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A CONDICAO HUMANA NA FILOSOFIA DE BLAISE PASCAL: O SUJEITO AUTONOMO MODERNO E SUA INSUFICIENCIA ANTE O MISTERIO DE DEUS Marcio Geraldo de Sousa'®® Maria Indcia Lopes'** grandeza do homem esté em ele se reconhecer como miserdvel. Uma érvore ngo se da conta da sua miséria. ” Blaise Pase RESUMO 0 objetivo desse trabalho é analisar a condigaio humana na obra “Pensamentos” de Blaise Pascal ¢ as indagagies que o filésofo faz. acerca do homem moderno que busca ser auténomo e dominador da nnatureza_ mas a0 mesmo tempo € marcado pelo trago do vazio e do nada inscrito no mais profundo do seu ser. Intenta-se analisar o homem paradoxal que carrega em si a grandeza - devido sua capacidade de pensar - ¢ a miséria ~ devido sua naturcza decaida — ¢ propor uma conciliagio entre essas duas dimensdes através da fé cristd, caminho esse indispensével para uma integragdo total do ser humano, Por fim, buscar-se~4 no aniquilamento do “eu ¢ na vivéneia do “eu” de Jesus Cristo a possibilidade de romper com a condigo “trégica” em que se encontra o homem e a possibilidade de um dia unir a finitude humana com a infinitude de Deus. Palavras-chave: grandeza; miséria; raz2o; insuficiéncia; homem; Deus; Jesus Cristo. INTRODUGAO Ao estudarmos 0 filisofo Blaise Pascal nos deparamos com diversos assuntos que ele abordou, mas embora ele tenha tratado de sortidos temas, variando da epistemologia a geometria, antropologia a teologia, hé um principio que rege todos os assuntos, a saber, a natureza humana, E, segundo 0 filésofo, dentro do campo da natureza humana hé uma suficiéncia do situagdo que deve ser considerada obrigatoriamente dentro desse estudo: a homem. ‘A nogdio de insuficiéncia € central para 0 pensamento antropolégico e epistemolégico pascaliano, O que se observa dentro de suas ponderagdes é que tanto em relagdo ao conhecimento quanto ética, assuntos dos quais enfaticamente o filésofo trata, ha Licenciado em Filosofia pela Faculdade Catdica de Andpolis| 'P* Mestre em Cigncias da Educago Superior De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 na insuficiéncia humana sua base fundamental, considerando-2 como parte essencial da vida do homem. E impossivel elaboramos um estudo com base filoséfica sobre os escritos pascalianos relacionados a temas como ética, conhecimento e salvagdo sem que seja dada a particular importéncia a essa questdo. Neste sentido, a proposta deste trabalho é efetuarmos uma reflexdo, enfatizando as questdes antropoligicas, ressaltando a ideia de insuficiéncia presente na natureza essencial do homem, tendo como base os escritos de Pascal, mais especificamente, a obra Pensamentos € a obra O Homem Insuficiente: Comentarios de Antropologia Pascaliana de Luiz Felipe Pondé. Para comegarmos nosso estudo acerca da condigo humana no pensamento pascaliano é importante ressaltarmos que no temos a intengfio de abordar esta temética a partir de uma nogdo pessimista do homem, tal como o fizeram alguns estudiosos de Pascal, que deram demasiada énfase & miséria humana e nao consideraram a sua grandeza espiritual, (como, por exemplo, Luiz Felipe Pondé), Pascal, devido influéncia do pensamento agostiniano em suas obras estaria mi préximo do pensamento dos padres do deserto, que enfatizavam como sinal da grandeza humana a capacidade intelectiva que poderia levar 0 homem ao reconhecimento de sua miséria © a buscar assemelhar-se ao seu Criador conhecendo-O. ‘Ao aproximarmos seu pensamento da patristica oriental, descobriremos muitas nuances ¢ ideias que relacionam o francés aos padres do deserto. E ao tragar um caminho que nos leve a compreender que a insuficiéncia humana, jé identificada como 0 pecado pelos padres do deserto, esté em concordancia com a o pensamento pascaliano, descobriremos que a grandeza do homem relacionada a capacidade de pensar passa pelo reconhecimento de Deus. © homem & como um peregrino no mundo em busca de conhecer algo que o leve de volta para si mesmo. E 0 que pretendemos com esse trabalho é fazer esse caminho de retorno do homem para o que Ihe ¢ essencial ¢ Ihe completa, Estudando a obra de Pascal, veremos que o proposto pelo fildsofo & um retorno para dentro de si e uma reflextio desse eu interior para o exterior. Pascal nos leva a descobrir no homem onde esté a sua grandeza, sua identidade, seu verdadeito eu camuflado por tantas méscaras sociais, intelectuais © tantas outras que o fizeram perder seu sentido origindrio da vida. Para entender como se faz esse caminho de retorno abordaremos primeiramente as questies epistemolégicas na filosofia pascaliana. © homem ¢ incapaz de chegar a esséncia das coisas € aos primeiros principios, pois a razio ndo pode compreender os campos que esto lades demonstrativas. No momento em que a razo reconhece esse De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 limite ela o rompe eo supera, “a titima tentativa da razdo é reconhecer que hé uma infinidade de coisas que a ultrapassam” (PASCAL, 2005 af. 267). A situay io do homem, segundo Pascal, ¢ de miséria e de grandeza. Na primeira parte desse trabalho esse tema seré abordado de forma a percebermos que o homem é insuficiente pelo fato de haver uma caréncia essencial em seu coragio de algo que esté para além dele, ou seja, de algo Sobrenatural. Mas também veremos que 0 homem & grande por perceber essa caréncia e poder buscar conhecé-a, algo impossivel para outros seres que nao pensam acerca de sua existéncia, Essa ambiguidade estard presente em nosso trabalho, devido Pascal estar sempre nessa perspectiva de um homem paradoxal Num segundo momento, mais especificamente na segunda parte, trataremos da condigdo humana na filosofia de Pascal, abordada a partir de reflexdes existenciais antropolégicas. A questo fundamental dessa parte &: 0 homem insuficiente cria um eu suficiente para suprir a caréncia de estima e admirago que ele adquire ao voltar seu amor para si mesmo? Perdido entre o nada ¢ o infinito, entre a pequenez ¢ a grandeza, o homem imagina outro eu que se adapte a0 gosto dos outros homens € que seja digno de estima e admiragdio. Pascal chega a falar num édio que o eu cria de si mesmo, pois necessita de outro cu para realizé-lo em sua existéncia, do homem moderno, Pascal nos mostra Apés examinar a formagdo do “eu odios a condi jo paradoxal em que se encontra o homem, perdido entre o nada € o infinito. Esse mesmo homem busca, a partir da imaginagdo, a “grande senhora enganadora”, se desvincular de sua insuficiéncia e miséria e assumir uma condigdo de grandeza e suficiéncia Esse homem “suficiente” modemo perde-se da dimensiio do sagrado e, as veremos como Pascal nos aponta que 0 homem sem a abertura para Deus se fecha a uma realidade absoluta que transcende a esse mundo e que, aqui se manifestando, 0 santifica € 0 toma real. Somente em contato com o sagrado o homem pode ter a possibilidade de um ponto fixo no universo. Acredita ainda que a vida tem uma origem sagrada e que ela se realiza plenamente quando esté em unido com o mesmo sagrado originador de tudo logo que o homem modemo abdica de tais crengas absolutizando a razo, assumindo uma nova situagdo existencial onde o sagrado se tora um obstaculo para sua liberdade. © homem quer bastar-se a si proprio se dessacralizando ¢ dessacralizando 0 mundo, O que antes era sagrado por participar de um todo agora se tora uma sact lizagio do “cu” se tomando um dominador dos outros “eus”, Verificaremos que Pascal concorda com Descartes quanto a dualidade do homem que composto de alma e de corpo. Porém, ele sugere que ha uma terceira ordem que & a De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 caritas como reguladora dessas duas e veremos, ainda, como 0 orgulho quer revogar para si o lugar da caritas e causa a desordem no coragao do homem. Com o orgulho ¢ a desordem 0 homem, para Pascal, se abandona em divertimentos para ndo pensar em sua insuficiéncia e em sua miséria no mundo caético vai rio de sentido. E com isso cria-se outro paradoxo na condigdo humana, o homem que busca na agitago o repouso € quando o encontra ndo ¢ capaz de suportar o tédio que ele produz. Pascal encontra 0 equilfbrio da condigao humana e a solugdo para essa dualidade paradoxal na revelagdo divina. Na revelagdo cristd o homem pode encontrar a compreensio para seus paradoxos € para as desproporgdes em que se encontra, Jesus Cristo assume a condigao miseravel do homem e nao perde sua divindade © nele homem se reencontra com sua natureza perdida e com sua miséria em uma s6 pessoa. Temos assim, em Jesus, 0 equilibrio das trés ordens: do corpo, do espirito e da caritas. Todas essas reflexdes serdo detalhadamente analisadas partindo de uma reflexdo, segundo a concepgdo agostiniana, sobre como se deu o processo da passagem do homem antes do pecado para o homem de natureza decaida apds 0 pecado que © grande causador da desordem no coragao humano, E quando o homem tomou consciéncia da possibilidade de ser suficiente na natureza sem necessitar de Deus, este foi o momento em que sua suficiéncia se transformou em insuficiéncia. Contudo, veremos que Pascal chegara & conclusdo de que para o homem em seu estado de insuficiéncia a tnica possibilidade de redengao € apostar na existéncia de Deus, para ser mais exato, no Deus Cristo. Dessa forma, a filosofia, assim como todas as ciéncias, & insuficiente para compreender a natureza do homem e, portanto, a busea desse saber se di no campo da teologia, Este trabalho esta estruturado de tal forma que seja possivel ao leitor captar que com a revelagdo cristd o homem pode ser regenerado de sua insuficiéncia natural e preencher sua caréncia ontolégica do Sobrenatural. E também que o vacuo latente no coragao do homem poderd ser preenchido por Deus que, mesmo se revelando em Jesus Cristo, se esconde alimentando 2 razdo pela busca ¢ também para que essa ndo venha a cair na presungdo de querer dominar seu Criador e sua razdo de existir: Deus. O HOMEM “SUFICIENTE” Todo filésofo constréi seu pensamento tendo como base uma questdo essencial e © problema que dé inicio & construgdo do pensamento de Blaise Pascal & semelhante ao de De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 René Descartes, outro filésofo da Modemidade. Para ambos, 0 problema consistia em refletirmos sobre em que podemos apoiar nossas certezas e nossas ideias a respeito das coisas. No entanto, embora 0 centro do problema seja simile, a solugdo encontrada por Pascal foi bem diferente da de Descartes. Enquanto Descartes utiliza como base 0 pensamento © 0 intelecto, onde o critério para avaliar a certeza de uma ideia ¢ a clareza e a distingdo, Pascal parte de um outro principio, o das evidéncias © a experiéncia dos sentidos. Todavia, Pascal, embora nese principio se aproxime dos empiristas para fundamentar seus pensamentos, ele se distancia quando afirma que o homem ¢ além do intelecto e dos sentidos © que é preciso levar em conta o homem em sua totalidade, considerando aspectos como 0 coragao (sede do intelecto e das emogdes) e os sentimentos ¢ isso faz de Pascal um Filésofo singular da Modernidade. Vamos abordar as questées epistemolégicas oriundas de debates que ocorriam na modemidade acerca da existéncia e da forma de inteligit a Deus. E, também, demonstraremos como a razio ¢ insuficiente para dar respostas ao homem acerca daquilo que esté fora de seu campo de compreensio € que, para chegar a este conhecimento, & preciso trati-lo na ordem do coragao que € a fonte do saber divino e que abre o homem a uma ordem superior, a caritas. Aprofundando nos debates em que Pascal confrontava suas ideias, veremos ainda que a razo & uma marca da grandeza do homem ¢ também o que demonstra a ambiguidade presente em sua constituigdo pois a capacidade de intelecgdo & também seu drama existencial por fazé-lo buscar dar razdes da sua existéncia, Esses debates académicos influenciaram na formagdo do pensamento filoséfico de Blaise Pascal e tiveram influéncias para o homem que se formava no séc. XVII na sta forma de entender como se dé a sua constituigao do homem no mundo segundo o pensamento pascaliano. A grandeza do homem ‘A modernidade € marcada pela busca de explicar tudo pela razio natural. Todo mistério 6 tido como algo que nao inter sa ao homem que agora busca na agdo a realizagio plena de sua vida na natureza, Os modernos elaboram todo seu pensamento a partir do signo da divida pelo qual tudo pode ser questionado, até mesmo a existéncia de Deus. Pascal esta no centro desse debate © busca responder as questdes do seu tempo a luz de filosofia agostiniana, Dentro desses questionamentos se destacam, no sec. XVII, duas linhas de cerca de pensamento dentro do cristianismo modemo que se enfrentam quanto as concepgdes De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 t6picos ligados & Teologia crista como a graga divina e a salvagao dos cristdos. Dois grandes representantes desse debate eram os libertinos ¢ os jansenistas. Os libertinos se constituiam de uma série de componentes fundamentais da cultura francesa que tentavam responder aos problemas espirituais da época. Eles assumiam uma postura eética, exterminando todo dogmatismo ou o que pudesse ser obstaculo para a razo. Assim, a religido era seu alvo principal, uma vez que as chamadas verdades religiosas apresentavam raizes basicas na certeza, Neste sentido, a verdadeita religido seria a filosofia, Ji 0s jansenistas concebiam o cristianismo como a verdadeira religido. Faziam apologia ao cristianismo primitivo e & patristica, em especial a Santo Agostinho, o qual exerce forte influéncia no grupo dos jansenistas no que se refere & graga divina e a salvacdo. Os cristdos sfio “novas criaturas", ou seja, aqueles que sto transformados pela graga € so conduzidos por ela a sair do abismo profundo. Neste sentido, os jansenistas tentam criar uma espiritualidade voltada para a conciliagao do pecado e da graga presente no homem, A religido, segundo posigdes jansenistas, tem a fungdo de mostrar ao homem. lo no mundo, sua pequenez, sua miséria, sua fraqueza