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Debates
2016
Sociedades, movilidades, desplazamientos : los territorios de la espera de ayer a hoy (el caso de los mundos americanos, siglos XIX-XXI)
Abstracts
Português English
A espera é um tema ainda periférico no repertório das ciências sociais. Recentemente, entretanto, tem despertado o interesse de alguns
pesquisadores, sobretudo nos campos disciplinares mais sensíveis à chamada virada da mobilidade. A construção empírica do fenômeno tem
enfatizado as situações em que ele se apresenta de forma relativamente confinada ou isolada (como as plataformas de embarque de diferentes
modais de transporte ou os campos de refugiados). Entretanto, quando examinada sob a ótica da organização espaço-temporal da vida
cotidiana, a espera produz formas de ocupação mais difusas, as quais merecem ser mais bem descritas e analisadas. Nas grandes cidades, os
espaços públicos constituem situações privilegiadas de observação, já que neles estão co-presentes diferentes modalidades da espera,
associadas à dinâmica da circulação, do trabalho e do encontro social. Também nestes espaços, aqueles que esperam encontram-se
particularmente disponíveis para a observação da cena pública.
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Waiting is still a peripheral theme in the repertoire of social sciences. Recently, however, it has aroused the interest of some researchers,
especially in disciplines more sensitive to the so called mobility turn. Empirical construction of the phenomenon has emphasized the
situations in which it appears relatively confined or in isolated form (as the platforms of different modes of transportation or refugee camps).
However, when examined from the perspective of spatial and temporal organization of daily life, waiting produces more diffuse forms of
occupation, which deserve to be better described and analyzed. In large cities, public spaces are privileged observation situations, as different
modalities of waiting are co-present, associated with the dynamics of movement, work and social gathering. Also in these spaces, those who
wait are particularly available for observing the public scene.
Index terms
Keywords: Waiting, Public Spaces, Rio de Janeiro
Palavras Chaves: espera, espaços públicos, Rio de Janeiro
Full text
Introdução
1 A vida cotidiana se baseia, em larga medida, na realização de sucessivas atividades espacialmente disjuntas. Nas cidades, em
especial, este fato elementar implica na concatenação de inúmeros deslocamentos (de pessoas, objetos técnicos, mercadorias,
informações, etc.) que, por sua vez, dependem dos sistemas de circulação (transportes, vias, etc.) e interagem com o espaço
construído.
2 No intuito de compreender os mecanismos envolvidos na coordenação das ações dos indivíduos com outras entidades
(objetos, organizações e outros indivíduos), no espaço e no tempo, o geógrafo sueco Torsten Hägerstrand e seus colaboradores
desenvolveram, a partir da década de 1960, uma abordagem que ficou conhecida como Geografia do Tempo. De acordo com
esta perspectiva, as sociedades poderiam ser concebidas como modos de organização das redes de trajetórias individuais
(paths), que alternam atividades móveis e estacionárias, e que “fluem” e se entrecruzam em uma série de estações (stations)1.
3 Contudo, está claro que a hipótese da fluidez absoluta que subjaz à Geografia do Tempo não pode ser demonstrada. A
realização de inúmeras atividades depende da sincronização de trajetórias individuais, o que resulta, necessariamente, em
pausas, lapsos temporais mais ou menos longos, que se materializam em lugares específicos. Neste caso, produzem-se esperas.
4 Nos espaços públicos, sobretudo das grandes cidades, dinâmicas distintas e interdependentes associadas à circulação, ao
trabalho e ao encontro social, ensejam modalidades também diversas de espera, as quais coexistem com outros usos. É a partir
destes cenários que pretendemos analisar as práticas e relações espaciais associadas à espera, entendida não como mera
disfunção sistêmica, mas como fenômeno concreto, dotado de forte potencial para tornar visível a dimensão material dos modos
de organização da vida cotidiana.
