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A CONSTITUICAO DO SUJEITO AULA 1 Prof. Cassio Gongalves de Azevedo hitps:univitus.uninter.comfavalwebiroal sai0aiz2, 13:05 UNINTER CONVERSA INICIAL Em gramatica, aprendemos que o sujeito é um dos termos mais importantes de uma oracio, de uma frase, seja ela pronunciada, seja escrita. Geralmente, o localizamos antes do predicado, embora também possa vir depois. De uma ou outra forma, trata-se do termo sobre o qual se declara alguma coisa. Ele pode ser um sujeito simples ou composto, quando se tem um ou mais de um termo que se refere(m) ao sujeito; pode ser implicito ou oculto, quando indiretamente enunciado; ou, ainda, indeterminado, quando nao se pode determinar quem ou o que € 0 sujeito da frase. O sujeito pode, assim, ser um lugar, quando, por exemplo, dizemos que A Amazénia possui uma diversidade exuberante, em que 0 sujeito é a Amazénia; ou um objeto, se dissermos que A caneta é azul, Pode ser um espaco temporal, por exemplo, a Antiguidade ou a Idade Média, Em suma, pode ser qualquer coisa que comporte predicados, atributos. A palavra sujeito também pode ser utilizada como adjetivo, com a conotago de submissao ou subordinacao, quando, por exemplo, dizemos que um individuo esta sujeito a uma determinada situagdo ou circunstancia, J4 no senso comum, que é 0 conhecimento advindo das experiéncias mais imediatas do ser humano com a realidade, a ideia de sujeito nos é quase que automaticamente equivalente & de pessoa, por exemplo, quando dizemos um sujeito pulou 0 muro; ou que determinado sujeito pode ser assim ou assado, de modo que o sujeito se apresenta como sinénimo de um individuo, de uma pessoa, de um ser em especial, um ser humano, a quem também conferimos atributos ou acdes. Porém, como conceito, 0 termo sujeito abrange nuances muito mais multifacetadas e complexas, diferindo sua significagdo conforme a terminologia especifica a cada area que o conceitua, que o operacionaliza. Podemos falar do conceito de sujeito para a filosofia e, nesse campo do saber, veremos uma proliferagéo de matizes que irao conferir ao conceito de sujeito diferentes aspectos, conforme o prisma filosdfico sob 0 qual se queira aborda-lo. Essa tarefa, por sinal, ndo nos convém, hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans, ‘91002, 12105 UNINTER pois 0 que vamos perscrutar é a emergéncia da nogao de sujeito, mais do que o conceito em si, no campo da psicandlise. Para tanto, situaremos apenas a emergéncia do sujeito como advento da modemidade, como convém fazé-lo, para, na sequéncia, desmembra-lo em algumas possibilidades decorrentes da evolugdo de algumas areas. Veremos, assim, brevemente, a titulo de contextualizagaio € contraposicao, duas concepsées de sujeito articuladas a algumas implicacées tedricas e praticas que as engendraram, a saber: 0 sujeito modemno ou cartesiano e 0 sujeito dos direitos humanos. Esse breve percurso nos servira para adentrar, pelo contraste, no campo inaugurado por Freud € na nogao de sujeito que dele decorre para verificar nao a especificacao do conceito, tarefa que coube a outro psicanalista posterior, mas seus fundamentos, suas incidéncias e seus ecos. Para tanto, aprenderemos 0 conceito revolucionario de pulse, forjado por Freud e desenvolvido durante toda a sua obra para dar materialidade 4 dimensao econémica do aparelho psiquico. Veremos, ainda, como as pulsdes se desenvolvem durante as fases do desenvolvimento da libido, o que ficou conhecido como desenvolvimento psicossexual; para, na sequéncia, adentrarmos no importante conceito de recalque, Sobre o recalque, nos deteremos sobre 0 mecanismo dessa operacao psicolégica para, entao, compreender sua importancia para a constituigao do aparelho psiquico tal como concebido na teoria freudiana. Verificaremos algumas das consequéncias que o recalcamento da pulsdo acarreta para a constituigéo do aparelho psfquico, tal como a clivagem deste entre consciéncia e inconsciéncia Por fim, na secao "Na pratica’, veremos algumas aplicabilidades do que foi desenvolvido e, por fim, retomaremos brevemente ao que foi estudado ao longo dela. TEMA 1 - O SUJEITO MODERNO E comum se atribuir ao filésofo francés René Descartes (1596-1650) e ao seu Discurso do método, de 1637, a concepgao do sujeito moderno. Descartes (2005) foi, sem diwvida, um dos pilares da ciéncia, e sua operagdo consistiu