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CADERNO

textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 4
Prefeitura do Município de Osasco

Secretaria de Assistência Social

prefeito
Jorge Lapas

secretária de assistência social


Suzete Souza Franco

diretora administrativa
Ester Begnini

diretora da proteção social básica


Elizete Nantes Mendes Saramello

diretora da proteção social especial


Danielle Silva Bueno

realização coordenação e organização


CADERNO

textos de referência
do projeto de formação
de profissionais
da Assistência Social
de Osasco
VOL. 4

organização
Carina Ferreira Guedes
Fernanda Ghiringhello Sato

Núcleo Entretempos
SÃO PAULO
2016
7 Introdução: construindo novas histórias na
Assistência Social de Osasco
Núcleo Entretempos

10 PARTE 1 | SEMINÁRIOS TEÓRICOS


13 Tempos da Cidade: história, rua e serviços
Daniel de Lucca
25 A rede de proteção de crianças e adolescentes em
acolhimento: construindo lugares de referência
Carla Biancha Angelucci

34 PARTE 2 | PRODUÇÃO DOS ENCONTROS TEMÁTICOS


37 Encontros Temáticos: práticas prioritárias e
possibilidades de experimentações

Proteção Social Básica


41 Acolhimento
51 Grupos e oficinas
59 Articulação PAIF e SCFV

Proteção Social Especial


67 Reuniões e funções no SAICA
77 Rodas de conversa e atividades na casa
83 Trabalho com famílias
89 PIA e construção de projetos de saída de
adolescentes por maioridade

98 PARTE 3 | NOVAS HISTÓRIAS: PRODUÇÕES DOS


PROFISSIONAIS DE OSASCO
101 Em busca do simples: uma experiência no serviço
de acolhimento para crianças e adolescentes
Isadora Canelli Bonfanti
Érica Moura

109 Cozinhando no CRAS


maria ismarlene rodrigues

113 O serviço de convivência e fortalecimento de


vínculos do CRAS Padroeira como interlocutor
do fortalecimento comunitário
Andressa Mota do Nascimento de Brito
Luciane de Paula Souza
Renata Silva Petrini
119 O papel da arte educação com RPG
Lucas Nascimento Prado
Mariana Morás dos Santos

125 Horta na Casa


José Raimundo Santana de Matos
Luciana Oushiro
Diunei Conceição de Andrade

129 Projeto Adolescentes na cozinha e


Minha vida na cozinha
Ana Luzia Rodrigues
Edilene Vieira dos Santos Ribeiro
Izaque

133 O triunfo da arte: passeio pelo centro


histórico de São Paulo
Thiago Avelino da Silva

135 Desacolhimento de uma adolescente


patrícia petroni

139 Acolher com dignidade


Maria Jocélia dos Santos
Thiago Rodrigues

145 Tudo passa


Igor Luiz

149 Atividades com grupos: experiências e transformações


Lucas Nascimento Prado
Cinthia Franco
Evandro Pires

159 Do CR2 para Casa Juventude: entre a resiliência


e a esperança
Entrevista com Juliane Cristina de Lima
e Izabel Almeida
É deste lugar de autoria
que esperamos que
os profissionais continuem
se responsabilizando pela
criação, junto aos usuários,
de novas narrativas
sobre a assistência social
de Osasco.

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construindo novas histórias na
Assistência Social de Osasco

Chimamanda Angola Adichie, em sua conferência no TED talk, em 2009, nos


adverte sobre “o perigo de uma história única”. As histórias únicas, nos conta,
são histórias que criam e perpetuam estereótipos, ou seja, reduzem uma vida,
uma cultura ou um sujeito a uma única característica. Como Nigeriana, ela
nos conta como muitas vezes foi recebida por pessoas como “africana, vinda
de um país e continente pobre, em guerras e com músicas tribais” sem que as
pessoas percebessem que sua história trazia outras complexidades. Ela não se
identificava com esse estereótipo da “africana”, pois isso pouco dizia da mul-
tiplicidade de povos, países e línguas da África, do que ela identificava como
sua história, das cidades e contrastes entre a miséria e a riqueza. Não só a vida
de Chimamanda era enquadrada nesse recorte, mas também toda a diversi-
dade de populações, comunidades, nações e sujeitos, que ficavam reduzidos a
esta única manchete sobre “A África”.
As histórias únicas são essas que se desvelam imediatamente e parecem
ser definitivas e totais, dando-nos a falsa sensação de que já sabemos tudo
sobre uma pessoa, um lugar, uma etnia, sobre alguém que atendemos ou um
profissional, ou mesmo sobre um serviço. Todos nós criamos e reproduzimos
histórias únicas, ou mesmo somos objetos e protagonistas de histórias únicas
criadas por outros ou por nós mesmos.
Um dos perigos das histórias únicas é que, ao serem repetidas e repeti-
das, elas ganham o status de verdade. Como verdades, quase não são con-
testadas e, aos poucos, vão silenciando outras histórias, outras perspectivas,
outras possibilidades de vir a ser. O imediato, o irrefletido, o reativo tempo

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do presente, oculta o passado e facilita que essas histórias únicas circulem
como as histórias verdadeiras. Não há tempo, não há brecha que deixe surgir
a curiosidade real sobre o outro, que possibilite vê-lo como desconhecido; não
há questões sobre como essas histórias únicas e perigosas passaram a ser as
histórias que conhecemos.
Chimamanda nos provoca a pensar: as histórias únicas nos dão indícios
também sobre as estruturas de poder no mundo. “Nkali”, ensina, é um subs-
tantivo que pode ser traduzido livremente como “ser maior do que o outro”.
Os mundos e suas histórias - políticas, econômicas, sociais e culturais - são
também escritas a partir dessa força que atravessa e determina quais histó-
rias serão contadas, como são narradas e quem as conta. Se estamos no tem-
po presente, dos incêndios e urgências, no qual não há interrogação sobre
o passado, não há perguntas sobre quem mais pode narrar cada história, as
relações de poder e desigualdade que vulnerabilizaram o sujeito – usuário,
profissional, cidadão – são tomadas como naturais e como as únicas existen-
tes. O futuro, assim, também fica como um tempo que não existe, que não
chega: se não pensamos nas relações e narrativas como construções, também
não é possível enxergar a possibilidade de transformar, criar, questionar. As
pessoas passam a não se enxergar como contadores de histórias, de outras, de
múltiplas histórias, construtores de outras verdades possíveis.
Ao longo da formação Enlaces, ouvimos histórias únicas sobre o município,
a gestão, a assistência social e seus serviços, o passado-presente do CR1, assim
como dos Centros de Vivências. Aos poucos, os serviços, territórios, crianças,
adolescentes, usuários e profissionais foram ganhando complexidade e pro-
fundidade, abrindo novas margens e permitindo um novo olhar, com críticas
e potências, trazendo luzes, sombras e outras perspectivas. Assim, o mito do
serviço modelo, a lenda do território abandonado ou o caso difícil puderam
ganhar novas significações, a partir do envolvimento dos profissionais, da
abertura para se angustiarem, experimentarem e escutarem histórias, muitas.
Este último Caderno é registro e celebração dos questionamentos que pu-
deram deixar mais porosas essas verdades definitivas e dos novos narradores
que foram se apresentando ao longo deste ano de muito trabalho e tempo.

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Assim, na primeira parte deste Caderno, o texto do seminário de Daniel
de Lucca nos apresenta a temporalidade e suas desigualdades como chave de
leitura para refletirmos sobre os tempos do trabalho e o trabalho do tempo
nos serviços. Nessa parte, também apresentamos o texto de Biancha Carla
Angelucci, que questiona as perigosas histórias sobre a infância que acarre-
tam na marginalização e exclusão e nos convida a pensar em como a rede de
proteção às crianças e adolescentes pode atuar na construção de lugares de
pertencimento e novas histórias junto às crianças e adolescentes acolhidos.
Na segunda parte, estão as produções coletivas, sistematizadas a partir dos
Encontros Temáticos realizados para as equipes dos Serviços de Acolhimento,
CRAS e Serviços de Convivência no primeiro semestre de 2016. São sete registros
que trazem discussões, processos de grupo e também as experimentações nos
serviços e seus impactos na escuta e no contato com o usuário como autor de
sua narrativa. Esperamos que esses registros possam facilitar a continuidade das
práticas produtoras de novas histórias criadas ao longo deste ano.
E como a multiplicidade de histórias faz mais sentido a partir de uma mul-
tiplicidade de autores, temos o prazer de publicar, na terceira e última parte
deste Caderno, as produções escritas pelos profissionais participantes da for-
mação, em que narram histórias e elaborações sobre sua prática e experiência
de trabalho, com intuito de registrar, circular e inspirar. São textos que trazem
uma multiplicidade de linguagens – da poesia ao texto acadêmico –, escritos
por profissionais das mais variadas funções – cozinheiros, técnicos, facilitado-
res, APS e gestores – que, a partir de seus olhares singulares, convidam a todos
a se permitirem escutar novas versões sobre as histórias.
É deste lugar de autoria que esperamos que os profissionais continuem se
responsabilizando pela criação, junto aos usuários, de novas narrativas sobre
a assistência social de Osasco.
Agradecemos a possibilidade dos encontros e por este ano tão repleto e
intenso de trabalho e criação.

equipe núcleo entretempos

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1
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seminários
teóricos
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tempos da cidade:
história, rua e serviços
Daniel De Lucca 1

Não sou formado em serviço social, mas em antropologia e geografia, ciências


humanas que voltam-se respectivamente para temáticas ligadas à cultura e ao
espaço. Também sou pesquisador e professor, sendo que desenvolvi investi-
gações ligadas ao universo da população de rua e dos catadores de materiais
recicláveis em São Paulo. Rua e lixo, portanto. É deste lugar de fala que me
coloco aqui para conversar com vocês. Mas, antes de entrar no tema da discus-
são, levanto duas questões mais gerais sobre esses tópicos de estudo.
A rua não é apenas importante para a temática para população de rua e
outros grupos marginalizados, mas trata-se de uma forma da experiência ur-
bana que atinge todos nós que vivemos e trabalhamos na cidade. No início do
século XX, Georg Simmel já havia descrito o citadino como uma nova persona-
lidade da Europa moderna. Dizia ele que, para conseguirmos viver na cidade,
temos de ficar indiferentes para com o mundo externo da rua devido à sobre-
carga de estímulos que envolve o passante. Ou seja, para podermos avançar
em nossas tarefas no espaço público urbano, precisamos focar em nosso inte-
resse, desconsiderando as outras informações que nos rodeiam. Essa atitude
blasé, essa postura de indiferença, que é uma condição para se conseguir viver
e circular pela cidade, também é um dispositivo de proteção de nossa subje-
tividade, um modo de não ser levada pelas poderosas correntes urbanas de
movimentos, imagens, sons e luzes que coloniza e cerca o transeunte.
No Brasil, o sentido da rua é mais específico. Aqui ela é o lugar de quem
não tem lugar, é o espaço que resta aos desacolhidos e sem espaço priva-
do para si. Ditos populares como “foi parar no olho da rua” ou “a rua da

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amargura”, expressam bem esta ideia da rua como “agasalhadora da misé-
ria” (para utilizar a terminologia de João do Rio). Por outro lado, a própria
palavra “lixo”, entre nós, tende a adquirir dois sentidos relacionados. Lixo é
aquilo que ninguém quer, é o inútil e poluente, objeto de descarte e rejeito.
Mas o lixo também pode ser um lugar, como diz a frase “lugar de lixo é no
lixo”. Como o lugar, o lixo também pode ser um espaço de acolhida
de coisas e pessoas, seres inanimados e seres animados rejeitados.
É assim que, por vezes, os sentidos da rua e do lixo se tocam, promo-
vendo a formação de agrupamentos humanos quase sempre subal-
ternizados, recusados e desassistidos . É dessas figuras de fronteira que
muito da novidade do mundo surge. Quem trabalha próximo dessas figuras
têm de lidar com um campo altamente conflitivo e contraditório, e por isso
mesmo de difícil entendimento e inteligibilidade. Assim, gostaria de discutir
pontualmente com vocês algumas categorias básicas de interpretação e aná-
lise da experiência urbana, destacando as possibilidades de pensar o tempo
e suas variações, as temporalidades. E faço isso considerando, principalmen-
te, os diferenciais de poder e a desigualdade de acesso que estrutura a vida
social na cidade.

Espaço e Tempo
Nos chamados estudos urbanos, um campo interdisciplinar que incorpora uma
ampla multiplicidade de ciências (urbanismo, geografia, sociologia, história,
antropologia etc), as categorias espaciais têm importância especial. Por isso
fala-se tanto em território, paisagem, zonas, habitação, localização, centro,
periferia, margem, fronteira etc. Essas categorias nos fornecem imagens de
conjunto, permitem interpretações que articulam as junções e divisões da ci-
dade, oferecem imagens poderosas sobre as formas de encontro e desencon-
tro entre pessoas e coisas, equipamentos e populações. Elas também ajudam
a dar um sentido de materialidade que ancora nossa experiência urbana e, em
grande medida, a determina em termos de escolha, mobilidade e segregação.
Mas, o que define o espaço? Uma pergunta difícil. Importa que historica-
mente sua definição foi alvo de grande controvérsia. Um exemplo claro é a dis-
cussão sobre o tamanho de um metro como unidade de medida intercambiável

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que pode se multiplicar e desmultiplicar em milímetros, centímetros, quilô-
metros e jardas. A definição sobre a medição do metro não foi algo simples,
mas hoje, em muitos países, ele é uma unidade espacial tida como comple-
tamente natural, algo dado. Com isso quero dizer que o espaço é ele mesmo
construído e produzido pelos seres sociais que o manipulam como coisas evi-
dentes. Algo semelhante se pode falar em relação ao tempo. Quem definiu
o segundo, uma unidade basilar da medição temporal? Questão também di-
fícil. No entanto, é essa pequena unidade intervalar, o segundo, que fornece
o lastro para as ordens temporais que lhe seguem em escala ampliada: mi-
nutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, centenários, milênios etc.
Nesse sentido, o relógio e o calendário são poderosíssimas tecnologias
de controle do tempo. Historiadores contam que as primeiras manifesta-
ções trabalhistas no início da industrialização não foram contra o patrão,
muito menos contra o maquinário produtivo, mas contra uma máquina mui-
to específica: o relógio. Mirando no relógio como sujeito opressor imediato,
trabalhadores queriam quebrar com a mecânica daquele tempo que, acre-
ditavam eles, os dominava e os governava violentamente de fora. A revolta
contra o relógio era uma forma de não precisar seguir a risca o regime
disciplinar do tempo que os cerceava e os limitava. Antes eles estranhavam
o tempo do relógio, hoje todos nós incorporamos completamente esse tem-
po. Relógios de pulso e celulares acompanham de perto nossa vida mais
íntima como parte dela, fazem parte dela, a integram. Por sua vez, nosso
calendário nacional acaba por definir, em datas, feriados e festividades, um
tempo especificamente brasileiro. Determinado pelo Estado brasileiro, nos-
so calendário é cristão, articulado em função do “filho de Deus”, em antes
e depois de sua morte, AC e DC. Mas, se no Brasil nem todos são cristãos,
imaginem no resto do mundo. Países orientais possuem seus próprios siste-
mas de notação temporal. A Tailândia e a China, por exemplo, possuem seus
próprios calendários nacionais, muitos distintos dos cristãos. Se o ocidente
vive no ano de 2016, o Oriente chinês encontra-se mais a frente, no ano
de 4715. Mas, esses dois tempos, o ocidental e o oriental, coabitam o mesmo
planeta, são globalmente contemporâneos. Como então articular espaços e
tempos tão distintos?

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Milton Santos, um de nossos maiores geógrafos, certa vez, chegou
a definir conceitualmente o espaço como “a acumulação desigual dos
tempos”. Para ele, os territórios eram formados por várias camadas
temporais mais ou menos desajustadas. Analisar tais camadas estra-
tificadas era fazer um espécie de “arqueologia do lugar”. Cada lugar
também teria sua própria velocidade, seu próprio tempo de giro. Milton
Santos, que no final da vida se interessava por desenvolver uma geografia mais
dinâmica, que chamou de “geografia dos tempos”, morreu em 2001. Não viveu
conosco os últimos 15 anos do país. Porém, ele acreditava que uma das princi-
pais formas de desigualdade no acesso aos recursos sociais era justamente de
ordem temporal. Para enfrentar o problema das relações entre as classes e os
espaços, refletia sobre o tempo. Pensava com isso que a pobreza era marcada
por um tempo lento e lerdo, um tempo preso no deslocamento entre o trabalho
e a casa, preso no trânsito. Este era o tempo dos subalternos e mais vulneráveis,
arrastado e demorado, atado ao mundo do trabalho precário e da tradição,
enquanto nos circuitos de riqueza a velocidade era alta, a infraestrutura tecno-
lógica dava impulso, tinha poder, rompia barreiras e ultrapassava o movimento
dos mais pobres. Segundo ele, essa era uma desvantagem estrutural para se
pensar a cidadania, como plena igualdade de direitos e, em última instância,
um limite para se fazer a própria “revolução” – um conceito que também im-
plica em mudança e transformação histórica. Seja como for, sabemos hoje que
os pobres também tem seus tempos rápidos. Os celulares permitem ao PCC dar
um “salve” numa cadeia, que se espraia rapidamente entre outras unidades
prisionais e que chega nas favelas, periferias e até nas ruas do centro das cida-
des (lembremos de maio de 2006 em São Paulo). De fato, o acesso a tecnologia
permitiu coisas inimagináveis em termos de aceleração do tempo.
A seguir, gostaria de destacar esta dimensão temporal nas relações ur-
banas e aponto a seguir, de forma muito esquemática, 3 eixos temporais in-
teressantes para se pensar a cidade e a política, sobretudo a partir de minha
experiência com o mundo das ruas e suas relações com o direito: 1) o tempo
histórico; 2) o tempo das ruas e; 3) o tempo dos serviços.

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Tempo histórico
Que fique claro, a democracia não é um valor absoluto. No Brasil, a democra-
tização pode ser entendida como um processo de luta histórica marcado por
um movimento de “vai e vem”. Tivemos surtos de democratização pós-Ge-
túlio Vargas e o golpe de 1964 desdemocratizou muitos destes direitos po-
líticos conquistados. Posteriormente, com as “diretas já”, a redemocratiza-
ção levou a uma nova “Constituição Cidadã” que é a que temos ainda hoje.
Atualmente, estamos passando por um intenso processo de desdemo-
cratização no qual nossa Constituição está sendo dilapidada e ar-
ruinada aos poucos. Com isso, a garantia de direitos se modifica e,
como as ondas do mar na areia, parece retrair os benefícios de am-
plos setores da população que, pela primeira vez na história do país,
tornaram-se foco de alguma atenção pública. Seja como for, importa
que no tempo histórico as políticas sociais se transformam de acordo com
os movimentos da economia política global e suas formas de entendimento.
Importa que foi com o fim da ditadura que assistimos ao surgimento de
novos e importantes direitos: ECA, Lei Maria da Penha, SUS, SUAS, Lei de
atenção à População de Rua e também o reconhecimento dos catadores de
materiais recicláveis como uma ocupação.
Na Região Metropolitana de São Paulo, esse processo histórico acompa-
nhou a transformação material da paisagem urbana: surgimento de condo-
mínios fechados, shoppings centers, crescimento de favelas, encastelamento
urbano e o erguimento de muros, encarceramento em massa e correlata es-
truturação de um mercado e uma nova tecnologia da segurança privada. No
campo das políticas sociais, os serviços da assistência social, depois da saúde e,
ao que tudo indica, agora os da educação, caminham em direção a uma tercei-
rização generalizada. Antigos movimentos sociais da periferia, neste processo,
institucionalizaram-se e se transformaram em ONGs “gestoras de políticas pú-
blicas”. Se antes esses sujeitos coletivos representavam os interesses populares
e pressionavam os poderes públicos de baixo para cima, agora, a direção do
sentido da representação pode ter sido invertida: eles representam muito mais
os interesses do Estado mediante projetos pontuais e licitações temporárias
voltadas para “públicos-alvo” muito específicos.

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O tempo histórico marca a cadência dos serviços nos territórios
urbanos, estabelecendo relações com outras dinâmicas, instituições,
poderes e representações que ali já estavam circulando. Nas ruas do
centro de São Paulo, uma modificação nas últimas décadas é clara. Se a con-
quista dos direitos da população de rua se efetuou em decorrência da vincu-
lação deste contingente ao problema estrutural da migração (o êxodo rural) e
da ausência de trabalho (desemprego num mercado excludente), hoje toda a
figuração pública das vidas de rua não se faz mais em função da perspectiva
da “construção da cidadania”, mas da “falta de civilidade”: o uso de drogas
(marcadamente o crack) e a tal da “violência urbana” (mesmo quando são as
próprias vidas de rua que morrem e são as vítimas dessa violência). Cotejando
a relação entre política e cidade no transcorrer do tempo histórico, vemos
como o cenário atual é radicalmente outro.

Tempo das ruas


Saindo do tempo histórico e pensando no tempo do cotidiano nas ruas, a ques-
tão muda de forma. As experiências temporais mudam de figura para figura.
Do ponto de vista do morador de rua, ou mesmo do trabalhador de rua – cata-
dor, camelô, pedinte, prostituta, usuário ou vendedor de droga – as temporali-
dades das dinâmicas de rua são determinantes. Suas atividades dependem des-
sa organização temporal dos espaços públicos regulados por ordens diversas.
As pessoas que vivem e trabalham nas ruas experimentam, fundamen-
talmente, um tempo da espera. Organizam seu tempo em função do tem-
po do outro, dependem do ritmo alheio. É um tempo tático e não estra-
tégico. Como não possuem um lugar que lhe é próprio, a não ser a rua, que é
um espaço de outrem e que o poder público reivindica como seu, estes sujeitos
precisam saber esperar, aguardar. Eles devem ter muita paciência e astúcia. A
incerteza é uma certeza permanente, pois dependem quase sempre do outro.
Eles se movimentam muito em função deste ritmo alheio. É na relação com este
tempo de outro que o seu próprio tempo é construído.
No caso da pessoa em situação de rua, é comum que, se ele quer comer,
precisa se articular em função dos restaurantes que podem oferecer comida,
ou mesmo de seus clientes que podem se sensibilizar mediante um pedido.

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Deve-se esperar o momento oportuno para pedir, acharcar. O pedir, esmola
ou não, é uma ação, uma relação social que depende do outro. Deve encon-
trar, portanto, um tempo comum entre aquele que se dispõe a dar e a neces-
sidade de quem recebe. O mesmo nos caso dos serviços da assistência,
entendidos por muitos moradores de rua mais na chave da dádiva e
do favor do que na chave dos direitos e do dever do Estado. Assim, ele
pega a fila duas horas antes do albergue (Centro de Acolhida) abrir ou
uma hora antes do refeitório distribuir as senhas. Seu tempo também
é organizado em função do tempo do serviço e há um longo tempo de
espera, o que promove uma segregação espaço-temporal do usuário,
que atrela sua mobilidade urbana com o lugar e o horário de funcio-
namento de um serviço especifico.
No caso dos catadores de rua, a questão muda um pouco. Ele não pode
usar abrigos, albergues ou centros de acolhida. Quase não tem lugar para
estacionar a carroça dele. Além disso, para entrar, ele tem de estar às 17 horas
lá, sendo que o “bom material reciclável” começa a ser deixado pelas lojas
nas ruas justamente nesse horário, quando ele está entrando no albergue ou
casa de acolhida. Para ser catador de rua, a pessoa tem de saber circu-
lar, procurar, saber onde encontrar material, tem de saber garimpar
no espaço urbano. Mas tem de ter tempo para fazer tudo isso e extrair
o recurso lançado pelo cidadão como rejeito. Ele acompanha o tempo e
o espaço da desova dos materiais na cidade, são coletores nômades urbanos.
Considerando a questão das mulheres que vivem e trabalham nas ruas, a ques-
tão torna-se mais complexa ainda pois, principalmente nas noites, seus corpos
são objetos de desejo e violência. Daí que a vulnerabilidade de seus corpos
também varia de acordo com o tempo diário das ruas.

Tempo dos serviços


Uma última realidade temporal a colocar, muito brevemente, é o tempo dos
serviços. Se o discurso das políticas públicas é aquele da “garantia dos direi-
tos” e da “construção da cidadania”, no cotidiano dos serviços, ali precisa-
mente onde estes direitos deveriam ser efetivados, as coisas são bem mais
complicadas. Em termos legais, segundo o SUS e o SUAS, o acesso aos serviços

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da assistência e da saúde é um direito, quase sempre universal e irrestrito mas,
na prática, mecanismos de seletividade, formais e informais, determinam em
grande medida o fluxo dos benefícios envolvidos. Com recursos limitados e um
público que não para de crescer, as organizações responsáveis e seus traba-
lhadores precisam reinventar a lógica de funcionamento local para conseguir,
como se diz, “fazer a máquina andar”. Este imperativo de funcionamento, “não
pode parar”, é um dos fatores que cria novos critérios locais de atendimento,
definindo perfis específicos e não o público em geral, selecionando-os princi-
palmente através da gravidade dos casos: pessoa em situação de rua; famílias
com crianças e que perderam suas casa; mulheres, gays e trans que sofrem
violência sexual; etilismo avançado e uso compulsivo de drogas; distúrbios li-
gados à saúde mental etc. Assim, boa parte dos encaminhamento funcionam
“apagando incêndio” e “passando o caso” para outros estabelecimentos.
Na minha experiência com os trabalhadores sociais de rua que
atuam no centro de São Paulo, este tempo da urgência é algo radical
que dita, em grande medida, o ritmo do cotidiano do serviço. A urgência
insurge como um evento prioritário que ultrapassa os outros casos.
Aqui o fundamental não é a “construção da cidadania” ou o direito so-
cial (habitação, saúde, educação, inserção etc), mas fundamentalmente
o direito à vida ou à sobrevida. É uma lógica diferente daquela na qual
a cidadania deveria operar, que defende direitos iguais para todos.
É o tempo da ação rápida, imediata e do “aqui agora”. O que faz tais servi-
ços serem colonizados por uma razão humanitária, uma lógica da salvação, do
curativo, da alimentação, do abrigamento e do acolhimento no frio (pensemos
nas 2.000 vagas criadas nas “tendas emergenciais” para a população de rua em
São Paulo no inverno de 2016). Trata-se do tempo da intervenção imediata e
do trauma. Relatos frequentes de que “os serviços apenas funcionam mediante
casos de surto” ou então de que “é mais fácil conseguir uma internação com-
pulsória que uma voluntária”, demonstram o tipo de seletividade aí envolvido.
Tudo isso torna o trabalho com o público das ruas um terreno de altamente
volátil e imprevisível, um espaço contornado por uma temporalidade própria,
distinguível e capaz de quebrar o fluxo do ordinário. Esta excepcionalidade de-
fine o tempo da urgência que gravita entorno do serviço.

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Mas há também no tempo dos serviços a persistência de um tempo lento,
teimoso e que não muda. O tempo que permanece crônico, imutável. Não só
porque aparentemente “o público não adere às políticas públicas”, também
são “as políticas públicas que não aderem ao público”. Por sua vez, como se
ouve com frequência, “a rede não funciona”, “emperra na burocracia” e, por
isso, muitas vezes o árduo trabalho de um assistente social pode ir água abaixo.
Os Sistemas Únicos (SUS e SUAS) operam diariamente mediante números, esta-
tísticas e quantidades de casos. O que leva a um impasse no atendimento, que
opera em outra lógica temporal. Enquanto para os sistemas o que importa é
a população, seu número cifrado, para a relação de serviço o que importa é a
subjetivação, sua manifestação qualificada. Entre a ponta do serviço, quem
atende diretamente o público, e os gestores, que manipulam os dados e
orçamentos, há discrepâncias. O que faz o próprio tempo dos serviços
ser plural internamente, com tensões hierarquicamente articuladas.