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Modos de ocupação
12 Se considerarmos o sistema de espaços públicos de uma cidade, que inclui logradouros com morfologias, funções e usos
diversos, as praças parecem ser os lugares por excelência da experiência, da encenação e da regulação das pausas que decorrem
da sincronização de trajetórias espaço-temporais. Em um sentido bastante imediato, estes logradouros constituem, comumente,
nós dos sistemas de transporte (metroviário, rodoviário, e de transporte complementar) dada a disponibilidade de espaço para
alocação de equipamentos de transbordo, como estações e “abrigos”. O sentido primordial destes equipamentos é, justamente,
acolher os lapsos temporais inerentes à comutação.
13 As duas praças aqui estudadas desempenham, desde meados do século XIX, uma função central no sistema de circulação
urbana e, no início da década de 1980, receberam estações da primeira linha de metrô da cidade9. Sua morfologia é marcada
pela presença de sinalização e mobiliário característicos dos sistemas de comutação (abrigos de ônibus, vagas delimitadas para
táxis e vans, bicicletários, etc.), especialmente nas áreas limítrofes, em contato com as vias públicas. A espera assume, nestes
casos, formas bastante estáveis e reguladas socialmente, como as ocupações dos abrigos de ônibus (e de seu entorno imediato)
e, sobretudo, as filas10. Estas configurações constituem componentes importantes do imaginário social e, como tais, são
frequentemente mobilizadas nos debates públicos sobre a cidade11. São também ocasiões para o confronto e o
compartilhamento de diferentes leituras situadas do espaço urbano por parte dos usuários dos sistemas de transporte,
funcionando como mediadores na construção cotidiana dos direitos individuais.
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Foto: Paula Trojan
14 A dinâmica da espera gerada pela comutação é amplificada pela presença, no entorno imediato das praças, de usos comerciais
e de serviços, os quais dependem da sincronização das trajetórias de fornecedores e clientes que os sustentam, produzindo,
assim, lapsos temporais. Além disso, diferentes formas de organização das práticas laborais se baseiam na segmentação do
tempo e na disjunção espacial, alternando períodos (e lugares) de intensa e regrada atividade e horas “vagas”, tempos ditos
“livres”12. A mesma lógica preside certos usos institucionais, como, por exemplo, as atividades educacionais.
15 Estes lapsos e horas vagas podem se realizar em espaços previamente definidos, internos ou externos, como as salas de
espera, os pátios das escolas e as áreas de carga e descarga das vias públicas, ou ocupar os espaços públicos de forma menos
circunscrita. Nas praças estudadas e, sobretudo, no período diurno, é expressiva a presença de pessoas em pausas laborais,
clientes agendados para atendimentos variados, estudantes em horário de “recreio”, etc. A lista poderia ser ampliada
indefinidamente, mas estes poucos exemplos servem para demonstrar que as ocupações das praças vinculadas às interrupções
temporárias na circulação ou nos fluxos de atividade, seus ritmos e configurações particulares, representam importantes chaves
de leitura das dinâmicas urbanas, podendo ser utilizados, inclusive, como indicadores para acompanhar suas transformações.
16 O intenso afluxo de pessoas nas praças torna ainda disponível uma clientela potencial e variada para uma miríade de práticas
econômicas (formais e informais) que incluem serviços diversos, uma ampla gama de atividades comerciais (ambulantes ou
não), performances artísticas, entre outras formas de aquisição de recursos, como a mendicância e a coleta de materiais
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recicláveis por pessoas em situação de rua. Uma observação bastante ligeira é suficiente para atestar que o tempo de
permanência daqueles que ofertam bens e serviços nos espaços públicos é predominantemente empregado na espera /
expectativa de que, na interação com os pedestres, certas transações venham a se efetuar. Como sugere Fraya Frehse13, trata-se
de um tempo que se torna visível, ganha espessura, pela utilização física mais ou menos expansiva do logradouro público para a
realização destas atividades. E que, ademais, produz ocupações que ocasionam conflitos e negociações com outras tantas
demandas pelo uso do espaço e pelo controle de seus recursos14.
