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PGR-00284819/2019

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
SECRETARIA DE PERÍCIA, PESQUISA E ANÁLISE
CENTRO NACIONAL DE PERÍCIA

PARECER TÉCNICO Nº 1040/2019 – SPPEA

REFERÊNCIA 1.26.005.000007/2015-12

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UNIDADE SOLICITANTE PRM-Garanhuns/PE

AUTORIDADE REQUERENTE Procurador da República Marcel Brugnera Mesquita

EMENTA Acompanhar a execução do termo de ajustamento de

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conduta celebrado entre a CHESF, a comunidade Fulni-ô,
o MPF, a FUNAI, e a Procuraroria Federal Especializada
da FUNAI, o qual tem por objeto disciplinar o
pagamento da indenização devida à comunidade indígena
Fulni-ô por todos os danos causados pela passagem, na
Terra Indígena Fulni-ô, das Linhas de Transmissão PA
III/Angelim C1, PAIII/Angelim C2 e C3, PA III/Angelim
C4, Luiz Gonzaga/Angelim Ci e PA IV/Angelim II C2,
de 230 e 500kv, com extensão de 7,5 km de comprimento
por 192 metros de largura, perfazendo um total de 163, 7
hectares, danos estes abarcando o período que vai da
instalação de cada linha de transmissão até o dia
31/12/2015, cujo montante da indenização chegou a R$
3.000.000,00 (três milhões de reais), transferidos à
Associação Comunitária Indígena Pajé Julião Pereira
Júnior (ACIPJPJ).

TEMÁTICA Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais

GUIA SISTEMA PERICIAL SPPEA/PGR - 000176/2019

COORDENADAS Feição considerada : ( x) pontual ( ) linear ( ) poligonal


GEOGRÁFICAS Lat/Long dec.: -9.115883º Lat. S -37.122147° Long.
W

Av. Gov. Agamenon Magalhães, 1800, Espinheiro - CEP 52.021-170 - Recife-PE


Tel. (81) 2125-8928 - PGR-Pericial-centroregionaldepericia5@mpf.mp.br
1. INTRODUÇÃO

Trata-se de Parecer Técnico elaborado para atender à demanda contida na guia


pericial em epígrafe. Nela, solicita-se
a elaboração de laudo pericial para a SEAP – Secretaria de Apoio Pericial, a ser
elaborado por perito com especialidade em antropologia, preferencialmente o perito
lotado nesta PRM, a fim de que confirme as informações contidas no Ofício n.
004/2019 da Coordenação Técnica Local da Funai em Águas Belas (f. 1.289-1.354),
esclarecendo se a substituição das lideranças narrada representou de fato a

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destituição das lideranças antigas, bem como se ela encontra amparo em toda a
comunidade Fulni-ô, além de prestar outros esclarecimentos que julgar pertinentes.

No citado ofício1, a Coordenação Técnica Local da Funai em Águas Belas


(CTL-AB), através de seu coordenador substituto Luiz Augusto Frederico de Souza, informa a
esta unidade ministerial que, durante o Ouricuri2 de 2018, “a comunidade indígena Fulni-ô

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sofreu completa insatisfação com as suas lideranças cacique e pajé, por estes não obedecerem
aos preceitos religiosos e tradicionais desta etnia”. Assim,
resolveram-se em transição social e cultural, cumprir com modo tradicional e de
acordo a estes seguimentos religioso e visando todo o processo de legitimidade no
dia 25/11/2018 foram escolhidos o cacique, Itamar Araújo Severo e no dia
08/12/2018 o pajé, Awassury Araújo de Sá (sic).

Por fim, declara que “a partir desta data ficam reconhecidos pela comunidade
aqui abaixo assinados em anexos, seus representantes tradicionais do povo Fulni-ô”. De fato,
anexo ao ofício há um abaixo-assinado onde constam quase duas mil assinaturas de indígenas
Fulni-ô, além de pouco mais de sessenta assinaturas de indígenas que seriam seus
descendentes, mas residentes entre os Kariri-Xokó, em Porto Real do Colégio, em Alagoas.
No cabeçalho desse abaixo-assinado, pede-se às “instituições, Órgãos e Autoridades
Competentes que reafirme externamente o que já foi afirmado internamente, através, da
nomeação de Itamar Araújo Severo e Awassury Araújo de Sá como cacique e pajé
respectivamente”, e reforçam que estão “sendo obrigados apresentá-los institucionalmente”, já
que “na história e na crença do nosso povo nunca tivemos a necessidade de apresentar nossos
líderes para a sociedade não índia”.
Alguns esclarecimentos são necessários aqui antes de iniciar o parecer de fato,
particularmente a respeito das afirmações contidas no ofício supracitado. Em primeiro lugar, é
preciso ressaltar, conforme consta nos autos, que a Coordenação Regional da Funai
posteriormente pediu, via memorando, a anulação desse ofício (fl. 1380). Não é difícil

1 PRM-GRU-PE-00000263-2019.
2 O Ouricuri é o nome dado pelos Fulni-ô para um ritual anual, que dura por volta de três meses, bem como
para o espaço onde ele se realiza – a aldeia do Ouricuri, por volta de quatro quilômetros da aldeia sede. Abrange
os meses de setembro, outubro e novembro, durante os quais há uma mudança em massa para a outra aldeia, e
onde é vedado o acesso aos não índios. É a principal manifestação ritual da comunidade, para a qual se atribui
relevância absoluta.

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entender a razão. Sua narrativa, mesmo para quem não acompanha o desenrolar dos
acontecimentos, mostra-se claramente enviesada, ao indicar que as lideranças ali citadas
foram escolhidas legitimamente, cumprindo com o “modo tradicional de acordo a estes
seguimentos religioso (sic)”, enquanto as anteriores, com as quais a comunidade indígena
(note-se que se aponta a comunidade como um todo, e não apenas uma parcela) estaria
completamente insatisfeita, seriam ilegítimas, pois não estariam obedecendo “aos preceitos
religiosos e tradicionais desta etnia”.
Entendo que a comunidade, através de seus meios próprios, pode tomar as
decisões que bem entender a respeito de sua própria organização sociopolítica e territorial –

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afinal, ela é senhora de si, e reconhece-se legalmente sua plena autonomia e sua autogestão –,
e setores da comunidade têm o direito de se posicionar e se manifestar a respeito dessas
decisões, ainda que porventura discordem delas. Já a Funai, ao fazer comunicações a respeito
dessas decisões, não pode avaliar nem declarar por sua conta aquilo que é ou não legítimo,
muito menos referendar uma posição de uma parcela da comunidade, ignorando ou

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menosprezando a(s) posição(ões) das outras. Entretanto, é justamente o que ela faz no ofício
enviado: não se limita a narrar os fatos, encaminhando o abaixo-assinado ou reproduzindo
declarações de lideranças indígenas (declarando, por exemplo, que tal escolha foi legítima
conforme declarações de tal ou qual liderança), mas faz juízo de valor da situação,
procurando chancelar a escolha dos (novos) cacique e do pajé. O ofício também omite, por
exemplo, o destino do pajé e do cacique que ocupavam tais cargos: foram destituídos, ou
haveria agora dois pajés e dois caciques Fulni-ô? Nesse último caso, eles estão dividindo as
atribuições igualmente? Ou, se não permaneceram, acataram pacificamente a escolha de
Itamar e Awassury? Ainda que todos os servidores da CTL-AB sejam indígenas, e assim
possam estar diretamente envolvidos e tenham posições pessoais a respeito do que se passa
ali, entendo que, ao redigir e assinar um ofício em nome de uma fundação ligada ao Estado
brasileiro, têm que assumir uma postura o mais neutra possível, e com o propósito único de
informar, e não de tomar partido, qualificar ou reconhecer decisão nenhuma.
Para ser justo, os próprios servidores da Funai de Águas Belas me informaram
que haviam redigido uma primeira versão desse ofício mais sucinta, e que informava não
haver consenso na comunidade a respeito de suas lideranças. Um ocupante de um cargo
hierarquicamente superior da Funai teria então orientado-os a modificá-lo, de modo que não
denotasse haver qualquer dissidência interna entre os Fulni-ô. De um modo ou de outro, como
foi feito, o ofício fornece uma descrição pouco acurada e pouco imparcial da situação real.
Tais esclarecimentos prévios são necessários porque a solicitação desse parecer
partiu das informações contidas no documento citado, que foi sua fonte inicial (o cacique e o
pajé anteriormente instituídos anteriormente dariam sua versão dos fatos, contrária àquela
constante no ofício, em reunião realizada em 31/1/2019). Assim, cabe descrever brevemente
os fatos a partir de uma posição mais neutra e distanciada, para que se saiba qual é a situação
de fato.

3
Com efeito, nas datas apontadas pelo ofício, Itamar e Awassury foram
nomeados como cacique e pajé, respectivamente. Todavia, Cícero (também conhecido como
Dique) e Gildiere (também conhecido como Edmar), cacique e pajé escolhidos anteriormente,
permanecem em seus cargos. Os dois lados têm seus seguidores, acusam a outra parte de
agirem com interesses escusos, de práticas pouco éticas e com fins pouco nobres, e declaram
que o seu lado é legítimo, em oposição ao outro. O diálogo entre ambos tem se mostrado
bastante difícil, e ninguém parece querer ceder. Em suma, há uma divergência, em primeira
vista irreconciliável, dentro da comunidade Fulni-ô, em relação a quem é ou deveria ser seu
cacique e pajé.

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Como é um tema complexo e delicado, há que se tomar muito cuidado com o
vocabulário empregado aqui. Assim, cabem aqui alguns apontamentos sobre isso. Para efeito
desse parecer, utilizarei, para diferenciar as lideranças, os termos cacique e pajé instituídos
para me referir a Gildiere e Cícero, e novos cacique e pajé ou lideranças dissidentes para me
referir a Itamar e Awassury, quando não me refiro aos próprios nomes de todos eles. Ressalto,

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contudo, que são apenas convenções cunhadas para efeitos desse parecer, com o propósito
único de facilitar a leitura, compreensão e a identificação dos caciques e pajés de cada um dos
lados. Não pretendo, com isso, legitimar ou favorecer uns ou outros, e tampouco tomar
partido.
Da mesma forma, quando utilizo termos como divisão, cisão ou dissidência da
comunidade, não pretendo fazer qualquer inferência sobre quem teria o apoio majoritário da
população da comunidade. O objetivo dessa perícia nunca foi realizar um censo ou
levantamento para atestar quantos indígenas apoiam cada qual, para então reconhecer como
“legítimo” aquele que teria a maioria – até porque eu não tenho esse poder, tampouco essa é
minha atribuição como antropólogo (tratarei desse debate sobre maioria/minoria mais adiante
nesse parecer). Tais expressões têm o propósito único de apontar que há hoje diferenças de
opinião entre parcelas da comunidade sobre quem são suas lideranças máximas, e não de
sugerir que há uma divisão pela metade, nem de apresentar quantidades.
Dito isso, esse parecer tem um fim duplo: em primeiro lugar, tratar sobre os
cargos de cacique e pajé entre os Fulni-ô, descrevendo, de acordo com a bibliografia
pertinente e os relatos dos próprios indígenas, sua origem histórica, a estrutura de poder entre
os Fulni-ô, os caciques e pajés do passado e como eles se conectam aos atuais, como é feito o
processo de sucessão e “indicação”3 ao cargo, quais são suas atribuições, e outras informações
que nos ajudem a compreender mais sobre estes postos e a questão que hoje se coloca. Em
segundo lugar, passo à dissidência em si: os fatos e acontecimentos que se sucederam para que
se configurasse o quadro atual, as versões e interpretações divergentes entre os dois campos,
os argumentos e acusações mútuas entre ambos.
Para atingir esses objetivos, além do estudo e da leitura bibliográfica e

3 Uso “indicação” na falta de uma palavra melhor, já que não é exatamente isso que acontece, como se verá; os
Fulni-ô usualmente dizem “tirar” cacique ou pajé.

4
documental, utilizei meu conhecimento prévio dos Fulni-ô (oriundo de trabalhos anteriores,
conversas informais, reuniões diversas e outros encontros), além de trabalho de campo
realizado na Terra Indígena – realizado entre 7 e 11 de março, durante o qual fiz entrevistas
semi-estruturadas com diversos indígenas sobre os temas em tela. Além daquelas realizadas
com os dois caciques e os dois pajés, priorizei entrevistas com os integrantes mais velhos da
comunidade, em especial aqueles apontados como lideranças ou pessoas com grande prestígio
e saber acumulado, como apontado pelos próprios indígenas. Também conversei com alguns
servidores (indígenas) da Funai e com familiares de caciques e pajés anteriores. Além das
entrevistas, participei de três grandes reuniões organizadas por aqueles ligados às novas

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lideranças, que contou com a presença maciça de indígenas desse grupo. Duas delas foram na
Escola Bilíngue Antônio José Moreira, e uma (apenas com mulheres) na casa do Coordenador
da CTL-AB. Ressalto que tais reuniões não foram solicitadas nem sugeridas por mim; pelo
contrário, foi uma iniciativa exclusiva deles. Tenho algumas reservas quanto à efetividade de
grandes reuniões como essas para o trabalho pericial antropológico: se por um lado permitem
que se escute um grande número de pessoas de uma só vez, por outro os depoimentos e

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manifestações facilmente desvirtuam do objetivo primordial da pesquisa, e se direcionam
mais à plateia que assiste, procurando agradá-la, do que ao pesquisador. De toda forma,
entendo que as reuniões foram positivas, e permitiram que, ao fim, somando-se todos aqueles
entrevistados diretamente e aqueles que se manifestaram nas reuniões, tenham sido ouvidas
algumas dezenas de pessoas, provavelmente mais de 50. Temos, assim, uma amostra
razoavelmente ampla das posições existentes entre os Fulni-ô sobre o tema aqui tratado, o que
contribui para que este trabalho atenda adequadamente ao que foi solicitado.
Divido esse trabalho em duas seções, cada qual abordando, respectivamente,
um dos dois objetivos já indicados, que serão apresentadas a seguir, além das considerações
finais.

2. OS CARGOS DE CACIQUE E DE PAJÉ ENTRE OS FULNI-Ô

2.1. Informações básicas sobre seu território e a história

Antes de passar diretamente ao assunto, uma breve introdução aos Fulni-ô e


seu território. Eles hoje estão localizados em uma Terra Indígena no município de Águas
Belas, Pernambuco (com um pequeno trecho no município vizinho de Itaíba), na transição
entre o agreste e o sertão do estado. Como aconteceu com diversos povos indígenas nos
sertões do Nordeste, seu primeiro processo de territorialização (na definição proposta por
Oliveira4) aconteceu com as missões religiosas (em sua maioria jesuíticas) instaladas pelo
4 Segundo João Pacheco de Oliveira, territorialização é “ uma intervenção da esfera política que associa — de
forma prescritiva e insofismável — um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados”
(1998: 56).

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interior nordestino. Tais missões procuravam sedentarizar as populações indígenas da região,
fixando-as numa pequena parcela de terras – usualmente, vários povos distintos eram aldeados
numa só missão –, colocando-as sob o jugo da administração religiosa, e procurando
catequizá-las e “civilizá-las”, impondo valores e práticas que percebiam como culturalmente
superiores.
Na área onde hoje é Águas Belas, foram fundadas duas missões para os
Carnijós (um dos nomes pelos quais os Fulni-ô eram então conhecidos), em meados do século
XVII, das quais, contudo, não se sabe com exatidão sua localização e extensão (Schröder,
2011: 33-36). Em 1700, houve uma “doação” de uma “légua em quadra” da Coroa portuguesa

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às missões dos sertões, através de um Alvará Régio datado de 1700, para “sustentação dos
índios e missionários”. Tal “doação” foi confirmada por Cartas Régias de 1703 e 1705 (idem).
As duas missões teriam se unido em algum momento entre a segunda metade do século XVIII
e o início do século XIX.
Já a vila de Águas Belas teria surgido por volta de 1760. Em 1832, há o registro

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da doação de uma área do território indígena à Igreja Católica, o que ficou conhecido como
“doação à Santa”. Hoje muitos indígenas contestam a legitimidade dessa doação, declarando
que seus ancestrais foram enganados, que abusaram de sua boa-fé, ou que não foram
consultados devidamente a seu respeito. Essa área seria de aproximadamente 80 hectares
(embora o documento que formalizou tal doação nunca tenha sido encontrado), e viria a se
tornar a área central da sede municipal. Em 1875, foi editada a Lei nº 1.672, da província de
Pernambuco, que extinguiria todos os aldeamentos indígenas restantes em seu território –
prática comum em diversas outras províncias nesse período. Na sequência, entre 1876 e 1878,
a Comissão de Medição de Terras Públicas, criada também pelo governo provincial, mediu e
demarcou o que considerou consistir na légua em quadra5 doada pela Coroa portuguesa ao
recém-extinto aldeamento, excluindo o patrimônio da Igreja, e dividindo o restante em 427
lotes de 30 hectares cada, dos quais apenas uma pequena parcela foi então distribuída aos
índios. Quanto ao restante, tudo indica que tenha sido ocupado por não índios (Ferreira, 2000:
43). É com essa formatação que se consolidaria como a Terra Indígena Fulni-ô como ainda
hoje a conhecemos – que não corresponde ao seu território de ocupação tradicional.
Um período de intensos conflitos dos indígenas com o poder público e
econômico local se seguiu, que perseguia-os, não reconhecendo sua posse indígena das terras,
e procurava revertê-la em prol do município, o que provocou a intensa dispersão dos índios
pela região. No início do século XX, a atuação do padre Alfredo Dâmaso como mediador
entre os índios e o recém-criado Serviço de Proteção aos Índios (SPI) logrou a instalação de
um Posto Indígena ali – o primeiro do Nordeste –, em 1924. Como as disputas relativa à posse
e ao usufruto da terra ainda não haviam sido sanadas, em 1928 foi publicado um decreto pelo
governo estadual (Decreto nº 637, 20/7/1928) que intencionava arbitrar a questão. Se tal peça
legal, de um lado, confirmou o direito dos índios à posse e permanência sobre sua terra, de

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outro institucionalizou o arrendamento de terras (que, de todo modo, já era praticado), doou
uma nova área do território indígena à municipalidade de Águas Belas, e deixou indefinido o
estatuto jurídico e a propriedade das terras.
Ainda hoje, esse decreto permanece como o único ato formal do Estado
brasileiro a regularizando o direito dos Fulni-ô sobre suas terras, não obstante a sua
reivindicação constante por demarcação do território tradicional. A Funai, órgão indigenista
responsável pela regularização fundiária de terra indígenas, iniciou o processo mais de uma
vez, mas ainda não o concluiu.
Tais fatores, considerados em conjunto, foram responsáveis pela configuração

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de muitas das questões que os Fulni-ô e seu território enfrentam ainda hoje, e que são, parcial
ou totalmente, razão de muitas de suas demandas, problemas e conflitos. As principais são:
a) a divisão de suas terras em lotes privados – que faz com que a terra, para os
Fulni-ô, passe a ser vista com dois significados simultâneos: é um território coletivo (isto é,
segundo Jorge Hernández Díaz (1983), um espaço geográfico ligado indissoluvelmente à sua

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história e sua cultura, suporte de sua identidade étnica, devendo permanecer integralmente sob
sua posse), mas é também espaço privado, já que a posse, exploração e apropriação dos bens e
benefícios relativos a cada lote são individuais e/ou familiais;
b) o arrendamento de lotes ou de parcela de lotes, seja na modalidade rural ou
na urbana (apenas para construção de moradia, chamada de chão de casa), que faz com que
boa parte das terras estejam em mãos de brancos, e não de indígenas;
c) a existência da cidade de Águas Belas em seu interior, cujo crescimento
provoca a crescente urbanização de cada vez mais glebas da Terra Indígena, incentivando a
prática do chão de casa, o que ajuda a concentrar renda em uma parcela pequena da
população, que por sua vez possibilita a compra de mais terras valorizadas, causando um
círculo vicioso, além da proximidade cada vez maior da aldeia Fulni-ô com a cidade, o que
pode ter efeitos nefastos.
Essa pequena descrição da história socioterritorial dos Fulni-ô auxilia na
compreensão das questões presentes, que muitas vezes são perpassadas pelos elementos
apontados acima, forjados na sua relação com o Estado. Passo agora à história de suas
lideranças e à descrição de sua estrutura política.
Como foi descrito acima, na segunda metade do século XIX o Estado brasileiro
iniciou uma política clara de apagamento e invisibilização das etnias indígenas vivendo em
território nacional, em especial no Nordeste e Leste. Tal política teve seu ápice, em
Pernambuco, no já citado decreto que extinguiu todos os aldeamentos do estado. Isso
equivalia a uma declaração de que não havia mais índios aqui. A partir de então, quando havia
que se referir a eles, eram nomeados como “caboclos”, “mestiços”, “miscigenados” - qualquer
termo que apagasse ou procurasse relativizar ou negar sua identidade indígena. No caso do
Nordeste, apenas a partir da instalação do Posto Indígena (PI) do SPI, em 1924, começou-se a

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reverter esse quadro: descobriu-se que os índios permaneciam e resistiam, tinham suas
demandas e precisavam da assistência do Estado para garantir seus direitos. Esse
reconhecimento étnico, passados 50 anos, desencadearia o primeiro ciclo de etnogêneses do
Nordeste, assunto que ultrapassa o presente parecer. De todo modo, tais mudanças tiveram
impactos sobre o tipo de representação política que se reconhecia (pelos brancos, ao menos)
na comunidade indígena.

