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Teoria da Literatura II

Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

Indaial – 2019
1a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:
Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

SA237t

Santos, Abraão Júnior Cabral e

Teoria da literatura II. / Abraão Júnior Cabral e Santos. – Indaial:


UNIASSELVI, 2019.

214 p.; il.

ISBN 978-85-515-0392-8

1. Literatura. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 801

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico, prepare-se para uma viagem através da leitura e do
estudo de teorias sobre o texto literário. Ao cursar a disciplina de Teoria da
Literatura I, você foi introduzido em alguns conceitos-chave e algumas obras
clássicas, que estiveram no início das primeiras teorizações da literatura. Ora,
com o passar dos séculos, essas teorias se expandiram, foram aprimoradas,
levando-nos a dispor, na atualidade, de um grande leque de modos de
compreensão e de interpretação dos textos literários.

Entretanto, quanto mais formas de leitura apareceram, mais complexa


ficou a tarefa de estudar literatura, pois quanto mais nos beneficiamos das
novas teorias, mais nos é exigida atenção detalhada e minuciosa, visto que
são muitos autores e muitas abordagens teóricas que, por vezes, contrapõem-
se umas às outras. Por esse motivo, vamos apresentar as teorias em etapas,
agrupando-as, para efeito didático, em três momentos distintos: um momento
clássico (Unidade 1), um momento moderno (Unidade 2) e um momento
contemporâneo (Unidade 3).

O panorama clássico da literatura teve início com as teorizações de


Platão e Aristóteles, que estabeleceram modos de análise que iam além das
impressões corriqueiras que as obras causavam nos leitores/espectadores,
impressões que em geral ficam no achismo: gostei, não gostei, eu acho isso, eu
acho aquilo etc. Ora, com as ideias clássicas de “mimese” e “representação”
foi possível pensar as obras literárias fora desse “achismo” do senso comum,
levando as análises literárias a serem pensadas de duas formas: de dentro
para fora (análises intrínsecas); de fora para dentro (análises extrínsecas); ou
ainda através de uma mescla desses dois modos.

O panorama moderno da literatura, por sua vez, radicalizou as


abordagens internas do fenômeno literário ao colocar em relevo os elementos
intrínsecos de análise, minimizando os contextos de produção em prol das
verdades detectadas dentro das próprias obras. O olhar moderno partia da
ideia de que o autor escreve muito mais do que pensa, ou seja, que a verdade
de uma obra não estaria presente na pessoa do autor e sim na linguagem que
conduz a escrita. Assim, com a fenomenologia, o formalismo e o estruturalismo
literários a verdade a ser analisada estaria presente nas próprias obras, visto
que o fenômeno literário seria independente do contexto de produção(autor)
e de do contexto de recepção (leitor) das obras.

O panorama contemporâneo da literatura, de natureza mais extrínseca,


priorizou o lugar do leitor nas análises literárias ao invés das obras. Surgiu
no contexto das guerras mundiais, vividas ainda no panorama moderno,
e que trouxe a catástrofe existencial pós-guerra para dentro dos textos, de

III
onde se pode observar a queda da aura da literária e a inserção do homem
em sociedade nas análises literárias. Surgiram as escolas pós-estruturalistas,
que abordariam a tecnologia na literatura e destacariam a importância do
leitor na formação dos sentidos. Assim, questões como “quem é o leitor” ou
“qual o contexto de recepção das obras” seriam respondidas pelas teorias
em torno da “morte do autor”, da desconstrução e dos estudos culturais, que
surgiram após o declínio do estruturalismo.

Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer teu conhecimento, construímos, além do livro


que está em tuas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela terás
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar teu crescimento.

Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nessa caminhada!

VI
Sumário
UNIDADE 1 – PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA...........................................................1

TÓPICO 1 – A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS....................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................................3
2 O GÊNERO ENQUANTO COMPETÊNCIA DE LEITURA ...........................................................9
2.1 FUNÇÃO POÉTICA: PRESSUPOSTO COMUNICACIONAL DA ANÁLISE
LITERÁRIA........................................................................................................................................13
3 O GÊNERO COMO PRINCÍPIO DE CLASSIFICAÇÃO DAS OBRAS.....................................17
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................22
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................24

TÓPICO 2 – ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA.................................................27


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................27
2 O ESTILO, AQUILO QUE NOS É MAIS PRÓPRIO......................................................................30
2.1 O TEXTO ENQUANTO CAMPO METODOLÓGICO DE ANÁLISE .....................................32
2.2 CORRENTES DE ANÁLISE INTERNA DOS TEXTOS LITERÁRIOS......................................35
3 O VALOR DA OBRA: UMA QUESTÃO AXIOLÓGICA? ............................................................45
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................50
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................51

TÓPICO 3 – ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA..............................................55


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................55
2 A LITERATURA SEGUNDO UM OLHAR EXTRÍNSECO ..........................................................55
3 HISTÓRIA DA LITERATURA E O EIXO DIACRÔNICO ...........................................................58
3.1 CORRENTES DE ANÁLISE EXTERNA DOS TEXTOS LITERÁRIOS......................................62
4 A OBRA ABERTA E AS FORMAS DE RECEPÇÃO ......................................................................66
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................70
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................74
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................76

UNIDADE 2 – PANORAMA MODERNO DA LITERATURA........................................................79

TÓPICO 1 – TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX...................................................................81


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................81
2 ABORDAGENS LITERÁRIAS FRENTE À MIMESE.....................................................................86
3 O FORMALISMO RUSSO E A LITERATURA ...............................................................................93
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................97
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................98

TÓPICO 2 – O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................103
2 O SENTIDO E A SIGNIFICAÇÃO LITERÁRIOS .......................................................................107
3 FENOMENOLOGIA, INTENCIONALIDADE E ESTRUTURA ...............................................111
3.1 PERCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA DA LITERATURA .......................................................114

VII
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................118
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................119

TÓPICO 3 – LITERATURA E SOCIEDADE......................................................................................121


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................121
2 O FATO HISTÓRICO INVADE O FATO LITERÁRIO................................................................122
3 A ESCOLA DE FRANKFURT ...........................................................................................................127
4 A QUERELA ADORNO-BENJAMIN..............................................................................................133
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................139
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................142
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................143

UNIDADE 3 – PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA............................................147

TÓPICO 1 – PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA.......................................................149


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................149
2 TEORIAS PÓS-ESTRUTURALISTAS.............................................................................................154
3 QUADRO COMPARATIVO DE ANÁLISE ...................................................................................156
3.1 ENSAIO DE LEITURA CLÁSSICA..............................................................................................156
3.2 ENSAIO DE LEITURA MODERNA............................................................................................158
3.3 ENSAIO DE LEITURA CONTEMPORÂNEA............................................................................160
4 MORRE O AUTOR, NASCE O TEXTO..........................................................................................161
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................165
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................166

TÓPICO 2 – A QUEDA DA AURA LITERÁRIA..............................................................................169


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................169
2 A DESCONSTRUÇÃO NA LITERATURA ...................................................................................170
2.1 O AUTOR COMO GESTO.............................................................................................................173
3 OS ESTUDOS CULTURAIS..............................................................................................................177
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................181
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................182

TÓPICO 3 – DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS


LINGUAGENS ARTÍSTICAS.......................................................................................185
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................185
2 LITERATURA, INTERSEMIOSE E A AVENTURA TECNOLÓGICA......................................188
2.1 LITERATURA E HIPERTEXTO ...................................................................................................195
3 PERSPECTIVAS DIDÁTICAS: ABORDAGENS SINCRÔNICA E DIACRÔNICA DA
LITERATURA .........................................................................................................................................199
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................204
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................206
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................207
REFERÊNCIAS........................................................................................................................................211

VIII
UNIDADE 1

PANORAMA CLÁSSICO DA
LITERATURA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a diversidade dos estudos de teoria da literatura, que visam


enriquecer as formas de leitura dos textos literários;

• perceber a função poética e a teoria dos gêneros literários como formas


teóricas que aprofundam os modos de leitura dos textos literários;

• distinguir formas de análise em que prevalecem ora os dados internos,


ora os dados externos das obras literárias;

• verificar a necessidade da literatura e da teoria literária como direitos cul-


turais importantes no processo civilizatório e de humanização da socie-
dade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A TEORIA E OS GÊNEROS


TÓPICO 2 – ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA
TÓPICO 3 – ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

CHAMADA

Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em


frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, comecemos nossa viagem de estudos pelas abordagens
teóricas da literatura clássica. Para fazê-lo, antes é necessário pensarmos acerca
da necessidade de se estudar teoria, isto é, perguntar-se de antemão: para que
serve a teoria? Para responder a essa questão, sugiro nos colocarmos no lugar do
leitor, quando este lê um livro literário que particularmente lhe toca.

Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a


leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias,
excitações, associações? [...] Nunca lhe aconteceu ‘ler levantando a
cabeça?’ É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o
texto, e apaixonada, pois que a ele volta e se nutre, que tentei escrever
(BARTHES, 2004a, p. 26).

O convívio profundo com as obras literárias fez muitos críticos,


historiadores e teóricos da literatura perceberem – o francês Roland Barthes foi
um deles – que as teorizações utilizadas na compreensão do fenômeno cultural
que conhecemos como “literatura” nunca conseguem exceder o fascínio e o poder
exercidos pela própria linguagem literária.

Esse fascínio, que em geral sentimos diante de certas obras, também


acomete aos escritores, quando eles, na condição de leitores, leem outros escritores,
ou seja, quando, por meio de uma leitura apaixonada, mergulham em camadas
de sentido que aparecem na obra por meio dessa forma virtuosa de leitura e de
cujo banquete poderá vir a se alimentar o próprio escritor-leitor para compor sua
próxima obra.

Roland Barthes (2007b) veria nessa forma de leitura uma atividade


produtiva que não é o ato complementar e passivo de uma escrita que tudo sabe
e tudo diz, mas sim um poder que o leitor exerceria ao encontrar novos sentidos
na obra, que nela não estão de forma explícita, mas que, entretanto, surgem dela
mesma ao ser lida, ou seja: a eclosão de imagens e pensamentos que sequer o
autor, quando a escreveu, suspeitaria: “até porque a linguagem, antes de ter
uma significação, ela é significação, porque opera descentrando ou privando
a linguagem constituída de seu aparente equilíbrio, reordenando-a a ponto de
ensinar ao leitor – ou mesmo ao autor – o que ele não sabia pensar nem dizer”
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 36).

3
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, apresentamos o teórico da literatura Roland Barthes, um


dos autores-chave do presente livro didático, que percorreu várias correntes teóricas e
filosóficas sem jamais perder o prazer da literatura:

Quem foi, afinal, Roland Barthes? Um teórico da literatura? Um crítico literário, teatral,
cultural? Um semiólogo, analista das imagens e da moda? Um teórico da fotografia?
Um filósofo? Um conselheiro sentimental? Em que corrente intelectual situá-lo? Foi um
marxista? Um estruturalista? Um subjetivista? A que gênero pertencem seus escritos?
Jornalístico, ensaístico, romanesco, didático? A que período: clássico, moderno, pós-
moderno? Barthes foi tudo isso, sucessiva ou concomitantemente, e acima de tudo um
notável escritor que, 26 anos após sua morte, continua a fascinar os mais variados leitores,
por sua inteligência e seu poder de sedução. Barthes nasceu na França, em 1915. Sua
carreira intelectual foi atípica. Tendo sofrido de tuberculose com várias recaídas, começou
sua carreira como professor no estrangeiro e passou parte do tempo da Segunda Guerra
em sanatórios. Somente nos anos de 1950 começou a ser notado como ensaísta literário
originalíssimo (O grau zero da escrita), crítico de teatro e autor de crônicas ferinas em que
analisava os mitos da sociedade francesa contemporânea (Mitologias). Nos anos de 1960,
notabilizou-se como um dos representantes mais famosos do estruturalismo (Elementos
de semiologia, Crítica e verdade, Sistema da moda). Na década de 1970, com O prazer
do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e S/Z, abandonou o projeto semiológico e
iniciou uma fase de escrita vincadamente pessoal, caracterizada pela aliança da inteligência
crítica com a sensualidade verbal. Os Fragmentos de um discurso amoroso, em 1977,
surpreendeu como um inesperado best-seller. No mesmo ano, Roland Barthes ingressou
no Collège de France, onde ministrou quatro cursos anuais (Como viver junto, O Neutro
e A preparação do romance 1 e 2). Sua aula inaugural (Aula), defendendo e ilustrando “o
saber com sabor”, fora concebida como um novo projeto de vida, mas foi, na verdade, seu
testamento intelectual. No auge da fama, Barthes foi atropelado por uma caminhonete, na
frente do Collège de France, e faleceu em março de 1980. Seu último livro, A câmara clara
(ensaio sobre a fotografia) foi publicado postumamente, naquele mesmo ano.

FONTE: PERRONE-MOISÉS, L. Roland Barthes. In: BARTHES, R. O rumor da língua. São


Paulo: Martins Fontes, 2004.

Que leitor especial é esse? Como age, como funciona sua leitura, qual o
seu segredo? E para nós, leitores comuns, haveria uma forma adequada de ler
possibilitada pela teoria? A título de exemplo, observe-se a forma de leitura e a
consequente emergência do inusitado, que ocorre à escritora Clarice Lispector ao
ler Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, revelada em carta ao amigo,
também escritor, Fernando Sabino:

4
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Washington, 11 dezembro 1956, terça-feira.



Fernando,
Estou lendo o livro de Guimarães Rosa, e não posso deixar de escrever a
você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até
onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola.
A linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente entendida
pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido ele mais que inventou, ele
descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer? Fico até
aflita de tanto gostar. Agora entendo o seu entusiasmo, Fernando. Já entendia
por causa de Sagarana, mas este agora vai tão além que explica ainda mais o
que ele queria com Sagarana. O livro está me dando uma reconciliação com
tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo. Como tudo vale
a pena! A menor tentativa vale a pena. Sei que estou meio confusa, mas vai
assim mesmo, misturado. Acho a mesma coisa que você: genial. Que outro
nome dar? Esse mesmo.
Me escreva, diga coisas que você acha dele. Assim eu ainda leio melhor.
Um abraço da amiga.

FONTE: SABINO, F. Cartas perto do coração: dois jovens escritores unidos ante o mistério da
criação. Fernando Sabino e Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 72.

O livro em questão, Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é


construído em uma linguagem complexa, portanto, difícil para o leitor comum,
já que se distancia daquela forma que praticamos no dia a dia – linguagem
que geralmente utilizamos como uma ferramenta para fins práticos, como na
comunicação diária – e não para despertar a sensibilidade e o pensamento.

Um texto assim complexo requer do leitor uma atitude diferenciada diante


de cada página, a saber: que comece decodificando cada frase, cada parágrafo,
soletrando as palavras na superfície legível do texto e emprestando seu olhar e
sua visão de mundo até que, persistindo assim, em certo momento o texto “pega”
e passa a conduzi-lo a lugares que nunca imaginaríamos chegar.

Dessa forma, os sentidos e as imagens que emergem de uma boa leitura,


embora não sejam diretamente acessíveis a todos os leitores, na medida em que
a boa leitura requer um certo grau de complexidade e especialização do leitor,
por outro lado são comunicáveis a todo e qualquer leitor através da mediação e
das observações de um analista crítico ou de um teórico da literatura: “a razão
está em que o sentido de uma obra (ou de um texto) não pode fazer-se sozinho; o
autor nunca produz mais do que presunções de sentido, formas, por assim dizer,
e é o mundo que as preenche” (BARTHES, 2007b, p. 14).

