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FILOSOFIA DA PSICOLOGIA: UMA


TAXONOMIA
Gustavo Castañon

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CONST RUT IVISMO SOCIAL: A CIÊNCIA SEM SUJEIT O E SEM MUNDO


Gust avo Cast añon

INT RODUÇÃO À EPIST EMOLOGIA


Gust avo Cast añon

Pesquisa t eórica em psicologia, aspect os filosóficos e met odológicos - Laurent i, Lopes & Araújo (orgs…
KARIN RIZZI
FILOSOFIA DA PSICOLOGIA: UMA TAXONOMIA

Gustavo Arja Castañon

No início do ano de 2011 foram iniciadas oficialmente as atividades de uma


nova linha de pesquisa no recente Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Juiz de Fora: a linha de História e Filosofia da Psicologia. A
atividade historiográfica na Psicologia é bastante desenvolvida em nosso país e
conhecida do meio acadêmico. Mas o mesmo não acontece com a investigação em
Filosofia da Psicologia, um dos campos em maior expansão no mundo e que concentra
grande parte da produção acadêmica filosófica e psicológica. Esse será apenas o
segundo programa do Brasil com uma linha dedicada a sua investigação, sendo o
primeiro em Psicologia a promovê-la. Esta carência de programas no país é um dos
motivos pelos quais a imagem que aqui se faz deste campo é, geralmente, equivocada.
Outro importante é a confusão que se faz entre ele e algumas das abordagens
psicológicas comuns em nosso país.
Os objetivos deste artigo são três. O primeiro é oferecer uma descrição
sistemática da investigação em Filosofia da Psicologia. O segundo é demonstrar que
algumas das atividades ordinárias desta disciplina são condições de possibilidade da
investigação científica experimental. O terceiro é elencar alguns problemas psicológicos
importantes que parecem inabordáveis pelo método científico.
Nas três últimas décadas temos assistido a uma retomada das discussões
filosóficas sobre os fundamentos da psicologia e o significado de seus resultados
empíricos. Ao mesmo tempo, a Filosofia da Mente emergiu como a principal área de
interesse filosófico contemporâneo. Se definirmos, de acordo com Ned Block (1981), a
Filosofia da Psicologia como “o estudo de questões conceituais em Psicologia” (p.1)
que abarca desde o estudo dos fundamentos da disciplina até a Filosofia da Mente,
podemos apontar quatro áreas, relativamente distintas, de intersecção entre a Psicologia
e a Filosofia. Elas são a Epistemologia da Psicologia, a Psicologia Teórica, a Psicologia
Filosófica e a Filosofia da Mente.
Na primeira, reconhecida plenamente por todos os psicólogos, temos a
investigação filosófica sobre os fundamentos ontológicos e epistemológicos da
Psicologia, assim como sobre seus limites de investigação. Ordinariamente chamamos
esta disciplina de Epistemologia da Psicologia, ou, mais genericamente ainda, pode

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levar o nome do campo inteiro: Filosofia da Psicologia. É uma filosofia da ciência
regional, ou seja, uma área da Filosofia da Ciência.
Na segunda, temos a Psicologia Teórica (correlato psicológico da Física
Teórica), que, partindo do pressuposto da possibilidade do conhecimento científico
psicológico, executa investigações que são ao mesmo tempo (a) indispensáveis para o
avanço do conhecimento científico psicológico; (b) totalmente não empíricas. Podemos
citar entre estas atividades a construção de teorias, a dedução de conseqüências
empiricamente testáveis de corpos teóricos, a análise de consistência de teorias e a
identificação de seus pressupostos.
Na terceira, temos o difuso e nebuloso campo do que denominarei aqui
Psicologia Filosófica, que se dedica, em sua forma geral, à investigação dos sistemas e
abordagens teóricas em Psicologia; e em sua forma específica, ao estudo, efetuado por
algumas destas abordagens, dos mesmos problemas gerais da psicologia científica
(como desenvolvimento, memória, percepção, personalidade, emoção e motivação) sem
o método científico. Ao fazer isso, estas abordagens não necessariamente renunciam à
interpretação de alguns dados empíricos na construção de suas teorias, o que torna sua
classificação como atividade filosófica problemática. É importante ressaltar que o que
estou aqui denominando de Psicologia Filosófica não se preocupa em subsidiar a
atividade científica, ao contrário, defende que alguns problemas psicológicos, ou
mesmo todos estes problemas, são impenetráveis ao método científico.
Na quarta, temos a Filosofia da Mente, que é a investigação filosófica pura sobre
a natureza da mente em todos os aspectos, como eventos, funções, propriedades,
consciência e principalmente sua relação com o cérebro. Eventualmente, a Filosofia da
Mente pode se debruçar sobre o significado dos resultados empíricos da Psicologia e
das Neurociências ou sugerir conseqüências de teorias a serem testadas por elas,
tornando a fronteira entre ela e a Psicologia Teórica algo nebulosa. No entanto,
podemos fundamentar esta fronteira na indiferença desta disciplina em fundamentar a
atividade científica e na sua total autonomia em métodos e objetos. Ainda, a Filosofia da
Mente está fundamentalmente interessada no que a mente é, não em leis preditivas de
seu funcionamento.
Começarei agora a exposição contextualizando historicamente de forma breve a
questão, depois passarei a expor os problemas e atividades que constituem os quatro
campos da disciplina. Durante esta taxonomia breve, tratarei dos dois outros objetivos
citados. Ao descrever a Psicologia Teórica demonstrarei sua posição como parte

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integrante da atividade científica psicológica. Ao descrever os problemas especiais
investigados pela Psicologia Filosófica, área cuja legitimidade é bem mais controversa,
defenderei que estes são inabordáveis experimentalmente. Assim, as investigações não-
científicas destes problemas fundamentais seriam não só são legítimas como também de
suma importância para a sobrevivência da Psicologia como ciência relevante.

1- Momento Atual da Área


Como tratei em artigo anterior (Castañon, 2008), as últimas três décadas
assistiram a um renascimento do intercâmbio entre a Filosofia e a Psicologia. Com o
fim da utopia fisicalista do Positivismo Lógico e a derrocada do Operacionalismo como
filosofia da ciência, ficou cada vez mais evidente para o conjunto dos psicólogos que
suas pesquisas estavam mergulhadas em pressupostos ontológicos e epistemológicos.
Essa compreensão se aprofundou com a progressiva disseminação das idéias de Karl
Popper (1975), Thomas Kuhn (1990) e Willard Quine (1975).
O’Dohonue e Kitchener (1996) citam que nos últimos anos surgiram nada menos
que sete periódicos dedicados à Filosofia da Psicologia. Além do tradicional Journal of
Theoretical and Philosophical Psychology, da APA, hoje temos o Behaviorism, o
Journal of Mind and Behavior, o Journal for the Theory of Social Behavior, o New
Ideas in Psychology, o Philosophical Psychology, o Psychological Inquiry e o Theory
and Psychology.
O fato é que, de uma forma ou de outra, hoje a Psicologia parece ter
restabelecido as relações com seus pais. Temos na fronteira biológica da Psicologia a
disciplina da Fisiologia (com o campo interdisciplinar da Neuropsicologia), e nas
fronteiras teóricas, a Filosofia (com a disciplina da Filosofia da Mente e a base na
Filosofia da Ciência e Ontologia). Bernard Baars (1986) oferece uma interessante
metáfora sobre as relações da Psicologia com a Filosofia e a Fisiologia, comparando-as
com uma crise de adolescência. Poderíamos reconstruir a metáfora da seguinte maneira.
Em sua infância, a Psicologia procurava se moldar à imagem de seus pais, seguindo os
métodos herdados da Fisiologia e os objetos herdados da Filosofia. Com o
Behaviorismo, entrando em sua adolescência, a Psicologia, insegura de si mesmo, de
sua identidade independente e de seu lugar no mundo, procurava enfatizar suas
diferenças com a Fisiologia e a Filosofia, e buscar novos modelos, como a Física.
Começando a sair de sua adolescência com a revolução cognitiva, um pouco mais
confiante de seu lugar no mundo, de sua identidade, a Psicologia começa a reatar as

