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III Encontro Nacional de Estudos da Imagem

03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA: A METAFICÇÃO DE VALÊNCIO


XAVIER

Rodrigo Gomes de Araujo

Mestrando em História pela UFPR

Bolsista do Programa REUNI

Palavras-chave: historiografia, literatura contemporânea, verossimilhança.

O moderno romance do século XX, na sua incessante busca por novos


modos de expressão e de apresentação do texto literário, já acenou a muito
com uma riqueza de possibilidades narrativas que não parecem ter sido
assimiladas por uma historiografia que, pelo menos neste aspecto, é ainda
demasiado tradicional. Acompanhar este movimento iniciado no âmbito da
literatura do último século, mas também no campo do cinema e das artes em
geral, poderia enriquecer significativamente o discurso historiográfico,
ajudando-o a romper os tabus e as restrições que acaba reproduzindo os
mesmos padrões, mesmo que nem sempre adequados aos novos objetos e
abordagens já conquistados pelos historiadores (BARROS, 2008, p. 43).

O discurso historiográfico ainda nos dias atuais tem a tendência a um padrão


narrativo, mais empenhado em apresentar resultados de pesquisa do que em que
buscar formas alternativas e reflexivas de escrita.
Segundo Dominick LaCapra, desde o século XIX, os historiadores veem o
romance como fonte, mas não como modelo narrativo, a busca pela cientificidade
parece ter cegado os historiadores do caráter narrativo da historiografia. De acordo
com ele, até o século XIX, os historiadores buscavam suas poéticas próprias, porém
com o surgimento da escola metódica, a historiografia assumiu um padrão narrativo –
sempre impessoal, uma terceira pessoa onisciente –, afastando-se da narrativa
romanesca, que se caracterizou pelo experimentalismo narrativo. O autor sugere que
os historiadores deveriam passar a ver o romance não apenas como uma fonte, mas
também como modelo de narrativa, não para ser seguido, mas para que os
historiadores possam a aprender sobre seu próprio ofício (LACAPRA, 1991).
Também,
é importante lembrar que no século XIX, pelo menos até que Leopold Ranke
colocasse as bases da “história científica”, a literatura e a história eram
consideradas como tendo a mesma função – narrar a experiência e o
acontecido com o objetivo de orientar e elevar o homem. Até então, ambas
podiam ser associadas a um esforço para subjugar o caos, mediante a
edificação de modelos capazes de assegurar aos homens tanto a orientação
como a verdade (SINDER, 2000, p. 254).

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Se a historiografia parece ter cristalizado sua forma narrativa, o romance, pelo


contrário, buscou formas alternativas de representação, muitas vezes se valendo de
outras formas textuais além da romanesca, como a poesia, a crônica e o conto, ou
mesmo de textos extraliterários, como a propaganda e o jornalismo.
Neste trabalho, proponho um olhar sobre a recente apropriação dos métodos
narrativos historiográficos por parte da literatura contemporânea. De acordo com
Linda Hutcheon trata-se de um tipo de metaficção capaz de questionar os limites entre
história e literatura. Busco problematizar a produção literária de Valêncio Xavier
(1933-2008), artista que atuou como cineasta, jornalista e escritor. Sua atuação
polivalente pode ser percebida em seus livros, pois se apropriam de métodos de
montagem cinematográfica e do jornalismo, criando obras plástico-literárias que
mesclam narrativas iconográficas e literárias.
Num estudo voltado à análise do romance contemporâneo e seus diálogos com
a historiografia, Linda Hutcheon destaca que, a partir da década de 1980, o novo
romance histórico levanta as mesmas questões que as teorias atuais a respeito da
narrativa historiográfica, sobretudo as ideias de Michel de Certeau, Paul Veyne e
Hayden White. Segundo ela, tanto romances como a recente teoria da história
levantam
questões como as da forma narrativa, da intertextualidade, das estratégias de
representação, da função da linguagem, da relação entre fato histórico e o
acontecimento empírico, e, em geral, das conseqüências e ontológicas do ato
de tornar problemático aquilo que antes era aceito pela historiografia – e
pela literatura – como uma certeza (HUTCHEON, 1991, p. 14).