5
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

FIGURA 1 – EDIÇÕES INICIAIS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/_nf3KMZDx4Aw/TEpOZjFvxyI/AAAAAAAABuM/
TpFU8cqUJo0/s1600/Grandes_sertoes_capa.jpg>. Acesso em: 10 jan. 2019.

DICAS

Clarice Lispector e Guimarães Rosa, vale lembrar, são expoentes da literatura


brasileira da geração modernista de 1945. São, também, autores consagrados pela crítica
especializada e, portanto, são lidos, na atualidade, como autores clássicos, isto é, como
participantes do cânone literário brasileiro. Fernando Sabino, amigo de ambos, é escritor
de safra menor, embora sua obra seja conhecida do grande público. Sugerimos a você,
caro acadêmico, assistir aos vídeos-entrevista: Guimarães Rosa – Entrevista rara em Berlim,
1962, no link: https://www.youtube.com/watch?v=ndsNFE6SP68; e Panorama com Clarice
Lispector, no link: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU.

Façamos um exercício, para entender melhor a leitura feita pela escritora


Clarice Lispector, refletindo sobre alguns trechos específicos de Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa, antes, leia trechos da obra:

6
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

(O diabo existe e não existe): de primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não


pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no
moquém: quem mói no asp’ro não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me
vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse
gosto de especular ideia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio.
Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é
barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa
água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito
perigoso [...] (p. 25).

(O razoável sofrer e a alegria do amor): Que o que gasta, vai gastando


o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria do
amor – compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor
ache e não ache. Tudo é e não é... quase todo mais grave criminoso refor, sempre
é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-se-seus-amigos! Sei
desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens (p. 27).

FONTE: ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Caro acadêmico, leia e registre suas impressões a propósito dos dois


excertos do Grande Sertão: Veredas: O diabo existe e não existe e O razoável sofrer e
a alegria do amor, de Guimarães Rosa. Em seguida, anote o que mais lhe chamou
a atenção: as significações, o trabalho com a linguagem, o modo como o texto
ressoa em você.

Você deve ter sentido um certo estranhamento ao ler os dois textos,


não é mesmo? Esse estranhamento diante da linguagem de Guimarães Rosa é,
entretanto, uma das características celebradas como de um bom texto literário
para algumas teorias que assentam suas análises no tratamento diferenciado da
linguagem, tal como se observará na teoria do formalismo russo, que veremos em
tópico mais adiante.

Para efeito didático, entretanto, compare as suas impressões, anotadas na


autoatividade anterior, com algumas de Clarice Lispector (2001, p. 72), como em:
“a linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente entendida
pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido ele mais que inventou, ele
descobriu, ou melhor, inventou a verdade”, ou ainda: “o livro está me dando uma
reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo”.

Observe que essa leitora-escritora Clarice Lispector (2001) tende a


encontrar, na obra que admira, imagens e pensamentos (“linguagem íntima da
gente”, “me explicando coisas adivinhadas” etc.) que, embora lá não estejam
ditas de forma explícita, surgem a ela, leitora especial, por meio de sua forma
diferenciada de leitura.

7
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Ora, é dessa mesma matéria, ou seja, das intuições que surgem das leituras
das obras, seja das leituras profundas dos leitores-escritores, seja das impressões
que leitores especializados colhem dos textos, que pode surgir um novo dado
revelador, uma lucidez comunicável não apenas ao escritor, mas também a
nós, leitores comuns, quando nossa leitura está sendo mediada pelos olhares
especializados do crítico, do historiador ou do teórico da literatura.

A literatura, portanto, distingue-se da teoria da literatura, pois a escrita


e a leitura de fruição são experiências relativamente livres tanto para o escritor
quanto para o leitor, enquanto a análise literária, que se apoia na teoria, pressupõe
que tal liberdade ceda lugar a uma fundamentação teórica que vai além das
opiniões do senso comum.

A literatura cria o seu próprio universo, semanticamente autônomo


em relação ao mundo em que vive o autor, com seus seres ficcionais,
seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade:
pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a linguagem
humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores incríveis,
situações paradoxais, sentimentos contraditórios etc. (D’ONOFRIO,
2006, p. 19).

Em outras palavras, queremos dizer que há uma forma de leitura, comum


tanto ao escritor quanto ao leitor especialista de literatura – crítico, historiador ou
teórico – que se distingue da leitura superficial ou apressada do cotidiano, na qual
os leitores em geral buscam reconhecer seus próprios valores e assim, por não
estarem abertos à complexidade que constitui a atividade de leitura, dificilmente
modificam seus modos usuais de pensar a realidade:

Tratava-se de despertar a vigilância do leitor, de inquietá-lo nas suas


certezas, de abalar sua inocência ou seu torpor, de alertá-lo oferecendo-
lhe os rudimentos de uma consciência teórica da literatura. A teoria da
literatura, como toda epistemologia, é uma escola de relativismo, não
de pluralismo, pois não é possível deixar de escolher (COMPAGNON,
2012, p. 256).

Contrário a isso, há outro tipo de abordagem realizada por quem pretende


ir além da face visível do texto, percorrendo frases, parágrafos e páginas em busca
de sentidos novos, insuspeitados, que podem transformar o ato aparentemente
simples de ler em uma forma sofisticada de interação na qual a intenção inicial
do autor, que predizia uma certa visão de mundo, não é apenas completada pelo
ato de leitura, mas ampliada pelo entrecruzamento dos pontos de vista de quem
escreve e de quem lê.

Quer dizer: se a obra não for demasiado repetitiva, se ela não for fútil,
se não se prestar apenas a atender às demandas mercadológicas do fácil e do
consumível, então essa obra deixa o leitor livre para ir além de um roteiro
previsto, fazendo dele coautor da obra, capaz de ir além dos interesses imediatos
ao confrontar seu mundo pessoal ao conjunto de valores do que está escrito,
cujo resultado será não apenas a sofisticação da leitura e do pensamento, mas,
sobretudo, a formação de um leitor crítico.
8
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

É assim que Eagleton (2006) corrobora a importância da teoria, e não


apenas da teoria literária, por sua capacidade de libertar o leitor do achismo (eu
acho isso, você acha aquilo etc.) que geralmente sustenta o diálogo monológico
e vazio de todo aquele que se acomoda ao discurso habitual, contra o qual a
teoria, a ele se opondo, capacita o leitor a identificar os pressupostos teóricos que
sustentam toda e qualquer manifestação impressionista do senso comum.

O economista J. M. Keynes observou certa vez que os economistas que


desprezavam a teoria, ou que diziam sair-se melhor sem ela, estavam
simplesmente presos a uma teoria mais antiga. Isso também se aplica
aos estudantes e críticos de literatura [...]. A hostilidade para com a
teoria geralmente significa uma oposição às teorias de outras pessoas,
além de um esquecimento da teoria que se tem (EAGLETON, 2006, p.
XI).

2 O GÊNERO ENQUANTO COMPETÊNCIA DE LEITURA


Como pode se depreender do subtópico anterior, a formação de um
leitor crítico e autônomo pressupõe ações educacionais que confiram uma certa
competência de leitura ao educando, de modo a que cada leitor em particular
possa extrapolar os juízos fáceis e mercadológicos, que são mais acessíveis ao
público em geral, para ir além das impressões e opiniões pessoais de cada um.

Isso implica em propiciar minimamente ao leitor condições de apreender a


pulsação dupla da teoria literária, a saber: ora entre os juízos críticos que refletem
sobre o valor literário de uma obra, ora entre os juízos históricos que situam a
obra em determinado contexto de produção e recepção.

Assim, ao abdicar da falsa pretensão de construir uma ciência clara e


objetiva do signo literário, tanto o crítico e o historiador literário, quanto o teórico
da literatura podem se debruçar não mais sobre as tradicionais explicações que
buscam definir o que é literatura, para, ao invés disso, traçar roteiros que possam
orientar as formas de compreensão e de leitura praticadas em cada contexto de
recepção das obras literárias.

Mais certo do que limitar o papel da literatura na vida social, é


admitir sua plurifuncionalidade. Além da função estética (arte da
palavra e expressão do belo), uma obra literária pode possuir,
concomitantemente, a função lúdica (provocar um prazer), a função
cognitiva (forma de conhecimento de uma realidade objetiva ou
psicológica), a função catártica (purificação dos sentimentos) e a
função pragmática (pregação de uma ideologia) (D’ONOFRIO, 2006, p.
23, grifo do original).

Duas observações decorrem daí. A primeira: não há, tanto em literatura


quanto em qualquer outra forma de arte, uma leitura unívoca e explicativa que
desse conta da pluralidade de sentidos e imagens que emergem de uma obra.
A segunda: embora não haja uma forma única de apreciação de uma obra,
entretanto, há estratégias que possibilitam formas mais críticas e aprofundadas
9
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

de leitura, e essas podem ser adotadas ao invés de se demandar ao leitor que


tenha o mesmo olhar inquietante de um outro escritor, tal como observamos em
Clarice Lispector lendo Grande sertão: veredas.

Destarte, se não há como dominar um texto literário a partir de um


discurso objetivo, de uma metalinguagem literária, que seria a falsa pretensão
de uma ciência da literatura clara e objetiva, já que, como bem pontuou Merleau-
Ponty (1991, p. 36), a linguagem tem o poder de “ensinar ao leitor – ou mesmo
ao autor – o que ele não sabia pensar nem dizer”, então caberia ao especialista
em literatura apontar caminhos mais acessíveis, não menos densos nem menos
complexos, mas em certa medida tão fascinantes como são os próprios textos
literários.

Ora, esse fato não apenas confere relevância aos estudos de teoria da
literatura, como também põe em relevo o poder de fascinar que a obra literária
exerce sobre o leitor distraído e que pode permanecer em outro tipo de leitor,
nessa espécie de arquileitor, capaz de compreender em profundidade as obras
literárias em circulação para além da fruição despreocupada do leitor comum, isso
na medida em que reporta suas intuições a um instrumental técnico específico,
que se vale de diversas disciplinas. “A literatura assume muitos saberes [...]. Se,
por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas
devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que
devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário”
(BARTHES, 2007b, p. 17).

Por outro lado, desde um ponto de vista cronológico, essas formas de


teorizar a literatura, embora múltiplas, variaram, tanto quanto variou a própria
literatura, através do tempo e das condições de produção, de comercialização e de
valoração dos textos de acordo com certas tendências presentes em cada época.
Assim, três perspectivas poderiam situar a abordagem das obras, estabelecendo
panoramas gerais de compreensão, quais sejam: panorama clássico, panorama
moderno e panorama pós-moderno ou contemporâneo.

No presente tópico, abordaremos o panorama clássico da literatura,


observando as ferramentas e o contexto que propiciaram a apreciação e a
compreensão das obras literárias até meados da segunda metade do século XIX.
Nesse sentido, o primeiro modo de leitura de uma obra que foi dado ao leitor,
conferindo-lhe certo grau de liberdade na medida em que o municiava com
uma classificação tipológica das obras, foi a formulação da teoria dos gêneros
literários: “O gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras do
jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto,
assegurando, dessa forma, a sua compreensão. Nesse sentido, o modelo de
toda teoria dos gêneros é a tripartição clássica dos estilos” (COMPAGNON,
2012, p. 155).

10
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

De fato, se as obras literárias são inúmeras e diversificadas, para estudá-


las o leitor necessitaria de uma chave de leitura que permitisse entendê-las de
uma forma mais geral, com certo grau de universalismo, compreendendo-as em
suas características comuns e classificando-as em determinados grupos, segundo
a tripartição genérica: lírico, épico-narrativo e dramático. “O gênero, como
taxinomia, permite ao profissional classificar as obras, mas sua pertinência
teórica não é essa: é o de funcionar como um esquema de recepção, uma
competência do leitor, confirmada e/ou contestada por todo texto novo num
processo dinâmico” (COMPAGNON, 2012, p. 155).

Como se vê, a teoria dos gêneros literários possibilitaria ao leitor apreender


o fenômeno textual sem, entretanto, fechá-lo em modelos, funcionando como
uma espécie de mapa de orientação aos leitores-navegantes que, em meio ao mar
de livros, passariam a percorrer o labirinto de textos guiados por estratégias de
classificação e de comunicação possíveis segundo a tipologia lírica, narrativa ou
dramática.

Ademais, a teoria dos gêneros teria, em sua acepção moderna, a virtude de


não apenas orientar a leitura, mas também de apresentar uma interface descritiva
sem o demérito de anular as surpresas e a inventividade que pudessem vir a ser
apresentadas por novas obras ou obras imprevisíveis:

A concretização que toda leitura realiza é, pois, inseparável das


imposições de gênero, isto é, as condições históricas próprias ao
gênero, ao qual o leitor imagina que o texto pertence, lhe permitem
selecionar e limitar, dentre os recursos oferecidos pelo texto, aqueles
que sua leitura atualizará (COMPAGNON, 2012, p. 155-156).

E
IMPORTANT

O vocábulo gênero, quando aqui empregado, restringe-se apenas ao sentido


da esfera do literário e não aos “gêneros do discurso”, formulado pelo filósofo, e também
teórico da literatura, Mikhail Bakhtin (2003), que pensou o gênero como um dos eixos do
pensamento linguístico contemporâneo. O substantivo “gênero” pressupõe, nesse estudo,
necessariamente o adjetivo “literário”, portanto, o “gênero literário” se distancia da acepção
geral do termo gênero – textual ou do discurso – que se presta à classificação de toda
mensagem linguística e não especificamente às mensagens da literatura. Observe-se, a
título de exemplo, a classificação diversificada dos gêneros discursivos, vasta e incessante:
gêneros da esfera do cotidiano (conversação familiar, conversação social, diário íntimo,
carta pessoal, convite etc.); gêneros da esfera jornalística (reportagem, entrevista, notícia,
editorial, artigo etc.); gêneros da esfera da publicidade (anúncio, prospecto etc.); gêneros
da esfera científica (artigo, tese, conferência, resenha etc.); gêneros da esfera da produção
(ordem de serviço, manual de instrução, aviso, informações, pauta etc.); gêneros da esfera
religiosa (sermão, encíclica, parábola etc.); gêneros da esfera de negócios (contrato, ofício,
memorando, requerimento, carta oficial, ata etc.); gêneros da esfera jurídica (lei, decreto,
petição etc.); gêneros da esfera escolar (resumo, dissertação, seminário, livro didático etc.).

11
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Em meio a essa vasta tipologia, a literatura estaria situada nos gêneros da esfera artística
(poema, conto, romance, drama, fábula, história em quadrinhos etc.), mas tal não se verifica,
pois uma das especificidades do texto literário – a função poética, que veremos ainda
nessa unidade – pode valer-se de textos de outras esferas de gênero linguístico. O caso
mais exemplar são os Sermões, do Padre Antônio Vieira, que, embora escritos em gênero
da esfera religiosa, apresenta efeito literário, dado o tratamento diferenciado que o autor
conferiu à linguagem.

A título de exemplo vimos, na leitura de alguns excertos Grande Sertão:


Veredas, de Guimarães Rosa – texto pertencente ao gênero literário épico-narrativo
– uma das virtudes comuns a todas as grandes obras literárias, a saber, o fato de
oferecerem imagens ou dar sentidos que não estão escritos na obra propriamente
dita, mas que são produzidos por um determinado ato da leitura, como o que fez
Clarice Lispector na missiva endereçada a Fernando Sabino.

