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N N UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


INSTITUTO DE LETRAS
GRADUAÇÃO EM LETRAS – PORTUGUÊS/LATIM

Letícia Maria do Nascimento Souza

Luana da Silva Vieira

Pedro de Almeida Barizon

Análise figurativo-argumentativa de “Preparem os aventais”,


editorial da Veja de 3 de abril de 2013

Resumo
Este artigo almeja analisar, de forma figurativo-argumentativa, a
capa e um editorial da edição de 3 de abril de 2013 da revista
Veja, publicada depois da aprovação da “PEC das domésticas”.
Para a investigação do corpus, recorreu-se aos fatores de
textualidade de Beaugrande e Dressler (apud COSTA VAL,
1991) enquanto conceitos basilares. Na fundamentação da
figurativização, destaca-se o trabalho de Barros (2004). Por fim,
quanto à argumentatividade, notabilizam-se os textos de Mendes
(2010) e de Valente (2019).

Palavras-chave: argumentatividade; figurativização;


editorial; Veja; PEC das domésticas.

Rio de Janeiro – RJ
2022
Introdução

Tendo-se como base o editorial “Preparem os aventais” de 2013 da revista Veja, muito
se tem a discutir. Nenhuma das escolhas feitas para elaborar esse texto foi por acaso ou para
simplesmente o deixar mais rebuscado. Tudo o que está presente ali foi colocado no intuito de
persuadir ou convencer o leitor a concordar com a ideia trazida pelo redator, isto é, diversas
estratégias foram utilizadas para que a opinião do escritor sobre a “PEC das domésticas” fosse
aceita como algo verídico. Tudo isso pode ser comprovado através da teórica Costa Val (1991),
mais especificamente em seu texto “Redação e textualidade”. Nele, defende que todo texto
possui unidade sociocomunicativa, semântica e formal, além de definir, com base em
Beaugrand e Dressler, quais são os fatores de textualidade: intencionalidade, aceitabilidade,
situacionalidade, coerência, informatividade e intertextualidade.
A primeira marca que todo texto deve ter é a intencionalidade, isto é, todo discurso deve
ser constituído de forma coesa e coerente (ou seja, de forma coerente com o conhecimento de
mundo daquele que recepta o texto) e que seja capaz de estar de acordo com os objetivos da
situação comunicativa.
A segunda marca que temos é a aceitabilidade, que abrange a expectativa do leitor, ou
seja, o que ele espera é um texto coerente, coeso, útil e relevante e que, com tudo isso, ele
aprenda algo ou que suas ideias estejam ali presentes. Outra questão que devemos ter em mente
nesta parte é a implicatura conversacional que defende, de acordo com Grice (apud COSTA
VAL, 1991), que existem máximas conversacionais, sendo elas a cooperação, a qualidade,
quantidade e a pertinência da informação que é apresentada e que o produtor do texto só pode
desrespeitá-las se for de maneira a manter uma interação com o seu leitor.
Já a terceira marca é a situacionalidade. É possível notar aqui se um texto está de acordo
com o contexto em que está inserido. Sendo isso, se é pertinente, relevante e adequado à
situação sociocomunicativa. Como consequência disso temos a origem da coerência
pragmática, que é o uso da linguagem normal dentro do contexto em que o leitor possa
reconhecer aquele texto. Toda essa ideia vem da importância de que o autor conheça o
recebedor de suas produções para saber o que deve ou não explicar ou usar.
De certa forma, dando seguimento a anterior, a quarta marca é a informatividade. De
acordo com Costa Val, M.G. (1991) “À medida na qual as ocorrências de um texto são
esperadas ou não, conhecidas ou não, no plano conceitual ou no formal.” é o que define essa
marca. Além disso, ressalta que um texto menos previsível e mais informativo, apesar de
trabalhoso, é bem mais aceito, pois do contrário o seu processamento será impossibilitado.
Costa Val ainda menciona que mais um requisito se enquadra nesse tópico: a suficiência de
dados. Em suas palavras:

“Isso significa que o texto tem que apresentar todas as informações necessárias para
que seja compreendido com o sentido que o produtor pretende. Não é possível nem
desejável que o discurso explicite todas as informações necessárias ao seu
processamento, mas é preciso que ele deixe inequívocos todos os dados necessários à
sua compreensão aos quais o recebedor não conseguirá chegar sozinho.” Costa Val,
M.G. (1991)