De acordo com Roger Chartier, foi a partir de década de 1970, que


historiadores passaram a olhar mais reflexivamente para a epistemologia e narrativa
historiográfica. Para ele, Michel de Certeau, Paul Veyne e Hayden White foram os
principais responsáveis por uma tomada de consciência da subjetividade do
conhecimento histórico. Três livros foram fundamentais para repensar a objetividade
historiográfica: Como se escreve a história (1971) de Veyne, Meta-história (1973) de
White e A escrita da história (1975) de Certeau.1 As questões levantadas suscitaram
grande debate, que tinha por um lado a defesa da disciplina da história enquanto uma
ciência produtora de verdade, e por outro como uma narrativa embasada métodos
subjetivos e ficcionais.
Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de
consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação,
entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se
propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de

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uma reflexão sobre a história, entendida como escritura sempre construída a


partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da
ficção (CHARTIER, 2009, p. 12).

O debate inclui o historiador italiano Carlo Ginzburg, que recorre aos


conceitos de Aristóteles para esclarecer que retórica e prova são indissociáveis, de
modo que para Ginzburg, a historiografia possui uma verdade específica pautada nos
vestígios do passado. Michel de Certeau apresenta postura similar, segundo ele, para
que o discurso histórico possua credibilidade há a necessidade de se buscar
referências no passado, como a citação das fontes.
“Vestígios do passado, referências, citação de fontes”, estas práticas
legitimadoras parecem específicas do discurso historiográfico, mas também estão
presentes no novo romance histórico (BARTHES, 1988, p. 146). Segundo Hutcheon,
os livros caracterizados por ela como metaficções historiográficas utilizam a citação
de fontes e as referências ao passado com o intuito de evidenciar que o conhecimento
histórico é lacunar, ideológico e está sujeito aos vestígios do passado, já que sem eles
a escrita da história não seria possível. Tais romances não tem por objetivo negar o
passado, e evidenciam que ele “realmente existiu, mas hoje só podemos “conhecer”
esse passado por meio de seus textos, e aí se situa seu vínculo com o literário”
(HUTCHEON, 1991, p. 168). A autora define como pós-modernas as práticas
literárias de apropriação e questionamento da objetividade historiográfica. Sendo que
ao recorrer a formas de apresentação similares à da historiografia, os novos romances
históricos levantam questões a respeito da dicotomia entre a literatura e a história.
A metaficção historiográfica se apropria das mesmas fontes e por vezes a
mesma forma que o discurso histórico. Com isso destaca que a concepção da
historiografia enquanto realidade baseada em referências a um passado empírico não
passa de um senso comum, pois na verdade a historiografia se refere a textos e
reminiscências do passado, e não ao passado em si. Esse novo tipo de romance
reinterpreta a história e a reescreve através da ficção, sem o objetivo contar a verdade,
mas de questionar qual é essa verdade que se conta (SINDER, 2000, p. 261). Assim,
“afirma que aquilo que tanto valorizamos é um constructo, e não algo previamente
existente, e, além disso, um constructo que exerce uma relação de poder em nossa
cultura” (HUTCHEON, 1991, p. 257).
Seja por parte das atuais teorias da história, seja pelos novos romances, a
narrativa historiográfica não pode ser entendida como a única relação com o passado,