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relações com os pais, voltando a ser influenciada por eles (assim como passa a
influenciá-los).
Há cada vez menos espaço para a ingênua utopia positivista de rejeição da
reflexão filosófica em Psicologia. Hoje, o que é comum assistirmos são esforços como
os do behaviorista William O’Dohonue (1996), que em colaboração com Richard
Kitchener, lançou uma coletânea de trabalhos em Filosofia da Psicologia, na qual lista
os pontos hoje generalizadamente aceitos na Psicologia como atribuições de uma
filosofia da disciplina. Para os autores, primeiro, cabe à Filosofia a análise dos méritos
das metodologias de pesquisa usadas pelos psicólogos. Segundo, cabe à Filosofia
explicar e compreender as interconexões entre os campos do conhecimento científico. É
trabalho filosófico igualmente identificar movimentos ilegítimos nos programas de
pesquisa (Lakatos, 1984), como hipóteses ad hoc, para salvar teorias favoritas. Quarto,
identificar e resolver problemas conceituais nos programas de pesquisa. Quinto,
identificar ou estabelecer a ontologia pressuposta em afirmações e objetos de pesquisa
selecionados por psicólogos. Por fim, cabe à Filosofia da Psicologia identificar ou
formular as influências filosóficas que determinam a escolha do objeto de estudo por
parte do Psicólogo.
Observem que, para O’Dohonue e Kitchener, os papéis de uma Filosofia da
Psicologia são predominantemente os de uma Filosofia da Ciência regional, ou seja,
problemas epistemológicos e ontológicos da disciplina. Mostrarei aqui que o campo é,
de fato, bem maior do que este. Todos os aspectos levantados acima valem, não
somente para a Psicologia, mas para todas as ciências. Mas uma vez que a Psicologia é a
mais fragmentada e multifronteiriça destas, é na Psicologia que a Filosofia tem o mais
importante papel a cumprir. Como pontuou Arthur Staats (2004), se quisermos
continuar a sonhar com uma unificação futura da Psicologia, precisaremos do remédio
filosófico do trabalho de clarificação conceitual e uniformização terminológica, tarefa
essa que, como sabemos, é mais urgente para a Psicologia do que para qualquer outra
ciência.

2- Epistemologia da Psicologia
Geralmente chamado com o nome da área, ‘Filosofia da Psicologia’, o campo da
Epistemologia da Psicologia, que abrange igualmente a Ontologia da Psicologia, se
concentra em alguns problemas fundamentais bem conhecidos (e que, portanto, não são
o objetivo deste artigo). Mas antes de listá-los, gostaria de relembrar o âmbito de duas

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disciplinas filosóficas básicas. O termo ‘Ontologia’, que pode ter seu significado
estabelecido como “teoria do ser”, se refere a uma disciplina que, quando debruçada
sobre a Psicologia, se concentra em problemas relativos à delimitação e à natureza do
objeto da disciplina. Em outras palavras, se concentra em pressupostos ontológicos e
definições e recortes conceituais. ‘Epistemologia’ é, por sua vez, a disciplina que
investiga o processo de obtenção de conhecimento em todos os seus aspectos. A parte
estritamente epistemológica do campo, portanto, se concentra no processo de obtenção
de conhecimento válido sobre o objeto, ou seja, na questão do método geral de
investigação na disciplina. No entanto, é impossível fazer análise epistemológica sem
fundá-la em pressupostos ontológicos sobre o objeto que será conhecido. Podemos
observar isso nas áreas do campo abaixo listadas:

1) Análise da Cientificidade da Psicologia: A análise das limitações ontológicas,


epistemológicas e metodológicas da Psicologia Moderna é a questão fundamental desta
epistemologia regional. Dados os pressupostos da atividade científica e uma
determinada concepção do objeto da disciplina, podemos aplicar a primeira ao segundo?
Aqui se analisa também a relação entre uma determinada concepção de objeto e as
diferentes teorias em Filosofia da Ciência.

2) Análise da Natureza das Leis e Explicações Psicológicas: Pertence a este grupo


de problemas a análise da natureza das leis psicológicas. Podem ser elas hipotético-
dedutivas, ou são probabilísticas? Ou seja, elas podem ter a forma de dedução forte “se
x, então necessariamente y”? Ou tem todas a forma probabilística “se x, então com uma
probabilidade w seguirá y”? Outras formas possíveis de leis psicológicas e suas
condições são avaliadas, e evidentemente, a própria possibilidade de existência de leis
preditivas psicológicas. Problema necessariamente associado ao das leis, o da forma das
explicações científicas para fenômenos psicológicos já ocorridos, avalia a forma, a
possibilidade e as limitações de explicações na Psicologia.

3) Adequação das metodologias: O uso de métodos e delineamentos de pesquisa


empírica na abordagem de problemas psicológicos é de avaliação exclusivamente
filosófica, não sendo, ele próprio, um campo da pesquisa empírica. Devemos distinguir
aqui dois níveis nesta investigação: o das metodologias em si em relação a tipos gerais
de problemas, área da Filosofia da Ciência que citada aqui; e o da adequação de uma

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metodologia ou desenho experimental específico a um problema testável específico,
atividade da Psicologia Teórica que abordaremos à frente.

4) Integração multidisciplinar: É filosófico o trabalho de comparar e relacionar os


resultados de disciplinas diferentes, que trabalham com estruturas conceituais e às vezes
mesmo metodologias diferentes, como no caso típico das Ciências Cognitivas. Nestas,
temos a Inteligência Artificial, que apesar da aparência é uma área eminentemente
dedutiva e teórica; a Psicologia Cognitiva, experimental; a Neurociência, que trabalha
com estudos de correlação e de caso; e a Filosofia da Mente, predominantemente
dedutiva e teórica. Integrar e traduzir adequadamente a extensão dos significados destes
trabalhos é tarefa teórica de natureza filosófica, e nada trivial. Embora na maioria das
vezes este trabalho necessite do esforço de clarificação conceitual, ele está longe de se
resumir a isso.
Como podemos ver, em todas estas áreas as avaliações epistemológicas ou
pressupõem ou se misturam com questões ontológicas, o que nos obriga a considerar
esse campo de fundamentos todo em conjunto.

3- A Psicologia Teórica
Um segundo campo, que tem áreas de conexão com o anterior, é o denominado
‘Theoretical Psychology’ na Psicologia de tradição de língua inglesa. A Psicologia
Teórica, que corresponde na Psicologia ao papel da Física Teórica na Física, se
distingue inicialmente da Epistemologia da Psicologia por não colocar mais em questão
a possibilidade da aplicação da ciência moderna ao problema psicológico, assumindo de
saída esta possibilidade. A Psicologia Teórica não se coloca nem como fundamento da
Psicologia Científica (como a Epistemologia da Psicologia), nem como alternativa a ela
(como a Psicologia Filosófica). Seu papel é o de atividade integrante do processo de
investigação científica na Psicologia. Este campo, investigado detalhadamente em seus
métodos por André Kukla (2001), pretende auxiliar a Psicologia científica efetuando
investigações que são ao mesmo tempo (a) indispensáveis para o avanço do
conhecimento científico psicológico e (b) totalmente não empíricas.
Se direcionarmos a atenção para a totalidade do processo necessário à plena
consecução de uma determinada pesquisa quantitativa (seja descritiva ou experimental),
veremos que sete de suas nove etapas necessárias são, absolutamente, não empíricas. A
primeira, a criação de uma teoria, é evidentemente filosófica. O segundo passo, a

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formulação da hipótese ou dedução de consequência empiricamente testável de uma
teoria, é também uma atividade puramente teórica. O trabalho de definição operacional
das variáveis a serem testadas é, ele mesmo, uma atividade teórica difícil e sujeita a
críticas teóricas. A quarta etapa, a da escolha do instrumento de recolhimento dos dados,
é também totalmente não empírica, o que não acontece, no entanto, com a avaliação do
instrumento escolhido, que é o primeiro momento do processo inteiro em que entram
em cena dados empíricos. Quando, entretanto, se parte para o desenho da pesquisa, ou
mesmo ainda para a escolha do tipo dela, voltamos a um processo totalmente teórico (e
teórico em bom nível de sofisticação). Finalmente, então, somente sete passos depois do
início da pesquisa científica, temos aquilo que os empiristas consideravam a única
origem do conhecimento entrando em cena: dados empíricos sobre o fenômeno
investigado. Ainda assim estes dados são recolhidos dentro de um enorme complexo de
estruturas teóricas: teorias, que deduziram consequências empíricas, que criaram
definições operacionais, que se valeram de instrumentos construídos com teoria (e
empiria) para recolher dados muitas vezes provocados e recolhidos seletivamente dentro
do recorte de uma teoria sobre um método de recolhimento de dados. E não pára por aí.
Estes dados vão ser submetidos à análise estatística, um ramo da matemática que é, ela
própria, uma disciplina científica formal, totalmente não empírica. Depois disso, os
dados estatísticos terão que ser interpretados e analisados em suas implicações para a
teoria testada e as teorias concorrentes. Desnecessário seria dizer, mas isso também é
filosofia. De repente, ao considerar todos os passos de uma pesquisa empírica
quantitativa, a Psicologia Moderna se revela como um amontoado de teoria testando
com um pouco de empiria (na forma de observação direcionada e controlada por
teorias) suas teses sobre o mundo. É claro, entretanto, que o detalhe de perguntar em
algum momento ao mundo o que ele acha de nossas teorias sobre ele é mais do que
fundamental. Mesmo que ele só possa nos responder sim ou não.