e, assim, fazé-lo sent irsse como per sem outra alternativa senao ir para os bragos de Deus 0 qual é seu Gnico refiigio e fora, E nese ponto que Pascal também se fixard a fim de mostrar ao homem sua grandeza ¢ sua miséria, indicando que as contradigdes ambiguidades existentes na vida dos homens apenas sdo passiveis de resolugdo na medida em que so conciliadas com a forga de Deus. A filosofia mecanicista, desenvolvida a0 longo dos seiscentos, propde uma visio meramente naturalista ¢ imanentista do homem. Mas a verdade & que para Pascal essa visio € reducionista. © homem pascaliano & um ser ndo meramente natural mas, sobretudo, aberto a transcendéncia, Por isso Pascal, indo ao encontro do imanentismo modemo, reabilita a questo dos milagres ¢ da ambiguidade constitutiva da existéncia humana, nem puramente material, nem angélica e espiritual. “O homem nao anjo nem animal; e por infelicidade, quem quer ser anjo € animal.” (PASCAL, af. 358) Pascal faz a distingdio entre pequenez natural e grandeza espiritual ¢ demonstra © que o homem tem de mais elevado acima de seu corpo e de suas capacidades naturais: a raza . E, também, 0 que ele tem de menor: sua extenstio. Com essa disting’io Pascal nos aponta que © homem possui um potencial espiritual que ultrapassa suas simples capacidades naturais e, dessa forma, 0 pensamento Ihe da uma superioridade sobre a natureza. Posso conceber um homem sem mdas, pés, cabesa (pois s6 a experiéneia nos ensina que a caboga 6 mais necessiria do que os pés); mas no posso De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 conceber © homem sem pensamento: seria uma pedra ou um animal. Mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem 0 ‘mata, por que sabe que morre e a vantagem que 0 universo tem sobre ele; © universo desconhece tudo isso (PASCAL, af. 339). Semelhante a Pascal, os padres do deserto concebiam que o intelecto era o que Jevava 0 homem a uma divinizagio, a buscar assemelhar-se a Deus e, também, capacitava 0 homem a transcender esse mundo e, assim, conduzislo aos mais altos patamares da contemplagdo do mundo e de si mesmo, Para Clemente de Alexandria a contemplagdo tinha um caréter fortemente intelectualista no qual a bem-aventuranga era a compreensio plena do incompreensivel (OLIVIER, 2003, p. 27). Dessa forma, o intelecto era tratado como uma grandeza humana pois podia dar ao homem a capacidade de compreender a si mesmo ¢ de assemelhar-se a0 seu criador, algo impossivel a qualquer outro ser da natureza que ndo se abria para a transcendéncia desse mundo, Pascal nos aponta a grandeza da razo ante a natureza, - heranga cartesiana — mas sem deixar de considerar que 0 homem esta fadado a permanecer no seu estado de miséria, ou seja, o homem, para ser grande, deve reconhecer suas fraquezas e misérias pois 0 conhecimento nao o liberta de sua insuficiéncia, Desse modo, Pascal compara o homem a uma arvore que nao & capaz de saber de sua miséria e, por isso, o homem Ihe uperior. Com isso, essa concepgdo de grandeza no pensamento pascaliano nos remete a um tema muito caro a patristica © ao pensamento de Pascal que € a humildade, Somente se rebaixando e considerando a grandeza de Deus ¢ a miséria da condi jo humana & que © homem pode se desvincular de sua natureza insuficiente e buscar em Deus suprir a caréncia de transcendéncia no seu coragao. Sto Francisco de Assis identifica essa grandeza insuficiente do homem ao clevar a pobreza acima de qualquer outro bem terreno, O Santo nos demonstra, simile a Pascal, que a grandeza do homem esti em tudo perder para encontrar-se com 0 Tudo, 0 Infinito, o Sumo Bem. Sao Francisco percebe na natureza decaida do homem a necessidade de fundar toda a vida fora dessa vida pessoal e assume isso de forma concreta com a Pessoa de Jesus Cristo. E ai que reside a grandeza do homem, nada possuir e participar do que possui tudo e, no caso de Pascal, nada conhecer ¢ participar da vida do que conhece tudo. Percebemos que Jesus ¢ 0 Unico que une a natureza decaida com a natureza divina e, portanto, dignifica o homem a partir de sua revelagdo, Desse assunto trataremos posteriormente. ‘A bumildade dé ao homem a capacidade de fugir do orgulho que, como veremos mais adiante, é uma das maiores causas da desordem da condigdo humana. Sao Jodo De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Cassiano nos aponta 0 orgulho como causador de todos os pecados no coraso do homem e, inclusive, foi a partir do orgulho que houve a queda dos anjos que ndo quiseram adorar a Deus. “Como uma praga mortal destréi nao apenas um membro do corpo, mas o seu todo, assim o orgulho corrompe a alma, nao uma parte dela” (Sao Jodo Cassiano)'*’. Pascal identifica © orgulho como causador da desordem na vida do homem pois ele, quando habitando em seu corago, causa uma disjungdo nos elementos constitutivos de sua humanidade que s6 podera ser reabilitada através da caritas. Contudo, percebemos que o pensamento é a esséncia do homem porque o eleva de sua miséria natural e o faz. ter consciéncia de sua miséria essencial. Todavia, chegamos a outro ponto importante de nossa discussdo: até onde vai essa capacidade humana de pensar © estabelecer conceitos acerca do mundo e da existéncia? Quais sfio os limites da razdio epistemologicas na filosofia pascaliana, pois 0 estudo da condigéio humana nos leva a meditar acerca das possibilidades e dos limites do conhecimento racional. Os limites da Razio primeiro dado importante a ser considerado nesse t6pico acerca dos limites da razio € 0 contexto hist6rico ¢ 0 debate epistemolégico que se trava no século XVII. O periodo & mareado pelas confusdes oriundas do debate teolégico entre Cristdos Catélicos e Reformados. Estas “brigas” acabaram por gerar uma esperanga de alguns fildsofos em encontrar refiigio ndo mais somente nas Sagradas Escrituras mas na Natureza, Inicia-se, entio, tum processo de advogar a primazia do espitito cientifico. Também encontramos neste periodo um forte apelo ao subjetivismo, ou seja, uma superioridade que é atribuida ao sujeito livrando-o de toda e qualquer dependéncia da Igreja. Dessa forma, a razo para o homem modemo ¢ concebida como ciéncia aonde saber & poder. Sendo assim, neste perfodo, “a ciéncia recebe do homem a forga de, inclusive, ser uma transformadora da realidade” (CHAUI, 1995, p. 95). Nao ¢ disto que surge um movimento ateista, visto que, por exemple, obras de Kepler, Descartes, Fermat, dentre outros, que marearam o inicio do periodo moderno, ndo so obras anticcristis. Tratasse de obras revestidas de um cariter libertério, que indica a capacidade de se chegar & verdade nos despindo de nossos preconceitos, questionando nossos Retirado de teologiabizantina@blogspot.com.br acessado em 10/10/2012 De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 habitos de pensamento mais arraigados e procurando um critério de verdade que nao esteja apoiado nem na autoridade da tradigdo cientifica inspirada em Aristételes, nem na autoridade Biblica, ‘A grande questdo que emerge neste periodo &: como buscar, via racionalidade & questionamentos acerea de habits de pensamento mais arraigados, um critério puro de verdade, ou seja, algo indubitavel? E qual seria, entdo, o critério seguro mediante © qual conhecimento poderia se apoiar? Para os modemnos este critério seria a evidéncia matemética. Critério esse que marca fortemente o periodo moderno, o eéleulo. Fa partir desta atitude libertadora e caleulista em que 0 mundo moderno se encontra que 0 filésofo René Descartes, grande expoente da filosofia modema, introduz na €poca um novo tipo de saber centrado sobre © homem € sobre a racionalidade humana. Ele representa uma tentativa de emancipagao do espirito racional de todo © qualquer preconceito teoldgico e aristotélico. Pascal era matemético e ndo tinha em seu pensamento a evidéncia matematica como a soberana, como 1 seguro para 0 conhecimento. Se por um lado Descartes representa 0 espirito humanista e a crenga de que a ciéneia podera salvar os homens da davida semeada pela Reforma Protestante, por outro Pascal ndo confia a cigncia essa tarefa contrariando em parte © método cartesiano, Enquanto Descartes indicava a ciéncia como meio para se chegar a verdade afirmava que podemos conhecer 0 homem fazendo uma ciéncia dele mesmo (MORENTE, 1989, p. 20), Pascal iria se opor a ele ao afirmar que a ciéncia em si ndo chega a totalidade do fatos, ou seja, nao podemos chegar aos primeiros principios e ng podemos conhecer 0 homem pela cigncia (PASCAL, 2005, p. 21). Pascal, em sua filosofia, achava um absurdo, uma arrogdncia humana buscar conhecer o prinefpio primeiro (NICOLA, 2005, p. 242). A tinica coisa que possibilita chegar a perfeigdio da alma ¢ a misericérdia divina, Nao ha plenitude sem Deus. E, sendo assim, 0 homem no é um ser meramente natural, como afirmava Descartes mas, sobretudo, ¢ um ser sobrenatural e isto justifica o seu ceticismo quanto a ciéncia pretender conhecer o homem (NICOLA, 2005, p. 243), Alm disso, a ciéncia, segundo ele, nao livra 0 homem das incertezas e s6 “chega-se & certeza do mundo a partir da certeza de Deus” (ZILLES, 1991, p. 30). Se Descartes afirma ser possivel conhecer 0 “mundo”, a ciéncia pascaliana sé pode falar daquilo que ¢ observado e, com isso, 0 universo € muito reduzido. Se por um lado Descartes tenta fundar a fé como “fundamento filoséfico da religio crista” (ibidem) a partir De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 da certeza de si mesmo, Pascal nao iré se dirigir & razdo para demonstrar e convencer nada nem ninguém, mas 0 coragdo. Nao pretendemos aprofundar nas querelas entre Pascal e Descartes, visto que nao é 0 objetivo desse trabalho; porém, cabe fazer uma ressalva de que ndo se trata somente de uma questo epistemoligica mas, também, Antropolégica onde a capacidade limitada de conhecimento racional do homem demonstra também quem ele é, ou melhor, sua condigao insuficiente. Dessa forma, a razdo sé pode conhecer aquilo que esté em sua capacidade finita, © mais ¢ obra da imaginagdo ou da vontade, temas que serdo abordados mais detalhadamente em outro t6pico. A insuficiéncia da razio € uma das marcas mais contundentes da limitagdio humana para Pascal, pois & af que também se constata a insuficiéncia da natureza humana. Com isso, 0 filésofo busca explicar teologicamente, a partir da concepgdo agostiniana de pecado original ¢ do livre arbitrio, essa situagdio de insuficiéncia da razio como marca da natureza decafda do homem. Segundo Pascal o homem, enquanto estava em sua primeira natureza e conhecia Deus, tinha acesso direto ao conhecimento infinito pois néo havia corrupgaio dessa natureza. Quando 0 homem cai em pecado ele & privado da contemplagao de Deus que se “esconde” e, por isso, o homem fica a mereé de sua natureza corrompida e busca deixar de fazer parte de um plano divino para tornar-se puramente carnal e, portanto, limitado e insuficiente. Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz ¢ de inteligéncia; comuniquei-Ihe minha gléria ¢ minhas maravilhas. Os olhos do homem. viam, entio, a majestade de Deus. Ndo se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade © nas misérias que o afligem. Mas nao péde manter tanta gloria sem cair na presungo, Quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu socorro, Subtraiu-se ao meu dominio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo, abandonei-o; (.) de maneira que hoje, o homem tornou-se semelhante aos animais, e num. tal afastamento de mim que apenas Ihe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se extinguiram ou perturbaram todos os seus conhecimentos! (PASCAL, af. 430), Percebemos que ainda resta uma “luz confusa de seu autor”, que € Deus, e que © afastamento desse “autor” causou o afastamento de si mesmo, Mais adiante veremos como a corrupsdo gerou muitas outras debilidades no homem que agora tem que lidar com sua miséria © como & possivel supericla Ha uma contrariedade entre 0 pensamento de Pascal e os novos projetos intelectuais modemos. De um lado vemos o homem voltando-se para si mesmo, caindo em De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 tum subjetivismo que sé faz com que o homem se perca mais de si e se afaste de seu Criador. De outro, temos Pascal, um grande matemitico ¢ fildsofo que abandonou todos os circulos intelectuais de sua época para buscar o verdadeiro conhecimento fora do racionalismo e das certezas “claras e distintas’ Algo que sé seria possivel conhecendo uma natureza que nao fosse a sua ¢ Ihe desse um conhecimento mais seguro ¢ indubitavel que o de sua insuficiente Pascal aponta que Descartes, Montaing e Epicteto nao conseguiram lidar com. © que estava para além de suas capacidades intelectuais e acabaram criando conceitos definigdes para verdades que nao esto no campo filoséfico ¢, sim, na “verdadeira rel que se revelou em sua maxima totalidade em Jesus Cristo. “Os filésofos decididamente nada conhecem de nossa natureza”. (PASCAL, af. 463). Para o francés, somente com a abertura para a revelagdo divina o homem poderia ter acesso ao conhecimento de sua natureza insuficiente e, a0 mesmo tempo, para sua natureza divina perdida com o pecado original. Por isso, somente 0 conhecimento de Jesus Cristo poderia dar ao homem a capacidade de transcender a esse mundo ¢ ter acesso a uma verdade infinita ¢ universal, como nos sugere Agostinho em uma eélebre passagem do “Livre Arbitrio”, Se essa verdade fosse da mesma natureza que a nossa mente, seria também cla sujeita ao devir. Se a verdade permanece sempre inalterada, ndo ganha nada quando vemos mais claramente, mas intacta e si continua a iluminar os que tem o olharfixo sobre elae, de modo contri, pune com a escuridao os que viram o olhar para outro lugar. Além disso, julgamos © nosso conhecimento mediante a verdade, mas no podemos nunca submeter a juizo a propria verdade. Dizemos, por exemplo, que nossa mente entende menos daquilo que deveria entender, ou entdo que no compreende quanto deveria compreender; porém a mente deveria compreender mais enquanto