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REFERÊNCIA 1.26.005.000007/2015-12
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UNIDADE SOLICITANTE PRM-Garanhuns/PE
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destituição das lideranças antigas, bem como se ela encontra amparo em toda a
comunidade Fulni-ô, além de prestar outros esclarecimentos que julgar pertinentes.
Por fim, declara que “a partir desta data ficam reconhecidos pela comunidade
aqui abaixo assinados em anexos, seus representantes tradicionais do povo Fulni-ô”. De fato,
anexo ao ofício há um abaixo-assinado onde constam quase duas mil assinaturas de indígenas
Fulni-ô, além de pouco mais de sessenta assinaturas de indígenas que seriam seus
descendentes, mas residentes entre os Kariri-Xokó, em Porto Real do Colégio, em Alagoas.
No cabeçalho desse abaixo-assinado, pede-se às “instituições, Órgãos e Autoridades
Competentes que reafirme externamente o que já foi afirmado internamente, através, da
nomeação de Itamar Araújo Severo e Awassury Araújo de Sá como cacique e pajé
respectivamente”, e reforçam que estão “sendo obrigados apresentá-los institucionalmente”, já
que “na história e na crença do nosso povo nunca tivemos a necessidade de apresentar nossos
líderes para a sociedade não índia”.
Alguns esclarecimentos são necessários aqui antes de iniciar o parecer de fato,
particularmente a respeito das afirmações contidas no ofício supracitado. Em primeiro lugar, é
preciso ressaltar, conforme consta nos autos, que a Coordenação Regional da Funai
posteriormente pediu, via memorando, a anulação desse ofício (fl. 1380). Não é difícil
1 PRM-GRU-PE-00000263-2019.
2 O Ouricuri é o nome dado pelos Fulni-ô para um ritual anual, que dura por volta de três meses, bem como
para o espaço onde ele se realiza – a aldeia do Ouricuri, por volta de quatro quilômetros da aldeia sede. Abrange
os meses de setembro, outubro e novembro, durante os quais há uma mudança em massa para a outra aldeia, e
onde é vedado o acesso aos não índios. É a principal manifestação ritual da comunidade, para a qual se atribui
relevância absoluta.
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entender a razão. Sua narrativa, mesmo para quem não acompanha o desenrolar dos
acontecimentos, mostra-se claramente enviesada, ao indicar que as lideranças ali citadas
foram escolhidas legitimamente, cumprindo com o “modo tradicional de acordo a estes
seguimentos religioso (sic)”, enquanto as anteriores, com as quais a comunidade indígena
(note-se que se aponta a comunidade como um todo, e não apenas uma parcela) estaria
completamente insatisfeita, seriam ilegítimas, pois não estariam obedecendo “aos preceitos
religiosos e tradicionais desta etnia”.
Entendo que a comunidade, através de seus meios próprios, pode tomar as
decisões que bem entender a respeito de sua própria organização sociopolítica e territorial –
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afinal, ela é senhora de si, e reconhece-se legalmente sua plena autonomia e sua autogestão –,
e setores da comunidade têm o direito de se posicionar e se manifestar a respeito dessas
decisões, ainda que porventura discordem delas. Já a Funai, ao fazer comunicações a respeito
dessas decisões, não pode avaliar nem declarar por sua conta aquilo que é ou não legítimo,
muito menos referendar uma posição de uma parcela da comunidade, ignorando ou
3
Com efeito, nas datas apontadas pelo ofício, Itamar e Awassury foram
nomeados como cacique e pajé, respectivamente. Todavia, Cícero (também conhecido como
Dique) e Gildiere (também conhecido como Edmar), cacique e pajé escolhidos anteriormente,
permanecem em seus cargos. Os dois lados têm seus seguidores, acusam a outra parte de
agirem com interesses escusos, de práticas pouco éticas e com fins pouco nobres, e declaram
que o seu lado é legítimo, em oposição ao outro. O diálogo entre ambos tem se mostrado
bastante difícil, e ninguém parece querer ceder. Em suma, há uma divergência, em primeira
vista irreconciliável, dentro da comunidade Fulni-ô, em relação a quem é ou deveria ser seu
cacique e pajé.
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Como é um tema complexo e delicado, há que se tomar muito cuidado com o
vocabulário empregado aqui. Assim, cabem aqui alguns apontamentos sobre isso. Para efeito
desse parecer, utilizarei, para diferenciar as lideranças, os termos cacique e pajé instituídos
para me referir a Gildiere e Cícero, e novos cacique e pajé ou lideranças dissidentes para me
referir a Itamar e Awassury, quando não me refiro aos próprios nomes de todos eles. Ressalto,
3 Uso “indicação” na falta de uma palavra melhor, já que não é exatamente isso que acontece, como se verá; os
Fulni-ô usualmente dizem “tirar” cacique ou pajé.
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documental, utilizei meu conhecimento prévio dos Fulni-ô (oriundo de trabalhos anteriores,
conversas informais, reuniões diversas e outros encontros), além de trabalho de campo
realizado na Terra Indígena – realizado entre 7 e 11 de março, durante o qual fiz entrevistas
semi-estruturadas com diversos indígenas sobre os temas em tela. Além daquelas realizadas
com os dois caciques e os dois pajés, priorizei entrevistas com os integrantes mais velhos da
comunidade, em especial aqueles apontados como lideranças ou pessoas com grande prestígio
e saber acumulado, como apontado pelos próprios indígenas. Também conversei com alguns
servidores (indígenas) da Funai e com familiares de caciques e pajés anteriores. Além das
entrevistas, participei de três grandes reuniões organizadas por aqueles ligados às novas
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lideranças, que contou com a presença maciça de indígenas desse grupo. Duas delas foram na
Escola Bilíngue Antônio José Moreira, e uma (apenas com mulheres) na casa do Coordenador
da CTL-AB. Ressalto que tais reuniões não foram solicitadas nem sugeridas por mim; pelo
contrário, foi uma iniciativa exclusiva deles. Tenho algumas reservas quanto à efetividade de
grandes reuniões como essas para o trabalho pericial antropológico: se por um lado permitem
que se escute um grande número de pessoas de uma só vez, por outro os depoimentos e
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interior nordestino. Tais missões procuravam sedentarizar as populações indígenas da região,
fixando-as numa pequena parcela de terras – usualmente, vários povos distintos eram aldeados
numa só missão –, colocando-as sob o jugo da administração religiosa, e procurando
catequizá-las e “civilizá-las”, impondo valores e práticas que percebiam como culturalmente
superiores.
Na área onde hoje é Águas Belas, foram fundadas duas missões para os
Carnijós (um dos nomes pelos quais os Fulni-ô eram então conhecidos), em meados do século
XVII, das quais, contudo, não se sabe com exatidão sua localização e extensão (Schröder,
2011: 33-36). Em 1700, houve uma “doação” de uma “légua em quadra” da Coroa portuguesa
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às missões dos sertões, através de um Alvará Régio datado de 1700, para “sustentação dos
índios e missionários”. Tal “doação” foi confirmada por Cartas Régias de 1703 e 1705 (idem).
As duas missões teriam se unido em algum momento entre a segunda metade do século XVIII
e o início do século XIX.
Já a vila de Águas Belas teria surgido por volta de 1760. Em 1832, há o registro
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outro institucionalizou o arrendamento de terras (que, de todo modo, já era praticado), doou
uma nova área do território indígena à municipalidade de Águas Belas, e deixou indefinido o
estatuto jurídico e a propriedade das terras.
Ainda hoje, esse decreto permanece como o único ato formal do Estado
brasileiro a regularizando o direito dos Fulni-ô sobre suas terras, não obstante a sua
reivindicação constante por demarcação do território tradicional. A Funai, órgão indigenista
responsável pela regularização fundiária de terra indígenas, iniciou o processo mais de uma
vez, mas ainda não o concluiu.
Tais fatores, considerados em conjunto, foram responsáveis pela configuração
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de muitas das questões que os Fulni-ô e seu território enfrentam ainda hoje, e que são, parcial
ou totalmente, razão de muitas de suas demandas, problemas e conflitos. As principais são:
a) a divisão de suas terras em lotes privados – que faz com que a terra, para os
Fulni-ô, passe a ser vista com dois significados simultâneos: é um território coletivo (isto é,
segundo Jorge Hernández Díaz (1983), um espaço geográfico ligado indissoluvelmente à sua
7
reverter esse quadro: descobriu-se que os índios permaneciam e resistiam, tinham suas
demandas e precisavam da assistência do Estado para garantir seus direitos. Esse
reconhecimento étnico, passados 50 anos, desencadearia o primeiro ciclo de etnogêneses do
Nordeste, assunto que ultrapassa o presente parecer. De todo modo, tais mudanças tiveram
impactos sobre o tipo de representação política que se reconhecia (pelos brancos, ao menos)
na comunidade indígena.
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Sabe-se pouco sobre o sistema sociopolítico das comunidades indígenas
aldeadas nas missões no período anterior ao século XIX, o que se estende aos Fulni-ô – até o
início do século XX chamados de Carnijós. Provavelmente isso se deve ao fato de que aqueles
que faziam registros sobre as comunidades indígenas até então (em sua maioria missionários,
8
“maiorais da aldeia” no Pará no século XVIII (Porro, 2008), e em São Paulo no século XVI 6.
Aparentemente, iniciou-se como uma designação genérica atribuída (pelos brancos) a quem
era entendido como “chefe maior” da aldeia (no sentido de líder e representante como
cunhado pelo pensamento ocidental), e, ao menos no Pernambuco do século XIX, tornar-se-ia
uma espécie de cargo oficial, que tinha a função de representar seu grupo diante das
autoridades, encaminhando suas demandas. Não há, contudo, notícias de grupos que ainda
hoje nomeiam seus líderes como “maiorais”.
