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carituo10 Escravos patriotas No popular filme O patriota, um oficial britinico cavalga até a fazenda de Benjamin Martin, na Carolina do Sul, e oferece a liberdade a todos os escravos que lutarem no exército de Sua Majestade. Isso se baseia em fa- tos histéricos. No inicio da guerra, lorde Dunmore, governador real da Virginia, anunciou: “Portanto, assim, declaro livres todos os servos con- tratados, negros ou outros (pertencentes a rebeldes), que sejam capazes ¢ estejam dispostos a portar armas, em eles se unindo as tropas de Sua Majestade assim que possivel”.' Mais tarde, o general britfinico Henry Clinton fez oferta semelhante: “Todo negro que desertar do estandarte rebelde” gozaria da “total seguranga de obter dentro destas Linhas qual- quer Ocupagdo que considerar adequada”.? De fato, varios milhares de cativos da Carolina do Sul levaram a sétio ‘esas ofertas e fugiram para o lado britdnico em busca da sua liberdade> ‘Nao foi assim em O patriota, Na versio hollywoodiana da historia, 0 ofi- cial que ofereceu liberdade aos escravos da fazenda de Martin recebeu uma resposta bem inesperada dos trabalhadores negros que abordou: “Senhor, nao somos escravos. Trabalhamos esta terra como homens libertos.” Aqui ‘comega um grave exagero da licenga pottica: vemos negros felizes traba- Ihando nas fazendas como libertos na Carolina do Sul revolucionéria, no préprio coragio do Sul escravista, ‘Um pouco mais adiante no filme, um escravo chamado Occam alista- se na milicia, servindo no lugar do seu senhor. Embora isso nunca tenha acontecido na Carolina do Sul, Occam passa a portar armas em nome dos atriotas numa unidade integrada da milicia. $6 na Guerra da Coréia, diz Dean Devlin, um dos produtores do filme, americanos brancos € negros _ Voltariam a servir lado a lado. MITOS SOBRE A FUMDAGAG DOS ESTADOS UNIDOS ‘A meio caminho do filme, Occam vé um cartaz colado num quadro de sos do quartel. J& que Occam, como a maioria dos escravos, nao sabe -alguém o 1é em vor alta: Por ordem do GENERAL GEORGE WASHINGTON e do CONGRES- SO CONTINENTAL, todos os ESCRAVOS cativos que prestarem um minimo de UM ANO DE SERVICO ao EXERCITO CONTINENTAL terio LIBERDADE GARANTIDA e receberdo um soldo de CINCO XE- LINS a cada més de servigo. ‘cam, entéo, olha melancélico para o ar e sussurra para si mesmo: “S6 ds seis meses”. © documento lido para Occam, que é visto na tela ¢ parece visual- ite auténtico, contém mais erros hist6ricos numa tinica frase do que meira vista parece possivel. E uma total inveng4o que mostra de modo ‘adissimo a participagio dos afro-americanos na Guerra Revolucion’- . Nem George Washington nem o Congresso Continental fizeram nada recido com essa declaracao de alforria que supostamente precedeu em tis de oitenta anos 0 famoso decreto de Lincoln. Quando Washington assumiu comando das tropas continentais, proi- 1 0 alistamento de todos os negtos, fossem escravos ou livres. No entan- devido a grave escassez de contingente, logo teve de revogar uma parte sua ordem: negros livres que jétivessem servido teriam permisséo de se ulistar, mas os escravos continuaram de fora, Eles eram considerados um modo num exército republicano que lutava em nome da liberdade-* (0s soldados eram recrutados separadamente pelos estados e néo pelo sngresso Continental, como insinuado pelo cartaz lido para Occam. Mais -de, na guerra, alguns estados permitiram que negros servissem no Iu: 1 de brancos que tivessem sido convocados, mas na Carolina do Sul nao sabe de nenhum negro que tenha se alistado no Exército Continental rante toda a duragao da Guerra Revoluciondria, O Congresso de 1s aqueles mantidos em cativeiro era considerada absurda pela mai ss habitantes brancos da Carolina do Sul, que rejeitaram imediata gerira que o estado recrutasse os seus escravos, mas a idéia de dar at; ESCRAVOS PATRIOTAS tal proposta. “Ficamos muito desgostosos aqui com 0 Congresso a nos recomendar que armemos 0s nossos escravos”, escreveu Christopher Gadsden. “Isso foi recebido com grande ressentimento, como um passo perigosissimo ¢ pouco politico.” Sem a menor disposigéo de militarizar os escravos, os sulistas brancos enfrentaram a escassez de contingente oferecendo prémios especiais. Os escravos figuravam na politica de prémios, mas ndo como sugerido pela suposta declaragao de alforria de Washington: prometia-se a cada bran- o, ao se alistar, um escravo para si. Mesmo que o Congresso tivesse re- ccrutado escravos, coisa que nfo fez, e mesmo que tivesse oferecido prémios os escravos, em vez de prémios em escravos, o prémio nao consistiria em xelins, que o Congresso nao tinha, mas na moeda continental desvalori- zada, que cle imprimia a vontade. Se Washington e o Congresso Continental tivessem mesmo oferecido a liberdade em troca de um tinico ano de servigo, quando o prazo de servico- padrio para todos era de “trés anos ou a duragio da guerra”, dezenas de milhares de escravos teriam corrido para se alistar. Isso teria desorganiza- do gravemente a sociedade sulista, j4 tropegando com o éxodo em massa de escravos que fugiam para o lado britinico. George Washington, que perdeu pelo menos vinte dos seus préprios escravos para os britnicos, di- ficilmente enfraquecetia o seu domtnio sobre os trezentos cativos restantes oferecendo a liberdade aos que se alistassem no Exército Continental.” Além disso, se Washington ¢ 0 Congresso Continental tivessem oferecido aliberdade aos escravos, quem indenizaria os senhores? Jéfalido, o Congres- 80 ndo seria capaz de arcar com a despesa — mas libertar escravos sem inde- nizar os senhores provocaria, com toda a certeza, uma revolta imediata dos ‘brancos do Sul. A unio teria desmoronado bem no comecinho caso Washing- ‘ton ¢ o Congresso Continental seguissem o enredo de O patriota, Por que os criadores de O patriota fabricaram este documento engana- __ dor, com todas as mentiras ali contidas? “A. grande e dolorosa ironia da Revolugio Americana € o fato de ter sido uma guerra travada pela liberda- de"; explica o roteirista Robert Rodat. Os americanos brancos, enquanto de resolver essa contradigdo inerente ¢ fazer a luta pela liberdade “E08 coincidir com a dos seus senhores brancos; mas, para conseguir MiTOs SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS ESCRAVOS PATRIOTAS 