No caso em questão, a escritora Clarice Lispector registra suas impressões


de leitora no gênero discursivo “carta”, cuja característica é a informalidade,
portanto, sem a pretensão consciente de teorizar sobre o fenômeno literário que
advém da obra Grande Sertão: Veredas. Entretanto, as impressões da escritora
modernista, dado o seu talento refinado e o grau intuitivo de sua prosa, estão
registrados na referida carta em forma de ideias-chave que abrem novas
possibilidades de leitura da própria obra de Guimarães Rosa.

Esses sentidos e imagens, que aparecem enquanto ideias-chave, não estão


no texto de forma aparente, mas, a depender da postura do leitor e do modo como
a obra for lida, passam a ser construídos conjuntamente através do diálogo entre
a intencionalidade do autor – já que este, ao compor a obra, tem certa expectativa
de como ela será lida e prevê determinado horizonte de leitura – e os modos de
sentir e de perceber de cada leitor em particular.

Nessa análise, em que se coloca a intencionalidade autoral em diálogo
com os modos de percepção do leitor contextualizado, é necessário compreender
o fenômeno literário como um tipo de mensagem linguística específica, na qual os
signos, embora se reportem a uma realidade externa, ou seja, embora se refiram a
algo exterior ao próprio texto, tendem a não desaparecer do horizonte de leitura.

A linguagem literária [...] é obrigada a desviar-se da norma


linguística. Na linguagem científica e diária faz-se largo uso de
estereótipos, seguindo padrões linguísticos e petrificando a palavra.
O cientista e o homem comum não pensam no código que utilizam:
o uso linguístico cria automatismos psíquicos e intelectuais que
levam à perda do sentido do significante. A força de repetição
aniquila o significado original da palavra, que perde seu poder de
criatividade (D’ONOFRIO, 2006, p. 15).

12
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Quando enunciamos uma mensagem do tipo “água mole em pedra


dura...”, de imediato o leitor familiarizado ao texto completa a frase seguinte sem
dificuldade e sem necessariamente compreender o seu significado. Essa frase,
pertencente ao gênero lírico, chamar-se-á em literatura de “verso”, pois tem o
poder de reter em nossa memória um sentido não lógico inscrito nos signos a
despeito da intenção autoral, isso porque fixamos, na maior parte das mensagens
no gênero lírico, o jogo de sonoridades, ritmos e rimas que nos fará concluir “...
tanto bate até que fura”.

Dessa forma, antes de compreender a tripartição das obras segundo a


tipologia dos gêneros literários, é necessário compreender quando uma mensagem,
um texto, uma obra são literatura, ou seja, a especificidade da mensagem literária
em relação às outras mensagens utilizadas na comunicação humana, em razão do
que devemos observar no comportamento da língua de acordo com os elementos
e funções da comunicação postulados pelo linguista Roman Jakobson. “Sabe-
se que a língua é um corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os
escritores de uma época. Isso quer dizer que a língua é como uma Natureza
que passa inteiramente através da palavra do escritor, sem, no entanto, dar-
lhe nenhuma forma” (BARTHES, 2004b, p. 9).

2.1 FUNÇÃO POÉTICA: PRESSUPOSTO


COMUNICACIONAL DA ANÁLISE LITERÁRIA
É saber corrente que Roman Jakobson lançou um novo olhar sobre o
fenômeno literário ao caracterizar a literatura como uma forma de mensagem
linguística, mas cuja especificidade é voltar-se mais para si mesma do que para o
referente a que visa, caracterizando assim a função poética.

A linguagem literária acentua o próprio signo linguístico, estando


orientada para a mensagem como tal e não apenas para seu
significado. Sua função, mais do que referencial, é essencialmente
expressiva, pois confere um novo sentido às palavras. Roman
Jakobson, já nas Teses de 1929, que deram início ao movimento
chamado de Formalismo Russo, ditava a norma da arte em geral: ‘o
princípio organizador da arte, em função do qual ela se distingue
das outras estruturas semiológicas, é que a intenção é orientada não
para o significado, mas para o próprio signo’ (D’ONOFRIO, 2006, p.
12-13).

Assim, ao pensar a linguagem como meio de comunicação, Jakobson
associou a língua a um código não apenas individualizado, mas realizado em
um contexto comunicativo, no qual comparecem seis fatores da comunicação
alinhados a seis elementos e seis funções linguísticas que se combinam segundo
determinadas regras para transmitir uma mensagem entre um emissor e um
receptor.

13
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

FIGURA 2 – ELEMENTOS E FUNÇÕES DA COMUNICAÇÃO EM ROMAN JAKOBSON

FONTE: <http://www.acrobatadasletras.com.br/2014/03/elementos-da-comunicacao.html>.
Acesso em: 1° nov. 2019.

O que se pode notar no esquema, referenciado na Figura 2, é a presença


de seis elementos sempre presentes no ato de comunicação: emissor, código,
mensagem, receptor, referente e canal, que se destacam conforme a ênfase da
interlocução recaia sobre um dos seis polos, criando funções a eles correspondentes,
respectivamente: função emotiva, função metalinguística, função poética, função
conativa, função referencial (polo do objeto, da verdade) e função fática.

Nessa linha de pensamento, a mensagem literária, como qualquer outro


tipo de mensagem, embora vise um sentido a ela exterior, dá-se na relação entre
um emissor distinto, no caso em questão, emissor autor literário – transmudado,
conforme o gênero literário, em narrador, eu lírico ou ator – e entre um receptor
que com ela interage, ou seja, um leitor previsto, idealizado. Essa mensagem,
caracterizando a função poética, tem como especificidade não querer desaparecer
em proveito do sentido a que ela se refere.

De fato, como sublinhou Eagleton (2006), quando utilizamos as mensagens


apenas para fins comunicacionais, essas mensagens tendem a desaparecer logo
que o sentido textual ou discursivo é compreendido. Por exemplo, se perguntamos
a algum transeunte na rua: “que horas são, por favor?”, o nosso interlocutor não
atentará para a especificidade das palavras “que” “horas” “são” “por” “favor”,
pois, assim que compreende o sentido a que o texto se refere, ele esquece a
mensagem em si e elabora, de imediato, uma resposta plausível: “São ‘x’ horas
da tarde”.

A mensagem literária, ao contrário, tende a reter o poder sonoro dos


signos, como se houvesse um sentido em cada significante para além do que ele
quer significar. Assim, no exemplo em questão, se ao encontrarmos o mesmo
transeunte, perguntarmos: “tu, noivo imaculado da morte, podes me dizer em que

14
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

hora de nossa alma estamos?”, essa mensagem provavelmente não desaparecerá


da memória de quem a escutou, causando no interlocutor não uma resposta
imediata, como no caso anterior, mas um visível estranhamento.

A linguagem poética insurge-se contra o automatismo e a


estereotipação do uso linguístico, reavivando arcaísmos, criando
neologismos, inventando novas metáforas, ordenando de um modo
diferente conceitos, carregam representações sensoriais, através
da metrificação, da rima, da assonância, do ritmo, da sinestesia etc.
A novidade do significante linguístico causa no leitor um efeito de
estranhamento, que o obriga a refletir na formulação da mensagem
(D’ONOFRIO, 2006, p. 15).

Embora não seja apenas esse atributo que caracteriza um texto literário,
em Jakobson é esse poder da mensagem de manter a atenção sobre ela mesma,
a despeito do sentido comunicado, que caracteriza a função poética. As outras
formas de mensagem, consequentemente, desaparecem em prol dos elementos
comunicativos e de suas respectivas funções: emissor (função emotiva); do
receptor (função conativa ou apelativa); do referente (função referencial); do canal
de comunicação (função fática); e do código linguístico (função metalinguística).

Como exercício de fixação, analise as mensagens a seguir observando


quais delas encontram-se na função poética, caracterizando, a seu ver, quais delas
seriam possivelmente mensagens literárias: a) “noite escura dá medo”; b) “noite
alta, céu tristonho, a quietude é quase um sonho”; c) “você sempre me telefona
de casa ao meio-dia”; d) “sempre que ao telefone me falavas, eu diria, que falavas
de uma sala, toda de luz invadida”.

Caro acadêmico, você deve ter percebido que, nas letras “b” e “d”, as
mensagens não buscam apenas passar informações objetivas, mas chamar a atenção
para si mesmas através de um trabalho de rebuscamento com a linguagem; estão,
portanto, na função poética. Por outro lado, as mensagens expressas nas letras
“a” e “c” tendem a ser esquecidas assim que são comunicadas; são mensagens
neutras, objetivas, que se encontram na função referencial.

Ademais, para além de observar a função poética como um dos atributos


das mensagens literárias, o esquema da comunicação de Jakobson se prestaria a,
também, acessar modos distintos de abordagem teórica, a depender de sua maior
ou menor proximidade aos polos do emissor, do receptor ou da mensagem.

Como a função poética, mesmo não sendo uma exclusividade da


linguagem literária, é o elemento fundamental para diferenciar um
produto linguístico de arte de outro que não o é, assim a predominância
do uso da terceira pessoa caracteriza a “narratividade” de um texto, a
da segunda pessoa sua “dramaticidade” e a da primeira pessoa sua
“liricidade” (D’ONOFRIO, 1990, p. 13-14).

15
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Dessa forma, as roteirizações do signo literário funcionariam não apenas


como mapas abertos de análise, mas também poderiam oscilar, como um pêndulo,
de três maneiras distintas: ora para a esquerda, onde predominaria pontos de
vista exteriores às obras, suas condições de produção, elementos biográficos
e contextuais, ligados ao polo autoral do emissor e, portanto, dando a ver a
mensagem literária por um viés histórico.

Esse viés histórico permaneceria quando o pêndulo oscilasse também para


a direita, centrando-se no polo do receptor, no polo da leitura, do observador,
que destacaria, na análise do contexto, as formas de apreensão da leitura, do
multiculturalismo, dos elementos etnográficos e de outras formas de observação
que questionam as qualidades anacrônicas e universais que se atribui ao cânone
literário das obras clássicas.

O pêndulo, ao oscilar assim, para os polos do emissor ou do receptor,


determinaria pontos de vista voltados para a análise das condições externas,
exteriores às obras em si. Quando, entretanto, centra-se no polo da mensagem
literária propriamente dita, abriria perspectivas críticas voltadas para a análise
das condições internas e dos valores estéticos inerentes às obras literárias,
independente dos contextos de produção e de recepção dos textos literários.

Concluindo, podemos afirmar que a natureza da linguagem literária


faz com que toda obra de arte poética apresente a interseção de dois
movimentos opostos e, ao mesmo tempo, complementares: um, que a
dobra sobre si mesma, em mero objeto de linguagem [...]; outro que,
ao contrário, a abre para o mundo, interrogado em sua realidade e em
sua presença essencial (D’ONOFRIO, 2006, p. 13).

Além disso, o esquema da comunicação enriquece a análise teórica


mediada pela teoria dos gêneros literários, ou seja, em se admitindo que o texto
a ser analisado é uma mensagem literária, poder-se-ia ligar suas características
aos polos do emissor, do receptor ou do referente, estabelecendo analogias entre
esses elementos comunicativos e os gêneros literários a eles correspondentes:
lírico, dramático e narrativo, respectivamente:

Roman Jakobson, relacionando as funções da linguagem com os fatores


da comunicação inter-humana, vê o princípio diferenciador da poesia
lírica na predominância da função emotiva, orientada para a expressão
do subjetivismo do emissor; o do gênero narrativo na preferência para
função referencial; o da poesia dramática na marcação da função
conativa, orientada para o destinatário (D’ONOFRIO, 1990, p. 13).

16
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos que você


assista ao vídeo, do canal YouTube, Roman Jakobson: Contribuições para o Estudo da
Linguística, realizado pelo Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias do Centro de
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Maringá/PR, disponível no link: https://
www.youtube.com/watch?v=yz43g3P6c_s.

3 O GÊNERO COMO PRINCÍPIO DE CLASSIFICAÇÃO DAS


OBRAS
Na obra A República, Platão estabeleceu a primeira referência aos gêneros
literários, cujas formas de expressão apresentavam-se, à época, através das formas
de canto próximas aos hinos e ditirambos, das epopeias homéricas e das tragédias
e comédias do teatro grego clássico. Essa reflexão teórica inicial incorporou ao
pensamento estético as tradições literárias que prevaleceram no período arcaico
da literatura greco-romana, por volta dos séculos VIII ao V a.C.

As primeiras manifestações culturais do povo grego estão relacionadas


intimamente com suas atividades existenciais: as lutas pela conquista
de novos territórios (poesia heroica ou épica), o ensinamento da cultura
e da terra (poesia telúrica ou didática), a expressão de sentimentos
fundamentais do indivíduo em relação à divindade ou aos homens
(poesia lírica) (D’ONOFRIO, 1990, p. 27).

Nos ditirambos, elegias e outras formas abreviadas de canto estavam


em germe o gênero lírico, assim como nas epopeias, que narravam os feitos
heroicos do povo grego, nitidamente nos poemas épicos Ilíada e Odisseia, de
Homero, germinava o gênero épico-narrativo, e, por último, nas consagradas
tragédias e comédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes deu-se
a sedimentação do gênero dramático.

Aristóteles, discípulo de Platão, ao escrever a Poética, reformula em


profundidade a teoria dos gêneros literários proposta por Platão, concebendo-os
como formas de imitação e classificando-os conforme o modo, o meio e o objeto
de representação. Essa versão da teoria dos gêneros, válida até os dias atuais,
levou-nos para além do senso comum, abrindo ao leitor, e à recepção das obras
de um modo geral, parâmetros mais consistentes de compreensão de qualquer
obra literária.

17
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Pode-se dizer que Platão e Aristóteles faziam teoria da literatura quando


classificavam os gêneros literários na República e na Poética, e o modelo de
teoria da literatura ainda é, hoje, para nós, a Poética de Aristóteles. Platão
e Aristóteles faziam teoria porque se interessavam pelas categorias gerais,
ou mesmo universais, pelas constantes literárias contidas nas obras
particulares, por exemplo, os gêneros, as formas, os modos, as figuras.
Se eles se ocupavam de obras individuais (a Ilíada, o Édipo Rei), era como
ilustrações de categorias gerais. Fazer teoria da literatura era interessar-se
pela literatura em geral, de um ponto de vista que almejava o universal
(COMPAGNON, 2012, p. 19, grifo do original).

De modo geral, no gênero lírico dá-se a expressão de sentimentos e
emoções centrados na interioridade do sujeito emissor da mensagem, expondo
suas reflexões pessoais, em sua maioria reveladas no tempo presente da ação.
Nesse gênero, a função poética da linguagem, que caracteriza a mensagem
literária, explicita-se preponderantemente através de efeitos estéticos ligados à
musicalidade e a plasticidade de versos.

O termo “lírica” é tardio, da época helenística. Os gregos da


época clássica chamavam de “mélica” (de melos, “canto”) a poesia
acompanhada de um instrumento musical: lira, cítara, aulos e flauta.
O poema-canto podia ser entoado por uma única pessoa, quando se
dava o nome de lírica “monódica”, ou por várias pessoas, chamando-
se então de lírica “coral” (D’ONOFRIO, 1990, p. 58).

No gênero épico-narrativo, por sua vez, aquele que fala expressa, de


modo preponderante, não o seu estado emocional subjetivo, mas séries de
acontecimentos que se encadeiam em um tempo e um espaço determinados de
modo mais neutro e objetivo, que em sua feição antiga prestava-se a cantar os
feitos heroicos de um povo ou de uma nação por meio das epopeias.

