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Excerto da tese de doutorado Historicidade e Clínica:

contribuições para o método fenomenológico-

hermenêutico na Psicologia de André Sendra de Assis

O ser-aí

Heidegger inicia o primeiro capítulo de Ser e tempo posicionando já

nas primeiras sentenças o cerne da questão referente ao ser do homem:

O ente que temos a tarefa de examinar, nós o somos a cada vez


nós mesmos. O ser deste ente é cada vez meu. No ser deste ente,
ele tem de se haver ele mesmo com o seu ser. Como ente deste
ser, cabe-lhe responder pelo seu próprio ser. O ser ele mesmo é
o que cada vez está em jogo para esse ente. (2009a, p. 63, grifo
do autor).

Dessa afirmação se extrai já uma estrutura referente à abertura

ontológica do homem, um existencial, que é o caráter anteriormente

mencionado de ser-a-cada-vez-meu. Ela aponta para a incomparabilidade

de cada existente, o que implica na suspensão radical das generalizações

temático-conceituais da condição ontológica do ser-aí. Isso se dá em

conformidade com a situação existencial de se ser um ente aberto

originariamente, jogado (Geworfenheit) em mundo histórico a partir do

qual cada um já é sempre uma organização particular de um horizonte

universal comum. Além disso, já se coloca nessa situação uma relação

tácita consigo mesmo, uma vez que o ser-aí já tem de se haver consigo
mesmo e responder pelo seu ser, o que já imprime uma oneração

existencial sobre o fato de cada um ser quem é. Ao mesmo tempo, o

acento no a cada vez e no estar em jogo apontam para uma determinação

existencial que não se encerra, mas, ao contrário, mantém o ser deste

ente em aberto.

Temos aqui a situação paradoxal do ser-aí, pois ele não é, não

possui nenhuma determinação quididativa que possa ser experimentada

aprioristicamente, porém já é sempre determinado pela sua situação.

Nisso reside o cerne da ideia de estar-lançado-no-mundo, pois as

situações (facticidade) que condicionam o ser-aí são sempre debitárias de

um mundo específico historicamente constituído.

O ponto fundamental desta questão é o fato de que toda e qualquer

determinação jamais pode aderir ao ser-aí de maneira plena e irrevogável.

Há sempre um lastro de negatividade que inviabiliza a realização plena

de determinações positivas, ou seja, o ser-aí jamais se totaliza, jamais se

conclui derradeiramente em um modo possível de ser si mesmo. Isso pode

ser compreendido à luz da seguinte sentença: “Existindo, o ser-aí é o seu

‘aí’” (Idem, p. 162). Trata-se de uma expressão que remete ao fato de que

o ser-aí é o que “está sendo”, ou seja, sua situação, seus

comportamentos, seu “aí”. Dessa forma, fica evidente que o ser deste ente

está sempre em jogo e se coloca sempre uma vez mais em seu caráter de

abertura, de poder-ser. Nisso consiste o traço originariamente

indeterminado do ser-aí. Sua indeterminação não é algo que aparece no

começo da existência e que acaba sendo suprimida na medida em que as


determinações do mundo se sobrepõem a ela. A indeterminação é

originária, pois é um traço inicial que sempre se mantém a cada momento

da existência. Contudo, o ser-aí, de início e na maioria das vezes, já

sempre “fugiu” da indeterminação. Por isso, ele não experimenta sua

negatividade constitutiva, pois já é sempre arrancado dela pelo mundo

que fornece contornos ônticos para sua existência. Ainda assim, sua

indeterminação ontológica nunca é suprimida de maneira absoluta, o que

mantém sempre em aberto o ser do ser-aí, impossibilitando que ele seja

do mesmo modo como um ente presente à vista, como uma mesa ou uma

cadeira é. No limite, ser um ente dotado do caráter de poder-ser equivale

a ser um ente indeterminado, negativo, estranho, estrangeiro

originariamente, mesmo que, de início e na maioria das vezes, este ente

exista sob o modo da familiaridade, normatividade e da retomada

comportamental de modos de ser historicamente sedimentados.

Na medida em que o ser-aí já sempre experimenta, de início e na

maior parte das vezes, sua determinação a partir do mundo, ele foge da

sua condição originária decaindo num modo de ser que o determina de

maneira derivada. Esse modo de ser é o modo impróprio. Esse modo é

impróprio pois o espaço existencial é constituído a partir de um horizonte

que precede uma abertura de si mesmo específica ou singular. De início,

o ser-aí acontece na impropriedade, decaindo no espaço impessoal,

desonerando-se de sua responsabilidade por si, na medida em que esta

é encoberta pelo “impessoal”, pelo “todos nós”, pelo “a gente”, que abriga

o ser-aí da sua estranheza constitutiva. Nesse espaço, que consolida e


condiciona uma cotidianidade mediana por meio da qual a existência

ganha certo automatismo, o ser-aí passa a relacionar-se consigo mesmo

como uma “coisa entre coisas”, como um ente presente à vista marcado

por propriedades específicas, obscurecendo o fato de que ele não possui

propriedades ontologicamente dadas, mas modos de ser. Desse modo, o

ser-aí acaba existindo, de início, sob o modo da fuga da sua tarefa

existencial. É importante ressaltar que não há nenhum juízo de valor na

ideia de fuga, de impróprio ou de impessoal, mas é a condição

fundamental para que o ser-aí seja. Heidegger se utiliza das noções de

próprio e impróprio para falar de modos possíveis de estar no mundo.

Não há qualquer relação direta da noção de impróprio com temas como

“cultura de massa” ou intelectualidade, como podemos acompanhar na

passagem abaixo:

Gozamos e nos divertimos como impessoalmente se goza; lemos,


vemos e julgamos sobre literatura e arte como impessoalmente
se vê e julga; também nos afastamos da massa como
impessoalmente se deve fazer; achamos revoltante o que se deve
achar revoltante. O impessoal, que não é ninguém e que somos
todos nós (mas não como a soma de todos), descreve o modo de
ser da cotidianidade. (Ibidem, p. 146, grifo do autor).

Essa fuga para o impessoal, não pode ser levada a cabo de maneira

completa, ao passo que sempre se mantém, ainda que de maneira mais

ou menos encoberta, a situação de se existir como um ente marcado pela

sua singularidade, pelo fato de que seu ser está sempre em jogo e por ter
de se haver e responder pelo seu ser. Sobre esta última afirmação,

Heidegger a sintetiza na estrutura existencial de ter-de-ser. “A ‘essência’

deste ente consiste em seu ter-de-ser” (Ibidem, p. 63). Há uma tarefa

existencial colocada aí e o ser-aí está comprometido com ela a sua revelia.

Desta tarefa não se pode se eximir radicalmente, por mais que dela se

busque (e é isso que na maioria das vezes se faz) esquivar.

É possível afirmar que Heidegger, mesmo sem ser o foco de sua

procura, abriu o espaço para a compreensão da gênese de todo e qualquer

transtorno existencial por meio da elucidação da estrutura fundamental

da existência. A condição de estar sempre em jogo e ao mesmo tempo ser

marcado pela tarefa de ter-de-ser é aquilo que de um modo ou de outro

aparece sempre colocado em meio a qualquer situação de sofrimento. A

existência não fornece garantias plenas e, pode se dizer, de forma quase

grosseira, que no sofrimento existencial, ou bem se busca dominar esta

situação, ou bem se sucumbe a ela. De todo modo, em ambos os casos,

o que se dá é uma dissensão em relação à condição humana.

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