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Tempo do trabalho e trabalho do tempo
Tudo isso chama a atenção para uma morfologia política dos tempos. Mudan-
ças acontecem em uma cadência diferente, em que as transformações não são
perceptíveis de imediato. E era isso que queria trazer para vocês. Para quem
trabalha diretamente com a vida alheia, uma vida de outrem que também
afeta a sua, essas coisas ficam ainda mais complicadas, pois não se trata, como
a imagem de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”, da simples manipula-
ção de peças inanimadas numa máquina em funcionamento e que não pode
parar. Aqui os objetos de trabalho são os próprios sujeitos humanos, o que
torna tudo mais difícil.
Fato é que o trabalho de acompanhamento na reelaboração da vida de
qualquer atendido – consultas no serviço de saúde, aquisição de documentos,
articulação de relações familiares e novas formas positivas de identificação –
tende a ser muito lento. Por sua vez, o tempo da destruição é muito mais rápido
e brusco. Ele quebra e rompe. A violência policial pode deslocar o lugar daquele
que, horas antes, foi um assistido do Estado, levando seus documentos, remé-
dios e até mesmo sua dignidade própria. Também um acontecimento corriquei-
ro nas ruas pode o humilhar, funcionando como um evento crítico que o lança
de volta “ao copo” ou “à pedra”. O tempo da desmontagem quase sempre é
mais veloz que o lento tempo da cuidadosa montagem.
Assim, a dinâmica dos serviços está na intersecção de inúmeros tem-
pos. Ela é um ponto de contato e de confrontação. O serviço é um lu-
gar de tensão entre mundos distintos e tem que lidar com isso. É preciso
guardar tempo para a maturação, a reflexão, a construção dos enten-
dimentos e sentidos. O trabalho do tempo é o trabalho de transforma-
ção do mundo. Por isso, o tempo do trabalho social tem de aprender a
acompanhar todos esses outros tempos: o seu tempo e o dos outros, o
tempo do trabalho e trabalho do tempo.
Ora, era justamente esse o problema fundamental destacado pelo o Pro-
fessor Milton Santos: a coexistência da multiplicidade de tempos num equilí-
brio sempre precário entre hierarquias de ritmos heterogêneos e antagônicos.
Esta coabitação dos tempos, anunciada por Milton Santos, pode ser assim des-
dobrada em seu outro, a dos tempos do habitar. Tempos esses, acompanhados

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por um trabalho perpétuo alocação e realocação do ser no mundo, um ver-
dadeiro trabalho do tempo que se inscreve e se reinscreve permanentemente
no tecido da vida. Por mais precária e inabitável que seja a habitação alheia,
trata-se sempre de um modo específico de habitar o mundo. Um mundo, por
vezes, completamente destruído e composto apenas por fragmentos e destro-
ços. Mesmo o habitar pelo avesso, feito sem tempo próprio, nos escombros e
nas sombras, não deixa de ser uma “morada do ser” completamente legítima
pelo fato mesmo de sua existência. E nesta morada não há soluções extraor-
dinárias. O enfrentamento dos problemas não pode ser colocado no grande
heroísmo dos políticos que, de 4 em 4 anos, querem reinventar a roda, mas
na descida ao tempo ordinário do cotidiano. Por isso a importância de darmos
tempo ao trabalho do tempo. Dar tempo às formas de recomposição da vida
e reabitação do mundo, nossa e dos outros. A vida é recuperada não no ges-
to majestoso e extraordinário, mas na descida ao tempo comum, ao tempo
de cada habitar. Cada subjetivação ao seu modo, aos poucos, de pedaço em
pedaço, parte por parte. Pois, como nos dizem os narradores de nossas perife-
rias: “nada como um dia depois do outro dia”.

Referências
Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, In: https://www.youtube.com/watch?v=
CozWvOb3A6E

Santos Milton, “O mundo global visto do lado de cá”, In: https://www.youtube.


com/watch?v=-UUB5DW_mnM

1. DANIEL DE LUCCA – Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP-SP) e


pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Email: dandelucca@gmail.com. Seminário proferido em 1 de julho de 2016, Osasco.

23
24
a rede de proteção de crianças e
adolescentes em acolhimento: construindo
lugares de referência1
Carla Biancha Angelucci2

Gostaria de agradecer a possibilidade de interlocução sobre a produ-


ção e a sustentação de uma rede de proteção social a crianças e adoles-
centes que vivem situações de acolhimento institucional. O tema é muito
significativo, pois no coloca no exercício de pensar a construção de laços sociais
entre as crianças e adolescentes, a partir do lugar social de agentes públicos que
somos, quando atuamos nas mais diferentes políticas públicas. Agentes sociais
com a responsabilidade de acolher pessoas que, muitas vezes, não têm ape-
nas seus laços familiares impedidos, mas seus laços impedidos com a circulação
social, com a fruição do direito à cidade. Em grande parte das situações, suas
famílias de origem já tinham sistematicamente prejudicados seus direitos fun-
damentais, criando cenários de tamanha precarização da vida, que, por vezes,
impede que sustentemos nossa humanidade e a humanidade de nossas crianças
e adolescentes. Enfim, nosso trabalho, aqui, é o de criar possibilidades de resti-
tuição de direitos, de sustentação de intervenções subjetivantes.
Foram-me colocadas duas questões disparadoras, que eu nomeio assim:

• O lugar dos serviços de acolhimento nessa rede que busca efetivar


direitos das crianças e adolescentes
• O que podemos fazer, desde os equipamentos em que trabalhamos,
para apoiar a construção dos projetos de vida das crianças e
adolescentes que estão em serviços de acolhimento?

25
Esses são temas centrais para todas/os nós, aqui presentes, e podem orientar
os trabalhos de hoje: efetivar direitos e apoiar a construção de proje-
tos de vida. Pensei, assim, em levantar alguns pontos que podem nos ajudar
na discussão. Vou apresentá-los aqui e ensaiar algumas reflexões:

Sobre crianças e adolescentes


É muito comum que encontremos palestras, livros e vídeos abordando o surgi-
mento da infância e da adolescência, como entidades abstratas e homogêne-
as. Afirmações como: “a infância surge nesse contexto...” ou “a adolescência
é construída na Idade Moderna”. Aparentemente, tais afirmações partem de
compreensões contextuais desse tempo da vida humana. Entretanto, ao não
fazerem leituras que considerem, por exemplo, a luta de classes, as diferenças
entre história ocidental e oriental, as diferenças de gênero e sua relação com o
trabalho doméstico, entre outros aspectos, acabam por disseminar uma ideia
de infância e uma ideia de adolescência como etapas da vida pelas quais to-
das/os nós passamos igualmente. Resumindo, continuamos homogeneizando
diferenças muito significativas, à medida em que implicam outras condições
de vida e outro olhar para os sujeitos.
Também é importante destacar que se cria uma expressão “infância
-adolescência”, inclusive com legislação e políticas específicas. Tal ex-
pressão acaba por convidar-nos a ler o fenômeno da infância e o fenô-
meno da adolescência sempre de maneira conjugada, forçando com-
preensões homogêneas sobre tempos tão distintos da vida humana.
Acabamos por falar de crianças de dois anos e de adolescentes de dezessete
anos a partir dos mesmos parâmetros, mesmo quando reconhecemos condi-
ções de vida e experiências tão distintas. Acabamos criando palavras de ordem
que não nos permitem avançar na garantia de direitos e, sobretudo, no res-
peito à autonomia. Por exemplo, falamos de protagonismo de crianças e ado-
lescentes como se fosse possível estabelecer os mesmos métodos e esperar a
mesma participação de uma criança pequena e de um jovem. Acabamos, assim,
não valorizando o protagonismo de ninguém.

26
É nesse sentido, que sugiro dois deslocamentos para pensarmos a rede
de proteção: o primeiro estaria ligado à exigência de pensarmos sobre como
se objetivam as condições de vida das crianças e dos adolescentes
com quem trabalhamos. Quais são seus pertencimentos socioeconômicos,
etnicorraciais, religiosos? Que diferenças percebemos em relação à gênero
e à orientação sexual? Como isso constrói infâncias e adolescências e, mais
ainda, que desafios essas infâncias e essas adolescências trazem para nosso
trabalho? O segundo deslocamento é o de refutarmos a expressão infância
-adolescência que homogeneíza tempos da vida e experimentações do mun-
do tão distintas. É preciso que nos ocupemos de pensar distintas demandas
trazidas por esses diferentes tempos da vida.

Sobre o acolhimento
Há crianças, há adolescentes e há jovens que, pelos mais variados motivos,
não têm a possibilidade de conviver em família. Pelos mais diferentes motivos,
estão retiradas/os da convivência com a família expandida e também da expe-
riência comunitária. E isso implica muitas perdas. Gostaria de enfatizar aqui
o fato de que se trata de pessoas que estão fora dos processos de circulação
social que, em nossa sociedade, tomamos como fundamentais para o processo
de subjetivação. A produção e o reconhecimento de pertenças, com todos os
ônus e os bônus disso, estão impedidos ou, no mínimo, prejudicados.
São crianças e são adolescentes que, a todo tempo e em todos os lugares, são
lembrados de que suas vidas estão organizadas pela ausência de uma família. E
não se trata de dizer se seria melhor ou pior estarem com suas famílias. Trata-se
de reconhecermos que essa marca estará visível, pública e, por isso, constituirá a
maneira como elas/es serão olhadas/os a todo tempo nos mais diferentes espaços
sociais que circulem: da praça ao fórum. E cada pessoa que as/os olha, cada
espaço por elas/eles frequentado cria uma narrativa que busca justifi-
car a situação de acolhimento. Todas/os acham que têm o que dizer so-
bre a situação. Quase ninguém se preocupa em perguntar como aquela
criança, como aquela/e adolescente vive sua condição. Assim, espalham-
se versões sobre ela/ele, sem a possibilidade de que ela/ele possa dizer de
si. Não lhe é assegurado o lugar de sujeito de sua própria história.

27
E, convenhamos, nós não costumamos ser muito generosos nas nossas his-
tórias... pensamos em pais violentos, em mães negligentes, em crianças terrí-
veis... enfim, partimos da ideia de que existe uma/um culpada/o. Alguém que
fez algo mau. Alguém que é mau.
Dificilmente, paramos para refletir sobre a construção da teia em que se
tece uma a história de uma vida, com seus tantos fios e suas tramas. Dificil-
mente, consideramos os momentos na vida em que nos enroscamos na teia,
perdemo-nos, não sabemos mais como voltar atrás, não sabe como seguir
adiante. Não por sermos maus, nem por sermos alvos de maldade alheia, mas
porque viver neste mundo é difícil.

Sobre efetivar direitos


Pois bem, nós, que estamos aqui, somos profissionais responsáveis por traba-
lhar com essas crianças e esses adolescentes em diferentes serviços, referidos a
distintas políticas que visam à garantia de diferentes direitos.
Em meio à tamanha complexidade e, muitas vezes, sem articulação
com nossos pares, é costumeiro que nos paralisemos diante da ideia de
que, como uma violência muito radical já ocorreu, como algo muito
fundamental deixou de ser garantido para essas pessoas, qualquer coi-
sa que façamos será insuficiente. Às vezes, pegamo-nos pensando que a
marca feita pela tragédia ou pela violência é tão brutal, tão profunda, que
esses meninos e meninas não vão terão outra possibilidade que a de perma-
necer em uma vida precária. Ou seja, por reconhecermos que um direito muito
fundamental foi violado, ficamos tão marcados por isso quanto nossos meni-
nos e nossas meninas. Parece que nada que possamos oferecer será suficiente.
Mas é preciso perguntar: suficiente para quê? Suficiente para quem? Se
nosso parâmetro é apagar a violação, cobrir seus rastros e seus efeitos, impe-
dir que a vida de meninos e meninas seja marcada pela dor, sim, nossa tarefa,
mais que insuficiente, é impossível. Estamos fadadas/os ao fracasso.
Porém, se compreendemos que nossa tarefa não é apagar o passa-
do e nem seus rastros, mas produzir, com as meninas e meninos, uma
narrativa sobre o que lhes passou e, com isso, uma certa leitura sobre
sua condição do sujeitos em um mundo concreto, abre-se caminho para

28
ações de reconhecimento e reparação. Sim, todas e todos têm direito à
memória e à reparação. E, nós, agentes públicos, somos as/os profissio-
nais responsáveis por objetivar tais direitos.

Sobre apoiar a construção de projetos de vida


Esta é a nossa função: apoiar essas crianças e essas/es adolescentes em dois
movimentos que acontecem concomitantemente: a) conhecerem sua história
e conseguirem pensar sobre o que lhes aconteceu; b) perceberem que não são
condenados pela história, que ninguém é condenada/o. São todas/os marcadas/
os pela história, porque todas/os nós o somos. Isto permite lançarmos mão de
outros apoios, de outras pessoas, de outro repertório para, então, apossando-
nos do que foi feito de nós, podermos avançar na produção de sonhos.
Assim, nós, profissionais, temos uma importante contribuição que
é a de ofertar outras histórias, outros sonhos, outros projetos exis-
tentes em nossa cultura. Enfim, apresentar trajetos e sustentar, nesses
meninos e meninas, a afirmação de si como pessoas que têm uma histó-
ria, não uma condena: essa é nossa tarefa. Porém, para poder sonhar, é
necessário que esses sujeitos possam encontrar outro mundo que não
aquele que os feriu tão profundamente.

Sobre tecer redes


É nesse sentido que a tessitura da rede de proteção é tão importante, pois, o
que devolve uma criança ou uma/um adolescente que teve seus direitos vio-
lados ao mundo é a possibilidade de circular para encontrar outro mundo,
produzir outras pertenças. E isso se faz com participação comunitária.
Entretanto, não é fácil para ninguém, muito menos para esses meninos
e meninas, circular em um mundo tão hostil. Nosso mundo não é hospitalei-
ro. Não se trata de fazer a lista das instituições não hospitaleiras: a escola,
o Saica, a UBS, a guarda, a Vara da Infância... Trata-se de percebermos que
não construímos um processo de socialização baseado na hospitalidade. Por
hospitalidade quero dizer, muito simplesmente, a possibilidade de ofertarmos
espaços e relações em que os sujeitos sintam que estão sendo recebidos e re-
conhecidos como pessoas dignas de estarem ali.

29
Nos espaços da vida cotidiana, nossas crianças e nossas/os adolescentes
que vivem situações de acolhimento são olhadas/os com desprezo, com medo,
com dó, com nojo... e, crianças e adolescentes que são, vivendo isso muitas e
muitas vezes em suas peles frágeis, às vezes grossas de tantas cicatrizes, vão
responder da forma como podem, não da forma que consideramos idealmen-
te adequada. É possível que elas/eles reiterem o estereótipo de que são agres-
sivas/os, de que são briguentas/os, impossíveis, sem graça, zumbis....
Quero lembrar, aqui, que somos nós as/os adultas/os dessa história.
Somos nós que temos que apoiar a criação de outras respostas, apresentando
outras possibilidades, outras possibilidades de relação entre as pessoas e com os
espaços da vida pública. Nós, as/os adultas/os temos o dever moral de criar condi-
ções para que esses meninos e meninas realizarem sua humanidade.
Crianças e adolescentes que sofreram muito costumam deixar de ser vistos
a partir da lente com a qual percebemos a infância e a adolescência. Como as/
os trabalhadoras/es rurais que, de tanto trabalhar de sol a sol, veem desapare-
cer as marcas da juventude, os corpos pequenos, às vezes mirrados de nossas
crianças, mesmo sendo corpos miúdos são vistos como corpos que não abri-
gam mais uma criança. Acabamos por sentir medo, por nos sentir ameaçadas/
os. É preciso esforço para lembrarmos – e lembrarmos a elas/eles também – de
que ali tem criança, de que ali tem um garoto ou uma garota.
E por isso, a rede é tão fundamental: porque ela nos coloca, as/os
adultas/os, de mãos dadas trabalhando. Profissionais de saúde, de educa-
ção, da assistência social, da segurança... todas/os discutindo como sustentar, na
comunidade, a ideia de que essas meninas e meninos precisam e podem parti-
cipar dos equipamentos sociais, das atividades, da circulação. Todas/os juntas/os
pensando o que fazer quando elas/es sofrem, quando violam as regras, quando
não reagem aos nossos convites. Somos nós, as/os adultas/os, que temos a fun-
ção social de nos responsabilizar por sustentar os laços sociais dessa meninada,
porque, afinal, foi o que estabelecemos desde a Constituição Federal de 1988 e
o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990: queremos ser uma sociedade
em que as/os adultas/os protegem suas crianças e suas/seus adolescentes. Essa
afirmação tem significações as mais complexas. Destaco uma no contexto desta
discussão: a da criança como sujeito do cuidado público.

30
Veja, o lugar de filha/o é sempre um lugar percebido como privado. Sou
filha de uma determinada mãe. Sou filha de um determinado pai. Meu pai não
me registrou. Minha mãe não pode ficar comigo, etc. A presença do pronome
possessivo e do indicativo de pertença sempre se fazem presentes.
Diferentemente do lugar de filha/o, o lugar de criança e o lugar de
adolescente é sempre um lugar público. Independentemente de quem são,
onde estão e como estão minhas/meus familiares, continuo sendo criança, conti-
nuo sendo adolescente. E sustentar condições para que a infância e adolescência
sejam vividas é função pública de todos nós que somos agentes públicas/os.
Termino compartilhando o poema A Praia, de Rabindranath Tagore, es-
critor indiano mencionado muitas vezes por Winnicott, o pediatra que se fez
psicanalista a partir do contato sensível com crianças muito machucadas pela
precariedade da vida na guerra.

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As crianças se encontram nas praias dos mundos sem fim.

O céu infinito está imóvel lá em cima e a água inquieta está revolta. Na praia
dos mundos sem fim as crianças se encontram entre gritos e danças.

Constroem as suas casas de areia e brincam com suas conchas vazias. Tecem
de folhas secas os seus botes e, sorrindo, os largam a flutuar no vasto mar. As
crianças se divertem na praia dos mundos.

Não sabem nadar, não sabem lançar redes. Os pescadores de pérolas mergu-
lham em busca de pérolas, os mercadores navegam em seus navios, enquanto
as crianças ajuntam seixos e os espalham de novo. Não procuram tesouros
escondidos, nem sabem lançar redes.

O mar encapela-se entre risos, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar... As


ondas que trazem a morte cantam para as crianças baladas sem sentido, tal a
mãe que embala o berço de seu filho. O mar brinca com as crianças, e, pálido,
fulgura o sorriso da praia do mar...

As crianças se encontram na praia dos mundos sem fim. A tempestade vagueia


pelo céu sem caminhos; soçobram navios nos ínvios mares; a morte anda às
soltas, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim é que se dá o gran-
de encontro das crianças.

1. Conferência de abertura do “Seminário de Rede: Enlaces entre a rede de proteção de cri-


anças e adolescentes em acolhimento”, realizado no dia 29 de Julho de 2016, em Osasco.
2. Carla Biancha Angelucci – Psicóloga, doutora em Psicologia Social e mestra em
Psicologia Escolar. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
nas áreas de Educação Especial e Sociologia a Educação. Email: b.angelucci@usp.br.

32
Pois que sejamos mais praia de mundos sem fim para nossas meninas e
meninos encontrarem condições de nos habitar. Ao nos habitar, quem
sabe, poderão experimentar a hospitalidade que estamos tecendo nesta
rede. Rede que quer sustentar as possibilidades de sonho dessa gente miúda
que tem gesto reticente, pois que traz na memória as tantas andanças no fio
da navalha, sem rede.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. 1988
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília. 1990.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
WINNICOTT, D.W. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

33
2
34
produção
dos encontros
temáticos
35
36
encontros temáticos:
práticas prioritárias e possibilidades
de experimentações

Em Novembro de 2015, o Núcleo Entretempos realizou o seminário “Construção


de diretrizes comuns para elaboração do Projeto Político-Pedagógico”, voltado
para os profissionais dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes,
CRAS e Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, com uma pro-
posta diferente: escutar da gestão da SAS, em especial da diretoria da Proteção
Social Especial e da Proteção Social Básica, quais as prioridades e o planejamento
para os serviços que estavam sob sua gestão. Tais prioridades, pontos nevrálgicos
que eram o foco de atenção da gestão, foram traduzidas em práticas prioritarias
para os serviços, que precisavam ser implementadas, qualificadas e discutidas.
Assim, esse seminário teve como objetivo apresentar aos profissionais
o histórico e o momento atual dos serviços em Osasco e esclarecer, pactuar
e iniciar o desenvolvimento das práticas prioritárias mínimas que devem ser
desenvolvidas por cada um deles. Essas práticas constituem as diretrizes co-
muns dos Projeto Político-Pedagógico de cada tipo de instituição - Serviços
de Acolhimento, Cras e Serviços de Convivência. Essa direção de trabalho visou
estreitar e alinhar os projetos da gestão com as propostas dos serviços, para
que o investimento na formação ganhasse força e respaldo e também pudes-
se ser enxergado de forma mais ampla, pensando na execução da política de
assistência social no município de Osasco.
Após a apresentação, os participantes foram divididos em três grupos, por
serviço: CRAS, SCFV e SAICA. Em cada um dos grupos, foram apresentadas as
práticas prioritárias e abriu-se para comentários e questões. Em seguida, os gru-
pos foram redivididos em três grupos menores e cada um dos sub-grupos ficou

37
responsável por debater e pensar na implementação de duas práticas. Dessa
forma, foi possível iniciar uma construção participativa das diretrizes e ações
comuns aos serviços.
O foco foi na troca de experiências e informações entre os profis-
sionais, favorecendo espaço para que todos pudessem trazer suas opi-
niões e ideias, realizando construções coletivas e democráticas sobre
como fortalecer e ou implementar as práticas discutidas no cotidia-
no do trabalho. O espaço também serviu como encontro e possibilidade
de elaboração, de não estar só, ao compartilharem as angústias, as dúvidas
e os desafios que surgem no trabalho. O encontro também permitiu discutir
o histórico, perceber ganhos nos serviços e abrir um olhar para o futuro: a
possibilidade de projetar.
Em 2016, com a intenção de dar seguimento a essas discussões e abrir es-
paço para novas práticas, a formação Enlaces criou um dispositivo, chamado de
Encontros Temáticos, pensado a partir das práticas prioritárias, com a ideia de
que fosse um espaço “mão na massa”, para fazer junto. Esses encontros não
tinham a ambição de esgotar a discussão sobre as práticas, mas de abrir novos
diálogos e auxiliar na implementação das mesmas. Os encontros tiveram os se-
guintes objetivos:

• Criar novos espaços de trocas sobre práticas entre os profissionais de


diferentes serviços;
• Viabilizar construções coletivas em relação às práticas a serem im-
plementadas;
• Ampliar o repertório de estratégias a partir das experiências em
cada serviço;
• Experimentar, a partir de proposições nos encontros, novos olhares
e possibilidades de intervenção que favorecessem a criatividade e o
encontro sensível;
• Fortalecer relações cooperativas e colaborativas entre os profissio-
nais que atuam na Assistência Social em Osasco;
• Elaborar conjutamente diretrizes comuns para a elaboração dos Pro-
jetos Político-Pedagógico dos serviços.

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Foram ofertados no total 7 encontros temáticos:

Para CRAS e SCFV


• Acolhimento - discussão das práticas: acolhimento coletivo e acolhi-
mento individual.
• Grupos e Oficinas – discussão das práticas: grupo socioeducativo,
grupo de convivência e desenvolvimento familiar, atividades com os
usuários dos serviços voltadas para conhecer e trabalhar questões
do território e intervenção piloto intergeracional.
• Articulação PAIF E SCFV – discussões das práticas: reunião mensal
entre CRAS e SCFV, ações de articulação em rede, discussão e revisão
de procedimentos de entrada, frequência e acompanhamento para
facilitar a inclusão do público prioritário e grupo mensal de famílias
nos SCFV que dialogue com as temáticas do PAIF.

Para SAICAS
• Reuniões e funções no SAICA – práticas discutidas: reunião mensal
em cada serviço com todos da equipe, definição dos papéis e fun-
ções de cada um para cada atividade da rotina diária.
• Roda de conversa e brincadeiras - práticas discutidas: roda de con-
versa e atividades semanais de convívio no serviço.
• Trabalho com famílias – prática discutida: trabalho com famílias.
• PIA e construção de projetos de sáida para os adolescentes – prá-
ticas discutidas: atualização do PIA semestralmente e atividades
específicas para construção de projeto de saída dos adolescentes
por maioridade.

39
A seguir, apresentamos a
produção dos grupos, na
expectativa de que possam
ser compartilhados,
divulgados e convidem
a todos a experimentarem e
seguirem criando em sua
prática diária!

40
proteção social básica

Acolhimento1

A acolhida, segurança prevista pelo SUAS, envolve o contato inicial de um in-


divíduo ou família com os serviços, a escuta de suas necessidades e demandas,
a oferta de informações sobre a política de assistência, o PAIF e o cuidado
constante para construção e manutenção de uma relação de confiança. Como
um momento privilegiado para construção de vínculo com as famílias, deve
ter a atenção de todos os trabalhadores, desde o momento de entrada de um
usuário no equipamento, até sua relação cotidiana.
No Encontro Temático sobre Acolhimento, procuramos discutir acolhimen-
to como postura, atitude presente a todo momento e cuidado constante que
envolve, desde a organização de um espaço organizado e convidativo à presen-
ça, até a relação com cada um dos profissionais. Algumas questões surgiram
durante este percurso de trabalho e contribuíram para guiar a construção de
ações que garantissem o direito de acolhimento do usuário:

• Como acolher mesmo em equipes que não tem um ambiente aco-


lhedor, uma vez que, independente do clima da equipe, é direito
do usuário ser acolhido?
• Como proporcionar acolhimento em espaços que não tem uma es-
trutura e nem recursos físicos adequados?
• Uma vez que se percebe que o compartilhamento das informações
proporciona um acolhimento melhor ao usuário, como envolver
toda a equipe do CRAS no acolhimento?