se aproxima ¢ entra em contato com a verdade eterna, Portanto, se a verdade nig & nem inferior nem igual a nossa mente, ela deve ser mais elevada e mais nobre (AGOSTINHO, ) Um dos primeiros fatores que leva Pascal a acreditar que a revelagdo € a tinica fonte de verdade é que dificilmente a ciéneia pode criar uma verdade universal para tudo, para ele cada caso exige um método € com isso uma experigneia diferente. Cada um dos métodos revela um dom do espirito diferente e somente em Jesus Cristo, embora seja ininteligivel para os critérios humanos € venha de fora do humano, 0 homem seria capaz de esclarecer os mistérios acerea de si mesmo e alcangar uma universalidade no tempo e no conhecimento. Quando a razdo assume sua insuficiéncia diante dos mistérios da fé, ela se abre para buscar uma nova compreenstio de sua natureza e isso faz com que ela reconhega sua verdadeira grandeza e se cale diante do mistério que se apresenta para contemplé-to, Pascal, a0 apontar os limites da razdo e a abertura para o conhecimento com base na fé, sugere que & De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 preciso buscar as certezas no com os sentidos nem com a ciéncia, mas com o coragdo que & fonte dos sentimentos e da inteligéncia do homem ¢ o tnico que se abre para as questdes da fé sem a arrogancia de buscar certezas desnecessérias pois possui certezas maiores que ultrapassam a pripria razao, Conhecimentos do Coragio Um aforismo de Pascal (af, 277) que ficou bastante conhecido é: “o coragao tem suas razdes que a ravdo desconhece” . Neste pensamento o fil6sofo francés cita por duas vezes com diferentes significados a palavra razio. De um lado ele fala de uma razéo que Pertence ao coragdo, de outro ele distancia a razao do coragdo, Tudo isto para indicar que 0 coragiio tem suas préprias razdes, ou seja, as emogdes, os sentimentos, as paixdes so causas de muito do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Com isso ele difere a consciéneia intelectual das paixdes e sentimentos, No entanto, ndo podemos considerar que o sentiment to valorizado por Pascal seja confundido com sentimentalismo. Ao contrério, sentimento é considerado por ele como sendo um conhecimento intuitivo imediato, o que difere da razdo que é um conhecimento por conclusdes, mediado, Pascal ope 0 coragio a razdo, mas com a palavra coragdo ndo designa © irracional-emocional em oposigio ao I6gico-racional. A palavra coraglo designa o nicleo ou o centro da pessoa humana (ZILLES, 1991, p. 35) Partindo ndo mais somente do sujeito, Pascal no mostra que a tinica certeza que possuimos ¢ a nossa incerteza, A diivida com relagao ao destino da alma do homem perdura por toda a vida, Pascal até afirma ser a ciéncia geométrica um conhecimento superior, mas de maneira alguma o & absoluto, visto que um conhecimento absoluto implicaria conhecer a totalidade da Natureza (MONDIN, 1981, p. 95). 0 filésofo Pascal excluiu a possibilidade de demonstrar a existéncia de Deus por meio de argumentos lgicos ou de considerages racionais sobre a perfeigao da natureza, que por si sés ndo provam a obra de um divino criador © 86 se mostram decisivas aos olhos de quem jé escolheu a fé intemamente (NICOLA, 2005, p. 242). Essa discusso ace do conhecimento intuitivo © do conhecimento geométrico se relaciona & qui Go cartesiana do conhecimento de Deus. Descartes afirmava ser possivel De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 chegar ao conhecimento de Deus por via da razfo. Ele define Deus como uma substéncia clara e distinta, como a ‘inica coisa certa de conhecimento que o homem pode adquirir. A base de todo saber cartesian ¢ a certeza do cogito, ou seja, de que eu sou um ser que pensa, duvida, concebe, afirma, nega, que quer, que no quer, que imagina e que sente (MORENTE, 1989, p. 19). A verdade do cogito significa a verdade do sujeito. Para Descartes, se ficarmos presos a verdade do cogito nio poderemos entdo prosseguir ¢ 0 sujeito cartes cairia entéo num profundo solipsismo, visto que sé se tem certeza de sta existéncia (MORENTE, 1989, p. 19). Enfim, o que fazer se s6 soubermos da nossa existéncia? Encontrando em si a ideia de infinitude e perfeigo Descartes afirma que estas ideias ndo poderiam ser originadas nele que, por sua vez, € finito e imperteito. Logo, ha um ser infinito ¢ perfeito que nos originou tais ideias e este ser ele chama-o de Deus. Para 0 filisofo a existéncia de Deus ¢ uma ideia inata e ele consiste numa substdncia infinita, eterna, imutavel, independente, onisciente e da qual eu mesmo e todas as outras coisas existentes fomos criados. Esta existéncia € provada por Descartes, segundo Morente (1989), através de trés argumentos: # 1° Argumento — Pela simples consideragdo da ideia de ser perfeito Porque existe a simples idéia de um ser perfeito e infinito, dai resulta que esse ser necessariamente tem que existir 2° Argumento — eu existo com uma existéncia contingente Se me descobri como eu pensante ndo consigo perceber o fundamento da minha existéncia, sendo ela indeterminada, acabarei sempre admitindo um ser, uma existéncia (Deus) que seja o fundamento da minha existéncia, + 3° Argumento ~ Argumento ontolégico O terceiro argumento, ¢ © mais consistente para Descartes, & a prova ontolégica de Santo Anselmo que o filésofo resgata por aché-la bastante valida, Sendo a existéncia parte integrante da esséncia ndo € possivel ter a idéia de Deus sem simultaneamente admitir sua existéncia, A existéncia & insepardvel de Deus e, portanto, Deus existe. Sendo assim, Deus é a garantia de todas as verdades claras e distintas, mas ele deixa-me livre para que eu continue tendo ideias confusas e obscuras. Cabe, entdo, a nés, buscar afirmar somente as ideias claras e distintas. Todavia, afirmando somente estas dltimas ideias saber mos Muito pouco, mas o que realmente importa ¢ que o que saibamos seja verdadeiro e consistente, ow seja, ndo apresente duividas. Logo, na concepedo cartesiana podemos pensar Deus como um fundamento epistemologico, ou seja, uma justificagio para a ciéncia, Ele é a certeza, ou melhor, a garantia De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 de que todas as coisas que penso nao sio ilusérias visto que Deus ndo pode me enganar por ser perfeitissimo. ‘Ao contrario de Descartes, Pascal nfo vai construir nenhum sistema metafisico a partir das evidéncias e clarezas dos atributos de Deus e da imortalidade da alma. Aliés, alguns comentadores dizem que Pascal ndo construiu metafisica nenhuma. Porém, ndo vamos ratar da metafisica pascaliana, pois nosso interesse & nos determos na critica que Pascal faz & metafisica cartesiana para entendermos as questdes do coragao no pensamento do francés. Dessa forma Pascal, ao questionar Descartes, aponta que as questdes da imortalidade da alma, dos atributos de Deus e dos primeiros principios séo de ordem do conhecimento do coragao e ndo da razao, “Eis o que & a f8: Deus sensivel ao coragdo, ndo a razio” (PASCAL af. 277). Por isso, 0 ele vai desmontar a metafisica cartesiana, principalmente porque considera uma arrogancia de Descartes tentar provar a existéncia de Deus simplesmente para dar seguranga a suas afirmagdes absurdas. Também denunciard Descartes por tentar criar um modelo metafisico que tenta demonstrar a existéncia de Deus com um sistema matemético, excluindo Jesus Cristo como mediador. Descartes, a0s olhos de Pascal, bem que tentou passar em sua filosofia sem Deus, por isso acusa-o Pascal: Descartes precisou recorrer a Deus apenas para dar o piparote para por o mundo em movimento: “Nao posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas ndo péde evitar fazé-lo dar um piparote para por o mundo em movimento; depois do que nao precisa mais de Deus” (PASCAL af. 177). Pascal demonstra que ha razies e certos efeitos para tudo, os efeitos sdo visiveis aos olhos enquanto as razSes $6 sto possiveis ao espirito. Ndo se trata de um ndo saber, mas uum saber ver 0 que esté para além da compreensdo da raz, Para isso, € necessério ter um coragio inclinado para o que esté para além do nosso saber racional. Aqueles que tentaram compreender o homem somente pela razdo ¢ desconsideraram 0 que escapava a ldgica tém, na verdade, medo de compreendé-lo, De forma que o homem tem medo do nao-saber e pode com isso inventar conceitos que dao segurangas ao mundo de insegurangas em que vive. Dessa forma voltamos & questio inicial desse tépico, nao ¢ somente pela razio que 0 homem chega ao conhecimento de Deus mas pela via do coragdo. Primeiro Pascal chamou esse conhecimento de “instinto”. “Apesar de todas as misérias pelas quais somos afligidos e oprimidos, temos um instinto irreprimivel que nos eleva.” (PASCAL, af. 430). S6 que o que ele tem em mente é mais do que instinto porque engloba a nogdo de amor, entdo ele tenta a “caridade”, amor a Deus e ao préximo, Mas a caridade poderia prescindir de Deus. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Assim, depois de uma exaustiva busca por esse “ wo sei que” que dé sentido a0 homem ¢ que esté relacionado ao saber intuitivo, Pascal escreve em um pedago de papel as seguintes palavras: “Coragio. Instinto. Prinefpios” (PASCAL af. 281). Chegou aonde queria na palavra “coragéo”, “Nao se pode encontrar Deus a no ser procurando-O de todo coragdo. [..] A certeza ndo € para 0 coragao” f preciso que o homem tenha 0 coragdo inclinado por Deus. A nogio de coragio como sede das emogdes e dos pensamentos mos remete novamente ao pensamento cristo dos monges do deserto, Para esses, ter um coragdio centrado significava sair da dispersio do mental, dos pensamentos que vo vém. O coragfo tem a fungdo de integragao da personalidade, ou seja, integrar a vida e 0 intelecto, donde essa experiéncia de “fazer o intelecto descer até 0 corago” aproxima o homem do coragdo de Cristo € 0 afasta do olhar julgador e orgulhoso que criou de si mesmo, Por isso os judeus que esperavam sinais visiveis da divindade do messias e achavam que tais sinais se dariam na ordem de grandeza material nao abriram o coragao para compreender a revelagdo de Jesus C isto impossibilitando Deus de ali depositar as marcas divinas. Eles estavam com 0 coragdo endurecido, assim como muitos outros que também no aceitaram que essa razdo transcendia a razio pura ¢ eta preciso abrir 0 coragdo para que ali se colocasse as marcas divinas da caritas. Desa forma 0 coragio expressa o dom de Deus que se relaciona as verdades etemnas, Jé as verdades racionais sao aleangadas pelo esforgo humano e, por isso, sao limitadas. Pascal coloca a racionalidade abaixo das realidades que 0 corago propicia, sendo que s6 € possivel alcangar as verdades elevadas, sublimes, quando nossa mente ¢ elevada por tum impulso onipotente, ow seja, pela £8. Porém, negar a razao é absurdo, pois a razdo ilumina € serve de meio para reconhecermos nossa miséria ¢ se dobrar diante do mistério de Deus. Também considerar somente a razdo € vio, por que ¢ insuficiente, ndo pode dar respostas tudo e, por isso, ndo pode ser garantia de completude, Dessa forma, exclui-se a possibilidade de fideismo ou naturalismo no pensamento pascaliano, visto que a f& © a raziio no se excluem, mas se complementam. Percebe-se como a filosofia cartesiana teve forte influéncia no pensamento de Pascal € que, a partir da tentativa de responder as questées racionais de sua época, Pascal clabora a ideia de conhecimento do coragdo ¢ dai muitos outros conceitos importantes na anilise da condigdo humana. Também, verifica-se a necessidade de transcender aos limites da razio para buscar no coragdo as respostas a questées que esto distantes de nossa compreensio limitada, Com isso, concluisse do pensamento pascaliano acerca do De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 conhecimento do corago que os limites da razdo e a abertura para os conhecimentos do coragiio nfio sé marcam a insuficiéncia humana como também demonstra sua grandeza, pois reconhecer a insuficiéncia ¢ uma grandeza jé que é no reconhecimento humilde da insuficiéncia que habita a suficiéncia do homem, e 0 coragao € o érgdo propulsor desse reconhecimento. © homem insuficiente moderno Pascal se dedicou muito aos estudos cientificos © muito contribuiu para dreas como matemética, fisica e a geometria. Em suas andlises constata que existem grandes desproporgdes no universo: a linha e o ponto. A linha que representa o infinitamente grande, © ponto o infinitamente pequeno. Também o tempo, que pode ser divido infinitamente. E, por fim, 0 espago, que também pode softer uma divisdo infinita, A tudo isso ele reconhece que pode ser acrescido ou diminuido infinitamente, tema tratado em sua obra Do espirito geométrico aos seus alunos de Port-Royal Ao levantar a possibilidade do infinito Pascal leva o homem a tomar consciéncia de sua limitago. pois o ser humano tem essa nogtio do infinito mais no pode demonstré-la racionalmente. Dessa forma, a razio nao poderia mostrar aos sentidos 0 infinito © mesmo assim ele nao deixa de existir. Essa é uma importante constatagdo para que o homem possa se jo racional ¢ aceitar a insufi abrir as verdades que ultrapassam os limites da compre humana ante 0 infinito de conhecimentos que se apresentam diante dele. Se acharem estranho que um espago pequeno tem tantas partes quanto um grande, deverio entender também que elas so proporcionalmente menores; que olhem para o firmamento através de um pedacinho de vidro para s¢ familiarzarem com esse conhecimento vendo cada parte do eéu em cada parte do vidro, Mas se ndo conseguirem compreender a possbilidade de tais partes ~ to pequenas que sio imperceptiveis para nés- sejam t20 divididas como o firmamento, o melhor remédio seré pedir-Ihes que olhem com lentes capazes de aumentar esse ponto mitido até transformé-lo em prodigiosa massa (ATTALI, 2003 p. 260) Diante da apresentagio dessa limitagdo da razio humana acredita-se obter uma primeira orientagdo para o objetivo desse estudo: entender a condigao humana na filosofia pascaliana, a saber, sua insuficiéncia natural e fazer um caminho de retomo do