É possível complementar ambas as ideias com os textos dos teóricos Mônica Mendes
Silva Rocha (2010) e André Crim Valente (2019). Nestes, é possível ter uma noção do que é a
argumentatividade e como ela se faz presente nas mais variadas formas de texto, com ressalva
de ambos os autores de que não se faz necessário estar em uma estrutura de texto argumentativo
para se ter a argumentatividade como uma característica do texto.
E, por último, tem-se a quinta marca que é a intertextualidade. Esta é uma relação que
existe no texto com um outro fora dele, ou seja, é mais uma marca que deve contar com o
conhecimento de mundo do leitor. No texto, a autora faz a seguinte citação “um discurso não
vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao
qual ele toma posição” (Maigueneau (1976.39), apud Koch (1986. 40), apud COSTA VAL,
1991). Isto é, não existe nenhum texto que tenha sido criado de maneira isenta a outros já
existentes. Para complementar isso, o autor ainda cita que alguns textos só fazem sentido
quando se conhece essa intertextualidade e ainda incrementa a ideia de que o senso comum
também faz parte desse processo, citando que apesar de não ter autoria é algo que todos
conhecem. Apesar disso ele faz um alerta de que isso pode abaixar o grau de informatividade.
Com esses embasamentos tonou-se possível conseguirmos notar algumas características
presentes no editorial “Preparem os aventais” da revista Veja.

Corpus e análise
O corpus é constituído de um editorial, cujo título é “Preparem os aventais”1, e de uma
capa de revista, ambos constantes da edição de 3 de abril de 2013 da Veja. Consoante
evidenciado nas considerações iniciais deste trabalho, a análise enfocará a figurativização do
discurso presente na capa e a argumentatividade do editorial. Para tanto, recorrer-se-á,
sobretudo, ao texto de Diana Barros (2004) acerca da figurativização, aos fatores de

1
Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/preparem-os-aventais/.
textualidade elencados por Beaugrand e Dressler (apud COSTA VAL, 1991) e aos estudos a
respeito dos modalizadores e de seu papel retórico.
Por questões de situacionalidade, cumpre ressaltar-se que a referida edição da revista
foi publicada um dia depois da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.° 66,
de 2012, popularmente conhecida por “PEC das domésticas”. Graças à PEC, estabeleceu-se a
igualdade de direitos entre os domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais, resultando
em um aumento no custo aos empregadores (VILAR, 2013).

Diante desse cenário, a Veja decidiu abordar a temática, ressaltando-a, inclusive, logo à
primeira vista do público leitor: na capa.

Figura 1: Capa da Veja de 3 de abril de 2013

Ressalte-se, primeiramente, a escolha do homem branco e engravatado. Trata-se de um