Lendas recentes e antigas, poesia ritual sobre a morte e a descida


aos Infernos, lembranças de guerras gloriosas e do exílio dos aqueus
na Ásia, mitologia contemporânea e lembranças de antigos deuses
transformados em herói e conservados com todo o aparato ritual que
seu culto comportava, eis tudo o que encontramos em A ilíada e A
odisseia (D’ONOFRIO, 1990, p. 29, grifo do original).

A epopeia tornou-se a primeira forma elevada de literatura no ocidente,
pois condensava os relatos populares, orais, transmitidos de geração em
geração, muitos deles ligados a fatos históricos, que, em geral, eram retomados e
reelaborados por um escritor culto, que dominava não só a língua e suas variações
linguísticas praticadas pelos povos, mas também o imaginário de um povo.

O termo grego épos, que significa palavra ou narração, designava


também um tipo de verso, o hexâmetro, composto de seis pés, usado
para poemas longos que exaltavam os feitos heroicos das divindades
ou de homens ilustres. Tal forma métrica passou a designar um tipo
de poesia, a épica, chamada também de epopeia. Aristóteles distinguiu
o épos, palavra narrada, da lírica, que era a palavra cantada, e do
drama, que era a palavra representada. O gênero épico, mais tarde,
tornou-se quase sinônimo do gênero narrativo, em verso ou em prosa
(D’ONOFRIO, 2006, p. 112, grifo do original).

18
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Em sua face moderna, o gênero narrativo, especificamente no “subgênero”


romance, destacou-se como a forma literária que apresentou maior evolução
estrutural dada a sua riqueza e capacidade representativa em face a ter assimilado
outros gêneros, como a crônica de viagens, o diário, o ensaio, dentre outros,
tornando-se a forma literária de maior expressividade no século XIX.

Quer a narrativa sentimental, quer a narrativa realista, embora sem


o nome de romance, têm origens muito remotas. Ocorre que esse tipo
de ficção em prosa viveu por logo tempo ofuscado pelos gêneros
literários clássicos e não recebeu a devida apreciação crítica: todas
as teorias poéticas da época do classicismo se preocuparam apenas
com os textos versificados. Somente com o declínio da poesia épica
do início do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel da
epopeia de expressar a totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto
de gênero literário (D’ONOFRIO, 2006, p. 116-117).

Assim, o romance tornou-se uma forma apta a captar os meandros da vida


cotidiana em sua complexidade, servindo como meio privilegiado de exploração
da interioridade e da exterioridade dos indivíduos por incorporar vários tipos
de registros discursivos e literários. Tal foi a capacidade da narrativa romanesca
que vimos a emergência do romance psicológico e da apreensão de monólogos
interiores dos personagens, captando muito mais que a realidade exterior dos
indivíduos nele representados.

No gênero dramático, por sua vez, deu-se a representação dos costumes e


comportamentos humanos através das falas e ações dos personagens, e, por esse
motivo, foi considerado, pelos filósofos gregos, o mais imitativo dos três gêneros.
Sua origem remonta ao diálogo que se estabelecia entre o coro de vozes, e a voz
do corifeu, responsável por entoar cânticos ao deus do vinho, Baco, também
conhecido como Dionísio.

As origens do gênero dramático estão relacionadas intimamente com


a atividade rural e o sentimento religioso do homem primitivo. No
outono, durante o ritual da colheita da uva, um bode, acusado de
ter devorado as videiras, era sacrificado ao deus Dionísio. O bode
era perseguido, agarrado e esquartejado pelos sátiros. Em seguida,
sobre sua pele, os devotos de Baco dançavam e bebiam até caírem
desfalecidos. Durante esta festividade, o coro de sátiros e faunos,
chefiados por um corifeu, cantava um hino em louvor de Dionísio,
chamado “Ditirambo “(D’ONOFRIO, 1990, p. 66).

Assim, através do diálogo entre o corifeu e o coro, em que as ações


em torno do deus Baco ou Dionísio, ao deixarem de ser cantadas para serem
representadas, tomam a forma de encenação em um lugar apropriado, o theatron
(o lugar de onde se vê), aí se dá a origem da arte dramática, que aos poucos
transcendem os rituais de culto a deuses para passar a refletir os problemas da
existência humana, como:

19
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

A luta entre o livre arbítrio e a fatalidade do destino, o sofrimento


por uma culpa não cometida voluntariamente, o castigo por faltas
cometidas pelos nossos ancestrais, o turbilhão que aflige o homem
quando vítima de violentas paixões, tais como o amor, o ódio, o ciúme,
a vingança, constituem os principais temas representados nos palcos
do teatro grego (D’ONOFRIO, 1990, p. 67).

E
IMPORTANT

Uma das principais divindades da antiguidade ocidental, que surgiu no mundo


grego, foi Dionísio, também conhecido como Baco. Gestado, após a morte da mãe, numa
das coxas do deus Júpiter, Dionísio era fruto híbrido de um amor divino-humano, [...] que
errou pelo mundo então conhecido e conseguiu o caminho da glória pela descoberta
da uva e do vinho. Tocando flautas ou tamborins, acompanhado pelo cortejo de sátiros,
bacantes, centauros e pelos deuses Sileno e Pã, Dionísio propiciava aos homens e aos
deuses alegria e felicidade. Enquanto durava o estado de embriaguez, seus devotos
sentiam a presença do deus do vinho dentro de si e abandonavam-se aos ritos orgíacos,
entrando em transe histérico. Dionísio sempre foi considerado pelos gregos como um deus
estrangeiro e subversivo, pois ele personificava a desobediência à ordem e à medida, a
vida do instinto, a liberdade e o prazer sem limites, a inversão dos valores sociais [...]. O
espírito dionisíaco encontrou sua primeira manifestação artística no coro ditirâmbico, que,
segundo a maioria dos estudiosos da literatura grega, foi o embrião da tragédia antiga.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo:


Ática, 1990.

Importante destacar que, embora na formulação original da teoria dos


gêneros literários, por Platão e Aristóteles, havia um caráter de descrição dos
modos comuns de aparição das obras literárias, houve uma retomada normativa
pelos teóricos e autores clássicos pós-renascentistas.

Se o teor descritivo, como estava nas obras dos filósofos, aponta modos
de ordenar a recepção das obras literárias, o enfoque prescritivo clássico, que
prevaleceu desde a Idade Média até o Romantismo, buscou mediar o surgimento
de novas obras pelo estabelecimento de parâmetros de composição literária.

Contra isso, contra a ideia de gêneros literários normativos, ou seja, a


pureza dos gêneros literários conforme pensou o classicismo, para o qual uma
obra literária deveria ser composta sem liberdade, de tal ou qual modo, prevaleceu
o caráter descritivo dos gêneros, tal como pensaram Platão e Aristóteles, isto
é, como um modo livre de municiar o leitor diante de qualquer obra literária,
classificando-a e, portanto, podendo argumentar e se comunicar segundo a teoria
dos gêneros literários.

20
TÓPICO 1 | A TEORIA E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

DICAS

No presente tópico apresentamos, de modo sintético, e para fins de se


compreender a origem das diversas formas de teorização da literatura no ocidente, as
características gerais dos gêneros literários, que foram abordadas em maior profundidade
em Teoria da Literatura I. Assim, sugerimos a você, caro acadêmico, ler, revisar e aprofundar
os nuances pertinentes aos gêneros literários presentes naquele livro didático.

21
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• As teorizações da literatura têm origem em modos diferenciados de leitura,


os quais se distanciam da leitura apressada do leitor comum, em geral, mais
preocupada em confirmar os próprios pontos de vista do que em encontrar novas
perspectivas que lhe ampliem a visão de mundo. Esses modos diferenciados
dos teóricos em muito se assemelham à intuição de escritores, especialmente
quando aqueles leem e comentam as obras de outros escritores.

• Há no escritor um modo de abordagem semelhante ao do teórico da


literatura, pois ambos buscam revelar aspectos ainda não claros, tanto para
si mesmos quanto para o público leitor em geral, que é o mesmo que tornar
visível o que é invisível e apresentar algo que, mesmo que inicialmente não
possua forma sensível determinada, passa a ter realidade através da escrita e,
consequentemente, da leitura que se seguirá.

• O discurso teórico como um tipo de leitura especializada significa se dar conta


que o teorizador, a partir de suas intuições de leitura, deve, em seguida, apoiar
sua leitura em uma fundamentação teórica consistente, que afasta essa mesma
leitura do dogmatismo do senso comum, já que o senso comum não se abre ao
diálogo com outros pontos de vista.

• Existem dois modos de caracterização dos estudos de literatura que se tornaram


paradigmas de compreensão do fenômeno literário: os gêneros literários e a
função poética. Esta última, proposta por Roman Jakobson, situou o discurso
literário como mais um dos discursos linguísticos possíveis na esfera da
comunicação humana, retirando, por conseguinte, a ideia de uma “aura” que
permeasse o escritor literário.

• O trabalho com a linguagem, que caracteriza a função poética, deve ser seguido
da classificação em qual gênero literário o texto está vinculado. Por exemplo, ao
deparar-se com a mensagem “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”,
o leitor observa, primeiro, se ela está ou não na função poética e, segundo a qual
gênero literária está filiada. No caso em questão, a mensagem permanece se fixa
em nossa memória, portanto está na função poética, e filia-se ao gênero lírico.

• Os gêneros literários, ao serem formulados por Platão e Aristóteles, assumiram


um caráter descritivo em sua origem, prestando-se a auxiliar o leitor a situar
sua leitura sobre qualquer obra que caísse em suas mãos. Esse ponto de vista
descritivo foi transformando-se em postulados que orientavam os novos
escritores em suas composições, desde a Idade Média até o Romantismo,
assumindo até ali, uma feição prescritiva, portanto negativa.

22
• Após o movimento romântico, que quebrou a normatividade dos gêneros
imposta pelo classicismo, a teoria dos gêneros retomou, em sua fase moderna,
sua face descritiva, conservando o seu valor teórico até os dias de hoje.

23
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da literatura ajuda o leitor a identificar as características de um texto


literário em relação aos textos de natureza discursiva ou comunicacional.
Uma dessas características é a função poética, formulada por Roman
Jakobson, que através dela destacou os tipos de mensagem que tendem
a permanecer na memória do leitor, mesmo após ele ter compreendido o
sentido a que ela se prestava. A partir dessa reflexão, é CORRETO afirmar:

a) ( ) Que a mensagem literária é um tipo de mensagens linguística que não se


diferencia das mensagens abrangentes dos gêneros discursivos.
b) ( ) Que a função poética, por destacar uma forma de mensagem linguística
pelo tratamento dado à linguagem, é um dos modos da literariedade, ou
seja, modo que ajuda a identificar um texto literário.
c) ( ) Que a função poética tem valor semelhante à função emotiva, do polo do
emissor-escritor, e da função conativa, do receptor-leitor.
d) ( ) Que toda mensagem que permanece na memória do leitor
necessariamente é uma mensagem literária.

2 Teorizar literatura significa, de um modo mais didático, aperfeiçoar os


instrumentos de leitura dos textos, os modos de chegar e compreender as
obras literárias, cujo efeito pedagógico imediato seria facilitar ao educando
o acesso ao reconhecimento das obras de valor dialógico, as que vão além do
sentido literal, ainda que não se exclua a importância de fruição das obras
literárias de valor mercadológico. A partir dessa reflexão, classifique V para
as sentenças verdadeiras e F para as sentenças falsas:

I- ( ) De certo modo, a teoria visa municiar o leitor com os pressupostos


teóricos que sustentam, em última instância, qualquer formulação
competente sobre uma obra literária.
II- ( ) O senso comum, com seu apelo em favor da facilidade e do convívio
social, admite o leitor competente, dialógico, que observa não apenas o seu
ponto de vista.
III- ( ) Via de regra, o senso comum induz o leitor a buscar obras menos
complexas, que confirmem o que eles, leitores desinteressados, antes de
ler a obra escolhida, já sabiam.
IV- ( ) A teoria ajuda o leitor a ter uma atitude diferenciada, habilitando-o
a capturar camadas de sentido, muitas vezes insuspeitadas, nascidas da
obra literária no instante de leitura.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – F – V.
d) ( ) V – F – V – V.

24
3 Para o estudo das obras literárias se estabeleceu a classificação das mesmas
em três tipos distintos, conforme a tipologia dos gêneros literários: lírico,
narrativo e dramático. Essa forma de leitura, válida até os dias de hoje
através da versão aristotélica editada na Poética, ajuda o leitor a confrontar
qualquer texto literário que pouse em suas mãos, tendo assim, um modo
de compreendê-lo em particular, segundo características universais.
Considerando essas informações, associe os itens, utilizando o código a
seguir:

I- Lírico.
II- Épico-Narrativo.
III- Dramático.

( ) Para Aristóteles, na forma de comunicação entre o escritor e o público, esse


gênero é constituído pelo epos, ou “a palavra narrada” por um rapsodo
perante um auditório.
( ) Para Aristóteles, na forma de comunicação entre o escritor e o público,
esse gênero é a “palavra cantada” pelo próprio poeta, expressão de sua
subjetividade.
( ) Para Aristóteles, na forma de comunicação entre o escritor e o público, esse
gênero é a palavra representada” por atores para espectadores.
( ) Para Aristóteles, na forma de comunicação entre o escritor e o público, esse
gênero é pertinente a palavra rica em sonoridades, exprimindo o estado
emocional do próprio poeta.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – III.
b) ( ) II – I – III – I.
c) ( ) I – II – III – I.
d) ( ) III – II – I – II.

4 (ENADE, 2008) “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas
voam faíscas e lascas como aços espalhados. Ah que medo de começar e
ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera
por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de
todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que
está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados
apalpar o invisível na própria lama (LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 25).

No trecho do romance A hora da Estrela, de Clarice Lispector, apresenta-se uma


concepção do fazer literário, segundo à qual a literatura é:

25
a) ( ) Uma forma de resolver os problemas sociais abordados pelo escritor ao
escrever suas histórias.
b) ( ) Uma forma de, pelo trabalho do escritor, tornar sensível o que não está
claramente disponível na realidade.
c) ( ) Um dom do escritor, que, de forma espontânea e fácil, alcança o indizível
e o mistério graças a sua genialidade.
d) ( ) O resultado do trabalho árduo do escritor, que transforma histórias
complexas em textos simples e interessantes.
e) ( ) Um modo mágico de expressão, por meio do qual se de abandona a
realidade histórica em favor da pura beleza estética graças à sensibilidade
do escritor.

FONTE: <http://www.pucrs.br/edipucrs/enade/letras2008.pdf>. Acesso em: 17 out. 2019.

26
UNIDADE 1
TÓPICO 2
ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, prosseguindo nossa viagem através das diversas teorias
da literatura, vamos agora priorizar as abordagens teóricas que observam o
fenômeno literário sem dar relevância às situações vividas fora dos textos. Essas
formas de análise são chamadas de “internas”, pois se importam mais com a
relação entre os textos e com a linguagem do que com a relação dos textos com
a fome, com as guerras, com os preconceitos, ou com quaisquer ocorrências que
estejam no plano da realidade existencial.

Desde esse ponto de vista, a liberdade de criação de situações fictícias,


utilizando dados da realidade, revela que o saber literário, para além da fidelidade
lógica das ciências instrumentais aos fatos vividos, é também uma forma de
conhecimento da realidade, pois a literatura pode revelar fatos insuspeitados
acerca dessa mesma realidade na medida em que liberta o pensamento para
flertar com a imaginação.