em realizar um corte com a tradigao filos6fica ao instituir, com base em um determinado ceticismo, um ponto de certeza sobre o qual se péde erigir todo um saber. Esse ponto nao € um ponto qualquer, mas um ponto em que o sujeito desvela o mundo e a si préprio. pelo processo do pensamento e da consciéncia. hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans ‘91002, 12105 UNINTER Tendo a duvida como método, Descartes (2005) suspende quaisquer possibilidades de certeza com excecao de uma nica, qual seja, a de que se duvida; e, portanto, se pensa. Nenhuma realidade lidade externa (res extensa) pode garantir ao individuo um valor de verdade, haja vista a potenc enganadora dos seus sentidos; porém, o fato de esse individuo estar pensando se impée, dai sua maxima Cogito, ergo sum, ou seja, Penso, logo sou (Descartes, 2005). COcorre que 0 objetivo de Descartes é fixar um principio que sirva de base ao saber. Um ponto de certeza, E & essa decisfo que 0 leva a recusar as informacdes vindas da palavra revelada tanto quanto as informacées colhidas pelos sentidos. Isso porque os sonhos - quer dizer, os sentidos ~ fomecem dados que sao ilusérios. No fim, 0 terreno da realidade sensorial & movedico. Portanto, sua duvida resulta em um ato, Um ato do intelecto, De deixar cair todos os pressupostos. Em consequéncia e a0 longo das duas primeiras meditacdes, ele se despe de tudo © que sabe ou acredita saber. Assim sendo, deixa cairalicerces que escoram seu saber até ficar nu, a s6s com sua razio, momento em que uma certeza fulgurante se Ihe impée: a certeza de ser pelo fato de pensar. Enquanto pensante, sou. De cogitans, sum. (Cabas, 2009, p. 106-107) Trata-se, entdo, nao apenas da articulacdo do ser como sustentado pelo processo do pensar, a res cogitans ou substancia pensante; mas do proprio discurso do saber tomando como objeto o seu agente, ou seja, numa formulacaio em que o pensamento implica o sujeito que o pensa, ¢ 0 corolario dessa operacao é um sujeito de conhecimento, dotado de autoconsciéncia e razao. Mas 0 que é este eu que pensa, e que portanto existe? £ um ser pensante (res cogitans). © pensamento afirma-se como o atributo princinal do sujeito, sua esséncia. Nada mais do que o ato de pensar é capaz de defini-lo enquanto “eu que, sendo assim, nfo é outra coisa do que uma consciéncia autorreflexiva. € © mesmo "eu" que pensa e que, por pensar, descobre-se enquanto “eu Assim, "eu", “consciéncia’, e “sujeito’, so termos equivalentes, cuja esséncia consiste na faculdade de pensar. (Ribeiro, 1995, p. 24) Ora, esse sujeito identificado com 0 pensamento, capaz de conduzi-lo pelos caminhos de uma divida hiperbélica, levada até as tiltimas consequéncias, pode, por meio da propria atividade de pensar, conhecer 0 mundo e a si préprio, ou seja, saber sobre si e sobre sua realidade. Trata-se, portanto, do sujeito da certeza, da autoconsciéncia, daquele que coincide consigo préprio, indivisivel quando reduzido as Ultimas consequéncias pelo seu processo de pensar. TEMA 2 - O SUJEITO DE DIREITOS E DEVERES hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans ‘91002, 12105 UNINTER O advento do sujeito moderno, sua progressiva secularizacao, desvinculando-se das imposices dogmaticas que restringiam seu acesso ao conhecimento ou 0 condicionavam a quaisquer outras alteridades para além do préprio sujeito, esse novo sujeito com liberdade de consciéncia para autogerir suas préprias aces, com base na assuncdo de seu pensamento racional, impulsionara outra corrente filoséfica que se valeu do conceito de sujeito com vistas a criticar e interferir na organizacao da sociedade, No entanto, foram necessarias revolugées que promoveram profundas transformagées tanto no campo politico quanto na prdpria estrutura social, para que, ao conceito de sujeito moderno, fossem incrementadas outras nuances. No mais, & justamente a obsolescéncia dessas estruturas politicas (ceifadas no findar do século XVIIl pelo cutelo da guilhotina) que marcaré o fim do Antigo Regime e o advento de um novo lago. Um laco onde o sidito - acorrentado vontade do suserano ~ & livertado dessa tirania pela pura soberania da Lei. A profunda reformulacdo dos fundamentos juridicos, concluida pela Revolucso Francesa, transforma o siidito em sujeito. A partir desse momento 0 sujeito € sujeito da lei, Sujeito de direitos © deveres. Sujeito da modernidade - uma