7 : : eee Na verdade, a contradigio entre a escravidao ¢ a Revolugdo Americ ‘¢ improvével casamento de interesses, os criadores de O patriota tive- eng nt tevolucio Americana de vilacerar —-ndo apenas distorcer —a verdade histGrica. no foi resolvida com tanta facilidade quanto em O patriota. Durante a (0 desejo de resolver a conttadigao inerente & Revolucio levou Rodat c Feiasoe dee nat brancos do Sul uniram-se em oposigio aos designios stiar uma hist6ria extremamente implausivel. Perto do fim do filme, a 3 « Denes meee que ameagavam a propria base da sua sociedade nilia de Benjamin Martin é abrigada por uma comunidade de negros Pidas toliaines et meats Depois da guerra, ainstituigéo da escra- zidos formada por seus escravos-que-ndo-eram-bem-escravos. Essa gente Raa al : asi ameagara gravemente a prépria existén- sgre chega a realizar uma festa de casamento 20 som da batida de tam- eee milhares de escravos de fato fugiram dos ites africanos para Gabriel, filho de Martin. £ assim que gostarfamos de ae codigos resposta, OS proprietérios brancos endureceram. Os tigi taginar 0 nosso passado revolucionério: uma unio feliz entre ex-traba- iti ee anaes eenee veeetereie a0 perfodo anterior & Guerra Civil adores negros ¢ uma familia de grandes fazen s brancos. eerie lireto. juerra Revolucionéria. Isso é “verdadeira hist6- ‘Aconclusio da hist6ria de Occam é ainda mais inacreditavel. Quando ea de que negros ¢ brancos se uniram na esteira da Revolugio soldados se preparam para lutar e talvez morrer em Cowpens, um ca- ? para “construir um mundo todo novo” ndo passa de fantasia auto-elogiosa, arada que antes fora um fanético intolerante observa a Occam que ele “ cumprin o seu tempo de servigo. (Nem de acordo com os termos do \6prio filme isso se sustenta: 0 suposto cartaz de alfortia sé se aplica aos Idados continentais, mas Occam € um miliciano.) Embora Occam, a0 sntrério dos soldados brancos, tenha liberdade para ir embora, recusa- ‘a partir, pois se tornou um verdadeiro patriota: “Agora estou aqui por inha livre vontade”, anuncia. O fandtico regenerado responde: “Sinto- ‘ehonrado de té-1o conosco. Honrado”, Entio, na cena final, Occam¢0 AHISTORIA EM PRETO-E-BRANCO O enaltecimento do patriotismo negro 6, por si s6, um fendmeno histéri- co, Na época da Revolugao e décadas depois, pouco se falou sobre a pre- senga negra na Guerra Revolucionéria. Os primeiros historiadores nao deram nenhum papel especial aos patriotas negros, a0 mesmo tempo em novo amigo branco partem para “construir um mundo todo novo”, a que ignoraram ou reduziram a importdncia do éxodo em massa de escra- smegar por tina cata para Benjamin Martin. vos parao lado britanico, Quando chegaram a mencionar os escravos que Embora 0 enredo seja inventado, O patriota professa autenticidade a ara o lado inimigo, enfatizaram o prejufzo causado aos senho- ist6rica, “Sentimos que, embora estivéssemos contando uma hist6ria de oe te Caroling Gein bad pad de 1775 e 1783, 0 estado ccio”, diz.o produtor Mark Gordon, “o pano de fundo eraaverdadeira s foi ronbado negros, avaliados em cerca de istéria.” E por isso que Gordon e sua equipe decidiram consultar a Tat ited délares”, escreveu Benson Lossing em seu Pictorial Field- nithsonian Institution, que figura nos créditos fina. “Quem ouve as Pa> ofthe Revolution, citando o antigo historiador David Ramsay.* wvras ‘Smithsonian Institution’ ”, explica Gordon, “pensa em coisa 9&- ¢ repente, em meados do século XIX, a idéia do patriotismo “de cor” 2, coisa importante.” assumiu grande importiincia politica. Os abolicionistas apontaram a par- ‘Amfstica da “histéria” ¢ utilizada como apoio para ficgio. O patriota ee de negros na Revolugao Americana como base para um forte onta una istéria em que gostarfamos de acreditar:a Revolugio Americ tara liberdade cone pessoas ajudaram 0 americans brancos a conquis- a foi o primeiro passo da longa estrada rumoao fim da escravidao. A Guerra. podiam ter a sua liberdade negada? aaa scrnmdencs coma ae promessa de iberdade ea sua eugestio de = im 2 1855, William Nel, abolicionista negro de Boston, publicou ivro chamado The Colored Patriots of the American Revolution sualdade, serviu, segundo consta, de projeto tanto para a independé ae Pee ae ee eccunneee - (Os patriotas de cor da Revolugdo Americana). A obta de Nell, de acordo MiTOS $08KE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS coma ntrodugo escrita pelo colega abolicionista Wendell Phillips, preten- dia “deter a maré de preconceito contra a raga de cor” e “provar que os homens de cor sio patriotas”? Harriet Beecher Stowe, numa segunda in- trodugéo, afirmou que os patriotas negtos deviam ser mais enaltecidos que ‘0s brancos: “Nao foi pela sua propria terra que lutaram, nem sequer por uma terra que os adotou, mas por uma terra que os escravizou € cujas leis, até na liberdade, com mais freqiiéncia oprimiram do que protegeram. A bravura, em tais circunstancias, tem uma beleza e um mérito.especiais”."° Como sugere o titulo, Nell concentrou-se exclusivamente nos 5 mil ne- gros que lutaram do lado dos americanos. Nao mencionou as dezenas de milhares de escravos que fugiram para o lado britdnico — isso dificilmente conquistaria adeptos para a causa abolicionista. Quando tratou da Caroli- na do Sul, jé que no podia indicar nenhum soldado patriota negro, citou o famoso Charles Pinckney: “No decorrer da Revolusio, os estados do Sul foram continuamente invadidos pelos britinicos, e todos os negros dali ti- veram oportunidade de fugir, mas poucos o fizeram.”"* Em vez de fugir, disse Pinckney, os escravos da Carolina do Sul trabalharam lado a lado com ‘os seus senthores para fortificar-se contra os ataques britdnicos. Ironicamente, 10 abolicionistas daquela época ndo estavam em condigées de questionar esse quadro idflico de escravos felizes durante a Revolugio Americana.”