2.2. Aspectos do sistema sociopolítico Fulni-ô

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Sabe-se pouco sobre o sistema sociopolítico das comunidades indígenas
aldeadas nas missões no período anterior ao século XIX, o que se estende aos Fulni-ô – até o
início do século XX chamados de Carnijós. Provavelmente isso se deve ao fato de que aqueles
que faziam registros sobre as comunidades indígenas até então (em sua maioria missionários,

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viajantes e administradores públicos) estavam menos preocupados em entender a lógica que
subjazia a organização política e social indígena, e mais em implementar satisfatoriamente sua
política assimilacionista, que, como o nome já sugere, objetivava a assimilação dos índios
pela massa da população nacional, tornando-se pequenos agricultores, sem marcadores étnicos
diferenciadores.
Os primeiros registros sobre lideranças indígenas Fulni-ô vêm da segunda
metade do século XIX, já às vésperas da extinção dos aldeamentos indígenas. Dantas (2010),
em sua dissertação de mestrado em história sobre o aldeamento do Ipanema – nome então
utilizado para designar o aldeamento onde viviam os Fulni-ô – entre 1860 e 1920, menciona
documentos assinados por três lideranças distintas, num espaço de menos de dez anos: registra
uma solicitação feita em janeiro de 1864 ao vigário de Águas Belas por um “capitão dos
índios” da aldeia do Ipanema chamado João Correa Caboré (2010: 97); reproduz ainda o
conteúdo de uma denúncia feita em 1867 pelo chamado “maioral” da aldeia do Ipanema,
Francisco Gomes da Silva, ao Diretor Parcial da Aldeia (2010: 110); e cita, por fim, um ofício
redigido em 1871 pelo maioral dos Carnijós, José Romão de Vasconcelos, também ao Diretor
da Aldeia (idem: 108).
Temos aqui, portanto, em um período curto, a menção a dois títulos distintos
entre os Fulni-ô (capitão e maioral), atribuídos a três indígenas diferentes. Sabe-se que ambos
foram utilizados para designar lideranças indígenas em diversas regiões do país e períodos
diferentes, principalmente durante os regimes colonial e imperial. Há registros de “maiorais
[ou mayorais] da aldeia”, por exemplo, em outros aldeamentos indígenas no estado de
Pernambuco, como no de Assunção, em Cabrobó (hoje comunidade indígena Truká), no de
Brejo dos Padres, em Tacaratu (hoje comunidade indígena Pankararu) e no aldeamento de
Escada, todos entre meados e final do século XIX, já durante a segunda encarnação do
Diretório dos Índios (p. ex., em Silva, 2006 e Silva, 2011). Mas também há registros de

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“maiorais da aldeia” no Pará no século XVIII (Porro, 2008), e em São Paulo no século XVI 6.
Aparentemente, iniciou-se como uma designação genérica atribuída (pelos brancos) a quem
era entendido como “chefe maior” da aldeia (no sentido de líder e representante como
cunhado pelo pensamento ocidental), e, ao menos no Pernambuco do século XIX, tornar-se-ia
uma espécie de cargo oficial, que tinha a função de representar seu grupo diante das
autoridades, encaminhando suas demandas. Não há, contudo, notícias de grupos que ainda
hoje nomeiam seus líderes como “maiorais”.
Também há registros históricos, de diversos períodos e de diversos lugares, que
fazem referência à figura do capitão. Aparentemente, também eram vistos como

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representantes de sua comunidade. Diferentemente do maioral, contudo, “capitão” parece que
inicialmente era uma patente concedida por um representante do Estado a um indígena
determinado, que a partir de então deveria fazer a ponte entre a sua comunidade e a sociedade
nacional – como é o caso do famoso Francisco Rodela, que no século XVII recebeu o título de
capitão-mor da aldeia à qual emprestaria teu nome, após ter se aliado com os portugueses (e

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levado indígenas de seu grupo consigo) na batalha contra os holandeses. Talvez por ter se
arraigado em algumas comunidades, tal nomenclatura permaneça sendo utilizada ainda no
século XX em algumas regiões, com o sentido muito similar ao de maioral – assim como
outras, como tuxáua, mais comum entre grupos indígenas na Amazônia.
Ainda que capitão de alguma maneira denote um título concedido pelos
brancos, e não conquistado ou escolhido pelos membros da comunidade, e se associe a uma
hierarquia militar, diferente do de maioral, ambos têm muito em comum: como os dois termos
são em português, fica claro que eles se consolidaram a partir dessa relação interétnica, como
dois termos genéricos atribuídos indistintamente pelos brancos a uma liderança indígena que
era vista como superior, com a qual deveriam tratar dos assuntos referentes à comunidade.
Não se sabe, todavia, como era a escolha ou indicação do ocupante desses
cargos: se era uma decisão unilateral de representantes do Estado nacional, se era fruto de uma
negociação com a comunidade, se ela indicava, e então um administrador branco deveria
chancelar posteriormente essa decisão, ou se era uma decisão que cabia exclusivamente à
comunidade. Considerando a política indigenista de então, difícil imaginar que os
administradores não tinham nenhuma ingerência sobre a escolha do representante indígena.
Mas há que se considerar a possibilidade de que esse maioral já era, segundo os parâmetros
próprios da comunidade, alguém que ocupava um cargo relevante internamente, e que
acumulava também, para o trato com os brancos, o título de maioral ou capitão. Na ausência
de maiores informações, permanecemos unicamente no terreno da especulação.
Quanto às lideranças Fulni-ô citadas entre 1864 e 1871, dois aspectos chamam
a atenção: além de serem mencionados três indígenas distintos em um espaço tão curto de
tempo, o primeiro é chamado de capitão, e os outros dois de maioral. Não se sabe se referem-
se a cargos distintos, ou se são utilizados aqui como sinônimos. Também não há maiores

6 Como consultado em https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=292773. Acesso em 31/7/2019.

9
informações sobre como e quando houve a troca desses titulares. Igualmente, não há nenhuma
notícia a respeito de lideranças indígenas no período entre o fim dos aldeamentos, em 1875, e
a instalação do Posto Indígena (PI) General Dantas Barreto entre os Fulni-ô, em 1924.
Compreensível, já que, se o governo estadual entendia que não havia mais índios no estado,
também não deveria haver lideranças indígenas – ainda que, de fato, continuassem existindo.
A instalação do PI, além de mudar a correlação local de forças, também trouxe
mudanças diretas e significativas para os próprios Fulni-ô (assim como para as outras
comunidades indígenas com as quais o órgão passaria a atuar), ou ao menos para o modo
como se apresentavam e relacionavam com o Estado e com a sociedade nacional: para

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adequarem-se ao modelo de “indianidade”7 forjado e imposto pelo SPI, tiveram que criar dois
novos cargos políticos, até então inexistentes: o de cacique e o de pajé. João Pacheco de
Oliveira afirma que a imposição dessa estrutura política fez parte do processo de
territorialização8 pelo qual passaram as comunidades indígenas no Nordeste no século XX:
Em linhas gerais, esse processo de territorialização trouxe consigo a imposição de

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instituições e crenças características de um modo de vida próprio aos índios que habitam
as reservas indígenas e são objeto, com maior grau de compulsão, do exercício
paternalista da tutela (fato independente de sua diversidade cultural). Dentre os
componentes principais dessa indianidade (Oliveira 1988) cabe destacar a estrutura
política e os rituais diferenciadores.

A organização política de quase todas as áreas passou a incluir três papéis


diferenciados — o cacique, o pajé e o conselheiro (isto é, membro do “conselho
tribal”) —, tomados como “tradicionais” e “autenticamente indígenas”. A indicação
ou ratificação dos ocupantes desses papéis era realizada pelo agente indigenista local (o
chefe do P.I.), que, de fato, ocupava o topo dessa estrutura de poder e quem distribuía os
benefícios provenientes do Estado (de alimentos a empregos, passando por empréstimos
ou permissões de uso de instrumentos agrícolas, meios de transporte, cacimbas d’água
etc.). (1998: 59; grifos meus)

Ressalto, como já comentei a respeito dos cargos de capitão e maioral, que isso
não quer dizer que os ocupantes desses novos papéis já não eram lideranças previamente à sua
nomeação, ainda que conhecidos ou exercendo seu poder apenas internamente. A criação
desses novos postos os obrigou a assumir um papel também para fora da comunidade, como
seus representantes e responsáveis por algumas tomadas de decisão – limitadas, devido ao
poder tutelar exercido pelo SPI. Não se sabe exatamente como se deu então, no caso dos
Fulni-ô, a negociação entre o órgão indigenista e a comunidade para decidir quem poderia
assumir tais cargos e quais seriam suas atribuições, mas, se tomarmos como referência sua
função e lugar atual na sociedade indígena, percebemos que: a) ambos são imprescindíveis e

7 Conjunto de características entendidas como “tipicamente indígenas” (tanto num escopo genérico quando
regional ou local), esperadas dos ou impostas aos grupos indígenas onde o órgão indigenista passava a atuar, que
confirmariam a “autenticidade” da identidade indígena de um grupo determinado.
8 “processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo — (...) no
Brasil as ‘comunidades indígenas’ — vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas
culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)” (Oliveira, 1998: 56; grifos
no original)

10
exercem papéis centrais na devida execução das práticas religiosas; e b) é no sistema religioso
que exercem sua função de liderança por excelência; seu papel de liderança político-
administrativa é derivado de seu papel de liderança religiosa, só existe porque antes são
lideranças religiosas.
Não à toa, é justamente essa função política – que pode ter sido criada apenas a
partir da imposição de uma estrutura política pelo SPI, sendo assim, na origem, alheia à
organização social Fulni-ô – aquela cuja legitimidade e eficácia é mais constantemente
questionada, em oposição à função religiosa, que até essa dissidência atual permanecia
absolutamente incólume. Nesse mesmo sentido, afirma Melo:

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o cacique e o pajé são os personagens que ocupam as posições de maior
envergadura dentro do sistema sócio-ritual, assim como da organização política
interna do grupo. Estes personagens são responsáveis pelas decisões de âmbito
religioso (...). Por extensão, o ordenamento político estatal delegou a estas condutas
atribuições de negociar/intermediar os interesses políticos da comunidade. (2013:
104)9

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Embora essa estrutura política tenha sido imposta, assim como no caso do
capitão/maioral, podemos questionar até que ponto o SPI determinou como seriam escolhidos
os ocupantes dessas posições. Há a chance de ter sido objeto de negociação, e a solução
encontrada pelos Fulni-ô pode ter sido a de revestir suas duas lideranças religiosas maiores
também de poderes políticos, acumulando seus títulos já existentes, em yaathê (e as funções a
eles vinculadas) aos novos nomes e funções de cacique e pajé. Note-se que esses são os
nomes que possuem em português, já que em yaathê mantêm outras denominações.
Adequavam-se, assim, ao modelo de indianidade trazido pela agência. No entanto, é sua alta
posição religiosa que sempre legitimou e permanece legitimando suas ações, em qualquer
âmbito. Sob esses dois novos títulos, genéricos, pode ter persistido a mesma estrutura, ao
menos num primeiro momento.
Contudo, não há como atestar que tais novas atribuições não tenham provocado
transformações estruturais ao longo do tempo. Afinal, tornaram-se mediadores privilegiados
entre os mundos indígena e branco: eram eles que a sociedade nacional conhecia como
líderes, e que se apresentavam como representantes sempre que necessário. Todavia, como
chamou atenção Oliveira na citação que reproduzi acima, ainda assim tal poder político era
limitado pela ação do SPI, que ocupava o topo dessa estrutura. De fato, ainda que este órgão
não tenha intervindo diretamente no campo religioso, deixando intocada sua composição
hierárquica, passou a mediar, administrar, arbitrar e decidir a respeito de todas as questões
“mundanas”; sobre, por exemplo, o arrendamento de terras, as transações envolvendo lotes,
conflitos internos, com a cidade e com outros brancos (arrendatários, por exemplo), decisões a
respeito do quê produzir, onde produzir, e também sobre a organização do chamado
“patrimônio da aldeia” - uma espécie de reforma urbanística na aldeia foi levada a cabo com a

9 Essa dissertação de mestrado, defendida no México, foi escrita em espanhol. Para facilitar a leitura, traduzi
livremente as passagens dessa obra aqui reproduzidas.

11
chegada do SPI –, entre outras questões.
Antes de seguir adiante, um último aparte sobre esta mesma citação: Oliveira
declara que a chegada do órgão tutelar também trouxe consigo a criação dos conselhos tribais.
Não nego que documentos e estudos feitos nos anos seguintes à instalação dos postos
indígenas nas aldeias indígenas no Nordeste mencionem a existência desses conselhos.
Contudo, muitos deles, ao menos nos moldes originais, não persistiram até os dias atuais, ou
então mudaram seu formato, nome e/ou função. No caso dos Fulni-ô, nunca me foi relatado o
funcionamento de um conselho propriamente dito, no presente ou no passado. A única
referência a um conselho tribal entre eles está na dissertação de Jorge Hernández Díaz (1983).

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Ali, o autor declara que
tradicionalmente, os Fulni-ô têm tido como autoridades de sua tribo um Cacique,
um Pajé e um grupo de líderes que são conhecidos como A liderança. Os cargos
com maior autoridade, os que são tidos em maior respeito dentro da comunidade,
são os de Cacique e Pajé, apesar de que, em situações críticas, caiba ao Conselho
Tribal (Cacique, Pajé e Liderança) tomar as decisões. Conversando com um dos

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membros da Liderança, irmão do atual pajé, foi-nos dito que os líderes são em
número de 8 (oito), quatro por parte do Cacique e quatro por parte do Pajé. Por
regra geral, os líderes parecem ser escolhidos entre os mais velhos. Sobre os
critérios e mecanismos dessa escolha pouco sabemos. (1983: 71; grifos meus)

Wilke Torres Melo (ele próprio indígena Fulni-ô), por sua vez, comenta essa
mesma passagem em sua dissertação de mestrado, defendida em 2013, relativizando-as: diz
que “a instituição do dito conselho constatado por Díaz naquele tempo aparece difuso” (2013:
67).
De fato, não há nada, nem os dados de campo colhidos por mim nesta ou em
outras ocasiões, nem outros trabalhos etnográficos, que corroborem a existência de um
Conselho Tribal no formato apontado por Díaz, que reúna cacique, pajé, e quatro lideranças
vinculadas a cada um, que seria acionado ou se reuniria em situações específicas. Não
obstante, há, com efeito, aqueles indígenas que são chamados pelo nome genérico de
lideranças, figuras respeitadas e com funções e tarefas pré-determinadas, principalmente
dentro da religião; como disse Melo, sua atuação aparenta ser mais difusa, e não organizada
em uma instituição. No entanto, assim como outros aspectos de sua organização social e
religiosa, não são revelados muitos detalhes sobre elas. Enquanto, como já afirmei, cacique e
pajé têm uma atuação para fora da comunidade, estas lideranças permanecem com um papel
restrito ao seu âmbito interno – como se elas escapassem dessa responsabilidade, já que
aqueles já teriam assumido esse fardo. Mais adiante abordarei mais a fundo o pouco que se
sabe e que se pode dizer concernindo as lideranças, o cacique e o pajé, a partir de alguns
fragmentos de informação a que se teve acesso.
Voltando à nova estrutura política imposta pelo SPI, Wilke Melo observa, no
mesmo sentido do que venho afirmando, que o funcionário do SPI inicialmente conhecido
como inspetor, e pouco depois como chefe do posto indígena, se tornaria o “principal

12
intermediário entre os interesses da comunidade e o poder estatal já constituído. Em pouco
tempo esse funcionário participaria intensamente das tomadas de decisão internas ao grupo”
(2013: 66).
Ele também ressalta o caráter impositivo e alienígena de tais categorias,
transformando a hierarquia política local, e por conseguinte alterando o sistema vigente:
a interferência do mencionado poder tutelar influencia diretamente na construção de
categorias políticas até então alheias à sociedade Fulni-ô. A partir destes enunciados
infiro que os funcionários do corpo burocrático são os agentes responsáveis por
disseminar os conceitos territorialmente universalizados de Pajé e Cacique,

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categorias políticas impostas pelo organismo estatal. A aplicação destes
convencionalismos ignora as particulares formas de poder entramadas no seio das
comunidades, ao tempo que cria mecanismos hierárquicos incompatíveis com os
princípios organizativos locais. (…) A partir disso a composição política dos Fulni-ô
seria formada por dois representantes internos (membros da organização política
interna Fulni-ô), e a figura do inspetor (nomeado pelo SPI) (idem: 66-67).

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Conforme os dados levantados no trabalho de campo e na documentação e
bibliografia consultada, essa estrutura política se manteve inalterada ao menos até o início dos
anos 1980: como já afirmei, reconhecia-se a autonomia indígena quanto às questões de ordem
sócio-ritual-religiosa, mas boa parte de todas as demais – aquelas relacionadas à terra, à
mediação de conflitos e a transações diversas, bem como as solicitações por assistência de
toda sorte – ficavam sob a alçada do chefe de posto. Nesse sentido, declara Díaz, a partir dos
dados colhidos durante seu período em campo, de agosto a dezembro de 1982:
Quando os Fulni-ô têm qualquer tipo de problema, recorrem primeiramente ao
Chefe de Posto. (…) Não se trata de exagero nosso. Em várias ocasiões pudemos
observar situações desse tipo. Dependendo do estilo pessoal de “governar” de cada
Chefe de Posto, varia a intensidade e amplitude dos problemas por ele resolvidos.
(…) pelo que contam os mais velhos, os encarregados do SPI foram os mais
autoritários (…). Para os Fulni-ô os Chefes de Posto não deixam de ser uma
autoridade imposta (1983: 186-188)

2.3. O sistema político Fulni-ô em tempos recentes: mudança, conflitos e


faccionalismo

Por volta de meados dos anos 1980, essa divisão de poderes começou a mudar
gradativamente, com o cacique e o pajé assumindo cada vez mais atribuições antes exercidas
pelo chefe do posto. Isso é notado claramente por diversos indígenas, como também pela
Funai. É visível que as responsabilidades do chefe do posto listadas por Díaz não se mantêm
atualmente. O cacique anterior, conhecido como João de Pontes, declarou-me isso diversas
vezes, como registrei, por exemplo, em parecer anterior 10: tempos atrás, “cacique e pajé era só

10 Parecer 1/2017

13
questão religiosa”, e acrescentou, em tom jocoso, que hoje seus papéis teriam se estendido a
“delegado, juiz, promotor…”, acumulando funções que antigamente eram da alçada do chefe
de posto, como administrar e mediar os “problemas da aldeia”.
Nesse mesmo sentido afirmou um indígena, em uma das reuniões realizadas na
aldeia durante o trabalho de campo, quando questionei os motivos da presente divergência:
no meu entender, chegamos a essa divergência por causa da mistura de dois poderes:
o poder político e o poder religioso. Os antepassados só tinham o poder religioso,
não tinham o poder político. O poder político, quem regia a comunidade nos termos
políticos, econômico e financeiro era o chefe do posto, que era enviado pelo órgão

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que trocou pela Funai [o SPI]. E aí toda essa problemática de política financeira e
social no poder do coordenador da Funai. Hoje, a partir dos anos 80, a Funai, para se
livrar do fluxo de indígenas na Funai, ela criou administração aqui em Garanhuns, e
essa administração tinha a finalidade de coibir, de parar que os índios fossem para
Funai. E aí a Funai, na pessoa do senhor administrador (...), disse que só atende um
índio se ele fosse com o aval de Pajé e Cacique. Então com isso aí, pajé e cacique
passaram a ter poder político muito alto, e o chefe de posto perdeu esse poder, e aí

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ficou dois poderes. E os dois poderes nesse choque, o poder religioso com o poder
político.

Alguns comentários: em primeiro lugar, entendo que cacique e pajé não


possuíam poder exclusivamente religioso, mas, sem dúvida, esse era, e permanece sendo, seu
papel fundamental, enquanto seu poder político era extremamente restrito pela autoridade
superior do chefe de posto. Partindo das considerações em outras etnografias, desde o período
dos maiorais e capitães, até o atual, de pajés e caciques, boa parte de sua atuação política se
restringia a encaminhar às autoridades as demandas, problemas e solicitações dos indígenas, e
porventura fazer uma representação formal da comunidade em alguma circunstância, quiçá
referendar uma decisão já tomada. Quem fazia a administração do espaço e tomava as
decisões relevantes, fora da religião, eram indubitavelmente os chefes de posto.
Em segundo lugar, é possível que essa decisão local da Funai, de exigir o aval
dos dois antes de atender qualquer índio, tenha provocado efeitos na divisão dos poderes já
existente entre os Fulni-ô. Entretanto, tudo indica que essa mudança foi bem mais profunda e
abrangente, se devendo a transformações legais de âmbito nacional e até internacional,
relacionadas a mudanças na política indigenista, iniciadas na década de 1980 e entrando pelo
século XXI, e também a fatores contingenciais.
Afinal, a Constituição Federal de 1988 acabou, na prática, com o instituto da
tutela: a partir de então reconhecia-se aos índios o direito de representarem a si mesmos
legalmente e a falarem em seu próprio nome; conquistaram também reconhecimento da
legitimidade de suas próprias formas de organização social e política – isto é, conquistaram o
direito de serem ouvidos em seus próprios termos, a partir de suas formas específicas de
representação.
Em 1989 é redigida a Convenção 169, da OIT, ratificada em 2002 pelo

14
Congresso Nacional, que, entre outros direitos reconhecidos aos chamados “povos indígenas e
tribais”, reconheceu seu direito à autodeterminação e à consulta livre, prévia e informada
sobre qualquer medida que venha a ser tomada que os afetem diretamente.
Tais instrumentos legais valorizam e reconhecem as organizações sociais,
políticas, religiosas e territoriais dos diferentes povos indígenas e “tribais”; assim, de certo
modo, proporcionam uma projeção e uma responsabilidade aos ocupantes dos papéis de chefia
e liderança, que talvez não tivessem até então. Como já escrevi no parecer já citado, embora
tais mudanças tenham representado um grande avanço no trato com as populações
tradicionais,

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é de se esperar que elas tenham feito com que as comunidades indígenas, em
especial aquelas que já tinham uma longa relação estabelecida com o órgão
indigenista, tivessem que se adaptar e transformar a maneira como se apresentavam
e se faziam representar ao Estado e aos diversos órgãos e instituições com os quais
dialogavam. Ao contrário do que se possa imaginar, nem sempre tais mudanças
possibilitaram que uma organização política indígena “original” fosse enfim

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reconhecida. Isto porque algumas comunidades, a exemplo dos Fulni-ô, com um
longo histórico de contato com a sociedade envolvente e com o Estado em suas
diversas manifestações e instâncias, haviam conformado seu sistema político-social
às pressões, exigências, limites e eventuais aberturas externas, numa espécie de
negociação ([quase] sempre desfavorável a eles, mas inescapável) na qual alianças,
cessões e outras estratégias eram por vezes necessárias para que pudessem manter
aquilo que lhes era caro enquanto comunidade Fulni-ô. (2017: 8)

Outro problema que surge é que muitos dos agentes institucionais que
interagem com as comunidades indígenas assumem que “os sistemas políticos indígenas
funcionariam de maneira análoga ao nosso: que suas lideranças exercem ‘mandatos’
representativos, e que, uma vez neste cargo, teriam autonomia e legitimidade para tomar
quaisquer decisões, de qualquer natureza, em nome de todo o povo” (idem: 9). Presumem,
assim, que a autoridade da liderança vai ser sempre plenamente reconhecida e respeitada.
Comumente, contudo, não é isso que acontece.
No caso dos Fulni-ô, por exemplo, a autoridade religiosa do cacique e do pajé,
até a presente situação, de fato sempre foi plenamente reconhecida e respeitada, enquanto sua
atuação política, por sua vez, foi questionada e contestada diversas vezes nas últimas décadas.
Já em 1982, Díaz fala que pôde observar “a luta de facções pelo poder na tribo” (1983: 193) –
embora o que ele descreva não pareça consistir exatamente em “facções”. Na realidade, o
autor afirma que, à época, “os líderes tradicionais [cacique e pajé] se queixam de que o
Delegado [da Funai] não respeita a hierarquia existente entre eles, sobrepondo-se as
autoridades legítimas” (idem: 195). Quando o cacique encaminhava alguma solicitação de sua
comunidade ao Chefe do Posto, o delegado não atenderia, o que geraria insatisfação por parte
dos índios, que reclamavam que “o Cacique não se mobiliza, não busca melhoria para os
índios” (idem: 195-6). Alguns indígenas de prestígio se aproveitariam dessa situação para
levar suas reivindicações diretamente ao Delegado, que os atenderia prontamente, como um

15
indígena em particular chamado Hilário (idem: 196). Entretanto, não apresenta elementos que
corroborem a ideia de que haviam grupos definidos e distintos dentro da aldeia, com uma
pauta própria e lideranças que se opunham diretamente ao cacique; o que parece haver é que,
diante da morosidade na resposta do órgão indigenista, alguns indígenas procuraram acessá-
los diretamente, sem a mediação do cacique ou do pajé. Díaz discorre ainda sobre a
mobilização dos jovens Fulni-ô, que também começavam a agir de maneira mais enfática em
busca de resposta das instituições e instâncias governamentais a seus pleitos. Estes, porém,
como declara o próprio autor, “não questionaram em nenhum momento a autoridade dos
anciãos”, mas se diferenciavam deles principalmente em sua forma de ação para conseguir o

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que perseguiam (idem: 200).
Já em meados dos anos 1990, podemos dizer que, diferente da situação descrita
por Díaz, de fato teve curso entre os Fulni-ô um processo faccional 11, com a organização de
um grupo estruturado que fazia oposição (política) ao cacique e ao pajé e possuía uma pauta
própria, de certa forma obrigando os membros da comunidade a se posicionar em favor de um

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ou outro lado, o que criou um clima de tensão que pairava na comunidade e penetrava no
espaço doméstico, como descreveu Melo (2013: 13-15). Ele ficaria conhecido na comunidade
justamente como “o grupo”. Esse faccionalismo Fulni-ô foi tão relevante que chegou a
motivar a organização de um workshop pela Funai em Carpina/PE, em 1997, com o objetivo
exclusivo de discutir essa situação, que já produzia efeitos inclusive sobre o Posto Indígena
(2000: 8).
Melo afirma que as origens do grupo estariam em uma viagem de um indígena
conhecido como Zuma Grande a Brasília12, pouco depois da promulgação da Constituição
Federal de 1988, quando este reuniu um grupo de jovens indígenas com o objetivo de “lutar
pelos direitos indígenas” garantidos pela nova CF. Segundo Melo,
Foram escolhidas as pessoas da aldeia que melhor conheciam o “mundo dos
brancos” e que estivessem mais habilitadas para negociarem com o órgão
indigenista federal. A partir daí se constitui uma ponte entre novas lideranças
indígenas e importantes dirigentes da sede central da Funai em Brasília. Mais tarde,
essas novas lideranças se organizariam dentro da comunidade (…), chegando a se
contrapor às lideranças tradicionais [entendidas aqui como cacique e pajé] (2011:
130; grifos meus).