41
Para iniciar o debate, fizemos um levantamento de referências de acolhi-
mento, para construir parâmetros coletivos para a ação. Em seguida, mapeamos
as práticas já realizadas nos serviços para, a partir disso, construir mudanças aos
poucos, a cada encontro, percebendo os efeitos no cotidiano. Por fim, expe-
rimentamos avaliar nossas ações de acolhimento com os usuários, para tomar
decisões de melhoria. Nos dois últimos encontros, construímos uma sistematiza-
ção para que sirva de referência para os serviços e componha a construção dos
Projetos Político-Pedagógicos.
O acolhimento, enquanto postura e abertura do serviço para receber os
usuários, escutar suas demandas e construir uma relação de confiança, se dá des-
de a recepção e envolve o modo como o espaço está organizado, as atitudes dos
profissionais e os momentos específicos de acolhida particularizada e em grupo.
A recepção é o momento no qual a família recebe a primeira atenção ao
adentrar no CRAS. Ela pode ser realizada por funcionários(as) de nível médio e
é um direito da família, cabendo ao profissional responder suas demandas de
forma solícita e respeitosa. O funcionário pode: repassar algumas informações
básicas sobre o Serviço PAIF, coletar algumas informações essenciais sobre a fa-
mília, agendar atendimento com os técnicos de nível superior, entre outros. A
recepção constitui ocasião fundamental para a adesão e criação de vín-
culos fundamentais para o retorno da família.
A acolhida, como ação essencial do PAIF, é o momento privilegiado no qual
começa o vínculo entre serviço e família. O profissional deve buscar compreen-
der as demandas, vulnerabilidades e necessidades apresentadas pelas
famílias, buscando também identificar seus recursos e potencialidades
e como tais situações se relacionam e ganham significado no território.
Na acolhida, a história de cada família deve ser compreendida, quando houver a
possibilidade, a partir da escuta do maior número possível de membros.
Ações de acolhimento nos serviços são momentos de estabelecer relações
de confiança e de reconhecimento da equipe de referência do CRAS como pro-
fissionais qualificados para o atendimento da demanda familiar, permitindo a
instituição do vínculo. Para que os profissionais se tornem referência, é ne-
cessário que as famílias experimentem relações de horizontalidade, uma
escuta respeitosa e amoral, que se expressa em atitudes por vezes simples,

42
tais como: o profissional se apresentar pelo nome e chamar o usuário
pelo nome, a valorização da história, potência e relações das famílias,
a oferta das informações e encaminhamentos requeridos e relaciona-
das à demanda expressa e a participação das famílias na construção do
planejamento do atendimento e acompanhamento familiar. Na acolhida,
constrói-se uma corresponsabilização dos profissional com a família na resposta
às demandas e vulnerabilidades apresentadas, a fim de ampliar o caráter prote-
tivo do trabalho realizado.
Tomando como referência o estudo das normativas, construímos coletiva-
mente parâmetros para avaliar as ações de acolhimento. São posturas que ex-
pressam acolhimento:

Deixar a pessoa à vontade / Prestar atenção na pessoa /


Dar atenção à pessoa / Atender com bom humor / Dar
informações / Esclarecer dúvidas / Receber bem / Lembrar
das histórias das pessoas / Permitir que a pessoa conheça
o espaço, estar de portas abertas / Olhar no olho / Sorrir /
Estar inteira no que faz / Perceber e acolher as diferenças /
Ter tempo / Não ser invasiva / Possibilitar com que a pessoa
sinta que pode contar com/ter segurança / Possibilitar que
a pessoa se sinta: pertencente, cuidada e informada sobre o
que cabe ou não ao serviço / Resolver a questão que a pessoa
trouxe ou possibilitar o melhor encaminhamento / Se
preocupar com a pessoa, para além das burocracias / Olhar
para a pessoa enquanto ela fala / Dar conta o mais depressa
possível das senhas e filas / Não dar respostas apressadas

43
Em continuidade a esse processo, experimentamos algumas mudanças nas prá-
ticas de acolhimento de cada serviço.
A equipe do CRAS KM 18 relatou que trocou o balcão da recepção por uma
mesa. Essa substituição permitiu que tanto o usuário quanto o funcionário esti-
vessem sentados, e portanto, mais a vontade durante a recepção. Eles percebe-
ram que os usuários aprovaram a mudança, e que isso permitia uma vinculação
maior dos mesmos com o CRAS.
Os funcionários do CRAS Padroeira relataram que a recepcionista passou a
participar dos acolhimentos coletivos, pois dessa forma ela conseguiu se apro-
priar melhor das atividades do CRAS e consequentemente informar melhor os
usuários que procuravam seus direitos. Esta mesma equipe também relatou as
mudanças que foram produzindo na forma de realizar os acolhimentos coleti-
vos e como elas foram proporcionando um maior vínculo entre os usuários e
com o CRAS. No início, elas realizavam o acolhimento com Power Point no qual
constavam tidas as informações sobre o CRAS. Com o tempo, o acolhimento foi
sendo realizado através de uma roda de conversa, no qual o tema tratado era
escolhido de acordo com as demandas dos usuários presentes. Elas ressaltam
que essa mudança foi possível na medida em que foram se apropriando da po-
lítica do SUAS e de informações que os usuários necessitam.
Já no CRAS Bonança, eles relataram de placas elaboradas com papel sulfi-
te informando aos usuários a localização do CRAS, uma vez que eles estavam
provisoriamente atendendo no espaço da Casa de Cultura, e não possuíam uma
placa identificando o serviço.
A partir dessas experiências fizemos uma sistematização para que sirva como
guia e seja utilizado na construção do PPP. Dividimos as práticas em: cuidados
com o espaço / ambientação, recepção, acolhida coletiva, acolhida particulari-
zada, acolhida anterior às atividades. Segue a síntese construída coletivamente.

1. RECEPÇÃO
O que é?
A recepção é o coração do CRAS, é o primeiro contato com os serviços do CRAS.
É o início, a base do atendimento, o primeiro passo para o processo de inclusão
da família na rede / política de assistência, com escuta qualificada.

44
Na recepção, é necessário dar atenção ao usuário, saber ouvi-lo para informar
corretamente o que o CRAS pode fazer por ele e o que existe dentro do CRAS
– tentar resolver os assuntos e evitar encaminhar de forma desnecessária. É fun-
damental acolher a todos que chegam.

Para que serve?


Orientar
Direcionar para próximo passo (dentro do CRAS ou fora)
Coletar informações sobre a demanda do usuário e, se necessário, agendar
acolhimento com o técnico e/ou CadÚnico.
Colher assinaturas de listas de presença de atividades.
Anotar todos os atendimentos.

Como acontece?
Diariamente, das 8h às 17h, por demanda espontânea e convocação.

Quando acontece?
Diariamente.

Que profissionais estão envolvidos?


Técnico de nível médio capacitado, com suporte da gestão. Para tanto, são
habilidades necessárias: educação, empatia e simpatia.

Para quem esta prática está destinada?


Para todos que chegam ao CRAS.

2. ACOLHIMENTO COLETIVO
O que é?
É a inserção do usuário no atendimento do CRAS, sendo a porta de entrada
para a política de assistência.

Para que serve?


Para que o usuário conheça o CRAS, a assistência social, os serviços que ele pode
acessar da assistência básica e especial e ter um exercício de cidadania. Nesse
momento, pode perceber também que as demandas são compartilhadas.

45
Como acontece?
Através de uma roda de conversa, numa sala apropriada com água e café,
para que o ambiente fique mais acolhedor. A equipe deve salientar o que é o
CRAS, a apresentação da equipe e dos munícipes por nome e bairro, informar
serviços, programas, projetos e fluxos. Se necessário, deve-se encaminhar o
munícipe para atendimento individual. Ao falar das atividades, deve-se salien-
tar o papel destas, suas etapas e duração.

Quando acontece?
Quando o usuário tem interesse pelas atividades, vem em busca de orienta-
ções ou serviços, informa que nunca esteve no equipamento ou necessita falar
com a equipe técnica.

Que profissionais estão envolvidos?


Recepção, APS e técnicos e auxiliar de cozinha. Os funcionários precisam ter
clareza do que é essa atividade. Pode haver participação de outros profissio-
nais de forma direta, não somente no suporte.

Para quem esta prática está destinada?


Para novos usuários. Também pode ser utilizada como capacitação para fun-
cionários novos.

3. ACOLHIMENTO INDIVIDUAL
O que é?
Atendimento privado, sigiloso e com mais durabilidade, “especializado”. Visa
garantir atenção maior, confiança do usuário e maiores esclarecimentos.

Para que serve?


Para acolher e ouvir com mais atenção e escuta qualificada. Muitas vezes, a
pessoa fica mais à vontade para contar sobre o que está acontecendo e se
sente acolhida e, por vezes, aliviada diante da escuta e orientação. A condu-
ção de cada situação pode ser feita a partir de suas especificidades, numa
ótica de corresponsabilização. Escuta qualificada: acolhimento, mapeamento
de potencialidades e vulnerabilidades que possam auxiliar na atenção ao mu-
nícipe, fortalecimento de vínculo entre munícipe e profissionais.

46
Como acontece?
Com agendamento. Em caso de urgência, atender na hora, pois a pessoa não
poderá aguardar. São consideradas situações desse tipo:

• insegurança alimentar
• violência doméstica – nesse caso, a recepção já orienta para procu-
rar o CREAS, informando a equipe técnica do CRAS.

Obs.: difícil avaliar quando uma situação é urgente; temos que aprimorar a
escuta. Para o usuário, é sempre urgente.

Que profissionais estão envolvidos?


Profissionais de nível médio e equipe técnica. O profissional de ensino médio
deve ser orientado pelo coordenador / técnico sobre como se faz a escuta e a
garantia de sigilo e depois passar as informações para o técnico dar continui-
dade ao acompanhamento.

Para que esta prática está destinada?


Todos os munícipes têm direto ao acesso ao CRAS.

4. ESPAÇO / AMBIENTAÇÃO
O que é?
Cuidados com o espaço e ambiente, em todos os espaços do CRAS. Organiza-
ção, limpeza, decoração acolhedora. Plantas dentro do CRAS dão uma sen-
sação de aconchego. Para tornar uma decoração acolhedora, é importante o
visual externo do CRAS estar bem cuidado, para uma boa primeira impressão.
Pode-se fazer decorações temáticas com os temas geradores.
Oferta de café, água e bolachas aos munícipes.

Para que serve?


Visa mostrar ao usuário que o espaço é dele e que ele deve zelar por ele.

Como acontece?
Com acolhimento por um todo, desde a recepção até o toalete. Ambiente
limpo, organizado, aconchegante e informativo, pela junção da equipe de lim-
peza, da recepção que organiza e do usuário que preserva o ambiente.

47
Quando acontece?
Sempre, a partir de quando o munícipe entra no CRAS.

Que profissionais estão envolvidos?


Todos. Atendentes, técnicos, APS e gestor.

Para quem esta prática está destinada?


Todos os munícipes e funcionários, para melhorar a qualidade no atendimento.

5. ACOLHIMENTO ANTES DE OFICINAS E GRUPOS


O que é?
Quando o usuário entra no CRAS e é acolhido e orientado pela recepção a
ir ao local das atividades. Deve ter um café já esperando e os mesmos ficam
aguardando o início das aulas. Envolve a postura da equipe antes / durante as
atividades e a ambiência.

Para que serve?


Para o usuário se sentir seguro, para fortalecer a relação entre CRAS e usuários
e favorecer a participação.

Como acontece?
Acolhimento desde o atendimento feito no telefone e a recepção.

Ideias:
• funcionário apresentar espaços do CRAS durante o período de espe-
ra; oferecer materiais informativos sobre os serviços de assistência.
• avaliação do usuário sobre sua primeira impressão ao entrar no CRAS.

Ex.: cumprimentar os idosos antes de começarem as atividades, oferecer bolacha


e café fazendo uma pequena conversa com eles, dar atenção, perguntar se estão
gostando do atendimento e dos serviços no CRAS e compartilhar experiências.

48
Quando acontece?
Desde a entrada, durante todo o processo.

Que profissionais estão envolvidos?


Todos.

Para que esta prática está destinada?


Usuários que chegam ao CRAS para participar de grupos.

1. Encontro Temático coordenado por Natália Felix Noguchi e Carolina Bertol.

49
50
grupos e oficinas1

O que faz um grupo ser bom? Foi a partir desta pergunta que iniciamos o en-
contro temático sobre grupos e oficinas nos CRAS e Serviços de Convivência.
Para os participantes, um bom grupo deve ter:

• Objetivos claros e definidos para que todos possam se compro-


meter e confiar na proposta.
• Proporcionar sentimento de pertencimento, confiança e de grupa-
lidade; uns ajudando os outros.
• Sentir-se reconhecido na sua individualidade e acolhido na sua
diferença. O grupo deve proporcionar efeitos para o coletivo e para
cada indivíduo.
• Momentos de descontração: ambiente lúdico, surpreendente e que
tenha um clima leve e acolhedor.

E por que fazer grupos na Assistência Social? Na medida em que esta política
lida com fragilidades relacionais, como violência, discriminação, humilhação,
isolamento etc, trabalhar essas questões também nas relações potencializa o
trabalho. Vale ressaltar também que as relações também podem ser fonte de
aprendizados e ampliação de repertório e, nesse sentido, podem fortalecer os
participantes e ajudar na prevenção de situações de risco.
Também dialogamos sobre alguns conceitos que podem ajudar no traba-
lho com grupos.

51
Para Pichon-Rivière (2009) tarefa é o elemento essencial do processo
grupal2. Nessa perspectiva, o foco do trabalho não está centrado nos
indivíduos ou na totalidade dos grupos, mas na relação de um gru-
po e seus membros com uma dada tarefa. Em sua dimensão explícita, ela
corresponde ao motivo de constituição dos grupos; já sua dimensão implícita
está relacionada à elaboração e ruptura de estruturas esteriotipadas que se
colocam como obstáculo frente às situações de mudança. Assim, o objetivo de
constituição do grupo participa da tarefa, mas não a determina, visto que ela
se constrói ao longo do grupo.
As falas nos grupos podem ser consideradas a partir de dois eixos: o ver-
tical, que corresponde a história de cada um, sua singularidade – o traço – e o
eixo horizontal – a trama – que diz respeito ao comum, à construção coletiva
que sempre transcende a soma das individualidades. É tarefa do coordena-
dor trabalhar para que os dois eixos estejam presentes: é importante
reconhecer o que motiva cada um a estar lá, assim como proporcio-
nar que as pessoas reconheçam algo de comum, que elas se sintam per-
tencentes ao grupo.
Ao longo dos encontros, traçamos objetivos – PARA QUÊ - e estratégias –
COMO - para a realização dos grupos e oficinas. Assim, a partir do momento
de cada serviço e da singularidade de cada território, pensamos para que o
grupo poderia servir para, em seguida, trocarmos estratégias e metodologias
que pudessem ajudar a trabalhar os objetivos propostos.
No último encontro, registramos juntos os principais aprendizados dispa-
rados pelos encontros, que podem servir como diretrizes às equipes.

52
PAIF
Um desejo em comum se faz claro entre os participantes: criar um novo
olhar para os grupos para além do Renda Cidadã. Assim, os participantes
trocaram estratégias e aprendizados sobre a seguinte questão: o que faz, ou
pode fazer, alguém querer vir para um grupo?

• Reforçar menos a obrigatoriedade nos convites e jogar luz para o


que ele pode ter de interessante foi o primeiro aprendizado com-
partilhado. O que ajuda as pessoas a virem é o vínculo que elas pos-
suem com os profissionais, muito mais do que a condicionalidade.
• Palestra não! Nos grupos, as pessoas querem falar e ser ouvi-
das, então é importante favorecer estratégias para que as pessoas
possam falar e trocar entre si.
• A tarefa dos grupos nos CRAS deve ser a reflexão sobre temas
que dialoguem com as questões vivenciadas pelos usuários.
Assim, delinear, delimitar o tema gerador a partir das questões ob-
servadas pelos profissionais torna o grupo muito mais interessante
para os usuários.
• A continuidade dos encontros também é importante. Um grupo
leva tempo até se formar enquanto grupalidade e, nesse sentido, sair
de um grupo sabendo quando vai ser o próximo e qual será o assunto
abordado ajuda a dar a ideia de um grupo, e não de encontros pontu-
ais. Estabelecer uma periodicidade – por exemplo, toda 1ª sexta-feira
do mês, ou a 3ª quarta-feira do mês – tem sido uma boa estratégia,
visto que assim, mesmo que uma pessoa perca um encontro, ela já sabe
quando será o próximo. Ofertar diferentes possibilidades de horários,
ou discutir com os participantes sobre o melhor horário, também ajuda.
• O cuidado com o enquadre do grupo é fundamental: manter o
horário de início, cuidar dos atrasos, assim como sustentar os combi-
nados do grupo. O tamanho do grupo também é importante, pois
em um grupo muito grande é mais difícil sustentar um espaço de
fala para todos os participantes. Pela experiência dos CRAS, grupos
entre 15 e 30 participantes tem tido um bom funcionamento.

53
• Considerando que há dois grupos previstos – os grupos so-
cioeducativos, com temas geradores, e os grupos de desen-
volvimento e convivência familiar – é interessante mesclar e
oferecer os dois formatos, pois ao mesmo tempo que é impor-
tante ampliar repertório e oferecer conteúdos, sempre dialogan-
do com as questões deles, também é fundamental proporcionar
um espaço de fala sobre as dificuldades cotidianas.
• Também foi ressaltada a importância de cuidados com a equipe.
Por exemplo, evitar coordenar os grupos sozinhos ou, caso isso seja
impossível, ter espaços de troca antes e depois com a equipe. Ficou
clara a importância de espaços de troca entre os CRAS, para
compartilhar como cada serviço está trabalhando os temas
geradores, falar sobre dúvidas e estratégias. Foram pensadas
em duas possibilidades não excludentes: a criação de um grupo de
whatssapp e a utilização dos encontros bimensais entre CRAS. Lem-
brou-se que a equipe também é uma forma de grupo e seu fortale-
cimento é essencial para promoveremos bons grupos.

54
SCFV
O ponto mais destacado pelos participantes foi o da articulação entre os
grupos e o trabalho realizado no PAIF e no Serviço de Convivência e For-
talecimento de Vínculos. Articular os dois serviços inclui que os facilitadores
e oficineiros estejam mais próximos da equipe técnica e se sintam parte da
equipe do CRAS, tanto no planejamento de ações e grupos quanto em recebe-
rem devolutivas sobre o andamento dos casos acompanhados. Foi destacada
a importância da discussão de casos de famílias atendidas pelo SCFV e PAIF,
para que facilitadores e oficineiros possam contribuir, a partir da sua escuta
e olhar, para pensar estratégias de aproximação, compreensão e encaminha-
mento nos atendimentos.
Destacou-se que facilitadores e oficineiros devem ter um olhar atento
para a dinâmica do grupo, mas também para cada usuário. Foram relatadas
situações em que a percepção de um oficineiro sobre a mudança na dinâmica
de um participante no grupo pode ajudar a compreender questões da família
e fortalecer o trabalho que a técnica já realizava no PAIF.
O trabalho do SCFV, sem uma articulação com as ações do PAIF e sem de-
finição do objetivo, da tarefa de cada oficina, acaba se tornando muitas vezes
mecânico e padronizado. O que ajuda a construir sentido, ousar e produ-
zir estratégias criativas na elaboração de oficinas é o esclarecimento
e pactuação do objetivo do que equipe técnica e oficineiros visam para
cada uma delas e a relação que tem com a proposta e território de cada
CRAS. Também foi ressaltada a importância dos oficineiros poderem explorar e
experimentar oficinas inovadoras, ao invés de oferecerem somente as opções
que os usuários já conhecem e tem familiaridade. Surpreender pode ser uma es-
tratégia interessante para convocar os usuários a identificarem outras potências.
Foi destacado a importância dos oficineiros e facilitadores conhecerem o
desejo técnico do CRAS em relação às oficinas que são realizadas. Assim,
essas poderão ser potencializadas para trabalhar as temáticas que emergem
no cotidiano do PAIF e poderão fortalecer a relação do usuário com ambos
serviços. Também foi considerada essencial que exista, da parte das equipes
técnicas e coordenações, uma postura acolhedora e disponível a escutar as
percepções e sugestões de quem trabalha no SCFV, de modo a não criar uma

55
hierarquização e desigualdade na relação com usuários e entre profissionais.
Os oficineiros, mesmo quando itinerantes, querem fazer parte da equipe
de cada CRAS por onde circulam!
Para trabalhar essas questões, surgiram como propostas:

• realização de reuniões periódicas entre os oficineiros que ro-


diziam nos CRAS, para troca de experiências e ideias para oficinas.
• realização de reuniões periódicas em cada CRAS com equipe e
oficineiros que participam do SCFV para discutir o planejamento
e andamento das ações e acompanhamento de usuários e também
alinhar as propostas para as oficinas.

Sobre o trabalho intergeracional e oficinas sobre o território, surgiram diver-


sas possibilidades de atuação:

• trabalhar sobre território pode ser um mote para alinhar as gera-


ções dos usuários atendidos no CRAS. As oficinas podem ter o bairro
como fio condutor e trocar materiais produzidos a partir de diferen-
tes abordagens com cada faixa etária de trabalho. Trabalhar com
produções (fotos, histórias, blog e outras mídias) pode ser uma es-
tratégia interessante.
• território pode ser algo ampliado para além do território físico ou
da área de abrangência de cada CRAS. Através de oficinas culturais
e de criatividade, é possível trabalhar com o repertório cultural dos
usuários, que também diz da relação com seu território de origem e
circulação, e ampliar para outras possibilidades.
• a tarefa dos grupos do SCFV é trabalhar questões de convivência a
partir da exploração e ampliação do repertório sociocultural, inde-
pendente de faixa etária dos usuários, a partir de questões identifi-
cadas junto à equipe técnica.

56
1. Encontro Temático coordenado por Carina Ferreira Guedes e Fernanda Ghiringhello Sato.
2. Pichon-Rivière define grupo como: “o conjunto restrito de pessoas, ligadas entre si
por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação in-
terna, que se propõe, de forma explícita ou implícita, uma tarefa de constitui sua
finalidade” (Pichon-Rivière, 2009, p. 242-3).

57
58
articulação PAIF - SCFV1

A articulação entre PAIF e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín-


culos é fundamental para materializar as ações de proteção social da política
de assistência, uma vez que atuam de maneira complementar e que visam
garantir as três seguridades da Assistência social: sobrevivência, acolhimento
e convivência. Para efetivar essa articulação, propusemos três questões que
nortearam os diálogos durante nossos encontros:

• Quais são atribuições de uma equipe que atua no PAIF? E no SCFV?


• O que torna a articulação entre esses serviços importante?
• Quais as consequências negativas da desarticulação entre PAIF e SCFV?

Cabe à Proteção Social Básica ampliar a capacidade protetiva das fa-


mílias, fortalecendo e diversificando sua rede de relações e reduzindo
fragilidades. Sua ação se dá na articulação entre serviços e benefícios e
deve ter caráter antecipatório – deve conhecer os territórios, famílias
e suas demandas, além do nível de desproteção em que se encontram e
atuar no enfrentamento a essas questões. Tem como finalidade mapear e
desenvolver potencialidades e aquisições da população com que atuam, for-
talecendo vínculos familiares e comunitários.
Para que se realize um trabalho de qualidade, PAIF e SCFV devem es-
tar referenciados, desenvolvendo ações complementares. Espera-se que
o PAIF contribua para a redução de situações de vulnerabilidade social,

59
aumento do acesso a serviços socioassistenciais e melhoria da quali-
dade de vida das famílias residentes no território de abrangência do
CRAS. Aos SCFV, cabe ofertar atividade que ampliem as trocas culturais,
vivências, sentimento de pertença, utilizando estratégias previstas na
Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos com vistas à
ampliação e diversificação de vínculos.
É importante ressaltar que no município de Osasco grande parte dos ser-
viços de convivência são efetivados por entidades conveniadas com a Prefei-
tura e que durante um longo tempo elas atuaram de forma independente
do CRAS. A ação de articulação e de estabelecimento de fluxo entre os dois
serviços é uma preocupação e demanda da gestão atual, que entende que ela
é fundamental para garantir a proteção social básica de acordo com as nor-
mativas do Ministério do Desenvolvimento Social e garantir a qualidade nas
ações desenvolvidas com os usuários.
Nesse sentido, este encontro temático teve como objetivos fortale-
cer as relações entre os profissionais dos serviços de convivência (so-
bretudo das entidades conveniadas) e as equipes que são responsáveis
pelas ações do PAIF; iniciar a articulação e o referenciamento entre os serviços e
estabelecer um fluxo de encaminhamento para a população atendida; construir
um campo comum de entendimento sobre o que cabe a cada serviço; intensificar
e multiplicar as ações que já são realizadas pelos serviços e que contribuem para
atingir as finalidades do PAIF e do SCFV. Para isso, foram utilizados principalmen-
te dois materiais de referência: a Concepção de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (MDS, 2013) e o Caderno de Orientações PAIF e SCFV (MDS, 2015).
Além disso, foram solicitadas atividades entre encontros, de modo que os
profissionais pudessem experimentar a articulação e mapear os fluxos.
Como forma de atingir os objetivos propostos, nós inicialmente apresenta-
mos o Caderno de Orientações descrito, destacando os objetivos de cada servi-
ço e como eles se articulam com as finalidades do trabalho de Proteção Social
Básica junto às famílias atendidas. A partir de relatos das práticas cotidianas e
exemplos dos serviços, buscamos refletir sobre os prejuízos, para os usuários e
para o trabalho, da desarticulação entre os dois serviços, construindo sentido
para os encontros e para a necessidade de articulação. Também realizamos um

60
mapeamento das atividades desenvolvidas pelos CRAS e pelos Serviços de Convi-
vência, analisando-as em relação aos objetivos do PAIF e do SCFV, as dificuldades
encontradas para efetivá-los, mas também refletindo sobre boas práticas.
Como forma de promover uma experimentação da articulação entre os ser-
viços, pensar a responsabilidade de cada um na construção da proteção social
e estimular a realização de ações integradas, promoveu-se uma discussão de
caso a partir da qual foram localizadas vulnerabilidades e elaboradas estraté-
gias e ações específicas para trabalhá-las. A atividade serviu de estímulo para
que os serviços colocassem em prática uma ação integrada no decorrer do mês.
Esta proposta permitiu trabalharmos as dificuldades encontradas para efetivar
ações conjuntas bem como potencialidades descobertas nesta articulação.
Nos últimos encontros, propusemos a realização de um mapeamento
conjunto, com o objetivo de identificar quais as famílias estão cadastradas
em quais serviços e como elas estão sendo atendidas, destacando-se as ações
incluídas neste acompanhamento. Além disso, buscamos construir um maior
esclarecimento das diferenças entre o PAIF e o SCFV, pois percebemos que
existiam muitas dúvidas a respeito das atividades especificas de cada um e
daquilo que era comum. Assim, refletimos sobre suas especificidades de es-
tratégias e de ação e como eles podem se complementar de forma a garantir
os direitos dos atendidos.
Ao final dos encontros, os participantes produziram reflexões sobre como
PAIF e SCFV podem desenvolver suas atividades de maneira articulada, as
quais são apresentadas a seguir:

1. O PAIF contribui para o trabalho realizado pelo Serviço de Convivência


na medida em que direciona a demanda e o acompanhamento para o
acesso a este, que investe no atendimento coletivo e na escuta quali-
ficada, que trabalha as questões comuns a diferentes famílias do terri-
tório a partir do acompanhamento familiar, que consolida a formação
de grupos e desenvolvimento familiar, e que auxilia na vinculação dos
usuários do PAIF ao SCFV, estando próximos dos mesmos e realizando
atividades conjuntas.

61
2. O SCFV contribui para o trabalho realizado pelo PAIF por meio da ava-
liação e intervenção por ciclo de vida, contextualizado em seu núcleo fa-
miliar. Os encontros temáticos e atividades festivas realizadas nos servi-
ços com a participação das famílias auxiliam para ampliar a convivência.
Além disso, contribui para a garantia de direitos quando realiza encami-
nhamentos para outros recursos e políticas públicas, bem como também
para acolhimento coletivo do CRAS. Em caso de direitos violados, faz
também encaminhamento para o CREAS.

3. Para que a parceria PAIF – SCFV se efetive, a equipe técnica do CRAS


deve ser responsável por fazer esta articulação. Dentro do SCFV,
este papel deve ser realizado pelo orientador e pela coordenação do
serviço, com os serviços de proteção de forma direta e indireta. Essa
articulação demanda ações como:
• conhecimento da rede socioassistencial
• reuniões entre as equipes
• conhecimento do território

4. É necessário, ainda, que se mantenha a vinculação e que sejam realiza-


das sistematizações, planejamentos e continuidade de temas e tarefas.
Para o acompanhamento, é necessário monitoramento do trabalho pe-
las técnicas. Vale ressaltar a importância da contratação de um pro-
fissional que tenha perfil para executar essas funções e da formação
continuada de toda a equipe, capacitações.

