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CADERNO

textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 3

1
Prefeitura do Município de Osasco

Secretaria de Assistência Social

prefeito
Jorge Lapas

secretária de assistência social


Suzete Souza Franco

diretora administrativa
Ester Begnini

diretora da proteção social básica


Elizete Nantes Mendes Saramello

diretora da proteção social especial


Danielle Silva Bueno

realização coordenação e organização


CADERNO

textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 3

organização
Carina Ferreira Guedes
Fernanda Ghiringhello Sato

Núcleo Entretempos
SÃO PAULO
2016
7 Apresentação
Equipe Núcleo Entretempos

11 Os grupos na instituição:
lógicas e problemáticas
Emilia Estivalet Broide

19 Grupos de homens e homens em grupos:


novas dimensões e condições para
as masculinidades
Leandro Feitosa Andrade

61 Dos muros visíveis aos invisíveis:


das políticas sociais atuais para cuidados
da população em sofrimento nas cidades
Patrícia Rodrigues Rocha

67 Coletivizar demandas: as falas e seus destinos


CARiNA FERREiRA guEDEs
FERNANDA ghiRiNghEllO sAtO

75 Sexo e sexualidade de crianças e adolescentes:


como podemos cuidar do que nos assusta
Carolina Bertol

83 Heranças e legados da assistência social:


uma memória ainda a ser deslocada
CARiNA FERREiRA guEDEs
Natália Felix Noguchi
Desejamos que a leitura
deste caderno provoque
inquietações e que possa
colaborar na memória dos
seminários da formação
Enlaces e para a abertura
de novas discussões entre
os profissionais.

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Caderno Enlaces compõe os textos de referência do projeto de formação de
profissionais dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, CRAS e
Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Osasco, realizado pelo
Núcleo Entretempos. Seu objetivo é apresentar as principais sistematizações e
conteúdos abordados, na forma de textos de referências e indicações de mate-
riais e atividades.
Neste terceiro volume, colocamos em pauta temas que atravessam a po-
lítica do SUAS, mas não se restringem a ela. Trata-se de um convite para am-
pliar o olhar e a escuta, mapeando possibilidades de atuação para questões
que desafiam não apenas o campo social, mas também o campo da saúde e da
educação, enriquecendo o processo de construção do Projeto Político-Pedagó-
gico dos serviços. Não por acaso, diversos dos textos aqui apresentados versam
sobre possibilidades de atuação no coletivo, uma vez que suas temáticas pedem
respostas que transcendam a abordagem um-a-um.
O primeiro texto deste caderno, escrito pela psicanalista Emilia Estivalet
Broide, aborda a importância do trabalho com grupos e a potência desse dispo-
sitivo de atendimento, visando qualificar e trazer elementos que proporcionem
uma reflexão crítica sobre o uso dos grupos e seus objetivos nos serviços da
Assistência Social. Na sequência, Leandro Andrade Feitosa traz provocações ao
falar sobre família, tema discutido amplamente no campo das políticas públicas,
a partir de um viés pouco explorado: o lugar dos homens e a construção do
masculino como proposta de trabalho para lidar com a violência e conflitos fa-
miliares. Dando continuidade às provocações, a terapeuta ocupacional Patricia
Rodrigues Rocha traz um breve histórico sobre a reforma psiquiátrica e os desa-
fios que surgem para que seja possível a construção de um olhar efetivamente
acolhedor e empático ao outro que é atendido.

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Apresentamos também neste volume três textos escritos pela equipe do
Núcleo Entretempos, que exploram assuntos que têm emergido dos encontros
de formação com as equipes dos serviços e que merecem atenção. O primeiro
deles fala sobre a importância de subverter a lógica individualizante de atendi-
mentos para pensar a coletivização das demandas, a partir da escuta dos usuá-
rios. O segundo aborda a sexualidade e possibilidades de trabalho com esse
assunto que tanto mobiliza e assusta profissionais, crianças e adolescentes. Por
fim, apresentamos um texto sobre heranças e legados das políticas do SUAS,
que propõe uma reflexão crítica sobre as práticas atuais a partir da história da
assistência e de seus paradigmas.
Desejamos que a leitura deste caderno provoque inquietações e que possa
colaborar na memória dos seminários da formação Enlaces e para a abertura de
novas discussões entre os profissionais.

Equipe Núcleo Entretempos

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História
Quando todas as palavras do dicionário
ficam à disposição de quem quiser
contar qualquer coisa que tenha
acontecido ou sido inventada

Interessante
Aquilo que desperta um “oh”
no desejo da gente

Leitor
Para quem cada palavra
escrita é dedicada

Dicionário de palavras ao vento, Adriana Falcão

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10
os grupos na instituição:
lógicas e problemáticas
Emilia Estivalet Broide 1

Atualmente, no trabalho institucional, principalmente nas empresas, na área


social e na saúde, tornou-se “lugar comum” fazer grupo. Muitas vezes, o tra-
balho grupal é pensado unicamente para atender a uma demanda institucio-
nal crescente, sem destino claro nem orientação, gerando a banalização da
prática e reducionismos quanto a sua efetividade (BROIDE e BROIDE, 2015).
É importante, então, por em relevo essas práticas, interrogar suas origens,
conhecer as experiências e pensar instrumentos que possibilitem refletir sobre
sua verdadeira contribuição, suas áreas de visibilidade e inviabilidade, seus
enunciados e silêncios.
Fernandez (2006) diz que é necessário um trabalho de elucidação crítica
acerca da epistemologia, das teorias e da prática grupal: o que se faz quan-
do se faz grupos? A autora, ao traçar a genealogia do vocábulo, mostra que
na sua origem ele é tributário de um momento histórico da constituição da
subjetividade moderna.

Tanto el término francés groupe, como el castellano grupo, reconocen


su origen en el término italiano groppo o gruppo. Groppo aludía a un
conjunto de personas esculpidas o pintadas, pasando hacia el siglo xviii
a significar una reunión de personas, divulgándose rápidamente su uso
coloquial. El groppo scultorico es una forma artística propia del Rena-
cimiento, a través de la cual las esculturas que en tiempos medievales
estaban siempre integradas al edificio, pasan a ser expresiones artísticas

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en volumen, separadas de los mismos, que permiten para su apreciación
caminar a su alrededor, es decir, rodearlas; cambia así la relación entre
el hombre, sus producciones artísticas, el espacio y la trascendencia; al
mismo tiempo, otra de las características a señalar del groppo scultorico
es que sus figuras cobran sentido cuando son observadas como conjunto,
más que aisladamente (p. 15).

O groppo surge, então, no Renascimento, época de grande efervescência e


transformações políticas, sociais, econômicas e familiares, gerando efeitos na
constituição das subjetividades. As esculturas que na Idade Média eram inte-
gradas às igrejas, ganham a rua, o espaço público, permitindo que elas pudes-
sem ser apreciadas a partir de diversos ângulos, tanto em sua singularidade,
quanto na composição de seu conjunto.
Assim como as esculturas do groppo scultórico, o dispositivo de
grupo torna possível trabalhar um determinado problema, uma ques-
tão, a partir de várias perspectivas. Cada integrante do grupo apresenta
um novo ângulo de olhar, a partir da posição na qual está situado. É possível,
dessa forma, interrogar os sentidos coagulados.
Muitas vezes criam-se grupos baseados em patologias: obesos mórbidos,
hipertensos, mulheres no climatério, ou em situação de vulnerabilidade so-
cial: beneficiários do Programa Bolsa-Família, adolescentes em conflito com
a lei etc., ignorando as demandas específicas dos sujeitos em questão. Nesse
sentido, é necessário pensar a trama (o grupal) e o traço (a singularidade)
(JASCINER, 2008). Agrupar indivíduos, identificando-os por patologia ou
condição social, não é suficiente para promover a implicação no dis-
positivo proposto. Geralmente, essas situações, edificadas sobre uma ilusão
intersubjetiva, baseada nas identificações imaginárias, criam-se mais obstácu-
los ao trabalho grupal, do que um rico e profundo trabalho dos indivíduos no
coletivo. Fazem massa, não fazem grupo.
Freud (1921) abordou a questão dos fenômenos de massa. Analisou a igre-
ja e o exército situando diversos fenômenos identificatórios e de sugestão
presentes nessas duas agremiações. No trabalho com grupos, os fenômenos
identificatórios podem ser pensados a partir da figura topológica de uma

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banda de Moebius, que, conforme explica Lacan (1961), põe em questão a
posição do sujeito no jogo intersubjetivo, a partir da torção que instaura um
corte: ora efeito de massa (via identificações), ora efeito de abertura à singu-
laridade. A delicadeza na coordenação dos grupos implica pôr em opera-
ção a possibilidade do advir da singularidade do sujeito, convocando
às múltiplas versões.

A tarefa como operador nos grupos


Para fazer frente às dificuldades no trabalho grupal, o conceito de “tarefa”
tal qual elaborado por Pichon-Rivière nos parece muito útil. O que une o
grupo é a tarefa, e não a sua condição pessoal ou social, patologia ou
lugar hierárquico que possui na instituição. A tarefa funciona como um
operador em direção aos objetivos do grupo, constituindo-se numa práxis e
numa trajetória de caráter multidimensional e dialética. Para Pichon-Rivière,
o dispositivo grupal não está centrado nos indivíduos, nem tampouco na to-
talidade do grupo, mas na relação que os membros mantêm com a tarefa.
(Pichon-Rivière, 1970).
O coordenador do grupo também está referido à tarefa, tal como os ou-
tros membros. Ele orienta suas intervenções na direção da tarefa. O coorde-
nador se faz na coordenação de grupos. Não há manuais técnicos de como
proceder na coordenação. Essa não é uma função que se pode ocupar pre-
viamente: mesmo que o coordenador seja definido antes mesmo de o grupo
começar, a “função de coordenação” se forja no processo de trabalho. O co-
ordenador deve permitir-se ser suporte daquilo que os integrantes do grupo
lhe adjudicam, e operar a partir dessas múltiplas transferências - operar na
dialética entre o real da transferência e a ficção do dispositivo criado para a
realização da tarefa.
A constituição da tarefa é atravessada por aspectos conscientes
e inconscientes. Há uma dimensão explícita da tarefa: os motivos que
convocaram do trabalho grupal, que devem estar sempre claros
para todos os integrantes do grupo, mas, por outro lado, a tarefa
é atravessada por elementos que não se dão a ver logo de início e
vão emergindo nos labirintos, nas dobras do grupo onde se elabora

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e reelabora o que é tematizado nos encontros. Isso vai determinando
a direção do trabalho grupal. Assim, nos grupos está em jogo uma trama
transferencial, onde cada um está implicado na tarefa, a partir de seu traço,
de sua singularidade.

Por que temos pressa no trabalho grupal?


Rapidamente nos apressamos em dizer que um grupo deu certo ou deu erra-
do. “Dar certo” é avaliado a partir da presença das pessoas. As pessoas vieram:
deu certo! Independentemente de se ali se produziu algum saber. “Dar erra-
do” geralmente é referido quando vem poucos integrantes numa segunda vez
que o grupo é marcado, ou quando ninguém aparece. Também se costuma
dizer que um grupo deu errado quando algo de inesperado ou surpreendente
acontece, criando o lugar para o imprevisto e, muitas vezes, o constrangimen-
to do coordenador.
Mas por que isso é dar errado? Como podemos avaliar se um grupo
deu certo ou errado em um primeiro ou segundo encontro? Ou quando
um imprevisto acontece? Nos primeiros encontros grupais trata-se ins-
taurar um tempo, de criar um acolhimento, criar o espaço ainda não
fundado do encontro. Um tempo de compreender. O tempo se busca e se
experimenta na dignidade da questão, diz Blanchot (2010); um tempo para
formular uma questão e colocar a questão trabalhar. Uma questão em relação
à tarefa que une o grupo, pois o grupo não é a mera soma de seus integrantes,
ele tem que constituir um tecido poroso e tramado.
Poroso porque tem que ser aberto à múltipla participação e às dife-
rentes formas de manifestação e tramado porque as diferenças presen-
tes na sua dinâmica devem constituir a possibilidade da criação de algo
em comum que os une e os move em direção à tarefa. Fazer com que o mal
estar, aquilo que não se liga e que faz sofrer, um sintoma, um luto, um sem
sentido da vida possa se enlaçar, e ser ouvido no grupo, e com isso, fazer com
que cada integrante encontre formas de dizer no grupo algo de si, para depois
desenlaçar, criando um jeito próprio de estar na vida.
“Dar certo” se relaciona com o êxito em relação à tarefa. A tarefa
não pode ser confundida em relação aos objetivos, pois ela é tecida,

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tramada nos encontros grupais, ela não pode ser definida a priori. Ela
é composta de elementos conscientes e inconscientes que dão o ritmo e ca-
dência ao processo grupal. A instituição pode definir os objetivos pelos quais
os técnicos devem fazer determinado tipo de grupo. Esses objetivos compõe a
tarefa grupal, mas não a definem.
Introduzir outro tempo nas instituições, que geralmente pautam suas
ações pela urgência - a urgência do caso, do cumprimento das condiciona-
lidades, da família em situação de vulnerabilidade - requer uma posição de
enfrentamento ao pensamento vigente. A esse respeito lembramos aqui uma
pesquisa feita na França, citada por Ana Maria Fernandez em seu livro “El
campo grupal: notas para una genealogia”. Ela conta que 97 crianças de 6-12
anos responderam ao seguinte enunciado: “Num barco há 26 ovelhas e 10
cabras. Qual a idade do capitão?” Das 97 crianças, 67 crianças responderam
a possível idade do capitão, a partir dos números do enunciado. Não houve
dúvida quanto à validade da questão, embora alguns achassem o enunciado
meio bobo. A autora salienta o absurdo da lógica do contrato didático em
oposição a lógica do pensamento operatório das crianças (FERNANDEZ, 1989).
O contrato didático estabelece uma lógica ritual e sagrada na
qual, uma vez que a pergunta é feita, ela passa a ser inquestionável e
deve ser respondida. Essa lógica, muitas vezes, pode ser observada nas
mais distintas práticas nas instituições. O ritual burocrático abole a
capacidade de colocar em questão a lógica dos enunciados. São fre-
quentes as vezes nas quais o usuário, o acolhido ou o paciente responde aqui-
lo que imagina que o técnico quer ouvir e o técnico se satisfaz com a resposta
que ouve, mesmo sabendo não ser crível o que é dito.
Outra é a lógica profana, que revela o absurdo do problema e propõe sua
subversão. Nesse sentido, introduzir a dimensão do tempo, em sua cadência, e
não em sua urgência, é um trabalho possível na realização dos grupos na insti-
tuição. Assim se transforma o dilema em questão. Levantar a questão de outra
lógica possível no trabalho com grupos na instituição faz lembrar, também, a
anedota contada por Zizek em seu livro “Violências”:

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Um oficial alemão visitou Picasso em seu estúdio em Paris durante a Se-
gunda Guerra Mundial. Chocado com o “caos” vanguardista da Guernica,
perguntou a Picasso: “Foi você que fez isto?”. Ao que Picasso replicou,
calmamente: “Não, isto foi feito por vocês!”.
(ZIZEK, 2014, p. 23)

A anedota traz o humor, o chiste como forma de contornar o horror da guer-


ra, fazendo do indizível algo posto em circulação. Nessa subversão da lógica
proposta por Picasso, ao re-situar a questão do horror da guerra, ele devolve a
responsabilidade sobre o fato retratado (o bombardeio à cidade de Guernica)
a seu autor. Tal convocação à responsabilidade deve servir de inspiração
no trabalho grupal. O pintor eleva o objeto à dignidade da coisa, ou
seja, através da pintura expõe a dor, o sofrimento vivido na guerra. É
autor da obra e não o executor da ação violenta.
Ocorre que o coordenador de grupos, grande parte das vezes, rapidamen-
te se considera executor da ação violenta: o fracasso do grupo é sua respon-
sabilidade. Aderido a uma idealização narcísica de sua função, solda-se a uma
impotência coletiva, impedido de perceber todos os enlaces institucionais que
vão estar presentes nos grupos, uma vez que o grupo não é uma entidade au-
tônoma, ele ocorre em um determinado lugar, com objetivos muito precisos.
Coordenar grupos em uma instituição é uma obra de arte. Trata-se, então,
de fazer advir as narrativas associativamente e com isso contornar o furo, o
ponto cego, aquilo que não foi escutado no que já foi dito. Não se trata de in-
ventar, ou acrescentar sentidos ao que é dito no grupo, e significados às falas
dos seus integrantes, mas a partir do que foi dito, recuperar a densidade da
palavra, a sonoridade da palavra, a sua cadência.

1. Emília Estivalet Broide é psicóloga, psicanalista, mestre em Saúde Pública pela


USP, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP,
onde participa do Núcleo de Psicanálise e Política. É consultora e supervisora na área
da Saúde e Assistência Social. Coautora do livro “A Psicanálise em Situações Sociais
Críticas - Metodologia Clínica e Intervenções”, ed. Escuta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLANCHOT, M. A conversa infinita 1. Editora Escuta, São Paulo, 2010.

BROIDE, E.E e BROIDE, J. A psicanálise em situações sociais críticas. São Paulo.


Escuta. 2015.

FERNANDEZ, A.M. El campo grupal: notas para una genealogia. Ediciones


Nueva Visión, Buenos Aires, 1989.

FREUD, S. (1921). Psicologia das massas e análise do ego. Edição standard


brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 18. Rio de
Janeiro: Imago, 1990.

JASCINER, G. Coordinando Grupos: uma lógica para los pequeños grupos.


Buenos Aires, Lugar Editorial, 2008.

LACAN, J. [1961-62]. Seminário IX, A identificação. Trad. Ivan Correia e


Marcos Bagno. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

PICHON-RIVIÉRE, E. Historia de la técnica de los grupos operativos. Revista


Temas de Psicologia Social, 6, 21-33. 1970

ZIZEK, S. Violência. Boitempo. São Paulo, 2014.