17 Nas praças também se materializam os lapsos temporais, de duração variável, que caracterizam os encontros sociais,
programados ou não, os quais dependem do entrecruzar de percursos, com origens distintas, em lugares e momentos
predefinidos. Focos de deslocamentos diversos, sobretudo para os pedestres, as praças funcionam como pontos nodais no tecido
urbano e, com frequência, constituem lugares estratégicos no repertório espacial de diferentes grupos sociais15.
18 O ato aparentemente banal de marcar um encontro em uma praça (o que, obviamente, pode envolver duas ou mais pessoas),
reforça o caráter referencial destes lugares. Quando o horizonte de permanência que motiva o encontro é a própria praça, esta
deixa de ser apenas um ponto de referência para o encontro e se torna um lugar de encontro. E, na medida em que certos
hábitos coletivos se condensam no interior da sociedade, ou para certos segmentos dela, algumas praças se convertem em
espaços privilegiados para a sociabilidade pública. Neste caso, os padrões da espera são muito mais complexos porquanto
imbricados com outras atividades estacionárias.
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19 Vê-se, portanto, quão heterogêneos são os modos de permanência produzidos pela espera. Co-presentes nos espaços públicos,
estes modos se apresentam como comportamentos situados, regulados e interpretados a partir do contexto no qual se inserem.
Comportamentos situados
20 Como sugere Erving Goffman, em seu clássico trabalho sobre os encontros sociais em lugares públicos16, situar
comportamentos significa considerá-los a partir das unidades espaço-temporais nas quais eles se apresentam e a partir das
quais adquirem significado. Nas situações que ensejam a co-presença física, como é o caso dos espaços públicos, as pessoas se
encontram especialmente acessíveis umas às outras, em virtude não apenas da proximidade, mas, sobretudo, da possibilidade
de observação mútua, de ver e ser visto.
21 O monitoramento recíproco faz emergir um contexto social que torna certos padrões de conduta apropriados e desejáveis,
indicando também as atividades passíveis de mobilizar a atenção daqueles que estão presentes. A ausência de engajamento, de
um propósito particular em uma determinada situação é, com frequência, objeto de apreciação social negativa, de desconfiança,
ou de ansiedade pessoal.
22 O problema colocado pela espera reside justamente no fato de que seu horizonte de ação está orientado para fora da situação,
ou seja, para o exterior e/ou para o futuro. Isto sugere a ausência de um envolvimento principal “ocasionado”, de uma dedicação
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forte a qualquer atividade que seja regulada pelo contexto imediato. Não à toa associa-se a espera à inatividade e o tempo por
ela consumido à desocupação17. Um tempo “vago”18.
23 A inatividade é muitas vezes assimilada a uma atitude corporal especifica: o repouso. Nos espaços públicos, em particular,
esta identificação possui um caráter relacional, ou seja, é construída a partir do confronto com os comportamentos vinculados
ao movimento19. Estas duas oposições, entre atividades “ocasionadas” e “não-ocasionadas” e entre repouso e movimento,
correspondem também a diferentes associações in situ entre atitudes corporais e os elementos da morfologia dos logradouros.
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24 O desenho das praças, seu revestimento, seus desníveis e descontinuidades, o mobiliário e os equipamentos instalados
participam da classificação dos comportamentos que aí se apresentam. Dentre os elementos da morfologia, aqueles mais
imediatamente associados à espera são os bancos e, de forma mais abrangente, os assentos – ou seja, todo e qualquer suporte
efetivamente utilizado para se sentar. Componentes característicos do mobiliário das praças aqui estudadas e de tantas outras,
orientam não apenas as diversas modalidades de espera, mas também outros tipos de permanência, “canalizando seus ritmos
cotidianos”20.