62
63
Durante os encontros pudemos experenciar os benefícios da articulação entre
os dois serviços. As profissionais da entidade Lar Jesus e do CRAS Rochdale
ressaltaram que estão desenvolvendo um trabalho mais próximo, e que em
função disso, uma usuária do SCFV da entidade Lar Jesus que frequentou por
cinco anos a instituição, mas que estava desmotivada para continuar partici-
pando, foi encaminhada e acompanhada até o CRAS pelo técnico da entida-
de que, através da articulação com a técnica do CRAS Rochdale, possibilitou
a criança começar a frequentar as atividades do SCFV dentro do espaço do
CRAS, tendo em vista que a família já era beneficiada pelo PAIF. Ou seja, a
articulação possibilitou um olhar ainda mais integral no acompanhamento da
família pelo CRAS e a possibilidade de inserir a criança em uma atividade mais
adequada a seus interesses e necessidades. Além disso, os profissionais do
CRAS e da entidade fizeram uma reunião e firmaram um acordo para que a or-
ganização e inserção do público no SCFV se desse por meio do referenciamen-
to primeiramente no PAIF realizado no espaço do CRAS. A técnica da entidade
também participa das reuniões que são realizadas no CRAS e acompanha os
usuários, o que contribui para a vinculação com o serviço.
Essa aproximação entre profissionais do PAIF e das entidades conveniadas
foi importante para que pudessem elaborar e pensar em atividades conjuntas.
A equipe do CRAS Piratininga programou duas atividades em conjunto com
a entidade conveniada e estavam fazendo uma força tarefa para cadastrar as
famílias que já eram atendidas pela entidade no PAIF. O mesmo ocorreu no
CRAS Bonança, que estavam cadastrando as famílias que frequentam a Casa
de Cultura e a entidade Cristo Rei. Os profissionais da GAAPS, entidade refe-
renciada ao CRAS Munhoz, participaram de um grupo socioeducativo realiza-
do pela equipe do PAIF e que isso contribuiu para a aproximação entre eles e
o planejamento de mais ações conjuntas.

64
Todos os profissionais ressaltaram que o trabalho social com famílias de-
manda uma ação articulada com vistas à garantia de proteção. No entanto,
destacou-se que a falta de recursos humanos capacitados, bem como a falta
de materiais para o trabalho proposto podem limitar a atuação e comprome-
ter a articulação entre os serviços; bem como a falta de entendimento e com-
preensão das especificidades e objetivos de cada serviço. Recomenda-se cui-
dado na seleção dos profissionais, além da formação permanente das equipes.

Lembrar
• Tanto o PAIF quanto o SCFV fazem parte do CRAS, ainda que as ati-
vidades do Serviço de Convivência possam ser realizadas em espaço
físico diferente e por uma instituição parceira, e por isso devem
atuar tendo como foco garantir as três seguridades da assistência:
acolhimento, convivência e sobrevivência.
• O SCFV está matriculado no PAIF; isto significa que os encaminha-
mentos devem partir do PAIF para o SCFV;
• O SCFV não se restringe ao CRAS, mas também pode estar articula-
do junto com o território.
• Articulação de trabalho não ocorre entre instituições, mas entre pes-
soas: o contato entre profissionais e o conhecimento dos trabalhos
que desenvolvem é fundamental para a efetivação dessa articulação.

1. Encontro Temático coordenado por Mariana Manfredi Magalhães, Natália Felix No-
guchi e Carolina Bertol.

65
66
proteção social especial

reuniões e funções no SAICA1

A proposta deste Encontro Temático foi a de convidar o grupo de profissio-


nais, formado principalmente por gestores e APS, mas com participação de
uma técnica e uma cozinheira, a pensar nas funções/atribuições de seu tra-
balho no SAICA e da importância das reuniões de equipe como prática de
cuidado com a equipe e frente aos objetivos do serviço de acolhimento, con-
forme determinado pelas Orientações Técnicas. Determinar e discriminar
as funções de cada profissional no serviço de acolhimento é tarefa que
vem permeada de afetações e questões: é uma casa ou um serviço? So-
mos equipe ou família para as crianças e adolescentes? Ao construir-
mos vínculo, é profissional ou pessoal? Se a criança me chama de mãe, o
que responder? Temos todos a mesma função em relação às crianças?
Falar dessas questões ajudou a emergir diversas dúvidas dos profissionais
em relação a como agir, como se localizar em relação ao seu trabalho, so-
bre a identidade profissional de quem atua em serviços de acolhimento para
crianças e adolescentes e, principalmente, em relação à função, à diferença,
a ser desempenhada em relação ao cuidado com as crianças e adolescentes.
A experiência de estar com profissionais de SAICAS diferentes foi importan-
te para ajudar a perceber quais questões eram coletivas sobre o trabalho, e
quais tinham relação com a história e funcionamento de cada casa.
Em um segundo momento, discutimos sobre o que é função: a tarefa
que algo ou alguém tem que desempenhar; uma direção de trabalho que
indica intencionalidade e finalidade; o que determina a diferença que deve

67
ser operacionalizada por um serviço ou profissional. A partir desta definição,
como pensar a função do Serviço de Acolhimento Institucional para
Crianças e Adolescentes?
Discutimos então sobre as três seguridades que o SUAS2, como política
pública, tem que garantir:

• Sobrevivência: visa garantir um padrão mínimo para uma vida


digna e cidadã.
• Convivência: partindo do princípio de que é na convivência que de-
senvolvemos potencialidades e aprendemos uns com os outros, e de
que quanto mais vínculos relacionais as pessoas possuem e quanto mais
sustentados no tempo forem estes vínculos, mais protegidas elas estão.
• Acolhimento: se expressa na vivência do cidadão nos serviços do
qual ele frequenta, por meio de acesso a orientações, encaminha-
mentos sobre serviços e benefícios, ambiência acolhedora e que
assegure sua privacidade, condições de dignidade em ambiente fa-
vorecedor da expressão e do diálogo, ter reparados ou minimizados
os danos por vivências de violações e risco sociais, ter sua identida-
de e integridade história de vidas preservadas.

O SAICA, como serviço do SUAS, é responsável por garantir essas três se-
guridades e pudemos pensar no grupo como, na rotina e prática diária,
essas funções estavam sendo desenvolvidas por cada serviço. Assim, os
profissionais destacaram a importância da criação de projetos que permitissem
trabalhar esses três aspectos, pensando que garantir a sobrevivência é algo
mais direto e imediato e que pensar em acolhimento - e como a criança e ado-
lescente se sente ou não acolhido - e a convivência - com a família, o bairro, os
vizinhos, amigos e outros serviços da rede - são questões mais desafiadoras e
que exigem um investimento de trabalho a médio e longo prazo.
Em seguida, falamos sobre a história e as mudanças na função social e polí-
tica que ocorreram em relação aos serviços para atender crianças e adolescentes
até chegar à política atual dos SAICAS. Partindo da concepção dos orfanatos,
localizados na discussão como representantes de instituições maiores e totais3,

68
foi possível discutir sobre as transformações na forma do cuidado às crianças
e adolescentes, trabalho com famílias e a rede e também sobre a diferença na
função a ser desempenhada pelos profissionais nos serviços de acolhimento.
Seguem algumas das diferenças principais:

Orfanato SAICA

Regulamentado pelo Código de Menores Regulamentado pelo ECA


Estadia permanente Estadia provisória
Ambiente institucional - atendimento em Ambiente familiar - atendimento em
grandes grupos pequenos grupos
Trabalho assistencial de atendimento Trabalho focado no retorno à família ou
à criança, sem foco no retorno da criança colocação em família substituta.
ao ambiente familiar Foco no fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários
Utilização da rede de serviços comunitários
Centralização de serviços no local
como escola, centros comunitários de
da moradia, sem uma visão maior de
bairro, ONGs, postos de saúde locais, como
inserção comunitária
forma de promover a inserção comunitária
Trabalho com história de vida junto à
Esquecer o passado
criança e elaboração de projeto singular
Trabalhadores: funcionários, pajem, Trabalhadores: educadores,
irmã, monitor cuidadores, técnicos
Projeto Politico-Pedagógico construído
Projeto determinado pelo Estado de forma democrática a partir das
Orientações Técnicas
Regras visando desenvolvimento da
Regras visando disciplina e obediência
participação cidadã

O grupo fez uma reflexão crítica sobre como olhares e concepções de traba-
lho ainda ecoam e reproduzem ações provenientes de um modelo mais insti-
tucionalizado e muitas vezes estigmatizado em relação às crianças que estão
em situação de acolhimento e os cuidados que necessitam. Perceber como o
passado ainda se faz presente e como orientações divergentes convivem no
cotidiano dos serviços de acolhimento é essencial para que os profissionais con-
sigam transformar suas práticas e pensar suas funções de trabalho, inclusive em
relação à execução e ao debate sobre as políticas públicas existentes.

69
70
A retomada de determinados aspectos do SUAS (as seguridades e como
garanti-las) e da história do serviço de acolhimento pode ser muito provei-
tosa para as equipes já que permite que reconheçam seu trabalho de forma
mais ampla, construindo o caminho para essas perspectivas. Saber como
eram os orfanatos e como são os SAICAS possibilitou a desconstrução
de uma cultura de institucionalização para repensar o funcionamen-
to dessas instituições.
Aos poucos, fomos chegando às funções e às atribuições dos profissionais
em si, buscando consolidar os papéis na relação entre si e com as crianças e
adolescentes acolhidos. Qual a função que todos devem desempenhar em
relação às crianças? Quais as especificidades em relação a cada cargo?
Um dos conflitos comuns no trabalho dizem respeito às atribuições de cada
um e a consequente sobreposição ou abandono de algumas funções pela falta
de diálogo. O que cabe à gestão deste serviço? O que é responsabilidade da
equipe técnica? O que os APS tem autonomia e condição para conduzir no
cuidado das crianças? Como caminhar com funções determinadas, porém com
autonomia e parceria na equipe no percurso?
O grupo problematizou o nome Agente de Proteção Social (APS), re-
conhecendo que a função no SAICA diz de cuidado e educação, e não de
proteção, palavra ambígua que convoca a pensar quem está sendo pro-
tegido: as crianças da sociedade ou a sociedade das crianças?
O nome APS parece ser insuficiente ou excessivamente genérico para de-
finir e valorizar o trabalho que esses profissionais realizam. Os trabalhadores
que compunham esse grupo tiveram a tarefa de consultar suas equipes para
tentar chegar a um nome que contemplasse o trabalho que realizam. O nome
educador ou educador social foi o que mais apareceu e com o qual os profis-
sionais mostraram maior identificação.
Apesar do que é específico no cargo do APS, a função de educador e cui-
dador deve ser partilhada por todos que atuam na casa e tem contato com as
crianças. Cada profissional, em sua atribuição, contou como se localiza e de-
sempenha essa função no cotidiano. O aspecto mais forte ao longo da discus-
são foi a importância de que, na equipe, a história e projeto das crianças pos-
sam ser compartilhados. Conhecer a história ajuda na condução do trabalho,

71
desempenho da função de cuidado à criança e confiança e trabalho em equipe.
Pois, como os profissionais destacaram, a partir das experiências de cuidado que
vivenciaram, ser referência de educação ou cuidado tem relação com:

• Acolhimento e disponibilidade para escuta


• A possibilidade de reconhecer as potencialidades no outro, de ajudá-lo
a sonhar e se reconhecer de muitas maneiras
• Transmitir experiências, a partir da escuta cuidadosa, sem julga-
mento moral
• Alguém estável, que permite experimentações
• Generosidade
• Jogo de cintura: a possibilidade de contornar situações sem embates
• Sustentação de combinados, regras e cuidado, mesmo quando há
conflitos
• Acolher, conhecer, preservar e transmitir a história do sujeito

Apesar dessas referências, os APS dizem que acabam recorrendo ao uso de re-
gras, da disciplina, pois se sentem com poucos recursos para pensar em outras
estratégias junto às crianças. Assim, acabam muitas vezes utilizando táticas
como ameaças ou promessas, que sabem não ser eficazes, por falta de outras
ideias, de respaldo coletivo e da ausência de projetos da equipe que ajudem a
sustentar decisões e outras alternativas.
Os profissionais contam que há a expectativa do gestor como figura de au-
toridade e proatividade nos serviços em relação às crianças e aos funcionários.
Muitas vezes, identificam que a expectativa é excessiva e que diz de uma fragi-
lidade da equipe enquanto grupo, do medo de decidir sobre uma intervenção
e de ser recriminado. Assim, a gestão vira o recurso para resolver questões que
poderiam ser administradas pelos outros funcionários. No entanto, enquanto
APS tem seus pares de trabalho e as equipes técnicas no geral são constituídas
por duplas, a função do gestor é muito solitária, o que faz com que se sintam
“reinventando a roda” a cada dia, em cada serviço. As dificuldades de ges-
tão e administração dos serviços têm suas especificidades, mas também mui-
tas semelhanças e não há espaço para troca e aprendizado conjunto. Alguns

72
profissionais falam de como a troca entre gestores pode ajudá-los a assumir e
desemprenhar sua função junto ao serviço.
As reuniões e formas de comunicação entre os profissionais de um
mesmo serviço e também entre os SAICAS ganharam então um desta-
que, como dispositivo essencial para garantir os ajustes em relação
ao funcionamento institucional, o fortalecimento do projeto e o aco-
lhimento das crianças e adolescentes.
Todas as equipes, embora percebam a importância do encontro dos tra-
balhadores, apresentam grande dificuldade para realizá-la com frequência.
Os turnos, a dinâmica das folgas e da organização do quadro de funcionários
é um dos principais motivos para esta dificuldade. Existem outras formas de
comunicação que cumprem papéis mais contingenciais em relação ao coti-
diano e também garantem um registro permanente dos acontecimentos e
rotina dos serviços, mas, ainda sim, não substituem a reunião de todos.
Assim, foi chamado um último encontro, convocando todos os gestores
representantes de APS de cada SAICA para discussão e tentativa de comparti-
lhamento de estratégias para a qualificação dos espaços de discussão.

Reuniões e comunicações em cada SAICA


A reunião de equipe e a definição e conhecimento das atribuições de cada um
dos trabalhadores envolvidos no SAICA é que garantem um trabalho continu-
ado com as crianças e adolescentes, tirando a equipe da ação apenas na emer-
gência, no “controle dos incêndios”. É ela que garante que a instituição tenha
um Projeto Político-Pedagógico e que possa garantir projetos para os acolhidos.
Exige um esforço por parte dos gestores no que diz respeito à viabilidade admi-
nistrativa e a um comprometimento e reconhecimento de sua importância por
parte da equipe de trabalhadores.
Além deste espaço de comunicação, abordamos algumas outras formas de
comunicação que acolhem um certo tipo de necessidade/demanda, são elas:

• Reunião de plantão • Conversa marcada • Whatsapp


• Conversa informal • Livro de plantão • Telefone
• Mural • Bilhete

73
O grupo discutiu sobre 3 agrupamentos delas:

Comunicação permanente: reunião de plantão e equipe


• O que precisa ser levado em consideração para que ela aconteça?
A alternância de horários/turnos, dar condições aos trabalhadores
para que compareçam (condução e aviso), avisar com antecedência
e, de preferênciam manter horários fixos, fazer banco de horas etc.
• O que ela possibilita? Um espaço de cuidado, escuta, definição de es-
tratégias, alinhamento da equipe, discussão de casos, reflexão sobre as
posturas da equipe. Alinhar as rotinas, turnos, atribuições, conflitos, etc.
É este espaço que possibilita que cada trabalhador tenha autonomia de
ação no cotidiano do serviço – compreensão do todo do trabalho.
• A participação nas reuniões deve ser prerrogativa no momento da
contratação. Para que faça sentido, deve ser cuidadosamente cons-
truída. A reunião por plantão não substitui uma reunião periódica
com toda a equipe.

Comunicação urgente: Telefone e Whatsapp


• Quem se utiliza deles? Normalmente os APS que estão no serviço
com o gestor ou equipe técnica.
• O que eles possibilitam? Apoio em uma decisão, atitude urgente?
Acalmar? Ter companhia no plantão? Contribuir na compreensão
de contextos e condições?
• Quando devem ser utilizados? Em casos urgentes, situações graves.
Deve-se ter cuidado no excesso do seu uso. O que é considerado gra-
ve deve ser definido pela equipe, mas diz de algo que não se pode
resolver sozinho ou com a infra-estrutura disponível no momento.
• A equipe precisa ter autonomia e confiança entre os profissio-
nais, para tomar atitude que depois deve ser avaliada e refle-
tida pelo gestor e equipe.

74
Comunicação escrita: Livro de plantão
• Quem se utiliza dele? Todos contam o que vivenciaram em seu turno
de trabalho para que haja continuidade nas condutas. É importante
que contemple o olhar de todos. Equipe técnica acompanha o regis-
tro diariamente e deve dar devolutivas aos envolvidos.
• O que deve ser registrado? O cotidiano: uso de medicamentos, fatos,
atitudes, cuidados, atenções, etc.
• É este registro que dá continuidade as reuniões e é o que indica as
próximas pautas também. Assim, precisa ser lido e acompanhado
pela equipe técnica e gestores, para que sirva como apoio e indi-
cador de temas que estão emergindo no cotidiano, do que “está
pegando” em cada SAICA.

O principal indicativo que sai desta série de encontros é a necessidade de con-


tinuidade das reuniões entre as equipes dos SAICAS de Osasco para troca de
experiências e constituição de um trabalho comum. Esse encontro e diálogo
permite que possam refletir sobre a prática e as dificuldades de forma mais
ampla e coletiva.

1. Encontro coordenado por Fernanda Ghiringhello Sato e Mariana Moura.


2. Sobre este assunto, indicamos a leitura do texto de Abigail Torres publicado no
Caderno Enlaces Vol. 1 (2015).
3. Erwing Goffman define Instituição total como “um local de residência e trabalho
onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da so-
ciedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada.”(Erwing Goffman, 1974, p.11)

75
76
rodas de conversa e atividades na casa1

As atividades na casa e as rodas de conversa são estratégias funda-


mentais da rotina dos serviços de acolhimento, pois além de contri-
buírem nos cuidados com as crianças e adolescentes e no seu bem-es-
tar, de propiciar um desenvolvimento saudável e de prepará-las para
o convívio social, elas são estratégias importantes para lidar com as
situações cotidianas de convívio e conflito que ocorrem em todos os
serviços. São também estratégias que proporcionam a possibilidade
de compartilhamento de momentos prazerosos e que fortalecem os
vínculos entre os moradores do serviço e os profissionais que atuam
em seus cuidados.
Durante este encontro temático, abordamos aspectos importantes do
funcionamento de um Serviço de Acolhimento. Afinal, “atividades na casa”
diz respeito ao dia a dia, à construção de uma rotina, mas também a tudo
aquilo que extrapola o ordinário. Percebemos que o convite era o de dar um
mergulho na ideia de convivência e de tudo o que faz parte dela: encontros,
conflitos, afetos... e tentativas de falar sobre tudo isso!
Entendendo que essas são estratégias das quais não basta falar para apren-
der, propusemos a cada encontro uma brincadeira para os participantes, como
forma deles experimentarem atividades que poderiam propor para as crianças
nos serviços e para aumentar o seu repertório de ideias. Ao final dos encontros,
compartilhamos todas as ideias produzidas pelo grupo. As brincadeiras propor-
cionaram um ambiente mais descontraído, fortaleceram os vínculos entre os

77
participantes e ajudaram a criar um clima para que o grupo ocorresse em um cli-
ma de confiança e amistoso, tal como esperamos que possa ocorrer nos SAICAS.
Nos primeiros encontros, nós refletimos como a brincadeira é um momen-
to fundamental de todos nós, mas principalmente das crianças, pois é através
dela que a criança explora seu corpo e seu mundo, experimenta diversas for-
mas de sensação, de sentimento, de movimento, de conviver com outras crian-
ças e com os objetos, diversas possibilidades de agir e ser. É um momento no
qual a criança pode se experimentar, se aventurar para fazer novas descober-
tas sobre si e sobre o mundo no qual está inserida. Embora promova apren-
dizados, a brincadeira não precisa ter uma intenção, ou uma utilidade,
pois a liberdade na brincadeira é o que possibilita a surpresa, a constru-
ção de novos significados e de novas ações. Em nosso primeiro encontro
vimos então como brincar é coisa séria, necessária para o desenvolvimento das
crianças e como muitas vezes, frente a rotina conturbada dos SAICAS, acaba-
mos deixando de lado o momento de brincar das crianças.
Em um segundo momento, nós redescobrimos o lado criança de cada um,
através da rememoração das brincadeiras preferidas dos participantes, e colo-
cando todos para brincar. Refletimos sobre como cada momento da vida nos
leva a experimentar novas atividades, em função dos interesses que temos em
cada fase. O cansaço, misturado ao entusiasmo, nos lembrou como o brin-
car exige disposição dos adultos para encontrar o seu lado infantil,
para se conectar ao mundo da criança, de forma a compartilhar com
ela suas experiências, suas descobertas e não somente participar como
observador. Ainda nesses encontros, pensamos em conjunto como diversas
situações que ocorrem na vida das crianças e no dia-a-dia dos serviços podiam
ser manejadas através de brincadeiras, e como elas são fundamentais para as
crianças elaborarem situações vivenciadas, de forma conseguirem criar alter-
nativas de ação possível para as mesmas, através das experimentações possí-
veis que a fantasia do brincar proporciona. Vários participantes compartilha-
ram com o grupo momentos nos quais brincaram com as crianças e os efeitos
que estes produziram no vinculo e no comportamento das crianças.
No terceiro e quarto encontros, falamos sobre a roda de conversa: so-
bre o que é uma roda, seus diferentes objetivos, formatos e possibilidades.

78
Ressaltamos como o principal objetivo da roda é a conversa, e que para isso a
fala deve circular. Deve ser um espaço no qual todos possam expressar sua opi-
nião, pois assim podem exercitar o compartilhamento e o confronto de ideias.
A roda também possibilita a criança experimentar limites, pois ela tem que espe-
rar sua vez de falar, respeitar opiniões discordantes da sua e expor suas ideias de
forma respeitosa. Enfim, a roda é um verdadeiro exercício de estar com o outro.
A roda pode ser um momento livre de troca de ideias, pode ser um es-
paço de tomada de decisão conjunta, pode ser um espaço para administrar
conflitos e falar de problemas comuns. Em um dos encontros, os participantes
ressaltaram a dificuldade de convidar as crianças para participarem da roda,
e que muitas vezes elas acham chato. Conversando, percebemos como as
rodas muitas vezes são utilizadas como espaços para dar broncas co-
letivas nas crianças e por isso elas não gostam de participar quando
são chamadas. Relembremos então que a roda não é um espaço para dar
bronca, pois a fala deve ser incentivada e não interrompida.
Por fim, experimentamos como seria uma roda de conversa com as crian-
ças para falar sobre sexualidade, tema sempre presente e difícil de ser abor-
dado. Pensamos em que questões poderiam aparecer em uma roda com este
tema, que assuntos seriam trazidos e formas de abordar os mesmos com as
crianças. Como é possível devolver as questões trazidas para o grupo, para que
eles possam compartilhar experiências e descobertas. Como é possível falar de
sexo e sexualidade respeitando o outro, sua privacidade e seu espaço, trans-
mitindo a criança que ela também pode e deve viver sua sexualidade de forma
cuidadosa e prazerosa. Nesse sentido, todos concordaram que falar sobre se-
xualidade ajuda a preparar as crianças para lidarem com situações cotidianas.
Ao final desses quatro encontros, nos quais refletimos sobre as brincadei-
ras e sobre as rodas de conversa no SAICA, o grupo sistematizou as reflexões
produzidas neste percurso acerca dessas duas práticas.

Brincadeiras no Serviço de Acolhimento


As brincadeiras no SAICA ajudam a melhorar a convivência e a falar sobre as-
suntos difíceis. Podem deixar o ambiente mais leve, prevenir conflitos relacio-
nados a questões de convivência, como o dividir, o respeitar, o usar e guardar

79
os objetos. Mesmo que não sejam pensadas para este fim, as brincadeiras tam-
bém auxiliam na aprendizagem, no desenvolvimento de diferentes tipos de
raciocínio, na promoção de encontros, no fortalecimento de vínculos, na gera-
ção de pertencimento. São momentos em que as crianças/adolescentes podem
experimentar lugares e personagens que não são, elaborar situações vividas, se
apropriar do desconhecido e estimular a criatividade.

Ajudam também a diminuir a


ansiedade da equipe, que
acaba se envolvendo em outras
atividades e experimentando
uma aproximação diferente com
as crianças, mais descontraída.
Pensamos que há brincadeiras para todas as faixas etárias, algumas mais espe-
cíficas e outras mais gerais, na qual a interação entre crianças menores e maio-
res, adolescentes e equipe, pode ser divertida e produtiva. Deve-se atentar ao
cuidado com o ambiente, se condiz com a atividade proposta.
Algumas dicas podem ajudar na execução dessa prática, e a primeira delas
é: aprende-se a brincar... brincando! Ou seja, as equipes devem ser sensibili-
zadas para se permitir estar com as crianças/adolescentes nessa interação mais li-
vre. Para isso, ajuda lembrar do que se gostava de brincar quando criança, inserir
momentos de brincadeira na rotina da casa, organizar previamente brincadeiras
a serem realizadas, pedir sugestões às crianças e adolescentes e fazer os convites
de modo descontraído, que estimule a participação. As equipes trouxeram lem-
branças de jogos de cartas e de Uno com os adolescentes.

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Como saber se esta prática está contribuindo para o dia a dia das crianças/
adolescentes? Quando ficam entusiasmados chamando novamente para brincar,
quando percebemos uma melhora na aprendizagem e na convivência na casa.

Rodas de Conversa
Há inúmeros formatos para rodas conversa num SAICA: por grupos menores
(idade, gênero, grupos de irmãos, grupos que frequentam um mesmo curso,
grupos com um interesse em comum, etc), assembleias para decidir coisas da
casa, rodas para conversar sobre temas específicos... Em qualquer um desses
formatos, as rodas de conversa têm uma função importante e muitas ve-
zes esquecida nos Serviços de Acolhimento: fazer a palavra circular, en-
sinar a todos os participantes a resolver conflitos e elaborar questões
coletivamente, responder dúvidas E propiciar trocas de experiências.
Para que possam acontecer, a equipe é responsável por propiciar um am-
biente acolhedor, confiável, buscando livrar-se de preconceitos, onde cada um
da roda tenha garantido seu espaço de fala e de respeito.
Algumas dicas que podem ajudar: estipular dia e horário para que as ro-
das aconteçam, atentando para tudo o que pode fazer desse momento um
ritual – modo de abrir a roda, o processo de escolha do assunto, forma de
fazer circular a palavra, modo de fazer o fechamento. Alguns combinados de
respeito à fala dos outros também devem ajudar!
Importante lembrar que esse modo de conversa é aprendido. Assim,
mesmo que nas primeiras tentativas pareça difícil, vale buscar o apoio da
equipe como um todo para tentar inserir essa prática na cultura da casa.
Todos sairão ganhando!
Para saber se esta prática está contribuindo para o dia a dia da casa, aten-
tar se crianças, adolescentes e membros da equipe contam com esses espaços
para resolver questões (“esse assunto vou falar na roda de conversa”), se os con-
flitos podem ser conversados no dia a dia, ou seja, se a palavra mostra-se tam-
bém como um recurso; se o clima da casa está mais tranquilo, propício a trocas.