Já um ex-chefe de posto, neto do ex-cacique João de Pontes, acredita que o


surgimento de tal grupo teria sido incentivado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário),

11 Embora “faccionalismo” tenha sido o conceito consolidado na literatura antropológica sobre esse fenômeno,
surpreendentemente ele não parece ter ganhado uma acepção definitivo. Contudo, utilizo-o aqui para me referir
ao processo em que, dentro de um mesmo grupo social, um ou mais segmentos se organiza(m) de modo a se
opor, de forma mais ou menos estruturada, àqueles investidos de poder, seja de natureza política, religiosa, social
ou de outra ordem, o que tipicamente leva ou à sua destituição, ou à ruptura do tecido social.
12 Zuma Grande havia sido cacique, antecedendo João de Pontes – que esteve no posto por décadas, e faleceu
no ano passado. Zuma Grande já não era cacique nesse período, mas como era uma liderança que, segundo os
Fulni-ô, “gostava de viajar”, o que nem sempre o cacique poderia fazer por conta de seus compromissos rituais,
é possível que ela tenha ido a Brasília representando as lideranças tradicionais.

16
organização ligada à Igreja Católica que então tinha uma forte presença nos grupos indígenas
do Nordeste.
De um modo ou de outro, esse grupo, encabeçado pelo que Melo chama de
“novas lideranças”, restringia sua oposição às “lideranças tradicionais” (i.e., cacique e pajé)
unicamente em relação ao seu aspecto político. Afinal, diziam aquelas, a atuação destas
últimas para atender às necessidades da comunidade era “tímida e ineficiente” (Secundino,
2000: 94); listavam também problemas relacionados ao usufruto das áreas comuns da Terra
Indígena (aldeia-sede e do Ouricuri; idem), além de serem “acomodados” para captar recursos
externos em prol da comunidade (ibidem). Os recursos que chegavam ali beneficiariam

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apenas a eles próprios e a suas famílias. Ademais, me relataram em outra ocasião, suas
obrigações rituais os impediam de viajar com muita frequência para participar de reuniões e
outros atos fora de Águas Belas, e as idades avançadas de João de Pontes (falecido em 2018,
com mais de 90 anos), e de Cláudio Pereira Júnior (pajé falecido em 2013), eram fatores
limitadores extras.

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Vê-se que o “grupo” se formou em torno de um propósito muito claro: ter
acesso direto à Funai e a outras agências e instituições externas, sem ter que passar
necessariamente pela mediação do cacique e do pajé. Intencionavam encaminhar suas
demandas diretamente a quem interessava, estar à frente das negociações, ter o poder de
negar, concordar, reivindicar, decidir sobre aquilo que seria levado e feito para e com a
comunidade, assumindo o controle sobre os recursos, projetos e serviços que chegariam ali.
Isto é, pretendiam estar em posse, se não do monopólio, ao menos de uma posição
privilegiada nas relações dos Fulni-ô com o Estado e com a sociedade nacional – ou seja,
para fora. Quanto às relações para dentro, cacique e pajé manteriam sua mesma posição de
lideranças, sem concorrentes. Afinal, como declara Melo (2013:12), “o status de liderança
tradicional era e ainda segue sendo compreendido dentro da cosmologia Fulni-ô como um
dom que é oferecido pelos antepassados ancestrais. Portanto, como se supõe, não pode ser
renunciado e tampouco destituído”.
O que o “grupo” argumentava, então, era que
a lógica da cosmologia Fulni-ô não estaria sendo adulterada, porque o que estava em
discussão era a relação administrativa que foi estabelecida ante o Estado. Estes
“insurgentes” diziam que, a rigor, a organização política e ritual interna não
estava sendo questionada, já que permaneciam as relações hierárquicas definidas
entre os segmentos Fulni-ô. Reivindicavam então que apenas era necessária a
redefinição das relações com o Estado, e que isso se conseguiria com a criação de
uma nova organização política responsável por negociar os interesses da
comunidade (idem; grifos meus).

Como seria essa nova organização política proposta pelo grupo? Segundo
Melo, ela seria “composta pelos representantes de todos os segmentos do grupo – forma que
resgatava a ideia de representação da solidariedade clânica Fulni-ô”, e seria paralela à
“autoridade tradicional” (2013: 13). Assim, em lugar de ser um movimento propriamente

17
contestador das lideranças tradicionais, o grupo pretendia restringi-las novamente às suas
atribuições originais, religiosas, enquanto uma nova autoridade seria responsável pela atuação
político-administrativa. Surgia então a figura do cacique administrativo – que recebeu esse
nome porque, segundo um informante, “a Funai valoriza mesmo é um cacique”, e seu
qualificativo (“administrativo”) não deixava dúvidas sobre a seara em que atuaria. Embora
não haja consenso se foi o grupo ou a Funai quem cunhou essa nomenclatura, parece
inconteste que esta última atuou para legitimá-la, assim como para legitimar as próprias
lideranças do grupo (Secundino, 2000: 93; Ferreira, 2000: 48-49; Coutinho e Melo, 2000: 61).
Além do cacique administrativo, havia uma espécie de conselho, composto por doze líderes,

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que tomava as decisões mais relevantes quanto àquilo que os concernia.
Coutinho e Melo (2000: 61) afirmam que a nomeação do primeiro cacique
administrativo, José Correia Ribeiro, aconteceu em 1994. Segundo Melo (2013: 14-15),
embora no início a ideia de uma representação política paralela à tradicional não tivesse sido
apoiada por uma maioria, os “rebeldes” conseguiram muitos simpatizantes, o que aumentava a

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“rede de intrigas” entre eles e aqueles que “permaneciam fiéis às lideranças tradicionais”.
Assim, o grupo não demorou a lograr suas primeiras conquistas. Organizou-se
em uma associação – Associação Fowclassa – já que percebeu que se estiver reunido “através
de organizações, certamente, suas investidas para canalização de recursos serão mais bem-
sucedidas. O próprio órgão incentiva tal forma de organização” (Melo, 2011:134). O cacique
administrativo acumulava o cargo de presidente da associação. Conseguiu nomear como chefe
do Posto Indígena um dos seus, que em sua gestão conseguiu que a Funai realizasse, em 1995,
um amplo levantamento sobre os ocupantes e arrendatários dos lotes da TI (uma reedição dos
“livros de lotes”, que desde o final dos anos 1980 já não eram mais feitos), sua cadeia
dominial e um relatório antropológico sobre a situação fundiária – o que tinha o fim precípuo
de atender a uma das reivindicações do grupo, de redistribuição aos índios dos lotes que
estariam nas mãos de não-indígenas.
Tais levantamentos e estudos tinham um objetivo claro: atender suas demandas
fundiárias. As principais eram a “redemarcação” da TI (já que haveria índios sem terra,
enquanto brancos possuíam terras na área indígena (Coutinho e Melo, 2000: 61)) e a compra
ou anexação da Fazenda Peró, contígua à área indígena, que reivindicam pela primeira vez à
Funai em 1997. Essa fazenda se tornaria seu pleito mais relevante, por dois motivos: muito
próxima da área onde se realiza o Ouricuri, ritual secreto realizado pelos Fulni-ô
absolutamente vedado aos brancos, sua pequena elevação em relação ao restante do terreno
permitiria a quem estivesse ali a visão da movimentação da área, especialmente no período da
seca, o que os deixava insatisfeitos. A outra razão é que esta seria uma área de ocupação
tradicional indígena, que deveria ser incluída na “redemarcação” pleiteada. Em 1998, para
pressionar sua aquisição, encabeçaram uma ocupação da fazenda. A Funai encomendou um
relatório antropológico sobre o assunto, mas, atropelando o devido processo administrativo e
legal, iniciou os trâmites para aquisição da Fazenda antes de sua conclusão. Em 2000, enfim, a

18
Funai pagaria pelas benfeitorias, e o cartório de Águas Belas emitiria uma escritura pública,
em que seu proprietário reconhecia a área como de “ocupação tradicional indígena”,
reconhecendo também “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos do mencionado ato de
aquisição da propriedade e seu registro imobiliário respectivo”13. As terras da fazenda foram
divididas entre os doze líderes do grupo e as aproximadamente 90 famílias que participaram
da ocupação, todas vinculadas à dissidência.
Quanto ao cacique e ao pajé, embora não se opusessem à ocupação e aquisição
da fazenda, e até manifestassem apoio, preocupadas também com o Ouricuri, chegaram a
defender que, uma vez adquirida, os membros da Associação deveriam se retirar integralmente

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da aldeia-sede, e que ela deveria pertencer exclusivamente à associação, não sendo
incorporada à TI Fulni-ô (Secundino, 2000: 93).
A ocupação e conquista da Fazenda Peró, embora pareça representar o auge da
força e poder do grupo, também parece ter sido o início de sua ruína: Secundino relata que,
ainda durante as negociações para a compra da fazenda, o cacique administrativo foi afastado

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por divergências internas, e outra liderança tomou a frente do grupo e a presidência da
associação; ainda em 1999, ele também seria substituído, e se aliaria ao seu tio, o pajé (idem:
94-95).
Não há registro exato de quando o grupo se desfez, mas isso provavelmente
ocorreu por volta de 2000 – possivelmente as dissidências internas tenham motivado sua
dissipação. Como descrevi em parecer anterior, um de seus ex-participantes declarou que a
mobilização arrefeceu porque “ao longo do tempo, o povo foi conversando com as partes pra
se unir de novo, [e] pra não acontecer coisas pior[es], frearam”. Outro declarou que, depois do
afastamento do cacique administrativo, outros foram desistindo, outros envelhecendo, e o
abandonaram. O próprio João de Pontes me contou, num tom de anedota, que os líderes do
grupo o procuraram então para pedir perdão, ao que ele respondeu que só os perdoaria depois
de três anos.
O chamado faccionalismo indígena é um fenômeno que pôde ser observado
diversas vezes em comunidades no Nordeste, e vários desses casos foram objeto de estudo por
antropólogos. Qual seria a razão para essa grande frequência de processos faccionais na
região? Qual seria a natureza desses processos, e o quê os desencadearia? São perguntas
complexas e difíceis, para as quais podemos dizer que não há respostas diretas, que valham
igualmente para todos eles, e para as quais tampouco há consenso.
No caso do faccionalismo Fulni-ô dos anos 1990, por exemplo, dois autores
que se debruçaram sobre o tema indicam respostas diferentes. Por um lado, ambos são
taxativos em indicar a grande responsabilidade do órgão indigenista em insuflar, incentivar e
legitimar a divisão. Ferreira aponta que

13 “Escritura Pública de Declaração de Reconhecimento de Terra Indígena, de seu domínio pela União e de sua
posse e usufruto indígenas (...)”

19
Essa situação hoje parece estar relacionada a práticas indigenistas do presente (...),
nas quais as unidades administrativas da Funai (PI, ADR e Administração Central)
atuam, muitas vezes, sob pressão e de maneira parcial, no sentido de atender
reivindicações mais imediatas, que privilegiam pequenos grupos de índios ou
famílias indígenas, representando, ao que parece, uma espécie de barganha
conjuntural, um conluio entre administradores ineptos e índios. (2000: 49; grifos
meus)

Secundino corrobora essas conclusões, dizendo que


como outros grupos do Nordeste, os Fulni-ô estabeleceram uma relação histórica
típica com a política indigenista oficial […] o órgão oficial, ao mesmo tempo em

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que fomenta relações de dependência, impulsiona e provoca divisões políticas e,
consequentemente, faccionalismos internos nos grupos (2000: 85; grifos meus)

Por outro lado, divergem quanto à natureza da cisão, se estrutural ou


conjuntural: enquanto Ferreira declara que o órgão indigenista “desencadeou o que identifico
como uma 'ruptura' de segmentos/elementos confrontantes na estrutura social do grupo

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indígena, legitimando o surgimento (e o fortalecimento interno também) da figura do cacique
administrativo” (idem; grifos meus), Secundino afirma que
o processo faccional é resultante de estratégias e de flexibilização de barganhas
armadas na interação de seus atores sociais presentes no campo político
situacional. […] esse processo se faz explícito muito mais num plano situacional
e menos num plano estrutural no qual são interpelados os atores em interação
(Secundino, 2000: 84, grifos meus).

Independente se houve uma ruptura na estrutura social ou se tudo se


circunscreveu a um plano situacional, o que nos interessa nesse caso é saber até que ponto o
processo faccional de então se conecta à situação atual, e ajuda a entendê-la: seria esta uma
extensão ou uma consequência daquela? O grupo teria desaparecido de fato, ou teria apenas
entrado em estado de latência, se manifestando novamente agora? Os motivos que deram
origem à cisão na época, ou o quadro sociopolítico que permitiu que surgisse, reapareceram
no presente?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que já ouvi de alguns Fulni-ô, ainda antes da
divisão atual, que “o grupo nunca acabou”. O cargo de “cacique administrativo” já não existia
mais, a Associação Fowclassa já estava inativa, e não havia grupo estruturado se articulando
com uma pauta própria, que divergisse das posições do cacique e do pajé; contudo, creio que o
que se quis dizer é que o grupo se mantinha “vivo” porque as insatisfações que os
mobilizaram antes se mantinham, os problemas apontados então ainda não haviam sido
sanados, e o desejo por uma outra representação política permanecia.
Com efeito, é notável que algumas características dessa dissidência atual
reproduzem não só aquelas do grupo dos anos 1990, mas também àquelas apresentadas por
Díaz ainda nos anos 1980. A primeira delas é uma presença expressiva da juventude: Díaz
falava da mobilização dos jovens indígenas; Melo fala da reunião de um grupo de jovens
indígenas em viagem a Brasília, que formariam as chamadas novas lideranças; igualmente,

20
aqueles que permanecem seguindo o cacique e o pajé instituídos ressaltam que boa parte dos
seguidores do grupo dissidente é jovem.
A segunda é que há nos três casos uma insatisfação generalizada com a atuação
política do pajé e do cacique: embora Díaz registre apenas a reclamação de que o cacique “não
se mobiliza, não busca melhorias”, nas outras duas ocasiões há novas acusações que se
somariam a esta: diz-se que eles só beneficiariam sua própria família e seus aliados próximos,
tanto no que diz respeito aos projetos, recursos e outros bens que seriam originalmente
destinados à comunidade, quanto com relação aos empregos oferecidos na aldeia, parte dos
quais cabe ao cacique e ao pajé fazer indicações (mais sobre isso adiante).

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A terceira característica está diretamente relacionada à segunda: são comuns
acusações de corrupção, enriquecimento ilícito (supostamente às custas da comunidade),
desvio e apropriação de recursos, não só com relação ao cacique e ao pajé, mas concernindo
vários ocupantes de cargos estratégicos dentre os Fulni-ô, como presidentes de associações,
servidores da Funai local e regional, ex-chefes de posto, entre outros mais. Fala-se de serviços

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que nunca foram prestados, projetos que só existiram no papel, notas fiscais frias,
enriquecimento rápido e sem motivo aparente por parte de alguns, “presentes” que foram
ganhos de outras autoridades, recursos repassados que não chegaram a seu destino. São
acusações diversas com múltiplos alvos, que dizem respeito a várias situações.
Estas duas últimas características, outrossim, não se restringem ao momento
atual: há anos essas mesmas acusações e reclamações têm sido comuns, e venho ouvindo-as
de vários Fulni-ô, bem antes da nomeação dos novos pajé e cacique. O recado subjacente a
elas é claro: os “poderosos” (o que inclui cacique e pajé e suas famílias, mas também
servidores da Funai, por exemplo) estariam supostamente, legal ou ilegalmente, se valendo
dos meios disponíveis para se manter na sua posição do poder (político e financeiro), e ao
fazê-lo estariam prejudicando a comunidade.
Boa parte desses argumentos foram utilizados também, por exemplo, pelo
grupo “independente”, que nas tratativas de pagamento de indenização pela Chesf aos Fulni-ô
dizia representar a comunidade, mas não falava em nome do pajé nem do cacique – grupo que
ficou conhecido como “das 600 famílias”, por ter apresentado abaixo-assinado com esse
número de assinaturas em certa ocasião. Ainda que fosse próximo do finado cacique João de
Pontes até certo momento, argumentava que a comunidade havia sido lesada no pagamento da
indenização anterior, pois os “proprietários” teriam se apropriado indevidamente de sua
parcela coletiva; reivindicavam assim o pagamento de uma parcela maior (ou até o pagamento
integral) à comunidade dessa feita.
Nem tudo, porém, é continuidade entre os movimentos do passado e o do
presente: muitos daqueles que no passado fizeram oposição ao cacique e pajé, apoiando o
cacique administrativo, incluindo aqueles que participaram ativamente da ocupação da
Fazenda Peró, hoje apoiam Cícero e Gildiere. Alguns outros, porém, fazem oposição. Percebe-
se o quão complexas são estas dinâmicas sociais.

21
Em outro ponto, a dissidência atual rompeu por completo com aquelas do
passado: como já afirmei, Díaz deixou claro que se questionava então apenas a atuação
política do cacique, e o grupo dos anos 1990 também enfatizava, sempre que possível, que seu
propósito nunca foi contestar a autoridade religiosa das lideranças, e tampouco destituí-las de
seus cargos, mas apenas questionar sua atuação política. Afinal, os Fulni-ô sempre prezaram
muito pela preservação de sua organização religiosa, e procuraram sempre mantê-la à parte
dos problemas “mundanos” que os afligem. Sempre, também, ressaltaram a importância do
Ouricuri para sua vida enquanto comunidade, e relataram como ali se unem e se dedicam
coletivamente à sua religião.

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Dessa vez, contudo, a divisão chegou à organização religiosa – o que vários
Fulni-ô, algo desgostosos, disseram-me que nunca acharam que aconteceria –, com o apoio,
por uma parcela da comunidade, de novos cacique e pajé, enquanto outra parcela permanece
apoiando aqueles que já ocupavam o cargo.
Trato, a seguir, sobre como se dá (até onde se pode saber) a escolha do cacique

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e do pajé entre os Fulni-ô.

2.4. O segredo, a organização social Fulni-ô e o processo de escolha do cacique e do


pajé

São amplamente conhecidos a ênfase e o valor atribuídos pelos Fulni-ô ao


segredo que recobre vários de seus aspectos culturais – o que foi descrito por vezes como
“hermetismo cultural” Fulni-ô. Isso é especialmente notável quanto aos eventos que tomam
lugar durante o Ouricuri, principal complexo ritual da vida religiosa indígena, sobre os quais
muito pouco se sabe, já que o acesso a não índios (e a índios de outras etnias) é absolutamente
vedado. Contudo, isso abrange também sua mitologia, sua língua (a única usada durante os
momentos rituais), aspectos de sua organização social, entre outros: tudo é protegido pelo
segredo tão caro aos Fulni-ô, apesar da curiosidade da sociedade não-indígena e talvez
especialmente dos antropólogos, tão ávidos por saber mais sobre tais temas e manifestações
de sua cultura. Eles são, contudo, irredutíveis. Como afirma Melo:
O domínio dos conhecimentos culturais que os Fulni-ô reivindicam enquanto um
modo de “propiedad autoral” - isso inclui: os mitos, religião, formas rituais,
expressões linguísticas, hierarquias clânicas, entre outras, são informações que
devem manter-se “escondidas” dos “olhares” dos não indígenas e, em nosso tempo,
especialmente dos antropólogos. (2013: 28)

A menção aos antropólogos aqui não é gratuita: Estêvão Pinto, o primeiro a


dedicar uma etnografia completa aos Fulni-ô, na década de 1950, abordando vários aspectos a
respeito de sua história e cultura, provocaria alguma polêmica e marcaria até o tempo presente
a imagem que os eles têm dos antropólogos e de sua atividade. Não à toa, ele e seu estudo são

22
objeto de debate em vários trabalhos posteriores.
Podemos dizer que isso se deu por alguns motivos: em primeiro lugar, os Fulni-
ô questionam a exposição de informações que deveriam ser vedadas aos não-índios, ignorando
o dogma Fulni-ô do segredo – embora ele mesmo mencione, em sua etnografia, os “mistérios
ouricurianos” (1956: 145), dizendo que o “o ritual é rodeado de muitas precauções e sigilos”
(idem: 146), e ressaltando que “o segredo em torno do ritual ouricuriano garante (…) a
‘continuidade da tribo’ e constitui um dos elementos mais fortes de sua coesão social” (idem:
148). Isso não foi suficiente para impedi-lo de revelar não só o que o antropólogo Max
Boudin já havia registrado em artigo anterior sobre os Fulni-ô 14, mas de procurar “completar

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as lacunas” com suas pesquisas posteriores.
Em segundo lugar, contestam a falta de transparência na metodologia utilizada
para obter seus dados: de fato, não há clareza em sua obra sobre como, quando, e a partir de
quais métodos e técnicas ele obteve aquelas informações. Também ele próprio confirma, na
nota preliminar de seu trabalho, que distribuiu presentes e dinheiro aos indígenas durante seu

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trabalho de campo, solicitados pelos próprios índios, supostamente em troca de informações
(1956: 31) – o que Pinto, embora considere como um efeito da sua exploração contínua pelos
brancos, e se lamente por isso, não parece entender como um método no mínimo questionável
para obtenção de dados de pesquisa com populações indígenas, nem, portanto, sente
necessidade de se justificar.
Em terceiro lugar, os indígenas muitas vezes questionam o próprio conteúdo e
as interpretações apresentados por Pinto em sua obra. Schroder, por exemplo, faz essa
observação (2011: 9), bem como vários outros autores e indígenas. É interessante notar
também que, ao citar o artigo de Max Boudin que serviu como uma fonte importante para
Pinto, Schroder lembre uma observação de Baldus, de 1954, no qual ele diz que “certas
passagens desse trabalho inspiram pouca confiança”. Como exemplo desse questionamento
feito pelos indígenas, Díaz reproduz em sua dissertação um diálogo travado com um deles
sobre a etnografia de Pinto. Ao ser informado sobre o quê o livro dizia a respeito do Ouricuri e
da divisão em clãs, afirmou: “[ele] não sabe, porque ele não entende como é interpretado isso.
Porque se fosse os nossos troncos que escrevesse isso, nós sabia. Mas não foi nós, foi os
civilizados que escreveram isso, de acordo com o entendimento deles” (1983: 14). Da mesma
forma, ao perguntar ao cacique João de Pontes se as informações contidas no livro eram
verdadeiras, o autor manteve com ele o seguinte diálogo:
Cacique: não, porque aí quem criou através de, provavelmente tem alguma coisa,
né? Então ele enfeitou a história, para ficar uma história bonita, não é?