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18
grupos de homens e homens em grupos:
novas dimensões e condições
para as masculinidades 12

Leandro Feitosa Andrade 3

A proposta dos grupos com homens autores de violência contra mulheres sur-
ge como alternativa ao modelo punitivo prisional como forma de mudança de
comportamento e também como expressão de descrédito a esse modelo. Após
a aprovação da Lei Maria da Penha – LMP (Lei 11.340/2006) e o crescimento das
redes de atenção às mulheres vitimizadas pela violência doméstica, os dados
vêm mostrando o crescimento de denúncias e de autuações de homens auto-
res de agressão. A criação dessa Lei configura resposta esperada pela histórica
repressão às mulheres e pela falta de uma legislação que, de fato, enquadrasse
o problema e propusesse medidas à altura do sofrimento cotidiano, principal-
mente, no espaço doméstico. Por outro lado, para quem está na gestão dos
serviços oferecidos às mulheres, é possível se observar que parte desse aumento
de denúncias, além de permitir a visibilização do dia-a-dia opressor e violento
das mulheres expõe outras problemáticas que merecem destaque.
Paralelamente às melhorias que já se esperavam, vêm surgindo casos de
violência em que os homens não se sentem intimidados, uns por acreditarem
na impunidade, outros, por total despreocupação com as consequências.

19
Da parte de algumas mulheres, vêm ocorrendo casos em que a Lei Maria da
Penha tem sido usada como meio de se forjarem situações favoráveis que
propiciem a elas vantagens econômicas, a guarda de filhos e oportunidades
de vingança, frente à traição do companheiro e término do relacionamento.
Essa lista de ocorrências é complexa para classificação e estimativas numé-
ricas. Contudo, há um dado que dificilmente pode ser questionado, o qual
mostra a gravidade do problema e expõe a falta de investimentos nas medi-
das adequadas para a violência doméstica – o assassinato de mulheres.
No Mapa da Violência (Waiselfisz, 2012), é possível mensurar o cresci-
mento de assassinatos de mulheres. Segundo esse Mapa, desde 2007, um
ano após a aprovação da LMP, as taxas de mulheres mortas por homens vêm
crescendo, e esses assassinatos são praticados, na sua maioria, por maridos/
ex-maridos, namorados/ex-namorados. O Brasil chegou a patamares supe-
riores aos de 1996, um ano depois da aprovação da Lei 9.099/95 4, quando
a taxa de homicídios era de 4,6 mulheres assassinas a cada 100 mil mortes.
Em 2010, as mesmas taxas apresentadas em 1996 já podiam ser verificadas e,
pela forte ascensão desde 2007, há estimativas de que sejam observadas ta-
xas crescentes nunca antes registradas. Entre os estados brasileiros, o Espírito
Santo tem a maior taxa de homicídios de mulheres, que é de 9,8, na capital
Vitória, 13,2. A maior taxa entre os municípios brasileiros é de 24,7, verifica-
da na cidade de Paragominas, no Pará. Em resumo, numa lista de 84 países,
o Brasil está em sétimo lugar no ranking dos países com maiores taxas de
homicídios de mulheres. Os números indicam que os mecanismos de punição
e repressão têm se mostrado insuficientes na contenção do crescimento da
violência contra as mulheres.
Como já citado, parte do crescimento da violência contra as mulheres, que
tem evidente expressão no número de assassinatos, justifica-se tanto no des-
crédito dos homens no peso da Lei sobre os seus atos violentos como na sua
implacável busca de vingança contra as mulheres. Muito desses sentimentos
são reforçados pelo desserviço realizado pela mídia, ao destacar, quase que
diariamente, a precarização dos serviços públicos e, por outro lado, os fre-
quentes casos de violência e assassinato de mulheres. Isso tudo causa dúvidas,
medos e sensação de impotência por parte da mulher, frente ao crescente

20
número de casos de violência e à resposta lenta (ou ausente) por parte das
políticas públicas.
É inquestionável que, ao não tratar a violência doméstica como de me-
nor potencial ofensivo e prever medidas que assegurem a garantia de direi-
tos, a LMP avança em relação aos direitos humanos das mulheres; ela prevê a
autuação dos homens autores e a aplicação de medidas protetivas. Interessa
destacar que uma das recomendações importantes é a possibilidade de se rea-
lizarem encaminhamentos judiciais para medidas de educação e responsabili-
zação dos homens agressores. Na Lei Maria da Penha destacam-se:

Art. 35.  A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão


criar e promover, no limite das respectivas competências:
(...) V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Art. 45. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá
determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de
recuperação e reeducação.
(Brasil, 2006)

Apesar do avanço nas proposições da LMP sobre as possibilidades do enca-


minhamento a centros e programas para os homens autores de agressão, ob-
serva-se, na prática, após sete anos da aprovação da Lei, uma insignificante
preocupação em formulação e estimulação da criação dos referidos centros de
educação. Em 2008 a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM,
formulou e divulgou, em conjunto com outros Ministérios e com represen-
tantes da sociedade civil, uma “Proposta para Implementação dos Serviços
de Responsabilização e Educação dos Agressores” (SPM, 2008). Essa Propos-
ta orienta as instituições que já vinham atuando com os homens autores de
agressão, mas que não haviam criado condições para manutenção dos mesmos
e nem a estimulação e criação de novos Centros. Um das explicações é ainda
o lento desenvolvimento na atenção das mulheres vitimizadas pela violência
doméstica e a pequena rede de equipamentos e serviços. Como ilustrado no
Quadro 1, divulgado pela própria SPM, as redes de serviços para as mulheres
não abrangem um por cento dos municípios brasileiros.

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Quadro 1: serviços de atendimento à mulher disponíveis no brasil.

O Brasil tem mais de 5.500 municípios e apenas:

375 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher


115 Núcleos de atendimento
207 Centros de Referência (atenção social, psicológica e orientação jurídica)
72 Casas Abrigo
51 Juizados Especializados em Violência Doméstica
47 Varas Adaptadas

Fonte: Secretaria de Políticas para as Mulheres, (SPM, 2013).

No caso dos homens, o problema é ainda maior. Quando os homens são autu-
ados, na maioria dos casos, não são detidos em flagrante delito e aguardam
o julgamento em liberdade. Mesmo com as determinações das medidas pro-
tetivas para as mulheres, os homens ficam, às vezes, por meses, e até mais de
ano, aguardando a decisão final. Para as mulheres, permanece a sensação de
impunidade, e elas tornam-se alvos, em muitos casos, de novas ameaças, o
que gera novos boletins de ocorrências. Para os homens, por sua vez, além da
sensação de impunidade em relação à LMP, observa-se o aumento da revolta
contra as (ex)companheiras. Fica evidente que a LMP vem servindo apenas
como um modelo de contenção e que, mesmo assim, não ocorre pela falta de
serviços e de uma rede que atenda a demanda.
Apesar dos modestos avanços em relação às políticas públicas no enfren-
tamento da violência contra as mulheres, é inegável que a história e o acúmu-
lo de conhecimento sobre o assunto vêm formando, mesmo com o desserviço
da mídia, uma crescente rede de atenção às mulheres. Do ponto de vista teó-
rico e técnico, é evidente um aprimoramento dos aparatos de avaliação e clas-
sificação das dimensões dos sofrimentos e do empoderamento das mulheres.
Vem-se, também, formando um campo cuidadoso e cuidador para as mulhe-

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res sobre os significados e sentidos da vulnerabilidade, do risco, do compro-
metimento, dos direitos e das medidas protetivas. Nesse sentido, a produção
feminista e de gênero vem acumulando ao longo de décadas informações e
reflexões que auxiliam no entendimento da dimensão subjetiva das mulheres,
de forma geral, e das vitimizadas pela violência, em particular.
No caso dos homens reconhecidos como autores de agressão con-
tra as mulheres, há uma quase total ausência de políticas públicas. Os
avanços na produção teórica e temática sobre masculinidades ainda
estão longe de uma incorporação nas dimensões técnicas e nos aten-
dimentos. Dentro do sistema de justiça, o trato do homem agressor é
ainda marcado pela rotulação e classificação: da periculosidade; do
menor ou maior grau ofensivo; da tipificação das violências cometi-
das; e dos diagnósticos e prognósticos.
Na literatura, nas observações e nas conversas com os operadores da Lei,
existem ainda, nos casos em que os homens pedem para falar das suas queixas,
sofrimentos e justificativas. Por um lado, aponta-se uma lista de atitudes re-
correntes sobre as suas falas: descaso; deboche; ridicularização; desinteresse;
desvalorização; e desqualificação. Por outro lado, quando alguém se dispõe a
ouvi-los: dificuldades de entendimento; sensações de desconforto e incomo-
do; e resistências. Em suma, uma falta de recursos e repertórios por parte dos
técnicos – um não ouvir, ou, uma dificuldade de atentar para as multidetermi-
nações e o processo relacional das situações de conflito e da violência.
Nesse sentido, é possível se verificar o funcionamento de uma lógica dico-
tômica e uma justificável pré-disposição de culpabilização e penalização dos
homens a priori, em que qualquer forma de explicação por parte deles é tra-
tada como desculpa ou resistência à responsabilização. Uma lógica dicotômica
e pendular, pouco, ou quase nada, relacional.
Por mais que aparentemente verossímeis, os argumentos neste texto não
contribuem com a construção de uma despenalização ou desresponsabiliza-
ção dos homens autores de agressão contra as mulheres. Os argumentos cami-
nham para o reconhecimento da história de enfrentamentos, reflexão, lutas e
conquistas das garantias de direitos das mulheres, não só pelas mulheres, mas
também pelos homens.

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A proposição que permeia o presente texto é a de que, da mesma
forma que as mulheres precisaram (e ainda precisam) conhecer e se
empoderar das determinações sócio-históricas que as levaram à de-
sigualdade e à subordinação de gênero, os homens também precisam,
reconhecer e se empoderar das mesmas determinações sócio-históri-
cas. Mas, ao contrário das mulheres, os homens precisam se desobrigar: da
reprodução do sistema patriarcal/machista, marcado pela imposição da força
física, psicológica e econômica; da adesão ideológica a pressupostos essencia-
listas e naturalizantes que reforçam e reproduzem a lógica da desigualdade;
e, da subordinação como condição nas relações sociais e afetivas. Para que os
homens reconheçam as contradições nas promessas do sistema patriarcal/ma-
chista, fadado, para a maioria dos homens, ao fracasso. É no sentido do forta-
lecimento de ações de equidade de gênero que surgiram, vêm se mantendo e
se criando novos grupos, os de homens de forma geral e, de forma específica,
com os homens autores de agressão contra as mulheres.
As propostas dos trabalhos com homens autores de violência vêm se cons-
tituindo como recursos para as mais várias ordens: disciplinar; educativa; ree-
ducativa; de reabilitação; de atenção social; de responsabilização; preventiva
– menos a punitiva. Há muito tempo, a psicologia vem apontando para os
limites dos modelos punitivos, em favor de modelos em que a orientação é o
reforçamento, a estimulação, o aumento da percepção, a mudança de atitude,
a ressignificação e a consciência. Politicamente, a sociedade e os governos de-
vem apoiar todas as propostas que se dispõem a entender, denunciar, intervir
e atuar nas dinâmicas, nos ciclos, nas etapas, nas fases, nos contextos que
levam às desigualdades sociais e de gênero.
Desde antes da LMP, algumas iniciativas surgiram na sociedade civil com a
proposta de atuar com homens – como são os casos do Promundo, Noos, CES,
Pró-Mulher (ver Prates, 2013). Considerando o acúmulo de experiências e a fre-
quente divulgação dos trabalhos realizados pelas entidades, se faz necessário
não apenas avaliar os modelos de intervenção, mas também compartilhar e re-
forçar os princípios para que eles sirvam como guia para as propostas existentes
e na definição de diretrizes para as políticas públicas. Nesse sentido, o presente
estudo procura sistematizar e compartilhar as diretrizes do trabalho realizado

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com homens autores de agressão nos últimos sete anos na região da grande
São Paulo, fixada, atualmente, no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde5.

Trabalhos com grupos e processo grupal


O grupo, como alvo de pesquisa científica e formulação de tecnologias de
intervenção, se destacou no século XX no contexto norte-americano. Com
o objetivo de adequação e adaptação social à democracia americana, Kurt
Lewin (Fernández, 2006) é a principal referência na formulação de princípios
tais como campo grupal e dinâmica de grupo. Ao destacar a importância do
grupo como central na perspectiva da Gestalt (o todo é mais que soma das
partes) e como objeto de pesquisa e intervenção, Lewin retira o foco do indi-
víduo e pensa sobre as influências do clima grupal e das formas de liderança
na harmonização e na produção dos grupos, na mobilização, na adequação e
na modificação dos comportamentos. O autor busca, com isso, a adaptação
dos grupos ao contexto social. Ele trabalhará, por exemplo, com vários expe-
rimentos (um deles realizado com mulheres) sobre a modificação de hábitos
alimentares. Como exemplificado por Fernández (2006), em 1943, verificou-se
a resistência das donas de casa norte-americanas durante a Segunda Guerra
Mundial a incluir miúdos de animais na dieta alimentar, resistência superada
com a tomada de decisão em grupos. A autora afirma que:

‘Descobre’ que tomar uma decisão em grupo compromete mais para a


ação do que uma decisão individual; que é mais fácil mudar as ideias e
as normas de um grupo pequeno do que as dos indivíduos isolados (...)
e que a conformidade com o grupo é um elemento fundamental ante a
resistência interna para a mudança.
(FERNÁNDEZ, p. 68, 2006).

Até a década de 1970, todos os modelos de trabalhos e intervenção com


grupos pouco discutiram e incorporaram críticas nas dimensões éticas.
O ano de 1971 foi um marco na crítica do trabalho com grupos de homens.
Num trabalho conhecido como “o experimento de Stanford”, um grupo de
homens foi recrutado para participar de uma simulação de presídio. Nesse

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26
experimento, uma parte dos homens desempenhou o papel de presos e a
outra, de carcereiros. Inicialmente, o experimento estava marcado para durar
15 dias, porém foi abortado em cinco dias, pelo fato dos homens terem incor-
porado os papéis e estarem produzindo situações de abusos e violências. Este
caso, entre outros na época, estavam sob as normas éticas da “Declaração de
Helsinque”, formulada em 1964, que evitou maiores prejuízos, mas que neces-
sitou de revisão em 1975. No texto foi incluido que “em pesquisa com o ho-
mem, o interesse da ciência e da sociedade nunca deve ter precedência sobre
considerações relacionadas com o bem estar do indivíduo” (Helsinke, 1975).
Pela importância e poder transformador dos grupos (de emancipação ou
de manipulação), algumas discussões apontam, para outro ponto que deve
ser atentando: o risco do uso ideológico, dos desvios éticos ou das interven-
ções pautadas em concepções estigmatizantes ou patologizantes. Silvia Lane
(1984), referência na psicologia social no Brasil, destaca tal preocupação.
Em artigo, a pesquisadora sugere o conceito de processo grupal e propõe
a incorporação de uma leitura pautada por uma perspectiva sócio-histórica
nos trabalhos com grupos. Ao incluir a historicidade na leitura sobre as
propostas com grupos, Lane sugere incorporar uma dimensão não só
do entendimento técnico das dinâmicas de grupo e dos referenciais
teóricos, mas também das implicações ideológicas, dos modelos estig-
matizantes e/ou patologizantes. Independentemente das abordagens,
os trabalhos devem ser pautados por processos de educação e de for-
mação, que vejam o sujeito não somente marcado por determinações
sócio-históricas, mas, também, em constante construção e reconstru-
ção de seu processo identitário, por meio do qual possa reconhecer,
ampliar e transformar seus sentidos e significados em relação ao
mundo que o cerca.
Em conjunto com a orientação teórica no trabalho com os grupos, se faz
necessário princípios e concepções que orientem as intervenções, a partir
de uma perspectiva de responsabilização e de reflexão sobre os sistemas
de dominação e controle no qual os sujeitos foram socializados, pois são
esses sistemas que orientam suas concepções de mundo e justificam seus
comportamentos violentos. Será a partir dessa constatação que os homens

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poderão ampliar o leque de significados e construirão novas possibilidades
de construção de suas masculinidades e formas de lidar com os conflitos em
geral e de gênero.
O grupo para homens autores de violência contra a mulher é um
modelo de intervenção grupal que deve ter por objetivo provocar a
desconstrução e a mudança dos padrões naturalizados de gênero, vio-
lência de gênero e da masculinidade hegemônica. Nesses grupos, espe-
ra-se, por um lado, destacar e desconstruir a ideologia patriarcal/ma-
chista e, por outro, apresentar e possibilitar a construção individual e
coletiva de processos de socialização que têm como referência a equi-
dade de gênero e a formação de novas masculinidades.
Constata-se ainda, mesmo com a formulação de algumas produções cien-
tíficas no Brasil sobre as propostas de grupos com homens, que nenhuma se
debruça em detalhes na formulação de um conceito que delimite e oriente
as propostas. O presente artigo não objetiva formular uma definição, mas
contribuir com a demarcação de princípios e parâmetros científicos e éticos
que auxiliem na construção e criação das propostas de trabalhos com homens
autores de agressão. Pretende, também, levantar questionamentos que pre-
cisam de discussão e posicionamento. Para isso, como já foi citado anterior-
mente, será destacado uma síntese do que vem sendo alvo de reflexão e de
sistematização do trabalho realizado com os homens autores de violência na
cidade de São Paulo desde dezembro de 2006.

Reforçando princípios e pressupostos


Em artigo anterior, Andrade e Barbosa (2008), apontaram os princípios e pres-
supostos que, naquele momento, orientavam o trabalho com os homens au-
tores de agressão contra as mulheres. Princípios e pressupostos que, de certa
forma, se mantêm e merecem destaque pela orientação sócio-histórica. Essa
orientação, pela sua perspectiva crítica, demanda constante atenção e discus-
são na equipe técnica, entre os homens e nas discussões e apresentações em
outros contextos. Por outro lado, se incorporam, nesse texto, novos princípios,
alvos da constante discussão na equipe de facilitadores e de apoio. A delimi-
tação dos princípios e pressupostos se dá pela negação. A negação como uma

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forma de delimitação de contornos: limites e possibilidades do trabalho, a par-
tir do qual se constituirá a incorporação das orientações teóricas e técnicas.