1. Encontro Temático coordenado por Gabriela Urbano e Carolina Bertol

81
82
trabalho com famílias1

A legislação atual reconhece a convivência familiar e comunitária como um di-


reito e o afastamento do convívio familiar se dá em regime de excepcionalida-
de e provisoriedade. Quando este é necessário, cabe aos serviços e profissio-
nais responsáveis pelas medidas de proteção realizar ações que tenham como
parâmetros assegurar condições favoráveis ao desenvolvimento da criança e
do adolescente, minimizar o impacto do abandono ou do afastamento do
convívio familiar, propiciar experiências reparadoras à criança e ao adolescen-
te e a retomada do convívio familiar.
É dever dos serviços e profissionais, no que concerne à relação de crianças
com suas famílias:

• promover o fortalecimento, a emancipação e a inclusão das famílias,


assegurando a estas o acesso a seus direitos;
• garantir o menor tempo de afastamento do convívio familiar, esfor-
çando-se pelo retorno das crianças às famílias;
• realizar ações para preservar e fortalecer vínculos familiares e comu-
nitários como parte do cotidiano dos serviços;
• oferecer espaços de escuta para que os cuidados e a atenção às crianças
se dê de forma singularizada, respeitando sua história e individualidade.

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Tomando todas essas considerações como referência, o Encontro Temático so-
bre Trabalho com Famílias teve como objetivos:

• mapear práticas realizadas pelos serviços de acolhimento no traba-


lho com famílias
• refletir sobre o olhar dos profissionais com relação às famílias e às crianças
• considerar a perspectiva das crianças no trabalho com famílias a ser
realizado pelas equipes
• realizar uma experimentação/ação prática em cada serviço
• construir um produto coletivo

Este Encontro Temático contou com a presença de duplas de profissionais dos


serviços, formadas por um profissional da equipe técnica e um APS. No primei-
ro encontro, fizemos um mapeamento das práticas já existentes nos serviços e
do que elas proporcionavam. Seguem algumas:

Família participar da rotina da criança: banhos, alimentação, brincar, etc. A família


precisa estar disposta e a equipe também! Com a equipe empenhada, a família também se
sente acolhida e topa participar mais.

Trocar mais informações com as famílias, dar espaço para eles falarem, se abrirem.
A famílias sente-se valorizada e se aproxima mais do serviço!

Buscar contato com familiares distantes, com os quais as crianças e adolescentes


não possuíam mais vínculo. Esta é uma prática que vem dando resultado e tem ajudado
a retomar a história pessoal da criança/adolescente.

Convidar os familiares para participarem das festas de aniversário. Por ser uma
data comemorativa, as pessoas ficam mais sensíveis. A prática também tem ajudado na
interação e diálogo entre a própria equipe.

Acolhida da família, visitas domiciliares e estímulo à presença da família na vida


do filho. A família se sente apoiada, acolhida e percebe que não está sozinha, que estão
todos dispostos a contribuir com o mesmo objetivo.

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Nos encontros, retomamos e discutimos também sobre uma visão, uma “his-
tória única” construída historicamente de desqualificação das famílias pobres
e de uma suposta incapacidade dessas famílias em educarem seus filhos, base-
ada em um ideal de família que deve ser questionado!
Nossa proposta prática foi de criar estratégias de encontros que pudessem
dar visibilidade a outras histórias, outras versões e outras vozes, que pudessem
criar alternativas para esta “história única” que ainda persiste no cotidiano
dos serviços. Para isso, os participantes escolheram uma família para trabalhar
ao longo dos encontros e construímos um fichário nomeado de “Enlaces entre
famílias, crianças e adolescentes e serviços de acolhimento”. Nele, cada uma
das folhas marcava uma ação a ser feita para conhecer melhor a história da
criança e sua família, o olhar dos profissionais e iniciar experimentações para
aprimorar as práticas de aproximação entre todos.
Em um primeiro momento, cada dupla escreveu como via essa família e o
que sabia sobre sua história. Abaixo, em cada folha, também havia um espaço
para registrarem as perguntas que ficavam em aberto e posteriores descobertas.

85
De um encontro para outro, eles convidaram as próprias crianças/adoles-
centes a escreverem/desenharem sobre sua família e sua história. Muitas ve-
zes, há também uma desqualificação das próprias crianças e adolescentes, que
são pouco consideradas nas suas visões e desejos. Perguntar, ouvir e conside-
rar a perspectiva das próprias crianças sobre sua vida é fundamental!
As duplas também fizeram uma pesquisa com os outros profissionais da
equipe, perguntando o que eles sabiam e o que gostariam de saber para traba-
lhar melhor. Conversar com a equipe sobre os casos e compartilhar com todos
a importância de acolher e não julgar as famílias foi fundamental, pois sem
este alinhamento da equipe a família pode não se sentir bem-vinda no serviço.
A partir desse panorama inicial, as duplas também fizeram uma boa con-
versa com os familiares – irmãos, tios etc – e buscaram ouvir, sem preconceitos
nem pré-julgamentos, suas versões sobre a histórias, seus desejos e suas difi-
culdades. As duplas também foram convidadas a fazerem contatos no mínimo
semanais com os familiares, para aproximar ainda mais a relação. O registro,
mesmo das pequenas ações, é fundamental, pois além de documentar o tra-
balho, ajuda a dimensioná-lo para não cairmos na armadilha de, ou deu tudo
certo, ou nada funcionou.
Também elaboramos novas ‘folhas’ para dar continuidade a essas aproxi-
mações. Como as crianças narram a continuidade de suas história? De quem
querem estar mais próximos? De que maneira? Que alinhamentos precisam
ser feitos com a equipe? Que mudanças podem ser notadas nas relações entre
família, criança e serviço de acolhimento?
No último encontro, os participantes fizeram um registro síntese, a partir
das seguintes perguntas:

• Como é o trabalho que a equipe realiza de fortalecimento de víncu-


los com os familiares e referências afetivas?
• Por meio de que ações/atividades se dá esse trabalho?
• Como se dá a participação da família na rotina da criança/adolescente?

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Segue o registro
Por meio de oportunidades no decorrer do dia em diversas situações, procura-
mos fortalecer o diálogo que precisa ser realizado constantemente. Esses diálo-
gos geralmente são realizados por telefone, visitas domiciliares, mas também às
vezes são utilizadas cartas e contato com os vizinhos.
Percebemos que, quando os familiares não encaram esse diálogo como
cobrança, a participação deles passa a ser mais ativa e a fazer a diferença no
convívio diário das crianças. O interesse pela história e a família das crianças
e a postura de não julgamento e não cobrança dos parte da equipe também
aproxima os profissionais das crianças e constrói canais de conversa.
Com isso, propomos a participação das famílias nas rotinas diárias das
crianças, como consultas médicas, psicológicas, escolares, durante a semana
e também aos finais de semana. Combinar almoços conjuntos, ou churrascos,
entre irmãos, mesmo com aqueles que não estão no serviço de acolhimento,
também favorece a aproximação deles.
Com a equipe, é importante trabalhar para quebrar estigmas: quando a
família participa e está mais presente, é possível um olhar diferente e perspec-
tivas mais positivas. A convivência com a família ajuda a construir outras visões
sobre os familiares.

1. Encontro Temático coordenado por Natália Felix Noguchi e Carina Ferreira Guedes.

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88
PIA e construção de projetos de saída de
adolescentes por maioridade1

Por que pensar as saídas dos adolescentes dos serviços de acolhimento por maio-
ridade se mostra um desafio tão grande para os SAICAS em geral? Quando co-
meçar a pensar os projetos de saídas dos adolescentes que estão acolhidos? Foi
por aí, com essas perguntas desafiadoras, que iniciamos nossas conversas neste
Encontro Temático, tentando destrinchar quais as encrencas envolvidas nessa
prática que faz parte de nosso dia a dia de trabalho.
Para começar, a ideia de adolescência já nos põe de cabelo em pé em si:
quando pensamos em adolescentes, as palavras que nos vêm à cabeça passam
por pânico, frustração, dificuldade, instabilidade, insegurança, chatice, trans-
formação, crescimento, problema... Como se não bastasse, cada adolescente
que se aproxima da maioridade nos põe cara a cara com a questão da eficácia
de nossa estrutura de atendimento. Afinal, se o SAICA é provisório, por que
há crianças que ficam por tantos anos ali? Se nossa função é trabalhar
autonomia para independência, por que são tão recorrentes os casos
em que a saída se apresenta como um problemão? Lembrando as palavras
de Mercedes Minnicelli (2003), a assistência mostra-se muitas vezes como um
labirinto com muitas portas de entrada, porém, com poucas de saída. Como
sair dessa “lógica labiríntica”? Podemos desenvolver a capacidade de sonhar
para nossos jovens, saídas para a vida, ao invés de apenas saídas para serviços
(repúblicas jovens, albergues etc), intermediadas por nossos encaminhamentos?
Afinal, qual a finalidade e direção dos Planos Individuais de Atendimento (PIA)

89
que elaboramos junto às crianças e adolescentes que estão acolhidos e como
podem ser projetos e se relacionar a esta questão da saída por maioridade?
Pois bem, se por um lado nos deparamos com os limites dos serviços e da
política pública, por outro, damos de encontro com as dificuldades que fazem
parte de uma realidade mais ampla, que é a da não garantia dos direitos huma-
nos fundamentais. Nossos jovens estão inseridos em um mundo em que, mes-
mo quem passou pela infância e pela adolescência sem grandes turbulências,
vive dificuldades para a entrada no mercado de trabalho e onde, quem pode,
tem adiado cada vez mais a entrada na vida adulta.
Outro aspecto levantado pelos trabalhadores presentes foi sobre quando,
em suas trajetórias de vida, perceberam sua própria independência e auto-
nomia. No geral, em termos de idade, isso variou muito: alguns saíram de
casa cedo, outros ainda não saíram. Quando alguém se torna adulto, capaz
de exercer sua maioridade? Os 18 anos determinados pela lei não dão conta
de indicar como para cada adolescente este processo ocorre, de contemplar
o tempo de cada um. Se nós, aos 18 não nos sentíamos tão preparados assim
para cuidar de uma casa, de um emprego, da nossa vida e projetos, como po-
demos trabalhar com o tempo dos adolescentes que estão acolhidos para os
quais a maioridade ganha este estatuto e peso?
Frente a tantos limites, a proposta de nosso Encontro Temático
seguiu então para, ao invés de paralisar ante o desafio, trabalhar,
ao longo dos encontros, a partir das potências – dos adolescentes e
das equipes. Fizemos um exercício para responder a seguinte pergunta: que
diferença os SAICAS devem fazer nas vidas dessas crianças e adolescentes?
E percebemos que não devemos focar nas saídas em si. Nos demos conta de
que autonomia, apropriação e referências são coisas construídas desde que
somos bebezinhos. Estão presentes no desfralde, na possibilidade de aprender
a sair na rua, na apropriação do mundo e na percepção dos limites e potências.
Os participantes trouxeram cenas em que foram contando como perce-
biam a pouca apropriação das crianças e adolescentes em relação a pontos
essenciais para o desenvolvimento da autonomia: desconhecimento em rela-
ção aos horários, à agenda e ao calendário, sobre como agendar consultas ou
buscar remédio, sobre o preço das coisas e como administrar dinheiro, sobre

90
ônibus e trajetos pela cidade, sobre como se apresentar para um desconhe-
cido para pedir informações, orientações etc. Identificar essas cenas ajudou
a pensar em que elementos o SAICA deve oferecer de forma coletiva e para
cada criança. Assim, surgiram ideias como colocar calendários, ajudar as crian-
ças a organizarem seus compromissos, envolvê-las no planejamento e compras
para a casa, ensinar a cozinhar, cuidar do espaço e a se cuidar (saber onde e
como procurar a UBS, por exemplo).
Nesse sentido, circularam experiências sobre como essas questões são tra-
balhadas em cada SAICA: projeto de mini-chef na cozinha, traçar idades e
autonomias a serem trabalhadas em cada faixa etária (ir para escola sozinho,
lavar a própria roupa, por exemplo). Trabalhar as transições e aprendiza-
dos é acolher e desempenhar a função educativa que também cabe ao
SAICA, pensando nos projetos a serem elaborados para a casa e tam-
bém nos PIAs de cada criança.
Assim, cada passagem em nossas vidas pode ser ruptura, mas ao mesmo
tempo, nascimento. No grupo, destacou-se como os adolescentes falam sobre
a saída do SAICA: como o final, abismo e queda, onde não conseguem se ima-
ginar ou momento no qual “a vida começa”. Essas questões servem para trazer
para nós algumas reflexões: como trabalhar para que os processos de
saída possam ser vividos como abertura, e não como desacolhimento?
Como o tempo no SAICA pode ser parte da vida e de uma construção e
não de uma espera?
Chegar mais perto de nossos adolescentes mostrou-se um bom começo de
caminho. Pensar as saídas por maioridade nada mais é do que olhar para cada
caso com suas singularidades, detectar desejos e resgatar potências. Assim,
os trabalhadores de cada serviço foram convidados a escolher um caso para
se aproximar. Fizemos um estudo dos prontuários como se estivessem sendo
visitados pela primeira vez, atentos a curiosidades, surpresas, e dispostos a
conhecer melhor os sujeitos que existem por trás de tantos relatórios.
Abrir-se para o encontro com cada um desses jovens requer disponibilida-
de para ultrapassar alguns obstáculos que costumam nos afastar deles. No se-
gundo encontro, escutamos as descobertas que cada dupla de trabalhadores
fez de seu caso escolhido, e conversamos mais sobre o imaginário construído

91
sobre a adolescência. A partir de referenciais como Caligaris (2000) e Vicen-
tim (2010), lembramos que a adolescência foi construída em nossa sociedade
como moratória, ou seja, tempo de espera, tempo em que nossos jovens já se
sentem fisicamente prontos para os desafios da vida adulta, mas ainda não
são autorizados por nós, adultos, a ocupar este lugar. Esse tempo de espera
gera ansiedade e muito conflito! E as respostas que conseguimos dar, muitas
vezes, acabam passando por uma “patologização” e criminalização da ado-
lescência, ou seja, atribuímos os comportamentos da juventude a problemas
de saúde mental, que devem ser tratados com medicamentos ou internações,

92
ou como questões ligadas à delinquência, que devem ser tratadas com me-
didas socioeducativas. Assim, muitas vezes o adolescente fica perdido em re-
lação as suas referências e, muitas vezes, é compreendido pelo viés do “pro-
blema”, de quem “não quer nada”, “não tem jeito” e é “perigoso”, quando,
frequentemente, está angustiado e aflito tentando se localizar meio à deriva
em que se encontra. Esses modos de olhar para os adolescentes acabam
criando uma distância entre nós e eles e, assim, como é possível cuidar?
Atentos a essas questões, tentamos captar, na leitura dos prontuários,
que tipo de olhar cada serviço havia construído até então para cada um des-
ses garotos e garotas. Surgiram lembranças de histórias que não foram regis-
tradas nas pastas e nos vimos impactados pelo efeito das lacunas, de tantas
histórias não registradas e esquecidas. A ausência ou pouco investimento na
memória dos adolescentes e na construção de suas histórias cria buracos e
vai esvaziando o trabalho e a vida: não se criam projetos, não se abre possi-
bilidade de sonhar futuros, seja para o próprio adolescente quanto para os
profissionais que os atendem. Chamou a atenção dos profissionais o quanto
os registros e buracos iam indicando a manutenção do acolhimento da crian-
ça, quase mecânica e automática: quais apostas foram feitas? Quem apostou
junto com aquele adolescente em suas construções e aprendizados?
Emergiram questões sobre com que cuidado cada história havia sido es-
cutada, transmitida e investida: esse adolescente precisava ter sido acolhido?
Quais os investimentos feitos no contato com os familiares? Existiram proje-
tos? Que futuros e possibilidades estes apontavam, de que forma o adoles-
cente havia participado e se apropriado dos trâmites jurídicos e das apostas
sobre sua vida? Percebeu-se que muitas das histórias narradas nos prontuários
contavam sobre a própria história dos serviços de acolhimento para crianças e
adolescentes enquanto política pública e como ela aconteceu no município de
Osasco. Assim, construir histórias, falar da origem e dar lugar para a
história que se constrói a partir das experiências vividas dentro e fora
do serviço de acolhimento, assim como a possibilidade de elaborar
projetos de vida, aparece como a mais importante função dos técni-
cos, APS e outros profissionais que atuam nesse serviço, encontrando
no PIA sua principal expressão.

93
Ao compartilhar as histórias e as descobertas, ficamos instigados a ir além
dos rótulos e estigmas, sentimo-nos mais próximos de cada jovem, foi possível
percebermos pontos de aproximação entre eles e abriu-se um campo para
pensar a possibilidade de estratégias coletivas, entre serviços de acolhimento,
para trabalhar com os adolescentes.
Muito bem, estávamos prontos agora para a próxima etapa: convidar o
adolescente a falar sobre sua história por ele mesmo. Entre o segundo e o ter-
ceiro encontro os trabalhadores dos serviços tiveram como tarefa seguir nesse
movimento de aproximação, não mais das pastas e registros, mas dos próprios
adolescentes. A partir de uma conversa descontraída, técnicos e APS cons-
truíram junto a cada garota e garoto um mapa de suas referências afetivas.
A pergunta disparadora era: “o que é importante da vida de uma pessoa? -
Saúde? Escola? Trabalho? Família? Amigos? Amores? Lazer?”, seguida de outras
perguntas muito interessadas em escutar como o adolescente se via em cada
um desses campos e que personagens faziam parte deles. Nesse momento,
falamos muito da ideia de referências, entendidas como todas as pessoas que
ajudam ou ajudaram o jovem a se situar na vida, que produziram marcas po-
sitivas neles de alguma maneira: a professora da escola, a avó tempos atrás,
o amigo da rua, o vigia do posto de saúde...
Os mapas foram trazidos em nosso terceiro encontro e foi importante co-
nhecer o modo com que cada jovem fala de si e como está percebendo seu
momento em relação à saída do SAICA e projetos futuros. Entramos em contato
com muita potência, mas também com muita solidão. No grupo, houve surpresa
com a profundidade e a precisão com que os adolescentes estavam perceben-
do seu momento e também indicando os projetos e desafios para alcançá-los,
apontando, em alguns casos, estratégias e caminhos: pensar no trabalho possí-
vel, como meio para chegar ao desejado; na construção da família que querem
ter e na que tem; identificando suas conquistas até o momento presente como
base para outras e também trazendo suas fragilidades. Essas conversas ajuda-
ram os profissionais a pensarem em como direcionar o trabalho que estão rea-
lizando com cada adolescente e também a perceberem os efeitos de suas inter-
venções e propostas. Foi importante conversar sobre as saídas possíveis
dos adolescentes, em oposição às saídas ideais, para que as propostas

94
pudessem ser pensadas de forma a dosar o sonho e o pragmatismo e a
não se tornarem exigências irreais para os adolescentes.
Notamos que há referências mais fortes e outras mais frágeis, e que mui-
tos deles mostram dificuldades em nomear referências para além dos Serviços
de Acolhimento. Ficou evidente mais uma função de técnicos e APS dos
SAICAS na elaboração dos PIAs: ampliar o leque de referências desses
jovens, tanto dentro quanto fora dos serviços, estimular e incentivar
novas vinculações, descobrir formas cuidar das que já existem.
Para o quarto encontro, mais um mapa construído junto aos adolescentes.
Dessa vez, um mapa de referências no território, ampliando o olhar do sujei-
to, para suas relações na cidade. Tentamos construir a ideia de historicidade:
“de onde vim, onde estou, para onde quero ir?”, “que pontos da cidade fazem
parte da minha vida? Por que lugares gosto de passar? Que lugares tenho von-
tade de conhecer?”. Essa tarefa trouxe a necessidade de olharmos para além
das paredes e portões dos SAICAS, nos projetarmos para fora, interessados
agora na circulação desses jovens pela cidade; afinal, é ali que grande parte da
vida acontece e é por ali que a vida tem que ser pensada e projetada.
Como finalização deste Encontro Temático, buscamos concretizar algumas
reflexões feitas, a partir da construção de uma intervenção grupal, inter-servi-
ços, partindo do pressuposto que os SAICAS e equipes podem se fortalecer ao
trabalharem em rede para lidar com desafios comuns e criarem experiências
e ações. A ideia foi se aproximar dos jovens, tentar se relacionar com
eles a partir do que podem falar de si, fortalecer o lugar de referên-
cia que os SAICAS e profissionais já têm como referência em suas vidas,
ampliar suas relações, propiciando uma oportunidade de conhecer
os adolescentes de outras casas, ampliar a experiência na cidade...
Para isso, construímos o I Caça ao Tesouro dos Adolescentes dos Serviços de
Acolhimento de Osasco: o município serviu de tabuleiro e diferentes pontos
da cidade viraram bases onde os jovens deveriam encontrar pistas. Os lugares
foram pensados a partir da reflexão dos profissionais sobre quais os locais
que os adolescentes precisam saber chegar e conhecer o funcionamento para
poderem fazer uso quando saírem do SAICA: o Portal do Trabalhador, o largo
de Osasco, hospital, SESC e a Escola das Artes.

95
O convite foi para que todos pudessem ousar e experimentar algo di-
ferente: tanto pensar em ações que envolvessem os outros SAICAS, quanto
abordar e trabalhar questões relacionadas ao PIA, ao desenvolvimento de
autonomia e a possibilidade de criar significações para a maioridade de for-
ma lúdica, divertida e envolvente.
Os adolescentes circularam sozinhos entre as bases, a pé ou de ônibus.
Em cada estação, tinham que realizar atividades com intuito de conhecer mais
sobre o acesso ao lugar: que ônibus e quais linhas saem do largo de Osasco?
Como as pessoas conseguiram o seu primeiro emprego? O que é: autonomia,
liberdade, juventude e cuidado? E por aí foi...
O caça ao tesouro mobilizou que o grupo se encontrasse e se articulasse
para organizar e convidar os adolescentes. Essa mobilização envolveu a todos
na casa, profissionais da gestão e também as crianças e adolescentes.
Nem todos os adolescentes toparam participar, mas os que participaram
se envolveram e se divertiram: apropriaram-se de forma mais lúdica do terri-
tório que cada vez mais precisam ser deles para pensarem seus projetos e con-
tinuarem suas vidas. Foi possível conhecer outra faceta dos adolescentes que,
em meio ao corre-corre do dia a dia, ficam mais adormecidas, tem menos des-
taques: a sensibilidade, a criatividade, a possibilidade de resolver problemas...
O “mal humor” adolescente não resistiu e os adolescentes correram, cir-
cularam ansiosos de saber qual a próxima prova, mesmo com o sapato machu-
cando. Na palavra de uma das profissionais envolvidas: a vida também é assim,
por mais cansativa que seja, seguir em frente com sapatos ou não.
Divertir-se junto, em meio às discussões de PIAs em um momento pra lá
de delicado, aproximou, ajudou a dar leveza e a abrir outros canais de con-
versa. Deu vontade de fazer outra atividade do tipo para as crianças que não
participaram, entre os profissionais... abrir janelas para o riso e o trabalho
criativo. Fazer outro convite permitiu ver os adolescentes se relacio-
nando entre si, trabalhando e esperando o grupo, interessando-se,
topando em situações nas quais imaginamos que não vão topar e ven-
do-se potentes na realização das tarefas, ao decifrar as pistas. Permi-
tiu também a equipe poder ver esses pequenos-grandes efeitos de suas
intervenções. Ver potência, que muitas vezes se esconde na lida diária,

96
no trabalho e no encontro, ajuda no trabalho a sair do cansaço e
apostar mais na possibilidade de estar próximo.

Referências Bibliográficas
CALLIGARIS, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.

VICENTIM, M. C. G. & GRAMKOW, G. Que desafios os adolescentes autores


de ato infracional colocam ao SUS? Algumas notas para pensar as
relações entre saúde mental, justiça e juventude. In: Lauridsen-Ribeiro &
Tanaka (orgs.). Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS.
São Paulo: Hucitec, 2010.

VICENTIM, M. C. G. Os intratáveis: a patologiazação dos jovens em situação


de vulnerabilidade. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo;
Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (orgs.). Medicalização de crianças
e adolescentes. Conflitos silenciados pela redução de questões sociais a
doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

Minnicelli, Mercedes. Infâncias Públicas. Não é justo. Estilos clin., São Paulo,
v. 8, n. 15, p. 72-81, jun. 2003. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282003000200006&lng=pt&nrm=i
so>. Acessado em 01 ago. 2016.

1. Encontro temático coordenador por Gabriela Urbano e Fernanda Ghiringhello Sato.

97
3
98
novas histórias:
produções
dos profissionais
de osasco
99
100
em busca do simples:
uma experiência no serviço de acolhimento
para crianças e adolescentes
Isadora Canelli Bonfanti1
Érica Moura2

Em “A hora da estrela”, Clarice Lispector, através do narrador, afirma: “Que


ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito tra-
balho”. No tão difícil exercício do encontro, vivenciamos cotidianamente as
angústias de trabalhar com a Política de Assistência Social brasileira na cha-
mada alta complexidade. E é exatamente no contexto da vida pulsante, dos
sentimentos a flor da pele, da violação de direitos, da vida judicializada e
acompanhada pelo Estado, que os encontros se inserem para, ora nos dar for-
ça para um avançar: um passo aqui, conquistar algo ali, se alegrar lá e, tam-
bém, se frustrar dentro disso tudo. Nesse sentido, a afirmação da autora não
poderia ser mais verdadeira: na alta complexidade, no contato tão próximo
com a vida de crianças e adolescentes que estão no serviço de acolhimento
institucional, às vezes nos esquecemos de ser simples, que a simplicidade é
boa, necessária, e sim, dá muito trabalho.
Durante os encontros que participamos no processo de formação do Enla-
ces, no que diz respeito ao SAICA Casa ABC, as demandas emergiam como água
num copo que, antes de ter esvaziado, já era enchido novamente. Como estamos
educando as crianças e adolescentes? Como todos podem participar ativamente?
Como estimular o comprometimento da equipe? O que fazer nas situações de
violência? Como ensinar? Como ouvir a todos, mas obter ações rápidas? Nesse
contexto, o encontro que tivemos não poderia ter sido melhor, justamente devi-
do à simplicidade da proposta.
Diante de tantos questionamentos, começamos a entender, em nossas reu-
niões, que estávamos pensando em questões pertinentes à vida dos acolhidos,

101
que iam para além das necessidades imediatas, porém ainda não havíamos per-
cebido que os cuidados básicos e essenciais estavam precarizados e deveríamos
olhar para isso também.
No serviço de acolhimento acontecem situações próximas ao cotidiano da
vida familiar: às vezes, um irmão se enxuga com a toalha do outro, esquece qual
é sua escova de dente, utiliza o sanitário e se esquece de dar descarga, usa o sa-
pato do outro, uns brigam pra ver quem fica com determinado brinquedo, outros
discutem buscando escolher o canal na televisão, enfim... Só que isso de coloca de
forma altamente mais complexa na instituição uma vez que os profissionais que
ali se inserem tem a função de reafirmar, orientar e ensinar, o tempo todo, sobre
o lugar do coletivo e o da individualidade.
Considerando isso, percebemos, com a ajuda dos Agentes de Prote-
ção Social – APS, que as crianças estavam com poucas referências de
individualidade, de cuidados básicos diários, e dependiam em tudo dos
cuidadores: até a dar descarga. Aos olhos da equipe, essa percepção passou
a ser uma missão: através da colaboração interdisciplinar entre serviço social,
psicologia e pedagogia, além da contribuição de um dos cuidadores, foram ela-
boradas atividades lúdicas com o objetivo de promover melhorias na convivên-
cia dentro do SAICA e estimular a discussão sobre questões coletivas.
Num primeiro momento, realizamos uma atividade que chamamos de “reu-
nião”, uma espécie de roda de conversa cujo tema seria livre e a pauta seria feita
pelas próprias crianças. Reunimos as crianças no quintal da casa, organizando
mesas e cadeiras para que todos permanecessem em círculo. Os participantes
elencaram sobre o que gostariam de discutir, ressaltando principalmente a res-
peito da necessidade de tratar bem os funcionários, sobre as regras da casa e
sobre situações em que utilizam palavras de baixo calão.
As crianças optaram por falar sobre “palavrões”, de fato uma realidade na
casa. No início, afirmaram que isso não era adequado e que deveriam tratar os
colegas e funcionários com menos palavras ofensivas. Propusemos que confec-
cionassem um cartaz onde de um lado estariam as palavras que demonstras-
sem maneiras educadas de se dirigir ao outro e, do outro, os palavrões mais
utilizados no dia a dia.