Por isso, Aristóteles falava da literatura como reveladora, não de uma


verdade buscada pela especulação filosófica, mas de uma verdade possível, que
não precisava necessariamente acontecer, em que as narrativas, independente do
gênero literário a que estivessem vinculadas, distorceriam a realidade por seu
poder de sugestão, não interessando constatar ou comprovar a fidedignidade dos
fatos por elas veiculadas.

FIGURA 3 – A ESCOLA DE ARISTÓTELES, AFRESCO DE GUSTAV ADOLPH SPANGENBERG (1883-


1888)

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/75/Spangenberg_-_Schule_des_
Aristoteles.jpg>. Acesso em: 10 jan. 2019.

27
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Ao revelar uma das especificidades do texto literário, a “verossimilhança”


aristotélica conferia valor e autonomia à leitura na medida em que agrupava as
características comuns das obras, segundo a teoria dos gêneros literários.

A teoria literária, para fins didáticos, agrupa as obras pela semelhança


de seus elementos estruturais. A macrodistinção nos três gêneros
fundamentais – narrativo, lírico e dramático – e suas subdivisões
(poema épico, conto, romance, tragédia etc.) foram feitas tendo em
conta as peculiaridades de vários tipos de textos (D’ONOFRIO, 2006,
p. 33).

De fato, ao pensar as características dos gêneros literários e, com mais


propriedade, do gênero dramático, o filósofo acabou por revelar níveis de análise
que se prestariam não apenas ao drama, mas ao estudo de quaisquer textos,
independentemente do gênero a que eles estivessem vinculados.

Os elementos estruturais do drama se reportariam à análise dos


personagens, atores, público, cenografia, sonoplastia, direção e temática,
historicamente aplicados a modalidades, como: tragédia, comédia, tragicomédia,
ópera, farsa, marionetes, e, posteriormente, em utilizações tecnológicas como o
cinema, vídeos etc.

A essência da arte dramática repousa no conflito, no choque entre


vontades opostas, na colisão entre os diferentes objetivos das
personagens. Conflito que gera constantemente surpresa e tensão.
Tensão expressa formalmente através do diálogo. Aliás, a nosso ver,
é a forma dialógica a característica mais marcante da arte dramática
(D’ONOFRIO, 2005, p. 127, grifo do original).

Em linhas gerias, os elementos estruturais da lírica são analisados através


dos estratos gráfico, fônico, lexical, sintático e semântico, aplicados em suas
formas históricas, dentre elas: o hino, a ode, a elegia, a canção, a cantiga, o soneto,
a balada, o rondó, a redondilha, o madrigal, o epigrama, o haicai; e outras que,
porventura, possam surgir.

Mesmo mais tarde, quando a poesia lírica deixa de ser composta para
ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva traços de
sonoridade através dos elementos fônicos do poema: metros, acentos,
rimas, aliterações, onomatopeias. Sinais evidentes dessa interação
podem ser encontrados nas denominações das formas poemáticas
(soneto, canção, balada etc.) e em algumas espécies de arte que, ainda
hoje, cultivam a simbiose música-palavra: a ópera, o musical, a canção
popular (D’ONOFRIO, 2005, p. 56).

Quanto aos elementos estruturais da narrativa – planos de enunciação,


do enunciado, e a tipologia dos narradores – aplicar-se-iam às formas gerais
de narratividade, como: mitos, lendas, contos populares e eruditos, epopeia,
romance, novela, crônica, autobiografia, provérbios e outras que também venham
a surgir.

28
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma


história imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade
de personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo
e num espaço determinados. Nesse sentido amplo, o conceito de
narrativa não se restringe apenas ao romance, ao conto e à novela,
mas abrange o poema épico, alegórico e outras formas menores de
literatura (D’ONOFRIO, 2006, p. 53).

Interessa-nos observar não apenas o efeito potencial dessas primeiras


teorizações, mas também o quanto o desdobramento das reflexões de Aristóteles
tornou-se relevante para a análise dos textos literários na medida em que
estabeleceu, em número de seis, os níveis de análise de qualquer obra literária.
“Em qualquer texto literário podem ser encontrados os seis elementos [...] que,
intrincados, compõem sua estrutura. As diferenças genéricas e específicas de um
texto para o outro estão relacionadas com a predominância de alguns elementos
constitutivos em detrimento de outros” (D’ONOFRIO, 2006, p. 33)

E
IMPORTANT

A reflexão sobre os seis elementos constitutivos da tragédia grega por Aristóteles


(mythos, éthos, dianoia, léxis, ópsis e melopeia, ou seja, mito, caráter, pensamento, discurso,
ótica e melodia, respectivamente) revelou seis níveis de análise dos textos literários:

• Nível fabular: pelo qual se estuda a estrutura da história ficcional, a determinação e a


interligação de várias sequências narrativas, a diferença entre situações e ações, núcleos
e catálises, índices e informações.
• Nível atorial: o estudo da personagem, quer no que diz respeito ao seu fazer (a função
que ela exerce na narrativa, determinada por suas ações e relacionada com o fazer
das outras personagens), quer ao seu ser (as qualificações que ela recebe e que nos
fornecem o seu perfil psicológico).
• Nível reflexivo: os comentários tecidos pelas personagens sobre o sentido dos fatos que
estão acontecendo ou considerações gerais sobre a vida humana ou os fenômenos da
natureza.
• Nível discursivo: além de se estudar os vários sujeitos do discurso que aparecem ao
longo do texto literário (o problema do foco narrativo), analisam-se também as figuras
de estilo, os desvios que a linguagem poética opera em relação à linguagem comum, ao
nível lexical (metaplasmos), sintático (metataxes) e semântico (metassememas).
• Nível descritivo: a apresentação do cenário onde as personagens realizam suas ações.
As descrições podem ser de ordem exterior (paisagens, decorações de ambientes,
vestuários etc.) ou interior (características psicológicas). A esse nível, o estudo das
categorias do tempo e do espaço do plano da enunciação e do enunciado é de suma
importância para a compreensão do texto;
• Nível fônico: é o estudo dos elementos sonoros que podem aparecer no texto
literário. Como já dissemos, esse nível é importante nas obras compostas para serem
representadas (teatro de ópera) ou cantadas (as letras das canções populares) e nas
formas poemáticas consagradas (soneto, balada etc.) Fundamental é a percepção das
relações fono-semânticas: o estudo do som não deve ser separado do estudo do sentido.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo:


Ática, 2006. p. 32.

29
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Como se vê, ao descrever os níveis de apresentação dos textos vinculando-


os à teoria dos gêneros literários, Aristóteles capturou modos internos de
apresentação das obras, dando a ver as bases do pensamento literário analítico,
que possibilitaria descrever as obras a partir de seus elementos constituintes mais
estáveis.

Essas formas de análise variariam, historicamente, conforme se


acentuassem um ou outro aspecto de leitura: formalista, linguista, semiológica,
estruturalista, fenomenológica, temática, estilística, e demais vertentes modernas
e pós-modernas. Em sua face contemporânea, entretanto, a crítica não se atém a
apenas uma forma de leitura, mas pode mesclar várias delas em prol de revelar
aspectos até então inusitados. “É possível a integração dos diferentes métodos de
análise e interpretação literária. Com efeito, apesar das peculiaridades de cada
método, cada qual ressaltando mais um aspecto da obra literária do que outro,
eles não são entre si incompatíveis” (D’ONOFRIO, 2006, p. 47).

Doravante elencaremos os aspectos centrais dessas formas internas


de análise, que importaram do olhar aristotélico modos de pensar “de dentro
para fora”, que resultariam em formas intrínsecas de estudo, isto é, sem se
reportar às condições exteriores de produção, nas quais prevalecem aspectos
ligados à ideologia, aos dados biográficos do autor, ao contexto sociocultural da
composição, ou às escolas literárias a que as obras estariam vinculadas.

2 O ESTILO, AQUILO QUE NOS É MAIS PRÓPRIO


Caro acadêmico, as diversas formas de leitura que advieram das teses
aristotélicas sobre arte e literatura revelaram-se extremamente complexas para
o olhar comum, pois essas formas de análise pressupunham do crítico ir além
de suas impressões iniciais através de um conhecimento mais aprofundado em
filosofia da arte, estética e nos postulados gerais da linguística moderna, saberes
difíceis para leitores não especializados.

Entretanto, um desses enfoques internos constitui-se como exceção,


pois, por mais que se tenha tentado bani-lo dos estudos literários, ele tem,
historicamente, mantido estreita comunicação com o senso comum. Trata-se do
estilo e, por conseguinte, da análise estilística, a qual podemos didaticamente
tomar como forma exemplar, dado o seu grau razoável de comunicabilidade.

A palavra estilo não tem origem em vocabulário especializado. Além


disso, ele não é reservado à literatura nem mesmo à língua: “Que estilo!
Ele tem estilo!” diz-se de um jogador de tênis ou de um costureiro.
A noção de estilo abrange numerosas áreas da atividade humana:
a história da arte e a crítica de arte, a sociologia, a antropologia, o
esporte, a moda usam e abusam desse termo. É uma desvantagem
séria, talvez fatal, para um conceito teórico (COMPAGNON, 2012, p.
164).

30
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Assim, a par com a análise estilística, que retoma o viés descritivo da


retórica clássica, podemos compreender, de dentro, como operam os dispositivos
teóricos de estudo dos textos literários e, a partir dessa forma de análise mais
acessível ao olhar comum, ter também uma ideia de como operam, em maior
grau de complexidade, os demais tipos de análise literária. “Seja qual for seu
refinamento, o estilo tem sempre algo de bruto: ele é uma forma sem destino, é
o produto de um surto, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e
solitária do pensamento” (BARTHES, 2004b, p. 10).

E
IMPORTANT

Vejamos, a seguir, algumas transformações, muitas vezes díspares, da palavra


“estilo” através dos séculos:

Estilo, no sentido de “maneira de exprimir seu pensamento”, de onde se originaram os


sentidos modernos, sobretudo falando-se das belas-artes, no século XVII. Empréstimo
do latim Stilus, escrito também stylus, de onde vem a ortografia do francês, segundo o
grego stylos “coluna”, por falsa analogia; esta significa propriamente “buril servindo para
escrever”, sentido tomado de empréstimo mais ou menos em 1380 [...]. Tinha sido tomado
de empréstimo em mais ou menos 1280, nas formas stile, estile, no sentido jurídico de
“maneira de proceder”, de onde “métier”, depois, “maneira de combater”, no século XV e
“maneira de agir” (em geral), ainda usado no século XVII, hoje usado somente em locuções
tais como (fazer) mudar de estilo [...] estilística, 1872, foi tomado do alemão stylistik (atestado
desde 1800).

FONTE: COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2012. p. 165.

Esse modo de pensar advém da retórica, tal como compreendida por


Aristóteles como um ornamento da forma, enquanto desvio em relação ao uso
costumeiro da linguagem, o que abria planos paralelos para se pensar o literário,
quais sejam: conteúdo e expressão, fundo e forma, maneira e matéria; ou seja,
dualismos que sustentam a ideia de um mesmo fundo/conteúdo/matéria para
infinitas variações de expressão/forma/maneira:

A legitimidade da noção tradicional de estilo depende desse


dualismo. O axioma do estilo é, pois, este: há várias maneiras de
dizer a mesma coisa, maneiras que o estilo distingue. Assim, o estilo,
no sentido de ornamento e de desvio, pressupõe a sinonímia [...].
Contestar, desacreditar o estilo, significa rejeitar a dualidade da
linguagem e do pensamento e rejeitar o princípio semântico da
sinonímia (COMPAGNON, 2012, p. 166, grifo do original).

31
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

A retórica clássica, que está na raiz dos estudos da estilística literária, nasceu no
século V a.C. e foi introduzida na Grécia pelo filósofo Górgias ao se referir a uma disciplina da
arte do bem falar e que se voltava para a comunicação persuasiva: “quem deseja ter razão
decerto a terá com o mero fato de possuir língua”. Em suas origens, a retórica ocupava-
se preponderantemente do discurso político falado, que corresponde à oratória dos dias
atuais.

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos a você


assistir ao vídeo do canal YouTube Direito e Literatura – A arte da Retórica, que realiza um
passeio histórico sobre a retórica, através de um debate por especialistas que analisam o seu
surgimento na Grécia Antiga, em seguida, em sua passagem pelas disciplinas obrigatórias:
retórica, gramática e lógica, verificando sua aplicabilidade nos dias atuais, especialmente
na área do Direito, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=uzVvWXslZY8.

Antes, porém, convém apresentar duas noções, por vezes confrontantes e


caras ao debate literário. Trata-se da mutação da ideia rígida de obra em direção
à ideia de texto, ou seja, das similaridades e incongruências que as perpassam,
tornando relativas referências que antes pareciam sólidas e que, segundo Barthes
(2004b, p. 66), deslizariam, “em literatura, a relativizar as relações do escritor, do
leitor e do observador (do crítico)”. “Diante da Obra – noção tradicional, concebida
durante muito tempo, e, ainda hoje, de maneira, por assim dizer, newtoniana –,
produz-se a exigência de um objeto novo, obtido por deslizamento ou inversão
das categorias anteriores. Esse objeto é o Texto” (BARTHES, 2004a, p. 66).

2.1 O TEXTO ENQUANTO CAMPO METODOLÓGICO DE


ANÁLISE
A liberdade de leitura pressupõe um receptor-leitor não passivo, que não
se preste apenas a decodificar e compreender uma mensagem literária de um
emissor-autor. Embora pareça estar submetido às mensagens que compõem uma
obra, ele lê muito mais do que está presente nela, ou, como diria Proust (2007), o
leitor se lê ao ler a obra, consequentemente nela desliza em direção a algo maior
que a obra, isto é, em direção ao texto, no qual ele e a obra estão mutuamente
implicados.
32
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Renovar a leitura: não se trata de substituir por novas regras científicas


as antigas imposições da interpretação, mas antes imaginar que uma
leitura livre passa a ser finalmente a norma dos “estudos literários.”
A liberdade de que se trata aqui não é evidentemente uma liberdade
qualquer (a liberdade é contraditória com qualquer coisa): sob a
reivindicação de uma liberdade inocente voltaria a cultura aprendida,
estereotipada (o espontâneo é o campo imediato do já-dito) – seria
inevitavelmente a volta do significado. A liberdade posta em cena
neste número é a liberdade do significante (BARTHES, 2004b, p. 102,
grifo do original).

NOTA

Marcel Proust é considerado o maior romancista francês, autor comparável


a Willian Shakespeare na Inglaterra, e que alcançou dimensão internacional com a
publicação da obra Em busca do tempo perdido, em 13 volumes, em que Proust esboça
brilhantemente teses, como “a memória involuntária”, que de certo modo prenunciava
a descoberta científica do “inconsciente” Freudiano. Roland Barthes, um dos teóricos da
literatura francesa mais brilhantes, nutriu-se amplamente do legado de Marcel Proust para
formular suas teses e livros, que estão, inclusive, como uma das principais fundamentações
teóricas do presente livro didático.

O texto, nesse sentido, é uma espécie de abertura dada no entrecruzamento


dos olhares intertextuais presentes na obra com aqueles confrontados pelas
intencionalidades do autor e do leitor. Quer dizer, a intertextualidade presente
na mensagem literária, muitas vezes, surpreende o próprio autor que a escreveu,
pois, o texto não é o resultado da transmissão de um pensamento que se formularia
antes, na cabeça do autor, mas aquilo que surge da própria escrita a partir de uma
certa leitura.