J. H. Díaz: mas não tem nada, nada de verdade?

Cacique: não, eu não acho, eu acho que não, é aí que está, né? Que eu não acho, o

14 O próprio Boudin também não teve escrúpulos em fazê-lo, já que ele também registrou em seu artigo que
“foi extremamente difícil obter tais informações [‘relativas à vida tribal desse grupo indígena’], devido ao fato
de manterem os índios sigilo absoluto a respeito da religião que praticam, bem como sobre tudo que se relaciona
à vida social e interna da tribo” (1949: 47)

23
que se falou.

J. H. Díaz: ele fala, por exemplo, do grupo do fumo, do pato, periquito…

Cacique: pois é, falou isso, mas talvez ele nem entende do que ele falou, não sabe
(…) (idem: 15-16).

Curiosamente, ouvi algo muito parecido do cacique Cícero. Mostrei a ele uma
fotografia tirada pelo naturalista Carlos Estêvão de Oliveira na década de 1930, constante na
dissertação de Melo (2013), na qual apareceriam as cinco maiores lideranças desse povo,
identificadas pelo autor, em yaathê, como datkas ou datkasato (2013: 51). Pergunto se eles
seriam os representantes de cada um dos cinco clãs nos quais se dividiria a comunidade Fulni-

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ô. Ele inicialmente evita responder diretamente, depois se esquiva da pergunta e coloca em
dúvida a veracidade das informações, sem contudo apontar o que está exatamente errado, e
qual seria a versão verdadeira:
(...) hoje o senhor tá fazendo um trabalho conosco. Mas eu posso convidar 5
pessoas, de 60, 70 anos, e dizer assim: você vai ser o clã tal, e você o tal, o tal e o

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tal. Eu posso trazer e dizer assim: olha, são esses cinco. Apresento ao senhor e o
senhor: eu posso tirar uma foto? Pode! Tchu. Quando for daqui a 40 anos, ou daqui
a 10 anos, o senhor pode dizer: ó, aqui são cinco lideranças que eu conheci, que o
cacique Cícero me apresentou. Funciona assim também. Ou principalmente hoje.
Hoje é que se tá mesmo.

Assim, embora de fato aquilo que Pinto registrou possa ser impreciso ou até
mesmo falso, não podemos desconsiderar a hipótese de que os Fulni-ô, ao questionar registros
como os de Pinto ou de outros antropólogos do passado, procurem despistar ou confundir seus
interlocutores, colocando-os em dúvida sobre a veracidade do que está registrado, já que são
temas absolutamente proibidos.
Porque os Fulni-ô valorizam tanto esse segredo no que diz respeito a tais
assuntos? Não é, sem dúvida, apenas um capricho. Sérgio Dantas afirma em sua tese, que,
segundo seus informantes,
o caráter fechado e enigmático do conhecimento sagrado é uma condição para um
regime de ordem no mundo: “… tem muita expressão sagrada que não deve ser
revelada para não-índios. Apenas se explica que os valores religiosos indígenas, em
alguns aspectos continuam sendo ocultos, fazendo assim resistir grandes fontes de
energia, sustentando espiritualmente todos os filhos da terra.” (2002: 92)
Assim, “o silêncio quanto ao sagrado guarda íntima associação enquanto
expressão moral de virtude e pureza. Manter-se puro na essência é a força Fulni-ô e sua
condição de acesso à fonte da sabedoria” (idem).
O que aconteceria se esse segredo fosse revelado por alguém? Comumente os
Fulni-ô lembram que tanto aquele que contou quanto aquele que ouviu podem ser punidos por
isso. Mas essa punição não é estabelecida pelos homens ou mulheres da comunidade, mas

24
pela “natureza” ou por Deus; uma punição vinda de outro plano, não só para essa, mas para
qualquer infração das regras referentes à religião e organização social. Não raro, os Fulni-ô
narram histórias sobre pessoas que adoeceram, com as quais aconteceram “coisas estranhas”,
ou até morreram. Melo diz que “o infrator deve fazer um ‘ajuste de contas’ com o mundo
ancestral, com a natureza que conecta o mundo humano e sobrenatural” (2013: 56). Dantas
reforça essa posição, declarando que, segundo seus informantes, não só “… muitos morreram
porque contaram...”, mas até “muitos povos que passaram o conhecimento se extinguiram!”
(2002: 95).
Hoje a antropologia se guia por outros parâmetros éticos, diferentes daqueles

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de quando Pinto realizou sua etnografia. Sua escolha de descrever determinados aspectos
culturais dos Fulni-ô em sua obra, mesmo sabendo do impedimento estabelecido pela própria
comunidade, são no mínimo eticamente questionáveis. Assim, por respeito ao segredo tão
caro aos indígenas; por conta das dúvidas acerca da veracidade das informações trazidas por
Boudin e Pinto, e pelo questionamento dos Fulni-ô relativos à pertinência da publicação

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dessas informações; e mesmo pela falta de dados sobre o assunto, decidi utilizar na exposição
a seguir sobre alguns dados culturais dos Fulni-ô apenas o que é de conhecimento público, o
que foi descrito em outros trabalhos, ou aquilo que foi relatado diretamente a mim, sem
qualquer orientação de sigilo na sua divulgação. Ainda assim, todo cuidado é pouco quanto ao
que pode ser registrado, já que aquilo que pode ser dito exatamente pode variar de um
indígena para o outro, ou de acordo com a situação e a confiança que se deposita no
interlocutor: alguns são mais abertos, e outros mais restritivos. Dantas diz ter percebido o
“policiamento recíproco que é exercido nas conversas e trocas de advertências que, supomos,
são estabelecidas em Yathê, sempre que há suspeita quanto ao caráter esotérico de um
determinado assunto” (2002: 95).
Sabe-se que os Fulni-ô apresentam um sistema de classificação social
composto de cinco clãs (também já chamados de sipes) patrilineares – o que quer dizer que os
filhos se filiam à linhagem do pai, e não da mãe. Filhos de índias com brancos são geralmente
incorporados ao clã da mãe (Melo, 2013: 107). Esses clãs estão organizados em um sistema
hierárquico complexo, no qual, pelo que se sabe, um clã é superior a outro, que é superior a
um terceiro, e assim por diante, aparentemente chegando a uma situação de equilíbrio, na qual
o último clã é superior ou equivalente ao primeiro (Melo, 2013: 9).
Cada clã reúne algumas famílias, conhecidas por nomes específicos; cada uma
delas, porém, abrangeria diversos ramos distintos. Por exemplo, a família a englobaria os
ramos x, y e z. Por isso Melo afirma, a respeito de uma família específica, que “existem várias
ramificações desta família distribuídas na aldeia” (idem: 107). As chamadas “lideranças” são
escolhidas/nomeadas dentro de cada um desses clãs. Também haveria uma hierarquia entre
elas, dentro de cada clã: existiriam, no topo, os “chefes” (que Melo chama de datkas, ou
“cabeças”). Aqui cabe fazer uma observação: embora tenha dito acima que entre os Fulni-ô
não identifiquei um Conselho Tribal nos moldes descritos por Díaz, alguns entrevistados

25
chamaram algumas dessas lideranças de “conselheiros”. Como não se sabe detalhes dessa
estrutura hierárquica, tampouco o nome desses cargos em yaathê, difícil saber ao certo se tais
“conselheiros” seriam uma outra tradução possível para o português da posição dos “chefes” a
que me referi, ou correspondem a outro lugar nessa estrutura. O fato é que uma importante
fonte afirmou que, além dos “conselheiros”, há ainda outras pessoas, que não seriam
denominadas lideranças, mas que seriam “responsáveis por organizar uma coisa aqui, outra
coisa ali” - atividades e tarefas religiosas específicas: “então, a estrutura que eu falo são isso:
o pajé, o cacique, as lideranças internas, e ainda mais [essas] pessoas” - lembrando que todos
estes são escolhidos tendo em vista os clãs ao qual pertencem.

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Vê-se, portanto, que, assim como o cacique e o pajé, a principal função dessas
chamadas “lideranças internas” é ritual. Segundo um informante, não é qualquer um que pode
se tornar uma liderança: algumas competências são exigidas delas, como falar bem o yaathê,
ser inteligente, bem articulado, ter conhecimento. As lideranças são nomeadas ritualmente,
assim como o cacique e o pajé. Segundo esse mesmo informante, mulheres podem ser

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lideranças grandes e importantes na comunidade, mas não podem ser cacique, pajé, nem
“chefe de nada”. Não há limite mínimo de idade para que alguém seja indicado como
liderança. Há relatos de pessoas que se tornaram lideranças bastante jovens, com menos de 18
anos. Da mesma forma, há outros que se tornaram lideranças já com uma idade mais
avançada.
Para alçarem aos seus postos, cacique e pajé precisam ser, antes, lideranças. Os
dois devem pertencem, cada um, a dois clãs específicos. Ao analisar os caciques e pajés atuais
e passados, percebe-se, como aponta Melo (idem: 107), que “o cargo de pajé alterna entre as
famílias Pereira e Ferreira de Sá”; por sua vez, “a chefatura dos caciques alterna entre as
famílias Ribeiro e Santos/Sarapó” (idem: 107; grifos do autor). Falarei mais adiante sobre os
caciques e pajés anteriores. Por ora, é importante notar que, segundo alguns autores (p. ex.,
Díaz, 71-77) e informantes, o cargo é transmitido preferencialmente de pai para filho,
mantendo-se assim sempre dentro do mesmo clã. Díaz afirma que a preferência é dada ao
filho mais velho, o que não foi possível confirmar em absoluto. Se não for possível que um
filho herde o cargo, dá-se preferência a outro descendente consanguíneo direto que pertença
ao mesmo clã – neto (filho do filho) ou sobrinho (filho do irmão), por exemplo. É importante
salientar, de todo modo, que isso é um modelo, que nem sempre se segue à risca, por motivos
que nem sempre são muito claros. Provavelmente há outros fatores, não revelados, que pesam
nessa escolha. Talvez seja por isso que, ao serem questionados se eles saberiam de antemão
quem seriam os próximos pajé e cacique antes de serem indicados, alguns informantes
responderam-me que ainda que não tenham a certeza, têm alguma ideia de quem poderá ser,
pois já sabem sua linhagem. Nesse mesmo sentido, Melo, tratando das lideranças de forma
geral, declara que “certamente no interior das aldeias todos sabem com precisão de qual grupo
será escolhido certo líder indígena, mas não se pode dizer exatamente de qual das famílias
serão eleitos estes líderes” (idem: 107). Isso explicaria a supracitada alternância entre caciques
e pajés de famílias diferentes.

26
Discorro agora sobre o processo de indicação e sobre as funções do cacique e
do pajé. A cerimônia de indicação destes cargos, segundo Melo, “geralmente, (...) é realizada
na aldeia do Ouricuri, ainda que possa acontecer também na aldeia urbana de Águas Belas”.
Quando questionei alguns dos entrevistados sobre o assunto, contudo, disseram-me apenas
que é feita na aldeia da rua. Disseram-me, inclusive, que a recente indicação de Cícero ao
cargo de cacique aconteceu na casa da mãe de Edmar, uma importante liderança – mais sobre
isso mais à frente. A indicação de um novo pajé ou cacique é feita imediatamente depois que o
anterior falece ou deixa o cargo - “é enterrando um e já é botando o outro”, declarou-me um
dos informantes. Esses dois postos não ficam um dia só vagos. A cerimônia é aberta para toda

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a comunidade, e não apenas para as lideranças – mas são vedadas, como é de se esperar, para
os brancos. Como se sabe, a norma geral é que, uma vez nomeados, os dois cargos são
vitalícios – características sempre marcada, embora tenha havido exceções ao longo da
história, como se verá.
Segundo vários informantes, o que também foi confirmado pelo pajé Awassury

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em reunião realizada nessa PRM15, o cacique é quem tem papel preponderante na escolha do
pajé; já o cacique seria escolhido por lideranças de outro(s) clã(s), que possuem essa função
específica. Isso significaria que o cacique seria hierarquicamente superior ao pajé? Não
exatamente. Por um lado, um informante afirmou em certa ocasião que o cacique tem
“autoridade mais do que pajé”. O mesmo indígena, ao ser perguntado se o pajé poderia ser
destituído pelo cacique, se este assim o desejasse, respondeu: “se quiser. Se ele não dá certo,
pode tirar”. Por outro lado, outro informante de prestígio disse, em resposta à mesma
pergunta: “não tem aquele dizer que tem coisas que posso, mas não devo? Assim como tem
coisas que eu devo, mas não posso fazer? Mas com relação a isso, se é vitalício, é vitalício”.
Muitos outros informantes reforçam essa necessidade premente de cacique e pajé dialogarem
e chegarem a um entendimento conjunto sobre todas as questões que concernem a
comunidade, em especial suas funções religiosas: “o ideal é trabalharem sempre juntos”. Díaz
declara, no mesmo sentido: “parece haver consenso entre os Fulniô de que, ao considerar
qualquer assunto que envolva a tribo em conjunto, os dois deve (sic) estar em comum acordo”
(1983: 76). Assim, ao menos no exercício de suas funções enquanto lideranças do povo Fulni-
ô, cacique e pajé parecem ter status equivalentes.
O pajé, todavia, tem preponderância no que diz respeito à religião: é ele quem
indica as datas de início e fim do Ouricuri, quem convoca a comunidade para as reuniões
periódicas, entre outras deliberações e decisões: “quem dirige a religião é o pajé”, me
relataram, embora o cacique também tenha seu poder e suas responsabilidades religiosas.
A despeito dos dados empíricos e das declarações de vários autores e
informantes, que reforçam a descrição acima, é importante assinalar que outros entrevistados
deram versões para os critérios para escolha de cacique e pajé que divergem um pouco. Uma
entrevistada em especial foi bastante convicta ao afirmar que a indicação é “por competência”,

15 Em 20 de fevereiro de 2019.

27
e não “por herança”. Comparou os cargos a uma máquina de costura: se possuísse uma,
quando não puder mais usá-la, quem ficaria com ela seria alguém que tivesse competência
para isso, que soubesse trabalhar com ela. Diferente de uma casa, disse, que seria herdada
pelos descendentes diretos. Para reforçar seu ponto, relembra casos em que filhos do pajé e do
cacique não herdaram o cargo de seus pais.
Outra narrativa que foi apresentada por um informante é a de que os caciques e
pajés, quando idosos, já escolhem quem ocupará sua vaga quando morrerem, como se fossem
os “donos” desses cargos:
Antes deles [cacique e pajé] morrer, que tá os velhos já fraco, diz: bota, fica para

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fulano de tal a vaga aí. Fica para ciclano. Aí pronto. O caba não tem mais o que
dizer: vai botar fulano, né? Porque quem deu o direito foi o dono. Uma hipótese:
Seu pai está velhinho. Aí diz: Olha, você vai ficar no meu lugar aqui. Não é seu
lugar? Não há quem tire. No meu ver não há quem tire não.
Para escolher os próximos cacique e pajé, os atuais convidariam alguns dos

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possíveis futuros ocupantes dessas vagas para acompanhá-los em seus trabalhos, observando-
os, ensinando-os e criando uma relação de confiança. Esse trabalho conjunto daria uma “base”
para essa escolha, que, contudo, não é definitiva, sendo confirmada apenas na cerimônia que
oficializam as novas lideranças.
Houve quem contestasse essa última versão: alegaram que a proximidade de
alguém com o cacique ou com o pajé presente não garante de nenhuma forma que assumirá
tais funções no futuro.
Como aqui ainda estamos no terreno da especulação, já que há que se trabalhar
com os fragmentos de informação a que se tem acesso, há duas possibilidades quanto a essas
duas versões: ou há divergências entre setores distintos da comunidade sobre como se dá esse
processo (ou talvez até desconhecimento), ou são fatores complementares. É possível que,
além dos critérios básicos de pertencimento a determinados clãs e da hereditariedade, haja a
exigência do domínio de determinadas competências e habilidades para que se assuma tais
cargos, como há para as lideranças, como já apontei; e também podemos considerar a hipótese
de que aqueles que já tem alguma familiaridade com as atribuições vinculadas aos dois cargos
também, acompanhando os trabalhos realizadas por outros que os ocuparam, estariam alguns
“pontos à frente” dos demais. Isso poderia revestir de alguma subjetividade os processos de
indicação.
De todo modo, há um consenso absoluto sobre o assunto: essa indicação é fruto
da providência divina, ou obra da natureza – ambos parecem intimamente associados, se não
equivalentes, para os Fulni-ô. Inúmeros entrevistados fizeram declarações quase idênticas,
todas atribuindo a Deus a escolha de suas lideranças. Sendo assim, caberia apenas aos
responsáveis anunciar a vontade divina, como uma revelação. Embora nenhum dos
informantes tenha usado esse termo específico, é justamente ele o utilizado por Melo: “a
eleição dos cargos obedece a processos mágicos religiosos baseados na revelação” (2013:

28
106). Reproduzo a seguir algumas citações nesse sentido:
Agora de Cacique o que eu vi esse aqui é recém-chegado. Mas ele foi escolhido por
Deus Todo Poderoso. Não foi ninguém da terra que botou ele não. - entrevistado 1
Um cacique e um pajé é iluminado pela Providência Divina. É ela quem vai dizer
quem é. - entrevistado 2
A eleição de pajé e cacique, a nomeação de pajé e cacique é feita, como o senhor
falou, de maneira oculta, que só nós sabemos, que é do lado espiritual, como ele
falou, vem lá do Superior, do Senhor superior que é Deus. - entrevistado 3

Cacique e Pajé é tirado pela obra da natureza. – entrevistado 4

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Como cabe a Deus nomear tais lideranças, também caberia a Ele destituí-las,
segundo os relatos – e como o cargo é vitalicio, a destituição aconteceria só com a morte:
Dentro da nossa cultura diz o seguinte: quando ele não serve, não dá mais, ou não
serve para ser o líder daquele povo, simplesmente é tirado de uma outra forma,
dolorosa, mas é tirado.

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Assim, os Fulni-ô encaram tais cargos como uma missão, da qual não podem
escapar nem desistir, e que os acompanhará enquanto forem vivos. Uma missão que traz
consigo muita responsabilidade, e por isso é, por um lado, um fardo, embora, por outro,
possibilite que o Ouricuri, tão prezado, permaneça forte, e por extensão a própria comunidade:
Cícero: não é cargo. Eu já disse uma vez no MP. Se fosse um cargo, dr. Otávio, eu já
disse ao Procurador, mais dr. Marcel, se fosse um carguinho qualquer, eu já tinha
renunciado essa missão.

Gildiere: eu não, eu não tinha nem entrado. Mas já que eu entrei, eu vou até a
morte.

Cicero: (…) como é uma missão, eu não posso desistir. Infelizmente, digo,
felizmente.
_______

Awassury: se existisse querer, o meu querer seria negativo. Não por falta de amor, e
sim por saber o tamanho da responsabilidade que [com] isso viria.

2.5. Caciques e pajés do passado

Nesse tópico, tratarei daqueles que ocuparam esses cargos no passado,


abordando algumas de suas características e apresentando alguns fatos relevantes, para que se
entenda um pouco melhor como se chegou à configuração atual. Antes, porém, ressalto que
datas de nascimento e morte, e de início do exercício das funções, não puderam ser levantadas
com precisão, seja por falta de registros, pelos informantes não terem memória exata dos

29
fatos, ou pela falta do tempo necessário para levantar essas informações. Assim, indicarei
apenas períodos aproximados.
No que concerne aos caciques, o primeiro que se tem algum registro, citado por
um informante, foi João Ribeiro. Note-se, como já apontei acima, que a família Ribeiro
alterna historicamente o cacicado com a família Santos/Sarapó. Provavelmente viveu entre a
segunda metade do século XIX e início do XX. Lembro ainda que Dantas nos apresenta uma
solicitação feita em 1864 por um capitão dos índios da aldeia do Ipanema chamado João
Correa Caboré. Pelo período em que viveu, certamente é anterior à organização política,
imposta pelo SPI, que incluía os papéis de cacique e pajé – é do tempo dos capitães e

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maiorais. Não obstante, é referido pelos Fulni-ô como cacique, utilizando o vocabulário de
hoje, provavelmente porque é a função política que mais se aproxima daquelas vigentes
naquele tempo. Embora não haja nenhum indicativo claro de que João Correa Caboré era o
João Ribeiro, não se pode descartar essa hipótese – é bastante comum, entre os indígenas, que
os nomes de registro não correspondam ao nome pelo qual ficaram conhecidos, já que muitas

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vezes há um apelido, ou então acrescenta-se ao seu nome o nome do pai ou do avô, ou do
ramo familiar ao qual pertence (que nem sempre corresponde ao seu sobrenome de registro),
servindo como sobrenome “não-oficial”. Sobre ele, contudo, não obtive nenhuma informação
concreta além do nome.
Já aquele que o sucedeu é mais conhecido: Sarapó, ou Velho Sarapó. Segundo
um informante, Sarapó era apelido, porque teria nascido “galego” - isso é, com o tom de pele
e cabelo mais claros. Seu nome seria Manoel. Sarapó é sempre muito lembrado e, segundo os
dados que obtive, teve uma longa “gestão”. Pinto, em sua etnografia publicada em 1956, cita
Sarapó como cacique em algumas poucas passagens, não chegando a tratar sobre o tempo de
seu “mandato”, seus antecessores, o modo de escolha, ou qualquer outro assunto correlato. O
que se sabe, a partir de Pinto, é que ele então tinha perto de 90 anos (1956: 29 e 125) –
lembrando que, embora a etnografia tenha sido publicada em 1956, o trabalho de campo que a
deu ensejo iniciou-se em 1953 (idem: 3). Pinto chega a nos apresentar a genealogia de Sarapó,
onde constam seus pais, filhos e netos. Contudo, não chega a identificá-los pelos nomes, já
que sua preocupação era apenas fazer considerações a respeito dos clãs aos quais cada um
pertenceria – o que não nos ajuda, portanto, no entendimento sobre as regras de transmissão
do cargo, nem na identificação dos laços familiares que porventura uniram os caciques do
passado.
Não foram encontrados, nos registros oficiais produzidos pelo SPI a partir da
instalação do Posto Indígena na Terra Indígena Fulni-ô, em 1924, referências a caciques
anteriores a Sarapó. Considerando sua idade na década de 1950, é possível supor que ele já era
cacique nas primeiras décadas desse século. Dado sua idade avançada, provavelmente faleceu
entre o final da década de 1950 e o início dos anos 1960.
O cacique que assumiu o cargo em seguida foi José Correia. Sobre ele, Díaz
conta a seguinte versão: “com a morte do velho Zarapó (sic), o cargo vago correspondia ao

30
seu filho maior. Como este não aceitou e como os demais filhos eram muito jovens, o cargo
foi dado a Zé Correa que, apesar de ser da família de Zarapó, não era descendente direto”
(1983: 74). Díaz não deixa claro qual era o parentesco de Zé Correia com Zarapó.
Nenhum informante com o qual conversei confirmou essa versão. O que se diz
dele é que, durante um Ouricuri, sua esposa quis interferir em uma questão ritual, o que gerou
um desentendimento. Um informante disse que ela “queria mandar na camarinha” - locais na
aldeia do Ouricuri onde os homens dormem, cujo acesso Às mulheres é proibido –, o que eles
não aceitaram. Segundo alguns relatos, ela colocou o marido numa situação em que ele teve
que fazer uma escolha; teria dito que “se fosse homem tomava uma atitude”. Como ele não