102
Assustaram-se quando falamos que poderiam escrever os palavrões, depois
ficaram mais a vontade e pudemos falar sobre o tema mais abertamente. Do lado
das palavras positivas colocaram as mais comuns utilizadas no dia a dia como: por
favor, obrigada, bom dia, boa tarde, boa noite, desculpa etc.
Durante a atividade, as crianças falavam negativamente umas das outras
quando se sentiam incomodadas e nesses momentos a equipe técnica intervia no
sentido de chamar a atenção para a incoerência entre o comportamento apresen-
tado e o assunto discutido.
Posteriormente, utilizamos desenhos que demonstravam emoções e pedi-
mos que cada um escolhesse aquele que representava o que estavam sentindo.
Casa um pintou o seu com lápis de cor e giz de cera, mas o momento foi tumultu-
ado, não conseguiram se tratar bem nem dividir os materiais e, mesmo com a in-
tervenção das técnicas e do APS, foi difícil finalizar a atividade. No entanto, todos
os participantes permaneceram até o final, quando realizamos um piquenique.
O segundo momento teve por objetivo estimular a assimilação de conceitos
sobre cuidados básicos. Dessa forma, visando conscientizar as crianças sobre a
importância da higienização, organização e bem estar no ambiente, propuse-
mos um teatro que tratou do assunto referente a uma falta de hábito de algu-
mas crianças ao utilizarem o banheiro. O fato de utilizarem o vaso sanitário
e não darem descarga causava muitos conflitos e desconforto entre
as crianças e funcionários. Foi pensando nisso que a própria equipe técnica
com a ajuda de um agente de proteção social e uma cozinheira dramatizou as
situações cotidianas e corriqueiras da casa, representando essas situações desa-
gradáveis com o intuito de acabar ou amenizar esses conflitos.
A dramatização recebeu o nome de “A turma do Cocô” (roteiro no
final do texto). Foram confeccionados máscaras e jogos que simboli-
zavam o tema, com o intuito de que as crianças pudessem se apropriar
do conteúdo elaborado. O saldo da atividade foi positivo, além de ter
rendido muitos assuntos e boas risadas. Até hoje podemos escutar al-
gumas crianças cantando as músicas do repertório pelos cantos da
casa e o ato de dar descarga agora é mais constante, acontecendo de
maneira espontânea pelas crianças.

103
No terceiro momento, as crianças foram convidadas para uma contação de
história do livro infantil “A família urso perde as boas maneiras”. Utilizamos
a sala pedagógica do serviço de acolhimento, onde nos sentamos no chão e
ouvimos a história da Mamãe Urso que, percebendo que os filhotes haviam
esquecido as boas maneiras, cria um plano educativo para acabar com o mau
comportamento e estimular a boa convivência em sua casa. Através das figuras
contidas no livro, as crianças puderam assimilar melhor o conceito, o que gerou
uma roda de conversa longa sobre a questão. Nesse sentido, a maioria das crian-
ças presentes demonstrou envolvimento, trazendo para o grupo situações que,
embora fossem de conhecimento da equipe, não haviam sido ditas claramente
pelas crianças. Tivemos, então, a oportunidade de auxiliá-las a entender o ex-
posto, sob um ponto de vista diferente daquele que conheciam.
Embora, no contexto geral, ações como essa não “resolvam os pro-
blemas” imediatamente, podemos afirmar que, na CASA ABC, tiveram um
valor super positivo, pois puderam propiciar um ambiente mais harmo-
nioso e envolver a equipe técnica, APS e cozinheiras, cada um participan-
do a sua maneira. Esperamos, com essa contribuição, ancorada na ideia
do “simples” e, ao mesmo tempo, complexo e necessário, ter minimamente
incentivado as crianças, adolescentes e funcionários a uma aprendiza-
gem divertida que possa propiciar uma convivência mais saudável no
serviço de acolhimento.

1. Isadora é assistente social, servidora pública de Osasco.


2. Érica é psicóloga, servidora pública de Osasco.

104
A turma do cocô
Roteiro da dramatização

PERSONAGENS
Duas crianças • Um repórter • Uma Cozinheira

Chega todo mundo cantando: Ê ô, ê ô! A Turma do Cocô chegou! Ê ô, ê ô!


A Turma do Cocô chegou!

Depois que todos estiverem sentados em semi círculo, a história começa...

Duas crianças estão jogando cards no chão, muito animadas.

Começa a tocar a música do cocô, e uma delas começa a sentir dor de barriga.
A tia Bete as chama pra almoçar, uma só sai da cena e a outra continua jogan-
do com dor, sem saber o que fazer.

Essa criança para de jogar os cards e começa a fazer sons de pum e cara de dor
de barriga.

Olha desconfiada para todos os lados, tenta ir até o banheiro, chegando perto
da privada o cocô sai (o cocô vai ser uma pessoa vestida assim, que vai sair da
bunda da criança).

Após terminar de fazer o cocô, a criança olha novamente para os lados e, ven-
do que não há ninguém, sai do banheiro sem dar descarga dizendo:

- Tia Bete, me coloca comida!!! – e sai da cena.

Entra outra criança na cena precisando usar o banheiro, quando se depara


com o cocô na privada toma um susto:

- AI, AI AI!!! QUEM DEIXOU ESSE COCÔ AQUI? VAMOS TER QUE DESCOBRIR!

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Uma buzina toca e entra em cena um repórter (com uma câmera e um micro-
fone), vestido de cocô, dizendo:

- URGENTE, URGENTE! NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA! NA CASA ABC TEM UM COCÔ E


NINGUÉM SABE DE QUEM É!

O repórter começa a perguntar para a plateia o que acham do cocô, esperan-


do que cada um dê sua opinião.

- ONDE O COCÔ SE ESCONDEU? DIZ A LENDA QUE, QUEM NÃO DÁ DESCARGA, FICA
COM O COCÔ DO LADO, MAS APENAS OLHOS BIÔNICOS PODEM VÊ-LO!!!

O repórter coloca um óculos mas, como ele mesmo é o cocô, não consegue
ver nada...

- AI, AI! QUANDO ENCONTRAREMOS ESSE COCÔ? (Dramático)

As duas crianças entram novamente na cena, dessa vez jogando damas. Al-
guém pergunta quem da plateia pode colocar o óculos e ver onde está o cocô.
Nesse momento, o “repórter cocô” senta ao lado do “cagão” e fica vendo o
jogo acontecer.

Quando todos localizam onde está o cocô, a pessoa que está cuidando do ócu-
los pergunta quem quer participar da missão de dar descarga (duas crianças).

A pessoa diz às crianças:

- COMO VAMOS FALAR PRA ELE QUE SABEMOS QUE ELE NÃO DEU DESCARGA?

Se aproximam da criança jogando damas e dizem:

- DESCARGA! DESCARGA!

A criança fala, assustada:

- AHHH!!! ENTÃO DESCOBRIRAM QUE EU NÃO DEI DESCARGA!!! (cara de choro)

Os envolvidos levam a criança para puxar a descarga.

Todos comemoram.

106
Aparece uma cartolina com um desenho de privada limpa, todos fazem jóinha.

Depois, todos são convidados pra fazer um roda e cantar:

Fui usar a privadinha-nha


Tava infestada-da
De cocô-cô-cô
Saiu de lá, lá, lá
Uma bostinha-nha
Olhou pra mim, olhou pra mim e disse assim:
Dá descarga!

107
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cozinhando no cras
Maria Ismarlene Rodrigues1

Cozinhar é sempre um ato de amor e cozinhar para os nossos usuários


é mais que amor.

É dedicação e preocupação com o bem estar dessas pessoas.

Pessoas que vêm até nós com suas carências, alegrias, tristezas
e, muitas vezes, solidão.

Nós as recebemos com um café, uma bolacha e, acima de tudo, com carinho.
Paramos um minuto e perguntamos: “como você está?”

Independente da resposta, dizemos: “tome um café, você quer um chá?”

E, neste pequeno gesto, está um pouco de nós.

Este é o nosso apreço por essas pessoas que não são apenas usuários,
mas pessoas que fazem do nosso trabalho um prazer.

Quando fazemos algo diferente, um bolo e uma torta, estamos mostrando


a eles o quanto são queridos, o quanto são importantes.

Cozinhamos e servimos com amor.

Porque acima de tudo somos todos irmãos e temos que fazer


o melhor sempre.

1. Ismarlene é cozinheira do CRAS Veloso, do município de Osasco.

109
110
Como festejamos atualmente e como queremos
festejar, celebrar e estar junto. Desenho
realizado pelos profissionais, criancas e
adolescentes da Casa Doce Lar na elaboração do
Projeto Politico Pedagógico - Junho 2016

111
112
o serviço de convivência e fortalecimento
de vínculos do cras Padroeira como
interlocutor do fortalecimento comunitário
Andressa Mota do Nascimento de Brito1
Luciane de Paula Souza 2
Renata Silva Petrini3

“É impossível haver progresso sem mudança e, quem não consegue mudar


a si mesmo, não muda coisa alguma”.
Bernard Shaw

Histórico CRAS Padroeira


Quando se fala em CRAS Padroeira, a primeira ideia que se apresenta é de um
local de violência, baile funk, tráfico de drogas, ocupações irregulares, cria-
douros de animais (porcos, vacas, cavalos, aves e outros) e muito lixo na rua.
Com as práticas e teorias aprendemos a respeitar o tempo do outro, tem-
po necessário para a transformação histórica, tempo este muito significativo
para a comunidade residente na área de abrangência do CRAS.
O CRAS Padroeira está localizado no bairro Padroeira I, em frente ao
Conjunto Residencial Vitória, antes conhecido por favela “Pinga Pus” pelo
alto índice de criminalidade e depósito de cadáveres advindos do município
de Osasco e das cidades vizinhas, tornando-se, assim, um território marcado
pela violência e pela ausência do Estado.

113
Em 1998, a Associação dos Moradores do bairro teve a informação que o
município receberia uma verba federal para construção habitacional. Diante
disso, lideranças procuraram a Prefeitura e alegaram que, se transformassem
a favela em um bairro, o conceito negativo que carregavam se transformaria,
e isto seria uma mudança significativa para a cidade.
Em 2004, iniciaram as construções e, em 2006, o sonho se tornou reali-
dade: moradores da favela “Pinga Pus” mudaram para o Conjunto Residen-
cial Vitória através do Programa Habitacional conquistado pela população.
Também conquistaram um espaço de um galpão, conhecido como “Sede”,
local este utilizado para todos os eventos da comunidade: aniversários, bailes
funks, velórios, cultos religiosos e etc.
Na região, foi diagnosticada grande quantidade de crianças em vulne-
rabilidade social, com muito tempo ocioso. Técnicos da SAS iniciaram as pri-
meiras atividades, utilizando o espaço da Sede. Realizaram roda de conversa
com as mulheres e brincadeiras com as crianças, utilizando-se de estratégia
intervenções lúdicas para aproximar as pessoas.
Com o êxito das atividades, o local foi utilizado como Núcleo de Extensão
Conjunto Vitória para crianças e adolescentes do CRAS Veloso. Em 2012, foi inau-
gurado oficialmente o CRAS Padroeira, acordado entre população local
e SAS. Momento difícil no inicio: população cheia de expectativas e muitos
desafios para efetivar a Política de Assistência Social naquele local.
A quebra do vínculo com o espaço-sede foi muito turbulenta, a comunida-
de não entendia que o espaço era exclusivo para as atividades do CRAS. Foram
vários momentos de conversas, escutas e determinações. Nesse momento, hou-
ve a participação significativa de lideranças comunitárias, funcionários públicos
engajados e dispostos, pois a cada dia era um novo desafio a ser enfrentado.
Hoje o CRAS Padroeira ainda recebe demandas diversas, e não diferente
de outras Unidades, acolhe os usuários que apresentam expectativas de que o
técnico resolverá todas suas dificuldades. Entretanto, a equipe tem trabalhado
de forma educativa para mudar este conceito, o CRAS está em um novo mo-
mento, de fazer com que a comunidade conheça seus direitos, e como obtê-los.
Momento de entender que o usuário faz parte daquela comunidade e que a
transformação dela necessita de sua transformação individual também.

114
SCFV e o Impacto Comunitário
Com a estruturação do CRAS Padroeira enquanto equipamento público, es-
truturaram-se também os serviços, entre eles o Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos – SCFV, que é ofertado de forma complementar
ao Programa de Atenção Integral à Família – PAIF, programa que tem prima-
zia na Proteção Social Básica. Entretanto, nem sempre é desta forma que a
demanda é apresentada nas Unidades dos CRAS.
Para avaliação técnica dessas particularidades, é importante que o pro-
fissional que atua no território desenvolva estratégias para dar respostas à
demanda tal como ela se apresenta, não negando sua existência, nem igno-
rando a necessidade de vinculação a um trabalho integral com as famílias.
O CRAS Padroeira, ao longo dos anos, e com a contribuição de diver-
sos profissionais que por lá passaram, desenvolveu esta habilidade de
acolher famílias, em seus diferentes ciclos de vidas e com variadas neces-
sidades e, coletivamente, desenvolver “respostas” e caminhos possíveis.
Naquele território, sobretudo por suas particularidades territoriais, o iní-
cio das ações teve grande adesão de crianças e adolescentes que, desprovidos
de opções na comunidade, acolheram com receptividade as propostas de ca-
ráter preventivo e proativo do SCFV, materializadas em oficinas lúdicas, em
rodas de conversas e na viabilização dos acessos aos “territórios ampliados”,
para além das periferias.
A segurança de convívio, garantida pelo SUAS, trata do direito à convi-
vência familiar e à proteção da família, com objetivo de prevenir situações de
isolamento social, ruptura de vínculos familiares e comunitários, situações de
discriminação, entre outras, ensejando a promoção de sentimentos de pertença
e coletividade. O SCFV tem como objetivos promover a liberdade, a capacidade
de escolhas e a ampliação de repertórios que repercutirá nas relações familiares.
Na busca de atingir os objetivos propostos ao SCFV, o CRAS Padroeira, por
meio da SAS, firmou parceria com SESC no Programa SESC Esportes que objetiva
valorizar o bem estar do corpo e da mente, desenvolver socialização, inclusão
social e autonomia como forma de exercício da cidadania.

115
Parceria com o SESC
A parceria entre SESC e SCFV foi articulada como ferramenta de fomento para
atividades de esporte, cultura e lazer para usuários dos CRAS; mas, sobretudo,
como dispositivo agregador de vivências externas a territórios tão marcados
por vulnerabilidades relacionais.
As atividades seguiam com consistente participação dos usuários mas, em
paralelo, eclodiram questões nas quais se apresentaram o estigma da comuni-
dade e afetavam significativamente o auto conceito dos participantes do CRAS
Padroeira. Na escuta atenta dos usuários, surgiam questões relacionadas a per-
cepções de diferenciação e desvalorização, questões essas que tinham expres-
são desde o ônibus para transporte até a unidade do SESC (do tipo escolar
e não turismo como os outros equipamentos participantes) até o preconceito
velado em ações ou omissões de profissionais envolvidos no projeto.
Tomando a premissa do fortalecimento de vínculos como o resulta-
do de um trabalho que produz proteção socioassistencial, e diante das
experiências apresentadas pelos usuários, foi necessária a reavaliação
da proposta e a adequação da mesma de forma pactuada entre SCFV e
SESC, de forma a produzir um sentimento de pertencimento dos usuários
e não a prevalência do estigma já vivenciado por eles em seu território.
Com a nova configuração da atividade, a participação dos usuários foi
ampliada e reestruturada: passaram de participantes de um projeto a foco do
mesmo, tornando-se público alvo da proposta na qual a prática de atividades
esportivas é o tema agregador de interesses e desenvolvimento.
A proposta foi alterada de modo a construir com nossos usuários, não so-
mente o espaço factível a prática de atividades de convivência mas, sobretudo, o
reconhecimento de seus valores, potencialidades e a eclosão da identidade com
o território como constituinte de sua subjetividade e não fator limitante dela.

1. Andressa é coordenadora dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos


do município de Osasco.
2. Luciane é psicóloga do Cras Padroeira do município de Osasco.
3. Renata é assistente social, coordenadora técnica do Cras Padroeira do município
de Osasco.

116
Entradas e saídas na casa: como recebemos e
para onde queremos ir e conhecer. Desenho
realizado pelos profissionais, criancas e
adolescentes da Casa Doce Lar na elaboração do
Projeto Politico Pedagógico - Junho 2016

117
118
o papel da arte educação com RPG
Lucas Nascimento Prado1
Mariana Morás dos Santos2

“Que a arte me aponte uma resposta mesmo que ela mesma não saiba. E que
ninguém a tente complicar, pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer”

Oswaldo Montenegro

Pretendemos aqui realizar um breve relato de prática realizada em oficina de


SCFV, fundamentando-a, mesmo que de forma introdutória, na tentativa de
contribuir para que as práticas de nosso dia a dia profissional sejam orientadas
a uma finalidade específica, neste caso descrita pelo princípio da garantia do
direito/segurança de convívio.
Tal experiência nasceu do conhecimento adquirido por uma Assistente
Social sobre a dissertação de mestrado “As Potencialidades do RPG na Educa-
ção”, escrito por Rafael Carneiro (2008), na qual são reveladas algumas pos-
sibilidades de inserção do jogo na educação. Tal ideia, ao ser repassada a um
facilitador de oficinas do SCFV, tem gerado bons resultados, justificando nos
debruçar sobre esta matéria para uma melhor compreensão.
O Homem como Ser Social é, diferentemente de outros animais, dotado
de teleologia e possibilidade de dar respostas que não encerram em si mesmas,
e sim engendram novas perguntas. Assim, ao projetar de forma consciente,
usando da teleologia, os homens criam objetivações que ultrapassam apenas
a satisfação de suas necessidades físicas em sua relação com a natureza. Emer-
gem então, formas de práxis mais complexas, resultando em objetivações filo-
sóficas e políticas; é quando o homem não realiza mais apenas as objetivações
primárias entre ele e a natureza e sim entre sujeito e sujeito.

119
A categoria de práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvol-
vido: verifica-se, na e pela práxis, como, para além de suas objetivações
primárias, constituídas pelo trabalho, o ser social se projeta e se realiza nas
objetivações materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, construin-
do um mundo de produtos, obras e valores – um mundo social, humano
enfim, em que a espécie humana se converte inteiramente em gênero hu-
mano. Na sua amplitude, a categoria de práxis revela o homem como ser
criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da
sua auto-atividade, ele é o que (se) fez e o que (se) faz.

(BRAZ e NETTO, 2008, p.44)

Assim, entendemos que é no processo de autoconstrução do ser social, elimi-


nando qualquer caracterização que transcenda o Homem e a História, que
todas as objetivações da sociedade são construídas. No processo de huma-
nização, ou seja, no processo de apropriação das respostas humanamente
constituídas, é que se revela um laço entre todos da mesma espécie, pois não
partimos do zero para um novo avanço, sempre partimos do último avanço
realizado e conhecido por nós.
E este é o ponto crucial para esta discussão: a forma desigual da apro-
priação do que é humanamente produzido, seja esta produção de riquezas,
de cultura ou de lazer, revela também uma forma desigual de reconheci-
mento do outro enquanto sujeito humano igual a mim. O pensador Georg
Lukács escreveu sobre como estarmos imersos ao que ele chamou de cotidianei-
dade nos afasta do reconhecimento do outro até uma negação da sociabilidade,
criando relações com respostas imediatas, heterogêneas e superficiais.
A forma proposta para romper tal imersão na vida cotidiana é a me-
diação que proporcione o contato com a subjetividade do outro, que
proporcione ultrapassar uma relação reificada, na qual o outro é uma
coisa ou um limite, fundando uma relação em que o outro possa ser
visto como tão humano quanto eu e, por isso mesmo, um ser dotado de
potencialidades que podem contribuir com toda a humanidade.

120
É esta ultrapassagem que se pretende com a inserção do jogo RPG nas ofi-
cinas do SCFV. Tal serviço é oferecido levando em conta a possibilidade de uma
forma orientada de convivência resultar em fortalecimento de vínculos sociais,
familiares e territoriais. Na tentativa de evitar os possíveis rompimentos de vín-
culos que famílias e indivíduos em situação de desproteção social são expostos,
esta é uma política antecipatória do agravamento de determinadas situações.
Assim, segue relato do facilitador Lucas, sobre as oficinas realizadas:

A arte sempre foi o foco básico das oficinas que desenvolvo. Com o grafite,
pude ver alguns caminhos a seguir com os adolescentes, mas com o tempo co-
mecei a perceber que eles estavam se tornando um pouco individualistas, os
vínculos eram fortalecidos de uma forma lenta.
Observando isso, a partir de uma conversa com Mariana, assistente social,
surgiu a ideia do RPG (Role Playing Game), um jogo representativo no qual
os participantes criam seus personagens, com habilidades e personalidades
específicas, e com uma pessoa intitulada de MESTRE, que segue contando
uma história com vários nichos problemáticos que devem ser resolvidos pelo
grupo ou por um dos indivíduos participantes, mas que contam com jogadas
dos dados para que se obtenha êxito.
De início, a ideia parecia boa e, como teste, introduzi a oficina com pe-
quenas histórias, assim pude analisar a absorção de uma coisa até então des-
conhecida para o grupo, já que se utiliza de um mundo fictício.
Depois desse início, surgiu uma parceria com o CAPS AD, que já realizava
oficinas orientadas com adolescentes. A possibilidade de compor oficinas
conjuntas foi de suma importância na construção desse projeto, pois
não só os adolescentes participam, mas também as terapeutas ocupa-
cionais do Centro de Atenção Psicossocial, contribuindo para que os
vínculos sejam firmados em ambos os serviços.
Vários pontos começaram a surgir no desenvolvimento da atividade, nor-
teando-a e modificando a forma de trabalhar. Tal experiência enriqueceu
também a forma com que lido com o grafite. Relato então algumas das expe-
riências vividas com os grupos no desenvolvimento das aventuras.

121
Nos primeiros encontros, já foi fácil perceber que um dos meninos, que
antes era muito participativo na atividade de grafite, agora vinha acanhado,
algo o incomodava. Entendi que o problema é uma defasagem escolar que
o limitava a não calcular e escrever na ficha de seu personagem. A equipe
técnica do CRAS em questão, recebendo o relatório que realizei sobre, entrou
em contato com a escola, entendendo a questão para possíveis inserções em
grupo de reforço, mas realizei adaptação na oficina para que este adoles-
cente não se julgasse menos capacitado que os demais para jogar. Este é só
um exemplo da importância do olhar atento em todos os momentos de uma
oficina, pois pode nos revelar muito sobre a vida de alguém.
Logo após pedir para uma turma sobre a criação de um mapa que mos-
trasse um mundo no ano 3033, o mapa começou a ser construído e ficou bem
claro o quanto aqueles adolescentes estão enraizados no território, pois mes-
mo tendo a opção de criar um novo bairro, uma nova cidade, ou que seu per-
sonagem morasse em um lugar diferente da cidade, eles desenharam o mapa
com requintes de detalhes, sobre vielas, becos, pontos de tráfico, pontos onde
houveram homicídios na comunidade, as casas não mudaram de lugar, conti-
nuaram no mesmo lugar. Quando indagados do porquê, as respostas variaram:

– Sempre morei aqui e acho que sempre vou morar.


– Sair daqui pra onde, tio? Minha família não tem como sair desse lugar.
– Medo, a gente tem, mas a gente acostuma de ver tudo isso.

Nossos adolescentes têm vivido e visto muitas coisas, mas não têm visto, ain-
da, possibilidades de mudanças. Coloco como avanço o fortalecimento de
vínculos sociais. Com exatos dois meses do início da atividade, dois ado-
lescentes que vinham demonstrando divergências entre eles mudaram
o comportamento com a participação do que pode parecer ser apenas
um jogo. O personagem de um deles teve uma árvore caída sobre sua perna,
impossibilitando sua locomoção. Ao ataque dos vilões, o outro usou de tudo
para salvar aquele personagem que preso estava sob a árvore, o que rendeu
para fora do jogo um respeito e gratidão por salvar o personagem.
Assim, descrevo ainda que, com um pouco mais de tempo, a concentra-
ção do grupo aumentou drasticamente, também aumentando a participação,

122
comprometimento, interação e organização do grupo. Alguns líderes saíram
do jogo para a vida real, criando assim novas práticas, até mesmo de buscarem
por leituras, que não eram foco de apreciação.
Visto que o RPG traz estórias recheadas de lendas, aproveitamos
para inserir as lendas brasileiras no jogo. Assim, as habilidades de cada
personagem trazem uma curiosidade boa, que germina em outras bus-
cas, proporcionando uma apreciação pelo conhecimento. Foi-nos rela-
tado que, após o fortalecimento do grupo, alguns usuários inseriram-
se em outros programas municipais, voltados à cultura e AO esporte.
Trazemos como conclusivo que o RPG é uma ferramenta não apenas lúdica,
mas educacional, que usa o lúdico, através das histórias, para um contato mais
próximo com os outros personagens, relações que traspassam as aventuras
para a vida real. Trazendo arte, literatura, cultura, de forma a fomentar entre
os próprios adolescentes um crescimento de seus conhecimentos.

Referências
BARROCO, L e TERRA, S; Conselho Federal de Serviço Social – CFESS, (organiza-
dor). Código de Ética do Assistente Social Comentado. São Paulo: Cortez, 2012.

BARROCO, L. Ética: fundamentos sócio-históricos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

BRAZ, M e NETTO, J. Economia Política: uma introdução crítica. 4.ed – São Paulo:
Cortez, 2008.

LUKÁCS, G. Os Princípios Ontologicos Fundamentais de Marx. Ontologia do


Ser Social. São Paulo : Ciências Humanas, 1979.

VASQUES, R. C. As potencialidades do RPG (Role Playing game) na educação


escolar. 2008. 169 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 2008. Disponível em: <http://
hdl.handle.net/11449/90316>.

1. Lucas é radialista, produtor audiovisual e atua como facilitador de oficinas do


SCFV na Proteção Social Básica da Prefeitura de Osasco.
2. Mariana é assistente social, servidora pública da Prefeitura de Osasco.

