmo?”

“Sim. Você não está sozinha.”


“Não faça com que eu me apaixone por você, Lucas.”

“E se eu quiser?”
“Por que você haveria de querer isso?”

“Porque se você gostar de mim, não irá embora.”


Já é quase madrugada, mas nenhum de nós está com

sono.
Ele forrou um cobertor do lado de fora e há pouco

tempo, desceu para a cabine.

Posso ouvi-lo mexer em algo na cozinha.


Minutos depois, sinto sua presença e quando viro para

olhar, ele carrega um bolo pequeno com uma velinha em


cima.

Ele está de sunga, com uma camisa aberta, as mangas

dobradas nos braços fortes e sorrindo.


“Feliz aniversário, linda.”

Eu congelo por um tempo. A garganta travada pela


inundação de sentimentos.
É claro que eu sabia que era o meu aniversário amanhã

- olho para o relógio e vejo que já passa da meia-noite,


então, hoje - mas apesar de ter certeza de que Bela

lembraria, não tinha a intenção de contar a ele.

Então penso no barco, repasso o dia em minha cabeça


e observo o bolo em suas mãos.

Eu nunca esperei algo assim vindo de Lucas e meu

coração derrete-se.
Obrigando-me a agir, fecho os olhos e faço meu desejo

- que esse sonho não acabe.


Inclino-me e apago a vela, mas a seguir tiro o bolo de

suas mãos e pulo em seu colo.

Ele não hesita em me segurar.


Não consigo falar, então beijo-o uma e outra vez até

que fiquemos sem fôlego.


“Eu adoro você.”

Ele me aperta forte em seus braços.


“Eu adoro você.” - devolve, aquecendo a minha alma. -
“Eu não deveria pedir isso, mas eu quero mais.”

“Mais do que Lucas?”

“De tudo entre nós dois.”


36

Lucas

A temperatura caiu, mas ela demorou a querer descer

para a cabine.

Estamos deitados e mantê-la dentro do meu abraço tem

se tornado mais natural a cada dia.


Finalmente consigo admitir que temos um

relacionamento.

Honestamente, depois de Samantha eu não achei que

fosse querer mais isso e talvez, dada a minha vida

pregressa, devesse deixá-la ir, mas não posso.

Depois do dia de hoje, eu quero tentar.


Vou pagar para ver.

Há uma sensação cada vez mais forte de que talvez

minha busca tenha chegado ao fim e que eu esteja

segurando o que sonhei a vida toda aqui em meus braços.


O celular vibra com uma mensagem e olho para o

relógio em meu pulso - três da manhã.

Quem poderia enviar mensagens a essa hora?

Tento alcançar o aparelho e ela resmunga

aconchegando-se mais.

Observo minha namorada linda.

Nós somos mais diferentes do que temos coisas em

comum, mas ainda assim é como se nos encaixássemos

como peças perfeitas de um quebra-cabeça.


Sou naturalmente introspectivo e não muito dado a

sorrisos. Muito raramente compartilho meus pensamentos

ou coloco os desejos em palavras e Clara é exatamente o


oposto.

Certo, talvez ela não sorria mais tanto quanto no


passado, mas quem pode culpá-la? Acaba de completar

vinte e um anos e já teve mais merda jogada em cima de si


do que a maioria das pessoas ao longo da vida.
Mas mesmo com todo o sofrimento, ela não consegue
ocultar o desejo de viver.

Eu adoro seu jeito irônico e desbocado.


Sua coragem de externar seu ciúme e, ao mesmo

tempo, assumir o que quer comigo.


Clara não consegue perceber como estou tomado por
ela. Fui sincero quando disse que não quero mais ninguém.

Se fosse o caso, eu poderia resolver com um telefonema.


Sei que ela está confusa sobre nós dois.

Eu também estou.
Não há um nome para o que somos.

Talvez para quem olhe de fora, nós pareçamos


incompatíveis, mas eu penso diferente.

Com isso, a memória da discussão com Arthur volta.


Minha raiva ainda não passou.

Ele achar que estou usando Clara para ocupar o lugar


de Samantha é a ideia mais absurda do mundo.
Ela e a minha ex não poderiam ser mais distintas, então
não há maneira de que, mesmo que inconscientemente, eu

a encarasse como uma substituta.

Olhando para trás, vejo que depois que namorei Sam,


busquei o perfil dela em todas as mulheres com quem
estive desde então - alguém suave.
Clara é toda atitude. Não permite que a coloquem em

segundo plano.
Eu mentiria se não dissesse que estou assustado.
Meu histórico em relacionamentos não é dos melhores -
para dizer o mínimo.
Minha personalidade é um tanto obsessiva.

Mesmo assim, quero trabalhar para fazer funcionar, o


que me leva de volta a Arthur.
Teremos que conversar.
Seu súbito interesse por ela ligou um interruptor em

minha mente e, embora eu ainda não consiga determinar a


razão, algo me diz para mantê-la distante dele.
O celular volta a acender e eu suspiro irritado.
Movendo o corpo da minha deusa adormecida, cubro-a
e saio da cabine para ver quem é.

Ethan: Onde você está? Clara está com você?

Ethan mandando mensagem a essa hora?

“Sim, passamos o dia fora. Estamos no mar, por quê?”

Será que aconteceu algo com Isabela ou Tristan?

Antes que consiga dar continuidade ao pensamento, o


telefone toca.
“Alguém tentou entrar na cabana.”
“O quê?”
“Eu tenho homens vigiando vocês, assim como o seu

lugar. Eu sabia que estavam no barco, só queria conferir se


está tudo bem. Não sei se é uma boa ideia voltarem para
lá.”

“Ninguém conseguiria entrar. Eu mesmo cuidei da


instalação do sistema de segurança.”
“Eu sei, já verifiquei. Você