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25 Ao longo de quase vinte anos, a partir do início da década de 1970, um grupo de pesquisadores liderado pelo urbanista e
jornalista William H. Whyte investigou os usos dos espaços públicos na cidade de Nova Iorque. Empregando métodos
observacionais diversos, como registros audiovisuais, fotográficos e croquis (e, apenas raramente, entrevistas com os
frequentadores), produziram ricas descrições da vida cotidiana na área central da metrópole norte-americana21.
26 Uma das preocupações centrais do trabalho consistia em estimar as condições que contribuíam para o “sucesso” de diferentes
espaços públicos – praças em particular –, medido por intermédio de sua ocupação efetiva. A permanência de pessoas foi
considerada o indicador básico da vitalidade dos “pequenos espaços urbanos”22. Para fins de mensuração, foi utilizada a variável
“número médio de pessoas sentadas (em condições meteorológicas favoráveis)”. Embora a pesquisa tenha ressaltado a
importância de diversos fatores para a ocupação das praças, como a insolação, a relação com as vias e a arborização, sua
principal conclusão foi enunciada por meio de uma afirmativa aparentemente singela: “as pessoas tendem a sentar em maior
quantidade onde há lugares para sentar”23.
27 O raciocínio empregado por Whyte baseia-se em uma equação que identifica a ocupação à permanência e esta à
disponibilidade de superfícies que abriguem o estar. Estabelece, além disso, certa autonomia entre a ocupação das praças e as
atividades passíveis de atrair frequentadores (sejam elas de caráter recreativo, comercial, ou de qualquer outra natureza). Vistas
como meras “presenças”, relativamente independentes de seu conteúdo, as diversas modalidades de permanência se equiparam,
o que torna o problema dos comportamentos “desengajados”, como os que caracterizam a espera, secundário.
28 As abordagens de Goffman e Whyte, quando combinadas, acrescentam um aspecto importante à perspectiva fisicalista
relacionada à Geografia do Tempo. Pausas inerentes à coordenação das atividades cotidianas, as esperas constituem, também,
um tipo específico de permanência, que se apresenta nos espaços públicos a partir de comportamentos associados ao “vagar” e à
“inatividade” e de atitudes corporais identificadas com o repouso que, durante certo tempo, se “assentam”, se fixam, em espaços
disponíveis, “vagos”. É justamente esta presença que as torna visíveis.
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31 O método descritivo adotado assume, de saída, que a visibilidade dos lugares da espera depende do ponto de vista a partir do
qual escolhemos observá-los25. Optamos então por uma sistemática de observação baseada na ocupação alternada de diferentes
posições, no interior das praças, em diversos momentos do dia. Os campos de visão correspondentes a estes pontos de vista
foram enquadrados a partir de registros fotográficos e, posteriormente, combinados em figuras, a partir de um princípio
construtivo que se assemelha àquele dos mapas. O tipo de apresentação resultante possui um caráter conscientemente
fragmentário, cuja pretensão não é representar o fenômeno em sua integralidade ou exterioridade absoluta26. Trata-se de uma
colagem, um agregado de aspectos parciais que, ademais, reconhece que o lugar, assim figurado, faz parte de um mundo maior e
é, ele mesmo, construído na presença do pesquisador.
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32 Além disso, os lugares da espera constituem também diferentes posições a partir das quais aqueles que estão presentes
concebem suas ações, seus cenários de interação com outros atores e de ligação com outros pontos no espaço e no tempo,
construindo assim, segundo Gabriel Dupuy, seus “projetos transacionais”27. Visando uma aproximação em relação a estes
projetos, foram realizadas, em cada uma das áreas e em diferentes momentos do dia, entrevistas com os frequentadores
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pedindo que descrevessem o que estavam fazendo no local e porque haviam escolhido aquele ponto específico para permanecer.
Interrogou-se também seu lugar de origem (antes de chegar à praça) e, para aqueles que usam a praça com certa regularidade, a
frequência de uso e o tempo médio de permanência.
espaços confinados situados no exterior, próximo ou distante, da praça (como, por exemplo, a casa, o lugar de trabalho, a escola,
etc.). Além disso, sua duração é mais controlada, seja porque obedece aos modos de organização espaço-temporal intensamente
regrados de certas atividades, seja porque definida pela própria pessoa que espera.