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nem pode ser aceita de como objetiva e imparcial. Pesquisas apontam que as
concepções de historiografia vêm passando por profundas alterações desde a década
de 1970 (CHARTIER, 2009; HUTCHEON, 1991). Mais interessante que analisar
como os próprios historiadores percebem e se posicionam diante dessas mudanças, é
abordar como se manifestam outras formas de relação com o passado, como a
memória e a ficção.
Neste sentido, passo agora a abordar a metaficção de Valêncio Xavier, autor
que possui uma obra polivalente, composta por filmes, narrativas ficcionais, crônicas,
críticas literárias e de cinema e textos de caráter historiográfico.
Numa entrevista, quando perguntado sobre seu lugar na literatura brasileira, o
autor declarou: “A única coisa que sei é que nunca coloquei barreiras ou regras
naquilo que me vinha na cabeça para escrever. Talvez a palavra certa não seja
experimental ou vanguardista, e sim libertário. Talvez” (ALEIXO, 1998, p. 3). A
liberdade de que Valêncio fala permitiu que construísse uma relação peculiar com o
passado, na qual o ficcional se soma ao factual. O autor não se ateve a regras
dicotômicas entre ficção e fato para sua produção. De modo geral, mesmo seus
trabalhos de caráter predominantemente ficcional possuem embasamento em
pesquisas e levantamentos historiográficos (BORBA, 2005, p. 12-13). Por exemplo,
em O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oishi (1986), livreto composto
por dois contos nos quais um homem se relaciona com uma prostituta e uma fábula
ambientada no Japão, respectivamente, o autor apresenta, no final dos textos, uma
série de livros nos quais pesquisou para criar os contos (XAVIER, 1986, p. 18).
Ao lermos seus livros, ou assistirmos aos seus filmes, percebemos que a ficção
para Valêncio, muito além de contar uma boa história, cria um tipo relação com o
passado, seja ao rememorar episódios históricos ou ao utilizar colagens de imagens e
textos antigos.
O autor foi um expoente no cinema e na literatura paranaense, apesar disso é
pouco conhecido mesmo entre os pesquisadores de literatura. No conjunto de sua
obra, há uma grande preocupação com a memória do Paraná. Seus livros e filmes são
contribuições à história do estado, com temas ainda hoje pouco abordados pela
historiografia. Percebemos o diálogo com a história mesmo em suas obras
predominantemente ficcionais, principalmente em O mez da grippe (1981), livro mais
conhecido de Xavier, tratando dos desdobramentos da gripe espanhola na capital
paranaense em 1918.

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O autor só passou a ter notoriedade no campo literário com a publicação de O


mez da grippe e outros livros (1998), pela editora Companhia das Letras. O livro, que
traz obras já publicadas anteriormente e alguns contos inéditos, concorreu ao prêmio
Jabuti nas categorias Romance e Produção Editorial em 1999, e venceu a última. A
carreira literária de Valêncio atualmente recebe mais destaque, apesar de suas
declarações dizendo ser um homem de cinema (ROCKER NETO, 2008, p. 1). As
interpretações do conjunto da obra se omitem sobre a importância cultural do artista
para além da literatura.
Valêncio foi um personagem bastante atuante no cenário cultural curitibano
nas três últimas décadas do século XX. Em 1975, fundou a Cinemateca do Museu
Guido Viaro, dirigindo-a até 1982 (hoje chamada de Cinemateca de Curitiba), e
colaborando para formar a atual geração de cineastas curitibanos. Posteriormente foi
também diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS-PR). Neste período, restaurou
diversos filmes sobre história do Paraná e realizou suas próprias produções
audiovisuais, a maioria delas pautada na história paranaense (BORBA, 2005, p. 11-
12).
Em suas obras, aparecem subjetivamente questionamentos quanto à
objetividade da narrativa e da memória, e dúvidas quanto à dicotomia entre fato e
ficção. O mez da grippe (1981), por exemplo, é um livro que dialoga com a
historiografia, questionando-a. A novela contribui para a consciência histórica a
respeito da epidemia de gripe espanhola. Vale destacar que não se tem notícia de
estudos sobre os desdobramentos da epidemia em Curitiba. Os eventos não aparecem
nem mesmo nas obras clássicas da historiografia paranaense, como a de Romário
Martins, que vivenciou o período, e a de Ruy Wachowicz, que sequer fazem menção à
epidemia.
O mez da grippe teve baixa tiragem, apenas 500 exemplares, mas foi sucesso
de público e crítica. Montado a partir de recortes de jornais de 1918, trata
paralelamente do desfecho da Primeira Guerra Mundial e da epidemia de gripe
espanhola em Curitiba, além de diversas pequenas histórias entrecruzadas. Nas
interpretações sobre o livro, é lugar-comum dizer que a novela rompe com os padrões
literários devido ao uso de ilustrações com caráter narrativo, associadas à escrita e à
sua construção fragmentada. Também chamam a atenção para a apropriação e a
colagem de diferentes formas narrativas extraliterárias, como a historiografia, o
jornalismo e o cinema.