* Depois da Guerra Civil e da Reconstrugéo, durante a era do sistema Jim Crow de segregagio entre brancos e negros, os negros da Revolugéo ‘ocuparam mais uma vez 0s tiltimos lugares. Em 1891, um dos principais historiadores do pafs, John Fiske, falou em nome da sua época ao ignorar o registro hist6rico e afirmar simplesmente que escravos felizes declina- ram da oferta de liberdade de lorde Dunmore: ‘As relag6es entre senhor ¢ escravo na Virginia eram téo agradéveis que & oferta de liberdade cafa em ouvidos moucos € desinteressados, Com tra- batho leve e alimentagdo generosa, a vida do negro da Virginia era fli. senhor e nada tina a ganhar rebelando-se.!? Edward Eggleston, escritor da época, fez um uso cutioso do mito dos “<5 cravos felizes” em seu argumento em prol da inferioridade negra. Os me$i8 (..) Ele se orgulhava de sua ligagio com a propriedade e a famifia do sea ESCRAVOS PATRIOTAS ‘eram to desprovidos de capacidade mental, afirmou, que morreriam em Processos evolutivos naturais; essa seria a “solucio final” para o “problema do negro”. Como prova de sua incapacidade de euidar de si mesmos, Eggleston deu o exemplo dos primeiros esforgos de emancipagio por volta da época da Revolugio, que teriam resultado dos “padrées morais aperfei- goados” dos brancos, néo do esforgo de uma “raga preta” fraca demais para “impor os seus direitos”. Ao deixar de reconhecer os muitos ¢ vatiados ¢s- forgos que os negros fizeram para conquistar sua liberdade durante a Revo~ lugio, Eggleston perpetuou uma das maiores mentiras hist6ricas: “O negro no possufa nenhuma capacidade para auxiliar a sua prOpria libertagio. Contanto que tivesse bastante comida e pudesse saciar as suas paixdesani- — ‘mantinha-se feliz e contente.”* iward Eggleston também escreveu livros didéticos para criangas; naturalmente nenhum dos seu textos menionava a partcipcto negra na Revolugio Americana.' Também nada mencionavam 22 outros livros didéticos escritos entre o final da Reconstrugio eo inicio do movimento pelos direitos civis.1 Da época de Ulysses S. Grant até a de Dwight D. Eisenhower, os escritores de livros didaticos excluiram por completo 1/6 des amercanos da €poca revolucionéria.” ‘mesmo fez a maioria dos historiadores profissionais. Com - cas exceg6es (mais notadamente Herbert apthekes, ‘comunista psp nas décadas de 1940 ¢ 1950), 0s escritores brancos ignoraram.a presenga negra. na Revolugao durante um século inteiro, da Guerra Civil até a década de 1960. Coube aos historiadores negros contar eles mesmos a histéria. neo, 1883: George W. Williams inclu, em sua abrangente History of e Negro Race in America, from 1619 to 1880 (Histéria da raga negra na aus de 1619 2 1880), uma extensa discussio da época revolucioné- ia. Comegou expondo a hipocrisia dos revolucionérios brancos: O sentimento que adornava os discursos dos oradores | (...) era “a igualda- de dos direitos de todos os homens”, Mas os escravos que arrastavam suas orrentes sob seus olhos, a quem se negavam 0s mais comuns ditits de wumanidade, que eram avaliados como gado ¢ como iméveis, eram teste- ‘munhas vivas da insinceridade e da incoeréncia dessa declaragao."* MiTOS SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS Ento, em vez de limitar sua atengdo A contribuicio dos patriotas negtos, Williams fez uma investigaco séria da politica racial envolvida no ecru tamento militar. Mostrou, passo a passo, como Washington e o seu Con selho de Guerra proibiram o alistamento de negros durante o cerco de Boston e depois explicou como a declaragao de liberdade de Dunmore os forgou a voltar atrés. Descreveu a fuga de escravos para 0 lado britanico ce as débeis tentativas para deter esse éxodo dos patriotas brancos, que alegavam ser “amigos verdadeiros” do povo que mantinham em cativei- ro. De repente, contudo, Williams introduziu em sua andlise clara e direta ‘uma demonstragio batida de patriotismo tradicional: “A luta continuow centre tories e whigs, entre traidores e patriotas, entre 0 egofsmo e o espf- rito de nobre consagragio & causa justa dos americanos”, escreveu.” ‘Williams tentou transpor um caminko dificil: queria contar a hist6ria do ponto de vista negro, mas no podia demonstrar sentimentos anti- americanos nem pré-britanicos. ‘Apesar da sua hesitagdo, Williams chegou a uma concluséo verdadei- ramente radical: O alistamento no exército nio criou na pritica a emancipagto do escravo, ‘como pensaramn alguns. Os negros eram vistos como gado por ambos os cexércitos e ambos os governos durante toda a guerra. Este 6 0fato frio da hhistOria, e nfo € nada agradvel de contemplar. O negro ocupow a posigio. anémala de escravo americano e de soldado americano. Foi soldado na hora do perigo, mas gado em tempo de paz” Essa grave avaliagao s6 seria repetida por escritores brancos dali a 3/4 de século, Embora a obra de Williams fosse ignorada pelos estudiosos brancos, dois especialistas negros que escreveram na década de 1920, Carter G- Woodson e W. E. B. Du Bois, prosseguiram de onde Williams parara- ‘Woodson, muitas vezes rotulado de “pai da histéria do negro”, organizou ‘Journal of Negro History em 1916, ¢ em 1922 publicou uma abrangente pesquisa que se tornou o texto bésico sobre o assunto durante 25 anos: ‘The Negro in Our History (O negro em nossa hist6ria). Woodson tratou a ESCRAVOS PATRIOTAS fuga de escravos para o lado britinico de maneira simples e direta, sem desculpass acrescentou também que “um corpo de escravos fugidos que se intitulava Soldados do Rei da Inglaterra incomodou durante vatios anos © povo que vivia no rio Savannah, ¢ houve muito medo de que os negros livres e repelidos da Nova Inglaterra fizessem o mesmo com os colonos de sua regio” " No encerramento da guerra no Sul, Woodson concluius “Seguiu-se tamanha reago contra a elevacio da raca a cidadania que boa parte do trabalho proposto para promover o seu bem-estar e para prepa- rar amanumissio se desfez”.” LA se foi o conto de fadas com final feliz. A Revolugéo Americana causou tanto bem quanto mal. Em 1924, Du Bois, socialista e fundador da NAACP (National Associa- tion for the Advancement of Colored People) seguiu a linha basica de ‘Woodson em sua hist6ria informal The Gift of Black Folk: The Negroes in the Making of America (O dom da gente preta: os negros na formagao dos Estados Unidos). Du Bois discutiu abertamente 0 “patriotismo” idios- sincrtico dos soldados negros: i \ (seu problema como soldado sempre foi peculiar: nao importa pelo que Juravam os seus inimigos e ndo importa pelo que lutava a América, o ne- ‘gr0 americano sempre Iutou pela prépria liberdade e pelo respeito & sua raga, Fosse qual fosse a causa da guerra, portanto, a sua causa era especi- almente justa. Ele aparece (..) sempre com dupla motivagio: desejo de se opor ao chamado inimigo do seu pais 20 lado dos seus concidadios brancos e, antes disso, o motivo de merecer o respeito daqueles cidadéos ¢ garantir a justiga para o seu povo.”