Também há registros históricos, de diversos períodos e de diversos lugares, que
fazem referência à figura do capitão. Aparentemente, também eram vistos como
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representantes de sua comunidade. Diferentemente do maioral, contudo, “capitão” parece que
inicialmente era uma patente concedida por um representante do Estado a um indígena
determinado, que a partir de então deveria fazer a ponte entre a sua comunidade e a sociedade
nacional – como é o caso do famoso Francisco Rodela, que no século XVII recebeu o título de
capitão-mor da aldeia à qual emprestaria teu nome, após ter se aliado com os portugueses (e
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informações sobre como e quando houve a troca desses titulares. Igualmente, não há nenhuma
notícia a respeito de lideranças indígenas no período entre o fim dos aldeamentos, em 1875, e
a instalação do Posto Indígena (PI) General Dantas Barreto entre os Fulni-ô, em 1924.
Compreensível, já que, se o governo estadual entendia que não havia mais índios no estado,
também não deveria haver lideranças indígenas – ainda que, de fato, continuassem existindo.
A instalação do PI, além de mudar a correlação local de forças, também trouxe
mudanças diretas e significativas para os próprios Fulni-ô (assim como para as outras
comunidades indígenas com as quais o órgão passaria a atuar), ou ao menos para o modo
como se apresentavam e relacionavam com o Estado e com a sociedade nacional: para
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adequarem-se ao modelo de “indianidade”7 forjado e imposto pelo SPI, tiveram que criar dois
novos cargos políticos, até então inexistentes: o de cacique e o de pajé. João Pacheco de
Oliveira afirma que a imposição dessa estrutura política fez parte do processo de
territorialização8 pelo qual passaram as comunidades indígenas no Nordeste no século XX:
Em linhas gerais, esse processo de territorialização trouxe consigo a imposição de
Ressalto, como já comentei a respeito dos cargos de capitão e maioral, que isso
não quer dizer que os ocupantes desses novos papéis já não eram lideranças previamente à sua
nomeação, ainda que conhecidos ou exercendo seu poder apenas internamente. A criação
desses novos postos os obrigou a assumir um papel também para fora da comunidade, como
seus representantes e responsáveis por algumas tomadas de decisão – limitadas, devido ao
poder tutelar exercido pelo SPI. Não se sabe exatamente como se deu então, no caso dos
Fulni-ô, a negociação entre o órgão indigenista e a comunidade para decidir quem poderia
assumir tais cargos e quais seriam suas atribuições, mas, se tomarmos como referência sua
função e lugar atual na sociedade indígena, percebemos que: a) ambos são imprescindíveis e
7 Conjunto de características entendidas como “tipicamente indígenas” (tanto num escopo genérico quando
regional ou local), esperadas dos ou impostas aos grupos indígenas onde o órgão indigenista passava a atuar, que
confirmariam a “autenticidade” da identidade indígena de um grupo determinado.
8 “processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo — (...) no
Brasil as ‘comunidades indígenas’ — vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas
culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)” (Oliveira, 1998: 56; grifos
no original)
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exercem papéis centrais na devida execução das práticas religiosas; e b) é no sistema religioso
que exercem sua função de liderança por excelência; seu papel de liderança político-
administrativa é derivado de seu papel de liderança religiosa, só existe porque antes são
lideranças religiosas.
Não à toa, é justamente essa função política – que pode ter sido criada apenas a
partir da imposição de uma estrutura política pelo SPI, sendo assim, na origem, alheia à
organização social Fulni-ô – aquela cuja legitimidade e eficácia é mais constantemente
questionada, em oposição à função religiosa, que até essa dissidência atual permanecia
absolutamente incólume. Nesse mesmo sentido, afirma Melo:
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o cacique e o pajé são os personagens que ocupam as posições de maior
envergadura dentro do sistema sócio-ritual, assim como da organização política
interna do grupo. Estes personagens são responsáveis pelas decisões de âmbito
religioso (...). Por extensão, o ordenamento político estatal delegou a estas condutas
atribuições de negociar/intermediar os interesses políticos da comunidade. (2013:
104)9
9 Essa dissertação de mestrado, defendida no México, foi escrita em espanhol. Para facilitar a leitura, traduzi
livremente as passagens dessa obra aqui reproduzidas.
11
chegada do SPI –, entre outras questões.
Antes de seguir adiante, um último aparte sobre esta mesma citação: Oliveira
declara que a chegada do órgão tutelar também trouxe consigo a criação dos conselhos tribais.
Não nego que documentos e estudos feitos nos anos seguintes à instalação dos postos
indígenas nas aldeias indígenas no Nordeste mencionem a existência desses conselhos.
Contudo, muitos deles, ao menos nos moldes originais, não persistiram até os dias atuais, ou
então mudaram seu formato, nome e/ou função. No caso dos Fulni-ô, nunca me foi relatado o
funcionamento de um conselho propriamente dito, no presente ou no passado. A única
referência a um conselho tribal entre eles está na dissertação de Jorge Hernández Díaz (1983).
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Ali, o autor declara que
tradicionalmente, os Fulni-ô têm tido como autoridades de sua tribo um Cacique,
um Pajé e um grupo de líderes que são conhecidos como A liderança. Os cargos
com maior autoridade, os que são tidos em maior respeito dentro da comunidade,
são os de Cacique e Pajé, apesar de que, em situações críticas, caiba ao Conselho
Tribal (Cacique, Pajé e Liderança) tomar as decisões. Conversando com um dos
Wilke Torres Melo (ele próprio indígena Fulni-ô), por sua vez, comenta essa
mesma passagem em sua dissertação de mestrado, defendida em 2013, relativizando-as: diz
que “a instituição do dito conselho constatado por Díaz naquele tempo aparece difuso” (2013:
67).
De fato, não há nada, nem os dados de campo colhidos por mim nesta ou em
outras ocasiões, nem outros trabalhos etnográficos, que corroborem a existência de um
Conselho Tribal no formato apontado por Díaz, que reúna cacique, pajé, e quatro lideranças
vinculadas a cada um, que seria acionado ou se reuniria em situações específicas. Não
obstante, há, com efeito, aqueles indígenas que são chamados pelo nome genérico de
lideranças, figuras respeitadas e com funções e tarefas pré-determinadas, principalmente
dentro da religião; como disse Melo, sua atuação aparenta ser mais difusa, e não organizada
em uma instituição. No entanto, assim como outros aspectos de sua organização social e
religiosa, não são revelados muitos detalhes sobre elas. Enquanto, como já afirmei, cacique e
pajé têm uma atuação para fora da comunidade, estas lideranças permanecem com um papel
restrito ao seu âmbito interno – como se elas escapassem dessa responsabilidade, já que
aqueles já teriam assumido esse fardo. Mais adiante abordarei mais a fundo o pouco que se
sabe e que se pode dizer concernindo as lideranças, o cacique e o pajé, a partir de alguns
fragmentos de informação a que se teve acesso.
Voltando à nova estrutura política imposta pelo SPI, Wilke Melo observa, no
mesmo sentido do que venho afirmando, que o funcionário do SPI inicialmente conhecido
como inspetor, e pouco depois como chefe do posto indígena, se tornaria o “principal
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intermediário entre os interesses da comunidade e o poder estatal já constituído. Em pouco
tempo esse funcionário participaria intensamente das tomadas de decisão internas ao grupo”
(2013: 66).
Ele também ressalta o caráter impositivo e alienígena de tais categorias,
transformando a hierarquia política local, e por conseguinte alterando o sistema vigente:
a interferência do mencionado poder tutelar influencia diretamente na construção de
categorias políticas até então alheias à sociedade Fulni-ô. A partir destes enunciados
infiro que os funcionários do corpo burocrático são os agentes responsáveis por
disseminar os conceitos territorialmente universalizados de Pajé e Cacique,
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categorias políticas impostas pelo organismo estatal. A aplicação destes
convencionalismos ignora as particulares formas de poder entramadas no seio das
comunidades, ao tempo que cria mecanismos hierárquicos incompatíveis com os
princípios organizativos locais. (…) A partir disso a composição política dos Fulni-ô
seria formada por dois representantes internos (membros da organização política
interna Fulni-ô), e a figura do inspetor (nomeado pelo SPI) (idem: 66-67).
Por volta de meados dos anos 1980, essa divisão de poderes começou a mudar
gradativamente, com o cacique e o pajé assumindo cada vez mais atribuições antes exercidas
pelo chefe do posto. Isso é notado claramente por diversos indígenas, como também pela
Funai. É visível que as responsabilidades do chefe do posto listadas por Díaz não se mantêm
atualmente. O cacique anterior, conhecido como João de Pontes, declarou-me isso diversas
vezes, como registrei, por exemplo, em parecer anterior 10: tempos atrás, “cacique e pajé era só
10 Parecer 1/2017
13
questão religiosa”, e acrescentou, em tom jocoso, que hoje seus papéis teriam se estendido a
“delegado, juiz, promotor…”, acumulando funções que antigamente eram da alçada do chefe
de posto, como administrar e mediar os “problemas da aldeia”.
Nesse mesmo sentido afirmou um indígena, em uma das reuniões realizadas na
aldeia durante o trabalho de campo, quando questionei os motivos da presente divergência:
no meu entender, chegamos a essa divergência por causa da mistura de dois poderes:
o poder político e o poder religioso. Os antepassados só tinham o poder religioso,
não tinham o poder político. O poder político, quem regia a comunidade nos termos
políticos, econômico e financeiro era o chefe do posto, que era enviado pelo órgão
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que trocou pela Funai [o SPI]. E aí toda essa problemática de política financeira e
social no poder do coordenador da Funai. Hoje, a partir dos anos 80, a Funai, para se
livrar do fluxo de indígenas na Funai, ela criou administração aqui em Garanhuns, e
essa administração tinha a finalidade de coibir, de parar que os índios fossem para
Funai. E aí a Funai, na pessoa do senhor administrador (...), disse que só atende um
índio se ele fosse com o aval de Pajé e Cacique. Então com isso aí, pajé e cacique
passaram a ter poder político muito alto, e o chefe de posto perdeu esse poder, e aí
14
Congresso Nacional, que, entre outros direitos reconhecidos aos chamados “povos indígenas e
tribais”, reconheceu seu direito à autodeterminação e à consulta livre, prévia e informada
sobre qualquer medida que venha a ser tomada que os afetem diretamente.