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Segundo o crítico Boris Schnaiderman, O mez da grippe propõe novos


caminhos para a narrativa contemporânea ao colocar ilustrações que compõem o
texto. Por exemplo, “As descrições do ambiente (...) que numa ficção tradicional
ocupariam páginas e mais páginas, são dadas por elementos iconográficos”
(SCHNAIDERMAN, 1992-3, p. 104). De acordo com ele, é uma obra modernizante
por seu caráter polifônico, com tipos distintos de narrativa que dialogam entre si e
contam simultaneamente várias histórias.
Em O mez da grippe, uma breve narrativa ficcional de um estuprador que se
aproveita de uma mulher enferma é agrupada a formas de registro histórico, como
recortes de jornal, relatórios sanitários, estatísticas e depoimentos. As diferentes
formas narrativas são montadas de modo a criar eixos narrativos distintos, mas que se
relacionam entre si. Ao agrupar os registros históricos pré-existentes, a novela lhes
confere sentidos diferentes dos originais. Visto como um todo, o livro tem um aspecto
extremante tétrico, que vai se acentuando. Isso pode ser percebido até mesmo através
das propagandas que são apropriadas na obra, se a princípio são de cortinas e filmes
em cartaz (XAVIER, 1998, p. 14, 20), vão passando para remédios e produtos de
prevenção à gripe (p. 23, 25, 29, 47) e culminam em anúncios de funerárias (p. 52,
58).
Ao agrupar os registros históricos de maneira sequencial, seus sentidos são
alterados, principalmente quando são chocadas as notícias dos jornais: o Commercio
do Paraná, que busca camuflar a epidemia, e do Diário da tarde, que tenta explicitá-
la. Se a princípio as matérias tinham a intenção de noticiar, no livro servem para
questionar a pretensa imparcialidade política da mídia.
Segundo Evanir Pavloski, o livro problematiza e questiona dicotomias entre
fato e ficção, literatura e história, pois reforça a ideia de que mesmo os discursos
historiográficos e jornalísticos são subjetivos e possuem características ficcionais.
Assim, o livro
coloca em evidência esse comprometimento subjetivo que cerca toda prática
discursiva ao reunir dentro de um mesmo texto diferentes versões que se
propõe a discutir o mesmo acontecimento (...). Esse procedimento acaba por
criar um caleidoscópio interpretativo que desqualifica a busca de quimeras
como “as verdades absolutas” ou “os fatos inegáveis”. Assim, a história
perde seu status dogmático e se fragmenta em múltiplas perspectivas
analíticas que partem do mesmo ponto, mas seguem caminhos distintos
(PAVLOSKI, 2005, p. 55).

Pavloski salienta que as diferentes versões dos fatos comprometem o princípio


da objetividade historiográfica e jornalística. De modo que cada fragmento narrativo

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põe os outros em questão, oferecendo múltiplas interpretações que o leitor deve


escolher. O autor conclui que O mez da grippe, além de desafiar os conceitos de
história, ficção e fato, discute a própria ideia de narrativa.
Além disso, a novela de Valêncio ao utilizar o recurso de apropriação e
colagem de fac-símiles dos jornais cria um efeito de realidade que se sustenta, mesmo
apresentando versões contraditórias dos mesmos fatos, como no caso dos jornais
Commercio da Paraná e Diário da tarde. A verossimilhança presente no livro é tão
convincente que mesmo pelo depoimento de Dona Lúcia, testemunha ocular da
epidemia, que se contradiz ao contar diferentes versões do caso de uma moça que
pode ter morrido de gripe espanhola, enlouquecido devido à febre, ou se suicidado
(XAVIER, 1998, p. 75-76). Tal efeito só é quebrado pelo texto ficcional que narra o
estupro, este sim escrito por Valêncio.
De acordo com Miguel Sanches Neto, a verossimilhança da obra, e a
contextualização criada através da apropriação dos registros históricos, não passam de
um embuste criado para servir de pano de fundo para narrar uma cena de estupro.
O mez da grippe (...) é uma falsa novela histórica – na verdade, a
monstruosidade do estuprador, cujas proezas são relatadas como prazerosas,
questionam os discursos oficiais e mentirosos sobre a epidemia que dizimou
centenas de pessoas em Curitiba. Os recortes de jornais, espécie de moldura
do episódio do estupro, servem apenas secundariamente para dar o clima
histórico do livro, funcionando, isso sim, como contraponto para a
desumanidade deste tarado que não tem piedade nenhuma (SACHES
NETO, 1998, p. 4).