Toda leitura deriva de formas transindividuais: as associações geradas


pela letra do texto (onde está essa letra?) nunca são, o que quer que
se faça, anárquicas; elas sempre são tomadas (extraídas e inseridas)
dentro de certos códigos, certas línguas, certas listas de estereótipos
[...]. De onde vêm essas regras? Não do autor, por certo, que não faz
mais do que aplica-las a sua moda [...] visíveis muito aquém dele,
essas regras vêm de uma lógica milenar da narrativa, de uma forma
simbólica que nos constitui antes do nosso nascimento, em suma, desse
imenso espaço cultural de que a nossa pessoa (de autor, de leitor) não
é mais que uma passagem (BARTHES, 2004a, p. 28-29).

33
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

NOTA

A palavra texto etimologicamente deriva do termo latino textum, que


significa tecido, um produto composto pelo entrelaçamento de uma multiplicidade de
fios, relacionado com vários cognatos: têxtil, textura, tecelagem. Transposto para a arte da
literatura, texto passou a indicar um conjunto de palavras aptas a produzirem um sentido,
que compõem uma frase, um trecho ou um livro inteiro. Um poema, um romance ou
uma peça teatral são chamados de textos porque são compostos de uma variedade de
elementos intimamente relacionados entre si, trançados de forma a constituírem uma
intriga, uma trama.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo:


Ática, 2006. p. 29.

O termo intertexto ou intertextualidade foi composto por Julia Kristeva [...] para relatar os
trabalhos do russo Mikhail Bakhtine e deslocar a tônica da teoria literária para a produtividade
do texto, até então apreendido de maneira estática pelo formalismo francês: “todo texto se
constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção e transformação de um outro
texto”. [...] A intertextualidade está, pois, calcada naquilo que Bakhtine chama de dialogismo,
isto é, as relações que todo enunciado mantém com outros enunciados.

FONTE: COMPAGNON, A. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2012. p. 108-109.

Em sentido complementar, por outro lado, há uma intenção do autor-


emissor (intencionalidade) que pode ser aceita, confrontada ou não (aceitabilidade)
pela intenção do leitor-receptor. Efetivamente, nessa linha de raciocínio, e a
pensar com Barthes (2004a), o texto é um objeto indeterminado, ainda que esteja
preso à estrutura física ou notacional das obras literárias:

O texto não deve ser entendido como um objeto computável [...].


Pode haver “Texto” numa obra muito antiga, e muitos produtos da
literatura contemporânea não são em nada textos. A diferença é a
seguinte: a obra é um fragmento de substância, ocupa alguma porção
do espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca). Já o Texto é um
campo metodológico [...]; a obra se vê (nas livrarias, nos fichários, nos
programas de exame), o texto se demonstra, se fala segundo certas
regras (ou contra certas regras); a obra segura-se na mão, o texto
mantém-se na linguagem (BARTHES, 2004a, p. 67).

Assim, se como ponto de partida compreendemos o saber literário como


algo não estável, mas capturado na oscilação dos universos das obras em sua
abertura enquanto textos, então podemos adotar um “campo metodológico” para
análise dos textos literários, cujas especificidades internas apontariam enfoques
de teorização segundo características predominantes ligadas às vertentes:
formalista, linguística, semiológica, estruturalista, fenomenológica, temática ou
estilística.

34
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

2.2 CORRENTES DE ANÁLISE INTERNA DOS TEXTOS


LITERÁRIOS
Um primeiro enfoque concerne à análise formalista, escola que teve seu
berço na Rússia do século XIX e que tratou de acentuar as observações acerca
do trabalho com a linguagem. Para o formalismo, importava a produção de
enunciados de efeito estético que despertasse o leitor contra os automatismos
linguísticos do senso comum e dos estereótipos da linguagem comunicacional.

A diretriz formalista é uma postura metodológica da crítica que


substitui a oposição tradicional entre forma e conteúdo pela relação
entre o material (elementos fônicos, lexicais sintáticos e semânticos do
texto) e o priom (processo ou procedimento), isto é, a maneira pela qual
o material é manipulado para produzir efeito estético (D’ONOFRIO,
2006, p. 41).

Para a análise formalista, visto de um modo sucinto, a literariedade se


revelaria através da singularidade do arranjo das palavras, captado através de
um procedimento particular e característico para cada texto.

A literariedade do texto, isto é, a differentia specifica que faz com


que um produto de linguagem seja considerado uma obra literária,
consiste no arranjo estético do material. Sendo o princípio da forma o
traço distintivo da percepção estética, o crítico tem por ofício analisar o
priom da obra para descobrir a especificidade que torna o texto literário
um objeto estético (D’ONOFRIO, 2006, p. 41, grifo do original).

E
IMPORTANT

A crítica formalista está associada ao movimento literário conhecido como


formalismo russo, ocorrido na primeira metade do séc. XX. O movimento buscou demonstrar
a autonomia e especificidade da linguagem poética – sua literariedade – estabelecendo as
bases da crítica literária moderna. Entre seus principais representantes estão Chklovsky,
Vladimir Propp, Roman Jakobson, que influenciaram teóricos conhecidos na atualidade,
como Mikhail Bakhtin.

Cabe destacar que esse tipo de análise, a ser aprofundada na unidade


seguinte, é, em muito, tributária da análise linguística, a qual derivou dos
pressupostos linguísticos concebidos em binarismo por Ferdinand de Saussure:
significante e significado, língua e fala, sincronia e diacronia, eixo sintático e eixo
paradigmático etc.

35
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

A análise linguística, nesse sentido, pôs em evidência os principais


elementos ligados ao signo linguístico tal como formulado originalmente por
Saussure e, em continuidade, por Roman Jakobson, não apenas por estudar a
natureza abstrata, embora de uso concreto do signo linguístico, mas também
ao desdobrá-lo em uma associação simultânea de significantes e significados,
elementos e funções comunicacionais que, na análise literária, salientaria:

Os elementos constitutivos da palavra (fonemas e semas), as relações


que ligam entre si as palavras (elementos sintáticos) e os enunciados
(linguística transfrásica); [...] [além do estudo] das diferentes funções
da linguagem, entre elas a função poética, orientada para a mensagem
(= texto), e no estudo das relações sintagmáticas e paradigmáticas,
que levam à individualização dos polos metonímico e metafórico
(D’ONOFRIO, 2006, p. 40-41).

E
IMPORTANT

Figura contundente para os estudos culturais, filosóficos, semiológicos e,


especialmente, para os estudos da linguagem foi o linguista Ferdinand de Saussure. Através
de palestras, publicadas no livro Curso de linguística geral, o pensador suíço estabeleceu
não apenas as bases da linguística moderna, como também vinculou, às dicotomias
presentes na linguagem humana, toda forma de pesquisa e especulação relevantes na área
de humanidades e de ciências a ela afins; a teoria literária é uma delas.

O enfoque linguístico, portanto, distingue metodologicamente níveis de


análise conquanto descreve os elementos distintivos desses mesmos níveis, ou,
como queria Barthes (2004b, p. 15), quando a análise fundamenta “a distinção
do fato e não o próprio fato”, ou seja, quando reconhece que, “contrariamente
aos fatos físicos e biológicos, os fatos da cultura são dúplices, remetem a alguma
outra coisa: [...] é a descoberta da ‘duplicidade’ da linguagem que faz todo o valor
da reflexão de Saussure”.

Também, diretamente ligada às descobertas linguísticas de Saussure, a


análise semiológica extrapola os aspectos textuais e estruturais das obras literárias
ao observá-las dentro de um sistema de signos maior, que compõe não só a
literatura, mas a língua em confronto com outros sistemas não propriamente
literários, como os mitos, a moda, a alimentação etc.

Assim, a semiologia, enquanto ciência geral dos signos e para além do


signo linguístico e do literário, transformou-se e está na origem de outra disciplina,
a Semiótica, que se presta, ainda na atualidade, a compreender todo fato ou
realidade que tem significado para as relações humanas. No campo específico da
linguagem, volta-se, sobretudo, à análise das várias formas de discurso.

36
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Seu conceito de “interpretante” (= signo que dá sentido a outro


signo) e sua classificação dos sistemas em ícone (relação imagética ou
de semelhança), índice (relação de contiguidade) e símbolo (relação
convencional) constituem o fundamento do estudo dos signos. Sobre
a trilha de Peirce, caminham outros semiólogos: Ernst Cassirer, Eric
Buyssens, Louis Hjelmslev, Roland Barthes, A. J. Greimas, Umberto
Eco (D’ONOFRIO, 2006, p. 43-44).

NOTA

A semiótica adquiriu relativa autonomia em relação à semiologia de Saussure,


mas dela conservando algumas bases teóricas como a irredutibilidade dos signos enquanto
moeda de duas faces: significante (imagem acústica) e significado (conceito mental). A
semiótica foi concebida pelo filósofo Charles Peirce, que especificou três tipos de signo:
o ícone (que mantém proximidade emotiva e sensorial entre o signo, a representação do
objeto e o objeto dinâmico), o índice (que se refere à parte representada pela herança
cultural ou experiência subjetiva) e o símbolo (signo que se refere a um objeto em virtude
de uma regra ou lei). A semiótica literária, por sua vez, tem como expoente mais popular
o filósofo italiano Umberto Eco, também escritor, cujos romances, O nome da rosa dentre
eles, receberam versão cinematográfica.

A semiótica literária, por sua vez, enquanto destino final da semiologia


saussureana, está na raiz das distinções, caras à comunicação literária, entre
denotação e conotação, plano da expressão e plano do conteúdo etc., pois o
literário, ao fazer predominar seus discursos nos planos da expressão e da
conotação, utiliza as palavras não somente para representar alguma experiência
do mundo.

O texto literário transforma incessantemente não só as relações que as


palavras entretêm consigo mesmas, utilizando-as além de seus sentidos
estritos e além da lógica do discurso usual, mas estabelece com cada
leitor relações subjetivas que o tornam um texto móvel (modificante e
modificável), capaz mesmo de não conter nenhum sentido definitivo
ou incontestável (D’ONOFRIO, 2006, p. 14).

Outro enfoque de repercussão nos estudos literários advém da escola


estruturalista, que desempenhou papel expressivo para os teóricos franceses do
século XX na medida em que importou, a partir da linguística saussuriana e das
descobertas antropológicas de Lévi-Strauss, modos de observação da realidade
literária que buscavam revelar conjuntos de regras implícitas às ações humanas
e às narrativas. “O conceito de estrutura, entendida como relação entre as partes
de um conjunto, pode ser rastejado em antigas noções das ciências naturais,
matemáticas e humanas, onde se confunde com conceitos afins, como sistema,
organismo, conjunto, modelo, forma” (D’ONOFRIO, 2006, p. 42, grifo do original).

37
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

NOTA

Ícones do pensamento estruturalista, Claude Lévi-Strauss, antropólogo


francês, e Sigmund Freud, psiquiatra austríaco, refundaram suas disciplinas ao descreverem
algumas relações constantes de funcionamento dos indivíduos, seja no campo das culturas
e grupos sociais em Lévi-Strauss, seja no campo do inconsciente pessoal, descrito por
Freud ao criar a Psicanálise.

O caso mais exemplar surgiu nas ciências da psicologia, mais propriamente


na descoberta da psicanálise por Sigmund Freud, que revelou nossas ações serem
motivadas por uma estrutura invisível, inconsciente, e que constitui o motor de
nossa psique, impulsionando-nos a ações que, de modo geral, vão em direção
oposta ao que conscientemente desejamos. Assim, antes de escolhermos algo com
clareza, essa estrutura inconsciente da psique já determina nosso horizonte de
escolha.

Nesse sentido, ainda tomando a psicanálise como exemplo, o resultado


é que, se somos determinados por um jogo de regras inconscientes – que, para
Freud, reportava-se às experiências iniciais de prazer e desprazer vividas na
infância e que resvalam, influenciam e marcam nossas decisões durante toda a
existência adulta – é porque subjaz ali algo como uma estrutura.

NOTA

O estruturalismo é uma corrente de pensamento da segunda metade do


século XX, que se inspirou nos modelos linguísticos de Saussure e visava descobrir, por
trás da superfície aparente das coisas, inter-relações e regras que dariam a ver a realidade
profunda subjacente a todos os eventos humanos. Embora o termo tenha-se originado
das formulações linguísticas de Saussure, ele tomou outro alcance com as descobertas do
antropólogo Claude Lévi-Strauss, que esteve no Brasil realizando pesquisas etnográficas
que resultaram na obra Tristes trópicos. Em termos de análise literária, cabe destaque um
grupo de teóricos que desenvolveu os postulados do estruturalismo através da revista
francesa Tel Quel, dentre os quais Barthes, Greimas e Todorov aprofundaram a análise
estrutural da narrativa.

38
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Em termos de análise literária, o caso mais exemplar de análise estruturalista


se deu com a revelação das constantes presentes nos contos populares, realizada
por Vladimir Propp, teórico russo que discriminou, de forma minuciosa, a
estrutura comum a todos os contos maravilhosos, observando a ocorrência de
padrões: a) quanto ao início do conto – afastamento, proibições relacionadas ao
afastamento, reclusão dos reis, isolamento dos filhos de reis, confinamento de
jovens, motivação e conclusões do confinamento, a desgraça, equipar o herói para
a viagem.

Com relação às etapas seguintes dos contos maravilhosos, revelou a


seguinte estrutura: b) acerca da floresta encantada – a casa da floresta, a casa
grande, a mesa posta, os irmãos, os caçadores, os salteadores, a distribuição de
tarefas, a irmã, nascimento de um filho, a bela no túmulo, Eros e Psyché, a mulher
no novo casamento do marido, o sebento, “eu não sei”, os cavalos e os que se
cobrem com uma pele, o marido no casamento da mulher, a proibição de se gabar,
a despensa proibida, a conclusão.

Nos tópicos da Morfologia do conto maravilhoso, Propp (1984) capturou um


roteiro, regular nessas narrativas populares, que, além das etapas de início (a) e
da floresta encantada (b), revelam outros tópicos estruturais, a saber: c) a casa
grande, d) as dádivas mágicas, e) a travessia, f) à beira do rio de fogo, g) a noiva
etc.

Distinguiríamos, então, a forma (= o todo orgânico de um objeto


concreto) da estrutura (= modelo geral elaborado pela análise dos
elementos constitutivos e invariáveis, comuns a esse e a outros
objetos do mesmo grupo ou da mesma espécie). Aplicado aos estudos
literários, o conceito de estrutura de Lévi-Strauss levaria a uma
redenominação do trabalho proppiano: o formalista russo não teria
descoberto a morfologia, mas a estrutura do conto fantástico, visto
que Propp construiu seu modelo a partir da análise de um corpus,
constituído de cem narrativas fabulosas (D’ONOFRIO, 2006, p. 42,
grifo do original).

A análise fenomenológica, por sua vez, importando do filósofo Edmund


Husserl a ideia do “retornar às coisas mesmas” da fenomenologia, isto é, do
retorno à experiência através da descrição das realidades como elas aparecem
na consciência enquanto elas ainda não são determinadas, ou seja, enquanto
são fenômenos, abertura, indeterminação, desferiu frontalmente golpes no
dogmatismo do senso comum, que “naturaliza” as coisas e os acontecimentos
na medida em que os lê segundo conceitos e preconceitos já estabelecidos por
determinada cultura.

39
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

NOTA

Edmund Husserl é considerado o pai da fenomenologia. O filósofo alemão


pleiteava um pensamento que retornasse ao campo das coisas tal como elas se
apresentam na experiência, assim se distanciando das teses dogmáticas do historicismo
e do psicologismo. Para isso, formula o método da “redução fenomenológica”, também
conhecido como “epoché”, que transforma tudo o que é revelado pelos sentidos em uma
experiência descritiva da consciência intencional. Grandes pensadores como Heidegger,
Merleau-Ponty, Sartre e Levinas são discípulos dessa corrente de pensamento do século XX.