39 Combinados, os dois aspectos resultam em uma maior autonomia entre o lugar de permanência e a orientação dos projetos de
transação. Os fatores de atração que condicionam estas ocupações estão, por sua vez, mais ligados à leitura que os indivíduos
fazem da diferenciação interna das praças. Lugares mais ou menos adequados à permanência são definidos, sobretudo, em
função dos planos de segmentação social (pessoas, grupos ou usos em relação aos quais se deseja estar próximo ou manter
distância) e da ambiência (que pode envolver aspectos como a disponibilidade de lugares para sentar, a insolação, o
sombreamento, etc.)32.
40 Nestes casos, observa-se, com frequência, a conversão da passagem do tempo em uma atividade autônoma, orientada para si
mesma. A pergunta “o que você esta fazendo aqui?” foi respondida muitas vezes por meio de expressões como: “estou fazendo
hora”, “estou deixando o tempo passar”, “estou matando o tempo”, “estou passando o tempo”. Este assenhorar-se do tempo,
associado à ausência de atividade ocasionada, produz um tipo diferente de atenção, que se poderia denominar “flutuante”,
voltada para o fluxo, imponderável, dos acontecimentos que têm lugar na praça. “Estou aqui para ver as pessoas”, “sentei para
ver o movimento”, “estou curtindo o movimento”, “gosto de ficar olhando esses desesperos, essa decadência de lugar”, foram
algumas das respostas à pergunta “por que escolheu este ponto específico para ficar?”.
41 Alguns entrevistados, instados a construir um sentido para sua permanência nos logradouros estudados, descrevem um modo
de estar que se caracteriza, ao mesmo tempo, pela suspensão dos conteúdos ou finalidades práticas (a não ser “matar o tempo”)
e pela disponibilidade para a fruição do “movimento” das praças. Ao contrário, portanto, da ideia comumente aceita segundo a
qual estas ocupações corresponderiam à apresentação pública da inatividade, do “fazer nada”, a espera pode criar novos
horizontes situados de expectativas, produzindo lugares que são, por sua vez, pontos de vista privilegiados para a observação do
que há de inesperado na cena pública.
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44 Nas sociedades urbanas modernas, a construção material da esfera pública é indissociável do uso efetivo dos espaços
públicos, dos conflitos que emergem da co-presença de interesses diversos e de balanços de poder cambiantes e dos intentos,
sempre provisórios, de regulá-los. Ora, a ocupação destes espaços possui uma ligação estreita com os modos de coordenação
espaço-temporal da vida cotidiana, dos quais a espera é um aspecto inerente e concreto. Portanto, a análise dos ritmos, padrões
espaciais e leituras situadas resultantes da diversidade das modalidades de espera, em espaços públicos específicos, pode
constituir uma estratégia metodológica promissora, embora pouco usual, para uma aproximação às formas contemporâneas de
regulação da vida cotidiana, coletiva e pública.
45 Modos de atenção dirigidos para a ação, as esperas também constituem mediadores na articulação das praças com o restante
da cidade. Dada a orientação dos projetos de transação que participam de sua construção, para fora da situação, os lugares da
espera convocam, para o aqui e agora das praças, outros tantos lugares da cidade, tornando-os co-presentes, ainda que
virtualmente. Logo, se nos fosse possível registrar um instantâneo do conjunto destes “projetos transacionais”, compor-se-ia um
mapa efêmero, porém revelador do aspecto reticular, conexo do espaço urbano. Disporíamos também de um indicador
suplementar do grau de heterogeneidade dos espaços públicos, não apenas baseado no perfil demográfico, socioeconômico e
ocupacional de seus frequentadores.