• Os homens não são agressores


Primeiro equívoco – o do agressor. Nenhuma pessoa é agressiva 24 horas
por dia. Temos de reconhecer que a agressão é desencadeada por diver-
sos estímulos e que, na sua maioria, não determina a identidade de uma
pessoa. Logo, a pecha de agressor rotula e estigmatiza e deve ser revista,
assim como foram as de vítima, de menor infrator, de aidético. Há de se
pensar que o homem incorreu em um ato agressivo, foi autor de uma
agressão, mas esses eventos não devem configurar a marca, o rótulo de
agressor como identidade, ou, como diria Goffman (1982), como ‘identi-
dade deteriorada’. Sendo assim, na proposta de trabalho com homens,
utiliza-se a expressão homens autores de agressão/violência contra a mu-
lher, em lugar de homens agressores. Expressão que orienta facilitado-
res e participantes, na medida em que não determina que esses homens
sejam apenas agressores, mas que também são pessoas que vivem em
sociedade, trabalham, mantêm relações de amizade, namoram, casam,
são pais, filhos, entre outros. A adoção desse termo implica, também, a
adoção de uma posição que responsabiliza o autor do ato de violência,
fazendo recair sobre este as medidas previstas pelas leis brasileiras, acre-
ditando, porém, que este homem pode ser capaz de rever seus compor-
tamentos e assumir um processo de mudança, para o qual necessita de
apoio (Andrade e Barbosa, 2008).

De forma geral, o princípio se mantém, mas merece atenção ao fato de que exis-
te, sim, homem agressor 24 horas. Contudo, neste caso ele pode estar sofren-
do com algum comprometimento em sua saúde mental que necessite de algum
acompanhamento. No caso da concepção de autores de violência ou agressão
contra a mulher, ela se mantém para demarcar o caráter situacional do momento
que levou à agressão. Em outras palavras, que a violência ocorre em um deter-
minado momento, marcado por uma série de determinações e que se dá em um
contexto relacional. Sendo assim, reafirma a concepção de situação de violência.

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• Não é recuperação ou reabilitação
Segundo equívoco – da recuperação de homens autores de agressão. Re-
cuperar o quê? Não há nada a ser recuperado. Não há algo natural, in-
ternalizado ou aprendido que tenha sido perdido. Há, sim, que ser cons-
truídas para estes homens, e para toda a sociedade – homens e mulheres
– formas de socialização de respeito às diferenças e de extermínio das
hierarquias de gênero, raça e classe social. Proposta ainda em processo
de formação na cultura (Andrade e Barbosa, 2008).

A equipe continua não concordando com o prefixo “re” que acompanha di-
versas propostas e que consta no texto da LMP, no artigo 35 onde diz que “a
União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover
(...) centros de educação e de reabilitação para os agressores”. E no artigo
45 “o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação
e reeducação”. A ideia embutida no prefixo “re” é a de que já existiu um
momento onde o homem foi, na sua socialização, habilitado a se relacionar
em igualdade com as mulheres – a equipe não concorda que tenha existido tal
situação. A desigualdade de gênero aparece em todas as fases da socialização
– primária e secundária – e, sendo assim, precisa ser conhecida e desconstruída
e passar por processo de educação – sim, reabilitação e recuperação – não.

• Não é doença
Terceiro equívoco – o do tratamento. Na condução e na participação no
grupo de reflexão em São Caetano do Sul e em outras regiões, é possível
se afirmar que não há homens doentes nos grupos, pois, na sua maioria,
estes são saudáveis física e mentalmente. É, também, possível se afirmar
que todos aqueles que propagam o fim da violência contra as mulheres
concordam que o machismo e a violência de gênero não constam do CID
– Classificação Internacional de Doenças. Sendo assim, deve-se estranhar
e questionar a patologização individualizada da violência. Quando a vio-
lência é sintoma de patologia, esta deve ser tratada, mas este tratamento
deve atentar para a naturalização do discurso que, a priori, estigmatiza e
marginaliza segmentos da sociedade. Muitas vezes, esse discurso desvia

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da lógica patriarcal e machista que permeia a sociedade e busca “bodes
expiatórios” (Andrade e Barbosa, 2008).

Como já foi afirmado sobre a identidade de homem em situação de agres-


são, o mesmo ocorre com a perspectiva de tratamento. A individualização
descontextualiza o problema da violência de gênero contra as mulheres e
reforça a impossibilidade de mudança, permanecendo apenas o controle do
comportamento violento – com medicamentos ou terapias de manipulação
dos impulsos. Com isso, dificulta-se a desconstrução da dimensão histórica e
continua-se com a manutenção da ordem hierarquizada que impõe a violência
como mecanismo de dominação.

• Não é autoajuda
A autoajuda demarca a concepção do indivíduo independente, isolado e ca-
paz de superar sozinho suas limitações, independente das suas condições es-
truturais e determinações sócio-históricas. A ideia de que ele não precisa de
ajuda de ninguém e de que é capaz de resolver sozinho, é uma das caracterís-
ticas fortes na sociedade contemporânea, e que encontramos no dia-a-dia do
trabalho com os homens. Essa concepção é inspirada na ideia do – self-made
man. A alteridade e o contato social são os melhores balizadores dos compor-
tamentos. Contudo, devem-se avaliar quem e quais são as referências valori-
zadas como indicadores e atentar para o fato de que alguns estão demarcados
pela conformidade com as desigualdades de gênero, classe e raça.

• Não nascemos homens


O campo teórico que melhor dialoga com as perspectivas do trabalho com ho-
mens é o materialismo histórico e dialético. A violência de gênero é a expressão
da contradição de um sistema de sociedade que estabeleceu e naturalizou os
homens, pelas relações de trabalho e detentor dos espaços políticos e públicos,
como chefe de família, provedor e superior às mulheres. Por outro lado, esse
mesmo sistema convive com a impossibilidade da manutenção ideológica des-
te modelo com base nas mudanças socioeconômicas que vem ocorrendo nas
últimas décadas: entrada das mulheres no mercado de trabalho; precarização

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das relações de trabalho que enfraquece o lugar do homem como provedor
e fortalece (e obriga) a autonomia e participação da mulher; diminuição, em
relação às mulheres, da escolaridade dos homens; mudanças na composição,
atribuições de papéis e responsabilidades dentro da família; entre outras. As
violências, em geral, e as de gênero são expressões dessas contradições que,
quanto mais se evidenciam, mais expressam a agonia do sistema patriarcal. A
síntese que se visualiza é o reconhecimento da impotência do sistema no au-
mento do sofrimento dos homens e a construção e a valorização dos modelos
que fortalecem as mulheres e as colocam em destaque. Com base nesses pres-
supostos, as ações devem visar trazer os homens autores de agressão para o ce-
nário, não da manutenção da dominação de gênero, mas, em primeiro lugar, do
reconhecimento das suas limitações e fraquezas – do fim da fantasia de que o
mundo masculino tudo lhe daria. Com esse olhar é possível questionar o sistema
patriarcal e promover a desconstrução da ideia de essência masculina, abrindo
possibilidades da percepção e aprendizado da complexidade das relações e das
condições sociais atuais.

• Não à detenção
Neste contexto de ressignificação, as medidas socioeducativas são um impor-
tante recurso pedagógico e de reparo aos danos. Com a responsabilização dos
homens é possível a construção de novas referências das relações sociais por
meio da educação. No modelo punitivo, o que há é a repressão e a contenção, e
não a mudança de paradigmas. Os modelos repressivos e punitivos ainda conti-
nuarão importantes e referenciais enquanto as propostas socioeducativas com
homens de fato não se implantarem e se tornarem uma política pública, tão
recomendada como é hoje a propagada a favor da prisão. A equipe não acre-
dita que a restrição de liberdade é um bom modelo punitivo que proporciona
reflexão a novos patamares e a mudança de valores. Verifica-se para os homens
que foram detidos no sistema prisional, a necessidade de um trabalho posterior
de reorganização social e psíquica muito mais profunda e complexa. Uma inter-
venção de recomposição do homem para retomar o trabalho e a vida familiar e
afetiva. Um trabalho que para alguns é quase irrecuperável, uma ruptura pela
restrição ou falta de serviços de acompanhamento e atendimento.

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33
Condições para o trabalho em grupo
Os trabalhos com grupos de homens autores de violência no Brasil foram ado-
tados muito antes da LMP. No documento da SPM produzido em 2008, fica
definido que o trabalho se constitui em “serviços de responsabilização e edu-
cação dos agressores” sendo um dos objetivos específicos o de “promover
atividades educativas, pedagógicas e grupos reflexivos, a partir de uma pers-
pectiva de gênero feminista e de uma abordagem responsabilizante” (SPM,
2008). Os objetivos foram construídos de forma coletiva e sintetiza o que al-
guns grupos já vinham realizando como parte das atividades.
A proposta nomeada como reflexiva ainda carece de uma conceituação,
no entanto, nos relatos divulgados das propostas, ela evidencia influências
de cunho educativo nos seus objetivos e metodologia e, com pressupostos de
modelos terapêuticos da psicologia na formação, composição e contrato do
grupo. Eis aqui um ponto nodal que precisa ser ainda delimitado para avanço
das propostas. Todos concordam com os objetivos de promoção de atividades
educativas, pedagógicas para construção de novas referências na perspectiva
de gênero. Contudo, na constituição e dinâmica dos grupos, a fundamentação
resvala para a ética e o olhar que vem das propostas dos grupos terapêuticos.
Resumindo, os grupos estão mais para consultórios que para salas de aulas. É
um nó que precisa ser desatado, precisa de discussão.
A descrição dos pressupostos que orienta o trabalho com os gru-
pos de homens no Coletivo Feminista se pautou nas propostas existen-
tes nos demais grupos no Brasil. Porém, a proposta neste momento, é
a de síntese da experiência acumulada dos facilitadores e da equipe de
apoio nos últimos anos. A explicitação neste artigo dos princípios, pres-
supostos e condições do funcionamento do grupo, ajuda no amadure-
cimento da proposta com os outros grupos e com a sociedade sobre as
estratégias de enfrentamento da violência contra a mulher e sobre as
possibilidades de trabalho com os homens autores de agressão.

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• Trabalho exclusivo em grupo
O processo é exclusivamente grupal. Não existe atendimento individual.
Quando ocorre o atendimento individual é apenas para questões muito
particulares, que exigem segredo, encaminhamento para outros serviços,
ou por forte demanda e pressão do homem. A percepção, a discussão, e
a consciência devem partir do debate coletivo. No processo grupal é pos-
sível aprender e apreender as condições sócio-históricas da formação da
subjetividade – das desigualdades do sistema de dominação exploração
patriarcado-racista-capitalista, como propõe Saffioti (2004). No grupo, é
possível ao homem se perceber como sujeito sócio-histórico e reconhe-
cer as diversas formas de determinação social. Principalmente pelo re-
conhecimento e questionamento dos seus valores nos demais homens
participantes do grupo.
No processo grupal, como aponta Lane (1984), é possível a dupla negação:
(1) a negação da ideia de natureza humana, para a de indivíduo, produto e
produtor das dimensões sócio-históricas; e (2) a de indivíduo particular para o
de sujeito coletivo, que reconhece em e no grupo as dimensões ideológicas e
as contradições do sistema capitalista e patriarcal.
Nos modelos patologizantes e de atendimento individual, pode ocorrer
um processo muito mais de controle e punitivo, do que de desconstrução e
de ressignificação das determinações sociais. Ao focarem no indivíduo ou na
patologia, possibilita-se uma adequação e não uma transformação social das
desigualdades de gênero.

• Exclusivo de homens
Frente os vários pontos avaliados pela equipe técnica, um ponto particular
adotado foi a formação de grupos de homens com homens. Não há homofo-
bia, sexismo, misoginia, cumplicidade ou corporativismo na proposta. A pro-
posta busca concentrar esforços na busca de transparência e identificação dos
homens, das questões que norteiam os comportamentos violentos. Ao criar-se
um espaço de homens com homens cria-se um contexto propício para um rá-
pido vínculo e aceleração do processo de reflexão. A presença de outras variá-
veis, no caso de mulheres, pode se transformar os homens em bodes expiató-

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rios ou em intimidadores do processo. Como o grupo é aberto6 , os homens
chegam ao grupo e encontram um campo grupal definido que os acolhe, de
forma rápida e clara, e já deixa evidente o clima grupal de como será o vinculo
à proposta de trabalho no grupo. Da mesma forma que os movimentos de mu-
lheres, de homossexuais e de negros necessitaram, e ainda, em alguns contex-
tos, necessitam da construção de uma identidade coletiva enquanto segmento
social, o grupo de homens precisa ser construído com bases na identificação e
no questionamento do modelo patriarcal entre homens, em um contexto de
reconhecimento e compartilhamento coletivo aberto para sinceras manifes-
tações em todos os sentidos (ver Processo: abrindo a caixa de surpresas).

• Perfil dos homens participantes


Não há nenhuma necessidade de se definir o grupo a partir de um perfil de
classe social, cor/raça/etnia, escolaridade, contexto cultural, religião. Muito
pelo contrário, a diversidade do grupo enriquece e traz múltiplas referencias
para o debate. A diversidade destaca como a lógica da dominação patriar-
cal aparece em todos os contextos e passa pela representação de uma forma
machista, com sentidos particulares, mas com significados sociais comuns. A
busca de um processo de identificação entre os homens participantes e o reco-
nhecimento das suas questões em torno dos conflitos e da violência de gênero
contam com a diversidade cultural, mas devem evitar fatores muito destoan-
tes que desfoquem o grupo da sua proposta e criem bodes expiatórios. Neste
sentido, com o passar dos anos, vêm sendo depuradas algumas restrições para
a composição do grupo.
Uma restrição é em relação à saúde mental. Pode ocorrer a não inclu-
são ou a exclusão do grupo de homens com quadros psiquiátricos graves sem
acompanhamento médico (dependentes de drogas, alcoolistas e psicóticos).
Do ponto de vista legal, de homens autuados por homicídio, tentativa de ho-
micídio e de crimes sexuais. E, na perspectiva da execução penal, de homens
que passaram por períodos grandes de detenção. Quando ocorria a partici-
pação de homens com as situações citadas, muitas vezes o grupo desfocava
facilmente de sua tarefa. Quando um homem destaca as particularidades das
condições que viveu na prisão, chega alcoolizado ou em surto, ele se transfor-

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ma em foco único do grupo e desvia, minimiza ou banaliza o comportamento
dos demais homens com a justificativa, por exemplo, de que tem coisa pior.
É claro que essas restrições poderiam ser revistas e discutidas no grupo, se os
homens tivessem um maior tempo de participação.

• Número de participantes
Tendo como referência outras propostas, o número de participantes por gru-
po é de, no máximo, 15 homens autores de agressão. Nesse caso, o papel
dos facilitadores é fundamental no gerenciamento e participação do maior
número possível de homens. Considerando o processo de identificação que
ocorre no grupo, o silêncio e/ou não participação de alguns homens não cria
constrangimentos. Todos acabam sendo afetados pela discussão e, quase sem-
pre, todos, em um momento ou outro, se manifestam. No oposto, o número
mínimo, o grupo pode funcionar com apenas um homem. Não é o ideal, há
uma sensação de ausência e de falta de mais interlocutores, que muitas vezes
provoca a retomada da discussão em outro momento, em que tenha mais
homens participando. Mesmo assim, o grupo, na maioria das vezes, funciona
normalmente. O número de participantes também é determinado pelo tempo
de participação e de duração das reuniões.

• Tempo de participação e de duração das reuniões


O tempo e a frequência às reuniões é um acordo entre a instância jurídica, os
facilitadores, e os homens participantes do grupo. Para que o processo grupal
funcione, há um compromisso de todos de garantir o cumprimento do horário
e do número de reuniões indicadas.
O tempo de participação dos homens no grupo é um fator importante
para a formação de vínculo, a mobilização, o questionamento e a modificação
de comportamento. O número de reuniões para cada homem é de 16 en-
contros. Mesmo número indicado em outros grupos. A equipe considera que
atendido os requisitos de perfil dos homens e de exclusivo de homens é
possível realizar bom vínculo e obter bons resultados em favor da modifica-
ção de comportamento. Cada reunião dura em média duas horas. Em geral, a
reunião começa com uma tolerância de 15 minutos de atraso. Mas, em função

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do deslocamento dos homens e de chegarem após o horário de trabalho, a
equipe acolhe os retardatários – é melhor pouco do que nada.
De forma geral, se observa, principalmente, nas primeiras reuniões, uma
pequena resistência dos homens sobre o cumprimento dos tempos. Essa resis-
tência é logo superada, frente ao vínculo formado e a possibilidade de falarem
do que vinham vivenciando, desde antes da denúncia e que era interpretado
como desculpas após a autuação. A possibilidade do diálogo se revela, como
afirmou um dos homens, uma benção. Quando os homens estão bem integra-
dos e interessados, as reuniões muitas vezes extrapolam as duas horas, tendo
os facilitadores de encerrar a reunião, algumas vezes, sob protestos do grupo.

• Adesão inicial
Os homens chegam ao grupo por diferentes motivadores. A adesão ao grupo
pode ocorrer de forma espontânea (automotivação), voluntária (por orienta-
ção, pressão/ameaça ou indicação) ou compulsória (encaminhado pela justi-
ça). A composição dos grupos por motivos da adesão mudaram, e continuam
mudando, com o passar do tempo, por diversos motivos: entendimento da
LMP, divulgação na mídia, atendimento das mulheres e dos homens na rede.
Os grupos inicialmente tinham um caráter exclusivamente compulsório.
Com a autuação e a audiência, os homens são orientados a participarem dos
grupos para demonstrarem disposição de repensar seus comportamentos vio-
lentos e as situações que levaram serem denunciados. Com isso, a participação
nos grupos poderia, de acordo com o entendimento do/a juiz/a, ser um fator
positivo na definição da sentença. Esse é o principal motivador da participação
inicial dos homens, mas que, durante o processo se modifica para voluntário
e, considerando o envolvimento e o vínculo com o grupo, para espontâneo.
Um segundo grupo de homens é o encaminhado, que denominamos de
voluntários. Neste caso, o voluntário tem um mobilizador externo que o faz
tomar a decisão de conhecer e de participar do grupo. A mobilização ocor-
re, na maioria dos casos, com homens autores de agressão que não foram
denunciados. A participação no grupo é uma exigência por parte da mulher
agredida para a não denúncia. Em geral, são homens que foram indicados por
técnicos da rede de atenção à violência contra as mulheres, ou pessoas infor-

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madas que comentam sobre o trabalho. A preocupação com a possibilidade
da denúncia é o principal mobilizador, seguido, por parte do homem, do dese-
jo e da preocupação em não voltar a repetir a situação de violência.
Os homens que chegam espontaneamente são os menos frequentes. São
homens que não passaram por situações de violência contra as mulheres, ou
que, mesmo ocorrida a violência, não estão sob a pressão eminente da denún-
cia. São os definidos homens em crise. Homens que estão em questionamento
dos seus pressupostos de masculinidade e que gostariam de discutir e com-
partilhar com outros homens suas angústias (ver exemplo em Pra que serve
mesmo o homem?: a instalação da crise).