* Em 1947, John Hope Frankdin tratou da fuga dos escravos para o lado briténico em seu famoso livro para alunos universitérios — From Slavery 40 Freedom (Da escraviddo a liberdade) —, mas a hist6ria continuou num GieFo, contada apenas como “histria dos negros”. Apesar da obra de ams, Woodson, Du Bois ¢ Franklin, os negros ainda ndo foram inclut- 1a narrativa basica da Revolugio Americana* S6nadécadade 1960 osnegros foram novamente considerados “presen- nha criaco do nosso pafs. Em 1961, outro especialista negro, Benjamin MITOS SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS icou um relato que era ao mesmo tempo penetrante e comple~ See Neon the Aran Revlon (Ome a evalu Ars 1a) A linha mais amplas da discuss js tinham sido ragadas antes, mas Quarles acrescentou detalhes importantes, ¢ 0 momento foi perfeito. Entre os profissionais da histéria, a obra-prima de Quarles foi considerada “um l- ‘yro-bomba” > Jovens historiadores brancos, influenciados pelo movimento dos direitos civi, adotaram e ampliaram a obra de Quarles. Nas décadas se- guintes, especialistas negros e brancos produziram um tesouro de monografias ¢ estudos aprofundados descrevendo como os afro-americanos viveram a Revolugao e o impacto de suas ag6es sobre a politica da guerra. [Em parte mas ndo no todo, essas novas informagées conseguiram che- gar até o péblico em geral. Hoje, como na década de 1850, os negros do Norte que conseguiram a liberdade lutando junto com os patriotas so homenageados, mas nio os escravos do Sul que fugiram para o lado britd- nico. Libertyl, o livro e a série de TV, apresenta James Lafayette, escravo que conquistou a liberdade servindo de criado pessoal e cavalarigo do marqués de Lafayette, como um dos cinco “retratos” bésicos de toda a Revolugéo Americana” (Os outros so o rei Jorge Il, George Washing ton, Benjamin Franklin e, pot razées ébvias, Abigail Adams.) A Blac! Patriots Foundation lidera hoje a tentativa de colocar um “Memorial dos Patriotas Negros da Guerra Revolucionéria” no Washington Mall, embo- ra ninguém parega muito interessado em erigir um monumento 20s escra- ‘vos que buscaram a liberdade lutando ao lado do inimigo. UM CONTO DE DUAS HISTORIAS HE duas hist6rias que podemos contar: (1) nos eados do Nore durante Revolugio Americana, os escravos conquistaram a liberdade Iutando 20! dos patriots brancos,¢(2)nosestados do Sul durante a Revolugio Ametcan ‘osescravos fugiram dos senhores patriotas para encontrar a liberdade wie britanico. A primeira é bem atraente para a nossa época, masa segunda ie Se tentamos mostrar a Revolugio Americana como uma batal bem contra o mal, enfrentamos 0 fato inegivel de que muitos entre o> ESCRAVOS PATRIOTAS principais patriotas possufam escravos. A escravidio € o pecado original da América — mas, quando nos apegamos & historia de que mais gosta- ‘mos, escondemos essa mancha de uma América perfeita. Preservamos 0 bom nome dos fundadores retratando a Revolug&o como uma forga pro- gressista que desferiu um sério golpe na instituicdo da escravatura. A primeira hist6ria parece absolver 0s revolucionétios dos seus pecados, ‘enquanto a segunda os torna responsaveis pelos seus crimes. Mas contat a primeira hist6ria ¢ ao mesmo tempo ignorar a segunda exige grave manipu- Iago dos indicios hist6ricos. Isso é feito conscientemente e néo com inocén- cia, pois, desde a publicagéo de Negro in the American Revolution, de Quarles, hhé mais de quarenta anos, ahist6ria do éxodo negro no momento da origem da nossa nacio € conhecida e aceita pela comunidade académica. Aabordagem mais simples ¢ levantar uma muralha. Dos 13 livros di- daticos atuais para o ensino médio e fundamental, s6 um menciona que serviram mais negros entre os briténicos do que entre os patriotas.”° Ne- nhum menciona que alguns dos que lutaram pelos patriotas foram devol- vidos a escravidio com o fim da guerra. Nenhum menciona que se sabe que vinte escravos de Washington e pelo menos 23 de Jefferson fugiram para o lado britinico.®” Nenhum menciona que os patriotas brancos usa- ram o medo das fugas ¢ levantes de escravos para recrutar soldados para ‘4 sua causa. Como concesséo parcial aos fatos, alguns mencionam a de- claragio de lorde Dunmore, Nenhum dos livros, contudo, cita algum in- dividuo que tenha lutado do lado britanico, embora todos identifiquem € homenageiem alguns que lutaram com os pattiotas. ‘Outra abordagem é distorcer a importincia dos eventos manipulando os niimeros. A maioria dos textos se gaba de que 5 mil negros se tornaram sol- dados americanos, mas 0 niimero que fornecem para os “outros” esctavos __ em busca de liberdade é menor. Alguns mencionam trezentos, niimero dos. {que se uniram a Dunmore nos primeiros cinco dias; um menciona quinhen- ‘0s, ntimero de tripulantes de um tinico navio britanico.* Esses ntimeros no Slo tecnicamente inexatos, mas séo seriamente enganadores; 0 ntimero de Patriotas negros no decorrer da guerra inteira é comparado ao nimero de ‘sctavos fugidos no decorrer de alguns dias. Um texto ressalta que 0 proprio Jorde Dunmore possufa 57’ ‘escravos, mas deixa de observar que Washington MITOS SOBRE & FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS ‘Ao aplicar um padro dplice, esses livros conseguem contar uma his- t6ria e suprimir a outra, Declaram orgulhosos que a Revolugao, com a sua ret6rica de “liberdade” e “escravido”, rachou a instituigo que mantinha meio milhio de americanos em cativeiro. Milhares de escravos, dizem, con- seguiram negociar a sua liberdade lutando ao lado dos patriotas. Os negros livres também se tornaram soldados e marinheiros patriotas, ¢ tanto escra- vyos quanto libertos se distinguiram em combate, Num nivel mais amplo, afirmam os livros, a ideologia revolucionéria ajudou a deflagrat a morte da escravidio no Norte. Em 1777, Vermont estipulou que todos os escravos nascidos dali em diante seriam libertados ao chegar & maturidade (22. anos para os homens ¢ 18 anos para as mulheres). Em 1780, a Pensilvania foi atrés, com limites etérios mais conservadores (28 anos para os homens, 21 para as mulheres), € no infcio do século XIX todos os estados do Norte tinham tomado algumas providéncias para o fim