123
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horta na casa
José Raimundo Santana de Matos1
Luciana Oushiro2
Diunei Conceição de Andrade3

“Quando apanho uma folha seca caída no chão, sinto nela a indiscutível
Lei do Ciclo da Vida.”
Mokiti Okada, 20 de Novembro de 1931

O projeto Horta na Casa surgiu no antigo SAICA Casa dos Irmãos, e ganhou
força quando nos mudamos para o Residencial Novo Amanhecer.
A ideia é realizar juntamente com as crianças e adolescentes o plantio de
pequenas plantas, hortaliças e verduras, para trabalhar conceitos de ecologia,
ciclo da vida, noções básicas de agricultura, consumo sustentável e reciclagem.
Também podemos trabalhar as questões relacionadas ao cuidado com um ou-
tro ser vivo, responsabilidade, respeito, paciência e resiliência.
Quando soubemos que no Novo Amanhecer havia um espaço aos fundos
da casa, já começamos a refletir e nos organizar para a implementação des-
se projeto. Assim, o gestor da unidade, Sr. José Raimundo Matos, entrou em
contato com a Fundação Mokiti Okada, e o ministro Ota e a professora Cleuza
Cardoso voluntariamente se prontificaram a nos ajudar no planejamento e
montagem da horta caseira.
No dia 10 de Fevereiro de 2016, numa força conjunta envolvendo as crianças e
adolescentes acolhidos, funcionários do SAICA e voluntários da Fundação Moki-
ti Okada, a horta foi montada. A terra, bambus e plantas vieram diretamente

125
do Solo Sagrado. Plantamos sementes de alface, cebolinha, couve, salsinha,
manjericão, ora-pro-nóbis, tomilho, erva cidreira, alfazema, morango etc.
Conforme relato do Sr. Matos, a horta deu vida a esse espaço reservado
pela SAS, gerando harmonia entre todos: “podíamos nos ligar a Deus atra-
vés do sentimento de gratidão na busca de uma alimentação saudável em
nosso cotidiano. A lavoura cultivada pelos nossos avós, que respeitavam e
admiravam a natureza, e pelos agricultores naturais, chamou minha aten-
ção há algum tempo, e tenho certeza que esse projeto poderá ajudar muitas
crianças aqui no abrigo. Diariamente eu cuido e peço ajuda aos moradores no
cuidado. Compreender que não devemos fazer a horta só por fazer, mas sim
demonstrar, fazendo brotar no coração das pessoas o sentimento de gratidão
pelas criações de Deus Supremo.”

126
Um dia surgiram algumas lagartas que comiam as folhas de couve.
O vigia Carlos nos ensinou que a hortelã espantaria as lagartas, fun-
cionando assim como um inseticida natural. Plantamos alguns pés de
hortelã entre a couve e realmente funcionou. Foi muito interessante e
enriquecedor observar como as crianças absorveram esses ensinamen-
tos e começaram a questionar e a prestar mais atenção no uso de cada
uma das ervas e temperos da horta. Sentiram o “cheiro de pizza” do man-
jericão e o gosto de bala da hortelã. Nisso, uma adolescente percebeu
que a alfazema tem o mesmo cheio de um de seus perfumes.
Pensamos, assim, em incentivar ainda mais a participação dos jovens rea-
lizando no dia 02 de julho 2016, o “Dia da Erva”. Foi uma manhã destinada ao
plantio de ervas aromáticas e temperos em garrafas pet, aproveitando para
trabalhar com eles questões relacionadas ao bem estar e reciclagem. Cada um
plantou uma erva e falou um pouco a respeito daquele tempero (onde era
usado, quais seus benefícios para a saúde, etc).
Uma das adolescentes falou que sente uma energia muito boa quando
está na horta. Conforme enfatiza Sr. Matos, o contato com as plantas ajuda a
alinhar os pensamentos e sentimentos, além de incentivar o consumo de ali-
mentos sem agrotóxico, obtendo melhor saúde material e espiritual.

“O homem até agora pensava que a vontade-pensamento, assim como a


razão e o sentimento, limitavam-se aos seres animados.
Entretanto, eles existem também nos corpos inorgânicos. Obviamente,
como o solo, as plantas estão neste caso. Respeitando e amando o solo,
sua capacidade natural (plantas) se manifestará ao máximo.”

Mokiti Okada4

1. Matos é gestor do Residencial Novo Amanhecer.


2. Luciana é psicóloga do Residencial Novo Amanhecer.
3. Diunei é assistente social do Residencial Novo Amanhecer.
4. OKADA, Mokiti. Alicerce do Paraíso.

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projeto adolescentes na cozinha
Ana Luzia Rodrigues1
Edilene Vieira dos Santos Ribeiro2

Em Setembro de 2015, a equipe técnica da casa retomou o projeto para ado-


lescentes em período de desacolhimento, no qual receberiam orientações
básicas de como cozinhar. Não tivemos candidatos nesta unidade para par-
ticipar do projeto. Só um voluntário, o Izaque, bem mais novo, aceitou o
desafio. Ele é muito tímido, quieto, sério, mas demonstrou total interesse e
conquistou a nossa confiança, amizade e respeito.
Demos todas as orientações necessárias no manuseio de utensílios
e ele logo já foi aprendendo tudo: o fogão e o forno já não eram mais
um perigo. O básico dos alimentos, ele logo aprendeu: sabor, textura, cozi-
mentos. Mas o que mais gostava era de comidas elaboradas: bolos, tortas,
pudins, cremes, sucos e saladas variadas. Lasanha, amava fazer - não rejeitava
nada. Quando alguém o elogiava, dizia: “Ainda vou ser um chefe de cozinha”.
Nós ficávamos muito felizes com o resultado desse desafio. Com carinho, todo
o incentivo, palavras de conquista e de capacidade, nós dedicávamos a ele.
Aprendemos muito. Não somos nós que temos os méritos e, sim, o Iza-
que, que desempenhou todas as tarefas. Nos sentimos honradas e gratifica-
das. Eu e a Edilene só temos que agradecer por ter o nosso “parça”, que é
como nós o chamávamos.
Valeu cada momento de alegria e descontração. Ríamos muito e faláva-
mos de coisas sérias. Enfim... obrigado, Izaque, por fazermos parte deste tem-
po na sua vida. Será bem-vindo quando quiser voltar. E que outros candidatos
também aceitem o desafio!!

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Minha vida na cozinha
Izaque
No ano de 2015, eu tive vontade de saber cozinhar. Foi quando a tia Ana, a co-
zinheira, estava fazendo bolo na cozinha e eu vi isso acontecendo. Aí, eu pedi
para ela me mostrar como se faz. Ela me chamou e eu fiquei dentro da cozinha
a vendo fazer e aí que me interessei de ajudar na cozinha.
No começo, a tia Ana não deixava eu chegar perto do fogão para que eu
não me queimasse. Também não podia picar os legumes com facas de pon-
ta. Ela sempre me ensinou a usar facas de ponta para não me cortar e
não chegar perto do fogão para eu não me queimar. Então ela foi me
ensinando a lavar saladas, tipo alface, tomate etc. E lavar também as frutas.
Daí, eu aprendi a descascar limão para fazer sucos, porque era uma coisa bem
difícil pra mim. Ela me ensinou a usar o liquidificador.
Eu acho importante aprender a cozinhar porque não é para sempre que
eu vou ficar no abrigo. Eu vou ser maior e também vou ter que saber muito
cozinhar para, quando eu sair do abrigo, já ter uma habilidade, que é na co-
zinha. O mais difícil é que é perigoso chegar perto do fogão sem aprender a
usar, também com as facas de ponta.
Eu sempre quis aprender a fazer uns pratos especiais como lasanha,
panqueca, macarrão puxa-puxa - que eu sempre via ela fazer essas coisas
- e também quando tiver uma visita na minha casa, fazer umas coisas dife-
rentes, porque todos os dias com as mesmas coisas não dá certo. O que eu
aprendi com ela, pra mim, já é um bom começo. Eu sei que vou aprender
mais coisas não só na cozinha, como também lavar roupas, lavar a casa e o
quintal. Por enquanto, o que eu já aprendi com a Ana já está muito bom.
Espero aprender muito mais coisas com ela e com a tia Edilene, que também
me ensinou muitas coisas. E é só isso por enquanto.

1. Ana é cozinheira do Residencial Novo Amanhecer.


2. Edilene é cozinheira do Residencial Novo Amanhecer.

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o triunfo da arte: passeio pelo
centro histórico de São Paulo
Thiago Avelino da Silva1

Mês de férias. Todos agitados na casa; então, o melhor é passear!


Tive a oportunidade de participar do planejamento da rodada de pas-
seios das férias e, no primeiro deles, apresentar pontos históricos da cidade
de São Paulo, começando pelo prédio do Centro Cultural do Banco do Bra-
sil. No CCBB, visitamos a exposição “O triunfo da cor. Pós impressionismo”.
Lá tive que desdobrar meu olhar entre as obras de arte e as primeiras
impressões dos jovens perante as mesmas. Luzes e cores que refletiam
uma curiosidade e admiração inéditas que certamente nem Van Gogh,
Monet, Paul Cézanne e os demais mestres ainda tinham visto.
Após este inesquecível e verdadeiro triunfo da arte, seguimos para o Pá-
tio do Colégio e o Solar da Marquesa. Na praça da Sé, a tradicional parada
no marco zero, as direções das regiões e muitas perguntas dos meninos, que
eu respondia buscando o máximo dos meus conhecimentos. Na Catedral, o
deslumbramento com as proporções góticas e as cores luminosas dos vitrais.
Uma espontânea parada meditativa sinalizou a despedida do templo.
Pernas cansadas, um montão de fome e muita expectativa.
Era dia de Rock, então bora para a Galeria! Lá, encontramos as diferentes
tribos e seus pitorescos looks. Botas, piercings, tattoos. Estilos e a diversidade.
As meninas adoraram a sensação de respeito e cordialidade com o diferente.
Todos convivendo, cada um com sua expressão, livres! A trilha sonora? Punk!!
Na volta pra casa, andamos de metrô. Muitos, pela primeira vez. “Quanta
gente!”, “O trem é rápido!”.
Os sentidos da cidade e, novamente, as cores. As cores de cada linha do
mapa do metrô. Um passeio perfeito, daqueles que só as férias podem pro-
porcionar. Uma experiência magnífica, que só o Serviço de Acolhimento pode
me proporcionar!

1. Thiago é orientador pedagógico do Residencial Novo Amanhecer.

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desacolhimento de uma adolescente
Patrícia Petroni1

No serviço de acolhimento, vivenciamos muitas experiências; algumas boas,


outras ruins e algumas que marcam nossas vidas. Vou contar um pouco de uma
experiência que me marcou muito. Aconteceu quando ainda éramos Casa dos
Irmãos, onde estava acolhida uma adolescente muito estressada, que só sabia
gritar, falar palavrões e xingar. E eu, participei de seu desacolhimento.
Quando ela fez 18 anos e precisava ser desacolhida, recusou-se a deixar o
serviço. Estava muito difícil para ela e, por isso e pelos seus insistentes pedi-
dos, sua saída foi até prorrogada em uma semana. Semana que ela queria que
fosse prorrogada mais uma vez, porém, como havia feito 18 anos, não tinha
mesmo como ficar. Ainda por cima, com o seu jeito – era muito mal criada,
ofendia as APSs, reclamava de tudo e tumultuava a casa – tudo ficava mais
difícil de se negociar.
Foi então que em uma manhã - não me lembro bem qual era o dia da
semana - a adolescente saiu. E, nessa saída, tivemos que arrumar suas coisas.
Tudo o que ela tinha foi colocado em sacos e deixado no corredor do lado de
fora da casa. O transporte foi agendado para às 15hs, para que um APS, junto
com o gestor, levassem a adolescente e seus pertences para a casa de um tio.
Por volta da hora do almoço, a adolescente retornou à unidade e, ao encon-
trar suas coisas ensacadas no corredor, teve um acesso de fúria: gritou muito, xin-
gou todo mundo, fez ameaças, disse muitos palavrões aos berros e, por fim, caiu
num profundo choro, implorando para ficar, pois não queria ir embora. Disse
que tinha medo “do mundo lá fora”, pois não tinha família – ou não con-
siderava seus parentes como uma família, porque viveu praticamente

135
sua vida toda em serviços de acolhimento. Conversamos bastante com ela,
tentamos falar que o mundo lá fora não é nenhum bicho, que se ela tivesse von-
tade e lutasse poderia ter uma vida legal... mas nada adiantou... e, no horário
marcado, a van da Prefeitura encostou na frente da casa. Colocamos tudo que
era dela ali dentro e eu, juntamente com o gestor, fomos levar suas coisas para
casa de seu tio. A adolescente se recusou a ir no carro da Prefeitura - disse que
ia ficar na rua e que nós podíamos ir. Assim, fomos. Foi horrível deixá-la ali, foi
muito difícil. Senti-me perdida, sem saber o que fazer. Mas, infelizmente era isso,
a gente não tinha mesmo o que fazer.
Lá chegando, entendi um pouco porque ela não queria ir: o tio havia
cedido um quartinho no quintal da casa dele - um quartinho pequenininho,
mofado, com chão de cimento coberto de cera vermelha, com um pequeno
vitrô e um banheiro do lado de fora, onde o chão era de barro e as paredes
também não tinham acabamento. Tudo muito deprimente. Além disso, o tio
não parecia ter o menor interesse em ficar com ela, ia recebê-la porque não
tinha outra opção. Esse dia ficou marcado na minha vida - o choro e o deses-
pero dessa menina que queria continuar no abrigo.

136
Ficamos sabendo que ela ficou durante três dias na rua, depois passou
pouco tempo na casa desse tio e mais pra frente vendeu algumas coisas que
tinha, outras doou, e foi morar com uma tia. Hoje sei que ela é mãe de uma
criança linda. Não sei como está, como vive, se é casada, só me lembro daquele
último dia em que a vi.
Eu já tinha visto outros desacolhimentos que aconteceram de maneira
mais tranquila, em que o adolescente pôde se despedir. Mas, essa experiência,
que foi muito dolorosa, faz com que eu fique me perguntado:

o que podemos fazer para ajudar


esses adolescentes que saem
do serviço de acolhimento sem
nenhuma estrutura? Como podemos
ajudá-los a vencer as barreiras e
os desafios que os aguardam? Como
podemos, de um jeito cuidadoso,
ajudar esses adolescentes deixando
marcas positivas em suas passagens
pelo serviço de acolhimento?

1. Patrícia é cuidadora do Residencial Novo Amanhecer.

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acolher com dignidade
Maria Jocélia dos Santos1
Thiago Rodrigues2

Quando nos doamos em prol de outras pessoas, estamos fazendo um aco-


lhimento humano. Dessa forma, fazemos a diferença na vida de quem mais
precisa conhecer e ter seus direitos respeitados.
Para acolher, necessitamos de elementos acolhedores no ambiente e de
pessoas naturalmente acolhedoras. Um ambiente limpo por si só já dá aque-
la sensação de acolhimento, um ambiente bem organizado e estruturado
aumenta mais ainda essa sensação. Se tiver plantas e um cafezinho, melhor
ainda! Mesmo em um ambiente provisório e sem a estrutura adequada esse
cuidado é possível, e nesses casos, a equipe deve ser ainda mais acolhedora:
ter um olhar mais acolhedor e humanizado para com o usuário, procurando
sempre dar as informações corretas e atualizadas, ou buscando as informa-
ções que o usuário necessita.
Para isso, saber ouvir é de extrema importância, pois quando
damos a devida atenção aos usuários do CRAS, podemos saber qual
a sua necessidade, informando corretamente o que o CRAS pode fazer
por ele, e como ele pode acessar outros direitos. Prestar atenção
nas sutilezas do nosso comportamento, como o olhar, a postura e
a forma de falar é fundamental, assim como o ambiente, pois é onde
nosso trabalho acontece.

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Temos que nos colocar no lugar do usuário, tratando ele como gostaría-
mos de ser tratados, lembrando que podemos estar no lugar dele. Para acolher
bem, precisamos estar de bem conosco, nos acolhendo e nos respeitando mutu-
amente, sabendo diferenciar nossos sentimentos, problemas e questões versus
as demandas do usuário.
Infelizmente, sabemos que, muitas vezes, os usuários são levados de um
lado para outro como peteca, pois não tem acesso às informações corretas.
Cabe a nós mudar isso, e nos informar para garantir que o usuário tenha
garantido seu direito.

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Diante de tudo isso, temos que ter
um olhar humano, tratando-os com
mais dignidade, pois já vivem muitas
situações de vulnerabilidade, e o
acolhimento digno pode contribuir
para saírem dessa vulnerabilidade.

1. Maria é agente de Proteção Social (APS) do Cras Bonança.


2. Thiago é atendente do Cras Bonança.

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Entre bagunças e arrumações: das baguncas boas
que queremos mais às baguncas que queremos cuidar.
Desenho realizado pelos profissionais, criancas
e adolescentes da Casa Doce Lar na elaboração do
Projeto Politico Pedagógico - Junho 2016

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tudo passa
Igor Luiz1

Já parou para pensar em quantas pessoas passaram por sua vida? Quantas
famílias você fez e deixou para trás? Pois bem, eu estive pensando nisto.
Na época da escola, eu tinha amizade com quase todo mundo da classe,
amizades que fiz a partir do 1º ano do ensino médio e amizades de 11 anos,
desde a 1º série, e alguns ainda desde o pré, mas aí nos formamos, e é en-
graçado como depois de uma semana que acabaram as aulas, já perdemos o
contato com 60% dos colegas, e criamos um monte de planos com os outros
40%; 1 mês depois, já perdemos o contato com 90% dos colegas. Aí então
você começa a trabalhar, fazer curso, faculdade, e você percebe que nem se
passou um ano e você já não tem contato com 98%, 99% ou, na maioria dos
casos, até 100% das pessoas que você convivia todos os dias, e você perce-
be que isso tudo está se repetindo novamente, no seu trabalho, curso etc.
As pessoas que passaram pela sua vida ou ficam marcadas pelo resto dela,
ou passam a virar números.
Passei a refletir sobre isso após a última reunião da equipe Entretem-
pos, na qual criamos uma linha de tempo da casa, e percebemos quantas
pessoas passaram, marcaram e se foram, e o quanto isso refletiu nas
crianças e nos funcionários. Então, pare para pensar, o que as crianças são
para você: uma marca ou números? E qual dia foi mais importante e significa-
tivo pra você nesta casa?
Minha resposta: com certeza elas são marcas na minha vida; não só elas,
como todos os funcionários. Um dia muito especial foi com certeza o dia
da gravação do nosso “filminho de zumbi”, atividade que fizemos com as

145
crianças na casa, pois eles estavam dando o melhor deles, e até quem não
estava atuando colaborou de alguma forma, seja na maquiagem, abaixando
o volume da TV, ou simplesmente apoiando o projeto. Esse projeto é uma
página do livro da minha vida que eu quero reler sempre que der! Pensando
nisso, quero deixar uma poesia que criei como um presente, porém antes
quero deixar uma mensagem:
Tudo na vida passa, meus irmãos, se você estiver passando por momentos
difíceis na sua vida ou no seu trabalho, entregue nas mão de Deus e deixe ele
agir, pois vai passar! Agora, se você estiver vivendo um momento único na sua
vida, aproveite cada minuto, viva cada segundo, sabendo que aquilo vai passar!

1. Igor Luiz é APS da Casa Nova Esperança.

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Somos Rosas
Ops, o que é isto? O que Será? Uma nova pétala a brotar?
Somos todos Rosas
colorindo um lindo jardim,
somos todos Lindas Rosas,
mas nem sempre foi assim.
Antes éramos apenas espinhos,
de tristes e difíceis momentos,
até começarem a surgir Pétalas
de cada um dos meus sentimentos.
A cada abraço, a cada beijo,
a cada carinho, a cada olhar.
A cada dia a mais que vivo
Vejo uma nova pétala brotar.
E finalmente sou uma rosa completa,
cheia de tudo que vivi,
mas de repente o tempo não está bom
E vejo uma pétala cair.
A cada queda, cada lágrima,
é uma pétala levada ao vento,
é uma pétala do meu coração
levada e esquecida com o tempo.
Mas nem sempre são esquecidas não,
Tem as lindas pétalas seladas
de amor, carinho, momentos e sentimentos
São estas as pétalas tatuadas
Mas agora sou quase espinhos novamente,
com apenas uma pétala!
Pedindo a Deus todos os dias
por cada uma, por cada queda.
Porém, a pétala que me resta
não representa apenas alguém que já amou,
ela e muito mais que isto,
representa quem eu sou.
Em cada canto que eu vá
deixo um pouco de mim, e levo um pouco de lá,
só um pouco,
um pouco de tudo que vivi,
Sou uma pétala de retalhos costurada de saudades.
Ops, o que é isto? O que Será? Uma nova pétala a brotar?

147
148
atividades com grupos:
experiências e transformações
Lucas Nascimento Prado1
Cinthia Franco2
Evandro Pires3

Partindo do pressuposto que o trabalho social em grupos visa elaborar me-


todologias e estratégias de atuação que possam identificar os potenciais das
pessoas que vivem em suas comunidades, na sua individualidade e em grupo,
favorecendo a integração entre o crescimento pessoal e o desenvolvimento
comunitário, a realização de oficinas que possibilitem essa integração pode
contribuir para uma maior percepção e levantamento desses potenciais, pois
tendem a favorecer o contato com a subjetividade do sujeito, externalizan-
do-o e possibilitando o desenvolvimento de uma maior qualidade de vida,
atuando na conscientização desse sujeito, para que este se aproprie progres-
sivamente de sua própria história, percebendo seu papel como agente trans-
formador de sua realidade.
Os oficineiros Lucas Nascimento Prado, Cinthia Franco e Evandro Pires
partilharam um pouco dessa experiência com grupos, realizados nos Centros
de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade de Osasco, por meio do
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), entre os anos de
2015 e 2016.

149
Lucas Nascimento Prado
“É impossível progredir sem mudança, e aqueles que não mudam suas
mentes não podem mudar nada”
George Bernard Shaw

Há um ano, eu havia escrito três projetos para serem implementados nas ofici-
nas do Serviço de Convivência. Lembro-me que, depois do primeiro seminário
da Entretempos da Professora Abigail, tive algumas ideias e reescrevi todos os
projetos, porém preferi deixar que os usuários definissem quais desses segui-
riam em frente, pois percebi que não conseguiria ter êxito nos três ao mesmo
tempo. Por fim, escolheram o Grafite. Logo, eu ganhava mais um desafio:
Grafite pelo grafite? Seria mais uma aula de arte de rua? Não, teria que ser
algo mais! Isso me fez pensar o que o grafite fez por mim e, se fez por mim,
poderia fazer o mesmo (ou melhor) por eles.
Cada encontro tinha um foco além do ilustrar apenas, mas que tudo virasse
uma forma de comunicação, não somente de cunho visual. Por muitas vezes
paramos o trabalho e fizemos uma roda de conversa para discutir questões sur-
gidas no grupo. Comecei a perceber coisas que pensei que demorariam mais
tempo pra acontecer, como meninos que pouco se comunicavam exercendo pa-
pel de grande influência no grupo, uma democratização das ideias entre eles...
Mas, com o tempo, comecei a sentir que o grafite começou a ficar cotidia-
no. Precisava de uma mudança. Surgiu uma ideia por meio da assistente So-
cial Mariana Moras Santos acerca do jogo chamado RPG (Role Playing Game).
Fiz algumas adaptações no jogo e logo iniciei com o coletivo de adolescentes
do CRAS Veloso, como base de experimento. A maioria deles nunca havia tido
contato com jogos de fantasia ou literaturas fantásticas, todavia surpreendeu-
me o rendimento da atividade e os resultados, os quais me mostraram que era
possível unir as atividades de Grafite e RPG, e ter resultados melhores com as
duas andando juntas.
Logo, o RPG foi transferido como atividade às outras unidades que circulo.
Em cada uma delas, percebi um crescimento no número de participantes
considerável nos grupos, e alguns resultados começaram a aparecer,
como o desenvolvimento de raciocínio lógico e cognitivo dos jovens

150
e um vínculo maior entre eles, devido às aventuras não se limitarem a
um único herói, mas serem de um grupo que eles mesmos formaram. Em
alguns casos, o RPG também ajudou a perceber possíveis problemas: pudemos
notar que um dos alunos participava menos do que o costume, descobrindo, pos-
teriormente, que ele tinha uma defasagem escolar. Esse diagnóstico ajudou a co-
municação do CRAS com a Rede para que algo fosse feito de forma mais focada.

Oficina de RPG

151
O RPG também é a atividade através da qual, no CRAS Piratininga, con-
seguimos firmar uma parceria com o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial):
os adolescentes das duas unidades fizeram esta atividade juntos, aquilo que
precisava para que o vínculo fosse exercitado estava em andamento. Durante
o jogo, as dificuldades das histórias não poderiam ser transpassadas de forma
individual, o grupo era mais que necessário, e os efeitos foram vistos além do
jogo, onde observamos que poucos deles faltavam (e quando faltavam fica-
vam atônitos, pois pensavam primeiramente no grupo).
Ainda tenho muito a aprender nessa caminhada na Assistência Social, mas
acredito que tudo que vivi nesse ano ainda me trará muitos resultados positi-
vos, porque a semente está sendo plantada com dedicação e calma. Vejo tudo
que passou como progresso desse processo do SCFV, mudanças acontecerão
independentemente de minha vontade. Cada ano que passa, nossa juventu-
de enfrenta novos desafios e novas dificuldades na sociedade, o importante
é mudar o pensamento, reinventar-se constantemente, com base no que foi
construído para que tudo se encaixe de forma simples, para que continue
dando os mesmos frutos bons.

Cinthia Fanco
O Projeto Expressões Culturais, realizado no CRAS Piratininga, reuniu
elementos da dança, do teatro e da música na elaboração de atividades
que estimulavam uma concepção cultural das relações que os usuá-
rios estabeleciam em seu cotidiano no que tangiam sua vivência em casa,
na comunidade e na sua cidade. Trabalhou-se com um público de crianças
e adolescentes entre 06 e 17 anos.
O Projeto Batuque, realizado nos CRAS Piratininga, Bonança, Rochdale
e Santo Antônio, teve como propósito estimular a criação e a expressão das
diversidades culturais brasileiras por meio da música percussiva. Nos CRAS Pi-
ratininga e Bonança, os participantes (com idades entre 06 e 17 anos), con-
feccionaram instrumentos de percussão com materiais recicláveis, no intuito
de trabalhar, tanto a percepção musical em todo e qualquer espaço, como a
sustentabilidade com a reutilização e reciclagem. No CRAS Rochdale e Santo
Antônio, ainda não foi possível dar andamento ao projeto, devido às buscas

152
por parcerias com entidades locais, dificuldade de mobilização devido ao es-
paço físico e localidade (o CRAS Santo Antônio está próximo a um outro CRAS
e distante das áreas onde se encontra um público prioritário), além da falta
de recursos humanos (técnico social e orientador). Estamos articulando novas
estratégias junto à coordenação, como: articular junto à técnica a realização
de reuniões socioeducativas e atividades do Serviço de Convivência em locais
estabelecidos pelo CRAS em conjunto com a comunidade, estabelecendo um
local mais próximo dos grupos prioritários, criando assim uma aproximação
com a comunidade e lhes dando também possibilidade de participação na
decisão sobre o Serviço de Convivência e suas atividades.

Oficina de Batuque

153
Evandro Pires – Psicólogo
O trabalho com oficinas de Teatro e Histórias em Quadrinhos/Mangá com
adolescentes trouxe possibilidades de criar momentos de trocas de vivên-
cias e desenvolvimento da criatividade. A adolescência é uma faixa etária
caracterizada pela criatividade, dinamismo e busca pelo autoconhecimento
e autonomia, na qual o jovem tenta conquistar um espaço de atuação na
sociedade. Esta é a uma boa fase para ser trabalhada a significação e/ou
ressignificação de valores e ideais, desenvolvendo, por meio das artes dra-
máticas e visuais, a autoimagem, as habilidades pessoais, a espontaneidade,
a comunicação e o trabalho em grupo, para, assim, poder compreender e
assumir sua história na comunidade e buscar estratégias para enfrentar os
obstáculos vividos pelo coletivo.
Na oficina de Teatro implantada no CRAS Bonança, foi trabalhada a auto-
percepção, a inclusão, a confiança mútua, a criatividade e a criação de estraté-
gias para que o jovem se tornasse autor e ator protagonista da própria história
com mais autonomia. A criatividade dramática proporciona um meio de ativida-
de adaptativa para o adolescente, que influencia sua descentralização cognitiva,
social e moral. O ato de encenar possibilitou aos participantes uma maior
compreensão de si, do outro, do mundo e de suas diversidades, favore-
cendo o respeito ao próximo e o desenvolvimento de um senso crítico
sobre sua forma de atuação na sociedade. Contribuiu, portanto, na pre-
venção de situações de risco por meio do desenvolvimento das potencialidades
do jovem e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
As oficinas de Histórias em Quadrinhos/Mangá, implantadas nos CRAS
Munhoz e Rochdale, permitiram transitar por diferentes caminhos, utilizan-
do diversas formas de se fazer arte para expressar os mais diferentes temas,
possibilitando (re)construir saberes que dão significados a tudo que rodeia o
adolescente no seu meio sociocultural. Despertou nos participantes o interes-
se pela livre expressão, aliada a produção de textos, e contribuiu na percepção
de outras fontes de informação (literatura, música, noticiários etc), as quais
trazem consigo um recorte que reflete a realidade social contemporânea,
uma transmissão de informações e uma produção de cultura, propiciando, as-
sim, a construção de um conhecimento cultural mais amplo.