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Figura 1
Modelo de processo geral de investigação científica psicológica

Podemos classificar aqui, como áreas que tem um diferente caráter lógico, e
portanto, diferentes relações com o trabalho empírico, ao menos dez:

1) Construção de Teorias: É a mais evidente das atividades não empíricas que são
fundamentais à ciência. Explicar um conjunto de dados que são tomados como fatos
significa oferecer uma série de princípios que, caso verdadeiros, teriam-no gerado
necessariamente (ou ao menos gerado as condições de sua existência). A diferença da
construção de teorias na Psicologia Teórica para a sua construção na Psicologia
Filosófica, por exemplo, é que na primeira as teorias construídas devem apresentar
consquências empiricamente testáveis, em outras palavras, devem ser teorias científicas.
Como lembrou Kukla (1989), em comentário a artigo de Christensen-Szalanki &
Beach (1983) que criticava a publicação de comentários teóricos a artigos em
Psicologia, a necessidade de investigar novas questões de fato só surge quando nós já
temos uma teoria bem articulada que nos direcione a atenção a detalhes específicos. E é
por isso, diz Kukla, que apesar de exortações como as de Szalanki & Beach, “nós
devemos resistir à tentação de publicar nossas contas de lavanderia e listas de mercado.
Quando a teoria não exerce um papel seletivo, nossas atividades de coleta de dados
pertencem antes ao domínio do jornalismo do que ao da ciência” (p. 792).

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2) Clarificação conceitual: A identificação e resolução de problemas conceituais
em abordagens psicológicas, assim como o trabalho de comparação entre conceitos
correlatos em diferentes estruturas teóricas com vista à unificação do conhecimento
psicológico, é um trabalho analítico eminentemente filosófico. Intimamente relacionado
com o trabalho de clarificação conceitual está o trabalho de identificação dos
pressupostos ontológicos que levaram à construção dos conceitos utilizados por cada
abordagem no recorte dos objetos de investigação. Ainda, podemos colocar a atividade
de descobrir os conceitos irredutíveis, o que Kukla (2001) chamou de “termos
primitivos”, na conta da atividade de clarificação conceitual. Na tarefa filosófica de
redução de conceitos a outros conceitos, em qualquer estrutura teórica, chegamos a
conceitos primários que não podem mais ser definidos em termos de outros conceitos. O
exemplo clássico disso são os conceitos de matéria e de energia em Física. Podemos
definir matéria (massa) em termos de energia (E=mc2), mas como definir energia a não
ser através do conceito de massa? Ao chegar a conceitos primitivos, temos a idéia clara
das reais bases ontológicas de uma teoria. No caso da Psicologia, por exemplo, um
conceito irredutível em relação à Física e à Biologia seria o de consciência (Chomsky,
1981).

3) Identificação de Pressupostos: Nem sempre todos os pressupostos (ou seja,


aquelas teses assumidas sem prova ou teste como verdadeiras) nos quais uma teoria está
fundada estão explícitos. Muitas vezes alguns pressupostos estão mascarados ou
simplesmente não foram percebidos por aqueles que criaram a teoria. Um dos exemplos
mais dramáticos dessa inconsciência usual é o principio da regularidade da natureza,
pressuposto que está na base do raciocínio indutivo e da ciência moderna. Foi Hume
quem tornou evidente que toda indução, e até o próprio princípio de causalidade, se
baseiam nesse pressuposto que não tem, ele mesmo, fundamento lógico ou empírico. No
caso da ciência, a demonstração de que um dos pressupostos de uma teoria é
incompatível com os pressupostos fundamentais da ciência (realismo, otimismo
epistemológico, lógica clássica, naturalismo, regularidade do objeto e
representacionismo) exclui esta teoria do campo da ciência (embora de forma alguma
prove sua falsidade). Ainda, podemos descobrir que alguns pressupostos de uma teoria
são incompatíveis entre si, além de ajudar pesquisadores a avaliar o nível de sua adesão
pessoal a determinado programa de pesquisa, por discordar ou concordar com seus
pressupostos.

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4) Inovação Conceitual: A criação de conceitos não é equivalente à construção de
teorias. Como o próprio termo indica, quem constrói uma teoria pode construir um
edifício teórico com tijolos já existentes, os conceitos. Coisa diferente de construir um
castelo novo é extrair uma pedra nova para colocar neste castelo. Determinados recortes
da realidade são mais úteis que outros para realizar algo. Assim, um castelo teórico pode
ser completamente destruído, mas suas pedras conceituais podem ser usadas para
construir um novo. Kukla (1989) usa dois exemplos para ilustrar a importância
independente da inovação conceitual: Freud e Copérnico. Observa ele que mesmo que
muitas alegações empíricas de Freud tenham sido falsificadas, seu lugar na história da
Psicologia estaria assegurado unicamente com base em sua quantidade de inovações
conceituais. Da mesma maneira, apesar de as hipóteses contingentes (as alegações
testáveis) de Copérnico terem sido totalmente refutadas, o arcabouço conceitual usado
para expressá-las prevaleceu por séculos.

5) Derivação de novas consequências testáveis de teorias existentes: Encontrar,


numa teoria científica já existente, ou mesmo numa teoria até então puramente
especulativa, novas consequências testáveis, é uma tarefa muito longe de ser trivial. De
fato, pode-se resumir a genialidade em ciência empírica unicamente a dois tipos de
atividade teórica: a criação de uma nova teoria testável e a criação de novas formas de
se testar um aspecto de uma teoria até então puramente especulativo. A execução do
experimento e tratamento dos dados é a parte da transpiração a qual se referiu Einstein.
O um por cento de inspiração em ciência é filosofia.
Expondo de outra forma, Kukla (1989) lembra que o processo de confirmação
ou refutação de uma nova predição é matéria de pesquisa empírica, mas o processo de
obtenção desta predição a ser testada não é, ela mesma, uma atividade empírica. Em
Física, constata Kukla, a derivação de uma nova consequência de uma teoria é
usualmente considerada um importante desenvolvimento científico, mesmo que naquele
momento ninguém ainda saiba como operacionalizar a submissão daquela consequência
a teste empírico. Como exemplo de um campo puramente teórico da Psicologia que está
sempre derivando novas consequências testáveis, Kukla oferece nada menos que a
Inteligência Artificial, que ele apresenta como um campo puramente teórico de
construções de modelos sobre as aptidões cognitivas humanas. Mesmo que
eventualmente estes modelos (programas) sejam implantados em máquinas, eles são

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construídos de maneira puramente teórica, e precisam ser testados por experimentos
com sujeitos humanos se querem se tornar de fato teorias científicas psicológicas.

6) Identificação de dados empíricos que refutam hipótese corroborada: Muitas


vezes uma hipótese testada e corroborada já se encontra na verdade falsificada por
dados que vem de outras disciplinas ou mesmo do conhecimento cotidiano ordinário.
Mas assim como não é trivial a identificação de novas consequências empiricamente
testáveis de uma teoria, às vezes não é trivial identificar que determinados fenômenos
conhecidos refutam uma teoria estabelecida.
Um exemplo clássico de trabalho de psicologia teórica desta natureza, de imenso
impacto na história da ciência, é a famosa resenha de 1957 em que Chomsky (1967)
argumenta que a criança emite sentenças inéditas ou nunca antes ouvidas perfeitamente
adequadas às regras da língua materna, sem que nunca tenha sido reforçada para tal, o
que refutaria a tese skinneriana de que o comportamento verbal é fruto de
condicionamento operante.
Outros dados empíricos identificados na experiência cotidiana que refutam esta
tese de forma mais direta são os relatados fenômenos de superregularização,
comportamentos nos quais a criança aplica as regras de flexão verbal (ou outros tipos de
regras de transformação por sufixos e prefixos) a verbos irregulares, pronunciando
insistentemente, apesar das punições, palavras que nunca ouviu e para as quais nunca
recebeu reforço (como “eu ouvo a música” ou “o girafo casou com a girafa”).