processo de figurativização do discurso. Por intermédio dessa figura, a Veja aludia à camada
social mais tradicionalmente privilegiada da sociedade brasileira — o homem branco abastado
— e, portanto, a última que se esperaria ver lavando louças. Dessa forma, visava a indicar que,
com o encarecimento da contratação de empregadas domésticas, mudanças sociais nos lares
ocorreriam, de modo que até mesmo os mais privilegiados teriam de arregaçar as mangas — o
que lhes seria, provavelmente, não muito agradável, conforme demonstra a fisionomia do
homem. Somada a isso, a expressão dêitica “VOCÊ AMANHÔ sugere ao leitor que esse lhe
seria o destino iminente, fazendo revelar que o público alvo da revista seria constituído por
indivíduos afetáveis pela PEC enquanto empregadores, isto é, pessoas da classe média.
Ainda na capa, a nota explicativa a respeito do conteúdo da edição deixa entrever a
favorabilidade da revista quanto à aprovação da Proposta. Isso se evidencia por “marco
civilizatório”, que dialoga com o interdiscurso “o Brasil deve seguir o exemplo dos países mais
avançados”, aspecto a ser retomado no editorial.
Voltando-se a análise ao editorial, percebe-se, em linhas gerais, que, como antecipara a
capa, almejava ao convencimento e à persuasão do leitor de que a aprovação da “PEC das
domésticas” seria positiva à sociedade brasileira.
No primeiro parágrafo, a construção retórica pauta-se na introdução de um suposto
problema inerente aos dispositivos legais brasileiros: “são irrealistas na abrangência e viram
letra morta por sua inaplicabilidade”.
Para isso, inicia-se o texto pela negação ao interdiscurso “a solução para o Brasil é a
criação de novas leis”, demarcada pela expressão “Não é por” — enquanto prova da existência
de tal interdiscurso, basta que se vejam as copiosas redações do Exame Nacional do Ensino
Médio que, na proposta de intervenção, defendem ações como “Cumpre ao Congresso Nacional
aprovar leis que…”. Em seguida, contrapõem-se o conteúdo do artigo 6° da Constituição
Federal, exposto por meio de uma paráfrase, e outros dispositivos legais a uma série de
contraexemplos pautados na estrutura do real, configurando-se um argumento pragmático.
Nesses exemplos, é imperioso ressaltar o uso modalizador de verbos no presente do indicativo,
como “vivem” e “sofrem”, indicando ser esse o status quo da sociedade brasileira em
detrimento de acontecimentos pontuais. Assim, a argumentação baseia-se, sobretudo, na
aceitabilidade, uma vez que não se evidenciam dados concretos, mas exemplificações que
visam a retratar a realidade visível pelo leitor. O discurso faz-se, então, crível ao enunciatário
ao incorporar elementos de seu cotidiano.
Dessarte, em um processo polifônico, antecipam-se e aparam-se os golpes da voz
opositora, implicando-se, por conseguinte, o fortalecimento da narrativa a ser defendida nos
parágrafos subsequentes.
Já no segundo parágrafo, a retórica edifica-se na oposição entre os arrimos legais citados
anteriormente e a “PEC das domésticas”, oposição essa explicitada ao enunciatário pelo
emprego do operador argumentativo adversativo “porém”. Na primeira linha, é apresentado ao
leitor o fato de que a revista “comemora” a aprovação da referida PEC, por considerá-la
“realista e aplicável”.
Perceba-se, primeiramente, que “comemora” é um modalizador, permitindo depreender
que a Veja posiciona-se favoravelmente à PEC. Essa constatação baseia-se em uma questão de
informatividade: sendo muito provavelmente um falante com satisfatório domínio da língua, o
enunciatário é levado a tal inferência, que se pauta na acepção do verbo comemorar. Como se
trata de um processo inferencial alicerçado em um referente textual, tem-se, pois, um
pressuposto.
Além disso, ressalte-se a ordem de aparição dos adjetivos “realista e aplicável”. Ao
serem dispostos dessa forma, suscitam-se duas antíteses — inclusive, antecipadas e enfatizadas
pelo emprego de “justamente”:
a) “irrealista” e “realista”; e
b) “letra morta” e “aplicável”.
Desse modo, somando-se isso à aparição de “porém”, o leitor é levado a uma
comparação opositiva entre os dispositivos citados no primeiro parágrafo e a “PEC das
domésticas”. O raciocínio que subjaz, então, é: como aqueles foram “os ruins”, logo esta deverá
ser “a boa”. Trata-se, novamente, de um processo de figurativização do discurso. Vê-se, com
efeito, como a coesão é fundamental à coerência ao permitir que a disposição dos elementos
textuais favoreça a retórica.
Ainda no segundo parágrafo, entretanto, é revelado que “as novas exigências legais
podem ter consequências negativas”. A menção da figura “Especialistas” reveste a informação
com o aspecto de um argumento de autoridade — por motivo análogo ao de “comemora”,
pressupõe-se que “especialistas” sejam pessoas que saibam profundamente do que tratam, pois,
do contrário, não seriam especialistas. Contribui-se, assim, com a construção do ethos da Veja:
“uma revista séria, que consulta os especialistas”. A informação é, todavia, suavizada pelo
emprego do modalizador epistêmico “podem” e pela expressão “em um primeiro momento”.
“Podem” indica uma possibilidade plausível, mas não tão convicta como em “devem”. “Em um
primeiro momento” pressupõe a existência de “um segundo momento”, permitindo-se a
antecipação de um contraponto às consequências negativas, como se verá no parágrafo
subsequente.
Em suma, trata-se de um processo concessivo, em que a “comemoração” é oposta por
possíveis e em um primeiro momento consequências negativas. Ao mesmo tempo, porém, dá
credibilidade à emenda, uma vez que a evidencia não como um projeto “ideal” e, portanto,
“irrealista”, mas como “aplicável” apesar dos contras — afinal, não seja esquecido o
interdiscurso do “bom demais para ser verdade”, relevante em um país cujos cidadãos são,
muita vez, assolados por fraudes2.
No último parágrafo, defende-se que “‘a PEC das domésticas’ vai ser entendida como
um formidável avanço social”.
Nesse sentido, ressalte-se o uso do vocábulo “dados”, que figurativa o discurso. Haja
vista que a PEC não fora aprovada havia muito tempo, subentende-se que se trata de dados
projetados, isto é, de projeções. Pode-se, pois, indagar: por que não se escolheu “projeções”?
Porque, diferentemente deste, “dados” carrega em si maior solidez, um “quê de verdade”.
“Projeções”, todavia, ressalta o teor probabilístico e, portanto, sujeito a equívocos desse tipo de
dado. Conclui-se, logo, que, em escolhendo “dados”, a Veja induz o leitor a crer que seu
posicionamento acerca da PEC é vero, porque fundamentado — sobre uma projeção, que se
omitiu.
Em seguida, perceba-se que se evidenciam as consequências positivas da PEC das
domésticas. Ressalte-se a oposição entre a “no começo” — o tal “em um primeiro momento”
— e “a longo prazo”, que remetem à antecipação efetuada no segundo parágrafo. Atrelado a
isso, perscrutem-se estes modalizadores epistêmicos: ao passo que “pode colocar” ressalta o
teor de possibilidade não definitiva, “mostrará”, no futuro do presente, indica convicção, certeza
— inclusive, veja-se que essa forma verbal, mais rebuscada, opõe-se à forma locucional com o
verbo ir, empregada nas demais partes do texto, como em “vão concluir”. Dessa forma, a Veja
conduz o leitor a crer que as consequências negativas seriam possíveis, mas passageiras,
enquanto as positivas seriam certas e duradouras.
Por fim, a alusão à “realidade dos países mais avançados” corresponde a uma referência
ao interdiscurso “o Brasil deve seguir o exemplo dos países mais avançados”, que muito
influenciou, por exemplo, a literatura brasileira até o Modernismo e que se motiva por aquilo
que o jornalista Nelson Rodrigues chamou de o Complexo de Vira-Lata.3 Desse modo,
configura-se em argumento pragmático, valendo-se da presença e da aceitabilidade de tal
interdiscurso para fazer crível perante o os olhos do leitor.