concepgio com a qual concordam e da qual comungam as mais diversas correntes da filosofia politica. Por esse viés abrem-se as portas a questo da cidadania, da mesma maneira que o estatuto da subjetividade conduz ao problema dos direitos das minorias. € a apologia dos direitos. € 2 epifania da liberdade subjetva(.. A filosofia politica, assim, voltou seu aparato critico para as relagées de poder que vigoram nas sociedades para identificar no sujeito seu efeito, e a emancipacdo do ser de pensamento como advento da modernidade resultou em uma consciéncia moral que inevitavelmente precisou perpassar as relacdes do sujeito com o outro De fato, a ideia de sujeito revela uma parte da hi éria das conquistas humanas nos campos da moral, da cidadania dos direitos humanos. Isso porque o sujeito nao é apenas um ser capaz de agir moralmente, j4 que ele também se apresenta como um portador de direitos e deveres, ou seja, ela é capaz de alcancar e assumir a condicio de cidadéo. O sujeito-cidadio se define a partir de sua relagdo com as leis, instituigdes e esferas de poder. Aqui ele encontra os meios para a atuacso social ¢ a manifestagéo da sua consciéncia politica. © sujeito, como jé mostramos, é determinado por sua individualidade e, da mesma maneira, por suas relacdes e experiéncias compartilhadas. ‘Suas agdes cotidianas sao orientadas por principios legais e valores morais. £ isso, alias, que define sua condigdo de sujeito de direitos, (Pequeno, 2016, p. 34) Teéricos como Foucault, por exemplo, irdo justamente apontar seu arsenal critico para denunciar a falta de efetividade dessa formalidade juridica no que diz respeito a liberdade dos sujeitos por ela designados: “No entendimento de Foucault, o sujeito é um ponto minimo imerso numa trama. Um. elemento sem relevo em meio as pressdes de uma microfisica do poder” (Cabas, 2009, p. 111). hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal 55 ‘91002, 12105 UNINTER Vemos, portanto, que o sujeito da filosofia politica se define por meio de suas relages com o outro, seu semelhante, e com 0 outro da cultura, da estrutura da sociedade objetivada na forma do conjunto de leis, mesmo que implicitas. O espaco a ser debatido pelas varias correntes filoséficas, nesse Ambito, € 0 da liberdade que esse sujeito pode gozar nas suas relacdes sociais, numa determinada sociedade, no tempo. Logo, a interrogagao recai sobre a maquinaria do outro, ou seja, sobre o lugar que uma determinada organizacao social, simbdlica, reserva ao individuo a ela sujeito. Ocorte que, tanto para a filosofia politica como para a Critica Contemporanea (a critica de Foucault), 0 Sujito é sempre deduido. 50 significa que é extraido por meio de uma deducto cuja premissa reside no Outro, Na presenga do grande Outro, Nas relagdes de poder que vigoram numa sociedade dada, Depreende-se que, nesse contexto, 0 Sujeito néo representa uma questéo, A questio & 0 Outro, Nesse sentido, o Sujeito néo é mais que um efeito. O produto de uma sobredeterminagio. Uma cristalizagao. (Cabas, 2009, p. 112) Essas breves explanacées acerca do percurso e das possibilidades que o conceito de sujeito ensejou no campo da filosofia nos serviréo para melhor especificar 0 conceito de sujeito que a psicandlise iré colocar em pauta, bem como aquilatar com mais preciso o valor da subversao que o discurso psicanalitico representa. TEMA 3 — A PULSAO Um dos mais inovadores e surpreendentes conceitos forjados por Freud para dar conta da excentricidade da experiéncia humana é 0 conceito de pulséo. Substrato ultimo da dimensao econémica da metapsicologia freudiana, 0 conceito de pulso vem propiciar as bases materials que ‘sustentam a animosidade psiquica, subjacente ao aparelho psiquico © as representacdes “ineonscientes (Cabas, 2009, p. 56). Desde os Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud jé chamara atengdo para a origem somatica das pulsdes, isto é, j4 as localizara em zonas erégenas do corpo. Contudo, em 1915, no texto As pulsdes e suas vicissitudes, Freud (1996) as localiza numa regido fronteiriga entre 0 corpo e © psiquico. Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biolégico, um ‘instinto! ros aparecerd como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e 0 somético, como 0 representante psiquico dos estimulos que se originam dentro do organismo ¢ alcancam 2 mente, como uma medica da exigéncia feita & mente no sentido de trabalhar em consequéncia de sua ligacéo com o corpo. (Freud, 1996, p. 127) hitpsunivitus.unintercomiavaiwebioa! ants ‘91002, 12105 UNINTER Importa atentar para o fato de que a traducdo utilizada na citagao anterior decorre da tradugéo inglesa, em que o termo alemao Trieb, pulsdo, foi traduzido como instinct, instinto. Esse adendo & absolutamente fundamental, pois nele reside uma distorgao conceitual de magnitude conhecida em psicandlise. Diferentemente do instinto, que se processa de forma intermitente e que possui um objeto especifico para sua satisfagao, a pulsio é uma forca constante e ndo possui, como veremos, um objeto especifico. Nessas particularidades residem algumas das principais diferengas no regime de funcionamento que rege a experiéncia humana e a difere do modo de operacao do reino animal Feito esse adendo, voltemos ao texto sobre as pulsdes para verificar que, nele, Freud (1996) se debruga sobre a estrutura daquelas para decompé-la como tendo uma forga, que é constante; um fim, que é sempre a satisfacio; um objeto, que é varidvel; e uma fonte, que é somatica. A finalidade das pulsdes é a satisfacdo, e esta consiste na diminuigéo da excitacao infligida ao aparelho psiquico, no que a pulsdo é imperativa. Trata-se de uma excitagéo constante (Konstant Kraft), sentida como tensdo, desprazerosa, proveniente de fontes internas (Zonas erdgenas) que almejam satisfacdo, ou seja, a reducao dessa excitabilidade que perturba a homeostase do organismo, ou, nos termos de Freud, apoiado no filésofo alemao G.T. Fechner, o principio da constancia, Quando uma determinada acdo muscular se estende na direco da supressdo desse estimulo perturbador, o que se tem é a reducao dessa tensao e a consequente satisfacao, sentida como prazer. E importante notar que, diferentemente dos estimulos externos que podem ser intermitentes, o estimulo provocado pelas pulsdes provém do préprio organismo, ou seja, ndo se pode, portanto, correr de suas investidas e de sua preméncia. Além do mais, no que diz respeito as fontes das pulsGes, Freud as privilegia como sendo as bordas dos orificios corporais, por exemplo, a boca e 0 esfincter anal, o que nos chama atengao para sua estrutura de furo. Adiantamos, desde ja, que essas caracteristicas pulsionais, por exemplo, de suas fontes, serio fundamentais para a compreenséo do que viré a se constituir como sujeito, e que nos propomos a abordar. De tal modo que o mais importante, nesse contexto, & ressaltar que a fonte passa a ter a funcdo de lum furo e a causa freudiana o estatuto de uma falta. No fundo, isso implica que quando se trata da causa 0 que esti em jogo é a falta. E que a falta 6 a causa do ato e, por extensio, que o furo é, no plano pulsional, o sustentéculo material do lugar do sujeito, Entende-se: na experiéncia freudiana (Cabas, 2009, p. 60) Essa caracteristica da estrutura das fontes pulsionais, por assim dizer, hiante, soma-se a outra, a da falta de um objeto inerente, e ambas marcam as pulsdes com uma caracteristica indelével, a da hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ams ‘91002, 12105 UNINTER falta, pois, no que diz respeito aos objetos pulsionais, Freud (1996, p. 128) identifica as seguintes caracteristicas: © objeto [Objekt] de um instint 6 a coisa em relagdo & qual ou através da qual o instinto & capaz de atingit sua finalidade. E © que hd de mais varkével num instinto e, originalmente, nfo esté ligado a ele, 56 the sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tomar possivel a satisfacao. 0 objeto nao € necessariamente algo estranho: poderd igualmente ser uma parte do préprio corpo. do individuo, Pode ser modificado quantas vezes for necessério no decorrer das vicissitudes que 0 instinto softe durante sua existéncia, sendo que esse destocamento do instinto desempenha papéis altamente importantes. Faz-se importantissimo ressaltar, mais uma vez, que a tradugdo utilizada no trecho anterior também substituiu 0 termo alemao Trieb por instinct, ou seja, traduziu por instinto o que Freud (1996) denominou pulsdo. Como j adiantamos, diferentemente do regime instintual dos animais, que se satisfazem com objetos especificos, 0 ser humano € extremamente plastica quanto aos objetos que Ihe séo meios para obtencdo de satisfagdo. Depreende-se, desses aspectos estruturais das pulsdes, um funcionamento assaz particular, pois, diferente