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fez o que ela quis, retirou-se do Ouricuri, e entregou seu cargo. Um informante declarou que
ele não foi um bom cacique; de fato, José Correia é pouco lembrado nas entrevistas.
O que é importante observar no caso de José Correia é que ele foge a duas
regras relativas ao cargo: a sua transmissão ao filho mais velho, e a vitaliciedade. Não
obstante, se a informação fornecida por Díaz for acurada, ainda assim ele é da família de

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Sarapó, e portanto, ainda assim, pode pertencer ao mesmo clã que ele, confirmando ao menos
essa regra.
Depois de José Correia veio Procópio Sarapó. Seu caso é bem marcante, e sua
história sempre lembrada pelos Fulni-ô: foi o cacique mais jovem a assumir o posto (os
relatos variam a respeito da idade exata, entre 16 – idade citada por Díaz (idem: 74) – e 25
anos), e teve um “mandato” curto (novamente, não há consenso, mas alguns indicam ter
durado apenas três anos), interrompido por conta de seu assassinato por um soldado, quando
tinha, segundo os entrevistados, entre 26 e 28 anos. Ele era um homem destemido, e teria
tentado “dar no soldado” como revide de uma ameaça deste a outros indígenas. Como
resultado, levou um tiro.
Apesar do período breve no cargo, foi um cacique muito popular (“teve nome
aqui dentro da comunidade”; “ele era muito do povo”, disseram). Um dos filhos de João de
Pontes acredita que Procópio morreu por volta de 1966, já que seu pai teria assumido o cargo
em 1967.
Não é possível saber se essa informação é precisa, principalmente porque entre
os dois houve um outro cacique, conhecido como Zuma, Zuma Grande, ou Antônio Zuma.
Díaz refere-se a ele como Antônio Ignácio, seu provável nome de registro. Um dos
informantes também afirmou que, junto com Zuma Grande, entrou Inácio Severo, nome que
não apareceu em nenhuma das outras entrevistas, o que impossibilita saber qual era seu papel
nesse período.
Zuma, segundo relatos, não era da linhagem de Sarapó, mas pertencia ao
mesmo clã – isto é, o clã a partir do qual são “tirados” os caciques. O que é interessante a
respeito de sua “gestão” é que ele é comumente referido como uma espécie de cacique
“interino”, tanto pela bibliografia quanto em vários relatos colhidos. Por conta do segredo, é

31
difícil saber detalhes do motivo dessa interinidade (“nós fica numa situação difícil de explicar
esse tema ao senhor, entendeu?”). O que se sabe, segundo uma versão, é que haveria um
“dono” do cargo, que não poderia assumi-lo momentaneamente – ele estaria doente, dizem
alguns. Quando perguntei se esse dono era João de Pontes, o cacique posterior a Zuma,
responderam-me que não: “ninguém sabe quem é [o próximo cacique]. Aí de repente a
missão… depois a missão veio pra ele [João de Pontes]”. Um dos filhos de João de Pontes
afirmou que, com a morte de Procópio, houve uma indefinição de quem seria o próximo a
assumir o posto:
Filho 1: Tem meu pai [João de Pontes]. Tem o tio… tinha três irmãos dele. Tinha

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outro tio dele, irmão do outro cacique [Procópio]. Entendeu? Então quer dizer…
meu tio, então podia ser meu tio Sérgio.
Filho 2: Qualquer um.
Filho 1: Entendeu como é que é? Aí tinha um mais velho, que era tio de papai, tio
Sérgio, que era irmão... então ficou aquele… entendeu? Não, enquanto se resolve
isso, fica você [Zuma] tomando conta aí da cadeira, quando chegar a um

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consenso…
Eu: Então não tinha chegado num consenso ainda? Estava indefinido?
Filho 1: É.
Filho 2: É que não tem como a gente explicar.
Chama a atenção o fato de que João de Pontes, que sucederia Zuma, seria, de
acordo com Díaz, “filho do filho mais velho de Zarapó (sic)” (idem: 75) – isto é, sua escolha
obedeceria à regra de transmissão do cargo já mencionada. Isso reforça a tese do caráter
interino do cacicado de Zuma, que teria assumido apenas enquanto um descendente direto de
Sarapó não poderia fazê-lo. Se nos apegarmos a tal regra, teríamos que estender esse caráter
interino também ao cacicado de José Correia, que antecedeu Procópio – afinal, ele não era
descendente direto de Sarapó, como dissemos, e também abandonou o posto em vida,
quebrando a regra da vitaliciedade. É justamente essa a interpretação de Díaz, ao afirmar que
Correia apenas ocupou o posto porque o filho mais velho de Sarapó teria se negado a fazê-lo
(idem: 74). Por isso Procópio teria assumido o cargo tão novo: para pôr fim à interinidade de
seu antecessor.
Ferreira (2000: 49), baseando-se largamente nos dados levantados por Díaz,
corrobora seus apontamentos, e é mais explícito quanto ao caráter transitório dos dois
cacicados: afirma que, quando não é possível a substituição do cacique dentro da mesma
família, preferencialmente o filho mais velho, “recorre-se a outro membro da família em
caráter transitório, até que um descendente direto tenha condições de assumir o cargo, como
aconteceu antes do atual cacique João de Pontes ser efetivado no cargo”. José Correia então
assumiu a “função transitoriamente”, e Zuma “assumiu interinamente” (idem; grifos no
original).
A interinidade de Zuma, contudo, não é consensual: um dos informantes
declarou que, embora conheça essa história, diz que acha “engraçada” essa versão, porque,

32
segundo quem a conta, “cacique teve dono, mas o pajé não teve” - “é uns argumentos que eles
dizem, eles mesmo se desdizem”. Ainda assim, como registrei aqui, a versão mais comum diz
o contrário. O segredo que ronda o assunto impede que se entenda os meandros dessa
divergência.
Zuma entregaria então o cargo para João de Pontes. Além do caráter transitório,
os informantes citam outros motivos para isso. Zuma gostava bastante de viajar, exercendo a
função de representante de sua comunidade para fora, mas não tanto das obrigações e
responsabilidades internas e religiosas, inerentes à função – teria se tornado cacique “a pulso”:
viajava pra Brasília, viajava pras capitais, fazia e vendia artesanato, quando chegava

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comida, dava pra o povo, vários guerreiros indígenas [de outros grupos] conhecem
ele. (...) Só que ele estava mais na questão de cacique guerreiro, de botar para o
povo, do que…que foi quando ele aproveitou quando João Pontes chegou. E foi ele
mesmo que deixou, e disse: não, agora vai ser ele, me livrem.
Outro informante corrobora: ele “tava querendo liberdade. Não queria ficar

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muito ali”. Acrescentou ainda que “na época não tinha vantagem nenhuma no cargo, e hoje
todo mundo quer”. Ele ainda teria continuado, ocasionalmente, a utilizar a “patente de
cacique” externamente, mesmo depois de deixar o cargo, com o conhecimento e autorização
de João de Pontes, embora sem nenhuma atribuição religiosa.
Talvez a interinidade de José Correia e de Zuma tenha feito com que fossem
menos lembrados quando se fala dos caciques do passado – o que é especialmente o caso
desse último. Em uma das reuniões, ao comentar sobre os caciques e pajés que conheceu, um
informante declarou: “Antônio Zuma (...) esse aí que eu não sei nem como… acho que passou
que nem uma barata pelas brechas. Porque o povo não considera ele um cacique”.
O mandato de João de Pontes (cujo nome de registro era João Francisco dos
Santos Filho), por fim, duraria décadas, como se sabe. Ele faleceu em agosto do último ano,
por volta de duas semanas antes da entrada do Ouricuri. No mesmo dia, a comunidade se
reuniu, como já apontei, para a eleição de um novo cacique – fato que, por ter relação direta
com a divisão atual, deixo para tratar no próximo tópico.
Temos então, desde os registros mais antigos (provavelmente fins do século
XIX)) até novembro de 2018, a seguinte sequência de caciques Fulni-ô:
1 – João Ribeiro (família Ribeiro)
2 – Velho Sarapó (família Santos/Sarapó)
3 – José Correia (família Santos/Sarapó?)
4 – Procópio Sarapó (família Santos/Sarapó)
5 – Antônio Zuma (família desconhecida)
6 – João de Pontes (família Santos/Sarapó)

33
Genealogia dos caciques da família Santos/Sarapó

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Passo agora à retrospectiva dos pajés Fulni-ô.
O primeiro pajé de que se tem registro é Gabriel Ferreira de Sá. Pinto menciona
apenas seu primeiro nome, para dizer que antecedeu ao “pajé João Grande, que faleceu em
1921, com mais de cem anos” (1956: 134). Podemos localizá-lo, portanto, a partir de meados
do século XIX. Um informante foi quem citou seu sobrenome, vinculando-o à família Ferreira
de Sá. Não se sabe muito mais sobre ele.
Sobre João Grande, que o sucedeu, sabe-se pouco também. Segundo alguns
relatos colhidos, seu nome completo seria João Pereira Júnior – o que o filia à família Pereira
–, e seria o tataravô de Gildiere. Há uma narrativa corrente, entre os Fulni-ô, sobre um pajé no
passado (alguns localizam-no no final do século XIX) que teria sido responsável por uma
suspensão temporária do Ouricuri. Esse período, entre o fim do século XIX e o início do XX,
foi especialmente problemático para os Fulni-ô: o aldeamento havia sido oficialmente extinto,
vários conflitos se desencadearam entre eles e os poderosos de Águas Belas e da região (que
não reconhecia a posse indígena da área do antigo aldeamento), e vários ataques foram
perpetrados contra a aldeia, inclusive com incêndios propositais. Boa parte dos indígenas
fugiu dali, migrando para outras localidades na região. Um relato de um entrevistado apontou
que foi justamente João Grande o pajé que “acabou” com o Ouricuri. Essa versão, contudo,
parece bem distante de ser consensual. Em verdade, parece revelar algum tipo de tensão,
divergência ou rixa entre famílias, segmentos ou linhagens, que pode ter sido acionada no
momento atual para reforçar a oposição à família Pereira, da qual Gildiere faz parte.
O pajé seguinte foi Basílio Ferreira de Sá – note-se que, mais uma vez, o cargo

34
alterna de família, voltando para os Ferreira de Sá. Era ele o pajé à época da visita de Estêvão
Pinto aos Fulni-ô, na década de 1950, no mesmo período de Sarapó – isto é, era então pajé há
trinta anos, desde a morte de João Grande. Não se sabe quando ele teria falecido. A Basílio
seguiu-se Julião Pereira Júnior – voltamos então à família Pereira. Segundo alguns relatos,
Julião seria filho de João Grande, informação que não pude confirmar. De toda forma, conta-
se que ele não estava exatamente sozinho no exercício dessa função – Paulo Ferreira de Sá
atuava com ele. Este último “não se anunciava nem se pronunciava Pajé em lugar nenhum”, e
“não entrava em trabalhos administrativos”, e portanto era desconhecido pelos brancos.
Contudo, aparentemente dividia as tarefas religiosas com o pajé titular. Um informante o

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descreveu como um substituto, um vice-pajé, em suas palavras:
Entrevistado 1: se um Pajé vai a uma obrigação, aí aquele fica, atende, né? Quem
vier atende né? (…) pra viagem, essas coisas, né? O prefeito não tem o vice, né? Aí
quando ele sai, aquele outro fica lá, né? Quer dizer que é o vice. É assim.
Já outro relato dá mais peso à atuação de Paulo, e relativiza a relevância de
Julião: “Julião Pereira Júnior desconhecia as regras, então Paulo Ferreira de Sá era quem

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coordenava, quem organizava toda situação nos rituais”. De toda forma, é certo que ainda que
Julião fosse o pajé “oficial”, ambos trabalhavam juntos e dividiam as responsabilidades da
função. E quanto ao cargo de vice-pajé, não há notícias de sua existência durante nenhum
outro período da história recente Fulni-ô – como tampouco há do cargo de vice-cacique.
Não pude identificar exatamente qual Paulo Ferreira de Sá exerceu essa função,
pois há dois indígenas com esse mesmo exato nome, pai e filho: um irmão de Basílio, e o
outro pai de ambos. Tendo a crer, entretanto, pelo que sugere as narrativas, que trata-se de
Paulo pai. Ele seria também, segundo alguns indícios, filho de Gabriel Ferreira de Sá, o pajé
mais antigo conhecido, já citado. Embora não cite o nome, Díaz dá a entender que, quando fez
o trabalho de campo entre os Fulni-ô, em 1982, era Julião o pajé em exercício.
Depois do falecimento de Julião, seu irmão Cláudio assumiria. Embora não se
saiba o ano exato em que “tomou posse”, sabe-se que em meados dos anos 1990 já ocupava o
posto. Ele permaneceria no cargo até sua morte, dando lugar a Gildiere Ribeiro Pereira, seu
sobrinho-neto, mais conhecido como Edmar. Segundo o próprio Gildiere, isso teria acontecido
em 2010. Daí até o início da divisão, em novembro do ano passado, ele seria o único pajé
Fulni-ô.
A sequência de pajés Fulni-ô, desde meados ou fins do século XIX até
novembro de 2018, seria então a seguinte:
1 – Gabriel Ferreira de Sá
2 – João Grande (família Pereira?)
3 – Basílio Ferreira de Sá (com o “vice-pajé” Paulo Ferreira de Sá)
4 – Julião Pereira Júnior (família Pereira)
5 – Cláudio Pereira Júnior (família Pereira)

35
6 – Gildiere Ribeiro Pereira (família Pereira)

Genealogia dos pajés da família Pereira

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Genealogia dos pajés da família Ferreira de Sá

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No próximo tópico, passo à descrição da presente controvérsia quanto às


lideranças Fulni-ô, expondo, primeiro, os fatos principais que se desenrolaram a partir de
escolha de Cícero como cacique, e então passando às versões dos dois lados sobre o que
motivou a formação da dissidência, e quais acusações são feitas de parte a parte.

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3. A DISSIDÊNCIA FULNIÔ

3.1. Os fatos principais

Nesse primeiro item, atenho-me a alguns momentos e eventos recentes que


auxiliem na compreensão da crise político-religiosa que se instalou entre os Fulni-ô.
Ainda que vários argumentos e elementos citados pelos dois grupos remetam a
acontecimentos passados, por vezes de décadas atrás, pode-se dizer que o marco inicial da

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crise atual foi a eleição de Cícero como cacique Fulni-ô, em agosto de 2018. Ela é sempre
citada pelo grupo dissidente como algo de que discordaram frontalmente, e que causou grande
desconforto.
Entretanto, como veremos, outro fator, anterior, teve peso considerável na
configuração dessa situação: as tratativas feitas com a Chesf para o pagamento de indenização

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como compensação pelo impacto das suas linhas de transmissão no território Fulni-ô, objeto
do PA em tela. Como se sabe, desde 2015, quando se encerrou a vigência do Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) anterior, vem se discutindo a assinatura de um novo TAC.
Desde 2016, contudo, além do cacique e do pajé e dos chamados “proprietários” de áreas
diretamente atingidas pelas linhas e torres (dos lotes e da gleba conhecida como Fazenda
Peró), um outro grupo tem se mostrado presente nas negociações, e se apresentado como
independente dos outros. Declarando representar a “comunidade”, sua posição quanto à
indenização da Chesf divergiu desde o início daquela do pajé: em lugar de um pagamento
proporcional à área atingida por cada um, pleiteiam uma parcela maior (ou até o pagamento
integral) à coletividade. Sua posição derivava em grande parte do sentimento, por parte de
muitos indígenas, de que a comunidade foi lesada no pagamento anterior, com seu quinhão
tendo sido gasto para favorecer apenas alguns indivíduos, ou sido desviado do seu propósito
original. O pagamento atual serviria, então, para “compensar” os erros do anterior.
Inicialmente eles apresentaram um abaixo-assinado com mais de 600 assinaturas, que
representariam as 600 famílias que os apoiariam. Em situações posteriores, contudo, outros
documentos foram apresentados com números totais de assinaturas diferentes.
Este grupo inicialmente era próximo ao cacique anterior, João de Pontes. Este
se mostrou, por muito tempo, reticente em tomar uma posição clara quanto à partilha do valor
indenizatório. Eventualmente, porém, ele se alinharia às posições do pajé e dos proprietários,
o que fez com quem o grupo “independente” se afastasse dele, discordando de sua decisão.
Em todo esse período, de 2016 até a última reunião, representantes desse grupo participaram
das reuniões realizadas nesta Procuradoria da República que buscavam um acordo para o
pagamento da indenização, ainda que, nas últimas ocasiões, apenas como ouvintes. Isso, como
se verá, será um elemento relevante.
Volto então à indicação de Cícero como cacique, às vésperas da entrada do

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Ouricuri, em meados de agosto último. Pouco depois da cerimônia de escolha, conversei,
presencialmente ou por telefone, em momentos diferentes, com alguns indígenas que estavam
presentes nela. Procuraram-me para tratar sobre outros assuntos, mas conversamos também
sobre a indicação do novo cacique, ainda muito recente. Narraram-me então que ainda
estavam espantados e decepcionados com o que havia acontecido: os procedimentos não
teriam sido em nada da maneira que esperavam, e o pajé teria articulado, nos bastidores, para
que o cacique escolhido fosse Cícero, próximo a ele, o que contraria as regras de transmissão
do cargo. Disseram-me que “todos viam” que era pra ser uma outra pessoa, mas no momento
de indicação, outro indivíduo foi apontado. Alguns teriam passado mal, e muitos indígenas

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teriam saído de lá revoltados com o que haviam presenciado.
É preciso sublinhar que não quero dizer com isso, de forma alguma, que esse
tenha sido o sentimento majoritário, mesmo que possa de fato ter sido esse o caso. Não vou
fazer conjecturas sobre o contingente que apoia cada lado, como já apontei na introdução.
Contudo, sabendo o que aconteceria depois, não há como não notar que nascia (ou crescia) aí

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uma insatisfação de uma parcela do povo Fulni-ô com suas lideranças, especificamente o
cacique. Pelos relatos, também percebe-se que essa insatisfação era, pelo menos em parte, por
motivos religiosos: entendia-se que as regras haviam sido burladas, com a manipulação dos
procedimentos rituais para (supostamente) favorecer interesses pessoas do pajé e daqueles a
ele ligados.
De toda forma, partiriam todos os Fulni-ô para o Ouricuri no início de
setembro, seguindo o calendário normal, com Cícero como cacique e Gildiere como pajé. O
ritual, pelo que se sabe, transcorreria normalmente por boa parte dos três meses. No dia 14 de
novembro haveria uma reunião16, nesta unidade do Parquet federal, a respeito da indenização
da Chesf, com o fito de dar andamento às negociações, da qual participaram representantes
das partes que têm interesse sobre a questão, incluindo todos que haviam participado das
reuniões anteriores. Em nome do grupo “independente”, estiveram presentes Aristides Ferraz
de Siqueira Neto, bem como o advogado constituído por eles, Roberto Rodrigues Wanderley –
com a ressalva de que seriam apenas ouvintes, já que tanto o MPF quanto a Funai, assim
como vários representantes dos indígenas, já haviam anteriormente reconhecido como
representantes exclusivos e legítimos da comunidade apenas o pajé e o cacique.
Na ata da reunião há o registro de uma fala deste advogado, declarando que a
parte da comunidade que representa “não se sente representada pelas lideranças, as quais
somente deveriam intervir no campo religioso” (p. 2 da ata). Vê-se aqui novamente a tensão
que gerou conflitos no passado, derivada do questionamento a respeito da extensão do campo
de atuação do cacique e do pajé, e que parece surgir periodicamente: se ambos são em sua
origem lideranças religiosas, como devem ser e quais os limites de sua atuação politica –
especialmente em um momento em que sua lista de atribuições parece só aumentar, e seus
cargos, ao menos em suas relações externas, tornam-se cada vez mais similares aos

16 PRM-GRU-PE-00008866/2018

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representantes políticos da sociedade nacional?
Como se viu, a natureza eminentemente religiosa do cargo de pajé e cacique
são sempre lembradas, inclusive pelas próprias lideranças. Não obstante, reconhece-se
também o seu papel de representantes da coletividade, embora pareça haver a percepção de
que tal papel se impôs pelo contato interétnico, e especialmente por conta do início da atuação
do órgão tutor entre os Fulni-ô.
Parece-me que, em situações em que as lideranças tomam decisões de cunho
político que não são consensuais, há sempre quem defenda a restrição de sua atuação à arena
religiosa (como faz o advogado Roberto e seus representados aqui), enquanto os que apoiam

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tais decisões defendem sua legitimidade por conta do caráter também político desses cargos.
Nesse sentido, Cícero, por exemplo, declara na reunião que “esse grupo que vem pleiteando
direitos em nome da comunidade, ignorando sua posição de liderança, está desrespeitando a
organização social da tribo”. Essa mesma posição foi endossada na ocasião por Gildiere. Dr.
Felipe, que representava então os proprietários, afirmou que “Pajé e Cacique sempre

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representaram a tribo externa e internamente, nos mais diversos campos, não somente o
religioso” (idem).
Além de explicitar as divergências a respeito de onde e como devem atuar estas
lideranças, as declarações acima também não deixam dúvidas de que já havia então uma forte
oposição entre o cacique, o pajé e seus apoiadores, de um lado, e esse grupo independente, de
outro – que não contava com lideranças formais, ainda que tivesse alguns mais atuantes à
frente.
Embora na ata não conste nenhuma declaração de Aristides, ele se também se
posicionou na reunião, questionando a posição de Cícero, Gildiere e dos proprietários, e
defendendo uma outra repartição dos recursos da indenização da Chesf. Uma de suas
afirmações, entretanto, que estaria registrada no vídeo da reunião, causaria indignação entre
aqueles que se mantém do lado das lideranças, e foi citada várias vezes por eles durante as
entrevistas: ele teria dito algo a respeito da força do seu grupo, e que mostraria que, se eles
quisessem, o cacique Cícero não permaneceria no seu cargo.
Essa frase é sempre lembrada, pelos apoiadores de Gildiere e Cícero,
simultaneamente como uma ameaça e um desrespeito à organização social, e como um sinal
de que ele já participava então de uma articulação para indicar um novo cacique. Já o grupo
do qual Aristides faz parte defende que foi um movimento espontâneo da comunidade (ou de
uma parcela dela), que não reconheceria a legitimidade e discordava frontalmente das
decisões das lideranças.
De uma forma ou de outra, segundo o ofício da Funai que ensejou esse parecer,
onze dias depois dessa reunião, no dia 25 do mesmo mês, foi escolhido, com o apoio de parte
da comunidade (a maior parte, segundo o grupo dissidente), um novo cacique, Itamar Severo
de Araújo. Embora eu já tenha ressaltado anteriormente, lembro mais uma vez, para não haver

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dúvidas: isso não significou em nenhum momento a destituição de Cícero, já que outra parte
da comunidade permaneceu apoiando-o.
Tanto o pajé Gildiere quanto o cacique Itamar contam que, depois da escolha
do último como cacique, o último procurou o primeiro, ainda durante o Ouricuri. Segundo
Gildiere, isso teria ocorrido no último dia do ritual, quando estava em uma reunião
deliberando a respeito do seu encerramento. Itamar, acompanhado por outros homens,
abordou-o, perguntando-lhe se “trabalharia” com ele (enquanto liderança). Gildiere teria
respondido que trabalharia com ele como trabalha com todo o povo Fulni-ô, mas não o
reconhecia como cacique.