7) Adequação da metodologia ao problema investigado: A adequação (e, portanto,


decisão ou avaliação posterior) do tipo de método, delineamento, ou ainda técnica de
coleta de dados a ser empregada na investigação de determinado problema psicológico é
de base exclusivamente filosófica, e não é, ela própria, um campo da pesquisa empírica.
Não é raro assistirmos à aplicação equivocada de métodos a determinados
problemas, e o mais comum dos erros em Psicologia é o uso de métodos descritivos, e
particularmente estudos de correlação de todo tipo, como testes de hipóteses causais.
Como sabemos, a presença de uma correlação forte só indica a presença de uma relação
entre as variáveis, mas não a direção dessa relação e nem a sua natureza. Se x está
correlacionado com y, x pode causar y, y pode causar x, w pode causar x e y, e ainda x e
y podem estar em relação retroalimentativa circular. Um exemplo bastante comum são
as pesquisas de neuroimagem que indicam que na execução de determinada tarefa y a

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área x está mais ativada. A conclusão de que o cérebro causou todo o processo é
imediata, por conta dos pressupostos ontológicos assumidos. Mas a pesquisa não indica
isso, ela pode significar tanto que x causou y quanto que a decisão de executar a tarefa y
causou a ativação de x. Essa decisão pode se dar na área w, ou não. O processo todo,
além de ter um início nebuloso, ainda é, muito provavelmente, retroalimentativo. Uma
prova de relação de causa e efeito nesse caso deveria ser exclusivamente experimental:
manipular a ativação específica de uma área cerebral para testar se ela provoca certo
tipo de processo cognitivo. Uma questão, no entanto, restaria: como se dá a ativação
quando não provocada artificialmente? Como podemos ver, a avaliação da adequação
das metodologias para os diferentes problemas psicológicos é uma questão que está
longe de ser trivial.

8) Análise dos dados: Os dados não falam sozinhos. Tão logo os cálculos
estatísticos revelem que um experimento confirmou a hipótese num determinado nível
de significância, ou que uma pesquisa descritiva revelou a existência de uma correlação
forte entre variáveis, é necessária a interpretação do significado deste resultado em
relação à teoria como um todo e também às teorias competidoras. Na verdade, a análise
das implicações teóricas de um resultado empírico é totalmente não empírica,
constituindo-se numa atividade evidente da Psicologia Teórica. Não é demais lembrar
que, apesar de a análise estatística ser uma ciência, ela é uma ciência formal, e como tal,
também se constitui numa atividade totalmente não empírica.

9) Análise de Coerência: Qualquer tese ou proposição isolada que afirma um


estado de coisas empírico precisa satisfazer duas condições para ser verdadeira.
Primeiro, ela não pode conter ou implicar contradição. Segundo, tem que corresponder
ao aspecto do mundo a que se refere. A ciência muitas vezes se dedica a testar a
segunda condição esquecendo a tarefa filosófica anterior de analisar a primeira.
Portanto, antes de qualquer esforço empírico de teste de uma teoria, o teste ao
qual uma teoria deve sobreviver é o da lógica. A Psicologia Teórica tem como uma de
suas tarefas primárias a de investigar a coerência lógica de uma teoria. Ela investiga, por
exemplo, se uma teoria é inconsistente, ou seja, se contém contradição. Se pudermos
demonstrar que a teoria T implica tanto a proposição P quanto a ¬ P, então T está
falsificada de forma mais segura que qualquer falsificação de natureza empírica.

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Exemplificando da forma mais simples possível, se eu afirmo que tenho um livro
completamente vermelho na minha pasta, esta afirmação não implica inconsistência, e
alguém só pode, portanto, decidir sobre seu valor de verdade testando-a empiricamente
(no caso, abrindo a pasta). Mas se eu afirmo que tenho um livro completamente
vermelho e completamente azul (portanto completamente não-vermelho) na minha
pasta, ninguém precisa gastar nem um segundo com o teste empírico desta afirmação,
pois ela é, necessariamente, falsa. Mais do que isso, como a falsidade de uma teoria
inconsistente é uma necessidade lógica, ela é definitiva e irrefutável. Já a falsificação
empírica de uma teoria pode ser, ela mesma, por sua vez, falsificada (mostrando que
houve fraude na investigação, que dados relevantes não foram considerados, que os
objetos foram indevidamente mensurados, etc.)
A falsificação empírica é provisória, mas a prova lógica de contradição é
definitiva. Outras fragilidades formais, no entanto, podem ser reveladas pela análise da
teoria. Como elenca Kukla (2001), uma teoria pode ser culpada de circularidade (um
tipo de falácia conhecida também como “petição de princípio”), regresso infinito
(problema que se reintroduz na própria “solução”), ambiguidade (uso do mesmo termo
com significados variantes), non sequitur (conclusão que não segue das premissas) ou
pressuposições fundamentais não independentes. Essas três últimas fragilidades teóricas
não indicam necessariamente a falsidade das conclusões da teoria, mas a necessidade de
reforma teórica.
Um exemplo clássico de análise de coerência na Psicologia Teórica é o trabalho
de Heinz Hartmann (1958) de critica à teoria freudiana do desenvolvimento do ego. Em
suma, a posição de Freud seria a de que começamos a adquirir conhecimento sobre o
mundo porque o conhecimento se revela instrumento eficiente de gratificação de nossos
instintos ou pulsões. Hartmann argumenta que esta tese é incoerente porque nós não
podemos descobrir o valor instrumental do conhecimento a menos que já tenhamos
começado a adquiri-lo, portanto, tanto a capacidade para adquirir quanto a propensão
para adquirir conhecimento tem que ser inatas. Em outras palavras: como estas são
características do ego para Freud, este tem que ser inato. Assim, a teoria afirma que o
ego não é inato e implica que ele deve ser inato. Hartmann demonstra então que é
supérfluo o teste empírico da teoria do ego freudiana porque ela é, necessariamente,
falsa em nível lógico.
Mas, considerado tudo, sabemos que isso não decide o jogo científico. A
princípio, como lembrava Popper, um número infinito de teorias competidoras pode

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passar pelos rigores de uma análise de coerência. A partir daí, só a pesquisa empírica
pode decidir entre as sobreviventes.

10) Verdades Logicamente Necessárias: Sempre existem proposições explícitas ou


implícitas de uma teoria que só podem ser fundamentadas logicamente porque se
referem a necessidades lógicas ou verdades analíticas. A afirmação de que solteiros são
homens não casados não precisa ser testada empiricamente porque seu valor de verdade
se deduz da definição dos conceitos componentes da proposição, ou seja, é uma verdade
analítica. Se eu afirmasse, no entanto, que “os solteiros chineses são em sua maioria
pobres”, teríamos uma proposição que não pode ser decidida analiticamente, pois é
sintética, ou seja, pretende afirmar uma verdade contingente. Embora esse seja um
exemplo evidente (não conseguimos imaginar uma pesquisa de levantamento de dados
procurando homens solteiros para perguntar se são casados), outras situações onde os
conceitos em questão são demasiadamente complexos não são tão evidentes assim, e
podem resultar em esforços de pesquisa desnecessários.
Contemporaneamente, se costuma definir “verdades logicamente necessárias”
como aquelas proposições que são verdadeiras em todos os mundos possíveis (todos os
conjuntos possíveis de estados de coisas). Existem duas tarefas relacionadas às
proposições necessárias: sua distinção das contingentes e a descoberta original de novas
verdades necessárias.