154
As atividades de Dança e Oficinas de Criatividade com os idosos possibili-
taram trocas de experiências, interação e fortalecimento da memória dos par-
ticipantes. Acredito que atividades elaboradas em oficinas para idosos podem
contribuir de alguma forma na promoção de transformações positivas em suas
vidas, podendo proporcionar condições para que o idoso (re)signifique, (re)
dimensione e utilize suas capacidades criativas, mudando sentimentos em re-
lação à velhice, superando problemas e resgatando sua potência.
A oficina de Dança, implantada no CRAS Munhoz, possibilitou a interação
entre os participantes, o respeito ao outro e suas lembranças da juventude por
meio das músicas antigas tocadas na atividade. Lembranças dos bailes, roman-
ces, casamento, da terra natal etc, resgatavam sensações, as quais os idosos
verbalizavam em muitos momentos durante e após a oficina.
As Oficinas de Criatividade e Valorização da Memória, implantadas nos
CRAS Veloso e Rochdale, possibilitaram muitos momentos de reflexão e
elaboração de experiências, rompendo com o estado de isolamento
do idoso, ativando laços sociais e de comunicação, contribuindo para
uma sensação de pertencimento social, favorecendo a transforma-
ção de suas relações e uma ampliação de horizontes, por meio da tro-
ca de experiências e o compartilhamento de vivências. Nessas experiên-
cias foram sugeridas atividades de sensibilização baseadas no uso de recursos
expressivos variados: colagem, desenho, pintura, música, filmes, etc, os quais
se mostraram uma favorável ferramenta para que os idosos elaborassem suas
produções, que os remeteram às suas vivências sociais e familiares e abriu
possibilidade para que eles se expressassem mais livremente. Em muitas ocasi-
ões os participantes mencionaram o quanto era bom relembrar momentos de
suas vidas, o que no dia a dia muitas vezes não era possível, alguns relataram
que nunca tiveram a oportunidade de contar determinados fatos a ninguém,
mas nas oficinas tiveram essa abertura, o que foi gratificante.
Por fim, atividades realizadas no contexto das artes, proporcionam tanto
um prazer estético quanto um desafio intelectual, através do qual o partici-
pante utiliza seus esquemas cognitivos para estruturar a realidade objetiva,
desenvolvendo a espontaneidade, liberdade e habilidades pessoais, internali-
zando-as. Sendo a arte a linguagem que expressa o inconsciente, ela é capaz

155
(de cima para baixo) Evento do Dia da Consciência Negra (Nov/2015),
Oficina de Criatividade e Oficina de HQ/Mangá

156
de criar e recriar o homem por meio da linguagem e da emoção, sendo tam-
bém uma estratégia para promover um espaço para reflexão, trocas e elabo-
ração de experiências, propiciando um momento para despertar nos partici-
pantes e oficineiros sentimentos, sensações, pensamentos e/ou intuições que
possibilitam a transformação individual e coletiva.

1. Lucas é radialista, produtor audiovisual e atua como facilitador de oficinas do SCFV


na Proteção Social Básica da Prefeitura de Osasco.
2. Cinthia é historiadora e atua como facilitadora de oficinas do SCFV na Proteção Social
Básica da Prefeitura de Osasco.
3. Evandro é psicólogo e atua como facilitador de oficinas do SCFV na Proteção Social
Básica da Prefeitura de Osasco.

157
158
ENTREVISTA
do CR2 para Casa Juventude:
entre a resiliência e a esperança1
Entrevistadas:
Juliane Cristina de Lima2
Izabel Almeida3

Juliane, desde quando você trabalha no CR2?


Há mais de 11 anos. Iniciei como APS no antigo CR2 e atualmente sou gestora do
SAICA que agora foi renomeado e transformado em Casa Juventude. O primeiro
CR2 funcionava em uma casa alugada no bairro Campesina, a gente só recebia
adolescentes do sexo masculino de idade entre sete e treze anos, que eram en-
caminhados do CR1. Na época, o serviço estava atendendo dezessete meninos.
Quando eu cheguei para trabalhar no SAICA, eu não sabia que tipo de servi-
ço era realizado, nem como funcionava. Foi a Luzia (APS) que me acolheu e me ex-
plicou como tudo funcionava. Eu não queria ficar, fiquei com medo do tamanho
dos adolescentes. Logo que eu cheguei, o vigia falou muito mal da casa, disse que
aquele lugar era o inferno, que não era lugar para mim, e que eu fosse embora
dali. Como eu era muito nova, os técnicos tinham medo, achavam que eu não
seria respeitada pelos adolescentes, mas eu consegui o respeito deles, nunca fui
desrespeitada. A assistente social que trabalhava na casa entrou em pânico quan-
do me viu, pois na época eu tinha 22 anos, era nova, e a assistente social ficou com
medo que houvesse um envolvimento assim, entre eu e os meninos.

E como era o clima da casa?


Ah, eu não me sentia acolhida e confortável nesta casa, pois o ambiente era
muito apertado e não tinha quintal, o que fazia com que os adolescentes pas-
sassem muito tempo dentro de casa, sem ter o que fazer! Além disso, perto
da casa não tinha nenhuma praça e nenhum lugar para eles jogarem bola.
Eles só iam para a escola, não tinham atividade fora, ficavam dentro

159
de casa. Eles brigavam muito, porque não tinham o que fazer. A única
distração era uma televisão, que só possuía os canais abertos e então era a
mesma programação todo dia. Como não tinha o que fazer, eles quebravam
muito as coisas e passavam muito tempo se xingando, se provocando.

E depois de lá, para onde foi o CR2?


Depois mudamos para uma casa bem maior no centro de Osasco, que tinha
quatro quartos no térreo, mais um quarto embaixo, tinha um escritório, uma
sala, um refeitório, um quintal, um estoque e até laje para os adolescentes
soltarem pipa. Neste lugar foi mais tranquilo. Os APS tinham uma cultura dife-
rente e brincavam com os meninos no quintal e eles tinham onde jogar bola.
A gente atendia trinta e três meninos, não tinham meninas. Os meninos eram
encaminhados pela Casa Vida Nova, de acordo com o perfil adequado.

Qual era o perfil?


Ah, os casos difíceis, que ninguém queria, ou que estavam ameaçados
por alguma situação da rua (PPCAM). Muitas vezes, a GCM ficava na por-
ta, fazendo a segurança dos meninos, e revistando os adolescentes
antes de entrarem. Tudo que era assunto de ameaça ia para lá! Os fun-
cionários ficavam com medo de trabalhar, pois escutavam historias de carros
pretos que passavam observando o SAICA. Os meninos também ficavam apre-
ensivos de ter a GCM na porta, principalmente os que não tinham nada a ver
com a situação de ameaça.

E como era só ter meninos na casa?


Eu achava normal só ter meninos na casa, pois eu tinha medo que, ao colocar
meninos e meninas no mesmo espaço, os meninos iam querer “pegar” as me-
ninas, existia um temor assim. Mas, olhando agora que a casa tem meninos
e meninas, acho que antes tinha mais conflito, que a presença das meninas
faz com que eles briguem menos. Vendo agora, eu acho um problema só ter
meninos, porque era um monte de adolescentes, todos juntos. Um monte de
menino protegido mas, ao mesmo tempo, vigiados e ameaçados.

160
E o que você achava dessa segunda casa?
Eu gostava. Mesmo com as dificuldades ela era melhor que a outra, era mais
gostoso.

E o que fazia a diferença?


Acho que a diferença estava nas pessoas que trabalhavam no serviço e a forma
de organização do trabalho. Os APS tinham mais tempo com as crianças, para
brincar, para ficar com elas, os adolescentes também podiam sair mais, pois a
casa era aberta. Eu preferia essa que tinha mais meninos na casa, do que na
outra que era mais trancada.
A gente tinha muito apego pelos adolescentes dessa casa, tanto que,
quando eles eram desacolhidos, a gente demorava a fazer as malas, para não
ter que ver os adolescentes que gostávamos muito, saírem. Teve um adoles-
cente que saiu por maioridade, e que hoje é cobrador de ônibus, e que man-
tém contato comigo até hoje. Outro adolescente saiu por maioridade, e quan-
do saiu, descobriu que a mãe não tinha morrido como todos pensavam. Ela
estava casada e morando no Rio de Janeiro, em uma ótima condição. Quando
saiu, ele foi morar com ela. A gente tinha muito problema no abrigo com ele,
ele não queria saber de trabalhar e hoje ele trabalha em uma multinacional.
Tivemos que sair, pois a casa teve algumas partes interditadas. A gente
não podia entrar na dispensa, na lavanderia e na cozinha. O serviço continuou
mesmo assim, por seis meses. A vizinha do lado reclamava muito porque os
meninos jogavam a comida e o lixo na casa dela. Até um dia que ela teve a
ideia de recolher tudo e jogar na lá sala da direção, na SAS.

No período em que vocês estavam nessa casa, como era o trabalho com
as famílias dos adolescentes?
Não acontecia. Os adolescentes não recebiam visita. Nunca vi as mães indo
lá. Só lembro de ter visto uma mãe, era a única que ia. Ela chegou a levar as
crianças do abrigo, mas depois elas voltavam, eram acolhidas novamente.

161
E como foi a mudança para a casa atual?
Foi ruim. Mesmo com a casa em mal estado, eu não queria sair da casa do centro,
queria que fosse reformada. Era uma casa ótima, mesmo com um monte de
criança. Com a mudança, foi feita uma divisão das crianças e dos funcionários,
que nem escolher um time. Seu Plácido e a Claudia, que eram os gestores das
casas na época, escolheram os funcionários e os técnicos escolheram os ado-
lescentes. A metade dos adolescentes foi para o CR5, principalmente com os
irmãos, e o CR2 ficou com a outra metade. Os meninos adoraram a casa atual,
principalmente por causa da sacada, porque era tudo aberto. Então, eles pla-
nejavam ir para a balada à noite. Eles diziam que era casa de rico, achavam que
era uma mansão. Até porque estava tudo novinho, não tinha nada quebrado. O
piso era todo de madeira, todo pintado, não era piso de taco.

E como os adolescentes chegavam no CR2?


Os adolescentes vinham sempre encaminhados da Casa Vida Nova, eles viam o
perfil e mandavam. Eram os adolescentes que usavam droga, iam pra balada
ou trabalhavam para o tráfico. Ou seja, juntaram um monte de adolescentes
que queriam dormir o dia inteiro, não queriam ir para a escola, queriam só ir
para a balada. Aí deu no que deu, eles quebrando tudo.

Juliane, como foi o seu processo até chegar a gestora da casa?


Na mudança, eu virei auxiliar administrativa. A princípio, eu não quis, eu que-
ria ser APS, porque eu preferia trabalhar doze por trinta e seis. Com a saída do
seu Plácido, eu virei gestora.
No começo eu não me sentia gestora, porque como eu já conhecia todo
mundo, acabava deixando tudo, mas com os meses eu comecei a mudar. Eu não
sou muito de dar ordem, acho ruim. Eu não mando, eu peço, mas fui encontran-
do o meu jeito de levar e de fazer a gestão. Eu tive que por autoridade. Com
os meninos, eu era mais impositiva, mandava neles, pois só assim eu conseguia
controlar a casa. Mas eu não gritava com os adolescentes, eu respeitava
eles, porque entendia que na conversa conseguia me aproximar deles e
eles conseguiam compreender o que fazer.

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E como eram as regras nesse período?
Existiam bem poucas regras, não tinha horário para comer e nem para dor-
mir. Não tinham grades nas sacadas, os meninos pulavam a janela, iam para o
“pancadão”, voltavam e dormiam o dia todo, ninguém falava nada, eles faziam
o que queriam. Com a grade eles foram amenizando este comportamento.
Na casa atual, eles ficavam mais tempo fora, pois tinha o tráfico. Na casa do
centro não tinha essa facilidade no envolvimento com o tráfico, pois tinha mui-
to policiamento. Com a mudança, eles ficavam mais fora porque tinham muitas
biqueiras nas quais eles trabalhavam. À noite, eles faziam julgamento uns dos
outros. Se um adolescente tinha feito alguma coisa errada de dia, eles iam
julgá-lo. Quando era considerado culpado, jogavam um cobertor na pessoa e
ela apanhava. Os APS não interviam, pois ficavam com medo. Os adoles-
centes diziam que eles não podiam se intrometer porque senão eles iam
quebrar a casa. Eles tinham as regras deles, mas os APS não sabiam
quais eram essas regras. Os adolescentes não tinham medo nem do juiz!

E como era a relação com a polícia?


A relação com a polícia era muito frequente, tanto nesta casa atual, como nas
primeiras casas. Porque era muito fechado, e eles brigavam muito. No centro,
os meninos aprontavam muito com os funcionários, jogavam tinta, cândida,
baldes com produtos de limpeza. Eles também arrombavam a despensa para
roubar leite condensado.

E quando isso mudou?


Ah, só com a transferência de alguns adolescentes, mas também com a união
dos funcionários, com o apoio que foram dando uns aos outros no trabalho.
Essas situações aconteciam porque eles não tinham atividades para fazer, fica-
vam muito tempo na casa sem fazer nada, muito tempo juntos e maquinavam
o que iam fazer.

163
E quais eram os técnicos que trabalhavam com você na época?

Juliane: Ah, no primeiro ano não tinha técnico. Era super difícil, porque eu ti-
nha que fazer a gestão e as outras coisas. Depois eu recebi novos técnicos, mas
eles não ficaram porque o clima na casa era muito difícil. Seis técnicos passaram
pela casa nesses dois anos até que a Izabel e a Edileuza chegaram.
Izabel: Era uma mudança de técnicos que gerava um circulo vicioso.
Porque a situação era muito difícil, os profissionais não ficavam, e isso
tornava a situação mais difícil, pois os adolescentes não conseguiam
se vincular com ninguém, não tinham pessoas de referências. A única
referência era a Ju.
Juliane: Eu estava muito cansada, porque eu era a referência para os me-
ninos, para fazer as coisas, tudo era comigo. Eu não aquentava mais passar
coisas para o técnico, pois cada um que chegava tinha que passar todo pron-
tuário do adolescente.

E quando as coisas mudaram aqui na casa?

Juliane: Só quando a gestão da SAS também interveio. Teve uma briga entre
um adolescente e um técnico e o relatório da Entretempos (diagnóstico religa-
do em 2015 para formação Enlaces); foi depois disso. Começaram transferindo
alguns adolescentes.
Izabel: Foi nesse momento que eu fui chamada pela gestão, e fui apresentada a
uma casa em processo de transformação. Na época eu ouvia falar muito
mal da casa, que era um lugar que iam os meninos que não davam cer-
to em outros abrigos, e que ninguém queria que eles ficassem em outros
lugares, para não ter problema. Eu fiquei com medo, porque eu achei que
não teria condições emocionais para trabalhar, mas topei ver o que acon-
teceria. Eu tinha certeza que o fato de ter acontecido algo com outro técnico não
significaria que eu sofreria algo, pois no meu primeiro emprego, eu substitui uma
técnica que tinha recebido uma cadeirada de uma adolescente em um abrigo.

164
E como foi a sua chegada aqui?

Izabel: Já na primeira semana de trabalho eu percebi que não era o ambiente tão
destrutivo e tão negro como se falava por aí, pois existiam coisas boas. Os meni-
nos conversavam muito comigo e conversavam entre si. Eles comiam e limpavam
a mesa, jogavam os restos no lixo. Eu fiquei impressionada com a capacidade dos
meninos seguirem as regras, conversarem sobre as regras e aceitarem. Eles iam
para a escola, não tinha lixo espalhado na casa e agradeciam as coisas.
Juliane: O CR 2 ainda tem muita fama, um dos APS que entrou agora, escutou
que essa era a pior casa, e agora ele diz que vai continuar dizendo que é o
pior lugar para não ser transferido. Mas é muito ruim escutar isso, pois tinham
coisas boas que ninguém via.
Izabel: quando eu cheguei, eu tentei ter um olhar para a potência dos
meninos, no que eu tinha para investir. E a equipe é muito acolhedora e
unida, e disposta a estar junto com os adolescentes. Tem trabalhado-
res que estão há dez anos na casa e que querem ficar, pois estão aqui
porque gostam. Não significa que os casos não sejam complexos e que
a gente não vivencie situações limites. Mas a mudança foi acontecendo
na medida em que alguns meninos saíram e recebemos um grupo de ir-
mãos, e aí viramos efetivamente Casa juventude.

Como foi essa mudança, receber esse grupo de irmãos?

Juliane: Fiquei assustada e com medo, em função da sexualidade e do que


poderia acontecer em uma casa mista. Na outra casa, um menino pegava o
outro, a gente escutava coisas horrorosas, via lençol sujo de sangue. Então
achei que com meninas isso seria ainda pior. Mas, me surpreendi, pois a gente
não teve nenhum problema. O único problema que teve foi de ciúmes! Agora
eles estão em oito crianças na casa e a gente não escuta um barulho! Só de
brincadeiras... Quando eles chegaram, teve muita briga, principalmente por
ciúmes, mas agora não brigam mais.

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O que vocês acham que fez a mudança dar certo?

Izabel: Desde o começo fizemos muitas reuniões de equipe e todo mundo


participava da reunião. A gente contava quem iria vir e porquê, prepara-
mos a equipe. Levamos o ECA para apresentar aos APS e mostramos que a
convivência entre os diferentes é positiva e é assim que a gente aprende.
E os funcionários foram falando de seus medos e a partir deles foram surgin-
do as regras, antes das crianças chegarem. Houve muito preparo. Tinha muita
fantasia de que trabalhar com crianças era lindo, muito amor e muito fácil.
A gente também teve um trabalho de ir desconstruindo essas fantasias, pois as
crianças geravam outros problemas. Falamos que iam ter que ensinar a usar o
banheiro, comer sem sujeira e que isso ia demorar um tempo, pois é uma apren-
dizagem. Quando os irmãos chegaram, foi um momento diferente para todos,
pois as crianças estavam muito negligenciadas em uma condição de cuidado
muito ruim. Um deles não comia carne, os pequenos não conheciam mexerica.
Eles até hoje só gostam de bolacha água sal e não comem mistura.

E os meninos que já estavam na casa? Como foi essa transição de CR2


para Casa Juventude para eles?

Izabel: A gente também fez reunião com eles sobre quem ia chegar. Conversamos
sobre como eles se sentiram quando foram acolhidos e passaram a vida toda em
abrigos e como eles gostariam de ajudar no processo e no momento de vida dessas
crianças que iriam chegar. Foram os adolescentes que receberam os irmãos.
Eles acolheram as crianças e diziam para os meninos não chorarem por-
que eles iam gostar da casa. Um dos adolescentes subiu com eles para os
quartos, mostrou o armário, o espaço. Aí fizemos uma roda de conversa
com todas as crianças quando os irmãos chegaram, no quarto, e foi um
dos adolescentes que já estava na casa que explicou as regras.
Aí, começaram as brigas! Muito por ciúmes dos meninos que já estavam
na casa. Por eles verem os funcionários dando atenção para outras crianças,
principalmente com os pequenos. Uma das APS lê história para uma das crian-
ça dormir, ele já fica no portão esperando a APS para contar história para ele.
Os adolescentes reclamam que antes era tudo só para eles e agora têm que

166
dividir, um comenta que antes a “perua” pegava só ele na escola, e agora tem
que buscar a outra adolescente também.
Juliane: O pessoal da cozinha também gostou da mudança. Mas nem todos,
pois quando eram só os adolescentes, eles não chegavam na cozinha porque
já conheciam as regras. As crianças novas entram na cozinha, fazem bagunça,
querem comer fora de hora.
Izabel: Mas isso é educar! É que nem em uma aldeia, onde todo mundo
cuida das crianças. Dá trabalho! E chega em todos que trabalham na
casa, então é fundamental fazer reunião!

E nesse momento? Como estão os APS com as crianças?

Juliane: Os APS estão mais próximos das crianças e, embora alguns ainda
apostem mais na rigidez e em ser severo como estratégia para educar, mui-
tos estão vendo a importância de brincar e conversar e estão percebendo as
transformações que isso gera nas crianças e no clima da casa.
Izabel: Antes a gente escutava muito dos APS: “faço de conta que não ouvi,
faço de conta que não vi”. E uma fala muito comum hoje em dia é: “se fosse
meu filho, como eu faria?”. Essa frase entra na roda porque ela tem pontos
positivos e negativos, pois é bom que estejam conseguindo ver a criança como
filho, mas como também é necessário e possível construir outra referência.
As situações vivenciadas antes eram semelhantes as da Fundação Casa, com
muitas agressões e uso de drogas e agora o problema é ajudar a menina a
passar desodorante no sovaco (risos).
A gente teve uma situação agora na qual um dos adolescentes ten-
tou ameaçar arrombar a sala para pegar coisas que queria e eu conver-
sei com ele e expliquei que ele não precisava da ameaça, que conseguiria as
coisas na conversa. Expliquei que, de princípio, eu estou aqui para ajudar,
e que então isso já está dado. E que se ele ameaça eu já perco a vontade de
ajudar. E que, se conversarmos, talvez eu não vá fazer exatamente o que
ele gostaria, mas talvez consigamos chegar em um consenso, com um
pouco da minha opinião e um pouco da dele. Ele aceitou, mas se fosse ou-
tro tempo ele quebraria tudo, arrombaria. Eu entendo que dessa forma

167
estamos oferecendo outras possibilidades para os adolescentes, que
não seja nem sim, vou fazer o que você quer, e nem arrombar a porta.
Juliane: Depois da entrada dos irmãos não teve mais boletim de ocorrência, nem
polícia na casa. Nessa semana, as crianças vão todas para o Hopi Hari e, semana
que vem, vamos comemorar a festa julina, na qual uma das APS será a noiva. Fico
lembrando de como era antes e fico pensando “se eu chamar a polÍcia
hoje, as crianças vão ficar assustadas!” nem consigo imaginar fazer isso!

O que vocês querem que as pessoaS saibam sobre a Casa Juventude?

Izabel: Que as pessoas da rede saibam que a casa mudou, que recebemos crian-
ças e adolescentes, meninos e meninas e que é um ambiente muito próximo do
doméstico, que as crianças brincam, têm atividades e que elas gostam de estar
aqui. Tanto gostam de estar aqui, que não estão na rua. Elas têm passado o dia
em casa, que mesmo o adolescente que mais saía de casa hoje vai na lan house e
volta depois de dez minutos. Eles querem estar juntos, querem estar juntos
entre eles e com os profissionais. Hoje, quando a gente chega na casa e sobe
para as nossas salas, sobe todo mundo atrás. As crianças pedem beijo de oi. Agora
a gente tem que beijar todo mundo, quando chega e quando vai embora.
Mesmo assim, a Juliane consegue manter a autoridade, as crianças dizem
que só no olhar eles já sabem que ela está braba. Acho que a gente fez uma
boa dupla, porque eu converso mais e a Juliane dá bronca. Eles vêm na Juliane
uma figura materna, os pequenos até verbalizam isso. E só é possível falar nes-
sa referência porque entra mais a dimensão da família no trabalho. A gente
também tem chamado as famílias dos adolescentes para participar das festas
de escola, para tomar vacina, para participar da vida das crianças.
Atualmente, os desafios são visto de outra forma. A gente têm pensado em
como fazer para que as crianças e adolescentes tenham autonomia e conheci-
mentos de vida necessários para seguir adiante, pois muitos vão seguir no abri-
go até a maioridade, principalmente os adolescentes que já estavam no abrigo.
Hoje a casa trabalha em cima de três apostas:

1. A primeira é que a experiência do convívio com os diferentes possibilite sempre


a construção de novas referências que a vida pode vir a ser de outro jeito.

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2. A segunda é que a socialização aconteça também dentro de casa porque
os meninos não sabiam se comportar na frente de meninas, na escola, na
rua, então como seria quando eles saíssem para o mundo? Agora eles con-
vivem com meninas e com questões de meninas, o mesmo vale para as
meninas, que agora sabem como se comportar com os meninos.

3. A terceira é a aprendizagem da solução de problemas pelo diálogo, da


comunicação não violenta e não pela violência. “Se a gente tá junto só de
quem agride a gente vai aprendendo a só agredir também”. Se os profis-
sionais que são uma referência para as crianças tem o princípio de que eles
serão marginais, eles se comportarão como tal.

Atualmente, os APS estão fazendo roda de conversa, estão fazendo brincadei-


ras com as crianças, fizeram a corrida do ovo, tem ouvido muita música e dan-
çam. As crianças hoje querem ficar em casa porque eles também sentem que
as pessoas da casa querem estar com eles, brincar com eles. É um clima muito
diferente. Escuto crianças cantando, dançando. A casa está mais colorida,
tem um clima doméstico de casa e de um lugar bacana, de um lugar que
as pessoas querem estar. Mas isso também dá muito trabalho.

Juliane: Antes era tranquilo de trabalhar porque os adolescentes ficavam na rua


o dia todo, eles não conviviam. Agora os funcionários e crianças convivem na casa.
Izabel: Claro que não é tudo cor de rosa, têm dificuldades, cada um com sua
história, casos diferentes, com perda do poder familiar, e famílias com vulne-
rabilidade elevada. Os APS com suas vidas pessoais e às vezes passando por
problemas próximos, mas essas são as dificuldades do dia a dia. Vocês per-
guntaram no outro dia sobre quando um caso deixa de ser um caso difícil e
eu respondi que é quando a gente consegue sorrir quando pensa nele. É hoje
é isso que acontece: antes a gente tinha medo de vir para o trabalho, agora
quando a gente pensa nos casos e no trabalho, a gente sorri!

1. Entrevista realizada por Fernanda Ghiringhello Sato e Carolina Bertol em Julho de 2016.
2. Juliane é gestora do SAICA Casa Juventude.
3. Izabel é psicóloga do SAICA Casa Juventude.

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© Núcleo Entretempos
1ª edição | Tiragem 400 exemplares
São Paulo, 2016

organização
Carina Ferreira Guedes
Fernanda Ghiringhello Sato

projeto gráfico
Leandro Daniel
Lucila Muranaka

equipe projeto enlaces


Carina Ferreira Guedes
Carolina Esmanhoto Bertol
Fernanda Ghiringhello Sato
Gabriela Menezes Urbano da Silva
Mariana Manfredi Magalhães
Mariana Moura Abrahão
Natália Felix Noguchi

gestão administrativa / financeiro


KlEber de Araújo

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional
ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Caderno Enlaces: textos de referências do projeto de formação de


profissionais da Assistência Social de Osasco V.4 / Carina Ferreira Guedes
(org.), Fernanda Ghiringhello Sato (org.). Vários autores.– Osasco-SP, 2016.

ISBN: 978-85-5768-003-6

1. Formação profissional 2. Assistência Social 3. Imaginário


4. Cartografia I. Título.

LC: HM251
CADERNO

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