• Facilitadores dos grupos


O trabalho como facilitador de grupos em geral, e os que atuam com homens
autores de violência têm uma história, delimitações e perspectivas. O facili-
tador é, antes de tudo, um técnico de grupos e, como tal, conhece algumas
referências sobre intervenção, de e com grupos, e segue as recomendações
éticas do trabalho e da pesquisa determinadas pela sua categoria profissional.
Como técnico de grupo, o facilitador deve atuar focado no processo gru-
pal: nos papéis, nas relações de poder e dominação e na cultura. Independen-
temente da dinâmica utilizada ou da abordagem teórica, a leitura do sujeito
como produto-produtor do seu contexto histórico é imprescindível durante a
intervenção. Os facilitadores devem estar atentos para os pressupostos, com
as normas de implementação da SPM sobre capacitação em gênero e o fato do
grupo ser exclusivo de homens.
Na proposta do trabalho realizado pela equipe do Coletivo em São
Paulo, a perspectiva é a de que o grupo sirva como parâmetro de sociali-
zação masculina em outros contextos sociais dos homens. Como já dis-
cutido por outros autores, os espaços masculinos (trabalho, lazer, fu-
tebol, bar) são de reforço das referências patriarcais e machistas. Com
o tempo de vivencia no grupo, a perspectiva é de que os homens em seus
cotidianos constituam novas formas de socialização. Uma recomenda-
ção das mais diversas abordagens sobre trabalho com grupos é a de que esses
grupos contem com dois facilitadores. A equipe segue tal recomendação na

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maioria das reuniões, principalmente, pela possibilidade de falta de um dos
facilitadores. Outra decisão na condução das reuniões é de que a tarefa nunca
fique centrada em um deles, eles são cofacilitadores na condução do grupo.

Princípios éticos
Como apontado, os princípios éticos devem garantir os direitos dos indivíduos
participantes do grupo. Como não há uma determinação formalizada como di-
retriz para os grupos, a principal orientação deve ser a que guia as categorias
profissionais dos facilitadores. Sendo assim, um deles precisa ter um código
de ética e um órgão da categoria que orientem e fiscalizem a conduta profis-
sional, como são os casos dos profissionais das áreas da psicologia, do serviço
social, da medicina e do direito. De forma objetiva, três são os princípios éticos
compartilhados com os homens: o sigilo, o respeito e a não violência.

• Sigilo
Nos grupos, a principal condição de funcionamento é a possibilidade do sigilo.
Mesmo sendo uma referência para os Juizados e usado como medida de apli-
cação da LMP, é importante, para a possibilidade de mudança de paradigmas,
a garantia para os homens de ouvirem e serem ouvidos sem censura e controle
– sem a necessidade de simulação e de dissimulação.
Desde o início do processo criminal, o grupo é, para a maioria dos homens,
a primeira possibilidade de se falar do ocorrido sem o registro incriminatório.
O sigilo não é segredo. Todos podem e devem contar o que ocorre dentro do
grupo para seus amigos, mulheres e filhos. O processo de falar com outras pes-
soas fora do grupo é um sinal de mobilização e de reflexão. É indicador que
o processo no grupo está se expandindo para outras referências sociais. Tudo
pode ser falado, desde que garantido o contexto e os limites do interlocutor
– por exemplo – no caso de crianças. Só há uma restrição – não dar nome aos
bois – não identificar as pessoas envolvidas.

40
• Respeito
Todos podem falar, todos devem escutar. O diálogo é o mote do grupo e o
respeito às opiniões e à diversidade é a primeira desconstrução da hierarquia
patriarcal. A igualdade de condições propicia a possibilidade de todos ouvi-
rem e serem ouvidos.

• Não violência
A raiva, o ódio e o sentimento de injustiça e indignação são bem-vindos. A paz
e o amor são conversas fiadas, negação. A não violência é uma decisão.

41
Processo: abrindo a caixa de surpresas
Para entendimento dos processos e dinâmicas que orientam e ocorrem com os
grupos de homens, faz-se necessário destacar alguns argumentos utilizados
no grupo para explicação das contradições do fracasso do projeto patriarcal/
machista, entendido por parte das mulheres e desconhecido ou negado para
a maioria dos homens.
Em especial, nas últimas décadas, as mudanças nas condições sócio-histó-
ricas vêm construindo a agonia desse projeto. De forma resumida: a crescente
precarização nas relações de trabalho vem aumentando o desemprego dos
homens; o fim da estabilidade e os baixos salários; a diminuição dos homens
como responsáveis e chefes de família; o crescente número de mortes de ho-
mens jovens pela violência nos espaços públicos, principalmente no trânsito e
para a criminalidade; o aumento dos questionamentos e das críticas à lógica
de superioridade masculina e da subordinação das mulheres; e, a busca, por
parte de um segmento de homens, de novos modelos de afetividade, sexuali-
dade, divisão de tarefas e cuidado dos filhos.
Na prática, a sensação, para uma parte pequena dos homens que vive e
convive imerso na agonia do projeto patriarcal, é a de que há novas possibi-
lidades, mas, para a maioria, experimentam tais condições como ameaças e
conflitos. Frente ao desconhecido, a maioria se defende e se protege em busca
da sobrevivência social, psíquica e mesmo biológica. As incertezas e as inse-
guranças nas condições pré-estabelecidas, as expectativas normativas, levam
à necessária busca de revisão dos valores e das formas de relacionamento.
Revisão, que na maioria das vezes, caminha para a regressão e fortalecimento
de modelos conhecidos, que criam a ilusão de retomada à ordem, de conservar
princípios e valores seculares – princípios e valores do sistema dominante. Mo-
delos que reforçam a necessidade de tomar nas mãos o domínio e o controle e
resistir às ameaças, às tentações e à decadência, nem que seja pela imposição
da força e da violência. Para muitos homens um remédio amargo, mas neces-
sário uma jornada contra o caos – contra o apocalipse pessoal, familiar e social.
Na busca de novas referências para a sociedade em geral, e para os ho-
mens, em específico, que utilizam da violência como forma de resolução de
conflitos com as mulheres (companheiras, filhas, namoradas...), faz-se necessá-

42
rio atentar para os espaços de socialização masculina. Nesse mapeamento se
encontra como predominante os espaços que reforçam as masculinidades he-
gemônicas, representadas, por exemplo, pelas igrejas, instituições de ensino,
locais de trabalho, disputas esportivas e espaços de lazer (bares, boates ...). Na
perspectiva das novas possibilidades de reflexão, encontram-se os espaços res-
tritos de algumas universidades e os processos individuais psicoterapêuticos.
Virtualmente, pela internet, se verificam várias iniciativas de discussão dos pro-
blemas masculinos (por exemplo, o site papodehomem.com.br), mas poucos de
convivência e de socialização. Na tentativa de constituir um campo apropriado
para discussão, reflexão e convivência, os grupos de homens se apresentam
como uma proposta, de fato, que atenta para as necessidades de mudança.
Como apontado anteriormente, a história dos grupos de homens, nas
suas diversas perspectivas, vem sendo mapeada por diversos autores. Sendo
assim, os funcionamentos dos grupos de homens se constituem como labora-
tórios de exercício de novas formas de convivência e de socialização masculina
(ver Prates, 2013).
Antes de se destacarem algumas dinâmicas que ocorrem no grupo faz-
se importante apresentar-se o clima e as condições em que chega a maioria
dos homens nos grupos. Reforçando, os facilitadores e os homens no grupo
devem mapear e entender, não os processos particulares e individuais, mas
focar no processo grupal, coletivo, educativo. É imprescindível essa postura
para que os presentes no grupo não sejam seduzidos, por um lado, pela es-
petacularização, banalização e generalização, e por outro lado, pela particu-
larização, patologização e aberração do ponto de vista individual. Mapear as
referências é destacar o campo das determinações sociais de gênero, classe e
raça do grupo e facilitar no processo individual e coletivo de (des)construção
dos significados e sentidos.

• Estou sob uma mentira:


retirando a focinheira e mostrando os dentes
Destacar o clima emocional de funcionamento do grupo é a base para os questio-
namentos e propostas de revisão dos reportórios violentos. O primeiro e o prin-
cipal sentimento de comunhão e de vinculação no grupo é o de injustiça.

43
Muitas são as falas que exemplificam a indignação e o sentimento de injustiça
frente à denúncia: – estou aqui sob uma mentira; – nunca menti para ela, desde
que a conheci ela sabia que eu era assim, fiz e assumo o que fiz; – a mulher deve
obedecer ao homem; – o homem é a cabeça da família, eu não ia ficar humilhado
frente aos meus filhos; – homem pode, mulher não pode.
Um ponto é importante destacar, não se está trabalhando com homens
irresponsáveis, sem valores morais e sociais. Se chegaram reclamando de injus-
tiça, é porque compartilham de uma visão de justiça. São homens com fortes
e rígidos modelos morais. Representantes de valores patriarcais e religiosos,
naturalizados e transmitidos em sua formação que os definem como homens
com H maiúsculo. Padrões que justificam a violência como direito, muito bem
representado em provérbios como – quem não vem pelo amor, vem pela dor.
Concepção essa que explica a imposição da força e, se necessário, da morte,
pela honra e pela obrigação, por parte da mulher, do respeito. A justiça, ao
penalizarem os homens machistas, os transformam em mártires do patriarca-
do. É comum ouvir falas do tipo – fiz, assumo que fiz, e se precisar, farei de
novo, o famoso discurso do – não tolero coisa errada.
Imbuídos e fiéis aos seus valores, muitos homens trazem um histórico de
solidão. São recorrentes frases tais como: – eu não tenho nada pra falar; – can-
sei de tentar falar, ninguém me ouviu; – eu falo sozinho; – ninguém quer saber
da minha versão; – deus é minha testemunha.
A solidão é um problema do modelo de sociedade em que vivemos e que
afeta homens e mulheres. Trata-se de uma cultura individualista, das aparên-
cias, dos papéis demarcados e da lógica da vida privada. A solidão se expressa
num primeiro momento pela resistência e dificuldade de falar dos seus proble-
mas, ou pelo discurso vazio. Alguns homens autores de violência contra suas
mulheres contam vantagens das conquistas amorosas e da liberdade que di-
zem agora ter. Contudo, sinalizam a sensação de frugalidade e de superficia-
lidade em que vivem, que os levam à bebida e à resistência de envolvimento
em todos os contextos sociais, inclusive no próprio grupo.
O nível de percepção e de consciência sobre seu comportamento violento é
outro fator que se destaca. É uma mistura de desconhecimento dos direitos do
outro, das leis, de limitação intelectual, e da naturalização dos comportamen-

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tos. É o famoso: – eu sou assim; – homem é assim; – ela sabia que eu era assim; –
isso agora é violência?; – eu aprendi assim. Parece existir uma falta de foco e de
atenção sobre os seus relacionamentos, sobre as mudanças que vem ocorrendo
na sociedade, sobre os direitos das mulheres. É o funcionamento, com fortes
referências, da socialização na infância e na adolescência, que parece não se
atualizarem, que se cristalizam como essência de suas masculinidades.
A negação do sofrimento é uma dos mecanismos de defesa mais comuns
entre os homens: – estou bem! Não foi nada; – eu não estou nem aí. A nega-
ção é uma das barreiras mais difíceis de superação. A dificuldade de entrar
em contato com sua impotência é determinante no processo de trabalho no
grupo. Muitos aprenderam que; – homem não chora; – que sentimentalismo é
frescura, é coisa de homem fraco; – viadagem.
Como soldados, os homens estão protegidos com um escudo que
refrata qualquer identificação de tristeza e angústia. Posição que é
reforçada, por um lado, pela lógica do gozo eterno, vendida pelo mo-
delo de sociedade em que vivemos e, por outro, pela frágil educação
das emoções, uma carência de recursos para identificar e vivenciar
qualquer possibilidade de desconforto. Em ambos os casos, a busca de
alteração de consciência por meios químicos serve como estimulante
ou inibidor dos afetos – a farra como busca de gozo e as drogas como
anestésico das dores.
A banalização da violência como recurso pedagógico é outro ponto im-
portante: – eu apanhei a vida toda e tô aqui; – é melhor apanhar em casa que
apanhar na rua; – assim ela aprende quem sou eu; – se eu não posso bater,
como é que se educa?. A imposição da violência como recurso de adequação
do outro a um modelo de comportamento, é a uma lógica social ainda muito
reproduzida no senso comum, no sistema judiciário e na sociedade em geral.
É o famoso – é apanhando que se aprende. Com essas referências a violência
infligida contra a mulher não é vista como ruim, foi uma lição e a penalização
do homem nem sempre é vista como um problema: – foi pra eu ficar esperto.
Por fim, mas não o menos importante, há a reprodução de estereótipos
sobre o que são os homens e as mulheres. A dicotomia do modelo patriarcal/
machista é ainda a principal referência da subjetividade e da leitura do mundo

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para a maioria dos homens que frequentam os grupos: as milenares mulheres
santas/putas, de casa/da rua, do lar/da vida; de deus/do capeta; e os homens
macho/veado; trabalhador/bandido-vagabundo.
Todo esse conjunto de significados e sentidos com os quais os homens
chegam e vão, no decorrer do grupo, manifestando se transformam em ma-
terial para as reuniões de questionamento e desconstrução. É importante se
destacar que, no cotidiano, essas construções são reforçadas nos contextos de
socialização masculina e são pouco discutidas na relação com as mulheres e no
contexto familiar. Os grupos de homens surgem como lugar de acolhida e de
possibilidade sistemática de reflexão.
Abrir o grupo de homens a partir do clima emocional é abrir os homens
para um campo novo de experiências. Destacar os sentimentos de injustiça, a
negação do sofrimento, as formas de percepção, a banalização da violência
e a reprodução de estereótipos abre uma caixa de surpresas, de segredos e
possibilidades que pouquíssimas vezes são propiciadas aos homens em seu co-
tidiano. O processo grupal se configura como uma possibilidade de transfor-
mação da socialização masculina, fragmentos de um quebra-cabeça coletivo
que vão servir de matéria-prima para o manuseio e revisão.

Na prática: sobre a vivência nos grupos de homens


Aberta as caixas emocionais, coloca-se em destaque parte do processo do
funcionamento do grupo de homens. Em função da vivência da equipe de
facilitadores, e em, especial, deste autor, durante mais de seis anos de con-
tato frequente com os homens, se destacará as sínteses dos conteúdos mais
recorrentes compartilhados pelos homens. Nessa proposta, muito do que será
colocado passa pelos depoimentos dos homens e, também, pelo impacto so-
bre os facilitadores, não esquecendo que, também, são homens e participam
ativamente do processo.
Como foi afirmado, somente pontos compartilhados serão destacados,
com certeza, muitas outras questões aparecem de forma particular para
cada homem e facilitador. Por exemplo, um ponto que vem se destacando
neste momento, que vem sendo alvo de atenção e reflexão da equipe, é a
dimensão da violência de gênero que sofrem os homens. É cada vez mais

47
recorrente ouvir falas de homens que sofreram violência física, psico-
lógica e patrimonial. Queixas, na maioria das vezes, não acolhidas, pela
evidente vitimização das mulheres; pelo olhar dicotômico agressor-ví-
tima; pela banalização e negação do sofrimento masculino; pela resis-
tência e negação dos próprios homens; e, pela falta de recursos técni-
cos e psíquicos dos profissionais de lidar com a demanda.
Neste momento, o que se faz nesta apresentação é abrir uma nova pos-
sibilidade que só vem sendo possível pelo tempo de experiência, vivência e
reflexão sobre o trabalho com os homens. Deixa-se aqui destacado que, da
mesma forma que foi elaborado um ciclo da violência para as mulheres, se
visualiza um ciclo da violência para os homens. Está lançada a bola.

• Cutucando com vara curta: sobre as atividades


Os recursos são os mais variados e ficam a cargo da experiência e da criati-
vidade dos facilitadores no processo do grupo, as propostas de atividades.
Das mais simples às mais complexas, a intenção é mobilizar o grupo: cutucar
com vara curta.
Em geral, a organização de atividades segue uma linha que procura tra-
zer para discussão e reflexão as situações vividas pelos homens que os le-
varam a ser denunciados. Com as histórias, mobilizar o grupo a comparar as
situações que ocorreram com os demais, levantar os pontos em comuns e
opostos. Descrever as formas de violência, os motivos e as justificativas. Após
as descrições, levantar as alternativas e os sinais que indicavam as ameaças
de descontrole e de violência.
Uma forma de construir indicadores do clima de tensão que levou à vio-
lência é a imagem da panela de pressão, que, de forma lenta e gradual, vai au-
mentando a tensão até o limite do insuportável. A repressão e o acumulo de
tensão são muito frequentes. Como foi indicado anteriormente sobre o clima
emocional em que chegam os homens no grupo, há, em geral, uma negação
das emoções e da tensão no cotidiano, que chegam à percepção somente no
ponto da explosão para ambos – homem e mulher.