4- A Psicologia Filosófica
Aquilo que estou denominando aqui ‘Psicologia Filosófica’, para caracterizar
uma área da Filosofia da Psicologia, está longe de ser consensual, quer como campo,
como termo ou como atividade legítima. Pretendo, no entanto, realizar um esforço de
clarificação da área e paralelamente justificar sua legitimidade.
Esta disciplina geralmente é reconhecida pelo estudo de sistemas em Psicologia,
no qual as diferentes abordagens teóricas da disciplina são investigadas em seus
pressupostos ontológicos e epistemológicos, e em suas teses básicas. É exemplo clássico
deste tipo de estudo o livro de Marx & Hillix (1973).
Entretanto, isto está longe de esgotar a área. Ao avaliar os problemas
epistemológicos da Psicologia, um behaviorista chega à conclusão que ela é uma
disciplina totalmente integrada à ciência moderna, e que todos os reais problemas
psicológicos podem ser investigados cientificamente. Mas essa não é a única conclusão

14
possível. Pode-se concluir também que só alguns problemas psicológicos são passíveis
de correta abordagem experimental (como conclui o cognitivismo), ou ainda, que
nenhuma tese psicológica pode ser adequadamente testada experimentalmente (como
conclui o construcionismo social).
Quando a conclusão de um psicólogo é uma das duas últimas, um problema se
levanta. Parafraseando Wittgenstein: sobre o que não se pode falar cientificamente,
deve-se calar? Se a esta pergunta se responde ‘não’, geralmente o psicólogo em questão
se engaja em algum tipo de investigação de Psicologia Filosófica, que nem se dedica à
análise de fundamentos (Epistemologia da Psicologia) nem ao serviço da atividade
científica (Psicologia Teórica).
Esta acepção de Psicologia Filosófica, que se diferencia da Filosofia da Mente
fundamentalmente por questão de ênfase de objeto e rigor de método de análise, se
dedica aos mesmos problemas gerais da Psicologia científica, mas não através do
método científico: desenvolvimento, memória, percepção, personalidade, emoção,
motivação e assim por diante. No entanto, a grande dificuldade de se caracterizar
determinadas abordagens psicológicas como “filosóficas” consiste em que algumas
delas alegam ser uma “outra ciência” que também faz uso de dados empíricos.
Um exemplo de abordagem em psicologia completamente aderida a uma
metodologia exclusivamente filosófica é a Fenomenologia. Note que estou me referindo
a trabalhos de autores como Husserl, Merleau-Ponty e Scheler. Mas autores como Karl
Jaspers ou Viktor Frankl, a despeito de recorrerem a dados empíricos, também aplicam
o método filosófico a problemas psicológicos com resultados de qualidade teórica
evidente.
Esse exemplo simples torna, no entanto, evidente a fragilidade da Psicologia
Filosófica. Ao rejeitar a ciência, ela também rejeita o método de decisão entre teorias
concorrentes sobre o mundo mais bem sucedido da história. O leitor deve estar
pensando agora que a maior parte do que se faz sob o nome de Psicologia no Brasil se
enquadraria na categoria de Psicologia Filosófica. Bem, é o que eu quero dizer. Ao
rejeitar o método científico, abordagens como a Fenomenologia, a Psicologia
Fenomenológica, a Psicanálise, a maior parte da Psicologia Humanista e o
Construcionismo Social (sócio-histórica) se inserem, por motivos e com pressupostos
muito distintos entre si, neste campo. É claro que, eventualmente, alguma consequência
derivada destes corpos teóricos pode ser testada experimentalmente. O mais evidente
caso de psicologia filosófica hoje em dia, que tem todo um conjunto de alegações

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totalmente intratáveis e intestáveis pelo método científico, é a Psicologia Evolucionista,
tão festejada pelo mainstream científico e totalmente não-científica.
No entanto, não creio que esteja justificada a legitimidade de uma psicologia
filosófica particular se os problemas que ela aborda são passíveis de teste científico. Isso
porque quase quatrocentos anos de ciência moderna mostraram que ela é (até agora) o
método mais eficiente de decisão entre teorias sobre o mundo. Afirmar que podemos
desenvolver um novo modelo de “ciência”, e eventualmente até desenvolver algum, não
é o suficiente: seria necessário provar que este novo modelo é mais eficiente que o
modelo experimental de teste de hipóteses. Portanto, torna-se difícil justificar a
legitimidade de uma investigação sobre aspecto psicológico abordável
experimentalmente por outro método que não o experimental. Como ilustração desta
questão, lembro que grande parte da Psicologia Humanista norte-americana desapareceu
quando a Psicologia Cognitiva começou a investigar experimentalmente temas antes
excluídos da ciência.
No entanto, existem alguns problemas centrais para a Psicologia que não
parecem ser passíveis de investigação experimental, e são estes problemas que
justificam a existência de teorias não-científicas convivendo em nossa disciplina. Mais
do que isso, quando se trata do Ser Humano, não estamos interessados somente em
saber como ele funciona cognitivamente ou comportamentalmente, mas também em
saber o que ele é. E o método científico não é metafísico, ele não tem aptidão para
investigar a essência dos fenômenos, ele só revela as relações invariáveis de suas
manifestações.
Julgo, portanto, que há um aspecto ainda mais profundo da interdependência
entre Psicologia e Filosofia. A Psicologia é uma disciplina constitutivamente dividida
entre problemas científicos (e filosóficos) e problemas exclusivamente filosóficos, pois
seu objeto de estudo apresenta aspectos abordáveis, aspectos inabordáveis, e aspectos
apenas parcialmente abordáveis pelo método científico. Alguns dos aspectos
inabordáveis exemplificarei aqui, tendo como base artigo meu anterior (CASTAÑON,
2008):

1) Intencionalidade: O primeiro destes aspectos inabordáveis é a pura atividade da


consciência. Tal coisa, como tem como característica central a intencionalidade, sendo
sempre a relação com algo diferente dela própria (conceito central da Fenomenologia),
não pode ser objeto de investigação empírica objetiva (como fenômeno de terceira

16
pessoa), uma vez que é a própria condição de possibilidade da experiência (um
fenômeno de primeira-pessoa). A investigação das propriedades da consciência é uma
tarefa filosófica, e tem hoje no filósofo John Searle (1993) uma de suas maiores
expressões. Quando investigada como fenômeno de terceira-pessoa, só podemos inferir
da atividade da consciência alguns de seus aspetos funcionais e estruturais, mas nunca
sua dimensão qualitativa e subjetiva.

2) Criatividade: Não podemos pensar em nada como uma lei explicativa do ato
criativo, nem em uma predição de um ato de criação. Tão pouco a criatividade está
circunscrita a atos de grandes descobertas. De fato a criação é uma condição permanente
da vida psicológica: desde elaborar a estratégia que seguiremos para realizar uma meta a
decidir como interpretar um estímulo ambíguo. Talvez pudéssemos pensar em algo
como a descoberta de condições necessárias para a emergência de atos criativos, mas até
o momento não temos avanços significativos na área.

3) Qualia: O terceiro domínio é o domínio dos qualia. Este termo se refere às


qualidades vividas dos eventos mentais (a experiência subjetiva de um vermelho, de
uma dor). Refere-se às qualidades particulares da vivência consciente de fenômenos,
mas não à essência destes fenômenos: se refere a sua experiência singular, não aos
aspectos universais (essências) através dos quais você os reconhece como pertencentes a
uma determinada categoria de fenômenos. Não estamos falando, portanto, do sentir dor,
mas da experiência única de sentir uma determinada, singular e irrepetível dor.
Ninguém jamais saberá como é realmente experimentar um determinado fenômeno
como outra pessoa. Não podemos descrever sequer aspectos efetivamente singulares da
experiência ou do mundo através de palavras, porque estas sempre se referem a
universais. Portanto, o estudo de um quale particular é impossível cientificamente, mas
também impossível filosoficamente. Podemos assistir a esta confusão hoje em parte da
Psicologia latino-americana, onde ouvimos continuamente a afirmação de que o objeto
de estudo da Psicologia seria algo que denominam ‘subjetividade’, e que, apesar de
receber as mais diversas definições, geralmente designa a forma única e irrepetível de
um sujeito experimentar o mundo. Definida desta forma, como qualia, ela é um objeto
impossível para qualquer tipo de investigação. De fato, não podemos conhecer nada
sobre os aspectos vivenciais que só são experimentados por uma consciência particular,
a não ser que se trate da nossa própria. E se é dessa forma, nossa consciência não tem

17
palavras que possam transmitir essa vivência, só alguns aspectos universais dela (não a
dor em si, mas que está com alguma dor em algum lugar). A Filosofia, por usar a
linguagem (que só expressa universais), só pode teorizar sobre aspectos universais de
seus objetos. Assim, uma pessoa só pode abordar as qualidades subjetivas e vivenciais
da experiência em sua existência ou não existência e em sua distinção de outros
conceitos universais. Nada mais.