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Provavelmente por isso Itamar declarou, em reunião realizada nesta PRM em
20 de fevereiro do presente ano, que Gildiere, que “não teria autonomia para interferir na
escolha efetuada, impôs a manutenção do cacique anterior, pelo que se fez necessária a
nomeação de um novo pajé” (p. 2 da ata). Com efeito, ainda de acordo com o ofício da Funai,
no dia 8 de dezembro, já no encerramento do Ouricuri, foi escolhido Awassury Araújo de Sá

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como pajé – ressalto, ainda outra vez, que, não obstante, Gildiere manteve seu posto.
Embora tenhamos sido comunicados informalmente, ainda em dezembro, sobre
a divisão que se instalava então entre os Fulni-ô, o ofício da Funai, recebido em janeiro, foi o
primeiro documento formal a comunicar o fato. Depois da paralisação das negociações com a
Chesf, Cícero e Gildiere solicitaram uma reunião com o Procurador da República, que foi
realizada no dia 31 de janeiro. Nesta reunião, em que estiveram acompanhados do advogado
Luiz Dimas Pontes Vieira, questionaram a legitimidade das novas lideranças, descreveram o
clima por vezes tenso que se instalou na aldeia depois que elas foram escolhidas, e falaram de
ameaças e calúnias feitas pelo outro grupo, a maior parte via redes sociais, entre outros
assuntos.
Pouco depois, fomos informados a respeito de um desentendimento que
acontecia na comunidade, diretamente vinculado à divisão, a respeito da festa de Nossa
Senhora da Conceição (ou, em yaathê, Yassakhlane), que acontece anualmente em fevereiro
na aldeia. Nesse ano, estava programada para o período entre 19 e 23 de fevereiro. Embora
seja uma festa católica, é vista pelos Fulni-ô como uma festa tradicional. Segundo os relatos
daqueles vinculados a Gildiere e Cícero, o outro grupo estaria impedindo a instalação dos
brinquedos do parque de diversões que é sempre montado na aldeia durante a festa, a despeito
da autorização que já haviam concedido. Diziam então que, se essa posição se mantivesse, os
ânimos poderiam se acirrar, e haveria um risco de um conflito de maiores proporções.
Já aqueles que defendiam Itamar e Awassury como seus respectivos cacique e
pajé negaram que estavam agindo para impedir a instalação, e que esta era uma iniciativa
exclusiva dos moradores das casas próximas ao local onde pretendiam instalar o parque.
Outro ponto de tensão durante a festa foi a expectativa da participação de
Gildiere e Cícero nas missas e cerimônias promovidas pela Igreja Católica. Melo, em sua

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dissertação, nota que em vários momentos da festa que presenciou, em 2010, cacique e pajé
estavam presentes no altar da igreja, ao lado dos padres, como também no que chamou de
“palco sacerdotal”, ao final da procissão que encerra a festa, onde também estavam presentes
autoridades como o prefeito, o arcebispo da diocese, entre outros (2013: 126-134). Nessa
última ocasião, as duas lideranças fizeram um discurso. Ambas eram também citadas com
frequência pelos padres celebrantes das missas na ocasião. Tudo indica, portanto, que sua
participação nesses momentos é de praxe.

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Foto 1 – reunião, durante o trabalho de campo, na Escola Bilíngue Antônio José Moreira, março de 2019. Foto
do autor.

É compreensível, portanto, que sua participação dessa feita gerasse uma certa
apreensão (provavelmente até para a Igreja), possivelmente porque isso poderia ser entendido
como uma tomada de posição do clero local em favor da legitimidade de um grupo, em
detrimento do outro. Assim, enquanto o grupo que apoia Gildiere e Cícero afirma que os
dissidentes haviam pressionado o padre até para suspender a festa, estes declararam, por sua
vez, que o próprio padre havia pedido aos dois que não se apresentassem como cacique e pajé
durante a missa, porque “não era bom isso, e a comunidade não aceitava”. De uma forma ou
de outra, a festa transcorreu sem maiores problemas, e Cícero e Gildiere estiveram presentes
como representantes da comunidade.
Durante meu trabalho de campo, em março, também foi bastante perceptível o
clima de tensão. Pessoas ligadas aos dois grupos evitavam se manter nos mesmos espaços e
travar diálogos além do necessário. Conforme os relatos dos entrevistados, o mesmo acontecia
em famílias cujos membros apoiavam grupos diferentes: ou evitavam tocar no assunto, ou se
afastavam. Houve até relatos de casais que estavam separados por conta da cisão.

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Também me informaram na ocasião que aqueles ligados a Itamar e Awassury
não vinham participando dos encontros semanais na aldeia do Ouricuri, que acontecem
geralmente duas noites por semana, de janeiro a maio. De um lado, o grupo instituído dizia
que estes não participavam por iniciativa própria, e por isso até questionavam seu
compromisso com o ritual. Afirmavam ainda que nunca se manifestaram contra sua
participação, e que seriam bem recebidos se decidissem ir, como sempre foram. Diziam, pelo
contrário, que eram Itamar, Awassury e alguns indígenas próximos que estavam coibindo ou
até ameaçando seus correligionários se demonstrassem desejo de ir às reuniões, o que
consideravam condenável. Do outro lado, o grupo dissidente afirma que vários dos seus

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haviam sido ameaçados por pessoas do grupo oposto caso fossem aos encontros no Ouricuri, e
que, assim, eles não iam por medo.
No início de abril, comunicaram-me que o até então coordenador da CTL-AB,
Iranildo Frederico da Silva, conhecido como Izinho, havia sido exonerado do cargo. Para seu
lugar, havia sido nomeado José Cordeiro (conhecido como Xavante), também indígena Fulni-

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ô. Izinho, assim como boa parte dos servidores da Funai, apoia Itamar e Awassury, da mesma
forma que a maior parte desse grupo aprovava a atuação de Izinho na coordenação. Assim,
não é de se espantar que sua exoneração os desagradasse. Organizaram então uma grande
manifestação no centro da aldeia, em frente ao posto, pedindo a anulação da nomeação de
José Cordeiro como coordenador – o que eventualmente lograriam. Comunicaram-me ainda
que iriam se articular diante da coordenação regional e da Funai em Brasília para reverter a
exoneração. Poucos dias depois, fui informado de que também houve uma grande reunião,
também no centro da aldeia, de frente à igreja, com os apoiadores de Gildiere e Cícero, com
estes à frente. Embora soe como uma resposta à manifestação anterior, não confirmariam essa
percepção.
Atualmente, a maior preocupação é quanto ao Ouricuri, que já está próximo:
inicia sempre no fim de agosto ou no início de setembro. Diante do ineditismo de uma
situação como essa – até hoje, não importavam os desentendimentos na aldeia da ruana aldeia
da rua, ao chegarem ao Ouricuri todos se uniam novamente –, não se sabe o que pode
acontecer.
Surpreendentemente, algo que chama a atenção nos discursos das duas partes é
o fato de que, embora estejam em pólos opostos, acionam argumentos muito similares, da
mesma ordem, para acusar o outro, mas trocando o sinal a favor de si. Assim, podemos
classificá-los, de modo genérico, em quatro categorias: aqueles de ordem religiosa; aqueles
que dizem respeito a recursos, projetos ou empregos – isto é, a grosso modo, questões
financeiras; aqueles relativos a disputas por poder; e aqueles que dizem respeito a questões
familiares ou individuais, ou que remetem a insatisfações pessoais ou eventos específicos.
Portanto, faço aqui uma exposição mais esquemática das acusações e dos
argumentos que as fundamentam, dividindo-as em tópicos de acordo com essas categorias, e
descrevendo as posições de cada lado com relação a cada uma delas. Antes, porém, trato de

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uma controvérsia central, que tem relação direta com a primeira categoria: o abaixo-assinado.

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Foto 2 – indígenas entrevistados durante o trabalho de campo em casa na aldeia, março de 2019. Foto do autor.

3.2. O abaixo-assinado

O abaixo-assinado aqui citado é aquele já abordado na introdução ao presente


parecer, com quase duas mil assinaturas de indígenas Fulni-ô (mais cerca de sessenta de
indígenas Kariri-Xokó, que se declaram descendentes dos Fulniô), comunicando a escolha das
novas lideranças. Foi-nos enviado como anexo ao ofício da Funai, e bastante citado durante as
entrevistas realizadas em campo, especialmente por aqueles ligados a Gildiere e Cícero.
Em linhas gerais, estes apontaram duas questões que consideraram
problemáticas com relação com esse documento: em primeiro lugar, haveria toda sorte de
irregularidades com as assinaturas, assim como declaram ter havido com outro abaixo-
assinado recente, apresentado pelo “grupo independente”, onde haveria os representantes de
600 famílias indígenas. Conforme seus relatos, constariam ali assinaturas de crianças, de
pessoas que declararam depois não ter assinado, ou que assinaram acreditando que ele se
prestava a outro fim, pessoas que assinaram por outras, e até de não-indígenas.
Na realidade, segundo alguns entrevistados, uma boa parte das assinaturas
seriam daqueles que os Fulni-ô chamam, num tom jocoso e algo pejorativo, de “grogojó”:
Entrevistado 1: a maioria dessas assinaturas é índio de que? De parte só de mãe,
parte só de pai, que é a palavra “grogojó”, que não é o índio legítimo. (...) essas
pessoas, grogojó, tá nesse nome porque? Porque não tem conhecimento da nossa
religião. Eu acho que é inocente, né? Tá ali: assina aí, fulano. Aí só faz…
Entrevistado 2: na verdade o grogojó, a interpretação pra nós do grogojó é aquela
pessoa, como ele disse, que não conhece de nada. Quer dizer, é inocente. Pronto.

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Em sua dissertação, Melo define grogojó como uma “palavra que designa o
caráter marginal, aqueles que não têm uma posição claramente definida enquanto integrante
do grupo, ou seja, se referem basicamente aos filhos de Fulni-ô (participante do ritual) com os
não-indígenas (othayto-á de Águas Belas)” (2013: 141; grifo do autor).
Estes teriam assinado, portanto, por desconhecimento ou por ingenuidade, seja
por ignorar as regras e preceitos religiosos relativos à escolha das lideranças, seja por não
estarem bem informados sobre a cisão que se formava, ou ao uso que seria feito daquele
documento. Segundo alguns indígenas, Gildiere e Cícero teriam sido procurados, depois de já
enviado o abaixo-assinado, por indígenas que diziam ter sido enganados, e que queriam retirar

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suas assinaturas.
Isso não quer dizer esse grupo acredite que todo o grupo dissidente é composto
por “grogojós”, mas entendem que o tamanho do apoio a Awassury e Itamar pela comunidade
indígena, como expresso pelo abaixo-assinado, pode ter sido inflado pelo uso das manobras

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citadas, e que sua dimensão real pode ser menor do que parece à primeira vista.
A outra questão problemática que este grupo aponta relativa ao abaixo-assinado
é mais grave: segundo eles, nunca se escolheu cacique ou pajé por voto (lembram sempre que
nomeação de lideranças não é política), documento ou outra forma similar, mas somente pelas
suas regras próprias e tradicionais; recorrer a estes métodos é ir “de encontro aos princípios do
povo Fulni-ô”, é “ferir minha cultura”; é, em suma, ignorar, e mais ainda, desrespeitar
frontalmente o sistema religioso Fulni-ô, adotando mecanismos de escolha de seus
representantes que são próprios aos brancos. Entendem ainda que recorrer a instituições
externas, dos brancos, pedindo que as reconheçam como lideranças é uma “humilhação”:
“quem preza pelos princípios do nosso povo não vai se rebaixar a abaixo-assinado”. Afinal, é
a religião, e a religião apenas, que os fazem lideranças e os legitimam nessa posição, e nada
mais: “eles podia ganhar no mundo, eles podia ser reconhecido por Ministério Público, quem
quisesse reconhecer. Mas eu tô pela religião, que eu acredito que a religião, a nossa religião, é
a força, é a base, é o alicerce de tudo, entendeu?”. Por isso, dizem, mesmo que o apoio a
Gildiere e Awassury possa ter se reduzido (ainda que não acreditem ser minoria), não é esse o
ponto principal: afinal, foram escolhidos segundo os devidos critérios religiosos, e é isso o
que importa, não o número de seguidores.
Com relação às assinaturas, o grupo de Itamar e Awassury nega qualquer
irregularidade. Chegaram a questionar, durante a reunião da qual participei, se todos ali
assinaram com consciência do que estavam assinando. A resposta foi um unânime sim.
Indígenas desse grupo ainda disseram que foram procurados por outros, depois de já enviado
o abaixo-assinado, querendo que suas assinaturas também fosse incluída.
Já quanto ao abaixo-assinado, eles reconhecem que, com efeito, não é através
desse instrumento que se nomeia um cacique ou um pajé, mas que o seu objetivo ao fazê-lo

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nunca foi esse. Afirmam que ambos foram escolhidos segundo as normas e princípios
religiosos próprios dos Fulni-ô, e que o documento é apenas um meio para comunicar
formalmente para as instituições externas a escolha das novas lideranças, expressando o apoio
do povo para tal:
para o não-índio precisa-se da documentação, ofício, essas coisas. (...) a
gente não tem como chegar e dizer lá no Ministério Público, ou em outro
órgão, que a gente é pajé e cacique sem ter algum tipo de documentação. E
resolveram fazer aquele abaixo-assinado.
Outra entrevistada, dizendo-se “tão constrangida” com o abaixo-assinado, foi

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mais específica: declarou que foi “[solicitação] da secretária do presidente da Funai”, pois ele
“recebe a oficialização do pajé e do cacique”. Isto é, para eles, o documento é apenas um
registro oficial para que os brancos sejam informados sobre essa escolha e passem a tratá-los
como lideranças.
Ainda que isso minimize a relevância do abaixo-assinado, não há dúvidas de

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que pretendem, com ele, conquistar o reconhecimento de sua posição por parte das
instituições e autoridades. Essa questão do reconhecimento, entretanto, não é nada fácil, e aqui
abro um parêntese para explorá-la um pouco mais: de um lado, há a autonomia e autogestão
das comunidades indígenas no seu âmbito político, social e religioso, que são (como devem
ser) plenamente reconhecidas. Mas como proceder quando há uma divergência interna à
própria comunidade a respeito de suas lideranças, como é o caso? Qual deve ser o seu papel
dessas instituições?
Penso que deve-se ter em mente, como já notei acima, que os cargos de cacique
e pajé, como atualmente se configuram, não são autóctones (ao menos no caso aqui tratado),
ao contrário do que costumeiramente se pensa, mas nasceram a partir da relação interétnica,
especialmente com o Estado nacional, através do órgão tutor. Portanto, ainda que nasçam a
partir dos Fulni-ô, ambos devem se situar também nessa relação, servindo também como
ponte entre a coletividade e o mundo dos brancos. Mesmo que sua fonte de legitimação seja
oriunda da própria comunidade – entre os Fulni-ô, a religião –, é o reconhecimento pelo outro
que possibilita que eles assumam integralmente essa função.
Assim, é completamente compreensível que as lideranças busquem ser
reconhecidas como tais pelas instituições externas – principalmente aquelas ligadas ao poder
público. Ainda que entendam que cabe à comunidade indicá-las, sabem também que apenas
quando são apontadas e tratadas como ocupantes de seus cargos podem passar a exercer certas
prerrogativas associadas a eles – representar a comunidade nos devidos fóruns e instâncias
(reuniões, audiências, conselhos, mobilizações etc), tomar decisões em seu nome, além de
poder fazer indicações para ocupar as vagas de emprego na educação, entre outras.
Desse modo, entendo que os órgãos aos quais cabe atuar diretamente com

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comunidades indígenas têm também certa responsabilidade no que diz respeito a estes postos,
já que qualquer ação (ou omissão) sua pode afetar diretamente o exercício de suas funções e
até sua legitimidade perante a comunidade, especialmente em casos (como o presente) em que
há uma dissidência nesse campo. Isso porque – e aqui falo genericamente –, se estes órgãos
tratarem como lideranças apenas aquelas já instituídas anteriormente, podem ajudar a validar
pajés e caciques que porventura estejam incorrendo em ações prejudiciais a parcelas da
comunidade, ou abusando de seu poder, usando-o apenas a favor de si ou de seus aliados, ou
com condutas antiéticas ou até irregulares; se entenderem como lideranças (exclusivamente ou
em conjunto com as já instituídas) aquelas ligadas à dissidência, podem contribuir para

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fortalecer a cisão da comunidade, e também ajudar a dar respaldo como lideranças indígenas a
pessoas apoiadas por um grupo (que pode até ser minoritário) que quer chegar ao poder à
força. Omitir-se também não deixa de ser um problema: isso pode favorecer o grupo maior e
mais poderoso (geralmente o grupo instituído, contestado pela dissidência), que, como

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afirmei, pode fazer uso de práticas ruins para a comunidade ou parcelas dela, antiéticas ou
irregulares. Também pode significar fechar os olhos para o grupo dissidente, que talvez seja
considerado legítimo por parte considerável da comunidade, e pode ter demandas e pautas
justas e razoáveis. Pode ainda prolongar o conflito, pois é comum que os grupos opostos se
valham do que entendem como falta de um posicionamento claro das instituições para manter
vivas suas pautas e suas acusações mútuas.
O que pretendo dizer, portanto, é que nem sempre é possível esperar que o
imbróglio se resolva por si só. Tais cargos são validados também na sua relação com a
sociedade nacional, e a maneira com que esta, através de suas instituições, vai lidar com eles é
fundamental para que os seus ocupantes se situem e se consolidem (ou não) em suas posições.
Assim, há que se lembrar que o que quer que os órgãos façam (ou não façam) vai ter impacto
direto sobre as comunidades e sobre a cisão que pode estar em curso. Sobretudo, não agir,
nesse caso, não significa neutralidade, mas uma escolha que pode favorecer alguns e
prejudicar outros. Qual deve ser o caminho, então? Não há fórmula certa: deve se estudar o
caso e, de posse das informações relevantes e considerando as características do quadro que se
apresenta, ponderar o curso de ação mais adequado para ele, levando em conta as suas
possíveis consequências.

3.3. A questão religiosa

Como cacique e pajé são funções primordialmente religiosas, era mesmo


inescapável que a divergência passasse também (mas não apenas) pela religião. O que se pode
dizer é que cada um dos dois lados declara, similarmente, que está seguindo a religião

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propriamente, agindo de acordo com as regras e princípios devidos, enquanto o outro lado se
desvirtuou deles em virtude de objetivos escusos – geralmente relativos a recursos, a poder ou
a ambos.
A controvérsia central no campo religioso, como já se apontou, iniciou-se com
a escolha de Cícero como cacique. Como essa seara é repleta de segredos, não tive acesso aos
detalhes necessários para entender plenamente o que se passou, mas descrevo a seguir alguns
aspectos básicos do imbróglio.
Já descrevi as reações adversas que essa escolha provocou em parte da
população. Isso porque, segundo alguns que se opuseram à indicação, ela não correspondeu

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em nada às suas expectativas sobre a indicação de um cacique.
Como João de Pontes já era cacique há décadas, boa parte dos Fulni-ô jamais
havia visto a nomeação de um novo cacique. O que eles sabiam sobre essa cerimônia vinham
da narrativa dos pais e avós. Contudo, aqueles ligados ao grupo dissidente disseram que o que
viram não foi nada igual ao que ouviam em suas descrições.

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O ponto fulcral, citado muitas vezes por membros desse grupo, foi a
participação central de uma mulher – a mãe de Gildiere – na nomeação de Cícero. Embora
seja reconhecida como uma liderança (ou “conselheira”) muito importante, há duas questões
vistas por eles como problemáticas: em primeiro lugar, teria havido uma articulação indevida
de Gildiere, nos bastidores, para que Cícero, que é seu cunhado, fosse nomeado. Há quem
diga que essa articulação começou ainda antes da morte de João de Pontes. Isso seria a
primeira transgressão da regra religiosa. A segunda é a justamente o fato de ter sido uma
mulher (ainda que liderança) a responsável por essa indicação.
Há algumas vedações a mulheres no sistema ritual-religioso Fulni-ô. A mais
conhecida delas tem lugar na aldeia do Ouricuri: alguns espaços só são acessíveis a homens,
como os “galpões” coletivos em que dormem, separados das mulheres, que ficam nas casas da
aldeia. Também se sabe que mulheres não podem ser cacique e pajé, embora possam ser
lideranças. O que membros desse grupo argumentam é que, assim como em outras esferas
rituais, uma mulher também não poderia participar, como aconteceu, de uma nomeação de um
cacique. Alguns disseram que ela poderia aconselhar, mas não decidir, e que ela teria cometido
um “erro gravíssimo”. Reproduzo a seguir algumas declarações nesse sentido.
Uma indígena disse: “não é uma saia uma calcinha que vai tirar um cacique.
Meu pai dizia onde se tem calça saia não se entra”. Outro indígena afirmou: “na nossa tribo
nós tem o local de homem e o local de mulher, não é assim, minha gente? [perguntando aos
demais presentes, que confirmam] Como é que uma mulher vai tirar uma liderança?”. Por fim,
uma mulher declarou: “eu tô com 79 anos e nunca vi mulher tirar cacique”.
Quanto à primeira questão, aqueles que permanecem com Gildiere e Cícero
negam veementemente que tenha havido qualquer tipo de articulação para a indicação de
Cícero – até porque isso não é definido pela ação humana, mas, como todos os Fulni-ô sempre

48
chamam a atenção, é fruto da providência divina, que atribui uma missão ao escolhido
(missão essa que, aliás, todos disseram que provavelmente rejeitariam, se lhes fosse oferecida
essa alternativa, como já apontei). Uma entrevistada deu a entender que a missão de liderança,
aliás, é um destino que já está traçado desde o nascimento, embora se revele apenas no
momento certo: “não foi nossos Pajé, não foi nossas lideranças que quiseram ser, eles são,
doutor. No momento em que eles nascem, eles já são designados consagrados. Não é eu que
vou dizer: meu filho, meu sobrinho fulano de tal vai ser. Não!”
Se a indicação vem do Altíssimo, como muitas vezes eles relatam, e está pré-
definida muito antes de ser revelada, como foi possível que alguém que, segundo o grupo

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dissidente, alguém que “não era pra ser” se tornasse cacique? Um indígena desse grupo
explica dizendo que os responsáveis pela indicação foram “usurpadores”, recorrendo a uma
fraude:
os seus antepassados [dos grupos indígenas], com a graça do Criador, habita em
alguém para nomeá-lo como tal. Daí que existe um usurpador, aquele que se faz do

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espírito, por isso ou por aquilo, e aí causa uma fraude. Ele tem lá os seus aliados,
com os quais ele arquitetou o plano de usurpar, não é? Daí quem faz parte da corja
dele vai defendê-lo, claro, né? Foi feito um plano de usurpação, e esse plano foi
colocado em ação, daí esses que fizeram parte do plano estão lá, e os que não, estão
do outro lado.
Com relação à segunda questão, o grupo que segue as lideranças instituídas
rejeitam a hipótese de que uma mulher não poderia ter a função que teve, participando da
indicação do cacique.
Assim, um entrevistado respondeu, quando perguntei a respeito da mulher que
teria “tirado” o cacique:
Entrevistado: Ela é uma das lideres. Porque tem mulher e homem. É tudo liderança.
E aí ela tirou esse cacique, e eles [o outro grupo] não concordam.

Eu: E tem essa regra que só homem participa da escolha da liderança?