Tais instrumentos legais valorizam e reconhecem as organizações sociais,
políticas, religiosas e territoriais dos diferentes povos indígenas e “tribais”; assim, de certo
modo, proporcionam uma projeção e uma responsabilidade aos ocupantes dos papéis de chefia
e liderança, que talvez não tivessem até então. Como já escrevi no parecer já citado, embora
tais mudanças tenham representado um grande avanço no trato com as populações
tradicionais,
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é de se esperar que elas tenham feito com que as comunidades indígenas, em
especial aquelas que já tinham uma longa relação estabelecida com o órgão
indigenista, tivessem que se adaptar e transformar a maneira como se apresentavam
e se faziam representar ao Estado e aos diversos órgãos e instituições com os quais
dialogavam. Ao contrário do que se possa imaginar, nem sempre tais mudanças
possibilitaram que uma organização política indígena “original” fosse enfim
Outro problema que surge é que muitos dos agentes institucionais que
interagem com as comunidades indígenas assumem que “os sistemas políticos indígenas
funcionariam de maneira análoga ao nosso: que suas lideranças exercem ‘mandatos’
representativos, e que, uma vez neste cargo, teriam autonomia e legitimidade para tomar
quaisquer decisões, de qualquer natureza, em nome de todo o povo” (idem: 9). Presumem,
assim, que a autoridade da liderança vai ser sempre plenamente reconhecida e respeitada.
Comumente, contudo, não é isso que acontece.
No caso dos Fulni-ô, por exemplo, a autoridade religiosa do cacique e do pajé,
até a presente situação, de fato sempre foi plenamente reconhecida e respeitada, enquanto sua
atuação política, por sua vez, foi questionada e contestada diversas vezes nas últimas décadas.
Já em 1982, Díaz fala que pôde observar “a luta de facções pelo poder na tribo” (1983: 193) –
embora o que ele descreva não pareça consistir exatamente em “facções”. Na realidade, o
autor afirma que, à época, “os líderes tradicionais [cacique e pajé] se queixam de que o
Delegado [da Funai] não respeita a hierarquia existente entre eles, sobrepondo-se as
autoridades legítimas” (idem: 195). Quando o cacique encaminhava alguma solicitação de sua
comunidade ao Chefe do Posto, o delegado não atenderia, o que geraria insatisfação por parte
dos índios, que reclamavam que “o Cacique não se mobiliza, não busca melhoria para os
índios” (idem: 195-6). Alguns indígenas de prestígio se aproveitariam dessa situação para
levar suas reivindicações diretamente ao Delegado, que os atenderia prontamente, como um
15
indígena em particular chamado Hilário (idem: 196). Entretanto, não apresenta elementos que
corroborem a ideia de que haviam grupos definidos e distintos dentro da aldeia, com uma
pauta própria e lideranças que se opunham diretamente ao cacique; o que parece haver é que,
diante da morosidade na resposta do órgão indigenista, alguns indígenas procuraram acessá-
los diretamente, sem a mediação do cacique ou do pajé. Díaz discorre ainda sobre a
mobilização dos jovens Fulni-ô, que também começavam a agir de maneira mais enfática em
busca de resposta das instituições e instâncias governamentais a seus pleitos. Estes, porém,
como declara o próprio autor, “não questionaram em nenhum momento a autoridade dos
anciãos”, mas se diferenciavam deles principalmente em sua forma de ação para conseguir o
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que perseguiam (idem: 200).
Já em meados dos anos 1990, podemos dizer que, diferente da situação descrita
por Díaz, de fato teve curso entre os Fulni-ô um processo faccional 11, com a organização de
um grupo estruturado que fazia oposição (política) ao cacique e ao pajé e possuía uma pauta
própria, de certa forma obrigando os membros da comunidade a se posicionar em favor de um
11 Embora “faccionalismo” tenha sido o conceito consolidado na literatura antropológica sobre esse fenômeno,
surpreendentemente ele não parece ter ganhado uma acepção definitivo. Contudo, utilizo-o aqui para me referir
ao processo em que, dentro de um mesmo grupo social, um ou mais segmentos se organiza(m) de modo a se
opor, de forma mais ou menos estruturada, àqueles investidos de poder, seja de natureza política, religiosa, social
ou de outra ordem, o que tipicamente leva ou à sua destituição, ou à ruptura do tecido social.
12 Zuma Grande havia sido cacique, antecedendo João de Pontes – que esteve no posto por décadas, e faleceu
no ano passado. Zuma Grande já não era cacique nesse período, mas como era uma liderança que, segundo os
Fulni-ô, “gostava de viajar”, o que nem sempre o cacique poderia fazer por conta de seus compromissos rituais,
é possível que ela tenha ido a Brasília representando as lideranças tradicionais.
16
organização ligada à Igreja Católica que então tinha uma forte presença nos grupos indígenas
do Nordeste.
De um modo ou de outro, esse grupo, encabeçado pelo que Melo chama de
“novas lideranças”, restringia sua oposição às “lideranças tradicionais” (i.e., cacique e pajé)
unicamente em relação ao seu aspecto político. Afinal, diziam aquelas, a atuação destas
últimas para atender às necessidades da comunidade era “tímida e ineficiente” (Secundino,
2000: 94); listavam também problemas relacionados ao usufruto das áreas comuns da Terra
Indígena (aldeia-sede e do Ouricuri; idem), além de serem “acomodados” para captar recursos
externos em prol da comunidade (ibidem). Os recursos que chegavam ali beneficiariam
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apenas a eles próprios e a suas famílias. Ademais, me relataram em outra ocasião, suas
obrigações rituais os impediam de viajar com muita frequência para participar de reuniões e
outros atos fora de Águas Belas, e as idades avançadas de João de Pontes (falecido em 2018,
com mais de 90 anos), e de Cláudio Pereira Júnior (pajé falecido em 2013), eram fatores
limitadores extras.
Como seria essa nova organização política proposta pelo grupo? Segundo
Melo, ela seria “composta pelos representantes de todos os segmentos do grupo – forma que
resgatava a ideia de representação da solidariedade clânica Fulni-ô”, e seria paralela à
“autoridade tradicional” (2013: 13). Assim, em lugar de ser um movimento propriamente
17
contestador das lideranças tradicionais, o grupo pretendia restringi-las novamente às suas
atribuições originais, religiosas, enquanto uma nova autoridade seria responsável pela atuação
político-administrativa. Surgia então a figura do cacique administrativo – que recebeu esse
nome porque, segundo um informante, “a Funai valoriza mesmo é um cacique”, e seu
qualificativo (“administrativo”) não deixava dúvidas sobre a seara em que atuaria. Embora
não haja consenso se foi o grupo ou a Funai quem cunhou essa nomenclatura, parece
inconteste que esta última atuou para legitimá-la, assim como para legitimar as próprias
lideranças do grupo (Secundino, 2000: 93; Ferreira, 2000: 48-49; Coutinho e Melo, 2000: 61).
Além do cacique administrativo, havia uma espécie de conselho, composto por doze líderes,
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que tomava as decisões mais relevantes quanto àquilo que os concernia.
Coutinho e Melo (2000: 61) afirmam que a nomeação do primeiro cacique
administrativo, José Correia Ribeiro, aconteceu em 1994. Segundo Melo (2013: 14-15),
embora no início a ideia de uma representação política paralela à tradicional não tivesse sido
apoiada por uma maioria, os “rebeldes” conseguiram muitos simpatizantes, o que aumentava a
18
Funai pagaria pelas benfeitorias, e o cartório de Águas Belas emitiria uma escritura pública,
em que seu proprietário reconhecia a área como de “ocupação tradicional indígena”,
reconhecendo também “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos do mencionado ato de
aquisição da propriedade e seu registro imobiliário respectivo”13. As terras da fazenda foram
divididas entre os doze líderes do grupo e as aproximadamente 90 famílias que participaram
da ocupação, todas vinculadas à dissidência.
Quanto ao cacique e ao pajé, embora não se opusessem à ocupação e aquisição
da fazenda, e até manifestassem apoio, preocupadas também com o Ouricuri, chegaram a
defender que, uma vez adquirida, os membros da Associação deveriam se retirar integralmente
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da aldeia-sede, e que ela deveria pertencer exclusivamente à associação, não sendo
incorporada à TI Fulni-ô (Secundino, 2000: 93).
A ocupação e conquista da Fazenda Peró, embora pareça representar o auge da
força e poder do grupo, também parece ter sido o início de sua ruína: Secundino relata que,
ainda durante as negociações para a compra da fazenda, o cacique administrativo foi afastado
13 “Escritura Pública de Declaração de Reconhecimento de Terra Indígena, de seu domínio pela União e de sua
posse e usufruto indígenas (...)”
19
Essa situação hoje parece estar relacionada a práticas indigenistas do presente (...),
nas quais as unidades administrativas da Funai (PI, ADR e Administração Central)
atuam, muitas vezes, sob pressão e de maneira parcial, no sentido de atender
reivindicações mais imediatas, que privilegiam pequenos grupos de índios ou
famílias indígenas, representando, ao que parece, uma espécie de barganha
conjuntural, um conluio entre administradores ineptos e índios. (2000: 49; grifos
meus)
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que fomenta relações de dependência, impulsiona e provoca divisões políticas e,
consequentemente, faccionalismos internos nos grupos (2000: 85; grifos meus)
20
aqueles que permanecem seguindo o cacique e o pajé instituídos ressaltam que boa parte dos
seguidores do grupo dissidente é jovem.
A segunda é que há nos três casos uma insatisfação generalizada com a atuação
política do pajé e do cacique: embora Díaz registre apenas a reclamação de que o cacique “não
se mobiliza, não busca melhorias”, nas outras duas ocasiões há novas acusações que se
somariam a esta: diz-se que eles só beneficiariam sua própria família e seus aliados próximos,
tanto no que diz respeito aos projetos, recursos e outros bens que seriam originalmente
destinados à comunidade, quanto com relação aos empregos oferecidos na aldeia, parte dos
quais cabe ao cacique e ao pajé fazer indicações (mais sobre isso adiante).