do instinto, que vigora e regula o funcionamento animal com demandas intermitentes e objetos especificos, a pulsdo é uma forca constante, e isso se dé nao apenas em fungao da morfologia de sua fonte, em forma de fure ou buraco, mas também em virtude dessa falta de objeto que Ihe é constitutiva. De modo que, partindo de uma fonte em forma de furo, ndo tendo objeto especifico e sendo, portanto, uma forca constante, o que se apresenta é uma espécie de montagem aparentemente fadada & insatisfacdo. Vale lembrar, ainda, que as pulses, como uma medida da exigéncia feita A mente no sentido de trabalhar em consequén de sua ligaséo com 0 corpo, precisam ser inscritas no psiquismo para que uma via de acesso a sua satisfacdo se faca reconhecer. Essa inscricdo, como veremos, nunca se da por completo, de modo que resta sempre um mais além, pulsional, que insiste. TEMA 4 - O RECALQUE Tendo como pano de fundo as divergéncias entre autores que ainda se valiam do termo psicandlise para nomear suas praticas, que ja nao mantinham com aquela nenhuma relagao, como a de Carl G. Jung, por exemplo, Freud (1996) decide resumir, em 1914, A histéria do movimento hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans, ‘91002, 12105 UNINTER psicanalitico, em que se refere ao recalque (traduzido erroneamente, a seguir, como repressdo) da seguinte maneira: A teoria da repressdo é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicandlise. € 8 parte mais essencial dela € todavia nada mais é sendo a formulagio teérica de um fenémeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a andlise de um neurético sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resisténcia que se opée ao trabalho da anslise e, a fim de frustré-to, alega falha de meméria. © uso da hipnose ocultava essa resisténcia; por conseguinte, a histéria da psicandlise propriamente dita sé comeca com a nova técnica que dispensa a hipnose. A consideracao teérica, decorrente da coincidéncia dessa resisténcia com uma amnésia, conduz inevitavelmente a0 principio da atividade mental inconsciente, peculiar a psicandlise, e que também a distingue muito ritidamente das especulacées filos6ficas em torno do inconsciente. Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanalise € uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurético a suas fontes no passado: a transferéncia e a resisténcia. Qualquer linha de investigac#o que reconheca esses dois fatos e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanslise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipéteses, dificilmente podera escapar a acusacao de apropriagdo indébita por tentativa de imitacao, se insistir em chamar-se a si préprio de psicanalsta, Eu me oporia com maior énfase a quem procurasse colocar a teoria da repressio e da resisténcia entre as premissas da psicanslise em vez de colocé-las entre as suas descobert 5. Essas premissas, de natureza psicolagica e biolégica geral, na verdade existem & seria Util considera-las em outra ocasiio; mas a teoria da repressio é um produto do trabalho psicanalitico, uma inferéncia teérica legitimamente extraida de iniimeras abservacées. (Freud, 1996, . 26, grifos do original) No mesmo volume das obras completas que citamos, encontramos 0 texto O recalque, de 1915, prenunciado n‘As pulsdes e suas vicissitudes. Nele, apreenderemos que essa operacio psicolégica é correlata da cisdo do aparelho psiquico em atividade consciente e inconsciente, e que sua esséncia "[..] consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a a distancia” (Freud, 1996, p. 152). © autor especifica que a acdo do recalque incide sobre o representante pulsional no sistema psiquico consciente, ndo impedindo que continue a existir no inconsciente e se proliferando no escur Sob a influéncia do estudo das psiconeuroses, que coloca diante de nés os importantes efeitos da repressdo, inclinamo-nos a supervalorizar sua dimensio psicologica e a esquecer, demasiado depressa, 0 fato de que a repressio néo impede que o representante instintual continue a existirno hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans, saioaiz2, 13:05 UNINTER inconsciente, se organize ainda mais, dé origem a derivados, ¢ estabeleca ligagGes. Na verdade, a repressio 6 interfere na relagio do representante instintual com um Gnice sistema psiquico, a saber, 0 do consciente. (Freud, 1996, p. 