da escraviddo.” ‘A outra hist6ria, segundo a qual os esctavos pertencentes a patriotas famosos como Washington e Jefferson fugiram para o lado britanico em busca da sua liberdade, ndo funcionaria tZo bem com o pablico moderno. Imagine uma trama alternativa para O patriota: a meio caminho do fil- ‘me, 0s escravos de Benjamin Martin fogem para lutar sob 0 comando do coronel Tavington, 0 sinistro vildo britanico do filme; na cena de batalha seguinte, Martin, 0 patriota, mata trés dos seus antigos cativos junto com 0s sete casacos-vermelhos de sempre. Nao € isso que quercmos ver. ‘As duas hist6rias no cocxistem com facilidade. Funcionam com pro- pésitos contrérios, uma anulando a outra. O objetivo da primeira hist6- ria, na qual 0s patriotas conseguem manter 0 elevado terreno moral, € anulado quando vemos escravos fugindo dos seus senhores patriotas para buscar a alforria a0 lado do inimigo. Se estamos tentando determinar quem foram os “mocinhos” da Guerra Revolucionétia, temos de escolher uma das duas narrativas conflitantes. HG outra maneira de olhar essas hist6rias. Se nos concentrarmos na experiéncia negra em vez de no modo como as historias retratam os bran cos, de repente as duas se fundem. (Os afro-americanos, tanto no Norte quanto no Sul, usaram a Revolt ‘do para promover a causa da liberdade negra. Numa guerra entre brantcos, ESCRAVOS PATRIOTAS ficaram do lado de quem oferecesse mais esperanga de alforria. Agiram estrategicamente em nome dos seus interesses, nfo por algum compro- misso anterior com americanos ou britanicos. No Norte, onde os britani- ‘cos eram fracos ¢ os patriotas estavam atrés de soldados, uniram seu destino ao dos americanos. No Sul, onde os britanicos Ihes ofereceram liberdade ¢ pareciam (pelo menos nos diltimos anos) capazes de cumprir essa pro- ‘messa, correram para o estandarte real. O objetivo era liberdade e eles a petseguiam do jeito que foi possivel. Essa é a versio simplificada — a trama real teve muitas viradas e des- vios. No Norte, os escravos tiveram de negociar com muito cuidado para garantir que a sua contribuigo & causa dos patriotas de fato resultasse em liberdade; em muitos casos, os brancos tentaram renegar as suas promessas depois da guerra, No Sul, os escravos tiveram de sopesar as opis e avaliar as conseqiiéncias antes de fugir para junto dos briténicos: quais eram os perigos? Os britdnicos realmente thes concederiam a liberdade? Valia a pena abandonar casa e familia pela mera possibilidade de uma vida melhor? No fim das contas, os perigos enfrentados pelos escravos do Sul que tentavam fugir eram considerdveis. Muitos foram capturados por patrulhas patriotas escravistas. As vezes, quando os britdnicos recebiam levas de es- cravos fugidos, os que chegavam eram mandados de volta, Milhares sucum- biram a doencas, principalmente varfola, para a qual nfo tinham imunidade. Os que chegaram até 0s britanicos e sobreviveram foram transformados em trabalhadores bracais, criados ou soldados. Labutaram em fazendas nada diferentes daquelas de onde tinham safdos atenderam as necessidades pes- soais dos oficiais britdinicos, que se tornaram os seus novos senhoress uni Famse ao exército do rei por um prazo de servico indefinido — alguns serviram depois nas Antilhas e até nas Guerras Napolenicas. Muitos fo- tam dados como escravos astiditos brancos legalistas como indenizacio pela * Propriedades, Em Yorktown, os negros que contrafram varfola expulsos do acampamento britanico, sem ter para onde ir a néo ser ae P __ *Plantcie entre os exércitos adversérios. Mesmo se nao tivessem sido ex- ‘Pulsos, seriam capturados depois que os britdnicos se renderam, ¢ sofreram Conseqiiéncias de se unir ao lado perdedor. tuitos provaram a liberdade. No final da guerra, os britdnicos trans- ram 3 mil ex-escravos de Nova York para o Canad4. Como pessoas MrTOS SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS livres, néo escravas, receberam pedagos de terra — os piores que havia, € claro. Outros foram para Londres, onde enfrentaram dificuldades. Alguns conseguiram fugir para florestas fechadas ¢ pantanos timidos, onde so~ breviveram durante anos em suas préprias comunidades negras. (Apesar do que vemos em O patriota, nao hi registro de brancos ricos realizando complexas ceriménias de casamento nesses enclaves de refugiados negros.) ‘Alguns milhates acabaram indo parar em Serra Leoa, a colonia africana criada por negros anteriormente escravizados. ‘No total numérico, mais escravos fugiram do Sul durante a Revolugéo ‘Americana do que nos anos que precederam a Guerra Civil, época 4urea da Ferrovia Subterrinea — a rede de auxilio aos negros que fugiam para o Norte. Segundo o censo dos Estados Unidos, 16 escravos fugiram de se~ nhores da Carolina do Sul em 1850, ano da Lei do Escravo Fugido. Como ontmero total de escravos residentes no estado era de 384.984, isso repre- senta apenas um a cada 24,061. Em 1860, ano em que Lincoln foi eleito presidente, 23 escravos fugiram — um a cada 17.501." Esses ntimeros murcham quando comparados com os da Revolugio: nos trés éltimos anos da guerra, vrios milhares de escravos da Carolina do Sul fugiram dos seus senhores.®* A emigragio revoluciondtia foi maior € mais concentrada no tempo. Ao contrério da Ferrovia Subterrinea, ameagou gravemente o fun cionamento do sistema de grandes fazendas do Sul escravista. Nas palavras do historiador Gary Nash, a fuga de negros durante a Revolugio America- nna “representa o maior levante esctavo da nossa hist6ria”* No nosso jeito de conto de fadas de contar a hist6ria, essas propor- ‘¢6es se inverter: a Ferrovia Subterrinea é louvada em todos os livros didéticos, enquanto a fuga para a liberdade durante a Revolugio € igno~ ada ou subestimada. Na verdade, 0 éxodo mais impressionante dos anais da escravidio norte-americana ainda nfo foi homenageado com um nome ou rétulo, Nao é por acaso. Nao gostamos de ver os nossos inimigos, 05 britanicos, como libertadores; na histéria da Ferrovia Subterrénea, pelo contrério, este papel é conferido a bons americanos brancos — os abo~ licionistas. A Ferrovia Subterrnea mostra os racistas do Sul, como Simon Legree, como adversétios — no temos problema nenhum com isso. Mas, para contar a saga revolucionéria completa, patriotas que tinham escravos, ESCRAVOS PATRIOTAS como George