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A terceira característica está diretamente relacionada à segunda: são comuns
acusações de corrupção, enriquecimento ilícito (supostamente às custas da comunidade),
desvio e apropriação de recursos, não só com relação ao cacique e ao pajé, mas concernindo
vários ocupantes de cargos estratégicos dentre os Fulni-ô, como presidentes de associações,
servidores da Funai local e regional, ex-chefes de posto, entre outros mais. Fala-se de serviços
21
Em outro ponto, a dissidência atual rompeu por completo com aquelas do
passado: como já afirmei, Díaz deixou claro que se questionava então apenas a atuação
política do cacique, e o grupo dos anos 1990 também enfatizava, sempre que possível, que seu
propósito nunca foi contestar a autoridade religiosa das lideranças, e tampouco destituí-las de
seus cargos, mas apenas questionar sua atuação política. Afinal, os Fulni-ô sempre prezaram
muito pela preservação de sua organização religiosa, e procuraram sempre mantê-la à parte
dos problemas “mundanos” que os afligem. Sempre, também, ressaltaram a importância do
Ouricuri para sua vida enquanto comunidade, e relataram como ali se unem e se dedicam
coletivamente à sua religião.
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Dessa vez, contudo, a divisão chegou à organização religiosa – o que vários
Fulni-ô, algo desgostosos, disseram-me que nunca acharam que aconteceria –, com o apoio,
por uma parcela da comunidade, de novos cacique e pajé, enquanto outra parcela permanece
apoiando aqueles que já ocupavam o cargo.
Trato, a seguir, sobre como se dá (até onde se pode saber) a escolha do cacique
22
objeto de debate em vários trabalhos posteriores.
Podemos dizer que isso se deu por alguns motivos: em primeiro lugar, os Fulni-
ô questionam a exposição de informações que deveriam ser vedadas aos não-índios, ignorando
o dogma Fulni-ô do segredo – embora ele mesmo mencione, em sua etnografia, os “mistérios
ouricurianos” (1956: 145), dizendo que o “o ritual é rodeado de muitas precauções e sigilos”
(idem: 146), e ressaltando que “o segredo em torno do ritual ouricuriano garante (…) a
‘continuidade da tribo’ e constitui um dos elementos mais fortes de sua coesão social” (idem:
148). Isso não foi suficiente para impedi-lo de revelar não só o que o antropólogo Max
Boudin já havia registrado em artigo anterior sobre os Fulni-ô 14, mas de procurar “completar
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as lacunas” com suas pesquisas posteriores.
Em segundo lugar, contestam a falta de transparência na metodologia utilizada
para obter seus dados: de fato, não há clareza em sua obra sobre como, quando, e a partir de
quais métodos e técnicas ele obteve aquelas informações. Também ele próprio confirma, na
nota preliminar de seu trabalho, que distribuiu presentes e dinheiro aos indígenas durante seu
Cacique: não, eu não acho, eu acho que não, é aí que está, né? Que eu não acho, o
14 O próprio Boudin também não teve escrúpulos em fazê-lo, já que ele também registrou em seu artigo que
“foi extremamente difícil obter tais informações [‘relativas à vida tribal desse grupo indígena’], devido ao fato
de manterem os índios sigilo absoluto a respeito da religião que praticam, bem como sobre tudo que se relaciona
à vida social e interna da tribo” (1949: 47)
23
que se falou.
Cacique: pois é, falou isso, mas talvez ele nem entende do que ele falou, não sabe
(…) (idem: 15-16).
Curiosamente, ouvi algo muito parecido do cacique Cícero. Mostrei a ele uma
fotografia tirada pelo naturalista Carlos Estêvão de Oliveira na década de 1930, constante na
dissertação de Melo (2013), na qual apareceriam as cinco maiores lideranças desse povo,
identificadas pelo autor, em yaathê, como datkas ou datkasato (2013: 51). Pergunto se eles
seriam os representantes de cada um dos cinco clãs nos quais se dividiria a comunidade Fulni-
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ô. Ele inicialmente evita responder diretamente, depois se esquiva da pergunta e coloca em
dúvida a veracidade das informações, sem contudo apontar o que está exatamente errado, e
qual seria a versão verdadeira:
(...) hoje o senhor tá fazendo um trabalho conosco. Mas eu posso convidar 5
pessoas, de 60, 70 anos, e dizer assim: você vai ser o clã tal, e você o tal, o tal e o
Assim, embora de fato aquilo que Pinto registrou possa ser impreciso ou até
mesmo falso, não podemos desconsiderar a hipótese de que os Fulni-ô, ao questionar registros
como os de Pinto ou de outros antropólogos do passado, procurem despistar ou confundir seus
interlocutores, colocando-os em dúvida sobre a veracidade do que está registrado, já que são
temas absolutamente proibidos.
Porque os Fulni-ô valorizam tanto esse segredo no que diz respeito a tais
assuntos? Não é, sem dúvida, apenas um capricho. Sérgio Dantas afirma em sua tese, que,
segundo seus informantes,
o caráter fechado e enigmático do conhecimento sagrado é uma condição para um
regime de ordem no mundo: “… tem muita expressão sagrada que não deve ser
revelada para não-índios. Apenas se explica que os valores religiosos indígenas, em
alguns aspectos continuam sendo ocultos, fazendo assim resistir grandes fontes de
energia, sustentando espiritualmente todos os filhos da terra.” (2002: 92)
Assim, “o silêncio quanto ao sagrado guarda íntima associação enquanto
expressão moral de virtude e pureza. Manter-se puro na essência é a força Fulni-ô e sua
condição de acesso à fonte da sabedoria” (idem).
O que aconteceria se esse segredo fosse revelado por alguém? Comumente os
Fulni-ô lembram que tanto aquele que contou quanto aquele que ouviu podem ser punidos por
isso. Mas essa punição não é estabelecida pelos homens ou mulheres da comunidade, mas
24
pela “natureza” ou por Deus; uma punição vinda de outro plano, não só para essa, mas para
qualquer infração das regras referentes à religião e organização social. Não raro, os Fulni-ô
narram histórias sobre pessoas que adoeceram, com as quais aconteceram “coisas estranhas”,
ou até morreram. Melo diz que “o infrator deve fazer um ‘ajuste de contas’ com o mundo
ancestral, com a natureza que conecta o mundo humano e sobrenatural” (2013: 56). Dantas
reforça essa posição, declarando que, segundo seus informantes, não só “… muitos morreram
porque contaram...”, mas até “muitos povos que passaram o conhecimento se extinguiram!”
(2002: 95).
Hoje a antropologia se guia por outros parâmetros éticos, diferentes daqueles
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de quando Pinto realizou sua etnografia. Sua escolha de descrever determinados aspectos
culturais dos Fulni-ô em sua obra, mesmo sabendo do impedimento estabelecido pela própria
comunidade, são no mínimo eticamente questionáveis. Assim, por respeito ao segredo tão
caro aos indígenas; por conta das dúvidas acerca da veracidade das informações trazidas por
Boudin e Pinto, e pelo questionamento dos Fulni-ô relativos à pertinência da publicação
25
chamaram algumas dessas lideranças de “conselheiros”. Como não se sabe detalhes dessa
estrutura hierárquica, tampouco o nome desses cargos em yaathê, difícil saber ao certo se tais
“conselheiros” seriam uma outra tradução possível para o português da posição dos “chefes” a
que me referi, ou correspondem a outro lugar nessa estrutura. O fato é que uma importante
fonte afirmou que, além dos “conselheiros”, há ainda outras pessoas, que não seriam
denominadas lideranças, mas que seriam “responsáveis por organizar uma coisa aqui, outra
coisa ali” - atividades e tarefas religiosas específicas: “então, a estrutura que eu falo são isso:
o pajé, o cacique, as lideranças internas, e ainda mais [essas] pessoas” - lembrando que todos
estes são escolhidos tendo em vista os clãs ao qual pertencem.
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Vê-se, portanto, que, assim como o cacique e o pajé, a principal função dessas
chamadas “lideranças internas” é ritual. Segundo um informante, não é qualquer um que pode
se tornar uma liderança: algumas competências são exigidas delas, como falar bem o yaathê,
ser inteligente, bem articulado, ter conhecimento. As lideranças são nomeadas ritualmente,
assim como o cacique e o pajé. Segundo esse mesmo informante, mulheres podem ser
26
Discorro agora sobre o processo de indicação e sobre as funções do cacique e
do pajé. A cerimônia de indicação destes cargos, segundo Melo, “geralmente, (...) é realizada
na aldeia do Ouricuri, ainda que possa acontecer também na aldeia urbana de Águas Belas”.
Quando questionei alguns dos entrevistados sobre o assunto, contudo, disseram-me apenas
que é feita na aldeia da rua. Disseram-me, inclusive, que a recente indicação de Cícero ao
cargo de cacique aconteceu na casa da mãe de Edmar, uma importante liderança – mais sobre
isso mais à frente. A indicação de um novo pajé ou cacique é feita imediatamente depois que o
anterior falece ou deixa o cargo - “é enterrando um e já é botando o outro”, declarou-me um
dos informantes. Esses dois postos não ficam um dia só vagos. A cerimônia é aberta para toda
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a comunidade, e não apenas para as lideranças – mas são vedadas, como é de se esperar, para
os brancos. Como se sabe, a norma geral é que, uma vez nomeados, os dois cargos são
vitalícios – características sempre marcada, embora tenha havido exceções ao longo da
história, como se verá.
Segundo vários informantes, o que também foi confirmado pelo pajé Awassury
15 Em 20 de fevereiro de 2019.
27
e não “por herança”. Comparou os cargos a uma máquina de costura: se possuísse uma,
quando não puder mais usá-la, quem ficaria com ela seria alguém que tivesse competência
para isso, que soubesse trabalhar com ela. Diferente de uma casa, disse, que seria herdada
pelos descendentes diretos. Para reforçar seu ponto, relembra casos em que filhos do pajé e do
cacique não herdaram o cargo de seus pais.
Outra narrativa que foi apresentada por um informante é a de que os caciques e
pajés, quando idosos, já escolhem quem ocupará sua vaga quando morrerem, como se fossem
os “donos” desses cargos:
Antes deles [cacique e pajé] morrer, que tá os velhos já fraco, diz: bota, fica para
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fulano de tal a vaga aí. Fica para ciclano. Aí pronto. O caba não tem mais o que
dizer: vai botar fulano, né? Porque quem deu o direito foi o dono. Uma hipótese:
Seu pai está velhinho. Aí diz: Olha, você vai ficar no meu lugar aqui. Não é seu
lugar? Não há quem tire. No meu ver não há quem tire não.