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Um bom exemplo foi a fala de um homem sobre a importância do grupo
para suportar a pressão cotidiana: – hoje eu percebo que às vezes me sinto
como um copo cheio até a boca. A sensação é de que, mais uma gota, tudo
pode transbordar. Quando saio da reunião é como se o meu copo fosse esvazia-
do mais da metade. Sinto-me aliviado e pronto para suportar mais uma semana.
Em função da tensão do grupo, as atividades programadas podem
ser, no início das reuniões, revistas e deixadas para outra ocasião, em
função da mobilização e demandas dos homens ou de algum ponto ur-
gente ou polemico que trazem para a discussão. Esta é uma atenção que
os facilitadores em geral devem desenvolver para estimular e fortale-
cer o grupo. São desvios na rota, mas não desvio da proposta. A priori-
dade, quase sempre, é de aproveitar as demandas e as oportunidades espon-
tâneas de comunicar e partilhar sentimentos. Principalmente pela dificuldade
que eles encontram em falar das suas emoções e angústias no seu cotidiano.
Entre os temas elencados para discussão, o grupo tem programado discu-
tir: a construção de gênero; sexualidade; família; Lei Maria da Penha; educa-
ção de filhos; trabalho; violência em geral e de gênero. Os recursos utilizados
são os mais diversos: vídeos; matérias de jornal; atividades lúdicas; dramatiza-
ções; tudo em acordo com a capacidade técnica dos facilitadores.

• Grupo aberto ou fechado


O grupo funciona de forma aberta. Como já foi explicado no item tempo e
duração, os homens entram em qualquer momento e são sugeridos a partici-
parem de 16 encontros. Na realidade, esta proposta não foi definida desde o
início como procedimento e estratégia para funcionamento do grupo. A pro-
posta aconteceu em resposta aos pedidos do sistema judiciário para a incorpo-
ração dos homens nos grupos a partir das audiências. Sendo assim, ocorreram
grupos fechados e, na maioria, grupos abertos.
Atualmente, as avaliações dos facilitadores e o retorno dos próprios
homens é que o modelo aberto é muito mais produtivo. É consenso que
o grupo aberto propicia parâmetros de acompanhamento e avaliação do
processo e, ainda, de envolvimento e de participação dos homens. Ocorre
que, com a entrada de homens em momentos diferentes, por exemplo, em

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um grupo onde a maioria encontra-se no décimo encontro, verifica-se a
percepção, para os homens que já estão a mais tempo, que a entrada de no-
vos homens serve como parâmetros de avaliação das condições de quando
chegaram ao grupo.
É como um retrato de como pensavam, viam e sentiam a situação e os
argumentos que orientavam seus sentimentos naquele momento. É comum,
aos homens há mais tempo no grupo, rirem dos novos membros. Não das
histórias que trouxeram os homens para o grupo, mas dos argumentos que
dão suporte as suas emoções de indignação e raiva. Com essa constatação os
homens colaboram no processo de recepção e de acolhimento dos novos ho-
mens, muitos com falas do tipo: – eu sei do que você esta falando, eu também
pensava assim.
Por sua vez, da parte dos homens recém-ingressantes, a recepção dos mais
antigos no grupo cria um clima de acolhimento desde a primeira reunião, o
que ajuda no processo de formação de vínculos, do estabelecimento do clima
e entendimento da proposta.

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Soltando os cachorros com sangue nos olhos: a catarse
Uma situação importante para os homens no grupo é a possibilidade da ex-
pressão das revoltas por todas as situações vividas. É a descarga de todo seu
ódio pela mulher que o denunciou, pela polícia, justiça, e, algumas vezes, con-
tra eles mesmos. A catarse pode ocorrer em diversos momentos, mas, em ge-
ral, há sempre uma logo após seu acolhimento no grupo.
Falar e ser ouvido sem censuras e, muitas vezes, ser apoiado pelo grupo,
reforça o vínculo. Contudo, é um momento tenso, pesado, marcado por uma
gama de sentimentos confusos e contraditórios. Após a catarse a avaliação na
equipe, e entre os próprios homens, é a de que todas as vezes que ela ocorre
na reunião, uma nova violência, um assassinato ou um suicídio, foi evitado (ou
numa visão mais negativa, foi adiado).
As catarses nem sempre são explosivas, podem ocorrer na expressão da
exposição de situações e fantasias com as mulheres como objeto, nas práticas
sexuais perversas, nos desejos de vingança e aditivadas com as histórias do
uso exagerado de drogas, abuso no trânsito, uso de armas – um enredo de
filme de ação e sexo dos mais violentos, em que o mocinho age como bandi-
do e ainda leva vantagem. Fica evidente para o grupo, nesses momentos, o
potencial de violência que ainda existe em muitos dos homens. Violência que
precisa ser trabalhada.

• Somos todos iguais esta noite : identificação


O processo grupal leva os homens a saírem de suas condições de indivíduos
e se perceberem enquanto grupo. A negação inicial da sua responsabilida-
de vai se afirmar, primeiro, no reconhecimento das suas emoções e da sua
masculinidade patriarcal. Essa afirmação transparece no grupo e levam à
responsabilização pela violência e pelas condições objetivas do ocorrido.
Situação que se amplia ao perceberem que as condições e emoções são
compartilhadas no grupo, no processo coletivo. A percepção e a discus-
são desse processo coletivo demandam uma explicação, uma historicida-
de, o entendimento da dimensão ideológica, da naturalização do sistema
patriarcal/machista, agora alvo de críticas e que abrem possibilidades de
construção de novas masculinidades. Nesses momentos de constatação e

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vivência se compartilha o emocionante momento do somos todos iguais
nesta noite. Experiência que propicia entender um pouco mais a dimensão
subjetiva e as determinações históricas.

• Saindo do lugar comum: ampliação das referências


Como já foi afirmado, é comum ouvir-se no discurso de alguns homens e na
mídia, por parte de figuras públicas que agrediram suas companheiras, frases
do tipo: – estou arrependido do que fiz; – pensei bem e prometo que não farei
mais; – agora eu sou um novo homem, aprendi minha lição. Ouvir tais afir-
mações é, no mínimo, risível. Alvo de crédito para aqueles e/ou aquelas que
acreditam na ação da mão de Deus na vida dos homens, ou para quem gosta
de se consolar com as músicas de Zezé di Camargo e Luciano.
Porém, como os milagres são para poucos, e nem todo mundo gosta de
música dor-de-cotovelo, para os demais mortais, a possibilidade de constru-
ção de mudanças vem com a educação. No caso dos homens autores de agres-
são, da ampliação de repertórios para a resolução de conflitos, bem como da
discussão do ocorrido e da leitura dos indicadores que levaram à situação e
das múltiplas possibilidades de resolução. Uma educação para a complexida-
de, da saída do lugar comum, ou, no mínimo, do estranhamento das respostas
e ações rápidas, ou seja, a construção de um processo educativo.
No grupo, quando um homem se dispõe a contar o ocorrido, os facilita-
dores propõem a frequente pergunta para os outros homens: – o que vocês
fariam no lugar dele?. Colocar-se no lugar do outro e levantar as possibilida-
des é um ótimo indicador de repertórios existentes e da inclusão de novas
possibilidades para reflexão.

• Pra que serve mesmo o homem? : a instalação da crise


O vídeo “Homem.com.h”, produzido pelo Instituto Ecos, em 1998, apresen-
ta uma discussão da crise da masculinidade na contemporaneidade. Material
utilizado nos grupos de homens, esse vídeo apresenta a crise de um homem
frente ao desemprego, a falta de “comparecimento” sexual e a ameaça de
separação. Ao se questionar, o homem em crise pergunta primeiro para outro
homem, – afinal, pra que serve mesmo nós homens?. Sem ouvir a resposta do

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outro homem, ele mesmo responde – o homem serve para comparecer duas
coisas, com pinto e com dinheiro. É só para isto que serve o homem.
O maior problema não é a angústia e a crise vivida pelo homem, mas a
forma como a sua esposa responde à sua insistente pergunta – afinal, pra que
serve o homem?. De forma agressiva e arredia ela responde: – sei lá pra que
serve o homem!. Nesse rápido diálogo deixa-se claro na proposta do vídeo o
que se destaca no cotidiano dos homens e que se reflete no grupo: o proble-
ma, neste momento, não é das mulheres.
As mulheres historicamente sabem o que querem e vêm lutando, há mui-
to tempo, para conquistar seu lugar na sociedade. O problema dos homens,
neste momento, é dos homens e merece, em alguns momentos, distanciamen-
to das mulheres e, para as mulheres que querem ficar por perto, precisam de
muita paciência e tolerância, mas não de respostas. Da mesma forma que
as mulheres se organizaram e vem lutando contra a desigualdade de
gênero, agora é a vez dos homens se transformarem em protagonistas
desse processo de mudança nas relações afetivas e de gênero para for-
mularem as novas possibilidades de masculinidades. Sair do lugar de
luta – de defesa e ataque. Depositarem suas armas e as armaduras. Isso
só é possível em um campo e em condições propícias e este contexto é o
que ocorre nos grupos de homens.

Acompanhamento, sistematização e indicadores de avaliação


No momento os grupos vêm sendo tratados, pelo pouco tempo de existência
e pela falta de recursos, como projetos-pilotos. Sendo assim, alguns traba-
lhos e propostas de sistematização ocorrem em artigos, dissertações e teses.
Para tanto, os recursos documentais e de registro servem como matéria-prima
imprescindível para a formulação de projetos de pesquisa e como orientado-
res para a formulação de políticas públicas. Como recurso administrativo de
acompanhamento do trabalho com os homens e que servem para pesquisas,
destaca-se na ordem dos acontecimentos: os números e as sistematizações
dos disque-denúncias, principalmente os números 180 e 190; os boletins de
ocorrência elaborados nas Delegacias em geral e nas Delegacias de Defesa
das Mulheres; os processos de autuação dos homens autores de agressão nas

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Varas de Violência Domésticas e Familiar Contra a Mulher; os ofícios de enca-
minhamento dos homens para os grupos de homens; os questionários aplica-
dos para elaboração do perfil dos homens participantes dos grupos; as listas
de presença; as gravações em áudio e/ou vídeo das reuniões; as entrevistas e
depoimentos para meios de comunicação (jornais, televisões, internet) dos
facilitadores e dos homens participantes ou não dos grupos; o material dispo-
nibilizado pelos homens participantes dos grupos (cartas, fotos, documentos,
gravações etc.); e relatórios elaborados pelos facilitadores.
Todo este acervo serve de fonte primária para a sistematização e discus-
são do que vem ocorrendo nos grupos de homens. No acompanhamento dos
homens, muitos dos elementos expostos desde a denúncia até o processo gru-
pal são indicadores objetivos e subjetivos do impacto do grupo sobre os ho-
mens autores de agressão. Com certeza, por melhores que sejam os indicado-
res durante o processo grupal, ainda resta construir ferramentas e indicadores
que avaliem o que de fato vem ocorrendo com os homens pós-grupo. Falta a
construção de pesquisas de acompanhamento (follow-up).
Com certeza a amostra de homens que passaram pelos grupos em todo
o Brasil já é mais do que suficiente para o reconhecimento e validação das
propostas e acredita-se que servirão de argumentos consistentes para a cria-
ção de políticas públicas que incorporem de fato o trabalho com os homens
autores de violência e, também, projetos de prevenção e educação em outros
contextos: escola, trabalho, igrejas, espaços de lazer, entre outros.

Da Maria da Penha ao Zé da Lapa: um longo percurso


Em São Paulo, desde a época dos bondes, existiu, na cidade de São Paulo,
uma linha que ia do bairro da Penha, na zona leste, ao bairro da Lapa, na
zona oeste. Eram 36 km cortados pelo centro da cidade. A linha era uma
representação, para os trabalhadores que dependiam do ônibus, de pontos
extremos da cidade que somente com muito tempo e paciência conseguiam
chegar ao seu destino.
No grupo de homens, muitas vezes esta representação aparece para os
mais antigos, quando se fala da dificuldade de homens e mulheres se enten-
derem e superarem a violência doméstica. As mulheres conquistaram a sua

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Maria da Penha, agora falta um Zé da Lapa – uma lei que atenda às queixas
dos homens que sofrem violência de gênero por parte das mulheres.
Mesmo quando questionados sobre a ideia de uma lei que atenda aos
homens, fica evidente, para a maioria, a carência de um espaço de atenção às
demandas, à violência social e às crises dos homens. Quando percebem o que
está acontecendo, permanece a sensação de um lugar distante, um caminho
longo e difícil de chegar.
Na discussão da violência doméstica e de gênero é preciso, além da conten-
ção da violência perpetrada pelos homens, criarem-se mecanismos de identifica-
ção da violência social de forma geral, uma vez que a precarização das relações
de trabalho e afetivas atingem a todos, vulnerabilizando homens e mulheres.
Como toda a atividade de intervenção, o trabalho com o grupo de
homens autores de violência contra as mulheres busca modificar as condi-
ções, pensamentos e comportamentos que ambos têm sobre a violência e
as relações de gênero. Espera-se no primeiro momento, no próprio proces-
so do grupo, que os homens: desenvolvam uma sensação de desconforto
e questionamento do comportamento agressivo; possam criar mecanismos
de contensão da agressividade; que aos poucos, conheçam formas alterna-
tivas de lidar com os conflitos; e que busquem seus direitos, incluindo aí a
aceitação de figuras de mediação. Que, ao final, criem um estranhamente
sobre o modelo patriarcal/machista; que levem para as suas relações uma
maior abertura para o diálogo; que ampliem as expressões de sentimentos;
formem um pensamento complexo sobre as diferenças sociais e de gênero;
não se omitam frente a situações de violência. Com desejo final, que estes
homens consigam formular e discutir propostas de equidade de gênero, de
participarem de ações pelo fim da violência como estratégia de resolução de
conflitos. Um mundo mais justo para todos.
Em 1983, o cantor e compositor Gonzaguinha compôs uma música que
resume a proposta deste texto. Ao escrever “Um homem também chora”, com
o subtítulo “menino guerreiro”, ele assume para a “menina morena”, prova-
velmente uma paixão, aquilo que um homem sente e deseja, mas se recusa a
reconhecer, e que o grupo de homens procura desvelar e trabalhar. Isso evi-
dencia que não estamos no momento de afirmações de novas masculinidades,

55
mas de negação das masculinidades hegemônicas e na busca de entender as
novas possibilidades de ser homem. O momento é de reconhecer e aceitar que

Um homem também chora / Menina morena /


Também deseja colo / Palavras amenas... /
Precisa de carinho / Precisa de ternura /
Precisa de um abraço / Da própria candura... /
Guerreiros são pessoas / Tão fortes, tão frágeis /
Guerreiros são meninos / No fundo do peito... /
Precisam de um descanso / Precisam de um
remanso / Precisam de um sono / Que os tornem
refeitos... / É triste ver meu homem / Guerreiro
menino / Com a barra do seu tempo / Por sobre
seus ombros... / Eu vejo que ele berra / Eu vejo
que ele sangra / A dor que tem no peito /
Pois ama e ama... / Um homem se humilha /
Se castram seu sonho / Seu sonho é sua vida /
E vida é trabalho... / E sem o seu trabalho /

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O homem não tem honra / E sem a sua honra /
Se morre, se mata... / Não dá pra ser feliz /
Não dá pra ser feliz...

1. Texto apresentado para o Seminário Feminismos e Masculinidades: percursos, propos-


tas e desafios para a equidade de gênero. Coordenação: Eva Alterman Blay. Data:
02/10/2013. Local: Prédio de Filosofia e Ciências Sociais da USP/SP.
2. Texto originalmente publicado em: Feminismos e masculinidades: novos caminhos
para enfrentar a violência contra a mulher/ organização Eva Alterman Blay. 1- ed.
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.
3. Leandro Feitosa Andrade – doutor em psicologia social pela PUC/SP, facilitador
nos grupos de homens autores de violência contra a mulher no Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde, professor na PUC/SP e na FMU. e-mail: leandrofandrade@uol.
com.br.
4. A Lei 9.099/95 versa sobre as infrações penais de menor potencial ofensivo, as contra-
venções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos.
5. O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde é uma Organização Não Governamental
que desenvolve desde 1985 um trabalho de atenção primária à saúde da mulher
com uma perspectiva feminista e humanizada. Localizada no bairro de Pinheiros na
cidade de São Paulo. Site: www.mulheres.org.br. Durante o texto quando citado “a
equipe de trabalho” entenda-se o grupo que atua como facilitadores e de apoio que
são: Sérgio Flávio Barbosa, Tales Mistura Furtado e Paula Licursi Prates.
6. O negrito serve para orientar que o ponto destacado foi ou será apresentado em
outro momento no texto.

57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACOSTA, F.; FILHO, A. A.; BRONZ, A. Conversas homem a homem: grupo
reflexivo de gênero. Metodologia. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2004.

ANDRADE, L. F.; BARBOSA, S. F. A Lei Maria da Penha e a implementação


do grupo de reflexão para homens autores de violência contra mulheres
em São Paulo. Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: Florianópolis:
UFSC, 2008.<http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST42/Andrade-
Barbosa_42.pdf>. Acesso em: setembro de 2013.

BRASIL. Lei n.º 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para


coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §
8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em:
setembro de 2013.

FERNÁNDEZ, Ana Maria. O campo grupal: notas para genealogia. São Paulo :
Martins Fontes, 2006.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade


deteriorada. São Paulo: LTC, 1988.

Helsinki. Declaração de Helsinki II. Tóquio : Associação Médica Mundial.


1975. Disponível em: http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin2.htm. Acesso em
setembro de 2013.

LANE, Silvia T. M. O processo grupal. In: Psicologia social: o homem em


movimento. São Paulo : Editora Brasiliense. 1984.

58
PRATES, P. L. A pena que vale a pena: alcances e limites de grupos reflexivos
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Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências). São
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SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação


Perseu Abramo, 2004. (Coleção Brasil Urgente).

SPM. Secretaria de Políticas para as Mulheres, (SPM, 2013). Disponível no site:


http://sepm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2011/07/reuniao-em-brasilia-
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contra-a-mulher/ Acesso em: setembro de 2013.

Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012. Atualização: homicídios


de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro : CEBELA, 2012.