Para Husserl e a escola do existencialismo que lhe seguiu, as coisas


se mostram em seu instante atual, e a crença na estabilidade delas seria mais
uma imposição “política” do que uma realidade verificável. A consciência,
nesse sentido, não se dirige a um objeto dela isolado, mas ela mesma não existe
objetivamente senão como intencionalidade, ou seja, enquanto fluxo que se dá
entre um polo da consciência e um polo do objeto.

Em termos literários, vários teóricos se debruçaram sobre as obras,


buscando não as explicar, mas fenomenologicamente descrever os instantes de
leitura, captando a obra enquanto extratos, camadas de sentido que se dão a partir
dos textos em correspondência com a intenção dos leitores. Alguns expoentes que
se destacaram nesse campo foram: Martin Heidegger, Jean Paul Sartre, Maurice
Merleau-Ponty e, com um método mais direcionado à análise literária, o polonês
Roman Ingarden.

O enfoque fenomenológico do texto limita-se à descrição da obra


literária, considerada como um “fenômeno”, isto, é, como ela “aparece”
aos olhos e à intuição do observador. A experiência perceptiva
é o fundamento de todas as operações da consciência. O crítico
fenomenológico aproxima-se da obra com mente pura, afastando de
si as influências de qualquer tradição literária, de qualquer autoridade
crítica, de qualquer pressuposição lógica sobre a constituição do objeto
artístico, de qualquer modelo de análise preestabelecido (D’ONOFRIO,
2006, p. 44).

Tal como a estilística filiava-se a antiga disciplina da retórica clássica, a


análise temática advém de métodos tradicionais de análise literária, que buscavam
encontrar os temas gerais da cultura que determinariam a aparição das obras.
Assim, ao decompor os textos em busca dos “motivos” que os constituíam, ou em
seus elementos-chave, estava em realidade procurando os motivos fundantes que
não mais se desdobrariam em outros.

40
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Gaston Bachelard, por exemplo, constrói um estudo da dinâmica dos


escritores a partir da ideia pré-socrática dos quatro elementos da natureza, que a
seu ver se revelariam em quatro temperamentos psicológicos e determinariam os
motivos das poéticas de autores consagrados, como: Novalis, de Edgar Alan Poe,
Charles Baudelaire etc.

Na época contemporânea, quase todos os sistemas temáticos inspiram-


se numa e noutra tendência psicanalítica: a teoria dos arquétipos,
de Jung; a dos componentes materiais da imaginação (os quatro
elementos), de Bachelard; a dos ciclos naturais (as quatros estações, as
horas...), de Frye; a dos mitos ocidentais (Narciso, Édipo...), de Gilbert
Durand (D’ONOFRIO, 2006, p. 46).

Na análise temática se pressupõe, portanto, que toda expressão em arte


reflete em alguma medida a visão de mundo do autor e da sua cultura. Na
atualidade, das teorias mais relevantes para essa forma de análise são os “motivos
temáticos”, concebidos por Boris Tomachevski no início do século XX, dentre os
quais se destacam:

O leitmotiv (um motivo que se repete com insistência na obra) e topos


(um motivo que se repete em várias obras). A conjunção de vários
motivos, que são os suportes da mesma significação, constitui o tema.
Este pode ser parcial (referente a um segmento semântico) ou principal
(referente à significação total da obra) ou universal (comum a várias
obras de diferentes épocas), atual ou histórico (D’ONOFRIO, 2006, p.
46, grifo do original).

Em certa medida, a análise temática aponta para a expressão do saber


cultural de uma época ou de determinado grupo histórico, o que não exime a
obra de, embora expressar uma temática geral, captar por determinado autor
uma versão dessa temática, o que implicaria em considerar que a temática, que é
vista como item geral, cultural ou como marca de uma época, acaba por desaguar
no estilo do autor, que é individual e expressa a singularidade da composição.

Assim, podemos dizer que autores como Castro Alves, Álvares de Azevedo
e Lord Byron, por exemplo, expressariam em suas escritas a temática cultural em
que viviam na segunda metade do século XIX, e, embora a expressassem através
da sentimentalidade do romantismo literário, cada um o fazia a sua maneira,
quer dizer, cada qual imprimia em suas composições não apenas os motivos
românticos da época, mas um modo próprio de os fazer surgir segundo um
“estilo” inerente a cada um.

Essa variação dos motivos culturais e temporais dentro dos estilos


individuais de cada autor tornou-se mais evidente nas artes plásticas do final
do século XVIII e início do século XIX, pois foi através da verificação dos
detalhes pictóricos que se distinguia as obras verdadeiras das tentativas cópias
fraudulentas presentes nos mercados da época.

41
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Doravante, o estilo não está mais ligado a traços genéricos


macroscópicos, mas a detalhes microscópicos, a indícios tênues, a
traços ínfimos, como o toque de uma pincelada, o contorno de uma
unha ou de um lóbulo de uma orelha, que vão permitir identificar o
artista. O estilo liga-se a minúcias que escaparam ao controle do pintor
e que o falsário não pensará em reproduzir (COMPAGNON, 2012, p.
168).

FIGURA 4 – “WAINT CAT”, PINTURA REALISTA DE LOUIS WAIN (1860-1939)

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/da/Wain_Cat_%28realistic%29.
jpg>. Acesso em: 5 fev. 2019.

Se o estilo expressa um modo de fazer próprio de cada artista, que muitas


vezes escapa da compressão do próprio artista, é porque o estilo também se define
intuitivamente como algo que se mantém em meio à variação. Você conseguiria
perceber, ainda que não se saiba explicar bem a razão, se há semelhanças entre
as pinturas das Figuras 4 e 5, que nos fariam caracterizá-las como obras de um
mesmo autor?

42
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

FIGURA 5 – GATO ANTROPOMÓRFICO (LOUIS WAIN, 1860-1939)

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/66/Catwithacigar.jpg>. Acesso


em: 5 fev. 2019.

Caro acadêmico, você deve ter se dado conta, ainda que de modo não
necessariamente lógico, que há semelhanças entre as duas figuras. As semelhanças
se dão não só pela afinidade temática – temática felina, referente ao animal gato
em fusão com o humano, aspecto conhecido como antropomorfização –, mas
também pelos traços comuns das pinceladas, texturas e outros detalhes que
caracterizariam o “estilo” de pintura de Louis Wain.

Eis aí uma das razões da permanência da noção de estilo, a saber: que há


modos diferentes de dizer e representar, não a mesma coisa, mas coisas que são
semelhantes; conteúdos, e não apenas formas, que se referem ao mesmo fato e
que a ele se assemelham. Assim, é possível verificar traços semelhantes nas obras
de autores, literários ou não, dos quais se pode dizer: estilo proustiano, estilo
machadiano, estilo Wain etc.

Existe um traço familiar nas obras de um mesmo autor, de uma mesma


escola ou de um mesmo período, mesmo se essas obras tratam de
assuntos bem diferentes uns dos outros. Várias obras sobre o mesmo
assunto – ou quase o mesmo assunto – podem ter estilos diferentes,
e várias obras sobre assuntos diferentes podem ter o mesmo estilo
(COMPAGNON, 2012, p. 186).

43
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Assim o estilo, tanto para o saber culto quanto para o popular, passa por
ser um modo, um jeito diferente de se dizer algo parecido, ou seja, pressupõe
dizeres sinônimos, mensagens que variam em relação à mesma coisa dita.

Para que haja estilo, é preciso que haja várias maneiras de dizer a
mesma coisa: é este o princípio. O estilo implica uma escolha entre
diferentes maneiras de dizer a mesma coisa. Poder-se-ia manter a
distinção entre o assunto – o que se diz – e o estilo – como se diz – sem
se cair nas armadilhas do dualismo? (COMPAGNON, 2012, p.185).

E
IMPORTANT

Embora o estilo seja o método de análise interna mais comunicativo da literatura,


ele não deixa de ser complexo e apresentar diversas vertentes, como as descritas a seguir:

• O estilo é uma norma: o valor normativo e prescritivo do estilo é o que lhe está associado
tradicionalmente a “o bom estilo”, que é um modelo a ser imitado, um cânone. Como tal,
o estilo é inseparável de um julgamento de valor.
• O estilo é um ornamento: a concepção ornamental do estilo advém da retórica [...]:
o estilo (lexis) é uma variação contra um fundo comum, efeito, como lembram as
metáforas numerosas que jogam com o contraste entre o corpo e a roupa, ou entre a
carne e a maquiagem.
• O estilo é um desvio: a variação estilística define-se pelo desvio em relação ao uso
corrente, como disse Aristóteles “a substituição de uma palavra por outra dá à elocução
uma forma mais elevada”, ou a elocução elegante, jogando com o desvio e com a
substituição, que “dá à linguagem uma marca estranha, pois a distância motiva o espanto,
e o espanto é uma coisa agradável”.
• O estilo é um gênero ou um tipo: segundo a antiga retórica, o estilo, enquanto escolha
entre meios expressivos, ligava-se à ideia de conveniência, tal como se observa na
Retórica de Aristóteles: “não basta possuir a matéria do seu discurso, é preciso, além
disso, falar como se deve [segundo a necessidade da situação]; é a condição para dar ao
discurso uma boa aparência”.
• O estilo é um sintoma: associação do estilo ao indivíduo; ele é objetivo, como código
de expressão, e subjetivo, como reflexo de uma singularidade.
• O estilo é uma cultura: sentido sociológico e antropológico que expressa o espírito, a
visão de mundo de uma comunidade; a cultura corresponde à alma da nação, da raça,
como unidade da língua e das manifestações simbólicas de um grupo.

FONTE: COMPAGNON, A. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2012. p. 165-170.

Destarte, por essa semelhança de olhares entre o culto e o popular, a


análise estilística, que abriu as considerações iniciais dos diversos métodos de
estudo internos desse tópico – formalista, linguista, semiológico ou semiótico,
estruturalista, fenomenológico e temático –, tornou-se o método mais acessível ao
diálogo com o senso comum, consequentemente, tornou-se o método de análise
de mais fácil comunicação, e, embora seja tão complexo quanto os outros, é aquele
que, de um ponto de vista didático, apresenta o maior efeito pedagógico.
44
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos a você


assistir ao vídeo Como ler uma pintura? Conheça os elementos de composição visual,
no qual se relacionam alguns aspectos formais utilizados no estudo e na compreensão de
obras pictóricas que podem ser relacionadas ao estilo, no link: https://www.youtube.com/
watch?v=PZUrfNkrFgI.

3 O VALOR DA OBRA: UMA QUESTÃO AXIOLÓGICA?


A que nos serve a análise de um texto literário? Para nós, leitores
comuns, o que esperar da crítica, da história e da teoria literatura senão que elas
estabeleçam parâmetros que nos ajudem a identificar qual conjunto de textos são
imprescindíveis à formação do leitor culto, autônomo e autodidata. Em outras
palavras, espera-se dos estudos literários que apontem o necessário valor do que
será lido, que corrijam os enganos e nos façam aceder às melhores obras, enfim,
que nos deem um “cânone”.

Ou ainda, se acrescentássemos perspectivas exteriores de análise das


obras no intuito de definir os textos historicamente importantes segundo
critérios objetivos, mesmo assim, nossa expectativa enquanto leitores não muda
e continuamos a desejar do crítico e do historiador uma mesma medida, qual
seja: o valor, a qualidade, a necessidade de saber como melhor consagrar o
tempo individual de leitura. “O público espera dos profissionais da literatura
que lhe digam quais são os bons livros e quais são os maus: que os julguem,
separem o joio do trigo, fixem o cânone. A função do crítico literário é, conforme a
etimologia, declarar: ‘acho que este livro é bom ou mau’” (COMPAGNON, 2012,
p. 221).

O Cânone, nesse sentido, tratar-se-ia de uma ferramenta de economia na


medida em que propõe, em meio a multiplicidade de obras e formas de leitura,
modelos de leitura e determinação dos textos a serem lidos, o que, em termos
educacionais, facilitaria o processo da formação social de determinada cultura.

Assim, atendendo a critérios qualitativos, poderia se recomendar, por


exemplo, a leitura de autores clássicos como Miguel de Cervantes, e não de
Paulo Coelho; de Guimarães Rosa..., ou, dizendo em outras palavras, o cânone
reduziria a multiplicidade dispersa de obras e modos de leitura ao estabelecer
especificidades de valor a partir das quais se aceitaria ou recusaria as obras
literárias.

45
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Dessa forma, o cânone opera alinhando a multiplicidade de obras e de


leituras na medida em que não apenas desfaz o relativismo do senso comum, mas
também por propor uma renovação constante, seja do rol de obras a serem objeto
de estudo, seja das formas de leitura que lhe são mais adequadas.

O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o conceito de


cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode
se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam
(e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de
acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura etc.)
(REIS, 1992, p. 73).

Ainda é possível aventar, a favor do cânone, que, ao visar a formação


integral dos cidadãos, ele não evita os textos difíceis, complexos, de reconhecida
riqueza fabular, confrontando os critérios de facilidade e massificação dos textos
eleitos por intenções mercadológicas. Nesse sentido, o cânone justificaria de
modo sensato os valores, positivos ou negativos, conferidos às obras literárias.

NOTA

O termo (do grego, “Kanon”, espécie de vara de medir) entrou para as línguas
românicas com o sentido de “norma” ou “lei”. Durante os primórdios da cristandade, teólogos
o utilizaram para selecionar aqueles autores e textos que mereciam ser preservados e, em
consequência, banir da Bíblia os que não se prestavam para disseminar as “verdades” que
deveriam ser incorporadas ao livro sagrado e pregadas aos seguidores da fé cristã.

FONTE: REIS, R. Cânon. In: JOBIM, J. L. (Org.). Palavras de crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992. p. 70.

Cânone. Em grego, o cânone era uma regra, um modelo, uma norma representada por
uma obra a ser imitada. Na igreja, o cânone foi a lista, mais ou menos longa, dos livros
reconhecidos como inspirados e dignos de autoridade. O cânone importou o modelo
teológico para a literatura no século XIX, época da ascensão dos nacionalismos, quando
os grandes escritores se tornaram os heróis do espírito das nações. Um cânone é, pois,
nacional (como uma história da literatura), ele promove os clássicos nacionais ao nível
dos gregos e dos latinos, compõe um firmamento diante do qual a questão da admiração
individual não se coloca mais: seus monumentos formam um patrimônio, uma memória
coletiva.

FONTE: COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2012. p. 222-223.

46
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Entretanto, há outros aspectos a considerar, pois os estudos literários,


independentemente das perspectivas de análise adotadas – se internas ou
externas –, podem estar marcados pelas preferências dos leitores que participam
da formação de tais cânones: “nos dias atuais, a instituição mais empenhada nesta
tarefa é a universidade (onde se ensina a ler as “grandes obras”, chancelando,
desta maneira, o cânon literário)” (REIS, 1992, p. 72).

Isso implica dizer que, embora a argumentação acadêmica busque


critérios objetivos de mensuração das obras, ainda assim algum dado subjetivo
pode interferir, quer se queira ou não, nas avaliações desses mesmos leitores
especializados: críticos, historiadores e teóricos da literatura, que selecionam,
julgam, recomendam ou rejeitam as obras que creem pertinentes à formação do
cânone.