Entretanto, há que se lembrar que o livro não narra somente esta história, há
mais dois grandes eixos narrativos, o fim da Primeira Guerra Mundial e o
desdobramento da gripe espanhola, além de outras narrativas entrelaçadas, como os
depoimentos de Dona Lúcia, que tenta rememorar a epidemia. Sanches Neto atribui
uma importância muito elevada para uma única narrativa, dentro de um livro
composto por uma diversidade de histórias independentes e entrecruzadas, que se
complementam através do dialogismo.
Ao ler os livros de Valêncio, o leitor se depara com o estranhamento, seja
pela utilização do recurso de montagem, pelas temáticas geralmente ligadas ao sexo e
à morte, e ainda a linguagem que não é a contemporânea, mas busca reproduzir os
códigos linguísticos do período em que as narrativas se passam. Para Regina
Chicoski, o uso que Valêncio faz da linguagem desatualizada é um recurso que situa
historicamente o leitor, e confere maior veracidade à narrativa. “Isso transporta o

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leitor para épocas remotas, de um tempo anterior. A grafia do início do século XX


ilustra o contexto da trama” (CHICOSKI, 2004, p. 171).
Contudo, ao fazer a leitura de seus livros, a sensação mais destacada que
temos é a dúvida. Suas narrativas correspondem a histórias reais ou ficções? A
veracidade presente em seus livros confunde o leitor, as possibilidades interpretativas
são diversas. Valêncio se apropria de fragmentos pré-existentes entendidos como não
ficcionais – como os recortes de jornal em O mez da grippe – e através de suas
combinações cria um tipo peculiar de ficção literária. Seus livros questionam os
limites da ficção, na medida em que se apropriam de registros históricos para compor
a verossimilhança dos enredos. Segundo Linda Hutcheon, a metaficção
historiográfica atua exatamente conciliando diferenças e questionando certezas,
instituições, e especialmente os limites entre história e ficção (HUTCHEON, 1991, p.
27).
De acordo com Evanir Pavloski, O mez da grippe questiona as fronteiras entre
história e literatura, fato e ficção. Segundo o pesquisador,
Poderíamos dizer que o autor, por meio de sua novela estrategicamente
ambientada num momento turbulento da história de Curitiba, problematiza
o próprio conceito de registro factual. Isso se dá pela aproximação de
elementos diferenciados que buscam descrever, analisar ou explicar um
determinado acontecimento, como textos jornalísticos, a literatura, a
estatística e a memória. Essas quatro formas de preservação histórica são
colocadas lado a lado e constantemente confrontadas como forma de avaliar
o grau de precisão e subjetivação a que cada uma delas está sujeita
(PAVLOSKI, 2005, 54).

Para Pavloski, o livro desconstrói a ideia do discurso historiográfico como


isento de subjetividade, os registros históricos não aparecem simplesmente em
oposição um ao outro, mas são complementares. Através desse dialogismo é possível
que o leitor construa sua própria representação do passado. A contribuição da novela
de Valêncio não está apenas na rememoração de um evento histórico inédito na
historiografia paranaense, a epidemia de gripe espanhola, mas sim na possibilidade de
diálogo que traz aos literatos e historiadores sobre as aproximações e distanciamentos
das narrativas (PAVLOSKI, 2007, p. 31).
O efeito de veracidade nas obras do autor aparece de modo bastante eficaz, seu
poder de convencimento está na apropriação dos mesmos recursos utilizados pelo
historiador, como o uso de fontes, datação, citações, e da linguagem específica do
período representado, por exemplo. Em O mez da grippe, o efeito de realidade chega
a parecer mais eficaz do a narrativa historiográfica. A veracidade na novela inquieta o