59
Gente
Carne, osso, alma e sentimento,
tudo isso ao mesmo tempo

Outro
Tudo que não cabe no
espaço que você ocupa

Loucura
É coisa que quem não tem só
pode ser completamente louco

Único
Aquele que pela facilidade de virar
nenhum, pede cuidado

Dicionário de palavras ao vento, Adriana Falcão

60
dos muros visíveis aos invisíveis:
das políticas sociais atuais
para cuidados da população em
sofrimento nas cidades
Patrícia Rodrigues Rocha1

A organização da sociedade brasileira foi pautada em lógicas de exploração


e exclusão desde a colonização do país, com processos de escravização e ex-
termínio de povos indígenas e um dos mais contumaz processos de escravidão
da população negra vinda da África, baseada, como sabemos, em castigos
corporais graves e um processo de objetificação subjetiva dessa população.
A história brasileira é marcada por hegemonias que geraram muita vio-
lência e ainda geram.
Com a loucura não é diferente, ao contrário: os imaginários sobre a lou-
cura – sua periculosidade, sua necessidade de exclusão e de supressão – são
sustentados até hoje nas figuras de linguagem e nas conversas cotidianas
informais. Quem de nós não coloca as frases: “ela só pode estar louca”, “tá
maluco!”, “ihhh precisa ser internado!” com certa constância?
É a partir de um tempo de abertura do processo democrático brasileiro
que esse tema começa a ser questionado mais contundentemente: na década
de 1980, com a formação de uma sociedade que estava em vias de lutar pela
democracia, por uma constituição cidadã, e em busca de um alinhamento com
os grandes tratados internacionais a partir da Carta de 19882. Neste cenário
social é que surgem os primeiros movimentos de trabalhadores e usuários de
saúde mental, aguerridos pela bandeira da Luta Antimanicomial.

61
O Movimento da Luta Antimanicomial se caracteriza pela luta pe-
los direitos das pessoas com sofrimento mental. Dentro dessa luta
está o combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimen-
to mental em nome de pretensos tratamentos, ideia baseada apenas
nos preconceitos que cercam a doença mental. Faz lembrar que, como
todo cidadão, essas pessoas têm o direito fundamental à liberdade, o
direito a viver em sociedade, além do direto a receber cuidado e trata-
mento, sem que para isto tenham que abrir mão de seu qualquer Direi-
to Fundamental e de seu status de sujeito.
A Política de Saúde Mental (Lei 10.216/2001) “tem como uma de suas princi-
pais diretrizes a reestruturação da assistência hospitalar psiquiátrica, objetivando
uma redução gradual, programada e pactuada dos leitos psiquiátricos de baixa
qualidade hospitalar” (BRASIL, 2011a, SP). Apesar de ser considerada um impor-
tante ganho para o Movimento de Reforma Psiquiátrica, essa lei traz elementos
muito distantes do projeto original (do deputado Paulo Delgado). A extinção dos
manicômios e a substituição por outros serviços foram substituídas pelo redirecio-
namento e pela política de proteção de direitos (LUZIO; YASUI, 2010).
A partir do novo modo de práticas de saúde mental, outros desafios são
lançados e modificações nas bases socioculturais das cidades e do país são pos-
tas, já que outro lugar social é colocado aos loucos e à loucura. Agora visível e
incômoda, a loucura está na casa, na família e nas ruas. Na prática, hoje, tanto
os atores sociais da saúde, quanto os da assistência social, por exemplo, têm se
relacionado com o novo paradigma do sofrimento mental e tem sido forçados
a lançar mão de recursos mais complexos e ousados para o acolhimento das
pessoas nas cidades.
O que se apresenta como grande desafio é que não há mais a necessida-
de de classificação das pessoas a partir dos sintomas de seus sofrimen-
tos, pois não é mais esta classificação que lhes garante o total do cuidado e
acolhimento, mas o olhar amplo para suas questões, suas condições de vida e
de relação com o mundo, suas habilidades e apropriação de seus direitos, que
vão trilhar caminhos de atenção para melhoria de sua vida.

62
Para que essa complexidade se
coloque a frente de questões
psicopatológicas e sua associação
simplista com a ‘periculosidade’, há
um processo fundamental: a empatia.
O reconhecimento do outro como
semelhante, como alguém que tem
direitos, como alguém que tem
potência de resiliência3 e superação,
assim como eu.
É no colocar-se no lugar simbólico do outro que o trabalhador social pode-
rá reconhecer as estratégias possíveis de garantia de direitos, para além das
propostas burocráticas e estreitas das políticas públicas e com a criatividade
necessária para acionar outros pontos de apoio a essa pessoa.
A reforma psiquiátrica avança ainda hoje, pois já coloca à sociedade uma
problemática questão sobre a vida humana: se já não se tem os muros visí-
veis para conter o desconhecido ou o estranho, como nos relacionarmos com
este estranho sem que seja tão violento quanto o muro (in)visível da cidade?
São hoje os trabalhadores das políticas sociais (incluindo nesta consigna os
da assistência social, da saúde, da educação, cultura e direito) que devem se
debruçar sobre essa questão, causando assim uma possibilidade de encontro
com essa população e organizando outras possibilidades de relação.

63
Cada encontro com o sofrimento humano, com a complexidade das re-
lações vividas e com as realidades da garantia de direito de fato, é que vai
traçar as necessidades de parcerias, as aberturas e os desvios que serão impe-
riosos nas trajetórias do cuidado compartilhado. Nem a saúde deve mais se
colocar como onipotente para a compreensão do que é o sofrimento
e de como cuidá-lo, nem as outras políticas podem mais se desrespon-
sabilizar por este cuidado, que agora passa a outras dimensões que
não só o corpo e suas linguagens, mas como se garante as relações
de vida em uma sociedade e, portanto, as questões estruturantes da
vida dos sujeitos. Empiricamente, nota-se que as abordagens que garan-
tem renda, contrato social, protagonismo e autonomia são as que inclusive
em inúmeras vezes fazem efeitos terapêuticos mais eficazes que qualquer
medicação psiquiátrica ou divã quando solitariamente ofertados.
Por fim resta concluir que uma nova ordem social está sendo criada cotidia-
namente, no contato com o sofrimento e com a empatia pelo outro. Os signos
dos laços sociais estão sendo refeitos, mesmo que ainda busquem-se com cons-
tância as respostas excludentes de outrora. É a partir do impacto real que a falta
do manicômio dá a sociedade, que outros jeitos de cuidado serão construídos.
Ainda há muito a percorrer, mas agora, não mais solitariamente. Os caminhos
devem ser compartilhados e assim há de se superar as questões de estigma pos-
tas para a loucura.

1. Patrícia Rodrigues Rocha – Especialista em Violência Contra Criança e Adolescente


(IP USP) e Supervisora de Equipe do CAPS II Infantil Brasilândia – Cidade de SP.
2. O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de Direitos
Humanos pelo Direito Brasileiros foi a ratificação em 1989, da Convenção contra
a tortura e Outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. A partir esta
ratificação, inúmeros outros instrumentos importantes internacionais de proteção
dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito brasileiro, sob a
égide da Constituição Federal de 1988.
3. Resiliência: substantivo feminino 1.fís propriedade que alguns corpos apresentam de
retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica.
2.fig. capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças.

64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARANTE, P. Uma aventura no manicômio: a trajetória de Franco Basaglia.
Historia, Ciências e Saúde – Manguinhos, I (1): 61-77, jul-out 1994.

BASAGLIA, F. A Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico. 2ed.,


Rio de Janeiro: Ed Fiocruz, 1995.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde DAPE, Saúde


Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção.
Relatório de Gestão 2003 – 2006. Brasília, janeiro, 2007.

LUZIO, C. A; YASUI, S. Além das Portarias: desafios das políticas de saúde


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PLANTIER, B. P. A. Dos muros dos Manicômios para os muros (in)visíveis da


cidade: sobre os desafios da reforma psiquiátrica Brasileira. Dissertação de
Mestrado apresentada à Faculdade de Saúde Publica da USP, São Paulo, 2015.

65
66
coletivizar demandas:
as falas e seus destinos
CARiNA FERREiRA guEDEs1
FERNANDA ghiRiNghEllO sAtO2

Trabalhar de forma coletiva nos serviços da Assistência Social é, além de


uma diretriz de trabalho, uma premissa ética. Ao considerar que as vul-
nerabilidades são produzidas naS relações, trabalhá-las também no
âmbito das relações corresponde a uma resposta que incorpora uma
ética, e uma política, de resistência à lógica individualizante.
Tal ética não está colada, no entanto, a dispositivo único de intervenção: da
mesma forma que atendimentos ou acompanhamentos individuais não tradu-
zem, necessariamente, uma concepção individualizante de homem, os dispositi-
vos grupais também não garantem uma visão relacional. As diretrizes de traba-
lho se constituem a partir da visão de homem e de sofrimento da qual partimos,
muito embora alguns dispositivos tenham mais potência de enfrentamento,
principalmente ao considerar a natureza e finalidade pública dos serviços.
A orientação de coletivização de demandas é bem clara nas normativas,
por exemplo, em relação ao PAIF e Serviços de Convivência:

O PAIF dispõe de ações de caráter individual e coletivo, por isso, é neces-


sário que haja uma sinergia entre essas duas dimensões, caso contrário, há
um risco de reduzir o serviço apenas a atendimentos individualizados, em
que as atividades cadastrais e de encaminhamentos se sobreponham aos
espaços coletivos. Assim como o PAIF prevê ações em direção à coletivi-
zação das demandas das famílias atendidas, fundamentado no
entendimento de que as questões vivenciadas por uma família podem ser
a de tantas outras que vivem no território de abrangência do CRAS, o SCFV

67
também desenvolve ações nessa perspectiva. A organização do serviço em
grupos também responde à necessidade de entender a família e o territó-
rio como lócus de reprodução de desproteções e vulnerabilidades similares.
(MDS, 2015, p. 17, grifo nosso)

A coletivização está fundamentada, nesse sentido, tanto na possível similarida-


de das questões vivenciadas pelo público atendido, quanto na consideração de
que as relações com a família e com a comunidade do território podem reprodu-
zir ou fornecer alternativas às vulnerabilidades relacionais. Ao se trabalhar de
forma a buscar o que há de comum entre as questões que os usuários
dirigem aos profissionais do serviço, evita-se que questões produzidas
no coletivo como, por exemplo, a desigualdade social, o preconceito e
a violência, recaiam apenas sobre um indivíduo, em uma lógica culpabi-
lizante e vitimizadora.
Tais premissas podem ser validadas também em relação aos Serviços de
Acolhimento: compreendendo que este serviço deve criar estratégias para
contribuir com a reparação de vivências de separação e violência e com a
apropriação e ressignificação das histórias de vida das crianças e adolescentes
acolhidos (CONANDA/CNAS, 2008), e considerando que todas as crianças aco-
lhidas passaram por situações de violência e separação – nem que esta tenha
sido apenas o próprio acolhimento - é fundamental proporcionar espaços e
dispositivos que possam favorecer que as relações entre elas, e delas com os
atores institucionais, sejam protetivas. Evidencia-se, assim, a íntima relação de
um trabalho voltado ao coletivo e de um trabalho institucional.
A ideia de coletivização presente nessa diretriz traz como um de seus prin-
cípios, portanto, a indissociabilidade entre indivíduo e sociedade e a impor-
tância de considerá-lo sempre em relação ao outro, ao território, à sociedade.
Alencar (2011), através de sua experiência em um serviço público de saúde,
discute que uma das consequências dessa relação inextrincável entre indiví-
duo e sociedade é que os atendimentos, seja individuais ou grupais, não tem
um fim em si mesmo. Em suas palavras:

68
Os atendimentos individuais e em grupo constituíam-se em âncora para as
práticas que foram sendo criadas e que tinham como alvo a saúde individu-
al e coletiva. Esta perspectiva marca uma primeira questão a ser pontuada
com a descrição de práticas e ações desencadeadas a partir de um serviço
de saúde: a de que os atendimentos individuais e em grupo não tinham fim
em si mesmo. Com isto queremos destacar dois aspectos: o primeiro deles é
que todas as ações desenvolvidas foram disparadas a partir da demanda e
dos conteúdos que emergiam nos atendimentos. A partir da demanda era
possível observar questões e problemáticas que se forjavam na realidade
da população, que ultrapassavam uma formação sintomática individual e
isolada. (…) Estas situações e questões mostram sua articulação como pro-
blemática que aponta a necessidade de intervenção para além da respostas
aos casos como individuais. Nesta perspectiva, a demanda é guia para o
planejamento e propostas de ações a serem realizadas pelo serviço de saú-
de. É a partir do que é demandado ou que se apresenta como problemática
que temos direção para as ações, que envolvem e articulam outros setores.
(ALENCAR, 2011, p. 133/4)

Nesse sentido, a “coletivização de demandas” corresponde menos à


passagem do atendimento individual ao grupal e mais à visão de que
as questões de um caso, por não se encerrarem em si, devem ser guias
para a criação de dispositivos de atendimento e para o planejamento
e execução de ações realizadas pelo serviço. Para pensar em como elas
podem ser trabalhadas para além do caso, é importante compreender o outro
termo da expressão, a demanda.

Garrafas ao mar
A partir da psicanálise, entendemos que a demanda corresponde a um pedido
de algo dirigido a alguém, de quem espera-se uma resposta. A dimensão de
uma alteridade, está, nesse sentido, fundamentalmente ligada à possibilidade
de demandar, assim como a própria constituição da subjetividade.
Lacan propõe uma diferenciação entre o pequeno outro, grafado em mi-
núsculas, que se refere ao outro ao semelhante, com quem nos relacionamos,

69
e o grande Outro, campo da cultura e da linguagem, que antece o sujeito,
de onde provém os significantes que o constituem e o representam. Na cons-
tituição subjetiva, são os pais, ou seus representantes, que, como pequenos
outros, ocupam para a criança o lugar de grande Outro, inserindo o bebê na
cultura e no campo da linguagem. Por exemplo, são eles que interpretam o
grito ou choro do bebê como um apelo dirigido a eles, um apelo de fome,
em outras palavras, uma demanda. É ao tomarem esse grito como demanda
dirigida a eles que, não só podem assim responder à fome, quanto inserem o
grito e o bebê no campo da linguagem, fundando uma subjetividade.
Nesse aspecto, vale lembrar os estudos de René Spitz com bebês aban-
donados que estava hospitalizados praticamente sem interações humanas
(SPITZ, 1996). Spitz observou que alguns desses bebês não choravam, nem
emitiam nenhum som, caracterizando o que ele chamou de hospitalismo, um
síndrome de depressão grave que, se não cuidada, levava ao atraso no de-
senvolvimento e, inclusive, à morte. Este estudo pioneiro de Spitz foi uma
das primeiras provas científicas da importância da interação humana para o
desenvolvimento do ser humano. O que os bebês “disseram” à Spitz foi que
só há choro ou apelo se há a esperança de que alguém pode escutar; se
não, para que chorar?
Trabalhar com as demandas, nesse sentido, implica em primeiro lu-
gar colocar-se como destinatário da fala do outro. Vale lembrar que
nem sempre as demandas são formuladas a nós claramente; muitas vezes elas
chegam como gritos, agressividade, repetidas faltas aos atendimentos, cons-
tantes reclamações etc. Por exemplo, enquanto uma equipe realizava uma
encontro de formação no serviço, uma das crianças passou por duas vezes na
sala, sem camisa, fazendo pose, escutando alto um funk proibidão.
Era uma demanda? Apenas se alguém tiver se colocado como destinatário
da mensagem.
Assim como o grito do bebê só se torna um apelo se os pais assim interpre-
tarem, qualquer mensagem só se torna mensagem se o outro a recebe;

70
uma garrafa jogada ao mar boiará
como garrafa jogada ao mar
indefinidamente até que alguém a
tome pra si e a leia: só assim ela se
torna mensagem.
As demandas que nos vem no cotidiano de trabalho são mensagens que, mui-
tas vezes, vem como um grito de socorro ou uma garrafa posta ao mar: por
vezes mais ou menos silenciosos, sem destinatário prévio, a quem escutar o
grito ou abrir a garrafa.
Receber a mensagem não significa, no entanto, respondê-la. Quando nos
colocamos para responder as demandas, muitas vezes vem a sensação de fa-
diga e esgotamento, os atendimentos tornam-se pesados e seu sucesso acaba
sendo medido pela quantidade de problemas “resolvidos” ou encaminhados.
Porém, dificilmente os problemas se resolvem: os usuários não aderem aos
encaminhamentos feitos, os problemas e queixas repetem-se e se multiplicam.
Não se trata, por exemplo, nos CRAS, de resolver a todas as solicitações que
chegam junto com o usuário, que já na porta de entrada enumera a necessida-
de que tem de uma cesta básica, de melhorias na casa, de encaminhamentos
para saúde e educação. Para escutar o que ele pede e identificar como trabalhar
é necessário se questionar: sei o que ele pede, mas o que ele realmente quer
com isso? É somente a partir da elaboração de um enigma, de uma pergunta
sobre a mensagem que chega que é possível criar respostas como, por exemplo,
o convite para um grupo, para que juntos, os usuários possam falar sobre como
é morar no bairro em que moram e como entendem e cuidam das suas casas.
Talvez nesse grupo descubram que, além da questão inicial que os trouxeram
ao CRAS, tenham outros pontos em comum: uma história de como chegaram ao
bairro, potências, vontades para a casa e o território em que moram. A deman-

71
da em si não é resolvida, mas há uma transformação, uma ampliação
e enriquecimento que é produzido na medida em que as mensagens em
garrafas possam ser reescritas e reendereçadas aos usuários e também
a outros destinos, abrindo para novas questões.
Nesse aspecto, é importante considerar o que Lacan nos diz sobre a deman-
da: ela é sempre insatisfeita! A demanda funda-se sobre uma falta fundamental,
na medida em que o sujeito apenas demanda pois não tem tudo, não sabe tudo.
A partir do desencontro do sujeito com o objeto para sempre perdido, o sujeito
busca recuperá-lo no outro, esperando que ele complete o que lhe falta. Aí loca-
liza-se uma contradição: apesar da demanda buscar no outro uma resposta, ela é
sempre insatisfeita! Nenhuma resposta satisfaz integralmente, fazendo com que
sempre surjam outras demandas, na medida em que há algo que falta.
Assim, é somente ao sustentar essa falta, ao não fechar o curto-circuito, que
pode-se abrir para a dimensão do desejo e a posição daquele que demanda. É
importante perceber que ‘não responder’ à demanda não significa não escu-
tá-la, mas sim considerá-la, utilizando-a como motor do processo de trabalho.
Um outro exemplo: em um serviço de acolhimento para crianças e ado-
lescentes, três meninas fizeram a mala e ameaçaram fugir do serviço caso um
adolescente, que tinha acabado de chegar e causava muitos transtornos, não
fosse expulso ou transferido de casa. O que significa escutar esta demanda
e utilizá-la como processo de trabalho? Certamente, os técnicos não podiam
responder simplesmente transferindo ou mandando o adolescente embora,
uma vez que a função do serviço de acolhimento é, justamente, acolher. Neste
caso, a solução encontrada foi realizar uma roda de conversa com todos da
casa, e não apenas com as meninas que queriam fugir ou com o adolescente
recém chegado, sobre acordos de convivência e formas de lidar com o que in-
comodava para traçarem, em grupo, estratégias para que os conflitos pudes-
sem ser resolvidos dentro da casa ao invés de evitados, excluídos ou calados.
O sentido de qualquer demanda deve, assim, ser tomado não enquanto
significado a ser decifrado, ou resposta a ser dada, mas enquanto direção,
apontando para a continuidade do trabalho. Assim, coletivizar demandas é
reendereçar as garrafas recebidas, com novas perguntas, novos enigmas, para
que outros possam lê-las.