Entrevistado: Tem não. É homem e mulher. Nós respeita muito eles [as lideranças].
Eles pedem à gente, a pessoa faz.
Outra entrevistada afirmou que não existe esse tipo de divisão: “ali não foi
homem não foi mulher que escolheu ele. É o dom que Deus deu a ele. É dom”. Outro
entrevistado, mais jovem, afirmou que existem histórias de que no passado uma mulher
também indicou dois caciques, em duas gerações diferentes, o que tornaria inválido esse
argumento.
Se o grupo que segue Itamar e Awassury questiona a nomeação por uma
mulher, o grupo de Cícero e Gildiere questiona a nomeação de Itamar, dizendo que não foi
feita da forma que a religião preconiza. Mais do que isso, muitos questionam se Itamar atende
aos requisitos mínimos para ser nomeado cacique. Isso porque com frequência apontam que,
embora ele próprio e seu pai frequentassem o Ouricuri, seu avô não o fazia, e que, portanto,

49
ele teria uma ascendência parcial não-indígena. É por isso que, segundo esse grupo, ele seria
aquilo que os Fulni-ô chamam de grogojó, termo já abordado no tópico anterior.
Outro entrevistado se referiu ao pai de Itamar como mlati, “filho de caboclo”.
Entendo que o termo “caboclo” aqui se refere ao filho de um índio com um branco. Melo cita
o termo mlati ao tratar de outro, othayto-á, que seria “a forma mais comum de nomear os
indivíduos não indígenas. Os Fulni-ô utilizam também mlates, molates, mlatinkia, brancos,
acabraiados, denominações empregadas para referir-se ao ‘outro’ em oposição a ‘eu’’ (2013:
69, nota 24; negrito meu). Como grogojó, ou alguém cujo avô não participava do Ouricuri e
tinha ascendência branca, dizem alguns, ele não atenderia a ao menos um dos critérios

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exigidos para se tornar um cacique – embora ele já fosse uma liderança há algum tempo, e
aparentemente ninguém houvesse, à época de sua nomeação como tal, apresentado oposição a
isso.
Como não apenas um novo cacique foi nomeado, mas também um novo pajé,

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questionei aos membros do grupo dissidente se teria havido alguma discordância com a
indicação de Gildiere à época, e se teria havido algum descumprimento à norma, como
apontam no caso de Cícero. Confirmaram-me, em reunião, que avaliam que sua nomeação
não foi feita corretamente. Um entrevistado afirmou que, assim como no caso de Cícero, ela
destoou muito de suas expectativas, criadas a partir das histórias contadas pelos anciãos:
Esses momentos, de escolha de lideranças, são momentos marcantes. (…) são
histórias que a gente ouve, que os mais velhos têm prazer em contar. (…) Todos nós
sabemos da tirada do pajé fulano de tal, aconteceu assim e assim. (…) Existem
procedimentos contados de como fazer a escolha, as atitudes, os movimentos, várias
coisas, naquele momento. E quando foi feito com Edmar [Gildiere], tudo aquilo que
a gente ouvia dizer, sabia como era, e queria presenciar, aquilo não foi feito. (…)
quando chega aquele momento, aquela grande ansiedade, aí você vai, esperando
uma coisa, (…) e quando chega naquela hora, você vê diferente. (…) mas o que
acontece? Foi João Pontes que fez, com 70, 80 anos, (…)

Quando questionei, na mesma reunião, porque não contestaram então a


indicação de Gildiere, responderam-me que a “engoliram”, mas “assim rasgando”, apenas
porque essa havia sido a escolha de João de Pontes, então já bastante idoso, e, pelo respeito a
ele, “as pessoas engoliram” sua decisão.
Algumas pessoas próximas a Awassury, e ele próprio – como, por exemplo, em
reunião realizada nesta unidade ministerial, no dia 20 de fevereiro do corrente, conforme a ata
–, afirmaram que era ele (ou seu irmão, também liderança) quem deveria ter sido escolhido
então. Awassury declara que não diz isso porque de fato queria ter se tornado pajé, porque
nunca o quis – afinal, como consta em trecho já reproduzido aqui, ele afirmou certa feita que
“se existisse querer, o meu querer seria negativo. Não por falta de amor, e sim por saber o

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tamanho da responsabilidade que isso viria”. Também diz que recebeu a notícia da indicação
de Gildiere com alívio: “cheguei dentro de casa e disse: ufa! Porque se você quer carregar um
fardo que eu sei que pesa para mim, eu digo: muito obrigado!”.
Apoiadores de Gildiere e Cícero, por sua vez, ainda que não entrem em
detalhes, negam que haja propriamente uma ordem pré-definida para a escolha de pajés e
caciques segundo um critério único, e explicar esses processos nesses termos é uma
banalização e simplificação excessiva de sua religião. Ressaltam que, embora se saiba quais
são os possíveis “candidatos”, nunca se sabe ao certo quem vai ser o escolhido, e que há
sempre um aspecto de mistério e segredo inerente a tais indicações – que, ademais, são

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definidas pelo “Altíssimo”, não pelas pessoas. Não obstante, reconhecem que tanto Itamar
quanto Awassury já eram lideranças muito importantes em sua prática religiosa: “muito
importante dentro da nossa religião eles são. (…) eu acho que eles tinham era aconselhar nós,
que somos só seguidor deles, não eles incentivar a pessoa deixar a religião”.

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Eles também questionam porque, mesmo discordando da indicação de Gildiere
como pajé, seus seguidores passaram todos esses nove anos participando normalmente do
Ouricuri, assim como da maior parte do Ouricuri de 2018, quando Cícero já havia sido
nomeado cacique.
Indígenas desse grupo com frequência alegam que a maior parte do grupo
dissidente é composto por jovens, que não conhecem com profundidade a religião nem suas
regras. Dizem que a maioria deles está sendo enganada por alguns poucos. Nesse sentido, um
dos entrevistados declarou que estão
enfeitiçando a cabeça dos mais jovens. (…) O que aconteceu aí foi que as pessoas
[ficaram] inconformadas quando o cacique Cícero foi escolhido, e o pajé Edmar foi
escolhido, mas quem escolheu foi quem pôde. (...) E as pessoas que não tem
conhecimento de uma tradição cultural, ele vai se passar. E ele pode cair do cavalo.
(...) e isso é grave, está ofendendo a natureza.
Uma última observação ainda no campo da religião: é notável que, durante o
trabalho de campo, o grupo dissidente tenha procurado reunir um grande contingente de
apoiadores para dialogar comigo, em ao menos três ocasiões – por iniciativa própria deles,
com o claro intuito de mostrar força e número. Já aqueles ligados ao grupo instituído evitaram
fazer algo parecido, mesmo sabendo da iniciativa de seus opositores. Enquanto os últimos
alegaram que isso era porque os outros sabiam que estão em menor número, estes negam,
dizendo, em primeiro lugar, que sabem quem são o cacique e o pajé verdadeiros, e não têm
que provar nada a ninguém, especialmente a pessoas de fora da comunidade; em segundo
lugar, porque, segundo eles, Cícero e Gildiere foram escolhidos seguindo os preceitos
religiosos devidos, e não é a quantidade de apoiadores que vai definir se vão se manter no
cargo ou não, mas sim sua religião. Ainda que tivessem menos seguidores – o que não

51
acreditam ser o caso – os dois declaram que não vão abrir mão de seus postos, pois são eles as
lideranças legítimas.

3.4. Chesf, empregos, recursos e projetos

Outro tópico frequente nos discursos de membros dos dois grupos, como já
indiquei, está relacionado a recursos e empregos. Ambos os grupos acusam o grupo oposto de
concentrá-los em poucas famílias ou em aliados próximos, ou de querer se apossar da maior

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parte deles, em detrimento do restante da comunidade. Aqueles indígenas ligados a Cícero e
Gildiere também declaram que o surgimento dessa dissidência é apenas uma estratégia para
que alguns de seus líderes passem (ou voltem) a ter controle sobre empregos e recursos. É
frequente ainda a acusação de que a questão religiosa é apenas um disfarce, uma desculpa,

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para encobrir a principal, a financeira.
Dentro desse tópico, um ponto em especial tem um lugar de destaque: a
indenização, ainda em negociação, a ser paga pela Chesf. Já expus que a distribuição do
montante total da indenização tem sido o assunto mais controverso entre os Fulni-ô desde o
início das tratativas, em 2016. Isso porque o grupo independente, que declara representar a
comunidade à revelia da posição do pajé e do cacique, pretendia rever o critério da divisão
anterior, de acordo com a área afetada, para um em que a comunidade fosse a maior
beneficiada.
Também já declarei que esse grupo nunca teve lideranças formalmente
constituídas, mas alguns indígenas sempre estiveram à frente, como Aristides Ferraz, Elídio
de Freitas, Eurakitan Siqueira Frederico, entre outros. Desde as primeiras reuniões sobre o
tema realizadas nesta PRM em que se procurou reunir todas as partes diretamente
interessadas, esteve grupo esteve representado – ainda que nas últimas apenas como ouvintes.
Relembrei esses pontos porque, para o grupo que apoia Gildiere e Cícero, o
modo como conduzida a negociação com a Chesf foi em grande parte responsável pela
divisão da comunidade e escolha de novas lideranças. Isso porque entendem que, ao
permitirem que membros desse grupo independente participassem das reuniões como parte
legítima, de alguma forma ajudaram-nos a equivaler sua pauta à dos demais, colocando-os no
mesmo patamar que os outros, e, principalmente, validando-os como representantes de (ao
menos) parte da comunidade, assemelhando-os assim ao cacique e ao pajé. Entendem que, se
não eram proprietários de áreas atingidas, e tampouco representavam legitimamente a
comunidade – papel que cabe exclusivamente ao pajé e ao cacique –, não fazia sentido
estarem ali, com propostas que iam de encontro às de todos os outros, que estavam em
sintonia entre si, atrapalhando o bom andamento da negociação. Ao serem considerados como

52
um dos componentes da comunidade com os quais precisava-se entrar em acordo, sendo
convidados pelo MPF para todas as reuniões que tinham o objetivo de prosseguir com as
negociações, acreditam que foi ignorada a organização social Fulni-ô e a hierarquia vigente
nesta comunidade, o que ajudou a acirrar os ânimos – afinal, a já existente oposição entre este
grupo e as outras partes interessadas, que entraram eventualmente em acordo, se tornaria
crescente. Esse grupo, com sua participação ativa no processo, teria aos poucos se tornado
mais confiante e seguro, conquistando adeptos. Valendo-se do que boa parte da comunidade
considera fracasso da indenização anterior, já que viram poucos benefícios revertidos para a
coletividade, convenceram-nos de que dessa feita deveria ser feito diferente. A morosidade na

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conclusão da negociação (embora se deva a inúmeras razões) transmitiu a sensação, para os
dois lados, de que era fruto da atuação desse grupo, que visava interromper as tratativas feitas
nos moldes vigentes até então.
Aqueles que seguem Gildiere e Cícero pensam, portanto, que eles conquistaram

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força e poder, com o tempo, por conta do espaço e da voz que tiveram nas reuniões e no
procedimento administrativo que visa acompanhar o processo da Chesf, e que seus “líderes”
foram alguns dos principais artífices do movimento que resultou na nomeação de novas
lideranças. A prova disso, para eles, está no fato da já citada declaração de Aristides – um dos
mais proeminentes membros desse grupo –, na última reunião a respeito do pagamento da
indenização pela Chesf (quando teria assegurado a força de seu grupo e “ameaçado” destituir
Cícero de seu cargo), ter precedido em poucos dias a nomeação de Itamar como cacique. Esse
movimento para nomeação de novas lideranças, portanto, seria uma retaliação pelo fato de, a
despeito da projeção que adquiriram ao longo desses anos de negociações, ter ficado claro na
última reunião que não teriam sua pauta atendida, e que a posição do cacique e do pajé
prevaleceria. Conforme os apoiadores das lideranças instituídas, Aristides Ferraz, Elídio de
Freitas e outros que estão à frente desse grupo estariam apenas interessados no dinheiro que
receberiam caso o pagamento da indenização da Chesf se concretize da forma que desejam.
Igualmente, estariam arregimentando apoiadores justamente através de promessas de
recebimento de recursos e vantagens que teriam com o pagamento da indenização.
Com efeito, é nítido que tanto os “líderes” desse grupo independente quanto
muitos daqueles que os apoiam passaram também a apoiar Itamar e Awassury como cacique e
pajé. O assunto também é recorrente entre o grupo dissidente, que deixam claro seu desagrado
com o modo com que as lideranças vinham conduzindo esse (e outros) assuntos. E
independente da suposta “ameaça” proferida por Aristides, sua insatisfação manifesta com o
andamento da negociação com a Chesf, onde prevaleceu, ao fim, a posição de Cícero e
Gildiere (então os únicos cacique e pajé), e não a de seu grupo, seguida pela indicação de um
novo cacique, deixa poucas dúvidas sobre a conexão entre os dois eventos. Alguns
entrevistados chegaram a dizer que, não fosse pela indenização da Chesf – ou ainda, não fosse

53
pelo espaço e voz que se permitiu ao grupo independente – nada disso teria acontecido. Ainda
que isso seja possível, e sem ignorar o grande peso que a negociação com a Chesf e as
divergências tiveram para a cisão, certamente outras razões contribuíram para isso – que estão
sendo indicadas nesse parecer.
Como é de se imaginar, Aristides e os demais membros desse grupo negam
qualquer interesse pessoal no valor que está sendo negociado a título de indenização, já que se
descrevem como cidadãos comuns que se mobilizaram para reivindicar os direitos da
comunidade, veículos do desejo de sua ampla maioria por uma distribuição mais justa e
equitativa dos recursos que são recebidos em seu nome. Invertendo as alegações do grupo

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oposto, afirmam que são os outros quem têm interesses pessoais quando apoiam Gildiere e
Cícero. Afinal, segundo essa narrativa, seus seguidores seriam compostos apenas pelos
proprietários dos lotes atingidos pelas linhas de transmissão (cuja proposta de distribuição do
valor da indenização é endossada pelas duas lideranças) e aqueles que têm emprego na aldeia

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– que os apoiariam seja como contrapartida pela indicação ao cargo que ocupam, seja por
medo de perdê-los, além das respectivas famílias.
De todo modo, o descontentamento de parte significativa da comunidade no
que diz respeito à execução, distribuição, pagamento ou aplicação de recursos ou serviços que
teriam como beneficiário principal a comunidade antecede e ultrapassa a questão da Chesf. Há
tempos, desde antes do início das tratativas com a empresa, ouço reclamações frequentes e
difusas, tendo como alvos não apenas as lideranças (que, aliás, nem sempre são citadas), mas
também servidores e coordenadores da Funai, passados e presentes, locais e regionais, além
de indígenas diversos, como presidentes de associações, famílias específicas, ocupantes de
cargos estratégicos; muitos daqueles que em algum momento foram (ou ainda são)
responsáveis pela administração e gestão de projetos ou de recursos, ou que tenham prestado
serviços, ou que tenham sido contemplados por tais projetos ou recursos (da Funai e de outras
fontes), já foram ou ainda são acusados de se apropriarem indevidamente deles, ou de utilizá-
los em benefício próprio e de aliados, em prejuízo da comunidade. Fala-se em notas frias, em
recibos relativos a serviços não prestados ou materiais não entregues, e diversas outras
estratégias irregulares para burlar as leis e normas.
Há um sentimento de uma corrupção generalizada e arraigada, em várias
instâncias e níveis. Contudo, o discurso não é homogêneo, e os grandes responsáveis
apontados mudam de acordo com os interlocutores. Assim, não se pode dizer que todos
aqueles que demonstraram desgosto com aquilo visto como uma corrupção generalizada
tenham se posicionado contra Gildiere e Cícero; contudo, é fato que esse sentimento foi
acionado e canalizado para fortalecer a oposição a eles.
Portanto, muitos que estão no grupo dissidente os responsabilizam, junto com
seus asseclas, pelo que entendem que há de errado ali: são acusados de obter vantagens, de se

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aliar a malfeitores, de fazer conluio para receber recursos indevidamente, de manipular a
comunidade para conseguir seguidores, entre outros. Às supostas irregularidades no âmbito
religioso, portanto, somar-se-iam as irregularidades no âmbito material, às expensas da
comunidade – e o grupo de Gildiere e Cícero é apontado como responsável por todas elas.
Portanto, é comum ouvir entre membros do grupo dissidente frases que denotam como a
comunidade tomou consciência dos erros cometidos (nas duas searas) e decidiu agir para
transformar a estrutura que permitiu que perpetuassem, substituindo as lideranças:

Entrevistado 1: Esses pessoal que só queria para si próprio. Não é desse jeito. O

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senhor pegar vantagem em nome de seus filhos [filhos como metáfora para a
comunidade] e no fim das contas o senhor vai destruir o que se arrumou em nome
de seus filhos, e no fim da conta seus filhos passando fome. Então isso não cabe
para nossa comunidade. e por causa disso é que tem essa separação. Mas nós agora
estamos unidos, e eles dois [Gildiere e Cíciero] se chama se estaca zero.

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Entrevistado 2: eles [a comunidade] acordaram. Eles estão agora tendo a voz que
foi calada há mais de um século.

Entrevistado 3: a comunidade está reagindo, e nós não vamos aceitar isso.

Entrevistado 4: e nós estamos nisso há muito tempo aqui. É de agora que nós
estamos sofrendo? [os demais presentes respondem: não!] Agora todos eles
acreditaram que a comunidade um dia não ia abrir os olhos, não ia se acordar.

Entrevistado 5: a gente já estava engasgado. E só esse pessoal que acompanha eles


[Cícero e Gildiere] é no sentido de alguma coisa [procurando obter vantagens].

Por sua vez, aqueles que permanecem com Gildiere e Cícero sempre sublinham
como algumas figuras proeminentes do outro lado, como Aristides, Elídio de Freitas e Max
Araújo (atual vereador e genro do falecido João de Pontes) também já receberam recursos e
geriram projetos que teriam a comunidade como beneficiária, mas que teriam terminado
beneficiando apenas, ou principalmente, a si próprios, ou se valeram da proximidade daqueles
com poder para obter vantagens.
Além de recursos, outro tópico relacionado, também muito citado nessa
controvérsia, são os empregos. Esses empregos são aqueles ofertados na própria aldeia, por
órgãos responsáveis por políticas públicas específicas para os povos indígenas (Funai, Pólo-
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena e escolas indígenas), nos quais contrata-se
majoritária ou em sua totalidade moradores da própria comunidade. Eles são muito
valorizados porque constituem uma das poucas fontes de renda seguras e de valor
considerável na aldeia, em um local onde há poucas alternativas de emprego e renda, quase

55
todas pouco frutíferas e inconstantes.
Na Funai, embora haja, até onde se sabe, apenas indígenas trabalhando hoje
(são por volta de 30 servidores), foram todos contratados nos anos 1980, ainda sem concurso
público. Os funcionários do Pólo-Base, pelo que se sabe, passam por um processo seletivo
coordenado pelo DSEI-Pernambuco. As escolas indígenas, por sua vez, contratam, entre
merendeiras, auxiliares de serviços gerais, motoristas e professores, mais de uma centena de
pessoas. Não há processo seletivo aqui: por conta de barreiras legais e burocráticas, a
indicação dos contratados (temporários, renovados ano a ano) é feita há muitos anos pelas
próprias lideranças indígenas, cacique e pajé – isso é de praxe em todas as comunidades

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indígenas no estado de Pernambuco. Isso lhes concede um poder considerável, pela
importância e valor que se dá a esses empregos. Há uma grande concorrência pelas vagas, e o
contratado termina por beneficiar não apenas a sua família nuclear, da qual muitas vezes é o
único com renda regular, mas também sua família mais ampla. O impacto de um contrato

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como esse, portanto, é considerável.
Não à toa, tais indicações muitas vezes geram controvérsias. Embora as
lideranças sempre digam que consideram a formação e o preparo dos indicados, abundam (e
não só entre os Fulni-ô) acusações contra elas, de favorecimento dos aliados e da própria
família, de usar os empregos como moeda de troca – em troca de apoio, de silêncio ou de
vantagens, por exemplo –, e como ferramenta de ameaça – de demissão, por exemplo, caso o
contratado não aja como é solicitado.
Assim, era mesmo de se esperar que os empregos fossem parte do debate que
concernem a cisão. Os dois lados acusam o outro de usá-los para ameaçar indígenas e obter
apoio. Do lado de Gildiere e Cícero, um entrevistado afirma que Itamar teria prometido
empregos dentro da aldeia, e que quem apoiou Edmar e Dique sairia, e seus seguidores
entrariam. Outro declarou:
mas o quê que tá acontecendo hoje? Pessoas com medo, pessoas que estão até, que
trabalham na saúde, outros trabalham na educação, vivem com medo, com medo de
quê? De: eita, se realmente eles [Itamar e Awassury] forem, se valer isso aí, eles
vão... eles vão tirar nós, exemplo, vão perder o emprego e tudo o mais. E ameaças
por cima de ameaças.
Do lado de Itamar e Awassury, por sua vez, um afirmou: “em cada família eles
[Gildiere e Cícero] causou intriga, oferecendo emprego e tirando as pessoas que já tinham seis
anos de emprego para botar eles, para conseguir pessoas [apoiadores]”. Outro entrevistado
declarou:
aí eles viram a situação do cacique João Pontes, a situação do Pajé Cláudio, aí eles
viram que é bom ser liderança, porque surge uma quantia de emprego ali, aí bota só
a família, sem competência, sem nada, surge o benefício de prefeitura, não sei da
onde, de político, vai lá na casa dele… acharam bom. Aí atropelaram mesmo (...),

56
atropelaram a religião.

Por fim, outro ainda declarou: “e hoje o Cícero de Brito só conseguiu pessoas
[seguidores] porque ele ofereceu emprego, foi ou não, gente? [para os outros presentes, ao que
responderam: foi!]”. Isto é, enquanto a indicação para estes empregos for da alçada do cacique
e do pajé, vai sempre estar sujeita à dúvida se há motivos furtivos.

3.5. Disputas por poder

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Outra acusação frequente entre os dois grupos é a de que há indivíduos ou
famílias que buscam ascender ao poder, conquistando correligionários e alcançando posições
estratégicas de liderança, para poder tomar decisões e gerir recursos.