homem para De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Continuando na nogao de infinito, Pascal conclui que a mesma desproporgaio ocortida no espago, no tempo e€ na geometria ocorre na condigo do homem que ¢ desesperadora diante desses dois infinitos que o cerca. De um lado, a visio de um homem infinitamente pequeno comparado a imensidao do universo que 0 cerca. De outro, a visdo de um homem infinitamente grande frente as particulas minisculas de Stomos que o formam, © homem é um peregrino que esté a vagar entre o nada do qual ele foi tirado © o mistério que o espera com a realidade de sua fi tude, Encontra-se a vagar entre dois espagos infinitos ¢ incompreensiveis para a razio, ignorando essa questdo, pois ele se acha grande 0 suficiente para abarcar todo conhecimento do mundo ¢ descarta aquilo que no esté no seu campo de compreensio sensfvel. Mas, para Pascal, “O que é incompreensivel nao deixa de existir’ (PASCAL, af. 268). E diante dessa complexidade de compreenstio do universo Pascal, mais uma, vez ressalta a insuficiéncia humana observando que o homem esté “Infinitamente distante de compreender os extremos, pois ele & incapaz de ver o nada de onde foi tirado e 0 infinito em que & engolido”(PASCAL, af. 72). Ao ver a cegueira do homem e a miséria do homem, ao othar todo universo mudo e o homem sem luz, entregue a si mesmo e como que perdido neste canto do universo sem saber quem aqui o pds, 0 que veio fazer, o que sera dele quando morrer, incapaz de qualquer conhecimento, sinto-me tio apavorado quanto um homem que, carregado adormecido para uma ilha doserta © medonha acordasse sem saber onde esté ¢ sem meios de sair de ld (PASCAL, af. 693) Na reflexo acerca do universo ¢ o homem Pascal considera o carter insuficiente da existéncia humana que marea essa relagdo onde a raziio se depara com algo que a ultrapassa infinitamente e o homem se encontra em desproporsao com 0 “universo que com sua infinitude o abarca”. Essa insuficiéncia gera no homem uma busca inet sante por algo que dé, no minimo, uma explicagdo para esse caos que se apresenta pois 0 homem treme diante do desconhecido, Com isso brota em seu coragdo uma caréncia do Sobrenatural, ou seja, de algo que dé esperanca de sair da pura imanéncia e que abra o homem a transcendéncia dessa mera existéncia finita e desproporcional. fil6sofo Luiz Felipe Pondé, em sua obra O homem insuficiente, faz um estudo detalhado dessa situa jo dentro da filosofia pascaliana, onde o homem se encontra carente de algo que 0 complete e que esta em outro campo, fora dos moldes racionais e subjetivistas do sec. XVIL ¥e assunto aqui ndo € tratado na mesma perspectiva de Pondé, que ndo sai do campo da insuficiéneia ¢ assume uma postura pessimista com relagdo ao homem. O presente De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 trabalho procura mostrar que o homem com Deus & capaz de superar essa condigao de insuficiéncia sem se desligar da necessidade de estar unido a Deus. Uma forma de suficiéncia na insuficiéncia. A ideia de insuficiéncia na filosofia pascaliana difere-se da nogdo de insuficiéncia dos humanist ' influenciados por Pico de la Mirandola que entendia essa insuficiéncia como uma “incerteza da definigao da natureza humana por uma superabundincia de poténcias” (POND! ontolégica presente na natureza humana, caréncia de algo que estd para além desse mundo. 2001 p. 21). A insuficiéneia na definigao de Pascal nos remete a caréncia Essa caréncia do Sobrenatural no pensamento pascaliano nos remete & influ do pensamento agostiniano acerca da condigao humana no pensamento de Pascal. Segundo Agostinho © homem esté no cativeiro da Babilénia, ou seja, 0 mundo nao ¢ 0 lar do homem & sua felicidade 4 para além desse mundo porque a natureza nunca sera suficiente para completé-lo pois ele aspira bem mais do que a simples satisfagdo humana, Dessa forma, 0 homem nao deve limitar-se a realidade imanente, mas transcendé-Ia, visto essa ndo ser capaz de preencher sua caréncia ontolégica do Sobrenatural: “A natureza pura néo homem nao cabe na natureza” (PONDE, 2004, p. 16). ular [..] 0 © homem carrega ontologicamente essa caréncia do Sobrenatural, pois necessita de algo que esteja para além desse mundo ¢ que o retire da miséria de estar perdido “neste canto do universo sem saber quem aqui o pds, 0 que veio fazer, o que seré dele quando morter, incapaz de qualquer conhecimento” (PASCAL, af. 693). A natureza conduz 0 homem ao relativismo pois nao existe absoluto na natureza, tudo esté numa constante mudanga. Somente com a abertura para o Sobrenatural & possivel uma universalidade, lembrando que se trata de uma universalidade nao no sentido de um saber universal e, sim, algo que esté fora da natureza € que conduz o homem a uma vida ética com valores imutéveis. Os santos expressam essa universalidade, Em qualquer época ou regio & possivel viver como Sao Francisco, por exemplo. ‘A busca incessante na natureza, de algo que preencha a caréncia do homem compde outra marca da sua insuficiéncia humana pois o homem nunca se sente completo, sempre esté em busca de algo. Na moderidade isso & bem explicito pois o homem ama algo pelo desejo que move esse amor, no mais porque ele € bom ou divino, A natureza e 0 trabalho criam sempre novos desejos que nunca vao suprir a carénci humana, Nesse perfodo hd a afirmagao do movimento em contradigdo com a quietude, A devogdo modema é que a vida é 0 movimento do homem. E isso culminard com o mecanicismo e o homem reificado. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Esse desejo insaciével humano parte de sua caréncia ontoligica que, quando na modernidade, se afirma no devir e a mutabilidade ocorre numa desvalorizagdo do sujet. Descartes, por exemplo, parte do sujeito mas no diz o que & o sujeito nem 0 que nko ¢ 0 sujeito. Por isso, no adianta ter respostas claras e distintas para tudo se ndo se sabe nada sobre a alma ou sobre a esséncia humana. Dessa forma, percebemos que o mundo nunca vai comportar a alma humana, € mesmo que se conhega todo o mundo © homem pode ser vazio interiormente. Percebe-se que Pascal no propde uma visto gnéstica de um mundo mal e uma libertagao pelo conhecimento, como jé foi tentado fazer com o seu pensamento. Sua questo se concentra na mudanga ocorrida no sec. XVII quando homem abandona os bens divinos e imutiveis e passa a cultuar bens terrenos e mutaveis; comega a procurar fora o que s6 seré capaz de encontrar dentro de si e procura na natureza aquilo que esté fora dela, no sobrenatural. Com essa inversdo, nota-se a crise ética, moral e religiosa instaurada na sociedade modema, “Se no existem valores de bem e mal em si mesmos eo que importa ¢ a forga do desejo que engendra movimento, tudo é permitido”™*, ‘Ao longo do desenvolvimento do pensamento moderno, principalmente com Descartes, 0 sujeito se torna uma simples maquina de pensar que busca incessantemente algo que preencha essa lacuna em sua existéncia. Ele busca se libertar da insuficiéneia pelo conhecimento cientifico, sendo vitima de outro fator que demonstra a insuficiéneia humana: a imaginagao. Faculdade que pode ser considerada motriz da insuficiéncia humana. E a Imaginagdo a grande enganadora que vai afastar homem da verdade sobre si e impossibilitar que ele reconhega sua natureza verdadeira insuficiente © miserdvel. Esse conceito seré abordado detalhadamente mais a frente. Contudo, reconhecemos no pensamento pascaliano um apelo para que o homem reconhega sua insuficiéneia sem tentar mascaré-la ou preenché-la com outras coisas que esto extemas a ela, Esse mascaramento culminari com a perda dos valores mais importantes para a felicidade nesta vida © para uma possivel existéncia depois dela. Nao se trata de uma aceitagdo do destino e, sim, uma luta alegre ¢ confiante de que a graga divina pode the garantir uma felicidade etema, mesmo que seja no tiltimo momento da vida "* D'ABREU, Rochelle Cysne Frota, Breve abordagem de aspectos religiosos em Pascal e Dostoievshi Texto da aula apresentada em junho de 2000 na UCB. Nao publicado, De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 A CONSTITUICAO DO HOMEM NA MODERNIDADE © homem Deus de si mesmo ~ Drama moderno Como visto a questo de Deus na modernidade envolvia diversos campos do conhecimento, principalmente com relagdo & forma do homem conhecé-lo, por isso tanto apelo as questées epistemologicas. Agora o presente trabalho buscaré deter-se nas questoes voltadas para o campo antropolégico da filosofia pascaliana e, também, questionar acerca das novidades humanistas ¢ libertinas que ansiavam por um homem novo distinto de todos os outros passados. Pascal esté no centro desse debate, principalmente em seu mais famoso livro Pensamentos, onde 0 autor dedica virios capitulos a explicitar a condigo humana ¢ a sua insuficiéneia, Nesse livro, o francés destrinchou 0 homem em toda a sua grandeza e também em sua miséria, Pascal quis retirar todas as mascaras do homem para que ele pudesse se enxergar sem nenhum disfarce. Pretendia levar 0 homem a reconhecer a razoabilidade de buscar, dentro de si, Aquele que pode dar um sentido pleno a sua existéncia, Deus. Sao as enganagées criadas de si mesmo que fazem do homem um ser que foge © tem horror da verdade sobre si “[...] cria um édio mortal contra essa verdade que o repreende © convence de seus defeitos."(PASCAL, af, 100). Esse é um dos paradoxos que marcam a antropologia pascaliana: um homem que quer ser objeto do amor de todos, mas que ‘tem horror a si mesmo, que quer ser grande mas sabe de sua pequenez, & cheio de defeitos & deseja ser perfeito. (PASCAL af. 100). Quando o ser humano percebe suas imperfeigdes, sua finitude e insuficiéncia, logo cria outro eu que satisfaga a grande maioria e seja objeto de desejo e admiragao de todos Essa ideia de eu, segundo Pascal, revela eu cartesiano, é um eu egélatra, capaz de reconhecer somente sua propria existéncia. E nisso 0 homem busca 0 tempo todo uma afirmagao de si mesmo sem se ater a realidade de outros eus que também fazem parte do mesmo campo existencial Quando o ser humano s sr colocado acha no centro do universo todo resto pode s em diivida e foi isso que aconteceu com Descartes que criou um sistema filoséfico causador da ruptura entre o sujeito € 0 objeto. Tudo que estava no exterior agora era reduzido & mente do individuo que podia, com isso, fazer qualquer coisa com a natureza e até mesmo com Deus, ja que esse se tomara um conceito racional. Com isso, o homem se faz Deus de si mesmo para ndo enxergar sua condigdo miserdvel e cheia de defeitos De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Esse outro eu odioso marca consideravelmente a miséria humana por feché-lo a sua verdadeira realidade de caréncia ontolégica do Sobrenatural. E ainda tem outro agravante, Ihe retira a oportunidade de enxergar em Jesus Cristo o tinico modelo a ser seguido, ‘nico eu a ser incorporado ao eu decaido humano, “Gragas a Jesus Cristo [...] 0s homens podem escapar da violencia e da solidio. Ble vem dizer aos homens que seus tnicos inimigos séo eles mesmos” (PASCAL fr. 685) © amor-préprio, a egolattia e tudo que leve 0 sujeito a considerar somente a si © nflo se atentar aos outros so os causadores do mal que envolve o homem modemo e o faz objetivar 0 outro excluindo, dessa forma, toda alteridade, Nao se trata de uma visto pessimista do amor-priprio pois o que o torna mal é a afirmagdo de si a ponto de excluir qualquer outra forma de existéncia suprema que nao seja a do sujeito pensante e do orgulho que esse gera. A falta de alteridad causada pelo amor-préprio, faz com que o homem deseje ser estimado por todos a ponto de se sujeitar a fazer até 0 que ndo gosta para agradar e ser reconhecido. Cria-se de uma ilusdo viver esse sujeito que ndo se desprende de seu eu carente € incompleto, Com isso ele s acha a melhor de todas as criaturas pois, quando estimado, ele vive a doce ilusdo de estar no lugar de seu repouso. Tirando-the os aplausos restam somente 0 vazio © a miséria, logo ele vai ter que se sujeitar a outras situagdes e inventar outro eu que satisfaga os homens e, assim, tentar ser o objeto de amor ¢ admiragdo de homens finitos © incompletos como ele. [..JOdiamos a verdade, a verdade nos ¢ ocultada; desejamos adulagao, a ‘temos; gostamos de ser enganados, engana-nos. Por isso, cada degrau da escada da fortuna, que nos leva no mundo, afasta-nos mais da verdade pois teme mais magoar aqueles cuja afeigdo & mais Util ¢ cuja aversd, mais perigosa. (PASCAL, af, 100) ai que, mesmo que Ihe digam a verdade, o homem prefere a mentira e, dessa forma, vive uma vida de enganagao sem ter que se deparar com sua natureza insuficiente © carente. Pascal, ao constatar essa realidade modema, usa do sacramento da reconciliagio para ilustrar como se da essa fuga da verdade e o porqué da modernidade ser anticlerical. © anticlericalismo moderno, para Pascal, se deve ao fato do homem fugir da verdade acerca de si mesmo ¢, como visto, do falso eu que ele cria para encobrir suas misérias. Acerca da confissdo dos pecados ele aponta que esse sacramento oferecido pela religido crista trata da chance do homem poder se deparar com uma verdade sobre si, que Ihe causa horror, e receber o perdio por essas limitages. Um grande tesouro que a Igteja oferece De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 © que dé ao homem a chance de reconhecer sua miséria e ao mesmo tempo Ihe redime ao invés de Ihe condenar. Por orgulho, o homem a rejeita ¢ prefere viver na enganagio. A religido crit ndo nos obriga a revelar nossos pecados a todo mundo; permite que os ocultemas dos outros homens; salvo um énico hemem, 30 qual ordena que abramos as profundezas de nosso coragdo, ¢ que nos apresentemos como somos. Somente a um tinico homem que © tem como segredo inviolivel |..] Seri possivel imaginar algo mais caridoso e terno? (PASCAL, af. 100) A ilustrago pascaliana quanto a recusa da verdade serve de base para que seja abordada outra explicagao de Blaise acerca desse outro eu que se volta para si tomando-se um