72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, S. L. S. A experiência so luto em situações de violência: entre duas
mortes. Tese de Doutorado. São Paulo, 2011.

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE/


CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Orientações técnicas para os
serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: Autor, 2008.

MINISTÉRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Caderno de Orientações


- Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos: Articulação necessária na
Proteção Social Básica. Brasília: Autor, 2015.

SPITZ, R. A. O Primeiro Ano de Vida: um estudo psicanalítico do


desenvolvimento normal e anômalo da serrações objetais. 7ª ed., tradução
Erothildes Millan Barros da Rocha. São Paulo: Martins Fontes. 1996 (original
publicado em 1965).

1. CARiNA fERREiRA guEDEs – psicóloga, psicanalista e Mestre em Psicologia Social


pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do Núcleo Entretempos.
2. fERNANDA gHiRiNgHEllO sAtO – Psicóloga e psicanalista. Coordenadora do Núcleo
Entretempos.

73
Sentimento
A língua que o coração usa quando
precisa mandar algum recado

Carinho
Presente enviado pelo coração
que o portador pode ser mão,
boca, gesto ou palavra

VONTADE
É um desejo que cisma
que você é a casa dele

Sexo
Quando o beijo é
maior que a boca

Dicionário de palavras ao vento, Adriana Falcão

74
sexo e sexualidade
de crianças e adolescentes:
como podemos cuidar do que nos assusta
Carolina Bertol1

Dois meninos pegos trancados no banheiro. Meninas começam a usar roupas


curtas e decotadas. Os meninos passam a agarrar as meninas. Uma menina
pergunta se ainda sou virgem. Outra pergunta por que as pessoas gritam
enquanto fazem sexo. Uma menina quer trazer o namorado para casa. Um
adolescente aparece com sintomas de DST. Uma criança coloca laranjas em-
baixo da blusa para imitar peitos. Um adolescente começa a procurar uma
adolescente na casa. Perguntas diversas passam a povoar a casa, endereçadas
aos adultos que por ali passam ou trabalham: São casados? Tem filhos? Tem
namorado? Usam camisinha? Sexo por trás engravida?
Todas essas cenas e questões colocam aqueles que trabalham com crianças
e adolescentes em serviços de acolhimento diante do inesperado, nos pegam
desprevenidos. O que responder? Como responder? O que fazer?
A sexualidade é uma dimensão da vida das crianças e jovens que
sempre nos coloca questões. Do alto de nossa idade adulta nos vemos ru-
borizados, muitas vezes constrangidos com as perguntas e frases sem pudor
das crianças. Elas nos colocam frente ao desafio que é lidar com sua sexualida-
de sem antecipar as descobertas e vivências, mas ao mesmo tempo sem coibir
ou prejudicar a manifestação das mesmas.
Podemos dizer que sexualidade diz respeito a como expressamos
nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos relacionados a
ser homem e a ser mulher, que inclui sentir-se atraído por outra pes-
soa, seja em relação ao amor ou ao sexo. A sexualidade faz parte de
nossa vida, está ligada a forma como nos expressamos, nos relaciona-
mos com os outros e como nos comportamos. Mesmo que indiretamente,
ela está sempre presente nas nossas relações, seja pela forma como nos vemos,
a imagem que construímos em relação ao nosso corpo, as expectativas que

75
possuímos das relações que estabelecemos, as atividades que nos são permiti-
das ou proibidas de realizar, a forma como as pessoas se comportam conosco e
interpretam nossas atitudes. Além de estar presente desde que nascemos, ela
também atravessa toda nossa cultura, e está presente na mídia, nos programas
de TV, nas músicas, filmes, nas notícias do nosso cotidiano, nas histórias, nas con-
versas informais, na igreja, na escola, ou seja, em todos aqueles lugares em que
convivemos uns com os outros. Assim, por mais que busquemos preservar a ino-
cência de nossas crianças evitando tratar do tema, ele está presente, e por isso
mesmo é importante falarmos sobre ele, como uma forma de também cuidar
das crianças e jovens acolhidos, garantindo que eles se tornem sujeitos sexuais
que consigam desenvolver uma relação consciente com as normas de gênero da
cultura e com as práticas sexuais, que aprendam a vivenciar sua sexualidade de
forma cuidada. Isso implica não somente em fornecer informações sobre as prá-
ticas sexuais e seus riscos, mas também contribuir para o desenvolvimento psico-
dinâmico das crianças, como por exemplo, o fortalecimento de sua autoestima.
Ter uma sexualidade vivenciada de forma saudável é fundamental
para o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Segundo a Conven-
ção Internacional dos Direitos da Criança, promulgada em Assembleia Geral
das Nações Unidas no ano de 1989 (BRASIL, 1990), as crianças e adolescentes
são entendidas como pessoas em desenvolvimento; como sujeitos sociais por-
tadores de direito, inclusive de direitos específicos, introduzindo novas respon-
sabilidades para o Estado com este segmento. Desde que entendidas como
sujeitos de direitos elas também devem ter seus direitos sexuais e reprodutivos
preservados. O Estado deve particularmente assegurar o direito de crianças e
adolescentes femininos e masculinos à educação sobre saúde sexual e reprodu-
tiva, que respeitem seu direito à privacidade e à confidencialidade.
Falar em saúde sexual é falar sobre a habilidade de mulheres e ho-
mens para desfrutar e expressar sua sexualidade, sem risco de doen-
ças sexualmente transmissíveis, gestações não desejadas, coerção,
violência e discriminação. A saúde sexual possibilita experimentar uma
vida sexual informada, agradável e segura, baseada na autoestima,
que implica numa abordagem positiva da sexualidade humana e no res-
peito mútuo nas relações sexuais.

76
Além disso, na IV Conferência Mundial da ONU sobre População e Desen-
volvimento (Cairo, 1994), foram consolidadas as noções de saúde sexual e saú-
de reprodutiva. Estas noções implicam numa série de acordos e metas traçadas
em Plataforma de Ação do Cairo da qual o Brasil é signatário e que, portanto,
orientam a implementação das políticas públicas brasileiras. As metas do Cairo
em relação à população jovem objetivam garantir:

1. A equidade de gênero implica na conscientização pública do valor de


mulheres adolescentes e jovens e no fortalecimento de sua autoimagem e
autoestima e na eliminação de estereótipos que favoreçam a reprodução
de desigualdades entre homens e mulheres em todas as faixas etárias.
2. A participação social que reconhece a capacidade criativa em relação à
sociedade e às políticas sociais, reconhecendo adolescentes e jovens como
importantes sujeitos políticos.
3. A promoção dos direitos sexuais e direitos reprodutivos que
envolve a promoção do bem-estar e potencial de adolescentes e jovens,
o estímulo à educação, inclusive como condição para a saúde sexual e
saúde reprodutiva, encorajando um comportamento reprodutivo res-
ponsável e saudável.

Assim, percebe-se que os direitos sexuais incluem o direito de viver


a sexualidade com prazer, sem culpa, vergonha, medo ou coerção,
independente do estado civil, idade ou condição física. Enquanto um
serviço que tem como função garantir e assegurar os direitos das crianças e
adolescentes, e garantir, entre outras seguridades, um convívio que contri-
bua para que eles desenvolvam suas potencialidades e estabeleçam relações
potentes e enriquecedoras, tratar da sexualidade das crianças e adolescentes
é fundamental.
Mas qual a necessidade de falar sobre sexualidade com as crianças e ado-
lescentes? Se é algo que diz respeito ao nosso corpo e que é inerente a todas
as pessoas, por que precisamos falar disso? Por que não podemos simplesmen-
te deixar acontecer? Ou então nós silenciarmos até que os jovens já tenham
idade que consideramos correta para termos relação sexual?

77
A importância de se falar sobre
o assunto está em cuidar para
contribuir para que eles se tornem
cidadãos éticos que irão cuidar de
si e dos outros, inclusive no que diz
respeito a sexualidade.
Para isso, é preciso não somente informação sobre os diferentes aspectos en-
volvidos em nosso comportamento sexual, como informações sobre práticas
sexuais seguras, DST, mudanças corporais, métodos contraceptivos, zonas eró-
genas, mas também falar sobre outras questões que atravessam nossa sexua-
lidade, nossa relação com os outros.
Podemos perceber estas questões em algumas falas de meninas quando
dizem não obrigar o menino a usar camisinha porque senão ele arrumará ou-
tra, ou a vontade de engravidar porque assim conseguirá se casar, ou ainda
meninas que acreditam que serão mais respeitadas pela gravidez. A ideia de
que a primeira relação sexual tem que ser dolorida, pois senão a menina não
seria mais virgem. A ideia de que não se pode esperar muito para ter a pri-
meira relação, mas também não se pode esperar de menos. Ou que tanto faz
se o sexo for por envolvimento com o parceiro ou apenas para ganhar alguns
trocados. Os meninos que tem medo de usar camisinha, e que embora tenham
informações sobre seu uso, não sabem como colocá-la e tem medo que isso
atrapalhe o desempenho sexual. Meninos que entendem que tem que tran-
sar com várias para provar sua masculinidade. Que não conhecem o próprio
corpo e nem o corpo feminino. Ou seja, além de conhecimento, muitas in-
seguranças também permeiam a nossa sexualidade, inseguranças que
não dizem respeito somente a doenças e gravidez, mas que surgem das

78
relações que estabelecemos, na medida em que nos sentimos atraídos
sexual ou afetivamente e buscamos alguém para nos relacionar.
Portanto, nossa sexualidade influencia e é influenciada pela nossa auto-
estima e pelas relações que estabelecemos com os outros. É importante nos
sentirmos atraentes e confortáveis com nossa imagem, para desenvolvermos
a capacidade de dar e receber afeto e estabelecermos vínculos amorosos, de
maneira respeitosa e segura. A imagem que temos de nosso corpo pode afetar
a forma como nos sentimos integralmente, bem como nossas realizações e rela-
cionamentos. No trabalho com crianças e adolescentes, torna-se então,
necessário, estimular a aquisição de uma imagem corporal positiva.
Uma questão se coloca então: Como tratar e cuidar da sexualidade das
crianças e jovens de forma a contribuir para que a vivenciem de forma sau-
dável e cuidada? Como falar de sexualidade com crianças e adolescentes sem
sentir que estamos apressando o tempo das coisas?
Diversas ações podem ser mobilizadas para falar de sexualidade com
crianças e adolescentes. Muitas propostas que vem trabalhando no in-
tuito de prevenir DST e gravidez na adolescência demonstram que, ao
contrário do que possamos imaginar, ter informações sobre o assun-
to, falar sobre sexualidade, não incentiva crianças e adolescentes a
práticas sexuais, mas pelo contrario, faz com que elas vivenciem sua
sexualidade de forma mais cuidadosa, se prevenindo mais e se preser-
vando de situações de risco. Porém, estas mesmas propostas apontam que
apenas informações não são suficientes para promover uma sexualidade sau-
dável, é necessário trabalhar outros aspectos envolvidos na sexualidade.
Assim, palestras sobre o assunto pode ser uma estratégia utilizada, mas é
também preciso construir espaços de reflexão no qual elas possam comparti-
lhar histórias vivas e ensaiar encontrar respostas e conhecimento para o que
ainda não sabem. Compartilhar vivências e histórias é importante porque a
nossa identidade sexual e a nossa conduta nesse campo são influenciadas
pela nossa história pessoal, em um tempo que varia de pessoa para pessoa.
Nesse sentido, a roda de conversa, ou mesmo jogos, podem contribuir para
abordar o assunto. Permita que as crianças façam perguntas, ainda que você
não saiba responder, incentive a que elas também pesquisem e produzam

79
conhecimento. Construa a possibilidade de que as crianças e adolescentes
possam falar sobre essas experiências e ouvir as elaborações uns dos outros.
Expressar dúvidas e ideias que normalmente não têm lugar para falar. Cons-
trua um lugar que permita o conflito de ideias, a discordância, o dissenso. Dê
espaço também para falas preconceituosas, racistas, sexistas para que elas
possam ser refletidas e elaboradas pelo grupo.
As brincadeiras também são uma boa estratégia para tratar do assunto
com crianças menores, pois é possível utilizar uma linguagem acessível a elas.
Brincadeiras com bonecos podem ser muito importantes para as crianças tra-
balharem sua sexualidade e o cuidado de si, uma vez que através do brincar, a
criança se desenvolve cognitiva, moral e afetivamente, e pode dar significado
ao mundo e elaborar situações do seu dia-a-dia, compartilhando do mundo
dos adultos de uma forma infantil.
De maneira geral, nossa sociedade ainda é muito pouco aberta às
falas das crianças e jovens, mas escutá-los se faz necessário para con-
tribuir na sua formação. É preciso insistir, pois a escuta coletiva, de
uns pelos outros, não se produz imediatamente. É preciso arriscar a
falar, e se permitir ouvir, para que deslocamentos subjetivos possam
se produzir. O que temos percebido é que o exercício da fala, do diálogo,
precisa ser continuado, pois a desconstrução dos estereótipos e de verdades
únicas é um processo que se dá lentamente e continuamente. Falar sobre se-
xualidade é essencial para construir homens e mulheres que possuam o direito
de escolher seu próprio caminho, e vivenciem sua sexualidade de forma posi-
tiva, responsável e cuidada.

1. Carolina Bertol – psicóloga, mestre em psicologia pela Ufsc, doutoranda em


psicologia social pela PUC/SP. Integrante do Núcleo de pesquisa Degenera. Trabalhou
com o tema da sexualidade com jovens de escolas públicas e regiões periféricas.
Atualmente pesquisa o campo das medidas socioeducativas.

80
Para saber mais
1. Arruda, Silvani; Ricardo, Christine; Nascimento, Marcos; Fonseca,
Vanessa. Guia Adolescentes, jovens e educação em sexualidade.
Disponível em: http://promundo.org.br/recursos/guia-adolescentes-jovens-e
-educacao-em-sexualidade/

2. Jogo em seu lugar – O jogo “Em seu Lugar”, é uma ferramenta que tem o
objetivo de trazer luz à discussão sobre os direitos da população jovem, princi-
palmente, no que diz respeito a sua saúde sexual e saúde reprodutiva.
Disponível em: http://promundo.org.br/recursos/em-seu-lugar/

3. Promundo - http://promundo.org.br/recursos/page/2/
?tipo=materiais-educativos

4. Caderno Cá entre nós – Guia de educação integral em sexualidade.


Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002170/217096por.pdf

Referências Bibliográficas
Brasil. Decreto n. 99.710, de 21 de Novembro de 1990. Promulga a
Convenção sobre os direitos das crianças. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm

Louro, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3.ed. Belo


Horizonte: Autêntica, 2010.

Louro, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-


estruturalista. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

Paiva, Vera. Fazendo arte com camisinha. Sexualidades jovens em tempos de


AIDS. São Paulo: Summus, 2000.

Promundo; Salud e Gênero; ECOS; Instituto PAPAI; World


Education. Trabalhando com mulheres jovens: empoderamento, cidadania e
Saúde. Rio de janeiro: Promundo, 2008.

81
82
heranças e legados da assistência social:
uma memória ainda a ser deslocada
CARiNA FERREiRA guEDEs1
Natália Felix Noguchi2

Confinamento e institucionalização, construção de soluções individualizadas,


um olhar despotencializador para a população, práticas assistencialistas, pre-
ocupação com a escolarização e profissionalização de crianças e jovens... de
que maneira a história das práticas assistenciais constitui o cotidiano
atual dos serviços da Assistência Social?
Trabalhamos com as histórias de vida das pessoas com o pressuposto de
que construir uma narrativa sobre a própria história permite aproximar-se e
se distanciar do passado: a narrativa tece um fio, liga e ressignifica aconteci-
mentos, possibilita enxergar os trajetos e escolhas, bem como suas causas e
consequências. Por outro lado, o próprio ato de narrar já implica um distan-
ciamento: quem viveu não é o mesmo que conta, visto que já foi modificado
pelo próprio acontecimento.
Assim também acontece nas nossas práticas, que são constituídas
por paradigmas – visões sobre o que é o serviço, o que faz e por que faz
– que estão ligados, mais do que percebemos, à história das práticas as-
sistenciais. Nesse sentido, conhecer e construir narrativas sobre essa história
pode ser uma forma de problematizar as práticas atuais realizadas, refletindo
sobre o que se quer manter e o que se deseja mudar, permitindo um outro
lugar na escuta e nas ações da política de assistência.
Construir narrativas sobre a história das práticas assistenciais implica re-
conhecer-se no coletivo dos trabalhadores da Assistência Social, enquanto
“nós”, assumindo as heranças das práticas anteriores e as responsabilidades
coletivas frente ao passado, na medida em que o presente pode perpetuá-lo,
ou não. Porém, para construir narrativas é necessários ouvi-las primeiramente:
qual nosso passado?