Washington, Thomas Jefferson ¢ Patrick Henry, teriam de representar esse papel, ¢ assim o evitamos. Para salvar as aparéncias, 08, escritores americanos populares deixam de lado uma excelente oportuni- dade de enaltecer o espirito tenaz da liberdade e estender a hist6ria da Revolugao a pessoas que antes foram marginalizadas. Analisemos a hist6ria de um escravo fugido, Boston King. Em 1780, para fugir punigio do seu senhor, King colocou-se a servigo do exército britanico em Charleston, na Carolina do Sul. Caiu doente de variola; quando se recuperou, tornou-se criado pessoal de um oficial britanico, depois de um capitio da milicia¢, finalmente, do seu oficial comandante, que Ihe confiow uma mensagem importante que tinha de ser levada atra- vés do territério controlado pelos americanos. Se capturado, seria man- dado de volta para a escravidao, mas conseguiu cumprir sua misso. Como recompensa, recebeu “trés xelins e muitas lindas promessas”. Entao, uniu-se tripulacéo de um navio de guerra bi Desember- cou em Nova York, ainda sob ocupagio britinica, e foi contratado como carpinteiro por um senhor depois do outro, Nao recebeu nenhum paga- mento durante meses e foi forgado a se alistar num rebocador. Depois que © seu navio foi capturado por uma baleeira americana, foi mandado para Nova Jersey como prisioneiro. Embora recebesse comida suficiente e tives- se permissdo para estudar a Biblia, estava decidido a fugir do confinamento. Eritando por pouco a vigilancia dos guardas, vadeou um rio por mais de uum quilémetro na maré baixa e acabou conseguindo voltar a Nova York. A guerra entio ja tinha terminado e senhores de todo o Sul foram a Nova York procurar pessoas que afirmavam ter sido seus escravos. Ele evitou 08 cagadores de escravos tempo suficiente para conseguir alojar-se num navio que ia para a Nova Esc6cia, Lé, instalou-se em Birchtown, a maior comuni- dade de negros livres do hemisfério ocidental, e tomou-se pregador.” is uma fébula verdadeira ¢ herGica da Revolugio Americana, mas nfo sRarece nos vos nem nas histrias populares, Ha outros casos como ese George, que também se tomou pregador, escapou primeiro de um _ Senhor crudelissimo, depois dos indios que 0 capturaram e mais uma vez de ‘um patriota influente, George Galphin. Fugit itn nfluente, iphin. Fugiu para o lado britdnico ¢ logo o J0garam na prisio por terem entendido errada a sua pregagio. Depois de solto, MiTOS SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS 1 | | ‘pegou varfola e, enquanto convalescia, escapou por pouco da morte no bor bardeio americano de Savannah. Trabalhou como agougueiro no tertit6rio controlado pelos britinicos, mas 0s soldados britanicos Ihe roubaram as suas economias, Também conseguiu passagem para a Nova Esc6cia.* ‘Thomas Peters, natural da Africa ocidental escravizado com 22 anos, escapou do seu senhor em 1776 e lutou durante o restante da guerra numa unidade do exército britanico chamada Guias ¢ Pioneiros Negros. Em 1783, no fim da guerra, Peters migrou coma familia para a Nova Esc6cia, Em 1790, viajou de volta pelo Atlantico para entregar em mos uma pe- tigdo de outros refugiados negros as autoridades de Londres: queriam mudar-se para um lar mais hospitaleiro e ser tratados “como stiditos li- vres do Império Britanico”, Dois anos depois, Peters e quase 1.200 outras pessoas, inclusive Boston King e David George, partiram para Serra Leos. Foi a quarta viagem transatlantica da notivel carreira de Thomas Peters.” Embora casos como esses sejam cheios de dramaticidade ¢ aventura ¢ ‘embora enaltecam 0 desejo apaixonado de liberdade a qualquer custo, nés 08 consideramos inadequados para as hist6rias populares ¢ os livros didéticos, porque os protagonistas estavam “do lado errado”. Essa € uma visio estreita demais da nossa heranga revolucionéria. Boston King, David George, Thomas Peters e incontaveis outros escravos fugidos foram rebeldes, tanto quanto todos 0s outros. Exemplificam a busca de liberdade — mais ainda, talvez, que a maioria dos herdis que normalmente louvamos. A hist6ria do nascimento do nosso pais fica mais profunda e mais ampla quando preferimos ndo censurar cessas lutas intrépidas pela liberdade que a Revolugdo tornou posstveis. avin 11 Britanicos brutais Podemos todos imaginar o inimigo na Guerra Revolucionétia — os casa- cos-vermelhos, em formagio completa de combate. Essa gente era “es- trangeira” em seu mais completo sentido. Eram soldados vindos do outro lado do oceano, decididos a destruir os americanos, © inimigo, depois de identificado, ¢ facilmente transformado em vi- io. A maneira mais prética de justificar a matanga intencional é retratar 0 adversério como brutal. Em toda guerra abundam as hist6rias sobre atro~ cidades cometidas pelo outro lado; os atos violentos cometidos pelos pro- tagonistas ndo passam de retaliagdo por esses feitos cruéis. Essa é a légica bésica da guerra, ¢ a Revolugdo Americana no foi excegio. MOCINHOS E BANDIDOS A simples justaposigao do bem contra 0 mal dé ao filme O patriota a sua forca bruta. No infcio do filme, Benjamin Martin, representado de modo convincente por Mel Gibson, néo quer lutar contra os britanicos. Embo- 1a} tivesse sido her6i na guerra contra os franceses ¢ 0s indios, tenta agora ctiar seis filhos (a esposa faleceu) e nao quer participar da politica nem da Guerra, “Sou pai”, diz ele numa reunio de patriotas. “Nao posso me dar 20 luxo de ter principios.” A apatia politica de Martin nao dura muito, Depois que se trava uma ‘no patio em frente a sua casa, Martin, 0s filhos e seus escravos-que- ‘do-sio-bem-escravos cuidam dos feridos, tanto patriotas quanto britinicos. Bem nesse momento o corone! Tavington entra em cena galopando no co- ‘Mando dos seus assustadores dragGes britdnicos, Com um sortiso insidioso, MiTOs SOBRE A FUNDAGAO 00S ESTADOS UNIDOS “Tavington ordena que todos os patriotas feridos sejam fuzilados na mesma hora. Também prende Gabriel, filho mais velho de Benjamin, por levar men- sagens. Quando Gabriel est4 sendo arrastado para a forca, Benjamin protesta ‘afirmando que a sua execugio sumfria violaria “as regras da guerra”. Tavington responde: “Regras da guerra? Quer uma aula sobre regras da guerra2”. E aponta a arma para os outros filhos de Martin. Este recua, mas quando Thomas, o irmao mais novo de Gabriel, sai correndo numa tentativa