4) Significado: O significado que as pessoas dão aos fenômenos e informações só é


abordável pela Psicologia indiretamente, por inferências a partir de reações
comportamentais que as pessoas apresentam a determinada informação. O domínio
semântico da experiência – o significado vivido – é, entretanto, impenetrável à ciência.
Jerry Fodor (1991) ilustrou este limite com seu princípio do ‘solipsismo metodológico’,
que defende que só o aspecto sintático da mente é abordável cientificamente. Podemos
estudar cientificamente regras e representações, não o significado destas últimas. Tanto
a referência de uma representação como o sentido que este referente tem para o sujeito
são inabordáveis pela ciência e dispensáveis para se investigar o processamento de
representações.
Como abordei em trabalhos anteriores (Castañon 2006, 2006b), temos muito a
dizer sobre como se dá o processamento de informação pelo ser humano, mas a
informação é cega para questões semânticas: é naquele que codifica ou decodifica a
informação que se encontra seu significado, não no meio que a transmite nem em seu
padrão específico. Não temos muito a dizer sobre como representações podem se referir
a algo distinto delas próprias, e quantitativamente, não temos nada a testar sobre isso.
Assim, o significado das ações e experiências só é investigado por derivação de terceira
ordem: um comportamento, que indica uma representação, que se refere a um
significado. Em virtude disso, julgo que uma abordagem filosófica como a
Fenomenologia, conforme estabelecida por Husserl (1976), se mostra adequada para
lidar com questões de significado, usando, no entanto, metodologia completamente
filosófica.

5) Sentido: Segundo Frege (1996/1892), o sentido é uma das dimensões do


significado (a outra é a referência). Assim, podemos ainda distinguir questões de
significado de questões de sentido, que se revelariam um quinto domínio somente
marginalmente abordável pelo método científico. A palavra ‘significado’ geralmente é

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utilizada representando somente um de seus dois componentes: O primeiro é a
referência. O significado da palavra ‘árvore’ usada neste momento é aquele objeto
concreto à sua frente que tem uma coluna de madeira que se abre em vários ramos que
possuem folhas verdes. Referi-me no item anterior a questões de significado neste
primeiro sentido, de referência. O segundo, que abordamos neste parágrafo, é sobre
como este referente se relaciona com o conjunto de sua vida, ou seja, sobre o sentido
deste: aquela árvore pode ser também o lugar onde você, caindo, quebrou um braço, o
fruto da muda plantada por seu avô, a futura coluna de seu novo chalé, etc. De fato, aqui
também só podemos ter acesso ao sentido atribuído por uma pessoa a uma informação
de maneira indireta: ou pelo comportamento verbal da pessoa ou pela reação
comportamental em face de determinado estímulo. Mas o processo de atribuição de
sentido é um ato criativo impenetrável ao conhecimento científico. Um caso especial de
atribuição de sentido (ou descoberta de sentido) fundamental para a psicologia é a
questão do sentido da vida. Novamente aqui, temos um domínio da Psicologia que já foi
abordado com maestria por psicólogos fenomenológicos como Viktor Frankl (1973), no
que também constitui um domínio exclusivo da Psicologia Filosófica.

6) Valor: Domínio psicológico inacessível à investigação científica é o valor,


intimamente ligado à questão do sentido. Os valores são fins em si mesmos, geralmente
inúteis para provocar ou conseguir qualquer coisa necessária biologicamente para o
indivíduo (não para a espécie), mas ainda assim perseguidos por nós. A verdade, a
beleza, o sagrado, o amor, a justiça, o prazer são todos exemplos de valores que geram
impulsos motivacionais que diferem profundamente daqueles que podem ser
provocados ou manipulados (e, portanto, estudáveis de modo indireto em laboratório),
como dor, fome, sede, sono, frio e calor. A Fenomenologia, particularmente com a obra
de Max Scheler (2001), e mais uma vez com a de Viktor Frankl, parece o método
filosófico mais adequado para a abordagem deste tipo de aspecto da vida psicológica.

7) Agency: Por fim, temos um sétimo domínio apenas parcialmente acessível à


investigação científica, que é o da causação final, ou vontade, ou agency. Só podemos
investigar motivos e razões do comportamento indiretamente, depois que estes se
transformaram em metas, que podem ser inferidas do padrão geral do comportamento.
Mas não podemos sequer estabelecer cientificamente o que seriam motivos e razões: se
ações diretas livres da consciência ou se as razões são causadas eficientemente, como

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alegou o filósofo da Psicologia Donald Davidson (1963). De toda maneira, pensar em
causas finais como causas últimas do comportamento tem o inconveniente de sempre
resultar em teorias infalsificáveis. O caso da teoria do raciocínio dialético, conforme
definida por Rychlak (1994) (como o processo de decisão entre duas ou mais
interpretações possíveis das informações do ambiente ou duas alternativas igualmente
plausíveis de curso de ação), é exemplo da natureza irrefutável destas alegações. Uma
vez alegada que a causa de um comportamento foi a vontade, ou a decisão entre duas
alternativas igualmente plausíveis de interpretação da informação, ou ainda a criação de
uma nova estratégia de ação como resultado de um processo dialético de raciocínio, a
investigação científica está interditada, pois a alegação é infalsificável. A afirmação de
que um ser humano possui determinada meta em determinada situação é indiretamente
falsificável por seu curso de ação, mas a de que ele “mudou” sua meta como resultado
de um ato de criatividade e vontade é absolutamente infalsificável. Isto não significa
que esta afirmação seja falsa, somente significa que tal afirmação pertence ao campo da
especulação filosófica, não ao campo do conhecimento de base empírica.

Enfim, se algum destes sete domínios de problemas psicológicos fundamentais


que apresentei aqui for realmente impenetrável ao método científico (e estou
convencido de que os sete são), está plenamente justificada a necessidade de um campo
puramente filosófico de investigação psicológica.

5- A Filosofia da Mente
A Filosofia da Mente é a investigação filosófica pura sobre a natureza da mente
em todos os aspectos, como propriedades, funções, eventos, consciência e
principalmente sua relação com o cérebro. Eventualmente, filósofos da mente podem
criar conceitos que se revelam altamente profícuos para a ciência – como os conceitos
de linguagem do pensamento e de modularidade da mente (Fodor, 1975; 1983) –, se
debruçar sobre o significado dos resultados empíricos da Psicologia e das Neurociências
(como, por exemplo, Araujo, 2011), ou sugerir conseqüências de teorias a serem
testadas por elas, tornando a fronteira entre ela e a Psicologia Teórica algo nebulosa.
Como expõe Kim (2006), tópicos como representação mental, imagética, racionalidade
e tomada de decisão, linguagem, crença e desejo, inteligência artificial e conexionismo
são contíguos com o trabalho científico, o que torna a maior parte da produção
filosófica em alguns destes tópicos melhor classificada como Psicologia Teórica. No

20
entanto, podemos fundamentar esta fronteira na ênfase ontológica da Filosofia da
Mente, na forma exclusivamente dedutiva de seu inquérito, além de em sua abordagem
de objetos não tratados pelo resto das ciências cognitivas.
Já em relação à Psicologia Filosófica este limite pode ser estabelecido em
relação a objeto e método. Em relação ao método, a Filosofia da Mente rejeita
totalmente qualquer pretensão de disciplina empírica (o que não acontece com
abordagens psicológicas como a Psicologia Humanista ou a Psicanálise). Em relação ao
objeto, ela não se importa com o ser humano como um todo, como por exemplo, por
questões de comportamento, personalidade ou interação social. Ela se concentra
fundamentalmente na mente e sua relação com o cérebro.
É generalizada entre cientistas a impressão de que a filosofia é um território de
livre especulação e discurso sem método, sobre o qual não cabe qualquer limite ou
avaliação objetiva possível. Mas esta impressão é falsa. Ela é somente aplicável àqueles
filósofos que assim encaram a filosofia, e nos apresentam como produção nada mais do
que um obscuro e maçante gênero de literatura. Para a maioria dos filósofos e da
produção internacional da área, no entanto, a filosofia tem um método muito evidente,
que são as regras necessárias do argumento válido: a lógica.
Temos sim um método de eliminação de teorias, e é o da análise de coerência.
Teorias que apresentam contradições ou consequências contraditórias, em outras
palavras, teorias que acabam gerando consequências que as fazem negarem a si
mesmas, são, necessariamente, falsas. E elimina-se uma série de teorias desta forma, o
tempo todo. É claro que no fim das contas, apesar dos esforços lógicos da razão,
geralmente sobrarão algumas teorias bem construídas, não contraditórias e
incompatíveis entre si sobre a mesma coisa. Ao menos, durante este caminho, a filosofia
é capaz de eliminar várias teorias inconsistentes e apontar algumas possíveis, legando
àqueles que dela se servem ainda uma consciência ampliada dos fundamentos e
consequências das teses que defendem.
Mas não é só isso. Exatamente porque existe um critério de eliminação de
teorias, existe um método para sua construção e apresentação. O método filosófico pode
ser definido como um grande exercício lógico de “se, então”. Se tomarmos como
verdade tal coisa, definida desta forma, então as consequências logicamente necessárias
são estas.
Assim, o produto da filosofia são argumentos. Uma teoria é um argumento, e
críticas a teorias são igualmente argumentos. Um argumento é uma série de proposições