83
Uma história das práticas e de seus paradigmas
A assistência aos pobres, desvalidos e deficientes foi, durante muito tempo,
realizada pela Igreja Católica. A ideia introduzida pela Igreja era de que essas
pessoas, ao contrário do que se pensava anteriormente, também tinham alma
e que, assim, podiam e precisavam ser salvas. Caponi (2000) sugere que essas
práticas caritativas têm como fundamento central a lógica da compaixão, na
medida em que supõem alguém debilitado, que apenas pode superar sua li-
mitação com ajuda de uma pessoa compassiva.
Ela aponta uma ambiguidade característica desses projetos: “se, por um
lado, se apresentam como uma forma de assistência caridosa dirigida aos ne-
cessitados, por outro, se apresentam como dispositivos de controle e coerção
social” (CAPONI, 2000, p. 27), transformando a pobreza ou o sofrimento em
um mal necessário para poder exercer “o bem”. Essas práticas se estrutu-
ram a partir de uma relação assimétrica, tendo como eixo o binômio servir/
obedecer. Do lado de quem serve, há uma certeza que se conhece o que
representa o bem para aquele que é assistido, acreditando-se ter uma
responsabilidade absoluta sobre ele. Na ação caritativa, quem ajuda se
engrandece, e quem recebe a ajuda, é diminuído ao recebê-la. A quem re-
cebe, é exigido o pagamento dessa dívida, sob forma de reconhecimento,
gratidão, humildade e obediência ilimitadas. Porém, como não é autoriza-
do a quem recebe auxílio a responsabilidade de dizer e escolher sobre suas
necessidades, fica vetada a possibilidade de um diálogo entre iguais, própria
ao âmbito político. A caridade mostra, assim, sua vertente impositiva, legiti-
madora de relações assimétricas e sociedade desiguais.
As práticas caritativas começaram a serem criticadas na Europa na épo-
ca da industrialização, aliadas ao surgimento da filosofia liberal e iluminista.
Com a intensificação da industrialização e o crescimento dos centros urbanos,
aumentou também, em escala industrial, o abandono de crianças e as popula-
ções em situações de rua, de modo que a demanda de assistência superou em
muito as possibilidades de atendê-la. Tal fato, aliado aos pensamentos liberais,
utilitaristas e iluministas que afloravam, produziu inúmeras críticas e indigna-
ções sobre o modo de funcionamento das instituições de caridade, dado as
altíssimas taxas de mortalidade, que implicavam um gasto público sem retor-

84
no (DONZELOT, 1980; MARCÍLIO, 2006, RIZZINI, 2011), bem como ao modo de
funcionamento geral das práticas caritativas (DONZELOT, 1980). Em suma, os
principais pontos criticados referiam-se à desorganização da administração,
centrada nas paróquias; à dificuldade de controlar sistematicamente o uso das
doações; à falta de critérios na distribuição de auxílios e na diferenciação en-
tre os pobres realmente necessitados e os “pobres profissionais”. Criticava-se
a assistência caritativa por ser onerosa e ineficiente e propunha-se um novo
modelo: a filantropia.
No Brasil, não foi diferente. O Brasil, no período de implementação do
modelo republicano (entre 1870 e 1930) passava por uma fase de emancipa-
ção, na busca de sua nacionalidade e de sua identidade nacional: era visto
como um povo criança, passível de ser moldado, para o bem ou para o mal.
Havia uma missão civilizadora: tirar o Brasil do atraso, da ignorância e da bar-
bárie. No Rio de Janeiro, capital do país e local onde foram gestadas as prin-
cipais ideias, em dependências dos modelos externos, o crescimento dos aglo-
merados urbanos despertava fascínio e apreensão. A cidade era o símbolo do
novo e, ao mesmo tempo, local de desordem e imoralidade. A forma de vida
rápida, descontínua, gerava espanto e insegurança e proporcionava uma mis-
tura populacional assustadora. O crescimento demográfico também conduziu
a um aumento da população pobre, levando ao temor por epidemias (que
eram recorrentes), aos vícios, à desordem (RIZZINI, 2011).
Diante desse contexto, a pobreza passou a ser vista como um pro-
blema de ordem moral e social, foco da desordem e da doença. As
intervenções ocorreram no sentido de moralizá-la e a criança tor-
nou-se o instrumento principal de intervenção do Estado na família,
em especial, a pobre. Nas práticas de assistência, mais do que princípios
humanitários e científicos, havia uma missão moralizadora e eugêni-
ca. Às instituições de assistência eram designadas a função de contro-
le social: corrigir, reformar, prevenir.
Caponi (2000) sugere que entre as políticas assistenciais fundadas na ética
caritativa e filantrópica não existe uma ruptura absoluta, muito embora o
segundo deles tenha se apresentado como garantia de ruptura e superação
do primeiro. Para a autora, embora haja diferenças substanciais entre esses

85
modelos, existem continuidades e persistências que firmam uma relação de
solidariedade e complementaridade entre eles, pois, apesar de partirem de
fundamentos éticos divergentes e, muitas vezes, opostos, geraram práticas
complementares e solidárias.
O que permite a solidariedade entre essas práticas é que ambas colocam
seus princípios acima dos sujeitos envolvidos. Assim, tais práticas se apresen-
tam sob a forma do humanismo, da compaixão piedosa, ou da utilidade e
do bem-estar comum, embora, em suas ações, anulem a existência do outro,
visto que seu acesso à palavra e ao dizer de si lhe é negado. O enfrentamento
à desigualdade social, ao aumento da violência e às violações de direitos de
crianças, adolescentes e famílias se deu, em um primeiro momento, com ações
pontuais, desarticuladas e sem planejamento com vistas à institucionalização
ou à manutenção da população pobre nas periferias da cidade – uma lógica
de confinamento e apartação.
É com a Constituição de 88 que a assistência social é afirmada como po-
lítica pública, campo de ação do Estado brasileiro, responsável por garantir
proteção social na condição de direito de cidadania. No âmbito das políticas
e legislações, podemos comemorar avanços em relação a esses modelos an-
teriores: a Política Nacional de Assistência Social, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, por exemplo, são marcos que apontam para um novo paradigma
em relação às concepções anteriores. Se antes as práticas da assistência
social eram marcadas por atividades de curta permanência, pouca ou
nenhuma regularidade, continuidade atrelada a um determinado go-
verno ou partido político, sazonalidade e falta de intencionalidade,
o SUAS traz como norte uma unidade de concepção e ação em todo
território nacional e a garantia de direitos como função primordial
do Estado. Torna-se necessário conhecer quantos e quais são os cidadãos que
necessitam de proteção, conhecer os riscos e vulnerabilidades e garantir qua-
lidade e cobertura.
No entanto, a implementação do SUAS, apesar de indutora de práticas, é
fruto de tensões e debates intensos. Nesse sentido, é importante atentar para
práticas que aglutinam diferentes fundamentos éticos, apresentando-se sob
o prisma da garantia de direitos, mas que têm em seu cerne visões caritativas

86
e/ou filantrópicas. Nesse aspecto, a reflexão e análise constantes são um meio
privilegiado para a que a mudança não fique apenas no papel.

Práticas atuais, modelos antigos?


Crianças e adolescentes de serviços de acolhimento proibidos de comer com
faca ou que não podem ficar sozinhos, sem a presença de um adulto, em
qualquer um dos cômodos da casa. Em dia de visitas de familiares de crianças
em situação de acolhimento, alguns olhares tortos dos profissionais relem-
bram e atualizam a culpa das famílias por sua “negligência”. Diante da fuga
de um adolescente “problemático”, todos se aliviam. A educadora que chega
de manhã atrasada nem sequer pergunta se o pequeno já havia tomado café
da manhã e lhe dá pela segunda vez. Servir-se e escolher sua própria comida?
No máximo, tem o direito de dizer se não quer alguma coisa.
Donzelot (1980) fala que as práticas filantrópicas estabelecem uma circu-
lação rápida entre duas infâncias: a infância em perigo e a infância perigosa. É
possível pensar que essa dicotomia se reatualiza em nosso cotidiano: a criança
em perigo e o adolescente perigoso, a criança em perigo e a família perigosa
ou ainda as crianças perigosas e os funcionários em perigo! Em nome da pro-
teção, seja protegê-los ou proteger-se deles, justificam-se práticas de controle
e expulsão. Mais ainda, evitam-se ações em que se possa de fato escutar e
estar junto, privando as crianças, adolescentes e suas famílias de uma real ex-
periência de amoralidade com os profissionais da Assistência Social diante de
suas situações vividas. As situações de aprendizagem também ficam restritas:
como aprender a fazer escolhas sobre sua própria vida se nem a escolha de
como montar seu prato lhe é permitida?
Conflitos, preconceito, discriminação, abandono, apartação, isolamento,
confinamento e violência: vulnerabilidades relacionais que revelam diferenças
vividas como desigualdades, produtoras de sofrimento, reduzindo as capa-
cidades humanas e demandando proteção. Práticas que se repetem e legiti-
mam um olhar para a população como carente, negligente, perigosa, violen-
ta. Ações cotidianas de trabalhadores que não se restringem a situação de
crianças em acolhimento...

87
Nos grupos de atividades dos serviços de convivência ou na escola, a pre-
sença de alguma criança mais agitada que incomoda e que, frente a qualquer
descuido, é alvo de suspensão, sem que sequer lhe seja explicado o porquê.
Em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, uma idosa que
deixa de ir a uma atividade depois de, em uma discussão, se sentir desrespei-
tada. Em um CRAS, profissionais que permanecem dentro dos equipamentos e
não vão aos territórios. Nos serviços em geral, a oferta de oficinas de profissio-
nalização ou de artesanato com a preocupação exclusiva de geração de renda.
Na atenção às crianças, o excesso de preocupação com a escolarização, sem se
lembrar que não se trata de contraturno escolar mas de serviços cujo foco é a
convivência. Grupos socioeducativos em que não há alternativa às palestras de
orientação (leia-se disciplinamento), entrega de benefícios desarticulada aos
serviços, agrupamento de pessoas exclusivamente segundo suas questões de
idade e renda... práticas tutelares e de benemerência que são, ainda, heranças
de um certo modo de fazer assistência social.
Tais cenas se repetem em Osasco e em outros municípios e nos fazem
questionar a que distância estamos do prisma da garantia de direitos.

Suas: um caminho a se afirmar


Em 2004, a convivência social é afirmada como segurança; ou seja, a interven-
ção pública adquire uma especificidade no que se refere ao reconhecimen-
to de determinadas situações de desproteção social que requerem “serviços
continuados, capazes de desenvolver potencialidades e assegurar aquisições,
além de fortalecer vínculos familiares e vínculos sociais mais amplos necessá-
rios ao exercício de cidadania” (BRASIL, 2013, p. 08). Coloca-se em evidência
a dimensão relacional, tomando-se como ponto de partida que o sujeito se
constitui na relação com outros.
A Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (BRASIL, 2013)
vem reforçar a perspectiva da não institucionalização. Considera que rela-
ções podem proteger e desproteger e caracteriza algumas vulnerabi-
lidades relacionais, afirmando que lidar com elas é uma responsabili-
dade pública: “sempre que as precariedades do lugar e da situação vivida
afetar pessoas, famílias ou grupos sociais produzindo sofrimento ético-polí-

88
tico, caberá uma ação da política no sentido de possibilitar que a situação
seja enfrentada num campo de responsabilidade pública e coletiva” (p. 9).
Se a proteção social é um direito, é dever do trabalhador agir nesse sentido,
tendo como referência que “estar protegido significa ter forças próprias ou de
terceiros que impeçam que alguma agressão / precarização / privação venha a
ocorrer, deteriorando uma dada condição” (SPOSATI, 2007 , p. 42).
Segundo a Política Nacional de Assistência Social, é possível preve-
nir as situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialida-
des e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitá-
rios. A Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (BRASIL, 2013)
reforça essa afirmativa na medida em que traz como resultados da ação profis-
sional a ampliação de relações e o fortalecimento de vínculos gerando, como
efeito, maior proteção. Compreende autonomia como “uma capacidade (dos
sujeitos) de lidar com sua rede de dependências, de eleger objetivos e crenças,
atribuir-lhes valor com discernimento e colocá-los em prática com a participa-
ção e apoio de outros. (…) Assim, o legado do trabalho social é a experiência
de produção coletiva – sinônimo de autonomia interdependente” (p. 12 e 13).
Práticas cotidianas nos serviços da assistência social lidam com relações e,
portanto, podem proteger ou desproteger. O trabalho social é afirmado na
sua potência de ressignificação das relações: “o direito se expressa por meio
da prática cotidiana dos profissionais, pois o discurso do direito ganha concre-
tude nessa atenção. Logo, é a alteração das práticas que consolida os direitos
em sua garantia e exigibilidade” (BRASIL, 2013, p. 14).
A Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (BRASIL, 2013)
traz como um dos indicadores do trabalho social: “as relações com os profis-
sionais da política de assistência social são fonte de referência de continuida-
de e amoralidade no enfrentamento das situações de vulnerabilidade” (p. 35),
afirmando que “ser referência se constrói a partir de conhecimentos técnicos
associados a um posicionamento ético que escuta as demandas de proteção das
pessoas como um direito a ser garantido e é capaz de agir de forma acolhedora,
compartilhando decisões e valorizando a autonomia dos usuários” (p. 35).

89
Assim, a relação dos profissionais
com o público atendido
pode ser uma fonte importante
de proteção.
Este mesmo documento também afirma que as experiências relacionais
podem ser fonte de aprendizados e transportadas para outras relações. As-
sim, da mesma forma em que os usuários podem trazer para dentro do ser-
viço formas de se relacionar aprendidas em outros contextos, eles também
podem transportar para suas outras relações aprendizados de suas relações
com os profissionais da assistência. Por exemplo, um adolescente que per-
cebe que, a cada vez que chega a menos de 2 metros de uma faca, todos
ficam amedrontados, não só aprenderá a ver a faca como arma e não como
utensílio doméstico, como aprenderá que sua relação com o outro se baseia
pelo medo e, consequentemente, pela ameaça - e que ele talvez seja uma
pessoa perigosa. Por outro lado, se a cozinheira não se paralisa diante do re-
ceio do que ele pode fazer com a faca e o ensina a como picar bem a cebola,
ele não apenas começa a aprender a cozinhar, como vivencia uma relação
na qual o outro confiou nele e o viu não como uma pessoa perigosa, mas
como alguém com talentos.
Vemos práticas que se misturam. Se presenciamos ações que promo-
vem controle e benemerência, presenciamos também diversas situações
em que os profissionais consideram a voz e o sofrimento do outro e,
através do diálogo, traçam caminhos para a vida. Uma profissional,
diante de um adolescente que não queria mais frequentar a escola, disse-lhe
que imaginava o quão sofrido deveria ser para ele estar na escola todos os dias
visto que ele não era alfabetizado, mas pensava o quanto que o diploma po-
deria lhe abrir caminhos para a vida. Ele aceitou retornar, talvez porque sentiu
que sua história e seu sofrimento foram reconhecidos pelos outro, talvez por-

90
que não foi colocado como coitadinho ou como vilão – nem em perigo, nem
perigoso - e se sentiu reconhecido como sujeito de direitos e desejos.
Em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, o esforço
de uma facilitadora em conhecer a história de uma idosa e se aproximar aos
poucos para, em seguida, propor que esta se aproximasse do grupo – um
cuidado em se constituir como referência para que a idosa pudesse experi-
mentar outras formas de se relacionar. Em um CRAS, o esforço em avaliar o
serviço com os usuários e, a partir da opinião destes sobre o grupo socioedu-
cativo, fazer mudanças na metodologia de trabalho para melhorar a atenção
a eles oferecida. Em outro serviço, a proposta de uma ação intergeracional,
possibilitando que pessoas de diferentes idades se encontrem e aprendam
umas com as outras.
Conforme afirmado anteriormente, a implementação do SUAS é alvo de
tensões e debates intensos, além de práticas distintas entre si e que convivem
no cenário da assistência social. Ao trabalhador, cabe conhecer qual o campo
de pactuação coletiva, participar do diálogo e da explicitação coletiva sobre a
direção que deve ser assegurada e agir ética e politicamente na garantia de
direitos aos cidadãos.

1. CARiNA fERREiRA guEDEs – psicóloga, psicanalista e Mestre em Psicologia Social


pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do Núcleo Entretempos.
2. Natália Felix Noguchi – Mestre em Psicologia pela USP, é co-autora do livro “Vozes
e Olhares - uma geração nas cidades em conflito”. Atualmente, atua em processos de
formação e supervisão para trabalhadores do SUAS no estado de São Paulo.
Referências Bibliográficas
BRASIL/ MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME.
Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Brasília, DF, 2013.

CAPONI, S. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência


médica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000.

DONZELOT, J. A polícia das famílias. Tradução de M. T. da Costa; revisão


técnica de J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, edições Graal, 1980.

MARCÍLIO, M. L. História Social da criança abandonada. São Paulo: editora


Hucitec, 2006.

RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a


infância no Brasil. 2. ed. Revisada. São Paulo: Cortez, 2011.

SPOSATI, A. Proteção e desproteção social na perspectivas dos direitos


socioassistenciais. Cadernos e textos da VI Conferência Nacional de
Assistência Social. Brasília: CNAS/MDSCF, dezembro, 2007.

92
93
© Núcleo Entretempos
1ª edição | Tiragem 170 exemplares
São Paulo, 2016

organização
Carina Ferreira Guedes
Fernanda Ghiringhello Sato

projeto gráfico
Leandro Daniel
Lucila Muranaka

equipe projeto enlaces


Carina Ferreira Guedes
Carolina Esmanhoto Bertol
Fernanda Ghiringhello Sato
Gabriela Menezes Urbano da Silva
Mariana Manfredi Magalhães
Mariana Moura Abrahão
Natália Felix Noguchi

gestão administrativa / financeiro


KlEber de Araújo

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional
ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Caderno Enlaces: textos de referências do projeto de formação de


profissionais da Assistência Social de Osasco V.3 / Carina Ferreira Guedes
(org.), Fernanda Ghiringhello Sato (org.), Emília Estivalet Broide, Leandro
Feitosa Andrade, Patricia Rodrigues Rocha, Carolina Bertol, Natália Felix
Noguchi. – Osasco-SP, 2016.

ISBN: 978-85-5768-002-9

1. Formação profissional 2. Assistência Social 3. Imaginário


4. Cartografia I. Título.

LC: HM251

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