débil e pouco sébia de salvamento, Tavington mata o menino pelas costas. ‘Vemos que o corone! Tavington é um homem muito mau. E compreenst- ‘vel que Benjamin Martin fique muito zangadoe acabe se tornando um patriota. © assassinato a sangue-frio do seu filho Thomas tem de ser vingado. Pouco depois, Tavington é chamado a explicar esses € outros feitos barbaros ao seu superior, o general Cornwallis. Mas, depois que Martin vence Cornwallis com um plano engenhoso, o general abandona a sua preferéncia pela guerra cavalheiresca ¢ dé permissao a Tavington para usar titicas “brutais”. As brutalidades sancionadas tornam-se a pedra funda- mental da politica britdnica oficial. “Tavington, agora agindo de acordo com as ordens, vai em frente e come- te horrores ainda maiores. Retine todaa populacéo de uma aldeia numa igre- ja, tranca a porta e as janelas e depois queima o prédio inteirinho. Todos os homens, mulheres ¢ criangas, inclusive a nova noiva de Gabriel, morrem nas chamas. (Antes Gabriel fora salvo da forca pelo pai eos dois irmaos menores, ‘com idades entre oito e dez anos.) Pouco depois, Tavington usa a prépria esperteza para matar Gabriel. Nesse ponto 0 espectador esté téo ofendido quanto Benjamin Martin, que perdeu dois filhos nas maos do sinistro oficial briténico. Tavington e os britdnicos precisam ser detidos! Saudamos furiosa- mente nosso her6i quando ele, usando um mastro de bandeira americana como baioneta, acerta as contas com o inimigo na batalha final de Cowpens. Com O patriota, aprendemos que os britanicos eram os bandidos € que o coronel Banastre Tarleton era o mal encarnado. (Tarleton, segun- doo roteirista do filme, Robert Rodat, serviu de modelo para Tavington.) Os patriotas, pelo contrério, eram os mocinhos. Os americanos nao cha- cinavam seus prisioneiros e nao matavam civis — com toda a certeza, néo ‘uma igreja cheia de uma s6 ver. BaITANICOS saUTAIS Em certo ponto, O patriota mostra os milicianos de Benjamin Martin prestes a massacrar soldados britdnicos que tinham acabado de se render mas esses excessos so imediatamente impedidos pelo comandante Martin: “Daremos total protegio aos britinicos feridos e a qualquer um que se renda”, ordena ele. Gabriel explica a moral dessa cena: “Somos homens melhores do que isso”. Eis a mensagem bésica do filme: os americanos eram homens methores do que aqueles vandalos britinicos, como Tarleton, que no pensava duas vezes antes de massacrar prisioneiros. ‘Uma cena engana. Na guerra contra os franceses e os indios, Benja- min Martin provara ser um her6i em “Fort Wilderness” (Forte Desola- 40). Durante todo o filme, os homens o elogiam por isso, mas ninguém diz 0 que ele fez. Certa noite, no acampamento, Gabriel pede a0 pai que Ihe conte o que aconteceu no Forte Wilderness. Reticente a principio, fi- nalmente Benjamin responde. Os franceses ¢ os cherokees tinham matado alguns colonos, inclusive mulheres ¢ criangas. Para vingar essa chacina, Martin e seu grupo perseguiram os criminosos os massacraram. — Levamos um bom tempo — diz. com voz suave mas firme. —Nés os cortamos em pedagos, bem devagar, aos pouquinhos. Posso ver 0 rosto deles. Ainda escuto os seus gritos. — E prossegue com uma descri¢do detalhada de como mutilaram os corpos. — Fomos... her6is — conclui sardonicamente. — Eos homens compraram bebidas para vocés — acrescenta Gabriel. — Nio se passa um dia sem que eu pega perdao a Deus pelo que fiz. Essa confissio, vinda do her6i da hist6ria, produz um efeito atordoante. ‘Tado o mais que aconteceu ou acontecer no filme assume uma nova dimen- do, pois esse é um homem de verdade, Mas as atrocidades de Martin foram todas cometidas no passado, lé na fronteira. Ele lutava pelos britdnicos na- ‘quela época— mas durante a Guerra Revolucionétia, no nascimento do nosso Pais, nao se podiam tolerar tais picaretagens. Os patriotas americanos eram ‘simplesmente bons demais para adotar um comportamento barbaro. Os bri- ‘nicos, portanto, servem de bode expiatério dos horrores da guerra. ___ Uma distorgio simples mas esperta do figurino confirma essa tese. Na verdade, os temidos dragées verdes — tories americanos comandados por Tarleton — usavam casacos verdes com calgas, camisas e colari- ‘brancos; somente os alamares ¢ as plumas do capacete eram vermelhos. MITOS SOBRE A FUNDAGAO DOS ESTADOS UNIDOS Os “acréscimos especiais” inclufdos na versio do filme em DVD mostram uma imagem rSpida dessa farda, mas no préprio filme o verde € trocado pelo vermelho, mais conhecido, “Havia muitos tipos diferentes de farda no exército britanico”, diz a figurinista Deborah Scott. “Basicamente, es- colhemos um visual mais forte.” Forte e facil de reconhecer: 0s casacos- vermelhos. Todos os homens comandados pelo coronel Tavington sio clara ¢ inconfundivelmente britanicos. Todas as m4s ag6es so realizadas por estrangeiros, ndo por americanos. assim que a maioria dos americanos de hoje ouviu a histéria da Guer- ra Revolucionéria: a oposigio no usava verde, 6 vermelho, Na narrativa da guerra que evoluiu com tempo, os homens que lutaram do outro lado eram os casacos-vermelhos, adversétios britanicos conhecidos por todos nés. ‘A PRIMEIRA GUERRA CIVIL © patriota utiliza a interpretagao da guerra apresentada na época pelos patriotas americanos, Em 29 de maio de 1780, no distrito de Waxhaws, na Carolina do Norte, os soldados sob o comando de Banastre Tarleton mata- ram prisioneitos americanos em vez de Ihes dar quartel. Durante o resto da ‘guerra, o incidente de Waxhaws passou a ser um grito de guerra para os patriotas zangados que se preparavam para dar fim A vida de outros seres numanos: “Quartel de Tarleton!”, uivavam furiosamente quando se langa- ‘vam a batalha. (As vezes o grito era “Recordem Buford!”; Abraham Buford foi o comandante americano em Waxhaws.) Para os patriotas no final da Guerra Revolucionétia, assim como para o ficticio Benjamin Martin, as chacinas do inimigo eram razao suficiente para lutar contra os britanicos. Essa hist6ria, prova positiva da crueldade do inimigo, durou mais de dois séculos. Mas houve uma alteragao importante. Na época, a maior firia dos patriotas voltava-se contra seus adversérios locais, os tories. Agora, os adversérios trocaram a farda verde pela vermetha, Tém de ser vistos como estrangeiros, no como “nés", ‘Na verdade, foram americanos