46 Finalmente, a reflexividade, o jogo permanente do ver e ser visto, que caracteriza os espaços públicos é fortemente
dependente da presença de pessoas em espera. Sua presença, sua disponibilidade para o fortuito, o extraordinário e o
imponderável, as torna “observadores” no interior das situações. A espera olha a cidade, convoca a cidade para a praça, e
confere sentido à vida pública situada, porque a observa.
Notes
1 Thrift, Nigel, An introduction to time geography, Geo Abstracts, University of East Anglia, 1977.
2 Para uma abordagem interdisciplinar e multidimensional do fenômeno da espera, ver: Vidal, Laurent e Musset, Alain (dir.), Les Territoires
de l’attente: migrations et mobilités dans les amériques (XIXe – XXIe siècle), Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2015. Entre os
geógrafos, o interesse pelo tema, embora ainda periférico, já se faz presente em alguns periódicos de ampla difusão internacional. Ver: Jeffrey,
Craig, « Waiting », Environment and Planning D: Society and Space, 2008, v. 26, p. 954- 958; Creswell, Tim, « Mobilities II: Still », Progress
in Human Geography, 2012, v.36-5, p. 645-653.
3 Bissell , David, « Animating Suspension: Waiting for Mobilities », Mobilities, 2007, v. 2-2, p. 277-298.
4 Ribeiro, Leticia Parente, Musset, Alain, « L´attente comme ressource : les vendeurs ambulants de Rio de Janeiro et de Tijuana », em Vidal,
Laurent e Musset, Alain (dir.), op. cit, p. 211-229.
5 Gomes, Paulo C. da Costa e Fort-Jacques, Théo, « Spatialité et portée politique d’une mise en scène », Géographie et cultures, 2010, vol. 73,
p. 7-22.
6 Para outras abordagens do fenômeno da espera nos espaços públicos, ver: Thibaud, Jean Paul, « Ambiências de passagem - figuras,
condutas, medidas», em Duarte, C., Villanova, R. (ed.), Novos olhares sobre o lugar: ferramentas e métodos, da arquitetura à antropologia.
Rio de Janeiro, Contra Capa, 2013, p. 101-127; Frehse, Fraya, « La rue comme territoire de l’attente », em Vidal, Laurent e Musset, Alain (dir.),
op. cit, p. 118-121.
7 Neste trabalho, o termo genérico praça será empregado para designar ambos os logradouros. Como indica Maria Alexandre Lousada (in:
Topalov, Christian et al. L’aventure des mots de la ville, Paris, Robert Laffint, 2010, p. 983), no vocabulário de uso corrente, a distinção entre
praças e largos, quer em relação à morfologia, à situação e às funções que exercem na cidade, não é rígida. Já o léxico urbanístico português
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de tradição erudita reserva a palavra praça para designar os lugares públicos que apresentam um traçado regular, uma coerência arquitetural
das edificações do entorno e uma intencionalidade na criação. Os largos, adros, e outros terreiros corresponderiam, por sua vez, a espaços
acidentais, vazios ou a alargamentos das vias urbanas. A história dos lugares narrada a partir de seus sucessivos topônimos segue, entretanto,
caminhos mais tortuosos. Em sua gênese, a Praça Saens Peña teria sido um largo (Largo da Fábrica) no cruzamento de dois importantes
caminhos que, no início do século XIX, constituíam os principais eixos de urbanização da região, até ser remodelada e rebatizada como praça,
no início do século XX. Já o Largo do Machado, embora tenha sido recategorizado como praça após uma série de intervenções urbanísticas
ocorridas em meados do século XX, conserva atualmente o topônimo com a qual era conhecido desde o início do século XVIII.
8 Participaram desta pesquisa os alunos do departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Amanda Fernandes (que
também auxiliou na concepção gráfica do trabalho), Renan França, Paula Trojan, Thomas Menezes, Rafaela Alcântara e Nikolas Zanette. Além
dos registros imagéticos realizados em outubro de 2014 e agosto de 2015 no Largo do Machado e na Praça Saens Peña, serão utilizadas, neste
artigo, imagens produzidas em pesquisas anteriores na área central da cidade do Rio de Janeiro.