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organizada de acordo com regras dedutivas, nas quais as primeiras proposições da série
são as premissas e a última proposição é a conclusão. Um argumento não é verdadeiro
ou falso (suas proposições, individualmente, é que o são). Ele é válido ou inválido. O
que um argumento válido garante é que, se suas premissas forem verdadeiras, então sua
conclusão também o é, necessariamente. É claro que, na maioria das vezes, quando
possível, a tarefa de testar o valor de verdade de premissas acerca do mundo cabe à
ciência empírica.
Podemos distinguir em Filosofia cinco utilizações do método dedutivo:

1) Construção de argumentos dedutivos em lógica proposicional


É o processo de deduzir as consequências de premissas que são proposições
comuns através das regras de inferência. Em última análise, todas as regras de
inferência são derivadas dos três princípios básicos da lógica clássica: os princípios da
identidade, da não-contradição e do terceiro excluído. Destes derivamos algumas outras
regras de inferência simples, como o modus ponens (se P então Q, P, logo, Q), o modus
tollens (se P então Q, não Q, logo, não P), a simplificação (P e Q, logo, Q), a conjunção
(P, Q, logo, P e Q), a adição (P, logo, P ou Q), a disjunção (ou P ou Q, não P, logo, Q),
a cadeia (se P então Q, se Q então R, logo, se P então R), a transposição (se P então Q,
logo, se não Q então não P), a dupla negação (P, logo, não não P) e a lei de DeMorgan
(não é fato que P e Q, logo, é fato que ou não P ou não Q).
Um argumento bem construído, embora geralmente não traga explícitas todas as
etapas da inferência de sua conclusão a partir das premissas aceitas, deve em tese ser
suficientemente claro para que possa ser formalizado de modo a demonstrar que, em
todas as suas etapas, a aplicação de uma regra de inferência foi a responsável pela
passagem a próxima etapa. Se ao tentar formalizar um argumento não conseguimos
determinar que regra de inferência foi usada para passar de uma premissa a uma
conclusão (intermediária ou final), descobrimos que o discurso em questão não é um
argumento estrito senso, não tem valor lógico.
Se, no entanto, determinamos que uma conclusão P é uma consequência
necessária das premissas assumidas, temos uma prova direta (de que se as premissas
são verdadeiras, P é verdadeiro).

2) Construção de argumentos dedutivos em lógica quantificacional

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Existem muitos argumentos válidos que, no entanto, não podem ser justificados
pelas regras de inferência que citei acima. Estes são formados por proposições que
relacionam uma determinada quantidade de elementos de duas categorias. São
proposições do tipo das leis científicas, como “Todas as aves tem penas”, que
considerada em conjunto com uma segunda premissa como “Alguns animais nesta sala
são aves” implicaria a conclusão de que “há penas nesta sala”.
O campo da lógica que determina as propriedades lógicas de proposições sobre
nenhuma, todas ou algumas entidades que caem sob determinado conceito é a lógica
quantificacional. Foi começada há dois mil e quinhentos anos com a investigação de
Aristóteles sobre os silogismos, mas somente a partir de Frege conheceu novos avanços
significativos. Sua natureza, no entanto, continua a mesma.

3) Prova Condicional
Um tipo de argumento muito mais simples de ser obtido sobre um problema é a
prova condicional. Nesse, mostramos que uma determinada relação condicional (se I
então R) está implicada nas premissas. Para isso usamos as regras de inferência citadas
no item sobre os argumentos em lógica proposicional. Esta forma de argumento é
particularmente importante para a ciência, pois são desta forma todas as predições
empíricas derivadas de uma teoria. Ou seja, uma predição empírica derivada é um
argumento que prova que, se aquela teoria é verdadeira (conjunto de premissas P e Q),
então dadas as condições iniciais I, o resultado R é necessário (ou seja, “se I então R” é
consequência das premissas).

4) Prova Indireta (reductio ad absurdum)


A redução ao absurdo ou prova indireta consiste em um tipo de argumento onde
assumimos como premissa o contrário daquilo que queremos provar e demonstramos
que esta premissa (a negação do que acreditamos) leva a uma contradição (ou seja,
afirma Q e ¬Q), portanto, é falsa.
O exemplo mais curto e simples de redução ao absurdo que pode ser dado é o da
tese relativista de que “não existe verdade universal”. Ora, se assumimos que a
proposição ¬P (não existe verdade universal) é verdadeira (ou seja, é uma verdade
universal), isto implica que P (existe verdade universal) é verdadeira (ou seja, ao menos
¬P é verdade para todos). Logo temos ¬P e P com o mesmo valor de verdade:
contradição. A incrível simplicidade desta prova indireta da necessidade da existência

23
da verdade torna surpreendente a defesa de teses relativistas, ainda que, sempre
mascarando essa consequência necessária de qualquer tipo de relativismo.

5) Experimentos mentais
Além do método dedutivo, a Filosofia se utiliza de outro método eventualmente
poderoso, usado por Einstein em suas principais descobertas, o experimento mental
(thought experiment). Este consiste geralmente em imaginar consequências empíricas de
uma tese em uma situação geralmente bastante peculiar, derivando logicamente as
consequências desta situação (com a mesma estrutura de um experimento real). É
geralmente realizado com consequências empíricas deduzidas de uma teoria testável em
essência, mas não na prática, pois no estado atual de nosso conhecimento e tecnologia o
experimento em questão não pode ser realizado. No entanto, em um experimento
mental, o que já conhecemos do mundo aliado ao processo dedutivo parece mostrar de
forma evidente qual seria seu resultado se executado (são exemplos disso a viagem na
velocidade da luz de Einstein e o Gato de Schrödinger).
Na Filosofia da Mente, o exemplo mais conhecido de experimento mental é o do
quarto chinês (Searle, 1980), que a despeito da discordância de alguns funcionalistas
radicais, marcou o início do declínio da tese da IA forte (ver CASTAÑON, 2006b) e se
tornou um dos artigos mais citados da história. Alguém pode objetar que nem todos são
convencidos pelo experimento mental de Searle. Mas o fato é que, igualmente, nem
todos são convencidos por experimentos convencionais.

Enumerei os métodos de que se serve a Filosofia da Mente para construir e


avaliar teorias. Outra forma de apresentar o campo é apresentar os problemas aos quais
o método é aplicado. Aqui elencarei algumas perguntas que têm dominado os esforços
de criação de hipóteses e argumentos, assim como suas análises contemporâneas em
Filosofia da Mente, e que normalmente se encontram em livros-texto e coletâneas atuais
e fundamentais da área (como o de Jaegwon Kim, 2006, e a de David Chalmers, 2002).

1) Natureza da Mente: O primeiro destes problemas é o da natureza da mente. O


que é a mente? É a mente uma substância? Deste problema evidentemente central e
fundante se derivam todos os secundários.

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2) Relação Mente-corpo: O mais importante destes talvez seja o da relação
mente-corpo. São questões relacionadas a este a de saber se a mente é o mesmo que o
cérebro, e para aquelas respostas negativas, o problema de como ela se relaciona com o
corpo. As posições tradicionais acerca deste problema são o dualismo cartesiano, o
ocasionalismo, o pluralismo monadológico, o behaviorismo ontológico, o
funcionalismo, o interacionismo, a teoria da identidade e o epifenomenalismo.

3) Causação Mental: Se a mente não é o mesmo que o cérebro, como pode


provocar alterações nele? Se ela é algo imaterial, como eventos mentais podem causar
eventos físicos, como meus toques no teclado agora escrevendo este texto? Este
problema tradicional da Filosofia da Mente é o da causação mental, também central na
disciplina. Também envolve a direção oposta: como é possível que um espectro da
radiação eletromagnética do ambiente cause em minha consciência a vivência da
vermelhidão? Ainda outro problema examinado nesse tópico é a cadeia de causalidade
entre eventos mentais, como por exemplo, o fato da crença em que o campo da Filosofia
da Psicologia não é bem conhecido no Brasil gerando outra crença em mim de que devo
concluir um artigo sobre isso. Teríamos neste caso uma crença causando outra crença,
mas pode causar também desejos ou repulsas específicas.
Como se pode depreender, o problema da causação mental engloba, em uma de
suas direções, o problema dos motivos ou causas, ou agency, que por sua vez leva ao
problema da possibilidade de leis hipotético-dedutivas (universais) na Psicologia.
Lembramos novamente que Davidson (1963) alegou que o que chamamos de motivos
ou razões para fazer algo também foram, a seu turno, causadas eficientemente (de forma
determinista).
É natural, portanto, que o tópico englobe problemas relacionados a “folk
psychology”, como crença e desejo. Perguntas sobre a natureza da crença e do desejo,
sobre a necessidade de pensar essas categorias como naturais, sobre a diferença (ou
existência) entre ações governadas ou determinadas por regras são decorrências naturais
do inquérito sobre a causação mental.