2
Por exemplo, em 2020, o Brasil apareceu no ranking dos cinco países mais afetados por fraudes digitais no Fraud
& Abuse Report (Arkrose Labs, 2020)
3
“a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo” (RODRIGUES apud
DOS SANTOS, 2019).
Conclusão
Levando-se em conta o que foi observado, o texto é constituído de expressões de
contraposição. Em um primeiro momento, as leis são apresentadas como propostas que não
atendem às expectativas da população brasileira; em seguida, a “PEC das domésticas” é
introduzida como algo que foge desse padrão, embora a custo de possíveis dificuldades que a
classe poderia enfrentar a princípio, mas que seriam superadas eventualmente. Esta relação de
sentido entre os argumentos é expressa na junção do uso de conectivos de coesão e dos fatores
pragmáticos de textualidade presentes no repertório. Partindo-se da intencionalidade do texto,
é possível enxergar elementos de textualidade na tecitura da argumentação por intermédio de
observações sobre:
● o contexto em que a revista e os seus leitores estão inseridos (situacionalidade);
● a preocupação com a compreensão da mensagem pelo público-alvo (aceitabilidade);
● a importância do conhecimento prévio adquirido por meio de outros textos
(intertextualidade); e
● as informações que são apresentadas ao leitor (informatividade).

Referências

ARKROSE LABS. Fraud & Abuse Report. Arkrose Labs, 2020. Disponível em:
<https://www.arkoselabs.com/wp-content/uploads/Fraud-Report-Q2-2020.pdf>. Acesso em:
14 de set. de 2022.

BARROS, D. L. P. de. Publicidade e figurativização. ALFA: Revista de Linguística, São


Paulo, v. 48, n. 2, 2004. Disponível em:
<https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4294>. Acesso em: 14 set. 2022.

COSTA VAL, M.G. Redação e textualidade. São Paulo – Martins Fontes, 1991.

DOS SANTOS, M.F. A Psicologia social do Complexo de Vira-Lata: Conciliando


Distintividade Positiva e Justificação do Sistema. Universidade Federal da Paraíba: João
Pessoa, 2019. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/16795>.
Acesso em: 14 de set. de 2022.
MENDES, M.R.S. Contribuição da teoria da argumentação na língua para os estudos da
retórica. São Paulo: Estudos linguísticos 39(1): p.998-1009, 2010.

VALENTE, A. C. Polissemia e interdiscursividade nos cartuns de Bruno Drummond: uma


abordagem linguístico-discursiva. Gragoatá, v. 24, n. 50, p. 785-808, 27 jan. 2020.

VILAR, I. Entenda o que muda com a PEC das Domésticas. Agência Senado, 2013. Disponível
em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/03/18/entenda-o-que-muda-com-a-
pec-das-domesticas>. Acesso em: 14 de set. de 2022.

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