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Do lado de Gildiere e Cícero, os três mais citados como “líderes” do outro
grupo são Max Araújo, vereador, Marilena Araújo de Sá, e Aristides Ferraz. Já dediquei
algumas palavras a Aristides no tópico anterior; ademais, ainda que tenha assumido essa
posição de “líder” (primeiro com relação à Chesf, e agora na dissidência), com alguma
frequência referem-se a ele como alguém mais interessado nos recursos que pode obter do que
no poder propriamente dito.
Já a referência aos outros dois é diferente. De início, noto que o sobrenome
comum não é coincidência: os dois fazem parte da mesma família, a Araújo. Max, como já
indiquei anteriormente, é vereador, e já teve alguns mandatos. Ele é casado com a filha de
João de Pontes, Maristela, que é também coordenadora da educação escolar indígena Fulni-ô.
Já Marilena foi uma das mentoras da Escola Bilíngue Antônio José Moreira, cujo foco é o
ensino do yaathê. Foi professora por muitos anos, e é uma estudiosa da língua e da cultura
Fulni-ô. Foi uma das principais informantes em vários trabalhos etnográficos já realizados na
comunidade. Ela é também a mãe de Awassury, o pajé recentemente nomeado, e irmã de Léa,
por sua vez mãe de Itamar, o novo cacique. As duas novas lideranças, portanto, são parentes
consanguíneos de Marilena e Max, o que os coloca numa posição privilegiada.
Talvez esse seja um dos motivos porque aqueles ligados às lideranças
instituídas digam que tudo o que esta família quer é poder a qualquer custo: enquanto um diz
que a “família Araújo (…) é a família que quer porque quer, desde os antigos eles querem ter
alguma coisa pra mandar aqui na aldeia”, outro afirma que “Itamar, Awassury, Max e Marilena
é quem vem fazendo isso. São ‘cabeça de revolução’”, e um terceiro declara que “eles querem
um negócio a pulso, ‘eu quero porque quero’, mas aqui não é assim”.
Quanto à Marilena, alguns dizem que foi ela quem sempre pôs na cabeça do
filho que ele seria pajé. Descrevem Awassury quase como uma vítima da ação de sua mãe para

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nomeá-lo: ele fazia graduação em Brasília, morava fora há anos e iniciava uma vida voltada
para os estudos, e por conta de sua indicação como pajé teve que abandonar o curso e retornar
para Águas Belas. Quando questiono se ela teria tido participação na indicação de Itamar e
Awassury, um responde: “é a rainha”; e o outro diz: “não é de hoje não, e ela sempre tentou”.
Há, inclusive, uma narrativa corrente entre os Fulni-ô, de que Marilena teria
tido participação fundamental em conflitos ocorridos entre os Xukuru de Ororubá, em
Pesqueira/PE, e Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, onde teria trabalhado no passado.
Segundo contam, teria “feito confusão”, estimulado indígenas a entrarem em rota de colisão
com outros grupos sociais (não ficou claro se indígenas ou não), com más consequências para

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eles.
Outro fato notável é a conhecida rivalidade histórica entre Marilena e sua
família com João de Pontes e sua família, citada pelos dois grupos. Embora o grupo das
lideranças instituídas não tenham chegado a explicar em detalhes a razão, ligando isso apenas

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à sua “sede de poder”, o grupo das novas lideranças afirma que na gestão de João de Pontes
havia várias coisas que “não seguiam a linha”, e que Marilena, “por não concordar e expor o
que achava errado”, havia se tornado sua “inimiga”.
Já o caso de Max é mais curioso e provoca mais interrogações. Sendo genro do
cacique João de Pontes, cuja família em peso apoia Cícero como cacique, era de se imaginar
que seria um de seus apoiadores. Entretanto, vemos exatamente o contrário: ele é apontado
por estes como um dos líderes do grupo dissidente, embora aja mais nos bastidores do que à
frente. De fato, apenas me encontrei com Max, em todo o período de campo, ao final da
segunda reunião com o grupo de Itamar e Gildiere, no penúltimo dia. Durante todo esse
tempo, não se manifestou em público, não me procurou diretamente, e foi pouco citado pelos
entrevistados desse grupo. Tive apenas uma conversa rápida e informal com ele.
Alguns entrevistados do grupo das lideranças instituídas afirmam que ele é uma
espécie de patrocinador das novas lideranças, “bancando” sua mobilização para conquistar o
reconhecimento de órgãos e instituições externas. A pergunta central aqui, contudo, é a
seguinte: porque Max passou a apoiar Itamar e Awassury, distanciando-se da posição da
família de seu sogro (de quem Cícero era bastante próximo) e de sua esposa? Segundo a
narrativa corrente entre vários entrevistados do grupo que acompanha Cícero e Gildiere, a
resposta é simples: por conta de poder e dinheiro, além da influência de sua própria família.
Conforme relatam, à medida que João de Pontes foi envelhecendo, e passou a ter dificuldades
de locomoção, Max passou a representá-lo em várias instâncias, falando sempre em seu nome.
Segundo alguns, passou também a ter acesso a recursos destinados à comunidade, referentes à
saúde, educação e eventos. Pela proximidade com um dos líderes máximos dos Fulni-ô, e com
o poder que lhe é inerente, também teria conseguido que um irmão seu presidisse a associação
responsável pela gestão dos recursos recebidos da Compesa – o mesmo irmão também já

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chefiou o Conselho Local de Saúde, que fiscaliza a prestação de serviços de saúde do DSEI na
aldeia. Relembro ainda que Max é vereador (com mais de um mandato), sua esposa é
coordenadora da educação escolar indígena Fulni-ô, e seu cunhado e seu enteado foram
coordenadores da CTL da Funai em Águas Belas. Assim, o que insinuam é que ele teria se
habituado com o poder, rodeado por pessoas ocupando cargos estratégicos, e ele próprio e sua
família teriam se beneficiado disso.
Foi por isso, afirmou um entrevistado, que quando viu que seu João estava
perto de partir, e imaginando que poderia deixar de ter poder e influência, já “começou a fazer
esquema, pedindo dinheiro a prefeito para patrocinar [novos] cacique e pajé”. Outros disseram

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que isso aconteceu apenas depois do falecimento do cacique “quando João de Pontes faleceu,
aí [Max] perdeu as pernas e os braços, não sabia pra onde agir mais. Aí viu que a lei não era
do jeito que eles querem. É divina. Aí foi pra outra família [Araújo], aí ficaram…”. Outro
entrevistado, similarmente, declarou que o que está acontecendo é que “o malandro que se

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aproveitava quando ele [J. de Pontes] botou ele [Max] como representante ficou desesperado:
como é que eu vou arrumar minha armadilha para poder…? Poxa vida, esse pessoal [Cícero]
vai ser agora Cacique. Tô lascado”. Foi para tentar reaver o poder que tinha em mãos e que
estava se esvaindo, por deixar de desempenhar o papel de representante do cacique, que Max
teria passado a apoiar o novo grupo.
Ainda que as acusações de sede pelo poder sejam comumente associadas a
estes membros do grupo dissidente, aqueles vinculados a Cícero e Gildiere também não estão
livres de alegações análogas. Na realidade, assim como nos casos já citados aqui, elas não se
direcionam às atuais lideranças propriamente, mas a diversos indivíduos e famílias notáveis.
Tais acusações inclusive precedem a divisão atual, e alguns de seus aspectos já foram citados
nos parágrafos anteriores: fala-se bastante da concentração de poder na família de João de
Pontes, sugerindo que sua condição de cacique permitiu que tivesse influência ou indicasse
seus familiares para ocuparem esses cargos. Já falei sobre cargos que têm ou tiveram seu filho,
sua filha e seu neto, além do genro (Max) e seu irmão. A concentração de poder e empregos na
família pode gerar também concentração de renda e de terras, e não se pode esquecer que a
comunidade Fulni-ô é conhecida como particularmente desigual quanto a esses dois aspectos
– ainda que esse problema não seja novo, já sendo notado há décadas. Mesmo que não haja
conexão direta entre essa desigualdade e a divisão que vem se desenhando, a grande
concentração aqui citada (de empregos, poder, renda e terras) é há muito tempo motivo de
insatisfação e reclamações por parte da comunidade, que expressou o sentimento de que a
família de João de Pontes teve um papel na sua perpetuação. Assim, ela entra no rol de
problemas que são identificados na atuação dos ocupantes dos cargos hierarquicamente
superiores na estrutura de poder da comunidade.

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3.6. “Questões pessoais”

Por fim, aqueles vinculados às lideranças instituídas citam com frequência


“questões pessoais” que alguns indígenas têm ou tiveram com Gildiere e Cícero como motivo
para a adesão ao outro grupo. Tais questões seriam aborrecimentos pontuais com ambos (com
mais frequência Gildiere, que está há mais tempo no cargo) por conta de suas decisões ou
posturas em casos determinados.
Um exemplo desses casos seria a distribuição de água do caminhão-pipa na
aldeia. Segundo relataram, nas últimas ocasiões em que o caminhão lá esteve, priorizou o

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pajé, para depois distribuí-la para o restante da aldeia. Segundo os seus apoiadores, isso foi
porque, com a seca recente, quando chegava o caminhão “vinha a tuia de gente, vum! Tudo
atrás da água”, e tinham receio de que, na “bagunça, aqui no meio do povo”, o pajé acabasse
“levando uma latada na cabeça, um balde”. Assim, ele passou a ser o primeiro a encher sua

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caixa d’água, e os demais em seguida. Essa decisão foi polêmica e impopular; os que o
apoiam, contudo, dizem que eles não “querem ser mais que ninguém”, mas que sua posição
tem que ser respeitada.
Outro situação delicada diz respeito às cestas básicas distribuídas pela Conab, a
partir de um convênio que ela tem com a Funai. O número de cestas recebidas, em todas as
comunidades indígenas, é sempre bem menor que o número total de famílias. Embora se diga
que devem ser distribuídas prioritariamente às famílias em situação de vulnerabilidade, não há
muita clareza sobre o critério exato que deve ser considerado para definir esse estado, o que
deixa em aberto quais famílias afinal podem se candidatar para recebê-la. O resultado disso é
que sempre há acusações (que também não são novas) de favorecimento de determinadas
famílias pelas lideranças e/ou pelo coordenador da CTL, enquanto haveria quem, por outro
lado, nunca as recebe. Gildiere não foi exceção à regra, o que pode ter lhe ganhado alguns
desafetos.
Outras situações particulares também foram citadas, como divergências a
respeito de quem seria o mantenedor da igreja da aldeia, e decisões (administrativas) a
respeito de casas e terrenos na aldeia ou no Ouricuri, chão de casa, entre outros, que podem ter
desagradado a alguns. Todas elas somadas, considerando os nove anos de cargo que já tem
Gildiere, teria criado um número de insatisfeitos com sua atuação, que teria migrado para a
dissidência quando ela surgiu. Também teriam aderido a ela pessoas que se solidarizaram com
parentes – primos, irmãos, cunhados – que passaram a apoiá-la: “não estão pensando em
religião”.
Assim, muitos dos seguidores das lideranças instituídas afirmam que aqueles
do lado oposto estão em uma “guerra pessoal” contra Gildiere e Cícero, ou que isso é “pela
vida pessoal”: “esse povo que tá mais ele, todo mundo tem uma mágoa com Edmar. O levado

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é esse. E com Dique. Todo mundo tem. Aí quando aproveitaram essa questão aí, aí tiraram [as
novas lideranças]”. Por pensarem que o cacique ou o pajé teriam lhes feito mal, passaram a
dizer que não são legítimos, ou que não deveriam ocupar esses postos. Contudo, dizem, “se
ele tem a capacidade de ser cacique, o cacique é ele. Não é porque não gosta (…) que eu vou
dizer que ele não é o cacique”.
Os dissidentes, de fato, citam situações como a do caminhão-pipa e a das cestas
básicas como alguns dos vários erros, desvios e problemas que identificam na comunidade,
exemplos de uma atuação que, para eles, privilegia alguns poucos em detrimento da
totalidade.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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À guisa de conclusão, retomo aqui alguns dos argumentos e fatos principais
apresentados ao longo do parecer, procurando também fazer novos apontamentos, tendo em
vista a situação global descrita.
Ao longo desse trabalho, notei que os cargos de cacique e pajé, entre os Fulni-ô
(assim como nos demais povos indígenas no Nordeste), foram criados pelo SPI, que chegou
ao seu território com a instalação de um Posto Indígena, em 1924. Eles faziam parte de um
“pacote” de cargos imposto pelo órgão indigenista (que incluía ainda o Conselho Tribal), que
compunha um modelo de organização política vista como parte de uma indianidade desejada,
um modo de ser indígena, ao qual as populações indígenas atendidas por ele deveriam
corresponder. Apenas a partir da chegada do SPI há o registro do uso desses termos para
designar as lideranças. Contudo, notei também que na segunda metade do século XIX há
referências a capitães e maiorais entre os Fulni-ô, nomenclaturas não exclusivas a este
período nem a esta região, o que denuncia seu caráter exógeno e genérico, pouco importando
a diversidade da organização política das comunidades indígenas. Aparentemente, o que todas
essas categorias listadas tinham em comum é o fato de que foram criadas com o fim precípuo
de fazer a ponte entre indígenas e brancos, em especial agentes do Estado e instituições,
levando a estes as demandas, problemas e questões encaminhadas pelos índios.
Em lugar de entender como funcionava os sistemas sociopolíticos das
comunidades, portanto, decidiu-se criar cargos que agregassem a dupla função de porta-vozes
e representantes políticos, de um modo que facilitasse o relacionamento e a interação
interétnicas. No caso dos Fulni-ô, ainda que os nomes e as atribuições fossem novas, aqueles
que vieram a ocupar tais cargos, todavia, já eram lideranças no âmbito sócio-religioso: pajé e
cacique são, cada um, respectivamente, datkas (ou “cabeças”) de dois dos cinco clãs nos quais
está dividida a comunidade Fulni-ô, que são organizados em um sistema hierárquico

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complexo – e repleto de segredos. Eles, contudo, não são lideranças com o mesmo status das
demais, mas as duas principais, com papéis fundamentais nas práticas rituais e religiosas
indígenas. Assim, o que se vê é que o SPI acrescentou à sua função de chefia sócio-religiosa
(isto é, interna) uma função de chefia política (isto é, externa). Portanto, embora haja entre os
Fulni-ô mais de uma centena de lideranças, estas permanecem exercendo seu papel apenas
internamente, para fins quase exclusivamente religiosos, e longe dos olhos dos brancos,
enquanto coube ao cacique e ao pajé exercerem o papel de representantes externos.
Esse acréscimo de atribuições políticas a dois cargos que sempre foram, e ainda
são, primordial e fundamentalmente religiosos é fonte de uma tensão permanente, que entendo

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que consiste numa das principais razões para a cisão atual. Isso porque, de um lado, entende-
se que sua autoridade política deriva da sua autoridade religiosa: está condicionada a ela. A
primeira depende da última, e esta a legitima. Ou seja, eles são vistos em primeiro lugar como
chefes na religião, e apenas por isso, e em segundo plano, como chefes políticos. Até a

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presente cisão, os pajés e caciques nunca havia sido contestados no campo religioso, e
lograram se manter incólumes em sua posição, ao passo em que em outras esferas se podia
discordar (como aconteceu) de suas posturas e decisões. Por outro lado, não há como negar
que quase cem anos exercendo o papel de chefes políticos revestiu-os de algum poder nessa
esfera. Com frequência requisita-se, em reuniões, audiências e fóruns de decisão, a presença
de alguém que represente a comunidade Fulni-ô. Acordos a respeito de questões que afetam a
comunidade por vezes precisam ser firmados, e novamente exige-se a anuência e a
concordância formal de um representante. Há outras ocasiões que exigem o mesmo. Assim,
aos poucos, cacique e pajé parecem ter incorporado essa função, e com frequência são
apresentados e se apresentam como “representantes legais” da comunidade.
Como já declarei, é justamente o debate a respeito da atuação política do
cacique e do pajé e seus limites um dos motivos de conflitos e faccionalismos anteriores. No
início da década de 1980, Díaz já observava a reclamação por parte de alguns indígenas a
respeito da atuação política do cacique, que consideravam falha, já que não tomava iniciativa
para obter recursos, auxílio ou projetos em benefício da aldeia. Em resposta, alguns
procuravam se mobilizar de forma independente, para obter acesso direto às instituições (em
especial a Funai, que então monopolizava as políticas públicas e projetos nas comunidades
indígenas), passando ao largo do cacique e ignorando sua prerrogativa.
Nos anos 1990, um faccionalismo de maiores proporções tomou forma,
novamente questionando a atuação do cacique e do pajé como lideranças políticas: alegando
inúmeras deficiências nessa área, um grupo de indígenas se mobilizou de forma independente,
fundando uma associação, formulando uma pauta própria, conquistando a indicação de um
chefe de posto aliado e nomeando um cacique próprio, o chamado cacique administrativo –
cuja jurisdição é exclusiva ao campo já indicado no próprio nome, não tendo ingerência

62
religiosa alguma. Aventaram, à época, separar de vez o campo religioso do político-
administrativo, em cujo caso pajé e cacique se restringiriam ao primeiro, e uma “nova
organização política” seria criada para atender ao segundo. Wilke Melo, em seu trabalho de
campo realizado durante sua pesquisa, ouviu com alguma frequência que as lideranças
deveriam se ocupar apenas da religião.
Um dos fatores que certamente potencializou esse faccionalismo certamente foi
a série de mudanças ocorrida no panorama indígena e indigenista entre as décadas de 1980 e
1990, que contribuiria para que as lideranças assumissem cada vez mais atribuições (político-
administrativas) que antes cabiam ao chefe do posto, o que provavelmente ajudou para que

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tais cargos passassem a estar envoltos em disputas, denúncias e acusações diversas. De fato,
alguns indígenas, incluindo o falecido cacique João de Pontes, corroborando as declarações
feitas a Melo, ressaltaram diversas vezes que cacique e pajé antigamente só eram responsáveis
pela religião, e questões de outras ordens – relativas a terra, disputas e conflitos variados –

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quase sempre eram intermediadas pelo chefe de posto.
Na situação presente, vê-se muito em comum com os conflitos anteriores aqui
citados: contesta-se a atuação política das lideranças, acusando-as de pouco agirem de fato
para a comunidade, favorecendo alguns (família ou aliados) em detrimento da coletividade.
Outras acusações somam-se a essa, que também não são novas: cacique e pajé (mas não
apenas eles) participariam também de ações irregulares ou antiéticas, concentrando ganhos,
apropriando-se de recursos ou obtendo vantagens, novamente às custas da comunidade.
Um novo elemento, que ganhou maior relevância a partir dos anos 2000, se
somaria a este quadro: as indenizações pagas como compensação pelos impactos de
empreendimentos existentes na Terra Indígena Fulni-ô. Chesf, Compesa e DNIT foram alguns
dos requeridos, nesse período, a pagar quantias indenizatórias, somando-se aos valores já
pagos a título de arrendamento, relativos à área urbanizada da TI, que vem avançando
gradativamente sobre ela – o que torna a soma cada vez mais vultosa. O destino do montante
oriundo das indenizações nem sempre é tão transparente, o que gera mais acusações da
comunidade a vários agentes, entre eles as lideranças.
Nesse cenário, a indenização a ser paga pela Chesf assumiu um lugar central.
Como expus nesse parecer, o seu valor considerável (ainda que bem abaixo do que foi
inicialmente demandado), a morosidade na conclusão das negociações, e especialmente as
divergências a respeito da partilha da indenização (num contexto em que já se questionava a
lisura na execução dos projetos relativos à indenização anterior, e no uso de outros recursos e
execução de projetos de outras fontes), entre outros elementos, fizeram com que ao menos
parte da comunidade se polarizasse sobre esse tópico, com um lado ganhando força e projeção
à medida que se opunha à posição do pajé, em primeiro lugar, e depois também à do cacique
(João de Pontes, e depois Cícero de Brito), quando esse se alinhou ao primeiro.

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Todavia, o que realmente é algo completamente novo aqui, que não se
manifestou em nenhuma das ocasiões anteriores, é a dimensão religiosa do conflito: num
primeiro momento, houve a divergência quanto à legitimidade da forma como Cícero foi
escolhido cacique, que reacendeu discordâncias também quanto à escolha de Gildiere como
pajé; em seguida, houve o rompimento de parte da comunidade com as lideranças já
estabelecidas, e a indicação de duas novas, apontadas por ela como legítimas, ao passo que
outra parcela dos Fulni-ô se mantiveram fiéis àquelas.
A esse quadro se acrescenta questões mais antigas e delicadas de disputas por
poder, relacionamento entre famílias, rivalidades, questões pontuais e pessoais, passadas e

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recentes, e temos os termos gerais da cisão que ora se desenha.
Há quem diga que questões políticas e financeiras teriam contaminado a
religião, levando para essa esfera conflitos e disputas que até agora nunca haviam ultrapassado
esse limite, afetando aquilo que é sagrado. Similarmente, há quem diga também que a

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divergência religiosa não passa de desculpa para que recursos, vantagens e poder mudem de
mãos. Por outro lado, outros dizem que essa mudança pode enfim alterar o estado das coisas
entre os Fulni-ô, trazendo consigo um período de mais igualdade, menos corrupção, menos
concentração de renda e poder, e menos desrespeito à religião.
Quanto à religião, há um impedimento básico para se adentrar mais a fundo na
controvérsia, que é o segredo que ronda esses assuntos. Ainda que fosse permitido, contudo,
possivelmente chegaríamos de todo modo à divergência, aparentemente intransponível,
quanto à legitimidade ou não de Cícero e de Gildiere como cacique e pajé, respectivamente, e
da forma com que foram escolhidos.
Quanto aos recursos e projetos, de fato parece haver pouca transparência e
fiscalização quanto à sua adequada alocação e execução, o que, sem dúvida, alimenta rumores
e especulações sobre sua destinação. A percepção de que a comunidade tem, por fim, poucos
ganhos reais com tais projetos reforça a sensação de que não estão chegando onde deveriam.
Ao mesmo tempo, a concentração de renda e de terras é um problema real e crônico entre os
Fulni-ô, notado por inúmeros pesquisadores há algum tempo, e inclusive objeto de pesquisa
(Albuquerque Gerum & Doppler, 2011), o que gera desigualdade dentro da comunidade.
Como é natural que ocorra, procura-se então responsáveis por tais problemas, e é de se
imaginar que as lideranças estejam entre eles. O poder que têm em mãos, como o de indicar os
ocupantes de cargos na educação escolar indígena, torna-os ainda mais sujeitos a
questionamentos a respeito da justeza de suas decisões. A insatisfação quanto a seus
posicionamentos em situações específicas ajudou a engrossar o coro dos descontentes.
A Funai, que em outros tempos teve um papel importante na intermediação de
situações como essas, tem sido cada vez mais ineficaz, em parte por conta do esvaziamento e
sucateamento que tem vivido nos últimos anos. Com frequência, recorre-se ao MPF na

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expectativa de resolver assuntos que há algum tempo talvez se solucionassem na própria
aldeia, com a atuação dos servidores do Posto Indígena.
Como agir em situações como essa? Já escrevi acima que, em primeiro lugar,
não se deve pensar que as ações dos órgãos externos não têm impacto sobre o reconhecimento
das lideranças. Ainda que a religião seja sua fonte de legitimação, os termos cacique e pajé e
sua função política nasceram da relação com os brancos, e justamente para satisfazer a
necessidade de uma ponte entre os dois mundos, com a função precípua de levar demandas e
representar a comunidade quando requisitados. Ao dialogar com as lideranças e tratá-las por
tais nomes, tais instituições acabam reconhecendo sua posição e as confirmam como tais. O

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mesmo vale para o presente caso: continuar a tratar Cícero e Gildiere como lideranças, passar
a tratar (também ou exclusivamente) Awassury e Itamar como tais, ou deixar de chamar
quaisquer dos quatro por estes nomes é, de certo modo, é fazer uma declaração a respeito da
legitimidade de seus títulos, ao menos aos olhos da instituição com a qual dialogam. Não à

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toa, o grupo dissidente comemorou toda vez que entendeu que havia conquistado o
reconhecimento por algum órgão externo. Mesmo se se evitar qualquer ação ou declaração,
pode-se assim favorecer um lado – o maior e mais forte –, e estimular a permanência da
dúvida, e, por consequência, do conflito.
Não há fórmula, portanto. Há que entender os meandros do conflito, os fatos e
as motivações de cada parte para se pensar os cursos de ação possíveis, e procurar, através do
diálogo, estimular o entendimento, sem rejeitar ou ignorar as posições divergentes e
procurando sempre evitar a escalada do desentendimento.
É o parecer.

Garanhuns, 31 de agosto de 2019.

OTÁVIO ROCHA DE SIQUEIRA


Analista do MPU/Perícia/Antropologia

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