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Desde o início, Clarice Lispector recusou a escravidão dos gêneros. Escrevia por
fragmentos que depois montava. Escrevia aos arrancos, transcrevendo um ditado
interior. As estruturas clássicas não faziam parte desse ditado. Seu olhar passava
por cima das regras, quase voraz em sua busca da essência.
Este livro bem o demonstra. É composto por contos escritos em épocas diversas
da vida de Clarice. E por não contos. Muitos deles – como “Felicidade
clandestina”, que dá título ao livro – foram publicados no Caderno B do Jornal do
Brasil. Como crônicas. Que também não eram crônicas.
E “isto” era a mais pura e rica literatura. Nos contos / crônicas / textos – que eu,
como subeditora do Caderno recebia semanalmente, Clarice se expunha em
recordações familiares e de infância. Sua irmã Tania ainda se lembra da menina,
filha de livreiro, que encontramos em “Felicidade clandestina”, atormentando
Clarice por conta do empréstimo de um livro. O professor de “Os desastres de
Sofia” realmente percebeu o tesouro que Clarice menina escondia. E “Come, meu
filho” é um claro diálogo entre a autora e seu filho.
Nada diferencia esses contos, escritos para serem crônicas, de outros contos que
aqui estão, escritos para serem contos e publicados anteriormente no livro A
legião estrangeira. Seus textos podem ser desmontados, desfeitos em pedaços –
até mesmo diferentes dos fragmentos originais – sem que se perca sua
intensidade. Cada palavra ou frase dessa escritora sem igual origina-se em
camadas tão fundas do ser, que traz consigo, mais do que um testemunho, a
própria voltagem da vida.