Para escolher os próximos cacique e pajé, os atuais convidariam alguns dos
28
106). Reproduzo a seguir algumas citações nesse sentido:
Agora de Cacique o que eu vi esse aqui é recém-chegado. Mas ele foi escolhido por
Deus Todo Poderoso. Não foi ninguém da terra que botou ele não. - entrevistado 1
Um cacique e um pajé é iluminado pela Providência Divina. É ela quem vai dizer
quem é. - entrevistado 2
A eleição de pajé e cacique, a nomeação de pajé e cacique é feita, como o senhor
falou, de maneira oculta, que só nós sabemos, que é do lado espiritual, como ele
falou, vem lá do Superior, do Senhor superior que é Deus. - entrevistado 3
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Como cabe a Deus nomear tais lideranças, também caberia a Ele destituí-las,
segundo os relatos – e como o cargo é vitalicio, a destituição aconteceria só com a morte:
Dentro da nossa cultura diz o seguinte: quando ele não serve, não dá mais, ou não
serve para ser o líder daquele povo, simplesmente é tirado de uma outra forma,
dolorosa, mas é tirado.
Gildiere: eu não, eu não tinha nem entrado. Mas já que eu entrei, eu vou até a
morte.
Cicero: (…) como é uma missão, eu não posso desistir. Infelizmente, digo,
felizmente.
_______
Awassury: se existisse querer, o meu querer seria negativo. Não por falta de amor, e
sim por saber o tamanho da responsabilidade que [com] isso viria.
29
fatos, ou pela falta do tempo necessário para levantar essas informações. Assim, indicarei
apenas períodos aproximados.
No que concerne aos caciques, o primeiro que se tem algum registro, citado por
um informante, foi João Ribeiro. Note-se, como já apontei acima, que a família Ribeiro
alterna historicamente o cacicado com a família Santos/Sarapó. Provavelmente viveu entre a
segunda metade do século XIX e início do XX. Lembro ainda que Dantas nos apresenta uma
solicitação feita em 1864 por um capitão dos índios da aldeia do Ipanema chamado João
Correa Caboré. Pelo período em que viveu, certamente é anterior à organização política,
imposta pelo SPI, que incluía os papéis de cacique e pajé – é do tempo dos capitães e
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maiorais. Não obstante, é referido pelos Fulni-ô como cacique, utilizando o vocabulário de
hoje, provavelmente porque é a função política que mais se aproxima daquelas vigentes
naquele tempo. Embora não haja nenhum indicativo claro de que João Correa Caboré era o
João Ribeiro, não se pode descartar essa hipótese – é bastante comum, entre os indígenas, que
os nomes de registro não correspondam ao nome pelo qual ficaram conhecidos, já que muitas
30
seu filho maior. Como este não aceitou e como os demais filhos eram muito jovens, o cargo
foi dado a Zé Correa que, apesar de ser da família de Zarapó, não era descendente direto”
(1983: 74). Díaz não deixa claro qual era o parentesco de Zé Correia com Zarapó.
Nenhum informante com o qual conversei confirmou essa versão. O que se diz
dele é que, durante um Ouricuri, sua esposa quis interferir em uma questão ritual, o que gerou
um desentendimento. Um informante disse que ela “queria mandar na camarinha” - locais na
aldeia do Ouricuri onde os homens dormem, cujo acesso Às mulheres é proibido –, o que eles
não aceitaram. Segundo alguns relatos, ela colocou o marido numa situação em que ele teve
que fazer uma escolha; teria dito que “se fosse homem tomava uma atitude”. Como ele não
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fez o que ela quis, retirou-se do Ouricuri, e entregou seu cargo. Um informante declarou que
ele não foi um bom cacique; de fato, José Correia é pouco lembrado nas entrevistas.
O que é importante observar no caso de José Correia é que ele foge a duas
regras relativas ao cargo: a sua transmissão ao filho mais velho, e a vitaliciedade. Não
obstante, se a informação fornecida por Díaz for acurada, ainda assim ele é da família de
31
difícil saber detalhes do motivo dessa interinidade (“nós fica numa situação difícil de explicar
esse tema ao senhor, entendeu?”). O que se sabe, segundo uma versão, é que haveria um
“dono” do cargo, que não poderia assumi-lo momentaneamente – ele estaria doente, dizem
alguns. Quando perguntei se esse dono era João de Pontes, o cacique posterior a Zuma,
responderam-me que não: “ninguém sabe quem é [o próximo cacique]. Aí de repente a
missão… depois a missão veio pra ele [João de Pontes]”. Um dos filhos de João de Pontes
afirmou que, com a morte de Procópio, houve uma indefinição de quem seria o próximo a
assumir o posto:
Filho 1: Tem meu pai [João de Pontes]. Tem o tio… tinha três irmãos dele. Tinha
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outro tio dele, irmão do outro cacique [Procópio]. Entendeu? Então quer dizer…
meu tio, então podia ser meu tio Sérgio.
Filho 2: Qualquer um.
Filho 1: Entendeu como é que é? Aí tinha um mais velho, que era tio de papai, tio
Sérgio, que era irmão... então ficou aquele… entendeu? Não, enquanto se resolve
isso, fica você [Zuma] tomando conta aí da cadeira, quando chegar a um
32
segundo quem a conta, “cacique teve dono, mas o pajé não teve” - “é uns argumentos que eles
dizem, eles mesmo se desdizem”. Ainda assim, como registrei aqui, a versão mais comum diz
o contrário. O segredo que ronda o assunto impede que se entenda os meandros dessa
divergência.
Zuma entregaria então o cargo para João de Pontes. Além do caráter transitório,
os informantes citam outros motivos para isso. Zuma gostava bastante de viajar, exercendo a
função de representante de sua comunidade para fora, mas não tanto das obrigações e
responsabilidades internas e religiosas, inerentes à função – teria se tornado cacique “a pulso”:
viajava pra Brasília, viajava pras capitais, fazia e vendia artesanato, quando chegava
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comida, dava pra o povo, vários guerreiros indígenas [de outros grupos] conhecem
ele. (...) Só que ele estava mais na questão de cacique guerreiro, de botar para o
povo, do que…que foi quando ele aproveitou quando João Pontes chegou. E foi ele
mesmo que deixou, e disse: não, agora vai ser ele, me livrem.
Outro informante corrobora: ele “tava querendo liberdade. Não queria ficar
33
Genealogia dos caciques da família Santos/Sarapó
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http://www.transparencia.mpf.mp.br/validacaodocumento. Chave 569A195F.8F904AFA.6D448D9A.10EEA1CC
Passo agora à retrospectiva dos pajés Fulni-ô.
O primeiro pajé de que se tem registro é Gabriel Ferreira de Sá. Pinto menciona
apenas seu primeiro nome, para dizer que antecedeu ao “pajé João Grande, que faleceu em
1921, com mais de cem anos” (1956: 134). Podemos localizá-lo, portanto, a partir de meados
do século XIX. Um informante foi quem citou seu sobrenome, vinculando-o à família Ferreira
de Sá. Não se sabe muito mais sobre ele.
Sobre João Grande, que o sucedeu, sabe-se pouco também. Segundo alguns
relatos colhidos, seu nome completo seria João Pereira Júnior – o que o filia à família Pereira
–, e seria o tataravô de Gildiere. Há uma narrativa corrente, entre os Fulni-ô, sobre um pajé no
passado (alguns localizam-no no final do século XIX) que teria sido responsável por uma
suspensão temporária do Ouricuri. Esse período, entre o fim do século XIX e o início do XX,
foi especialmente problemático para os Fulni-ô: o aldeamento havia sido oficialmente extinto,
vários conflitos se desencadearam entre eles e os poderosos de Águas Belas e da região (que
não reconhecia a posse indígena da área do antigo aldeamento), e vários ataques foram
perpetrados contra a aldeia, inclusive com incêndios propositais. Boa parte dos indígenas
fugiu dali, migrando para outras localidades na região. Um relato de um entrevistado apontou
que foi justamente João Grande o pajé que “acabou” com o Ouricuri. Essa versão, contudo,
parece bem distante de ser consensual. Em verdade, parece revelar algum tipo de tensão,
divergência ou rixa entre famílias, segmentos ou linhagens, que pode ter sido acionada no
momento atual para reforçar a oposição à família Pereira, da qual Gildiere faz parte.
O pajé seguinte foi Basílio Ferreira de Sá – note-se que, mais uma vez, o cargo
34
alterna de família, voltando para os Ferreira de Sá. Era ele o pajé à época da visita de Estêvão
Pinto aos Fulni-ô, na década de 1950, no mesmo período de Sarapó – isto é, era então pajé há
trinta anos, desde a morte de João Grande. Não se sabe quando ele teria falecido. A Basílio
seguiu-se Julião Pereira Júnior – voltamos então à família Pereira. Segundo alguns relatos,
Julião seria filho de João Grande, informação que não pude confirmar. De toda forma, conta-
se que ele não estava exatamente sozinho no exercício dessa função – Paulo Ferreira de Sá
atuava com ele. Este último “não se anunciava nem se pronunciava Pajé em lugar nenhum”, e
“não entrava em trabalhos administrativos”, e portanto era desconhecido pelos brancos.
Contudo, aparentemente dividia as tarefas religiosas com o pajé titular. Um informante o
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descreveu como um substituto, um vice-pajé, em suas palavras:
Entrevistado 1: se um Pajé vai a uma obrigação, aí aquele fica, atende, né? Quem
vier atende né? (…) pra viagem, essas coisas, né? O prefeito não tem o vice, né? Aí
quando ele sai, aquele outro fica lá, né? Quer dizer que é o vice. É assim.
Já outro relato dá mais peso à atuação de Paulo, e relativiza a relevância de
Julião: “Julião Pereira Júnior desconhecia as regras, então Paulo Ferreira de Sá era quem
35
6 – Gildiere Ribeiro Pereira (família Pereira)
36
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Genealogia dos pajés da família Ferreira de Sá
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3. A DISSIDÊNCIA FULNIÔ
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crise atual foi a eleição de Cícero como cacique Fulni-ô, em agosto de 2018. Ela é sempre
citada pelo grupo dissidente como algo de que discordaram frontalmente, e que causou grande
desconforto.