4) Consciência e Qualia: Igualmente central, talvez o mais difícil dos problemas


filosóficos depois da existência do ser, é o problema da consciência. David Chalmers
(1995) o recolocou contemporaneamente distinguindo entre problemas fáceis e o
problema difícil da consciência (the hard problem of consciousness). O problema

25
insolúvel da consciência seria o de porque e como nós temos experiências subjetivas
qualitativas de fenômenos. Alguns dos problemas “fáceis” seriam os da integração dos
diferentes tipos de informação em um todo coerente, da focalização da atenção em
estímulos ou idéias, do controle voluntário de comportamentos, da diferenciação entre o
estado desperto e o sonho e da habilidade de discriminação e categorização. Estes
problemas seriam “fáceis” porque sua solução científica se resumiria a especificação de
um mecanismo e programa que pudesse realizar a específica função cognitiva. Ou seja,
por mais que se possa achar inverossímil tal coisa, ela seria em tese possível a teorias
compatíveis com o materialismo. No entanto, a questão dos qualia é intratável à ciência
porque a compreensão de uma ou todas as funções da consciência sequer tocariam o
problema da qualidade da experiência subjetiva. Explicado de outra maneira, à moda de
filósofos, podemos expor o hard problem perguntando: porque é necessário (ou como é
possível) que o processamento da informação sensorial resulte em uma experiência
qualitativa vivida? Um telefone pode processar informação acústica sem isso.

5) Inteligência Artificial: Outro campo de problemas na Filosofia da Mente


diretamente ligado à psicologia cognitiva é o da Inteligência Artificial, que se ocupa da
questão da possibilidade de sistemas físicos não-biológicos simularem ou reproduzirem
propriedades e funções da mente humana. Dividido fundamentalmente entre aqueles
que consideram que algumas funções são simuláveis, mas executadas de modo diferente
da do ser humano, a IA fraca, e aqueles que consideram que é possível em tese
reproduzir exatamente todas as funções e capacidades da mente humana com a máquina
e o programa certos, a IA forte. Grande parte da atividade em inteligência artificial pode
ser considerada, segundo Kukla (1989), psicologia teórica, uma vez que consiste em
propor modelos formalizados de funções cognitivas humanas.

6) Representação Mental: Nós usamos determinados sons e sinais gráficos para


nos comunicarmos com outros seres humanos porque eles são capazes de re-presentar
para nossos interlocutores objetos que não estão presentes (e representá-los como sendo
ou estando de um certo modo). Como isso é possível? Podemos derivar isso da
intencionalidade da mente. Por ser intencional, a mente é capaz de atribuir
intencionalidade a um conjunto de símbolos que, após esta operação, passam a referir o
objeto Torre Eifel. Mas o que é isso? Como é possível representarmos o mundo através
das mais variadas formas sensoriais? Somos capazes de representar a sala de nossa casa

26
de forma visual com imagens mentais, auditiva com uma descrição linguística de sua
disposição e objetos, olfativa com o cheiro de alguma planta que lá está, cinestésica com
os movimentos que temos que fazer ao entrar nela. Nós re-apresentamos à nossa mente
a sala que se apresenta a ela quando lá estamos. Há uma disciplina da Psicologia
Cognitiva, a imagética, que começou a invadir esta seara antes totalmente filosófica do
problema da mente. Mas seu impacto e capacidade explicativa ainda são muito
limitados. O problema complexo da representação mental e da intencionalidade ainda é
um problema predominantemente filosófico, e teses produzidas sobre o problema foram
tão importantes para o desenvolvimento da ciência contemporânea que foram capazes
de propiciar o surgimento de novas técnicas ou mesmo disciplinas. Entre estas, podemos
citar os casos principais das duas teses de Jerry Fodor que mudaram a face das Ciências
Cognitivas. A que propiciou o boom da inteligência artificial, a tese da linguagem do
pensamento (Fodor, 1975), e a que é pressuposta em todos os estudos de neuroimagem e
neurociência cognitiva, a da modularidade da mente (Fodor, 1983). Se não postulamos
que a mente é constituída de vários módulos ou processadores cognitivos de relativa
independência, que executam funções distintas e processam informações diferentes, não
faz sentido a busca por ativações diferentes em regiões distintas do cérebro diante da
execução de tarefas distintas.

Os problemas acima são somente os fundamentais e ainda mais estritamente


filosóficos, mas outros grupos de problemas são investigados igualmente pela
Psicologia Teórica e a Filosofia da Mente. O problema do Inatismo é um deles. Em que
medida as regras que usamos para processar as informações são inatas ou construídas?
Essa é hoje uma decisão submetível a testes empíricos em psicologia do
desenvolvimento, mas ainda há questões relacionadas a este problema que podem ser
consideradas somente em termos de necessidades a priori da aquisição de
conhecimento. De igual maneira, o problema da natureza psicológica dos conceitos é
investigada pela psicologia do pensamento, mas se a pergunta se volta para a natureza
dos conceitos em si, precisa ser investigada filosoficamente.
Assim, as fronteiras entre a Filosofia da Mente e a Psicologia Teórica vão se
borrando na medida em que a ciência avança sobre territórios antes inacessíveis a ela. O
aumento da dificuldade de distinção entre as duas disciplinas é, portanto, um motivo de
regozijo. É um sinal inequívoco de que o trabalho filosófico pode propiciar o avanço da
ciência e o crescimento de seus domínios.

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6- Conclusão
Acredito que este artigo foi suficiente para realizar três coisas. Primeiro, para dar
uma visão geral da vastidão do campo da Filosofia da Psicologia. Segundo, para
evidenciar a vital importância da Psicologia Teórica para a Psicologia Científica, da
mesma forma que a Física Teórica é vital para a Física experimental. Terceiro, e essa é a
parte menos consensual e mais sensível do trabalho, para justificar a tese de que a
Psicologia é ela própria uma disciplina que para oferecer uma abordagem completa de
seu objeto de estudo precisa se dividir entre uma abordagem científica e uma
abordagem filosófica.
Em artigos anteriores (CASTAÑON, 2006, 2008), apresentei outros argumentos
em defesa desta tese, como a divisão entre explicações dedutivo-nomológicas (que
seriam impossíveis à ciência psicológica e, portanto, nada mais que argumentos
teóricos) e explicações condicionais (possíveis à ciência psicológica). Muitos filósofos
da psicologia contemporâneos defendem a tese da dupla abordagem em nossa
disciplina. André Kukla (2001) publicou uma taxonomia da metodologia da Psicologia
Teórica, Sigmund Koch (1985, 1993) defendeu a tese de que a Psicologia não era um
campo passível de unificação nem teórica nem metodológica, em virtude do que ele
acreditava que se deveria mudar sua denominação de Psicologia para Psychological
Studies, dos quais alguns (estudos) eram científicos, outros não. O cognitivista Howard
Gardner (1992) adere à tese de Koch e defende que grande parte dos tópicos de
investigação psicológica não é passível de adequada abordagem científica, sendo de
natureza filosófica. Ele acredita que a investigação na Ciência Cognitiva é científico-
filosófica, e que psicólogos devem investigar alguns problemas sempre em colaboração
com filósofos, lingüistas, neurocientistas e engenheiros de computação. Joseph Rychlak
(1993) é outro expressivo psicólogo e filósofo da psicologia contemporâneo que não vê
mais como se pensar uma disciplina psicológica científica isolada da Filosofia. Ele
propõe para o campo a importação do princípio da complementaridade, de Niels Bohr.
Para ele, uma vez que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade
de reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a um único nível de explicação (físico,
biológico, lógico ou social).
Mas mesmo que muitos pesquisadores não estejam convencidos desta
necessidade intrínseca da disciplina, não parece passível de questionamento a existência
de uma grande quantidade de funções cumpridas (que a descrição oferecida aqui ilustra)

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e problemas enfrentados pela Psicologia Teórica. Um olhar atento para a Psicologia
Moderna revela uma atividade que não é muito mais que um barquinho de empiria
navegando num oceano de atividade teórica. É claro, entretanto, que este barquinho é
fundamental, porque seres humanos se perdem e se afogam, e o oceano metafísico é um
ambiente muito vasto e hostil para nós.

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