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leitor também devido ao inedistimo do tema, já que não se tem notícia de estudos
sobre a gripe espanhola em Curitiba, não havendo, até os dias atuais, trabalhos que
contraponham os sentidos criados pelo livro de Valêncio.
Os exemplos da narrativa de Valêncio certamente não resolverão a questão do
quanto a historiografia dialoga com recursos narrativos ficcionais, mas ilustram em
que medida a discussão pode ser profícua. São casos em que a representação do
passado não é apresentada como acabada, mas sim como um problema a ser
construído, os questionamentos de seus livros são os mesmos da historiografia
contemporânea. Além disso, podem ser bastante úteis ao historiador para se pensar a
diversidade de formas narrativas, da qual a historiografia vem se mostrando omissa.
O questionamento da objetividade nas obras de Valêncio, mais do que atacar a
historiografia, permite que esta seja reavaliada e reinterpretada enquanto um discurso
e não como produtora de verdade. A análise de seus livros pode contribuir para
pensarmos em que medida o estatuto do conhecimento histórico é entendido como
subjetivo, não só pelos historiadores, mas também fora dos núcleos acadêmicos. Ao
se valer dos mesmos recursos narrativos que a historiografia o novo romance histórico
Não (...) fez com que a história ficasse obsoleta; no entanto, ela está sendo
repensada – como uma criação humana. E ao afirmar que a história não
existe a não ser como texto, o pós-modernismo não nega, estúpida e
“euforicamente”, que o passado existiu, mas apenas afirma que agora, para
nós, seu acesso está totalmente condicionado pela textualidade
(HUTCHEON, 1991, p. 34).

Referências

ALEIXO, Ricardo. “Mez da grippe” revela escritor polígrafo. O tempo. Belo


Horizonte, 3 out. 1998. p. 3. (Entrevista concedida por Valêncio Xavier)

BARTHES, Roland. Da história ao real. In: ______. O rumor da língua. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1988. p. 143-171.

BORBA, Maria Salete. Para além da escritura: a montagem em Valêncio Xavier.


Florianópolis, 2005. Dissertação (mestrado em Letras), UFSC.

BARROS, José d’Assunção. História, narrativa, imagens: desafios contemporâneos


do discurso histórico. Antíteses, vol. 1, n. 1, jan. – jun. de 2008. p. 33-64.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Trad. Cristina Antunes. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

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CHICOSKI, Regina. Eros e Tanatos no discurso labiríntico de Valêncio Xavier.


Assis, 2004. Tese (doutorado em Letras), UNESP.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad.


Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.

LACAPRA, Dominick. História e romance. Revista de História. Campinas, n. 2/3,


1991, p. 107-124.

PAVLOSKI, Evanir. A desconstrução factual em O mez da grippe de Valêncio


Xavier. Revista das Faculdades Santa Cruz, v. 6, n. 2, jul./dez. 2007.

______. Linguagem, História, ficção e outros labirintos em O mez da grippe de


Valêncio Xavier. Revista Letras, Curitiba, n. 66, mai.-ago., 2005. Editora UFPR. p.
45-60.

ROCKER NETO, Júlio. O mosaico de linguagens na narrativa hipertextual de


Valêncio Xavier. Curitiba, 2008. Dissertação (mestrado em Letras), UFPR.

SANCHES NETO, Miguel. O poder corrosivo. Gazeta do Povo. Caderno G. p. 4.


Curitiba, 26/10/1998.

SCHNAIDERMAN, Boris. O mez da grippe: um coro de muitas vozes. Revista Usp,


n. 16, 1992-1993. p. 103-108.

SINDER, Valter. A reinvenção do passado e articulação de sentidos: o novo romance


histórico brasileiro. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 26, 2000. p. 253-
264.

XAVIER, Valêncio. O mez da grippe. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1981.

______. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oishi. Curitiba: Gráfica &


Editora Módulo 3, 1986.

1
Estas são as datas de publicação original dos três livros, no Brasil foram publicados em 1982, 1995 e
1982, respectivamente.

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