9 A instalação de estações de metrô provocou um acirrado debate em virtude dos conflitos de uso gerados pela intensificação da circulação nas
praças e em suas imediações (O Globo, « Trânsito, sujeira e abandono », Rio de Janeiro, 14 de Junho de 1983).
10 Oliveira, Alberto Santos Junqueira de, Essa vez que não chega: fila e drama social no Brasil, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade
Católica, Dissertação de Mestrado, 2012.
11 Em 2013, a imprensa carioca deu grande destaque aos problemas associados à visitação dos principais pontos turísticos da cidade. O tempo
de espera figurava como indicador básico para qualificar a situação. Em diversas matérias foram reproduzidas imagens das filas que se
formam no Largo do Machado para acessar as vans que fazem o trasporte até o Corcovado e o monumento do Cristo Redentor. Ver,
especialmente : O Globo, « Teste de paciência para o turista mundo afora: polêmica das filas para o cristo evidenciou problema recorrente »,
Rio de Janeiro, 07 de Junho de 2013 ; O Globo, « Fila diminui, mas espera para visitar Corcovado segue grande: no Largo do Machado,
compra de bilhete de trem demora duas horas », Rio de Janeiro, 17 de Junho de 2013.
12 Para uma abordagem histórica acerca das modalidades de disciplina das atividades laborais e sua relação com as formas de apreensão do
tempo nas sociedades industriais, ver Thompson, E. P., « Time, work-discipline, and industrial capitalism », Past and Present, n°38, 1967,
p. 56-97.
13 Frehse, Fraya, op. cit, p. 119.
14 As pesquisas de Nicholas Blomley e Annette Miae Kim, embora aplicadas ao estudo das calçadas, introduzem perspectivas inovadoras para
estudar os conflitos e as práticas de negociação entre os diferentes usos que se apresentam nos espaços públicos. Ver: Blomley, Nicholas,
Rights of passage : sidewalks and the regulation of public space, New York, Routledge, 2011; Kim, Annette Miae, Sidewalk city: Remapping
public space in Ho Chi Minh City, Chigago, The University of Chicago Press, 2015.
15 Lynch, Kevin, A imagem da cidade, Lisboa, Editora 70, 1996 [1960], p. 58-59.
16 Goffman, Erving, Behavior in public places: notes on the social organization of gatherings, Nova Iorque, The Free Press, 1966 [1963].
17 Bissell, David, op.cit.
18 Aliás, o verbo “vagar”, mesmo quando traduz um movimento, designa um percurso ocioso, um andar a esmo, sem propósito claro, à vista
de outros, e reveste-se de significados pejorativos quando é empregado, por exemplo, como sinônimo de “vadiar”, “zanzar”, ou “vagabundear
”.
19 Isto se deve, em parte, à centralidade que o deslocamento assume na vida urbana contemporânea, o que torna o pedestre um ator chave
para a regulação dos espaços de mobilidade urbana, além de um foco persistente da construção de direitos na esfera pública. Para uma
discussão sobre o tema, ver: Blomley, Nicholas, 2011, op.cit.
20 Prior, Nick, « Speed, Rhythm, and Time–Space: Museums and Cities », Space and Culture, 2011, v. 14-2, p. 197-213.
21 Whyte, William H., City: rediscovering the center, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2009 [1988]. Muitas foram as críticas
dirigidas, em trabalhos recentes, à abordagem de Whyte. Em resumo, elas apontam para a pouca ênfase atribuída quer aos conflitos
decorrentes da multiplicidade de usos, quer às assimetrias nas condições de acesso a estes espaços. Destacam também a falta de visibilidade
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da estratificação social dos frequentadores e o caráter pretensamente universal dos comportamentos estudados. Entretanto, é de se notar uma
intensa recuperação de seus métodos de pesquisa, mesmo entre seus críticos, no bojo da chamada virada empírica das ciências sociais.