Entretanto, como veremos, outro fator, anterior, teve peso considerável na
configuração dessa situação: as tratativas feitas com a Chesf para o pagamento de indenização
38
Ouricuri, em meados de agosto último. Pouco depois da cerimônia de escolha, conversei,
presencialmente ou por telefone, em momentos diferentes, com alguns indígenas que estavam
presentes nela. Procuraram-me para tratar sobre outros assuntos, mas conversamos também
sobre a indicação do novo cacique, ainda muito recente. Narraram-me então que ainda
estavam espantados e decepcionados com o que havia acontecido: os procedimentos não
teriam sido em nada da maneira que esperavam, e o pajé teria articulado, nos bastidores, para
que o cacique escolhido fosse Cícero, próximo a ele, o que contraria as regras de transmissão
do cargo. Disseram-me que “todos viam” que era pra ser uma outra pessoa, mas no momento
de indicação, outro indivíduo foi apontado. Alguns teriam passado mal, e muitos indígenas
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teriam saído de lá revoltados com o que haviam presenciado.
É preciso sublinhar que não quero dizer com isso, de forma alguma, que esse
tenha sido o sentimento majoritário, mesmo que possa de fato ter sido esse o caso. Não vou
fazer conjecturas sobre o contingente que apoia cada lado, como já apontei na introdução.
Contudo, sabendo o que aconteceria depois, não há como não notar que nascia (ou crescia) aí
16 PRM-GRU-PE-00008866/2018
39
representantes políticos da sociedade nacional?
Como se viu, a natureza eminentemente religiosa do cargo de pajé e cacique
são sempre lembradas, inclusive pelas próprias lideranças. Não obstante, reconhece-se
também o seu papel de representantes da coletividade, embora pareça haver a percepção de
que tal papel se impôs pelo contato interétnico, e especialmente por conta do início da atuação
do órgão tutor entre os Fulni-ô.
Parece-me que, em situações em que as lideranças tomam decisões de cunho
político que não são consensuais, há sempre quem defenda a restrição de sua atuação à arena
religiosa (como faz o advogado Roberto e seus representados aqui), enquanto os que apoiam
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tais decisões defendem sua legitimidade por conta do caráter também político desses cargos.
Nesse sentido, Cícero, por exemplo, declara na reunião que “esse grupo que vem pleiteando
direitos em nome da comunidade, ignorando sua posição de liderança, está desrespeitando a
organização social da tribo”. Essa mesma posição foi endossada na ocasião por Gildiere. Dr.
Felipe, que representava então os proprietários, afirmou que “Pajé e Cacique sempre
40
dúvidas: isso não significou em nenhum momento a destituição de Cícero, já que outra parte
da comunidade permaneceu apoiando-o.
Tanto o pajé Gildiere quanto o cacique Itamar contam que, depois da escolha
do último como cacique, o último procurou o primeiro, ainda durante o Ouricuri. Segundo
Gildiere, isso teria ocorrido no último dia do ritual, quando estava em uma reunião
deliberando a respeito do seu encerramento. Itamar, acompanhado por outros homens,
abordou-o, perguntando-lhe se “trabalharia” com ele (enquanto liderança). Gildiere teria
respondido que trabalharia com ele como trabalha com todo o povo Fulni-ô, mas não o
reconhecia como cacique.
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Provavelmente por isso Itamar declarou, em reunião realizada nesta PRM em
20 de fevereiro do presente ano, que Gildiere, que “não teria autonomia para interferir na
escolha efetuada, impôs a manutenção do cacique anterior, pelo que se fez necessária a
nomeação de um novo pajé” (p. 2 da ata). Com efeito, ainda de acordo com o ofício da Funai,
no dia 8 de dezembro, já no encerramento do Ouricuri, foi escolhido Awassury Araújo de Sá
41
dissertação, nota que em vários momentos da festa que presenciou, em 2010, cacique e pajé
estavam presentes no altar da igreja, ao lado dos padres, como também no que chamou de
“palco sacerdotal”, ao final da procissão que encerra a festa, onde também estavam presentes
autoridades como o prefeito, o arcebispo da diocese, entre outros (2013: 126-134). Nessa
última ocasião, as duas lideranças fizeram um discurso. Ambas eram também citadas com
frequência pelos padres celebrantes das missas na ocasião. Tudo indica, portanto, que sua
participação nesses momentos é de praxe.
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Foto 1 – reunião, durante o trabalho de campo, na Escola Bilíngue Antônio José Moreira, março de 2019. Foto
do autor.
É compreensível, portanto, que sua participação dessa feita gerasse uma certa
apreensão (provavelmente até para a Igreja), possivelmente porque isso poderia ser entendido
como uma tomada de posição do clero local em favor da legitimidade de um grupo, em
detrimento do outro. Assim, enquanto o grupo que apoia Gildiere e Cícero afirma que os
dissidentes haviam pressionado o padre até para suspender a festa, estes declararam, por sua
vez, que o próprio padre havia pedido aos dois que não se apresentassem como cacique e pajé
durante a missa, porque “não era bom isso, e a comunidade não aceitava”. De uma forma ou
de outra, a festa transcorreu sem maiores problemas, e Cícero e Gildiere estiveram presentes
como representantes da comunidade.
Durante meu trabalho de campo, em março, também foi bastante perceptível o
clima de tensão. Pessoas ligadas aos dois grupos evitavam se manter nos mesmos espaços e
travar diálogos além do necessário. Conforme os relatos dos entrevistados, o mesmo acontecia
em famílias cujos membros apoiavam grupos diferentes: ou evitavam tocar no assunto, ou se
afastavam. Houve até relatos de casais que estavam separados por conta da cisão.
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Também me informaram na ocasião que aqueles ligados a Itamar e Awassury
não vinham participando dos encontros semanais na aldeia do Ouricuri, que acontecem
geralmente duas noites por semana, de janeiro a maio. De um lado, o grupo instituído dizia
que estes não participavam por iniciativa própria, e por isso até questionavam seu
compromisso com o ritual. Afirmavam ainda que nunca se manifestaram contra sua
participação, e que seriam bem recebidos se decidissem ir, como sempre foram. Diziam, pelo
contrário, que eram Itamar, Awassury e alguns indígenas próximos que estavam coibindo ou
até ameaçando seus correligionários se demonstrassem desejo de ir às reuniões, o que
consideravam condenável. Do outro lado, o grupo dissidente afirma que vários dos seus
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haviam sido ameaçados por pessoas do grupo oposto caso fossem aos encontros no Ouricuri, e
que, assim, eles não iam por medo.
No início de abril, comunicaram-me que o até então coordenador da CTL-AB,
Iranildo Frederico da Silva, conhecido como Izinho, havia sido exonerado do cargo. Para seu
lugar, havia sido nomeado José Cordeiro (conhecido como Xavante), também indígena Fulni-
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uma controvérsia central, que tem relação direta com a primeira categoria: o abaixo-assinado.
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Foto 2 – indígenas entrevistados durante o trabalho de campo em casa na aldeia, março de 2019. Foto do autor.
3.2. O abaixo-assinado
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Em sua dissertação, Melo define grogojó como uma “palavra que designa o
caráter marginal, aqueles que não têm uma posição claramente definida enquanto integrante
do grupo, ou seja, se referem basicamente aos filhos de Fulni-ô (participante do ritual) com os
não-indígenas (othayto-á de Águas Belas)” (2013: 141; grifo do autor).
Estes teriam assinado, portanto, por desconhecimento ou por ingenuidade, seja
por ignorar as regras e preceitos religiosos relativos à escolha das lideranças, seja por não
estarem bem informados sobre a cisão que se formava, ou ao uso que seria feito daquele
documento. Segundo alguns indígenas, Gildiere e Cícero teriam sido procurados, depois de já
enviado o abaixo-assinado, por indígenas que diziam ter sido enganados, e que queriam retirar
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suas assinaturas.
Isso não quer dizer esse grupo acredite que todo o grupo dissidente é composto
por “grogojós”, mas entendem que o tamanho do apoio a Awassury e Itamar pela comunidade
indígena, como expresso pelo abaixo-assinado, pode ter sido inflado pelo uso das manobras
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nunca foi esse. Afirmam que ambos foram escolhidos segundo as normas e princípios
religiosos próprios dos Fulni-ô, e que o documento é apenas um meio para comunicar
formalmente para as instituições externas a escolha das novas lideranças, expressando o apoio
do povo para tal:
para o não-índio precisa-se da documentação, ofício, essas coisas. (...) a
gente não tem como chegar e dizer lá no Ministério Público, ou em outro
órgão, que a gente é pajé e cacique sem ter algum tipo de documentação. E
resolveram fazer aquele abaixo-assinado.
Outra entrevistada, dizendo-se “tão constrangida” com o abaixo-assinado, foi
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mais específica: declarou que foi “[solicitação] da secretária do presidente da Funai”, pois ele
“recebe a oficialização do pajé e do cacique”. Isto é, para eles, o documento é apenas um
registro oficial para que os brancos sejam informados sobre essa escolha e passem a tratá-los
como lideranças.
Ainda que isso minimize a relevância do abaixo-assinado, não há dúvidas de
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comunidades indígenas têm também certa responsabilidade no que diz respeito a estes postos,
já que qualquer ação (ou omissão) sua pode afetar diretamente o exercício de suas funções e
até sua legitimidade perante a comunidade, especialmente em casos (como o presente) em que
há uma dissidência nesse campo. Isso porque – e aqui falo genericamente –, se estes órgãos
tratarem como lideranças apenas aquelas já instituídas anteriormente, podem ajudar a validar
pajés e caciques que porventura estejam incorrendo em ações prejudiciais a parcelas da
comunidade, ou abusando de seu poder, usando-o apenas a favor de si ou de seus aliados, ou
com condutas antiéticas ou até irregulares; se entenderem como lideranças (exclusivamente ou
em conjunto com as já instituídas) aquelas ligadas à dissidência, podem contribuir para
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fortalecer a cisão da comunidade, e também ajudar a dar respaldo como lideranças indígenas a
pessoas apoiadas por um grupo (que pode até ser minoritário) que quer chegar ao poder à
força. Omitir-se também não deixa de ser um problema: isso pode favorecer o grupo maior e
mais poderoso (geralmente o grupo instituído, contestado pela dissidência), que, como
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propriamente, agindo de acordo com as regras e princípios devidos, enquanto o outro lado se
desvirtuou deles em virtude de objetivos escusos – geralmente relativos a recursos, a poder ou
a ambos.