que cometeram a chacina de Waxhaws —talvez ndo patriotas, mas nossos conterréneos assim mesmo. L4, Banastre ‘Tarleton comandava uma tropa de quarenta soldados regulares britanicos SRITAMICOS BRUTAIS € 230 tories americanos, principalmente de Nova York. “A Legifo Britini- «a, toda de americanos, comecou a chacinar seus conterraneos vencidos”, escreve o historiador militar John Buchanan.' Esse no foi um fato isolado, Os oficiais briténicos, por sua vez, tentaram muitas vezes conter os seus Fecrutas americanos, &s vezes sem resultado. “Pelo amor de Deus, nenhuma irregularidade”, pediu o general briténico Henry Clinton, tentando em vo reprimir os excessos dos tories que lutavam sob 0 seu comando.? A Revolugio no Sul foi uma guerra civil sangrenta, ainda mais violen- ta que a Guerra Civil do século XIX, pois nenhuma fronteira geogrética separava os combatentes. (Até quando os patriotas combatiam os casa- cos-vermelhos, viamn-nos como “soldados regulares”, no como estran- geiros, como fazemos hoje.) $6 na Carolina do Sul o historiador local Edward McCrady listou 103 batalhas diferentes nas quais americanos enfrentaram americanos, sem nenhum britanico a vista.? Em King’s Mountain, uma das grandes vit6rias dos patriotas, mais de mil legalistas americanos lutaram sob o comando de um tinico oficial britdnico. O impacto dessa primeira guerra civil foi devastadot. “O pais todo esté em perigo de ser devastado pelos shige e tories que se perseguem uns aos ‘outros com firia tio incansavel quanto feras de rapina”, escreveuo general americano Nathartael Greene. Em algumas regises, toda a sociedade civil Parou, Sempre que assomava um bando de combatentes, os habitantes ti ham de “se esconder” na floresta, abandonando suas casas a devastagéo dos. soldados—. ‘nao importava de que lado fossem, Em 20 ‘de julho de 1781, ‘© major americano William Pierce escreveu a Saint George Tucker: Essas cenas de desolaclo, derramamento de sangue e assassinio deliberado, ‘nunca testemunbei antes! Para onde quer que nos viremos, a vtiva aos prantos a crianga sem pai despejam suas hist6rias melanc6licas para ferir os senti- mentos de humanidade, Os dois principios opostas dos whigs ¢ dos tories useram o povo deste pafsa cortar a garganta uns dos outros, e mal se passa ‘um dia sem que algum pobre tory iludido seja abatido em sua porta? Os Partidérios dos dois lados acreditavam estar lutando pela patria. Mui- "08, como o fictfcio Benjamin Martin, perderam parentes que viriam a ser MITOS SOBRE A FUNDAGKO DOS ESTADOS UNIDOS vingados. A luta era local e personalizada —e, portanto, mais apaixona- da, Esses nfio eram soldados profissionais que apenas faziam o seu servi- ‘G0, mas homens com contas a ajustar. Em fabulas como O patriota, a luta €entre britanicos, cruéis ¢ indiferentes, e americanos, forcados a reagir. A hist6ria foi bem mais complicada do que isso. Analisemos: quem é 0 he~ 161 e quem é 0 villo em cada um dos casos que se seguemn? * Depois que os tories surraram sua mée, William Gipson, da Caro- Tina do Sul, admitiu que teve “no pouca satisfacéo” ao torturar tum prisioneiro deixado aos seus cuidados: “Ele foi colocado com tum pé sobre um pino afiado enfiado num bloco ¢ girado (..) até que © pino Ihe perfurou o pé”.* * Um tory da Geérgia, Thomas Brown, foi acossado por uma multidao de patriotas. Ao tentar defender-se, deu um tiro no pé de um deles. A multidéo o subjugou, cobrit-lhe de piche as pernas, marcou-Ihe os pés a ferro quente e arrancow-Ihe parte do couro cabeludo. Brown per- deu dois dedos dos pés e ficou sem andar durante meses, Depois de recuperado, organizou um bando de tories e{ndios que atacou as gran- des fazendas dos patriotas durante o restante da guerra.” * Moses Hall, patriota da Carolina do Norte, sofreu uma “tristeza an- 4gustiante” quando assstiu aos seus camaradas assassinarem seis prisio- nciros indefesos: “Ouvi alguns dos nosios homens gritarem ‘Recordem Buford’ ¢ 0s prisioneiros foram imediatamente feitos em pedagos com 1s sabres”, Afastando-se com “horror”, Hall retirou-se para os seus aposentos e “contemplou as crueldades da guerra” — mas nio pot muito tempo. Numa marcha subseqiiente, encontrou um garoto de 16 anos, um observador inocente, que fora transpassado por uma baioneta britanica para impedir que passasse informagGes aos patrio- tas. A visio desse garoto inofensivo, chacinado (..)aliviou-me do meu sentimento angustiante pelo massacre dos tories, e néo desejei nada além da oportunidade de participar da sua destruicio.”* Em casos como esses, como podemos retratar um lado como cheio de vir- tude ¢ 0 outro como cheio de vicios? Os atos barbaros e a desforra que BRITANICOS BRUTAIS Provocavam cruzavam as fronteiras politicas. Os patriotas da vida real par- ticiparam desse horrendo jogo de vinganga. Com freqiiéncia, também mas- sacraram homens que tentavam se render ou que jé tinkam sido tomados sob custédia. Depois da vit6ria patriota em King’s Mountain, 0 coronel ‘William Campbell tentou “restringir a maneira desordenada de matar e perturbar os prisioneiros®.° As suas ordens nao foram cumpridas; os prisio- neiros eram furados ¢ pisoteados até a morte quando no conseguiam acom- panhar a marcha. Um julgamento simulado tarde da noite terminou coma execugio sumdtia de nove tories. “E imposstvel para os que nao viveram em seu meio conceber a exasperagio que predomina numa guerra civil”, explicou 0 coronel Isaac Shelby, um dos executantes, quando justificou as ‘suas ages anos depois. “A execugio (...) foi considerada pelos que estavam nto local tanto necesséria quanto apropriada, com o objetivo de dat fim & execugio dos patriotas nas Carolinas pelos tories e pelos britnicos.""° MEU PAIS, CERTO OU ERRADO Os primeiros historiadores americanos, pertencentes a geracio revolucio- néria, no podiam ignorar o bvio: a Guerra pela Independéncia da Gra- Bretanha foi também uma guerra civil entre americanos, principalmente no Sul. Os tories que se “incorporaram” como soldados, escreveu William Gordon em 1788, “marcharam ao longo da fronteira oeste da Carolina do Sul. Tinham entre eles um ntimero to grande de personagem infames ‘que 0 seu aspecto geral era de bandidos saqueadores”. Alguns patriotas, admitiu ele, nio eram muito melhores: “Muitos que se diziam whigs

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