22 Whyte, William H., The social life of small urban spaces, Washington, DC: Conservation Found, 1980.
23 Whyte, William H., op. cit, 2009 [1988], p. 110.
24 Tal característica não descreve as modalidades de espera relacionadas ao comércio, à oferta de serviços e a outras formas de aquisição de
recursos nos espaços públicos. Estas atividades podem ocupar os espaços públicos durante longos períodos, e a espera, embora intermitente,
constitui parte substancial de sua apresentação.
25 Para a discussão sobre a noções de ponto de vista e sua relação com a pesquisa sobre os espaços públicos, ver: Gomes, Paulo C. da Costa, O
lugar do olhar, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013.
26 Alpers, Svetlana, The art of describing: dutch art in the seventeenth century, Chicago: The University of Chicago Press, 1983.
27 Dupuy, Gabriel, L´urbanisme des réseaux : théories et méthodes, Paris: Armand Colin, 1991.
28 Note-se que, de acordo com a perspectiva da Geografia do Tempo, uma trajetória espaço-temporal pode ser móvel (quando, ao longo de
uma dada unidade temporal, descreve um deslocamento no espaço) ou estacionária (quando decreve uma duração que não implica
deslocamento espacial). Ver: Thrift, Nigel, op. cit.
29 No Largo do Machado, estas concentrações correspondem aos pontos 12 (pontos de ônibus) e 13 (ponto de van) e, na Praça Saens Peña, aos
pontos 9 (pontos de ônibus) e 10 (ponto de táxi).
30 No Largo do Machado, estas concentrações correspondem aos pontos 7 (chafariz) e 6 (abrigo da estação de metrô) e, na Praça Saens Peña,
aos pontos 1a (abrigo da estação de metrô) e 5 (caramanchão).
31 Thibaud, Jean Paul, 2013, op.cit. Apresentações deste tipo não foram consideradas na presente pesquisa, em função da ênfase nas
ocupações « assentadas ».
32 No Largo do Machado, estas concentrações se situam, principalmente, nos pontos 3, 5, 9 e 10 (bancos), mas também nos pontos 1
(respiradouro do metrô) e 3 (bloco de concreto), com menor frequência, nos pontos 8 e 11 (mesas de jogo) e 4 (equipamentos de exercício). Já
na Praça Saens Peña, estão situadas, sobretudo, nos pontos 3, 4, 6, 7 e 8 (bancos). Em alguns pontos foram observadas, de forma combinada,
ocupações produzidas pela espera com outras relacionadas a atividades “ocasionadas” (como as práticas recreativas e esportivas). No Largo do
Machado esta situação foi observada nos pontos 8 e 11 (mesas de jogo) e 4 (equipamentos de exercício).
List of illustrations
Title Figura – Comutações e configurações da espera
Caption Ponto de ônibus na Praça Saens Peña, Rio de Janeiro, Outubro de 2014
Credits Foto: Paula Trojan
URL http://journals.openedition.org/nuevomundo/docannexe/image/68946/img-1.jpg
File image/jpeg, 4.6M
Title Figura – Interrupções nos fluxos de atividades
Caption Estudantes no Largo do Machado, Rio de Janeiro, Outubro de 2014
Credits Foto: Paula Trojan
URL http://journals.openedition.org/nuevomundo/docannexe/image/68946/img-2.jpg
File image/jpeg, 10M
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17/09/2022 20:03 A apresentação da espera nos espaços públicos: modos de ocupar, formas de olhar
References
Electronic reference
Leticia Parente Ribeiro, “A apresentação da espera nos espaços públicos: modos de ocupar, formas de olhar”, Nuevo Mundo Mundos
Nuevos [Online], Debates, Online since 25 January 2016, connection on 18 September 2022. URL:
http://journals.openedition.org/nuevomundo/68946; DOI: https://doi.org/10.4000/nuevomundo.68946
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Copyright
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/
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