A controvérsia central no campo religioso, como já se apontou, iniciou-se com
a escolha de Cícero como cacique. Como essa seara é repleta de segredos, não tive acesso aos
detalhes necessários para entender plenamente o que se passou, mas descrevo a seguir alguns
aspectos básicos do imbróglio.
Já descrevi as reações adversas que essa escolha provocou em parte da
população. Isso porque, segundo alguns que se opuseram à indicação, ela não correspondeu
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em nada às suas expectativas sobre a indicação de um cacique.
Como João de Pontes já era cacique há décadas, boa parte dos Fulni-ô jamais
havia visto a nomeação de um novo cacique. O que eles sabiam sobre essa cerimônia vinham
da narrativa dos pais e avós. Contudo, aqueles ligados ao grupo dissidente disseram que o que
viram não foi nada igual ao que ouviam em suas descrições.
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chamam a atenção, é fruto da providência divina, que atribui uma missão ao escolhido
(missão essa que, aliás, todos disseram que provavelmente rejeitariam, se lhes fosse oferecida
essa alternativa, como já apontei). Uma entrevistada deu a entender que a missão de liderança,
aliás, é um destino que já está traçado desde o nascimento, embora se revele apenas no
momento certo: “não foi nossos Pajé, não foi nossas lideranças que quiseram ser, eles são,
doutor. No momento em que eles nascem, eles já são designados consagrados. Não é eu que
vou dizer: meu filho, meu sobrinho fulano de tal vai ser. Não!”
Se a indicação vem do Altíssimo, como muitas vezes eles relatam, e está pré-
definida muito antes de ser revelada, como foi possível que alguém que, segundo o grupo
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dissidente, alguém que “não era pra ser” se tornasse cacique? Um indígena desse grupo
explica dizendo que os responsáveis pela indicação foram “usurpadores”, recorrendo a uma
fraude:
os seus antepassados [dos grupos indígenas], com a graça do Criador, habita em
alguém para nomeá-lo como tal. Daí que existe um usurpador, aquele que se faz do
Entrevistado: Tem não. É homem e mulher. Nós respeita muito eles [as lideranças].
Eles pedem à gente, a pessoa faz.
Outra entrevistada afirmou que não existe esse tipo de divisão: “ali não foi
homem não foi mulher que escolheu ele. É o dom que Deus deu a ele. É dom”. Outro
entrevistado, mais jovem, afirmou que existem histórias de que no passado uma mulher
também indicou dois caciques, em duas gerações diferentes, o que tornaria inválido esse
argumento.
Se o grupo que segue Itamar e Awassury questiona a nomeação por uma
mulher, o grupo de Cícero e Gildiere questiona a nomeação de Itamar, dizendo que não foi
feita da forma que a religião preconiza. Mais do que isso, muitos questionam se Itamar atende
aos requisitos mínimos para ser nomeado cacique. Isso porque com frequência apontam que,
embora ele próprio e seu pai frequentassem o Ouricuri, seu avô não o fazia, e que, portanto,
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ele teria uma ascendência parcial não-indígena. É por isso que, segundo esse grupo, ele seria
aquilo que os Fulni-ô chamam de grogojó, termo já abordado no tópico anterior.
Outro entrevistado se referiu ao pai de Itamar como mlati, “filho de caboclo”.
Entendo que o termo “caboclo” aqui se refere ao filho de um índio com um branco. Melo cita
o termo mlati ao tratar de outro, othayto-á, que seria “a forma mais comum de nomear os
indivíduos não indígenas. Os Fulni-ô utilizam também mlates, molates, mlatinkia, brancos,
acabraiados, denominações empregadas para referir-se ao ‘outro’ em oposição a ‘eu’’ (2013:
69, nota 24; negrito meu). Como grogojó, ou alguém cujo avô não participava do Ouricuri e
tinha ascendência branca, dizem alguns, ele não atenderia a ao menos um dos critérios
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exigidos para se tornar um cacique – embora ele já fosse uma liderança há algum tempo, e
aparentemente ninguém houvesse, à época de sua nomeação como tal, apresentado oposição a
isso.
Como não apenas um novo cacique foi nomeado, mas também um novo pajé,
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tamanho da responsabilidade que isso viria”. Também diz que recebeu a notícia da indicação
de Gildiere com alívio: “cheguei dentro de casa e disse: ufa! Porque se você quer carregar um
fardo que eu sei que pesa para mim, eu digo: muito obrigado!”.
Apoiadores de Gildiere e Cícero, por sua vez, ainda que não entrem em
detalhes, negam que haja propriamente uma ordem pré-definida para a escolha de pajés e
caciques segundo um critério único, e explicar esses processos nesses termos é uma
banalização e simplificação excessiva de sua religião. Ressaltam que, embora se saiba quais
são os possíveis “candidatos”, nunca se sabe ao certo quem vai ser o escolhido, e que há
sempre um aspecto de mistério e segredo inerente a tais indicações – que, ademais, são
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definidas pelo “Altíssimo”, não pelas pessoas. Não obstante, reconhecem que tanto Itamar
quanto Awassury já eram lideranças muito importantes em sua prática religiosa: “muito
importante dentro da nossa religião eles são. (…) eu acho que eles tinham era aconselhar nós,
que somos só seguidor deles, não eles incentivar a pessoa deixar a religião”.
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acreditam ser o caso – os dois declaram que não vão abrir mão de seus postos, pois são eles as
lideranças legítimas.
Outro tópico frequente nos discursos de membros dos dois grupos, como já
indiquei, está relacionado a recursos e empregos. Ambos os grupos acusam o grupo oposto de
concentrá-los em poucas famílias ou em aliados próximos, ou de querer se apossar da maior
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parte deles, em detrimento do restante da comunidade. Aqueles indígenas ligados a Cícero e
Gildiere também declaram que o surgimento dessa dissidência é apenas uma estratégia para
que alguns de seus líderes passem (ou voltem) a ter controle sobre empregos e recursos. É
frequente ainda a acusação de que a questão religiosa é apenas um disfarce, uma desculpa,
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um dos componentes da comunidade com os quais precisava-se entrar em acordo, sendo
convidados pelo MPF para todas as reuniões que tinham o objetivo de prosseguir com as
negociações, acreditam que foi ignorada a organização social Fulni-ô e a hierarquia vigente
nesta comunidade, o que ajudou a acirrar os ânimos – afinal, a já existente oposição entre este
grupo e as outras partes interessadas, que entraram eventualmente em acordo, se tornaria
crescente. Esse grupo, com sua participação ativa no processo, teria aos poucos se tornado
mais confiante e seguro, conquistando adeptos. Valendo-se do que boa parte da comunidade
considera fracasso da indenização anterior, já que viram poucos benefícios revertidos para a
coletividade, convenceram-nos de que dessa feita deveria ser feito diferente. A morosidade na
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conclusão da negociação (embora se deva a inúmeras razões) transmitiu a sensação, para os
dois lados, de que era fruto da atuação desse grupo, que visava interromper as tratativas feitas
nos moldes vigentes até então.
Aqueles que seguem Gildiere e Cícero pensam, portanto, que eles conquistaram
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pelo espaço e voz que se permitiu ao grupo independente – nada disso teria acontecido. Ainda
que isso seja possível, e sem ignorar o grande peso que a negociação com a Chesf e as
divergências tiveram para a cisão, certamente outras razões contribuíram para isso – que estão
sendo indicadas nesse parecer.
Como é de se imaginar, Aristides e os demais membros desse grupo negam
qualquer interesse pessoal no valor que está sendo negociado a título de indenização, já que se
descrevem como cidadãos comuns que se mobilizaram para reivindicar os direitos da
comunidade, veículos do desejo de sua ampla maioria por uma distribuição mais justa e
equitativa dos recursos que são recebidos em seu nome. Invertendo as alegações do grupo
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oposto, afirmam que são os outros quem têm interesses pessoais quando apoiam Gildiere e
Cícero. Afinal, segundo essa narrativa, seus seguidores seriam compostos apenas pelos
proprietários dos lotes atingidos pelas linhas de transmissão (cuja proposta de distribuição do
valor da indenização é endossada pelas duas lideranças) e aqueles que têm emprego na aldeia
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aliar a malfeitores, de fazer conluio para receber recursos indevidamente, de manipular a
comunidade para conseguir seguidores, entre outros. Às supostas irregularidades no âmbito
religioso, portanto, somar-se-iam as irregularidades no âmbito material, às expensas da
comunidade – e o grupo de Gildiere e Cícero é apontado como responsável por todas elas.
Portanto, é comum ouvir entre membros do grupo dissidente frases que denotam como a
comunidade tomou consciência dos erros cometidos (nas duas searas) e decidiu agir para
transformar a estrutura que permitiu que perpetuassem, substituindo as lideranças:
Entrevistado 1: Esses pessoal que só queria para si próprio. Não é desse jeito. O
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senhor pegar vantagem em nome de seus filhos [filhos como metáfora para a
comunidade] e no fim das contas o senhor vai destruir o que se arrumou em nome
de seus filhos, e no fim da conta seus filhos passando fome. Então isso não cabe
para nossa comunidade. e por causa disso é que tem essa separação. Mas nós agora
estamos unidos, e eles dois [Gildiere e Cíciero] se chama se estaca zero.
Entrevistado 4: e nós estamos nisso há muito tempo aqui. É de agora que nós
estamos sofrendo? [os demais presentes respondem: não!] Agora todos eles
acreditaram que a comunidade um dia não ia abrir os olhos, não ia se acordar.
Por sua vez, aqueles que permanecem com Gildiere e Cícero sempre sublinham
como algumas figuras proeminentes do outro lado, como Aristides, Elídio de Freitas e Max
Araújo (atual vereador e genro do falecido João de Pontes) também já receberam recursos e
geriram projetos que teriam a comunidade como beneficiária, mas que teriam terminado
beneficiando apenas, ou principalmente, a si próprios, ou se valeram da proximidade daqueles
com poder para obter vantagens.