153-154, grifo do original) © autor especifica que a acao do recalque incide sobre o representante pulsional no consciente, mas isso ndo impede que ele aja sobre “[..] todos os derivados" (Freud, 1996, p. 154, grifo nosso), 0 que possibilita que cadeias de associagdes ideativas possam ascender a consciéncia. E Freud (1996, p. 157) prossegue, ressaltando o carater mébil das pulsdes subjacentes aos seus representantes pulsionais: Até esse momento, em nosso exame, tratamos da represséo de um representante instintual, entendendo por este itimo uma idela, ou um grupo de ideias, catexizadas com uma quota definida de energia psiquica (libido ou interesse) proveniente de um instinto, Agora, a observagao dlnica nos obriga a dividir aquilo que até 0 presente consideramos como sendo uma entidade nica, de uma vez que essa observagdo nos indica que, além da ideia, outro elemento representativo do instinto tem de ser levado em consideracio, € que esse outro elemento passa por vicissitudes de repressio que podem ser bem diferentes das experimentadas pela ideia Geralmente, a expressio quota de afeto tem sido adotada para designar esse outro elemento do representante psiquico. Corresponde ao instinto na medida em que este se afasta da ideia encontra expressao, proporcional a sua quantidade, em processos que so sentidos como afetos. A partir dese ponto, ao descrevermos um caso de repressio, teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece a ideia como resultado da represso e aquilo que acontece & energia instintual vinculada a ela. (Freud, 1996, p. 157, grifo do original) Ou seja, Freud aponta para a cisdo entre a inscricdo psiquica de uma pulséo, seu representante no campo do inconsciente e sua base material econdmica, a pulsdo propriamente dita. Ndo nos é possivel, nos limites de que aqui dispomos, acompanhar em detalhes como Freud (1996) esmitica o mecanismo do recalque, por exemplo, no texto O inconsciente, que se segue ao texto d’O recalque, mas contentamo-nos em concluir que 0 mecanismo do recalque denuncia a divisdo da estrutura psiquica e que incide sobre os representantes psiquicos das pulsées parciais. Essa é a via que nos subsidiaré na compreensao da nocao de sujeito para Freud (1996), nogdo de uma subjetividade dividida, clivada entre processos conscientes e inconscientes, bem como entre um funcionamento puramente pulsional e outro simbélico. TEMA 5 — FASES DA PULSAO: LIBIDO hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal sons ‘91002, 12105 UNINTER Convencionaram-se chamar de desenvolvimento psicossexual as fases em que preponderam diferentes pulsdes parciais que vao se somando e se sobredeterminando, em um processo que ndo é \earmente progressivo, mas complexo e dindmico, posto que até regressivo. As pulsdes balizadas pela acdo do recalcamento chamou-se de libido, e o desenvolvimento psicossexual, 0 processo por meio do qual essa libido (pulsao sexual) se desenvolve atravessada pelos cinco estagios: as fases oral, anal, falica, de laténcia e genital, mediadas sempre pelo outro. Nao nos ocuparemos em detalhar, aqui, cada estagio pelo qual a pulsdo é atravessada, mas apenas indicaremos que a estruturacao da subjetividade freudiana passa pelo histérico a que séo submetidas as puls6es, no processo de desenvolvimento psicossexual das vicissitudes a que as pulses vo sendo expostas, e a conformacao subjetiva que se vai adotando por meio dessa demarcacao. Salientamos que esses impulsos que so originados nas zonas erdgenas si denominados de pulsées.Essas pulsGes estio situadas na fronteira entre o corpo e a psique dos individuos e sempre fazem pressio para obterem satisfacio. A satistacio esté sempre em parte relacionada ao préprio corpo e em parte aos objetos externos. Eas funcionam independentemente umas das outras e por isso so chamadas de pulsées parciais. Seus objetos podem ser os mais varidveis possiveis e elas podem encontrar diversos tipos de satisfacao. Entretanto, a frustragdo dessas pulsdes é que vai determinar como as pessoas se relacionam com os outros e com a cultura, Dat a importincia da educagio como agente civlizatirio, pois é através da educagdo que a crianga passa a tentar ter um dlominio sobre esses impulsos, sejam eles seruais ou agressivos. € através da intemalizacio das diversas proibiges dirigidas a esses impulsos que a crianca aprende a lidar com seus limites © aprende a conviver em sociedade. (Furtado; Vieira, 2014, p. 100) Ou seja, as pulsdes parciais ndo so integradas num todo coerente, posto que provém de diferentes fontes e almejam satisfacdes perpassadas por diferentes objetos. Essas satisfagdes sofrerao ages frustrantes, dentre elas a do recalcamento, haja vista que se constituem em etapas primitivas da organizagéo do sujeito e nao coincidem com os ideais sociais da educaco e das barreiras psiquicas como nojo, vergonha etc. que vigoram na organizacao da sociedade. A estruturago da subjetividade para Freud, portanto, vai se consolidando em torno dessa demarcagéo que as frustracdes vao impondo as pulsdes, ou seja, em torno das sucessivas frustracdes as quais o individuo vai sendo exposto e que vao modulando os seus imperativos pulsionais. © fato é que Freud isolou essas modulagdes sob 0 nome de “vicissitudes da pulsao” e, indo mais, longe, observou que elas compreendem uma série de alternativas, como a transformagéo no contraria, o retorno contra a prépria pessoa, 0 recalque e a sublimagio, Todavia, para além dos hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal ans ‘91002, 12105 UNINTER pormenores que incidem no curso pulsional, para além dos percalgos do impulso e para além das nuances da modulaglo, 0 essencial & que esses destinos imprimem uma torgSo ao circuito da pulséo, 0 termo merece destaque: forgo. £ tais destinos modulam o impulso de um modo tal que acabam impondo-Ihe uma inflexio e obrigando-o a fazer o retorno. Assim, 0 curso se completa quando o ciclo pulsional atinge o ponto de partida, a saber, a fonte pulsional,€, no exato momento em que o circuito se fecha, um efeito se inscreve no lugar de onde brotara o empuxo, Esse ponto conceme ao sujeito. 0 sujeito enquanto determinado pela incidéncia da pulsao. Em consequéncia, temos de postular que a forma da pulséo demarca um ponto muito preciso, um ponto especifico: o lugar-do-sujeito. (Cabas, 2009, p. 68, grifo do original) Assim, como defende Cabas (2009, p. 73), 0 percurso que Freud percorre no que diz respeito ao desenvolvimento da pulséo, e que apenas tangenciamos aqui, “L..] tem por objeto um tinico desfecho: dar conta da questo do sujeito’, na medida em que esse sujeito é “[.] correlato da pulsao, um efeito da satisfacio, [..] Que o lugar do sujeito € congruente com a fonte pulsional, Que sua materialidade é da ordem de um buraco. Que sua substancia é da ordem em iiltima instancia - um dos efeitos do de um furo e que, por tudo isso, 0 sujeito freudiano & real, (Cabas, 2009, p. 73) NA PRATICA Para efeitos de aplicabilidade pratica, sugerimos que sejam tomadas como exemplos as discussdes a respeito da sexualidade humana, mais especificamente, sobre 0 objeto de satisfagéo sexual. Como proceder, por exemplo, diante do fato de que os objetos de satisfacdo sexual das pessoas, diferentemente dos animais, nao sao rigidamente determinados pela natureza, que néo tém objeto inerente e fixo? Um tigre se relaciona sexualmente apenas com outro tigre e, ao que tudo indica, sempre do sexo oposto. O mesmo néo ocorre com a espécie humana cuja sexualidade, para ficar dentro do campo tido como normal, sem abordar os comportamentos sexuais patolégicos, abrange uma quantidade quase que ilimitada de possibilidades. Se quisermos nos valer de argumentos com fins meramente reprodutivos para determinar a normalidade da vida sexual humana, certamente procederemos de modo bastante bizarro, pois nao é necessario ir muito longe para verificarmos, em nés préprios, a incidéncia de fantasias que ultrapassam os fins reprodutivos e comportam contingéncias que em nada atendem aos fins de reprodugao. Ou seja, verificaremos a incidéncia da pulsio tanto no que diz respeito a plasticidade de hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal sans. ‘91002, 12105 UNINTER objetos que satisfazem as pulsées humanas como veremos também sua incidéncia de forca constante, haja vista que nossa espécie nao se restringe a periodos como os de cio. FINALIZANDO Vimos que a palavra sujeito comporta diferentes significagées, desde o senso comum, passando pela gramitica, até adquirir 0 status de conceito, em diferentes filosofias, com acepcées distintas e com diferentes desdobramentos. Sua emergéncia na modermidade decorre do cogito cartesiano, que, por meio da diivida metédica e hiperbélica em relagdo ao acesso humano a