ISSN: 2359-2354
Vol. 4 | Nº. 1 | Ano 2018
APRESENTAÇÃO
O ruído biográfico na literatura e nas
humanidades
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Editor do dossiê
“O ruído biográfico na literatura
e nas humanidades”:
APRESENTAÇÃO
O ruído biográfico na literatura e nas humanidades
O ruído é o que, entre os sons, remete ao não desejado. Um evento sonoro imprevisível,
que indica um problema, sintoma de algo que deve ser eliminado, para que, enfim, identificada a
causa, retome-se a normalidade no regime das percepções auditivas. No plano dos sons,
podemos identificar, a grosso modo, aqueles que são involuntários, porque naturais, e que
compõem as paisagens, como as ondas quebrando na praia e o vento farfalhando a folhagem das
árvores, e os que resultam de uma atitude individual interessada, ou mesmo criativa, de que a
música é o exemplo mais radical. O ruído, involuntário ou não, representa um desvio, não é
harmônico. O caráter diabólico atribuído à dissonância é somente mais um exemplo de sua
negatividade.
Usar o ruído como metáfora para tratar do biográfico é assumir essa negatividade,
contudo sem deixar de pensar tal negatividade como uma encruzilhada, enquanto desvio e meta,
veto e possibilidade, vergonha e orgulho a um só tempo. No universo da oralidade, contar a
própria vida, ou a vida do outro, é a missão do narrador primordial, como nos ensina Walter
Benjamin, pois a experiência é (foi) a matéria-prima com que se possibilita o aprendizado.
Benjamin, sabemos, é pessimista quanto à possibilidade de narrar na modernidade romanesca,
pois “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais narrar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (1994,
p. 201). É bem verdade que Benjamin não pensa o biográfico, mas ao tratar da experiência,
resvala no centro de uma das dicotomias mais caras da literatura como fenômeno moderno: a
distinção entre autor empírico e narrador literário. Quem conta e quem assina não são (ou não
podem ser) o mesmo.
Talvez por essa razão a questão do biográfico tem tido tanto apelo no debate literário
contemporâneo. A relação entre vida e ficção, sustentada na dicotomia fundante entre o sujeito
que assina a obra e os sujeitos ficcionais, começa a ganhar novos vetores justamente quando essa
dicotomia começa a ser relativizada, seja pelo jogo que alguns escritores e escritoras fazem com
os limites do vivido e do inventado, seja quando a teoria reconhece nessa produção ambígua – o
pacto ambíguo, conforme Alberca (2007) – a configuração de uma nova textualidade. Tal
textualidade destoa da ideia moderna de autonomia estética, sugerindo uma produção “pós-
1
Professor de Teoria da Literatura na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira –
Campus dos Malês. Mestre em Literatura pela UnB e doutor em Estudos de Literatura pela UFF.
autônoma” (Ludmer, 2007), assim como, em via de mão dupla, reconhece o caráter criativo do
biográfico, da experiência mediada (ou reconhecível) pela forma, o que destoa da proposição de
um “pacto de verdade”, nos termos da proposta protocolar de Philippe Lejeune (2008). A
narrativa biográfica entra, portanto, como o outro do romanesco, modificando sua leitura
tradicional, escolar, punitiva quanto à confusão “ingênua” entre autor e narrador.
A questão da autonomia estética não faz do ruído biográfico um problema exclusivo da
arte (como se fosse possível esse recorte), uma vez que a narrativa biográfica remete também à
dicotomia entre a experiência e o seu outro na produção intelectual das humanidades. Na
epistemologia ocidental, o lugar do sujeito empírico frente ao sujeito teórico, sua imagem de
autor constituída na obra, encontra no caso de Heidegger um exemplo dos mais famosos. Como
separar? Cabe separar? A resposta, qualquer que seja, ou o rechaço às perguntas, nos impõe o
debate sobre o lugar da vida no legado do conhecimento. Afinal, a vida entrevista nos diários,
nas cartas etc., é uma continuidade da imagem de autor, é parte do seu pensamento, da sua
crença política, ou apenas anedota circunstancial, resíduo biográfico à margem do que de fato
importa, sua teoria?
São inúmeras as perguntas que podem advir da fricção que o relato biográfico, em suas
diferentes formas, pode causar na recepção de um gênero discursivo, seja o romance, a escrita
teórica, o relato etnográfico, o autorretrato etc. Os textos reunidos neste dossiê evocam e buscam
lançar luz sobre alguns pontos dessa fricção ruidosa causada pela vida escrita, indicando
possiblidades, vetos, revisões conceituais, aberturas epistêmicas e identitárias. Em tudo isso o
desafio teórico e a dimensão política são evidentes.