Além de recursos, outro tópico relacionado, também muito citado nessa
controvérsia, são os empregos. Esses empregos são aqueles ofertados na própria aldeia, por
órgãos responsáveis por políticas públicas específicas para os povos indígenas (Funai, Pólo-
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena e escolas indígenas), nos quais contrata-se
majoritária ou em sua totalidade moradores da própria comunidade. Eles são muito
valorizados porque constituem uma das poucas fontes de renda seguras e de valor
considerável na aldeia, em um local onde há poucas alternativas de emprego e renda, quase
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todas pouco frutíferas e inconstantes.
Na Funai, embora haja, até onde se sabe, apenas indígenas trabalhando hoje
(são por volta de 30 servidores), foram todos contratados nos anos 1980, ainda sem concurso
público. Os funcionários do Pólo-Base, pelo que se sabe, passam por um processo seletivo
coordenado pelo DSEI-Pernambuco. As escolas indígenas, por sua vez, contratam, entre
merendeiras, auxiliares de serviços gerais, motoristas e professores, mais de uma centena de
pessoas. Não há processo seletivo aqui: por conta de barreiras legais e burocráticas, a
indicação dos contratados (temporários, renovados ano a ano) é feita há muitos anos pelas
próprias lideranças indígenas, cacique e pajé – isso é de praxe em todas as comunidades
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indígenas no estado de Pernambuco. Isso lhes concede um poder considerável, pela
importância e valor que se dá a esses empregos. Há uma grande concorrência pelas vagas, e o
contratado termina por beneficiar não apenas a sua família nuclear, da qual muitas vezes é o
único com renda regular, mas também sua família mais ampla. O impacto de um contrato
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atropelaram a religião.
Por fim, outro ainda declarou: “e hoje o Cícero de Brito só conseguiu pessoas
[seguidores] porque ele ofereceu emprego, foi ou não, gente? [para os outros presentes, ao que
responderam: foi!]”. Isto é, enquanto a indicação para estes empregos for da alçada do cacique
e do pajé, vai sempre estar sujeita à dúvida se há motivos furtivos.
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Outra acusação frequente entre os dois grupos é a de que há indivíduos ou
famílias que buscam ascender ao poder, conquistando correligionários e alcançando posições
estratégicas de liderança, para poder tomar decisões e gerir recursos.
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nomeá-lo: ele fazia graduação em Brasília, morava fora há anos e iniciava uma vida voltada
para os estudos, e por conta de sua indicação como pajé teve que abandonar o curso e retornar
para Águas Belas. Quando questiono se ela teria tido participação na indicação de Itamar e
Awassury, um responde: “é a rainha”; e o outro diz: “não é de hoje não, e ela sempre tentou”.
Há, inclusive, uma narrativa corrente entre os Fulni-ô, de que Marilena teria
tido participação fundamental em conflitos ocorridos entre os Xukuru de Ororubá, em
Pesqueira/PE, e Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, onde teria trabalhado no passado.
Segundo contam, teria “feito confusão”, estimulado indígenas a entrarem em rota de colisão
com outros grupos sociais (não ficou claro se indígenas ou não), com más consequências para
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eles.
Outro fato notável é a conhecida rivalidade histórica entre Marilena e sua
família com João de Pontes e sua família, citada pelos dois grupos. Embora o grupo das
lideranças instituídas não tenham chegado a explicar em detalhes a razão, ligando isso apenas
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chefiou o Conselho Local de Saúde, que fiscaliza a prestação de serviços de saúde do DSEI na
aldeia. Relembro ainda que Max é vereador (com mais de um mandato), sua esposa é
coordenadora da educação escolar indígena Fulni-ô, e seu cunhado e seu enteado foram
coordenadores da CTL da Funai em Águas Belas. Assim, o que insinuam é que ele teria se
habituado com o poder, rodeado por pessoas ocupando cargos estratégicos, e ele próprio e sua
família teriam se beneficiado disso.
Foi por isso, afirmou um entrevistado, que quando viu que seu João estava
perto de partir, e imaginando que poderia deixar de ter poder e influência, já “começou a fazer
esquema, pedindo dinheiro a prefeito para patrocinar [novos] cacique e pajé”. Outros disseram
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que isso aconteceu apenas depois do falecimento do cacique “quando João de Pontes faleceu,
aí [Max] perdeu as pernas e os braços, não sabia pra onde agir mais. Aí viu que a lei não era
do jeito que eles querem. É divina. Aí foi pra outra família [Araújo], aí ficaram…”. Outro
entrevistado, similarmente, declarou que o que está acontecendo é que “o malandro que se
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3.6. “Questões pessoais”
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pajé, para depois distribuí-la para o restante da aldeia. Segundo os seus apoiadores, isso foi
porque, com a seca recente, quando chegava o caminhão “vinha a tuia de gente, vum! Tudo
atrás da água”, e tinham receio de que, na “bagunça, aqui no meio do povo”, o pajé acabasse
“levando uma latada na cabeça, um balde”. Assim, ele passou a ser o primeiro a encher sua
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é esse. E com Dique. Todo mundo tem. Aí quando aproveitaram essa questão aí, aí tiraram [as
novas lideranças]”. Por pensarem que o cacique ou o pajé teriam lhes feito mal, passaram a
dizer que não são legítimos, ou que não deveriam ocupar esses postos. Contudo, dizem, “se
ele tem a capacidade de ser cacique, o cacique é ele. Não é porque não gosta (…) que eu vou
dizer que ele não é o cacique”.
Os dissidentes, de fato, citam situações como a do caminhão-pipa e a das cestas
básicas como alguns dos vários erros, desvios e problemas que identificam na comunidade,
exemplos de uma atuação que, para eles, privilegia alguns poucos em detrimento da
totalidade.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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complexo – e repleto de segredos. Eles, contudo, não são lideranças com o mesmo status das
demais, mas as duas principais, com papéis fundamentais nas práticas rituais e religiosas
indígenas. Assim, o que se vê é que o SPI acrescentou à sua função de chefia sócio-religiosa
(isto é, interna) uma função de chefia política (isto é, externa). Portanto, embora haja entre os
Fulni-ô mais de uma centena de lideranças, estas permanecem exercendo seu papel apenas
internamente, para fins quase exclusivamente religiosos, e longe dos olhos dos brancos,
enquanto coube ao cacique e ao pajé exercerem o papel de representantes externos.
Esse acréscimo de atribuições políticas a dois cargos que sempre foram, e ainda
são, primordial e fundamentalmente religiosos é fonte de uma tensão permanente, que entendo
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que consiste numa das principais razões para a cisão atual. Isso porque, de um lado, entende-
se que sua autoridade política deriva da sua autoridade religiosa: está condicionada a ela. A
primeira depende da última, e esta a legitima. Ou seja, eles são vistos em primeiro lugar como
chefes na religião, e apenas por isso, e em segundo plano, como chefes políticos. Até a
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religiosa alguma. Aventaram, à época, separar de vez o campo religioso do político-
administrativo, em cujo caso pajé e cacique se restringiriam ao primeiro, e uma “nova
organização política” seria criada para atender ao segundo. Wilke Melo, em seu trabalho de
campo realizado durante sua pesquisa, ouviu com alguma frequência que as lideranças
deveriam se ocupar apenas da religião.
Um dos fatores que certamente potencializou esse faccionalismo certamente foi
a série de mudanças ocorrida no panorama indígena e indigenista entre as décadas de 1980 e
1990, que contribuiria para que as lideranças assumissem cada vez mais atribuições (político-
administrativas) que antes cabiam ao chefe do posto, o que provavelmente ajudou para que
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tais cargos passassem a estar envoltos em disputas, denúncias e acusações diversas. De fato,
alguns indígenas, incluindo o falecido cacique João de Pontes, corroborando as declarações
feitas a Melo, ressaltaram diversas vezes que cacique e pajé antigamente só eram responsáveis
pela religião, e questões de outras ordens – relativas a terra, disputas e conflitos variados –
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Todavia, o que realmente é algo completamente novo aqui, que não se
manifestou em nenhuma das ocasiões anteriores, é a dimensão religiosa do conflito: num
primeiro momento, houve a divergência quanto à legitimidade da forma como Cícero foi
escolhido cacique, que reacendeu discordâncias também quanto à escolha de Gildiere como
pajé; em seguida, houve o rompimento de parte da comunidade com as lideranças já
estabelecidas, e a indicação de duas novas, apontadas por ela como legítimas, ao passo que
outra parcela dos Fulni-ô se mantiveram fiéis àquelas.
A esse quadro se acrescenta questões mais antigas e delicadas de disputas por
poder, relacionamento entre famílias, rivalidades, questões pontuais e pessoais, passadas e
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recentes, e temos os termos gerais da cisão que ora se desenha.
Há quem diga que questões políticas e financeiras teriam contaminado a
religião, levando para essa esfera conflitos e disputas que até agora nunca haviam ultrapassado
esse limite, afetando aquilo que é sagrado. Similarmente, há quem diga também que a
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expectativa de resolver assuntos que há algum tempo talvez se solucionassem na própria
aldeia, com a atuação dos servidores do Posto Indígena.
Como agir em situações como essa? Já escrevi acima que, em primeiro lugar,
não se deve pensar que as ações dos órgãos externos não têm impacto sobre o reconhecimento
das lideranças. Ainda que a religião seja sua fonte de legitimação, os termos cacique e pajé e
sua função política nasceram da relação com os brancos, e justamente para satisfazer a
necessidade de uma ponte entre os dois mundos, com a função precípua de levar demandas e
representar a comunidade quando requisitados. Ao dialogar com as lideranças e tratá-las por
tais nomes, tais instituições acabam reconhecendo sua posição e as confirmam como tais. O
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mesmo vale para o presente caso: continuar a tratar Cícero e Gildiere como lideranças, passar
a tratar (também ou exclusivamente) Awassury e Itamar como tais, ou deixar de chamar
quaisquer dos quatro por estes nomes é, de certo modo, é fazer uma declaração a respeito da
legitimidade de seus títulos, ao menos aos olhos da instituição com a qual dialogam. Não à
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BIBLIOGRAFIA
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