deus tirdnico, © francés concebe a ideia agostiniana acerca do amor infinito e amor finito em que © homem, quando estava em sua natureza primeira, tinha seu amor voltado para Deus que era digno desse amor e podia preenché. lo, ja que infinito e tinha mais perfeigo que sua criatura, Todavia, quando o homem cai no pecado ele € expulso da presenga do seu Criador ¢ agora teré que buscé-lo com o coragdo, j4 que sua vontade se inclinou a se afastar Dele. Com isso 0 homem que antes devotava seu amor a Deus agora ndo o vé mais face a face e devota seu amor a si mesmo. Antes, um amor que tinha a capacidade infinita era direcionado para algo infinito, agora esse amor é voltado para algo finito e imperfeito, Por isso, 0 homem nao consegue a quietude nem a paz pois, parafiaseando Santo Agostinho, ele procura fora o que esta dentro, procura nas coisas o que s6 pode ser preenchido pelo que esta além das coisas. Agora a busca no esté mais na razao e, sim, no coragdo_pois a causa dessa desordem esta no campo das emogdes donde brota a inteligéncia. Esse amor que o homem devota agora a si mesmo faz com que deseje ocupar 0 lugar mais elevado no seu coragdo € nos dos outros. Ele toma o lugar de Deus ¢ se torna um deus tirénico que obriga todos a aceitarem essa imagem criada para ser objeto de estima e adoragao de todos: [...]0 desejo de dominagio, universal e fora de sua ordem, Logo, © homem por ser tirano € inemodo e faz-se odiado pelos demais, Por isso também que “Quem nfo odeia em si o seu amor-préprio e esse instinto que o leva a fazer-se Deus ¢ bem cego (PASCAL, fr. 492). £ terrivel imaginar 0 caos que isso causa quando o homem quer ser Deus e entra em conflito com todos os outros que também tém o mesmo desejo. Todos lutando para serem De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 estimados e adorados, porém fadados a serem esquecidos quando seu inevitivel destino chegar, Mas, embora negue aquele desejo aos outros, estes slo necessérios para ele pois so eles que sustentam a grandeza do eu dispensando a ele a estima, A estima é, entdo, © suporte necessério para que o eu (cheio de misérias & imperfeiges) se acomode ao seu desejo de ser Deus, (PARRAZ, 2004, p. 187). Pascal nos aponta a desordem, causada quando o sujeito revoga a autonomia de sua vida recusando-se a fazer parte de um plano criador, como sendo a grande causadora da insuficiéncia humana pois essa desordem, como sera visto no préximo t6pico, gera no coragdo do homem 0 orgulho. Dessa forma, a natureza nunca vai dar seguranga ao homem, seja em questdes éticas, morais ou religiosas, pois tais questdes sé podem ser consideradas quando unidas a uma razo Sobrenatural, Mesmo sem tratar dos primeitos principios e nos conduzir a pensar as questdes empiricamente provadas Pascal mostra a_insuficiéncia humana ¢ ao mesmo tempo remete a algo que esté além dessa condigo que ndo pode ser alcangado pela nossa razdio. Por isso, & necessério que se faga o melhor nessa vida, nessa existéncia e o melhor a fazer € reconhecer que ndo se pode querer ser como Deus, & preciso humildade para reconhecer essa dependéncia, Deus no pode ser um instrumento que atenda as necessidades humanas. Agora Pascal dé um tom apologético a essa questo do homem-deus jé abrindo caminho para a Teologia que, segundo ele, € a verdadeira detentora dos mistérios do homem. Contra Feuerbach, Pascal certamente diria nao que toda teologia & uma forma de antropologia mas que $6 existe verdadeira antropologia no seio da teologia, dado o caréter sobrenatural da existéncia humana, © horror que o homem tem da verdade sobre si o leva querer, de todas as formas, fugir de seu verdadeiro eu; como visto, ele, segundo Pascal, consegue isso nos divertimentos'’. Os divertimentos servir3o como uma droga que desviari 0 homem da sua condigio miserdvel e insuficiente. E conceito pascaliano ¢ muito importante para ser entendido seu pensamento acerca da condi¢o humana. *° Segundo Pondé (2001, p. 7), “As possiveis tradugdes em porlugués nos pareceram imprecisas: divertimento, diversio, desviar etc. No século XVII, divertissement tinha um forte cariter militar: desviar de inimigos, manobras estratégicas. Optamos pelo original porque ele carrega essa duplicidade intema: desviar de obsticulos indesejaveis, divertirse, lazer”, De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Divertindo-se 0 homem foge da maior batalha que ele tem que enfrentar: estar sozinho ¢ refletir sobre sua condigdio. A auséncia de atividades gera o tédio que para o homem 6 insuportavel, justamente por revelar “do fundo de sua alma, a escuriddo, a melancolia, a pena, 0 despeito e o desespero” (PASCAL, af. 131). Isso se deve & inguietude no coragdo do homem que o leva a buscar fora o que deve ser unido ao que est dentro de si. Enxergamos nessa batalha mais uma das caracteristicas do homem moderno: a hegemonia da ago ante a contemplagao. Em Agostinho se percebe que aquilo que vocé realmente ama precisa estar dentro de quem ama, Ainda existe a distingo de um mundo caético fora e um mundo de paz dentro de si, Pascal trabalha essa questdo analisando como os divertimentos langam 0 homem para fora fazendo com que ele se perca de si num mundo incapaz de preencher sua caréncia ontolégica. © interior deve estar unido ao exterior para que © homem ndo seja somente anjo nem somente animal. © homem, quando imerso nos divertimentos, esté a procura de repouso ¢ esse & buscado incessantemente expondo claramente a insufici icia humana pois © homem, quando imerso nos divertimentos, precisa ser nutrido constantemente e nunca esta saciado, Busca 0 repouso © quando o encontra ndo suporta o tédio que ele produz e se aventura em procurar mais divertimentos. Assim, ele vive uma procura constante pela quietude que no consegue alcangar no mundo. Mesmo os dedicados as meditagdes, que precisam para conseguir atingir tum grau elevado se desligarem das coisas sensiveis saindo da agitagao e buscando no repouso © transcendéncia a esse mundo, encontram dificuldades, travando uma grande batalha consigo e com 0 mundo pois ndo conseguem permanecer toda sua existéncia meditando. Assim se escoa a vida. Procuramos © repouso combatendo alguns obstéculos; ¢, quando estes sdo superados, © repouso torna-se insuportavel Porque ou refletimes acerca das misérias presentes ou daquelas que nos poe tem isco, E, mesmo que nos sentissemos bem guardados por todos os lados, © tédio, por sua autoridade privada, continuaria a sair do fundo do coragio, onde tem raizes naturais, e a encher nosso espirito com seu veneno. (PASCAL, af. 139) Na busca por preencher o vazio essencial em seu coragdo o homem se diverte ¢ se langa em bus de preencher essa lacuna existencial amando-se a colocando-se no centro de sua vida para que ndo enxergue sua real condigdo. Quando Pascal refaz experiéncias de Argquimedes acerca da existéncia do vacuo, tema bastante discutido na modemidade, ele consegue provar pelas lei da fisica que 0 vacuo existe na natureza. Constata ainda que De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 vacuo nao pode ser nada por que tem mobilidade e peso, da mesma forma que ndo é matéria pois ndo tem forma nem dimensdo espacial. Entdo ele seria algo que esté entre o nada € a matéria. E, a partir dessa constatagio empirica, o génio francés demonstra metaforicamente a existéncia no coragao do homem desse vacuo, uma caréncia essencial ontolégica que no é preenchida pela matéria nem pelo nada. Somente Deus é capaz de preencher esse vazio no coragdo do homem, ‘Ao analisar a trdgica condigdio do homem no mundo Pascal se recusa radicalmente a consideraré-la como tinica perspectiva para a existéncia. Dessa forma, o filésofo propde a abertura para transcender a0 mundo natural como saida para o esvariamento de valores morais, éticos e religiosos que se instauram na modemidade com a valoragao e a busca do sentido da vida na pura imanéncia. Deparamos-nos, assim, com outro tema de suma importincia para entendermos como um autor empirista consegue justificar valores que so a priori a graga divina, Essa atua na vida dos homens, deliberada gratuitamente por Deus despojando 0 sujeito do amor- préprio que move o homem para uma autossuficiéneia © para uma usurpagdo da natureza. Também elimina a ideia que se formou no decorrer da histéria de uma sociedade niilista gerada por essa falta de a priori éticos © pela caréncia essencial latente no coragao do homem. Também é importante afirmar que pela graga a covardia é deixada de lado pois © homem no amor-préprio era covarde, nao se enfrentava endo conhecia o verdadeiro caminho para a felicidade eo bem. Agora, com a graca, a covardia & substituida pela coragem € pelo reconhecimento de que em si mesmo nao se encontra felicidade, de modo que a covardia € substituida pela forga que impulsiona o homem a caminhar nas veredas do supremo bem. Pascal nos aponta a busca pelo verdadeiro bem como da ago do homem, quando 0 homem perde a nogao da busca deste bem tudo Ihe parece vidvel embora o esteja levando & perdigtio. Para o francés, sendo Deus 0 dinico bem, este & insubstituivel somente na busca de viver com Ele o homem poderd viver conforme sua natureza, Somente Deus & o verdadeiro bem e, quando o homem o abandona, é estranho que nada exista na natureza capaz de Ihe tomar o lugar...) E, quando perde o verdadeiro bem, tudo pode parecer-Ihe esse bem, indiferentemente, até a autodestruigo, embora tio contréria a Deus, & razao ce natureza inteira. (PASCAL, af. 425) De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Faltam ao homem valores que estejam fundamentados em algo sélido, imutével © que deem seguranga a sua existéncia. Valores que s6 serdo possiveis com a abertura para a dimenso Sobrenatural que abre a possibilidade para o amor dgape possivel para aqueles que estdo em Deus. A afirmagdo do movimento é a perda desses valores pois 0 que esta mudando no pode dar garantia de felicidade bem como de completude. Sobretudo porque o que ¢ passageiro esta ligado a imperfeigdio e s6 pode dar conta do que existe até 0 campo natural. ‘A desordem causada pela busca de autonomia do sujeito é a marea da insuficiéncia mé do homem. Isso porque 0 proposto pelo presente trabalho ndo € demonstrar um caminho para a suficiéncia do homem, O que esté proposto & que se reconhega a insuficiéncia, e nessa insuficiéncia se abandone no mistério divino, Essa é a boa suficiéncia, diferente da insuficiéncia modema que ¢ a causadora de toda desordem da condigdo humana, que busca dar ao homem a iluséo de uma suficiéncia como pensavam os humanistas. Contudo, Pascal indicaré a natureza disjuntiva do homem, essa_causada pelo orgulho divisor das outras ordens que deveriam ser subordinadas a uma ordem Sobrenatural, que € a caritas, como marca da insuficiéncia ma do homem quando ele devota seu amor as criaturas ¢ abstem= se de amar seu Criador. As trés ordens Analisando o homem de seu tempo, que estava em pleno desenvolvimento da razo e buscando a autonomia do sujeito a partir de duas ordens: do corpo (res extensa) ¢ a do espirito (res cogitas), Pascal conclui que quando 0 homem abandona sua participaggo na criagdo divina deixa de considerar-se pequeno diante de Deus e quer se tomar criador dominador da natureza, torna-se um “ser perecivel e moribundo”. (PASCAL, 2005, af. 430). A disjungo na natureza humana se da no momento em que ela cai no pecado, quando ocorre a incomunicabilidade entre as ordens do corpo, do espitito e da caritas. Essas trés tendem a funcionar em harmonia, mas quando o homem busca ser criador e dominador da natureza, 0 orgulho revoga para si o lugar da caritas ¢ causa a desordem. Isso ocorre principalmente nos tempos modemnos onde o homem busca tomar-se o centro de tudo € quer amar nas criaturas 0 que s6 ¢ possivel amar no seu Criador, nesse caso, em Deus. Se ha um Deus, é preciso amar apenas a Ele e ndo as criaturas passageiras. 0 raciocinio dos impios, na sabedoria, baseia-se apenas em no haver Deus. “Dito isso, desfrutemos, portanto das eriaturas”. a pior solugdo. Se tivessem um Deus para amar, ndo teriam concluido isso, mas precisamente o De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 contrério. Eis, a conclusfo dos sabios: “Ha um Deus; ndo desfrutemos, pois, das criaturas”, (PASCAL, af. 479) Com isso constata-se que o orgulho € a grande marca da modernidade © também 0 que afasta o homem de sua natureza primeira, dessa ainda restam alguns resquicios no homem pois se “o homem perde sua natureza, tudo se toma sua natureza”(PASCAL, af. 426 ). Perdido de sua natureza primeira e de sua participagao no projeto da criagdo 0 homem vive em desordem causada pelo amor proprio. Todos revogam a autonomia sobre si e desprezam todo resto, aumentando a insuficiéncia devido ao fato de ndo encontrarem a harmonia das ordens no corpo nem no espit 10, visto que essas sdo disjuntivas. Para regular 0 amor que devemos a nés mesmos, é preciso imaginar um. corpo formado de membros pensantes, pois somos membros do todo, e ver como cada membro deveria amar-se etc, Caso os pés e as méos tivessem uma vontade particular, nunca se achariam em sua ordem a no ser sujeitando tal vontade a uma vontade primeira que governasse o corpo todo. Fora disso, estariam em desordem e desgragados; mas objetivando apenas © bem do corpo, aleangam seu proprio bem. (PASCAL, aff. 474, 475) Descartes foi o grande precursor da concepso do sujeito auténomo entendido na ordem do es ito com 0 famoso cogito ergo Sum. Ele elabora um sistema metafisico que coloca 0 homem em situago auténoma diante de toda natureza de modo que se ter todo 0 conhecimento quer dizer poder dominé-la. Nao obstante, ha uma separagdo do todo, no se pensa em uma ordem natural nem em uma ordem da ctiagdo divina, tudo pode ser conhecivel € dominado j4 que Deus deu a capacidade ao homem de fazé-lo, Essa grandeza do homem, (res cogitas), como visto anteriormente, é a heranga cartesiana no pensamento de Pascal. Mas, ele ultrapassa o plano metafisico de Descartes desqualificando a autonomia do eu. Para isso, ele