verdade, postulou o pensamento como realidade incontestavel fundamentando, inclusive, na atividade racional a consisténcia do sujeito (Descartes, 2005). Essa emancipagao do sujeito como alguém dotado da capacidade de pensamento pavimentou diferentes concepées, inclusive com implicagées praticas, por exemplo, para a filosofia politica, o que culminou com o sujeito dos direitos humanos, que, como vimos, se define como o efeito das relagdes com os outros individuos no interior de uma dada organizagao social e tem como premissa © estatuto da cidadania, resguardado pelo conjunto de normas e leis que nessa estrutura vigora e ao qual aquele se assujeita. Essas referéncias nos serviram de contraste para especificar 0 espaco que a teoria freudiana iria descobrir para aquilo que veio a se desenvolver como o lugar do sujeito. Para tanto, iciamos pela conceituagdo que Freud faz do conceito de pulsdo, localizando-o na fronteira entre 0 psiquico e o somiatico, como uma exigéncia feita & mente pelo fato de ela nao prescindir de um corpo para advir. Fomos advertidos em relacao a leitura do termo instinto, que, na literatura freudiana, deve ser sempre lido como pulsdo, pois trata-se justamente de um conceito delimitador do campo inaugurado por Freud e que desvincula a psicanalise das teorias bioldgicas. Vimos ainda que Freud operou uma espécie de desmontagem da pulsao, identificando nela uma fonte, no corpo, que sao as zonas erdgenas; uma forca, que constante (Konstant Kraft); um fim, que 6 obter a satisfacéo por meio da reducao da excitacao desprazerosa que atenta contra o principio da constancia; e um objeto, que é variavel posto que nao é inerente 4 pulsdo, Essas caracteristicas conferem & pulséo uma montagem que parece fadada a insatisfaco, por si propria, na medida em que ela provem de uma estrutura em forma de furo ou buraco e que nao dispde de um objeto que Ihe seja inerente. Nao obstante, fomos ainda levados a compreender melhor uma das vicissitudes & hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal s3ns, ‘91002, 12105 UNINTER qual as pulsées sao impostas e que dificulta ainda mais e particularmente suas satisfagées, a saber, 0 recalque. Tido por Freud como a pedra angular da psicandlise, vimos que 0 recalque opera afastando da consciéncia os representantes das pulsées, e que estas continuam operando no sistema inconsciente, © que nos fez concluir que, diferentemente do cogito cartesiano ou do sujeito da filosofia politica, a nogdo de sujeito para Freud se dispée de tal modo que comporta uma divisao intrapsiquica, um conflito inerente entre processos conscientes inconscientes, bem como entre um funcionamento puramente pulsional e outro simbélico. Continuamos ainda verificando que as pulsdes seguem um curso de desenvolvimento em que 0 traco principal é sua superposicao, bem como a existéncia de processos de modulacao, de resisténcia aos fins por elas almejados. Por fim, concluimos que a estruturagéo da subjetividade freudiana se da em tomo das sucessivas faltas impostas as satisfacdes pulsionais, e que a posicéo subjetiva se constitui em torno dessas obstrugées, por assim dizer, que imprimem nas pulsdes uma marca de insatisfacao de onde emerge o sujeito como um dos efeitos do real. REFERENCIAS CABAS, A. G. © sujeito na psicandlise de Freud a Lacan: da questéo do sujeito ao sujeito em questo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. DESCARTES, R. Discurso do método. Porto Alegre: L&PM, 2005. FREUD, S. A histéria do movimento psicanalitico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edi¢ao standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud, v. 14). FURTADO, L. A. R; VIEIRA, C. A. L. A psicandlise e as fases da organizacao da libido. Scientia, v. 2, n 4. p. 92-107. Disponivel em: . Acesso em: 1 abr. 2022. hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal sans. saioaiz2, 13:05 UNINTER PEQUENO, M. J. P. O sujeito dos direitos humanos. In: FERREIRA, L. de F. G.; ZENAIDE, M. de N. T; NADER, A. A. G. Fundamentos histérico-filoséficos e politico-juridicos. Jodo Pessoa: Ed. UFPB, 2016, (Educando em Direitos Humanos, v. 1). RIBEIRO, E. E. M. Individualismo e verdade em Descartes: 0 processo de estruturagdo do sujeito moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1995. hitps:lunivitus.uninter.comfavalwebiroal sss.

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