Em “O vestido elétrico de Carolina Maria de Jesus”, Antonio Marcos Pereira parte de um
episódio em sala de aula onde relata como uma resposta pronta dele próprio sobre a escritora
revelou-lhe um veto à imagem que ela urgia para si em seus diários e além deles. Aprisionada
pela crítica de caráter identitário e pelo mercado editorial ao epíteto de “mulher, negra e
favelada”, Carolina Maria de Jesus almejava sobretudo deslocar-se de seu lugar, não para
alienar-se de sua origem, mas para experimentar-se como indivíduo no espaço de invenção da
escrita, seu refúgio.
No artigo “Autobiografia e autorretrato: similaridades da construção ficcional”, Rodrigo
Ordine retoma criticamente os conceitos de autobiografia, conforme a formulação de Lejeune já
aludida aqui, enquanto “pacto de verdade”, e ficção, palavra que etimologicamente tem duas
vias: como fingimento (fictio) e como manufatura (fingo, fingere). Ao preferir esta última
acepção, Ordine estabelece uma comparação entre o relato autobiográfico e o autorretrato como
formas discursivas que extrapolam a dualidade fato/ficção, pois o trabalho de autorrepresentar-
se, seja pelo relato, seja pela fotografia ou pintura, é desde sempre um empenho de fabulação da
imagem de si para o outro, mesmo que ancorado em uma pretensa realidade. Dada a presença
desse outro enquanto espectador possível, Ordine alerta ainda para a dimensão social
irremediável do autorretrato, concebido sob os anseios de um público consumidor desde sua
criação.
Mariana da Costa A. Petroni, em “Narrativas e grafias: a biografia indígena e a
antropologia”, começa por apresentar a escassez de relatos biográficos indígenas publicados no
Brasil se comparados aos Estados Unidos ou à América Latina. Segundo Petroni, o relato
biográfico indígena, especialmente o autobiográfico, tem uma importância central para a
antropologia, pois mesmo que nem sempre se ancorem em uma veracidade irredutível, factual,
podem erigir-se como uma “contra-antropologia histórica do mundo branco”, nos termos de
Bruce Albert (2015). Indicando alguns exemplos, como o do xamã Davi Kopenawa, Petroni
aponta a importância política e a necessidade antropológica de se dar a conhecer a produção
biográfica indígena no Brasil.
Em “A escrita diarística em Luísa Dacosta, Maria Grabriela Llansol e Ana Cássio
Rebelo”, Paula Renata L. C. Ramis se debruça sobre os diários de três escritoras portuguesas a
fim de investigar como o relato biográfico alça suas vozes em contextos de opressão patriarcal,
assim como cria as possibilidades para confrontá-la, justamente por torná-la visível, dizível.
Ramis analisa a relação intricada, para as escritoras, entre vida e escrita, no que tange à vivência
e à expressão dos afetos, da sexualidade, da maternidade etc. A autora discute ainda o caráter
particular, íntimo, da escrita diarística e sua publicação e incorporação em outros gêneros
textuais públicos, como o romance.
Por fim, Mírian Sumica Reis e Claudio Cledson Novaes, em “Identidade e alteridade na
ficção literária: autoria, biografia e autobiografia em desconstrução no romance Budapeste”,
abordam um problema crucial do ruído biográfico: a questão autoral. Ao analisarem o jogo
ficcional que se estabelece com a imagem de autor no romance Budapeste, em consonância com
o longa-metragem oriundo dele e o documentário Desconstrução, de Bruno Natal, Reis e Novaes
investigam a (des)construção da assinatura artística de Chico Buarque, que “assume e negocia
uma imagem biográfica para a cultura brasileira que, muitas vezes, é também uma ficção”.
Assim, mais uma vez voltamos à questão dos limites – entre gêneros discursivos,
identidades, fato e invenção – e seus esgarçamentos. O que chamamos, aqui, de ruído biográfico,
é sobretudo o ponto em que uma dicção hegemônica trivial (logocêntrica, falocêntrica,
eurocêntrica etc.) tem seu revés não só pela recusa, virada absoluta, mas como encruzilhada,
encontro tenso de diferenças que convivem, transformando-se. Afinal, descobrindo (ou
REFERÊNCIAS