concebe que existe a grandeza do homem com relagé s seres devido ao pensamento racional e reflexivo, mas o que faz. essa escala de valoragdo € 0 reconhecimento da miséria de si, o aniquilamento do amor-préprio. Portanto, a humildade & necesséria para ndo cair na arrogancia cartesiana de conceituar tudo a ponto de tentar explicar toda natureza a partir do pensamento humano, Por isso, a suficiéncia racional é também o que langa o homem para o exterior pois se ele se acha inteligente 0 suficiente para abarcar todo conhecimento do mundo, vai acabar frustrado e nunca conseguir abarcar toda a complexidade do universo e de si mesmo. Chegard uma hora que sua razao seré insuficiente e precisaré recorrer ao coragdo, a fé € as incertezas, se dobrando diante do mistério que a sobrepassa. Dessa forma, o homem que busca De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 no espitito (res cogitas) explicagGes concretas para todas as verdades acabara se frustrando ou inventando conceitos para ndo se rebaixar ao mistério que é sua propria existéncia. Jia afirmagdo humanista da suficiéneia da natureza humana é o fechamento para a transcendéncia e 0 corpo (res extensa) também nao € capaz de abarcar toda complexidade da vida pois o homem é de natureza sobrenatural e, por isso, tende sempre para retornar a sua natureza primeira, Por isso, os valores vio se tomando relativos, as pessoas yao buscando no consumismo, nas drogas, no hedonismo algo que traga felicidade, mesmo que passageira. Como veremos mais a frente, o homem perde a nogdo do sagrado e sem essa dimensdo tudo perde o significado € 0 que move o sentido das coisas ¢ a novidade, o que & velho deve sempre ser superado, gerando um movimento de etema busca e insatisfagao. Percebemos que Pascal concorda com o dualismo cartesiano de que o homem & composto de somente a essas duas ordens, pirito © matéria. Porém ,se o homem limita ele vai cair sempre na desordem pois a razdo, como vimos, € limitada e a matéria nao preenche o vazio no homem. Assim, 0 francés propde uma terceira ordem que é superior as outras, mas funciona em harmonia com ambas ¢ esté fora das razdes racionalistas do s século pois esta no dominio das razes do corago que ¢ a ordem da caritas. Somente na caritas 0 homem pode transcender a essa incompleta existéncia corpérea e espiritual viver uma vida auténtica sem nenhuma ilusio de um eu odioso ou tiranico nem com a imaginagdo de completude nas coisas do mundo. A caritas dé ao homem a capacidade de retornar para 0 todo, voltar a fazer parte de toda criagdo e nao um membro isolado e seleto na natureza. Se o pé sempre se mantivesse ignorado pertencer ao corpo e se existisse um. corpo de que ele dependesse, se apenas houvesse tido © conhecimento © © amor de sie viesse a saber que faz parte de um corpo do qual depende, que desgosto, que confusdo em sua vida passada, por ter sido iniitil ao corpo que Ihe insuflou a vida, que o teria extinto se o tivesse rejeitado e apartado de si como ele se apartava dele! Que siplicas para que nesse corpo fosse mantido! E com que sujeigao deixar-se-ia governar pela vontade que rege o corpo até concordar em ser amputado se preciso! Ou perderia sua qualidade de membro, uma vez que & preciso que todo membro consinta em perecer pelo corpo, que € nico para 0 qual tudo existe, (PASCAL, af. 476). A caritas & a ordem que se abre para o sobrenatural, é ela que representa a Ainica solugdo para a disjungao da natureza humana, Nesse caso podemos dizer que Pascal nao foi contrario a De: cartes, mas até muito fiel a0 seu pensamento quando sintetiza o caminho da tes 86 teria res cogitam ¢ da res extensa, ja apresentada por Descartes, na caritas. D De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 chegado & margem do caminho quando propde a res cogitas ¢ a res extensa como partes constitutivas do homem, faltou a humildade de se dobrar diante da sobrenaturalidade a assumir a caritas como reguladora da natureza decaida do homem como nos apresentou Jesus Cristo € como Pascal a habilitou para completar seu pensamento, Nao ha uma superagao entre as ordens ¢ sim uma harmonia, de forma que a caritas esta em uma dimensdo superior por romper com a disjungdo na formagdo constitutiva do homem ¢ por ser decisiva para que haja a conversdo das outras ordens ao Sobrenatural rebaixando o homem ao seu lugar inferior diante do mistério divino. AA distancia infinita dos corps aos espiritos figura a distancia infinitamente ‘mais infinita dos espiritos & caritas, visto que ela é sobrenatural. (PASCAL, fr. 793). Se ao invés de atuar 0 sentido Sobrenatural sobre a terceira ordem, atuar a vontade humana como objeto definidor, © orgulho manteré o homem em sua condigo desproporcional e disjuntiva, Essa gerard no sujeito uma eseraviddo as criaturas desviando-o de sua escravidao essencial e necessdria que € a de amor ao Sobrenatural, ou seja, 0 amor a Deus. Por isso, devido ao orgulho, © homem moderno vive na tentativa de excluir 0 Divino, © Sobrenatural ou mesmo a transcendéncia a essa existéncia buscando em si o que esté no todo. Concupiseéncia da came, concupiseéncia dos olhos, do orgulho etc. — Existem trés ordens de coisas: a carne, o espitito, a vontade, Os catnais so 08 ricos, os teis: tém por objeto 0 corpo. Os curiosos ¢ instruidos tém por objeto 0 espirito. Os sabios tem por objeto a justiga. Deus deve reinar sobre tudo, e tudo deve relacionarse a Ble. Nas coisas da carne, impera propriamente a concupiseéncia; nas espirituais, a curiosidade propriamente; nna sabedoria, o orgulho propriamente. [...] Sé Deus di a verdadeira sabedoria. (PASCAL, af. 460). Contudo, observa-se que o orgulho ¢ 0 grande causador da desordem da constituigdo humana ¢ o fator que marca sua disjungdo, Ao tentar revogar o lugar da caritas, © orgulho impede que © homem se abra para o Sobrenatural ¢ 0 mantém num estado de mé insuficiéncia de modo que © homem, buscando a sabedoria do mundo e as distragdes carnais, se perde numa falsa suficiéncia, Para Pascal, a verdadeira suficiénci 86 6 possivel em Deus, que é o reunificador de todas as coisas dispersas, e que dé ao homem uma suficiéncia mesmo na sua insuficiéneia essencial. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Paradoxos da Condigio Humana Apis localizar a figura do homem no topo da criagdio, onde Pascal aponta sua jo ao restante da criaglio, nos det infinita desproporgaio em relay smos na observagao das miltiplas formas que assume o drama da insuficiéncia humana no pensamento pascaliano, Principalmente no que marca sua insuficiéncia que so as variagées que suj humano devidas a sua vontade de autonomia ante a natureza Jé apontamos nos tépicos anteriores alguns dos paradoxos da condigao humana, a saber, o homem que deseja ser amado mas que odeia profundamente a si proprio: © homem que quer 0 repouso mas 0 busca na agit o. Apontaremos, agora, duas faculdades que favorecem esses paradoxos: a imaginagdo © a vontade, Essas duas, no pensamento pascaliano, formam uma espécie de desorganizadoras da ordem humana. A primeira quer reivindicar para si a soberania perante a razdo e, a segunda, faz com que © homem tenha um desejo incoerente com sua condigao. ‘A imaginagdo ¢ a grande causadora da desordem quando pretende ser a dominadora da razio e tenta colocar sujeito acima de qualquer coisa criada. A imaginagdo faz com que 0 homem julgue por verdadeiro aquilo que ¢ falso, ¢ causa as desigualdades sociais, as misérias e o empobrecimento do homem. Imaginagao — Ff essa parte enganadora no homem, essa senhora do engano & falsidade, tanto mais velhaca quanto ndo o € sempre; porque seria regra infalivel da verdade se o fosse infalivel da mentira [..] empresta o carater vordadeiro a aquilo que é falso. (PASCAL af. 82) © que faz com que os homens reconhegam a grandeza dos seus iguais © julguem alguns serem superiores e outros inferiores, principalmente a modemidade, so os disfarces criados pela imaginacao para fazer do homem mais respeitado ou mais temido. Néo se trata das virtudes nem da capacidade de bondade que ele tem, ¢ sim de qual posto de ‘ocupagdo na imaginagdo coletiva ele tem para que seja amado e temido por todos. Dessa forma, o homem cria uma imagem de Deus baseado na concepedo que ele tem de si mesmo, A imaginagdo aumenta os pequenos objetos até nos encher com cles a alma, ‘numa apreciagdo iluséria; e numa insoléneia imprudente diminui os grandes e 0s reduz a sua medida, como falar de Deus. © homem fabrica sua prépria felicidade nese mundo sem se ater as coisas que esto fora dele, ndo se importando com 0 que esti ao seu redor. Dessa forma, 0 sujeito De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 modero € 0 fabricador de mundos, um egélatra que s6 se preocupa consigo mesmo € desconsidera que esti no mundo com varios outros homens que também reclamam parte da criagdo para si, Pascal é duro ao criticar esse homem guiado por instintos ¢ pela imaginacao: Que quimera é, entGo o homem! Que novidade, que monstro, que caes, que motivo de contradigdo, que prodigio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra, depositirio da verdade, cloaca de incerteza e erro, gléria ¢ eseéria do universo, (PASCAL, af:434) Percebe-se que, ao mesmo tempo que Pascal demonstra a incapacidade humana, ele se espanta e se admira com sua grandeza, chegando a intrigar-se com téo grande mistério, Com isso ele ressalta a incompreensibilidade do homem para si mesmo. Ele conhece as coisas da natureza porque so simples de conhecimento. J4, quanto & sua natureza, 0 sujeito ndo consegue saber como sua alma entra em seu corpo nem como se dé esse mistério divino. Nesse ponto a razio, mais uma vez, se cala diante do paradoxo da condigao humana: o homem que conhece tudo sobre a natureza mas que ndio sabe nada sobre si. sujeito quer ser maior do que aquilo que pode compreender e, ao colocar a raiz da desordem no conhecimento divino ¢ no pecado, Pascal transporta o tema da insuficiéneia jobrenatural. O fran humana para o campo do $ limita a razao e demonstra que a questio da insuficiéncia humana habita os campos da fé ¢ tais questdes, ao invés de colocar o homem em um campo de incompreensibilidade total de si, abrem os horizontes para se pensar que o ser humano ultrapassa a razdo natural Conheceis, pois, orgulhosos, que paradoxo sois em vés mesmos. Humilhai- vos, razio impotente, calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem. ultrapassa infinitamente o homem, (PASCAL, af. 434) Dessa forma, Pascal demonstra que o homem transcende a si préprio, se limita as explicagdes naturais no tocante a sua existéncia, Diante de tal constatagdio 0 conceito de insuficiéncia atravessa a Epistemologia, a Antropologia e a Filosofia e chega novamente a0 campo da Teologia exigindo do homem uma atitude de reconhecimento que o leva a humildade. Essa € uma forma encontrada por Pascal para que 0 sujeito, mesmo na insuficiéncia, descubra uma forma de abdicar de sua autonomia, de descer do pedestal onde foi colocado na modemnidade ¢ reconhecer a insuficiéncia da razdo natural e que a incerteza & a maior das certezas obtidas por ele de si mesmo. Assim, a humildade da razo, se dobrando & De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 teologia, leva o homem a nao se perder nesse mundo que nao consegue sozinho abarcar toda complexidade da vida humana. Por isso, uma discussio filoséfica ou antropolégica _pascaliana, necessariamente, precisa se desdobrar na Teologia pois, se abrindo a um projeto divino, 0 homem pode transcender a esse mundo em que ele se encontra, esvaziado de sentido devido & sua caréncia ontoldgica constitutiva ¢ insuficiente © & sua natureza disjuntiva. Os outros conhecimentos servem de caminhos que auxiliam na busca que acaba na incompreensdo € na contemplagdo do mistério apresentado ao homem corrompido e, portanto, afastado da presenga de seu Criador que 0 ama e o busca, desde toda origem da humanidade. Mas ainda hé esperanga para 0 homem que busca nas sobras de sua natureza anterior, ou seja, nas nogSes guardadas dentro de si de que hé algo além dele e inacessivel a0 I nao é o mundo cu conhecimento, restaurar uma dignidade perdida com o pecado. Para Pas que & mal_mas 0 pecado que entrou no mundo e causow a desordem, e isso porque a vontade corrompida nao se voltou para seu criador, mas para si mesma gerando 0 orgulho e, com isso, 4 disjungo das ordens do corpo ¢ do espirito. Vamos agora perfazer 0 caminho de retorno do homem para seu Criador a colocé-lo em seu lugar de origem, onde ele tem sta natureza resgatada da insuficiéncia. O homem, retornado para si participa de um projeto que niio se esgota nesse mundo mas 0 transcende e abre perspectivas de sair de sua condigdo dem séria, Uma superagdo da insuficiéncia, nao buscando negé-la mas afitmado-a e se abrindo a revelagdo cristd que dé ao homem o conhecimento de suas duas naturezas reveladas_por Jesus Cristo. Essa abertura para a revelagao langa 0 homem no mistério de Deus que se apresenta e se esconde para que 0 desconhecimento seja 0 alimento da razao. PARADOXO DO HOMEM - JESUS CRISTO Retorno para dentro — Retorno para o Sagrado Pascal aponta como solugdo para a insuficiéncia humana a conversio a0 Sobrenatural_porém ndo demonstra nenhum conceito de Deus, nem sobre a esséneia de Deus, sua concepsao divina parte da razoabilidade da crenga em Deus e da revelagao crista com Jesus Cristo, a palavra encarnada. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Partindo do pensamento de Luiz Felipe Pondé e de Franklin Leopoldo e Silva, que fizeram uma leitura da mistica da agonia na antropologia de Pascal, pretende-se esbogar a nogio de aniquilamento do eu para o advento do cu de Jesus Cristo encarando essa mistica como um retomo para o divino diante do secularismo que se instaurava na modernidade e que culminou com a morte de Deus. Na modemidade, com a soberania da razio, tudo que estava fora do campo sensivel ou do compreensivel era tido como absurdo e initil. © homem era provocado a orgulhosa consciéncia de que ele priprio e mais ninguém, apenas com suas forgas, seria capaz de realizar a salvago do mundo e, com isso, também a propria salvacdo. As ci icias experimentais deram forte impulso & secularizagao: Quimica, Fisica, Biologia etc. Outra causa central para o desenvolvimento da secularizagao foi a elaboragdo, a partir de Descartes, de uma filosofia imanentista, Esta resultou em visdes de mundo secularizadas como: materialismo, existencialismo, pragmatismo etc. Esses sistemas ndo pregaram somente a autonomia do sujeito e da realidade mas a completa eliminagaio do sagrado e da religido. (MONDIN, 1997, p. 43). A secularizasao arrancou da natureza os vestigios de Deus para imprimir nela cada vez mais os vestigios do homem (MONDIM, 1997, p.45). Sé que essa inversio gerou no homem um vazio que nao se preenchia © sé aumentava cada vez mais e, assim, como o homem no decorrer da histéria viu a morte de Deus mais tarde viu também a morte de si proprio nos massacres de inocentes, nas guerras, nas desigualdades ete, Segundo Pondé, Pascal & um fildsofo, antes de tudo, ocupado com o destino do homem (PONDE, 2001, p. 2 |. Para ele, ter consciéneia da propria insuficiéneia é a forma mais eficaz de combater os humanistas que, como visto anteriormente, pregando a suficiéncia, expandiram ainda mais o vazi no coragdo do homem a ponto de converter seu desejo a0 puro nada criando no homem um édio mortal pela verdade empirica sobre si mesmo, a saber, sua miséria e insuficiéncia Para Renee Guenon, em seu livro 4 Crise do Mundo Moderno, a modernidade ia. Isso causou um eaos no coragdo humano ¢ a tinica saida é um retomo para a Idade M porque os modernos com 0 antiescolaticismo, anticlericalismo, e anti tudo que fosse relacionado a Idade Média causaram também um anti-humanismo. Isso, claro, em uma leitura past liana que nao rejeitou as descobertas cientificas do seu tempo s6 que nao se limitou a colocé-las como auténomas e suficientes, Os humanistas pensando que estavam valorizando o homem o afastavam cada vez mais de sua origem dando a eles a ilusdo de suficiéncia. Apés essa concepgdo errénea nasce De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 no coragao do homem a angistia, o vazio, o niilismo, 0 atefsmo e a dessacralizagdo de tudo. Dessa forma, a dessacralizagtio da vida ¢ do mundo, ao invés de reduzir o sagrado, ressaltou sua importéncia na historia, num ponto de vista empirico, no que se refere ao éxito em seu desenvolvimento. Galileu, ao fundir 0 céu © a terra, retirou a nog de hierarquia dando autonomia ao pensamento que pode transpor até os limites do céu. Com a perda dessa nogo de hierarquia perdeu-se também a ideia de valores € agora € 0 sujeito quem determina 0 mundo, Hé aqui uma contrariedade na ideia moderna com a idade média, para os primeiros a ideia ¢ de santificago do mundo, j4 os medievais tinham a ideia de fuga do mundo, pois fugindo do mundo 0 homem poderia encontrar no repouso a verdade tao assustadora: sua insuficiéncia e seu nada. Por isso podemos encontrar na concepgdo de Guenon uma certa semelhanga com 0 pensamento pascaliano, Porém, Pascal nao propde um retomo aos medievais, mesmo tendo muita influén de s do pensamento agostiniano, O que o francés propde & a razoabilidade ter Deus como padrio de condutas humanas. Ele consegue enxergar para onde se encaminharia 0 homem ao abandonar a dependéncia de seu Criador e se tornar senhor de seu destino sem se submeter a uma razio superior ¢ sobrenatural. © homem nao sabe em que lugar se colocar. Esta visivelmente perdido ¢ caiu de seu posto sem conseguir reencontré-lo, Busca-o por toda parte com inguietagao e sem éxito, em meio a trevas impenetraveis (PASCAL, af. 427) Atualmente & dificil pensar acerca do homem medieval porque a nogdo de mudanga agora € boa, na modemidade o devir € 0 gerador de valoragdo da vida, A grandeza do homem esté no vir a set, na novidade que ele pode ser no futuro. O verdadeiro bem na modernidade & transportado para a realizagdo no plano existencial. Essa forma de pensar terd sta maior expressao com os existencialistas que colocaram a esséncia humana na existéncia excluindo a sobrenaturalidade essencial do homem., E no resgate da religiosidade que © homem poder encontrar a redeng#io para toda sua miséria, Nesse resgate o homem pode buscar na semelhanga a Deus a saida para essa crise que ele softe na modernidade. Somente assemelhando-se a seu Criador ele poderd romper com 0 ateismo que o retira de sua dimensdo sobrenatural € também com a razio natural que 0 reduz a uma maquina pensante De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 [..Ja religito crista ensina aos homens duas verdades @ um s6 tempo: que ha lum Deus que os homens sto capazes de aleangar e que hd uma corrupgo na natureza que os faz. indignos. Importa igualmente aos homens conhecer ambos os pontos; e é igualmente petigoso aos homens conhecer Deus sem. conhecer a propria miséria, e conhecer a propria miséria sem conhecer 0 redentor que pode curé-la, Um s6 desses conhecimentos causa ou © orgulho dos filésofos que conheceram Deus e no a propria miséria, ou 0 desespero dos ateus, que conhecem a prépria miséria sem redentor. (PASCAL, af. 556). © homem, quando vive na idolatria de s io pois, como diz Pascal, “Os homens desprezam a religido, odeiam-na e temem que seja verdadeira” (PASCAL, af, 187). Amando a si mesmo, orgulhoso e decafdo o ser humano esté condentado a viver uma existéncia para a morte, afundando em sua naturalidade ¢ imanéncia enquanto os que buscam na semelhanga a Deus os fundamentos de sua existéncia comungam de um todo € participam de um projeto divino que lhes dé a possibilidade de uma existéncia auténtica © feliz. Como jé visto, o homem modemo tem édio ao seu eu verdadeiro e cria outros eus para ser adorado e alimentar seu amor-préprio ¢ egoismo. 0 asco que o homem moderno tem de seu eu empirico, para Pascal, & restaurado pelo eu de Jesus, pois somente nessa revelagdo so resolvidos os paradoxos da condigdo humana porque Jesus contém em sia divindade perdida com o pecado e a humanidade insuficiente. Jesus Cristo, para Pascal, ¢ 0 caminho pelo qual o homem pode sair do campo limitado da horizontalidade e buscar na verticalidade ndo se dissolver no imanentismo das leis naturais, Jesus devolve a sacralidade da natureza e do homem. ‘Sem Jesus Cristo, 0 homem tem de per {cio ¢ na miséria; com Jesus Cristo, 0 homem estA isento do vi ia. Nele se acha toda a nossa virtude ¢ toda a nossa felicidade. Fora dele s6 ha vicio, miséria, erros, trevas, morte e desespero. (PASCAL, af. 546) E no conhecimento de Jesus que se chega ao conhecimento do priprio eu. poi: conhecendo a Deus € possibilitada a visio de qual é a origem e fim do homem. Cristo nos mostra a vida € a morte, por isso Pondé e Franklin Leopoldo ¢ Silva falam de uma mistica da agonia pois, em Jesus, vemos @ morte do orgulho e do amor-priprio a ponto de abdicar de tudo com a perspectiva de uma vida etermamente feliz. Pondé, principalmente, ndo apresenta a solugdo para o drama moderno da insuficiéneia e no reconh a dignidade que Cristo dé ao homem ao assumir a condigio De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 humana, Ele se limita ao campo da briga com os humanistas e sé constata que 0 homem abandona 0 divino ¢ perde-se de si mesmo (PONDE, 2001, p.265); com isso, ele tem uma visio gnéstica do mundo onde a caréncia ontologica do homem & um fator que o limita ¢ o faz miserdvel sem a possibilidade de redengao. Seguindo além dessa querela entre Pascal © os humanistas, o presente trabalho buscaré aprofundar em uma suficiéncia na insuficiéneia proposta por Pascal, principalmente no tocante a revelagdo divina e no retorno do homem para si, apostando na existéncia de Deus. A Aposta sujeito modemo esta carregado de critérios subjetivos, onde o que importa é que se sente € niio o que & jportante para o todo. Os homens agem somente com sua animalidade na intengo de manutengdo da vida humana. Com essa colocagdo, propde-se iniciar esse tépico falando dos gnésticos para demonstrar como a modemidade vem carregada desse pensamento de suficiéncia e de uma liberdade que foge de um conceit de verdade cia © buscar no Também para mostrar que, quando Pascal propde aprofundar na insufi conhecimento de Deus romper com a ma insuficiéncia, isso nao indica esperar a morte sem nada ter dessa vida, nem se libertar, através do conhecimento do coragio, de uma vida infeliz. Pascal quer, com isso, demonstrar que hé algo a mais que essa existéncia, que & de fato incerto, mas todos que apostaram nessa vida foram felizes e atingiram uma universalidade que nenhuma outra corrente ou pensamento conseguiu até entao. Os gnésticos fazem uma mé aposta quando enxergam na natureza uma suficiéncia onde a partir de um conhecimento superior o homem se torna um ser supremo. Dessa forma, ndo se implica uma mudanga de postura, o conhecimento vai libertar 0 homem para ser o que ele quiser, portanto livre de qualquer principio ético ou religioso. A Tibertagaio pelo conhecimento apresentada pelos gnésticos tem influéncia dos maniqueistas que viam o mundo de forma dual, onde existia um mundo bom e um_ mal. O conhecimento seria o grande libertador do homem que se encontra privado por um deus mal que controla tudo, Por isso também nao se associ Pascal ao gnosticismo pois ao propor a necessidade da fé para enxergar na imanéncia uma luz confusa de seu autor o filésofo aponta a criago como parte de um projeto bom. Dessa forma, percebemos que 0 pensamento pascaliano vem carregado de um otimismo quanto 4 natureza e até mesmo quanto a propria cigncia pois essas expressam vestigios do seu Criador. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 © homem quando se perde de Deus cai na perda da prépria alma e tudo pode ser objetivado, até mesmo os outros stio usados como meios para atender seus préprios fins. A vida, assim, se torna uma selva onde sobrevive o mais forte © os pequenos sdo exterminados ou escravizados pelos regimes totalitérios que surgiram nesse mar de subjetivismo moderno. Assim sendo, o niilismo ¢ a consequéncia natural da modernidade como uma doenga que corrompe 0 homem ¢ dissolve sua personalidade. Nesse caso, pei aqui, uma convergéncia com Pondé de que “O homem parece ser um ser que quando exposto a demasiada luz se dissolve"(PONDE, 2001, p. 18). © desejo de nada no coragao do homem & justamente a figura do sujeito soberbo, da ciéncia e da filosofia moderna que acreditava tudo poder reduzir aos célculos, desprezando a sobrenaturalidade e a dimensdo sagrada do homem, Tudo isso gerado por muita luz langada sobre ele mesmo. [..] Suponhamos determinado nimero de homens presos © condenados morte, sendo alguns degolados todos os dias na frente dos outros, e os que restam constatando a propria condigdo na de seus semelhantes contemplando uns aos outros com tristeza e desesperanga, no aguardo de sua vez, Ai esté a imagem da condigo dos homens. (PASCAL, af. 199) Para Pascal, o homem esta perdido na natureza, sem saber aonde vai nem quem, © colocou aqui. Esse € um drama que 0 francés aponta e ja vem permeando todo nosso trabalho, Tentando encontrar saidas para sua insuficiéneia, alguns pensadores modernos como Descartes, Fermat Galilew objetivaram Deus e consequentemente a si proprio, quando conceituaram Deus fizeram dele uma imagem de si mesmo, como ja vimos anteriormente e, se Deus se parece com 0 homem, entdo Ele & inconstante ¢ se adapta ao modo de ser de cada uum, Isso € perfeitamente demonstravel atualmente com as religides que produzem um Deus, para si a cada dia, de acordo com as suas necessidades. O protestantismo & 0 reflexo desse relativismo de Deus que tenta moldar esse conceito de acordo com seus sentimentos. Nisso Pascal ndo se aproxima dos protestantes de sa época porque, por estar sempre relacionado ao jansenismo, muitas vezes também foi associado ao protestantismo, Para ele, Se Deus se torna o fruto das vontades humanas, entdo desaparece a angistia do coragdo do homem, ¢ com isso ele se sente capaz de tudo, “perdido o verdadeiro bem, tudo se toma seu verdadeiro bem” (PASCAL, 2005, af. 426). Mais tarde, Nietzsche chagaré a concluséo mais dbvia dessa busca desenfreada do homem pelo conhecimento de Deus a partir de si mesmo, constatado que o homem matou Deus. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Nietzsche percebe que a esperanga no coragdo do homem morreu e a ciéncia oferece algo mais real ¢ mais facil de compreender. Assim, nasce o niilismo, nessa falta de esperanga na vida eterna, onde a ciéncia passou a ser lugar da verdade e das certezas. Pascal nos mostra, a0 contrétio, 0 tamanho da miséria e presungao do homem e oferece o remédio para tamanha doenga no coragdo humano porém a mesma consequéncia apontada por Nietzsche ele aponta caso o homem rejeite tal caminho. Serdo os filésofos, que nos propdem, como todo bem, os bens que esto em nds? Seri esse o verdadeiro bem? Descobriram eles 0 remédio para nossos males? Seré curar a presungio do homem igualé-lo a Deus? Os que nos igualaram aos animais, e os maometanos, que nos deram como todo bem os prazeres da terra, até mesmo na eternidade, trouxeram remédio para nossa concupiscéncias? Que religido nos ensinard nosso hem, nossos deveres, as fraquezas que nos desviam, a causa dessas fraquezas, os remédios que podem curélas ¢ © meio de obter esses remédios? Percebe-se que ha uma duplicidade do homem no pensamento pascaliano, Um quer a liberdade plena, sem limitagSes, vivendo de acordo com sua natureza, como que em plena comunhdo com cla, livre de qualquer responsabilidade, Esse busca a todo custo esquecer sua condigéo fazendo tudo para provar para si e para todos que ndo se subjuga a nenhuma lei, pelo contrério, esse libertino cria suas préprias leis. De outro lado, vemos um homem angustiado pela falta de sentido em sua vida, que sabe de sua limitagdo, quer apostar em algo s6 que nao encontra na natureza nada que Ihe traga seguranga e, assim, vive em busca desse eu perdido no tempo € na histéria, Quanto a isso, Pascal nos mostra que ¢ vo ao homem procurar na natureza, ou na raz, 0 remédio para suas misérias. Tudo que se conhece 6 leva a crer que nada se pode descobrir sobre a verdade e 0 bem. Os filésofos que quiseram responder a essas questdes 56 conseguiram aumentar ainda mais a diivida, pois nem mesmo el chegaram a tal conhecimento. Para o homem sé resta reconhecer sua baixeza, sua miséria, sua incompreensdo © assumir que & na incerteza que habita a maior das certezas. Nisso Pascal mais uma vez supera Descartes pois ele, para fundamentar sua necessidade de Deus, ndo parte de uma diivida e sim de uma crenga. Precisaria primeiro acreditar para depois langar questionamentos sobre a crenga. Descartes fez © caminho inverso, comegou com uma davida e, por isso, transformou Deus em algo de seu pensamento, Diferentemente de Descartes, Pascal primeiro acreditou, mesmo diante da incerteza, apoiado na tradigdo, de forma que ele escreve que 0 seu Deus era o de Abrado, de Isaac e de Jacé. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Diante do desconhecimento de Deus, da eternidade, dos primeiros principios & de si mesmo Pascal sugere 0 seu famoso argumento da aposta como razoabilidade da crenga em Deus. Primeiro ele demonstra as razdes para crer que a religido crista é a Gnica a oferecer um caminho para 0 vazio que se instaura no coragao do homem com a autonomia moderna. Depois ele indica que ndo é uma escolha na liberdade, mas um jogo que ja esta inserido na existéncia do homem e que somos todos obrigados a jogar. Com a aposta na existéncia de Deus o homem se reveste de valores que esto fundamentados em algo sobrenatural mas que so encontradas as marcas de seu criador na natureza para que possa conhecé-los. O caminho para encontrar essas marcas do Criador na natureza é de abandono pois o verdadeiro encontro com Deus se da no desconhecimento, Portanto, © argumento que Pascal propée de aposta na existéncia de Deus nao se dé no conhecimento de uma verdade ¢ na adesio a ela, O des fio de viver a proposta crista, com todos seus valores e preceitos, € fundamentado na possibilidade de ganho ou de perda, portant, na fe. Pascal elabora o argumento da aposta da seguinte forma: ‘Sim: mas 6 mister apostar. Nio é algo que dependa da vontade, ja estamos inseridos nisso. Qual escolhereis? Vejamos. Um vez que € necessério escolher, vejamos © que menos vos interessa, Tendes duas coisas a perder: a verdade © © bem; € duas coisas a empenhar: vossa razdo e vossa vontade, vyosso conhecimento e vossa beatitude; e vossa natureza tem que fugir de dduas coisas: 0 erro e a miséria, Vossa razo nao se sentir mais atingida por terdes escolhido uma coisa de preferéncia a outra, pois ¢ preciso necessariamente escolher. Eis um ponto liquidado. Mas, © vossa beatitude? Pensemos no ganho ¢ a perda escolhendo a cruz, que ¢ Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, no perdereis nada, Apostai, pois, sem hesitago, (PASCAL, ff. 223) Mais uma vez 0 homem se encontra na inquietude, pois todo jogo quer dizer risco e isso quer dizer possibilidade de ganho ou de perda. Pascal aponta que jamais o homem poderd saber quando 0 jogo vai terminar ou s e ganhou ou perdeu. O que € proposto para 0 homem é apostar, pois mesmo que em Deus ndo exista a possibilidade de uma vida virtuosa ja vai ter garantida uma existéncia feliz e repleta de um sentido que evitaré a angiistia e 0 vazio em seu coragdo. E ainda, se Deus existir, hé a dupla garantia de felicidade © perpetuidade da vida, Essa incerteza de ganho e de perda abre caminho para o ultimo tépico desse trabalho, onde o Deus se revela e ao mesmo tempo se esconde. Isso porque ele busca de suas criaturas a verdadeira conversio do coragdo. Pascal acredita que se Deus fosse passivel de De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 total conhecimento 0 homem nao reconheceria sua insuficiéncia “se nfo houvesse obscuridade, o homem ndo sentiria sua propria corrupgdio” (PASCAL, 2005. Af. $86). Assim, encontra-se em Deus, objeto de um saber incerto que é a Teologia, espago para que a vida seja tum jogo em que hé um duplo ganho garantido. © Deus Escondido Até agora o estudo acerca da condigdo humana no pensamento pascaliano foi conduzido a reconhecer que ha no homem uma insuficiéneia essencial. De forma que ficou constatado que o homem & constituido de um misto de miséria e grandeza e ha uma disjungao na sua organizacdo ontolbgica que ¢ ordenada pela caritas. O que se propusera até agora foi fazer 0 caminho de retomo do homem para sie mostrar o que Pondé e outros leitores de Pascal ndo conseguiram enxergar: que hd redengdo. Essa redengao s6 surge no retorno a Deus, na saida de seu esquecimento, 0 que se transfigura na alma humana como amor a todas as criaturas e no resgate da religiosidade'™”. Deus, segundo Blaise, se separou longinguamente de suas criaturas, e 0 homem. esti abandonado, sem rumo, perdido “entre os dois imensos infinitos que 0 cercam” (PASCAL, 2005 af. 72). Criaese, assim, em seu coragdo, a consci cia trégica que é aquela que faz a experiéncia da separago absoluta sem ter em vista nenhuma reconciliagao possivel entre 0 infinito e o finito, a nao ser pelo sentimento, ou seja, pela via do coragao. A redengdo em Pascal se traduz em dgape, esse amor sobrenatural que nasce para aqueles que estio em Deus, Séo Maximo Confessor diz que "Deus depositow no coragdo humano o desejo de Deus". £, pois, na sua propria natureza, criada imago Dei, que 0 1 homem esté predestinado ao conhecimento de Deus. Segundo as sagradas escrituras, a esséncia do homem nao esté na racionalidade, nem na liberdade, na linguagem, na cultura ou na religiéo, mas sim na sua capacidade de expressar a realidade de Deus, isto &, de se tomar um “icone de Deus”. Essa ideia foi bem acolhida pelos padres do deserto, que a tinham como principio bésico da sua Antropologia que depois foi ignorada pelos escolésticos ¢ completamente esquecida pelos ‘modemos. (MONDIM, 1997, p. 399) “© D'ABREU, Rochelle Cysne Frota. Breve abordagem de aspectos religiosos em Pascal e Dostoievski Texto da aule apresentada em junho de 2000 na UCB. Nao publicado, ** idem; Ibidem De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 ‘Na perspectiva da £8, 0 mistério do homem reside no mistério de sua imago Dei. A hist6ria da salvagio remonta a ideia do “(cone divino”. Uma semelhanga institulda por Deus no momento da criagdo e que foi manchada pelo pecado original e depois restaurada por Cristo, Verbo encamado, icone consubstancial ao Pai. (idem) Ji que 0 destino do homem esté em se tomar imago Dei, para Pascal, Deus jé deu esse modelo aos homens, por pura misericérdia, para que seja resgatada sua condigéo decaida pelo pecado. E Jesus que revela o Pai, a imagem primeira que 0 homem possuia antes do pecado, Nele se encontra a fonte de toda naturalidade, a sobrenaturalidade. Nele se cencerra a caréncia ontolégica essencial que perdura latente no coragio do homem Jesus Cristo resgata, a partir de sua vinda, a dignidade do homem. Ele carrega em si os paradoxos da condigdo humana e dignifica o que antes estava visivelmente perdido buscando a inquietagio em meio as trevas impenetriveis, que s6 encontraria com a encamagao. \Vejo Jesus Cristo em todas as pessoas ¢ em nés mesmes: Jesus como pai em. seu pai, Jesus como irmio em seus itmaos, Jesus como pobre nos pobtes, Jesus como rico nos rivos, Jesus como doutor ¢ sacerdote nos sacerdotes, Jesus como soberano nos principes etc. Pois, por sua gléria, ele & tudo o que ha de grande sendo Deus e, pela sua vida mortal, tudo 0 que existe de frégil ce miserivel. Por isso assumiu essa infeliz. condigdo, para estar em todas as pessoas, ser modelo de todas as condigdes (PASCAL, af. 785) Em Jesus temos a sacralizagdo do tempo ¢ de toda natureza, Todo conhecimento de Deus se toma visivel, sem a necessidade de buscé-lo fora da natureza em um conhecimento metafisico. Os paradoxos se dissolvem, pois ele une todas as coisas, ia e grandeza, orgulho ¢ humildade, O retorno para si, portanto, est em se tornar uma Alter Christu, ou seja, aniquilar 0 eu insuficiente e cheio de misérias para viver 0 eu de Jesus Cristo. [..] Porque & por Cristo, por seu mistério, gue existem todos os tempos, com tudo o que eles eontém. Em Cristo receberam seu prinefpio e seu fim. Esta sintese estava predeterminada na origem: sintese do limite e do ilimitado, da medida e do que nao tem medida, do finito e do infinit, do Criador & da criatura, do repouso e do movimento. Quando veio a plenitude dos tempos esta sintese tomou-se visivel em Cristo, dando cumprimento aos desfgnios de Deus (CLEMENT, 2003, p. 39) jimultancamente revelado ¢ velado. Em Jesus Cristo, no entanto, @ mistéri © Deus inacessivel, pelo fato de se revelar no crucificado, € um Deus escondido, incompreensivel, que desconcerta todas as afirmagGes ¢ expectativas criadas sobre ele. De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 Maximo Confessor diz que: “A encamago é um mistério mais inconcebivel que qualquer ‘outro’. Mesmo Deus se expressando ¢ sempre desconhecido. '“ fim da encaragio ¢ estabelecer a plena comunhio entre Deus ¢ o homem para que o homem encontre em Cristo a aceitagdo espontanea e a imortalidade, 0 que os padres do deserto chamam de deificagdo. Nao se trata de um esvaziamento do humano, mas de sua plenitude na vida divina, porque s6 em Deus o homem é verdadeiramente homem. Pascal se afastou de todos os cfrculos filos6ficos de sua época para viver um tempo como um solitirio do mosteiro de Port Royal e depois sozinho em sua casa até a morte, Tentou viver radicalmente tudo que pregava o desapego do mundo, o temor a Deus € defendeu veementemente a f& contra os que estavam buscando mudar a doutrina ou fazer da religido crist€ algo conveniente que atendesse aos interesses pessoais. Diante das suas experigncias com Det -om a religido e, principalmente, da sua nogdo de aniquilamento do eu (desprendimento), pode-se notar tragos de uma mistica pascaliana, onde o conhecimento de Deus esta no desconhecimento total e € na assimilago do sujeito que ama com o amado que reside a perfeigdo cris {uJ £0 que a Escrtar aponta ao afr, em tantos pontos, que asueles que procuram a Deus © encontram, Nao é nessa luz que Ele fala, “como a Glaridade em pleno meio dia”: ndo se diz que os que procuram a luz em pleno meio dia ou a gua no mar achardo; enti, na verdade, mister se faz Que a evidéncia de Deus nfo seja dessa ordem da natureza, Por isso ela nos diz em outra parte: Vere tu Dew absconditus'“(PASCAL, af. 242) Mas nao podemos desconsiderar 0 fato de que Pascal & 0 filésofo dos paradoxos por isso a dificuldade de considerd-lo um mistico. Ao mesmo tempo em que ele indica a saida de si para uma comunhio com Deus seu pensamento vem carregado de uma perspectiva pragmé ica_pois tudo que ele escreveu sobre a condigo humana e a comunhao ‘com Deus seus resultados sto passiveis de verificagdo e confirmagdo por qualquer um, Mas Pascal se dé conta de que o objetivo da vida nio esta no eu € sim na participagdo da vida de Cristo. Podemos, com isso, relacionar mais uma vez Pascal a Sao Francisco que perguntava “quem és Tu © quem sou eu”, ndo para expressar uma forma de conhecimento, mas de fundir-se com 0 divino a ponto de ndo saber quem se & A vida '® DABREU, Rochelle Cysne Frota. Breve abordagem de aspectos ré spresentada em junho de 2000 na UCB. Nao publica. 15 "Es realmente Deus oculto (Isalas, 45, 15) josos em Dostoievski. Texto da aula De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26 interior, dessa forma, transforma a exterior pelo aniquilamento de eu egoista e a busca pela identificagdo com Jesus Cristo. ‘A razio & um caminho de se buscar o conhecimento de Deus, segundo Pascal ‘mas, a0 mesmo tempo, é preciso suspendé-la devido o mistério ultrapassar suas capacidades de intelecgo, $6 que essa suspensio se dé racionalmente, de forma que ela sabe que esté sendo suspensa. Com isso, 0 francés nos aponta a douta ignorincia para conhecermos, ou ‘melhor, para desconhecermos e conhecermos a Deus em seu infinito mistério. Contudo, se chegou a conclusio de que, de acordo com o pensamento de Blaise ycia abandonando-se na sua ncia do homem encontra sua sufici Pascal, a insul insuficiéncia, Nao foi proposto, como jé escrito antes, que seja superada essa insuficiéncia, antes se deve utilizar da razdo, que marca a grandeza do homem, para reconhecer sua pequenez. Dessa forma, o caminho para o homem moderno retornar para sua condi¢do de criatura divina e sagrada nao € possivel aleangar racionalmente devido sua natureza estar corrompida. E por isso 0 caminho proposto por Pascal € 0 da humildade © 0 da caridade. Somente © homem que se abre para esas duas dimensées, que estéo no campo do sobrenatural, pode restabelecer sua dignidade nessa existéncia e viver de forma a ter uma dupla possibilidade de ganho. Mesmo que esse Deus, promotor dessa possibilidade de ganho, ndo se apresente racionalmente, 0 coragdo & capaz de sentir que hé algo que 0 sobrepassa infinitamente. CONCLUSAO Realizar uma reflexdo teérica com base nas ideias do filésofo Blaise Pascal é um desafio bastante instigador, pois trata-se de um autor que contém poucos escritos traduzidos io. Devido & isso, & dificil para o portugués e, por apresentar muitas nuances de seu raci ampla possibilidade de interpretagdes que visivelmente percebemos quando se lem os escritos pascalianos, facilmente pode-se perder a dnalise € a compreensio correta, ocasionando distorgdes das proprias ideias do autor que as defendeu com tanto afinco. © priprio filésofo, em sua época, recebeu bastante criticas daqueles que nao compreenderam ao certo seu pensamento sendo, muitas vezes, tachado de paradoxal. Diante de tais julgamentos Pascal, em seu livro Pensamentos, critica os filisofos que buscavam encontrar os fundamentos da sua existéncia na razo. Um deles que Pascal critica & Descartes, chegando a se referir a ele como incerto e indtil (PASCAL, af. 78). De Magistro de Filosofia — Ano XI1—N. 26

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