Seria o caso de perguntar, então, quem articulou o cânon – de que


posição social falava, que interesses representava, qual seria seu
público alvo e qual a sua agenda política, qual o seu estatuto de classe,
de gênero ou étnico, por quais critérios norteou a sua eleição ou
rejeição de obras e autores (REIS, 1992, p. 73).

Nessa perspectiva diversa, falar do valor de uma obra significaria,


sobretudo, não apartá-la do contexto em que se vai julgá-la, ou seja, do quadro
sócio-histórico de onde se analisa e, especialmente, a quem ela se destina, o que
se pretende que o leitor venha a saber, e, assim, adotar formas de compreensão
para além da ideia de uma especificidade literária – cara aos métodos de análise
intrínsecos – e mais comprometidas com as práticas discursivas do cotidiano.

[Nesse sentido] passaríamos a enfocá-lo desde um ângulo funcional


– ou seja, dependendo da função que se lhe conceda. Um texto não
é literário porque possua atributos exclusivos que o distinguem de
outro texto, mas porque os leitores (entre eles incluídos os críticos),
por inúmeras razões, o veem como tal (REIS, 1992, p. 73).

Assim, ao buscarmos determinar o valor das obras a serem lidas, quando


recomendamos tal ou tal obra para compor o cânone literário, estaríamos, em
verdade, supondo o ideal de homem que desejamos formar, ou seja, que tivesse a
sensibilidade e o poder expressivo de Marcel Proust, Fiódor Dostoiévski, William
Shakespeare, Clarice Lispector, dentre tantos que, ao realizar a escrita deste livro
didático, nos acontece como um recorte espontâneo de nosso cânone pessoal.

Portanto, há de se considerar, em toda análise, o eixo horizontal do esquema


da comunicação de Roman Jakobson: emissor, mensagem e receptor, dentre os
quais a obra, enquanto mensagem, coloca-se como elemento intermediário, situado
entre os valores do autor-emissor do texto e do leitor-receptor contextualizado,
quase sempre guiados pelos valores dos leitores-receptores-críticos.

47
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

A noção de valor e a atribuição de sentido não são empresas separadas


do contexto cultural e político em que se produzem, não podendo, por
conseguinte, ser desconectadas de um quadro histórico. O significado
de qualquer juízo de valor sempre depende, dentre outras coisas,
do contexto em que for emitido e de sua relação com os potenciais
destinatários e a sua capacidade de afetá-los ou mesmo convencê-los
(REIS, 1992, p. 73).

Dessa forma, pensar o valor das obras implica não apenas a opção
particular por um dos métodos de análise – intrínseco ou extrínseco –, mas a
conjunção favorável das perspectivas que esses métodos venham a apresentar. A
razão disso é que a literatura, vista segundo um critério axiológico, enriquece-se
com o maior número possível de visões não excludentes na fixação do valor.

De fato, desde que o filósofo alemão Imannuel Kant (1993) observou, na


“Crítica da faculdade do Juízo”, que os juízos estéticos (as análises literárias,
por exemplo) são formas livres do juízo reflexivo, não sendo determinados com
precisão, ou seja, não são universais como o são os juízos determinantes (por
exemplo: dois mais dois é sempre quatro).

E
IMPORTANT

O filósofo Immanuel Kant nasceu na Prússia Oriental, atual Alemanha, em 1724.


Viveu uma vida modesta e devota ao luteranismo e vai para a Universidade de Königsberg,
em 1740. Ali, será livre-docente conferencista associado. Em 1770, assume a Cátedra de
Lógica e Metafísica na Universidade. Nesse momento, termina a chamada fase pré-crítica
Kantiana, na qual predomina a filosofia dogmática. Kant nada fez de célebre até 50 anos
de idade, quando tem início sua segunda fase, na qual produziu freneticamente. Ele era
metódico, sistemático e pontual. Precisamente às 15h30, ele saía para passear, sendo esse
um evento para regular os relógios na cidade. Na obra Crítica da razão pura (1781), Kant
busca formular maneiras para fazermos um bom uso do entendimento. Já em Crítica da
razão prática (1788), Kant formula as bases de sua filosofia moral [...]. O “juízo estético”, por
sua vez, somente seria possível para aqueles com a faculdade de julgar. Esses seriam os
únicos capazes de uma investigação crítica a respeito do conceito de “belo”.

FONTE: <https://www.todamateria.com.br/immanuel-kant/>. Acesso em: 17 out. 2019.

Assim, apesar de imprecisas, as análises literárias, enquanto formas de


juízos estéticos e reflexivos, têm a pretensão de universalidade, e é desse critério
de valor axiológico que a boa crítica pretende tratar.

Em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos


a ninguém ser de outra opinião, sem, com isso, fundarmos nosso juízo
sobre conceitos, mas somente sobre nosso sentimento; o qual, pois,
colocamos a fundamento, não como sentimento privado, mas como
um sentimento comunitário (KANT, 1993, p. 85).

48
TÓPICO 2 | ABORDAGENS A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA

Se está nos poderes da teoria da literatura discutir a multiplicidade de


vozes de leitura e de interpretação de uma obra literária, ainda cabe perguntar:
toda obra literária e toda forma de leitura é válida? A resposta clássica é negativa,
pois apenas as obras que compõem o cânone literário, ou seja, aquelas relacionadas
como dignas de serem estudadas devido a sua complexidade – Shakespeare,
Dostoievski, Albert Camus, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, dentre tantos – é
que podem dar a ver várias leituras teóricas consistentes. Assim, caberia à teoria
da literatura discutir, por vezes desfazer e refazer o cânone literário, ou seja, o rol
das obras necessárias em meio à multiplicidade das vozes discordantes.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O pensamento aristotélico acerca da arte desdobrou-se no que viria a ser a


análise interna das obras literárias, isso porque na Poética Aristóteles descreveu
as características específicas das obras (drama, epopeia e lírica) a despeito do
contexto exterior e do momento histórico de surgimento dessas obras na Grécia
Antiga.

• Essa forma descritiva de observar as obras, segundo suas configurações


internas, verteu-se, posteriormente, em modos de análise que permanecem
válidos na atualidade e que municiou várias correntes críticas, como: formalista,
linguística, semiológica, estruturalista, fenomenológica, temática e estilística
etc., que se reportam a tipologias modernas de análise literária.

• Dentre essas formas intrínsecas de abordagem, cabe destaque a análise estilística


em razão de o estilo ser um dos conceitos válido não apenas para o pensamento
especulativo-científico, mas também para o senso comum; consequentemente,
as características das análises estilísticas, embora complexas, são mais
facilmente comunicáveis, o que resulta em um efeito didático relevante e em
um ganho pedagógico evidente.

• Com essas formas descritivas de análise chega-se também à ideia comparativa


de valor, pois este decorreria das características próprias das obras literárias,
que, por seu turno, levaria à formação do conceito de cânone literário e, portanto,
da eleição de obras clássicas como modelos a serem imitadas e estudadas nos
currículos escolares.

• O cânone, de um ponto de vista axiológico, ou seja, ao julgar o valor das obras,


funciona como um instrumento educativo na medida em que, em meio à
multiplicidade de obras e de teorias, seleciona o que se considera esteticamente
melhor para determinados leitores em determinado contexto cultural, e,
embora ele possa sofrer modificações, ou seja, embora o cânone possa ser
desfeito, refeito etc., ele, ainda assim, serve como ferramenta culturalmente
estratégica na medida em que encurta o caminho dos leitores em direção às
obras mais relevantes de sua cultura.

50
AUTOATIVIDADE

1 A atualidade da teoria do texto é em muito tributária dos estudos barthesianos


sobre as narrativas literárias. O texto, para ele, é não apenas a consequência e
continuação da obra literária, mas em certa medida transcende o seu caráter
físico, material, libertando sua substância aprisionadora em proveito do
caráter livre da intertextualidade e da preferência nascida do olhar a cada
leitura. A partir dessa reflexão sobre o texto em Roland Barthes, é CORRETO
afirmar:

a) ( ) Que o texto, assim como a obra, deve ser entendido como um objeto
computável.
b) ( ) Que o texto, assim como a obra, é classificável e, portanto, respeita
limites e hierarquias.
c) ( ) Que o texto, ao contrário da obra, não se fecha em um sentido,
permanecendo mais no campo dos significantes do que do significado.
d) ( ) Que o texto, ao contrário da obra, não sendo plural, requer uma única
interpretação.

2 As formas de análise interna em literatura priorizam a descrição das


características das obras, segundo distintos enfoques que estejam nelas mais
ou menos presentes do que em outras, configurando uma tipologia diversa
de análise desde Aristóteles até os dias atuais, dentre as quais destacam-
se as modalidades formalista, linguística, semiológica, estruturalista,
fenomenológica, temática e estilística. Considerando essas informações,
associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Análise formalista
II- Análise linguística
III- Análise semiológica
IV- Análise estruturalista
V- Análise fenomenológica
VI- Análise temática
VII- Análise estilística

( ) Corrente de análise que salienta os elementos constituintes da palavra,


da sintaxe e dos enunciados, a partir dos postulados de Saussure, assim
como as funções comunicacionais de Jakobson, especialmente a função
poética.
( ) Corrente de análise que observa a literariedade de um texto enquanto
arranjo singular da linguagem.
( ) Corrente de análise que busca captar as regras estruturais do funcionamento
literário.
( ) Corrente de análise que observa o texto como um sistema de signos, para
além do signo exclusivamente linguístico.

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( ) Corrente de análise que prioriza a descrição da obra tal como ela aparece
à percepção, eliminando qualquer conceito anterior ao instante de leitura.
( ) Corrente de análise que reporta-se às várias formas de dizer uma
mensagem sobre conteúdos semelhantes.
( ) Corrente de análise que busca encontrar os fundamentos culturais das
obras e os motivos que condicionam o seu aparecimento.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – III – IV – V – VI – VII.
b) ( ) II – I – III – VII – V – VI – IV.
c) ( ) II – I – IV – III – V – VII – VI.
d) ( ) I – III – IV – II – V – VI – VII.

3 O valor de uma obra literária pode ser mensurado, de “dentro para fora”, em
comparação a outras obras e, esse sentido axiológico, pode levar a análise
ao conceito de texto clássico (que vale ser relido) em confronto com o texto
descartável, cuja finalidade parece repousar na fruição despretensiosa e no
valor mercadológico. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as sentenças falsas:

( ) A temática do valor remete ao conceito de cânone, ou seja, à eleição das


obras necessárias para uma compreensão simplista da realidade.
( ) Pensar a literatura a partir do conceito axiológico de valor leva a definir a
literariedade segundo critérios predominantemente estéticos.
( ) Por sua complexidade e valores dialógicos, compreende-se tradicionalmente
os clássicos como obras universais que constituem o bem da humanidade.
( ) Se o texto clássico é, por sua própria natureza, não redutível, então
podemos concordar com Gadamer, para quem o clássico seria “o que em
qualquer presente diz alguma coisa, como se o dissesse unicamente a si
mesmo“.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – F – V.
d) ( ) F – V – V – V.

4 (ENADE, 2014) Talvez o maior lugar-comum da crítica literária no Brasil,


hoje, seja de que o texto é múltiplo. Simples assim: a multiplicidade como
algo quase dado, uma característica praticamente priori das obras, que a
interpretação só precisaria atestar ou confirmar. Justamente por ser um
lugar-comum, a crença em uma multiplicidade essencial ou ontológica
da literatura não precisa ser ferrenhamente defendida; pelo contrário, ela
funciona melhor quando permanece como uma espécie de pressuposto
de fundo, frequentemente não declarado, do processo interpretativo. A
crença na multiplicidade está presente em todas essas frases, que parecem
não precisar de explicação: “esta obra presta-se a infinitas leituras”; “são

52
inúmeros os sentidos”; “há uma pluralidade de vozes”; ou até mesmo no
nefasto “cada um tem a sua interpretação”. Trata-se, aqui, na realidade,
de um barateamento brutal da ideia de diferença, que, se, por um lado,
está em consonância com tendências culturais e sociais mais amplas, por
outro, gera consequências bem determinadas para a prática da crítica no
âmbito das Letras e das Ciências Humanas [...]. A poética da multiplicidade
encontra sua forma mais apurada na aplicação de teorias. Como tudo
é plural, como todo antagonismo foi suprimido (fora [...] o antagonismo
contra o antagonismo, ou antibinarismo binário), qualquer texto pode ser
lido segundo qualquer teoria. Como tudo é dialógico, não importa se você
usa Badiou, Barthes, Bataille, Baudrillard, Bhabha, Bourdieu ou Butler
(para ficar só no “B”), para o drama renascentista, a épica do século 17, ou
o verso livre do 20. No fundo, o verbo “usar” já diz tudo, porque esse tipo
de relação entre literatura e teoria é essencialmente utilitário. Determinados
autores, como Bakhtin e Benjamin, são tão explorados, são inseridos em
debates absolutamente díspares, que vale a pena perguntar se ainda faz
algum sentido mencionar seus nomes. E é um fenômeno curioso que,
se, por um lado, a crítica da multiplicidade vem questionando o cânone
literário, desafiando seu fechamento e reivindicando a inserção de novas
vozes, por outro, a teoria vem testemunhando a formação de um cânone
próprio, um rol de autores que se tornaram referência obrigatória (inclusive
para as novas vozes), cujos conceitos podem, sim, ser problematizados, mas
não sua posição a priori como grandes nomes.

FONTE: <https://revistacult.uol.com.br/home/tag/online/>. Acesso em: 17 ago. 2014.

Sobre a poética da multiplicidade, avalie as afirmações a seguir:


I- A multiplicidade é uma característica só recentemente incorporada pelo
texto literário.
II- Há um confronto e, no mesmo momento, um restabelecimento do cânone
literário.
III- Uma determinada teoria é capaz de abarcar todas as possibilidades de um
texto literário.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) II, apenas.
c) ( ) I e III, apenas.
d) ( ) II e III, apenas.
e) ( ) I, II e III.

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54
UNIDADE 1
TÓPICO 3

ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, na terceira etapa de nossa viagem, buscaremos
demonstrar a relevância das abordagens exteriores aos textos, destacando a
estreita correlação que se estabelece entre o texto literário e o contexto social
no qual ele surge ou no qual ele é lido: “por história literária compreendo um
discurso que insiste nos fatores exteriores à experiência de leitura [...]. Às vezes,
opõem-se crítica e história literárias como um procedimento intrínseco e um
procedimento extrínseco: a crítica lida com o texto, a história com o contexto”
(COMPAGNON, 2012, p. 21).

Ora, essas abordagens distintas de teorizar a literatura não desmentem


umas às outras, senão que revelam diferentes modos de lidar com os textos
literários, expandindo seus sentidos potenciais, seja de dentro para fora,
como vimos no Tópico 2; seja de fora para dentro, como veremos no tópico
presente.

2 A LITERATURA SEGUNDO UM OLHAR EXTRÍNSECO


De modo distinto às análises que partem dos dados internos das obras,
as abordagens literárias exteriores sustentam que, enquanto forma de arte, a
literatura jamais se desprende do contexto sócio-histórico que a determina e,
dessa forma, o seu conceito pode variar conforme se transforme o horizonte de
expectativas tanto dos autores quanto dos leitores.

Decorre daí que uma obra considerada de valor na atualidade pode perder
esse mesmo valor na geração seguinte ou nas posteriores. Exceção para o texto
clássico, que, embora seus parâmetros sejam discutíveis, parece manter um certo
grau de valor alheio ao tempo transcorrido, o que tem gerado controvérsias para
determinadas correntes críticas para as quais não haveria um valor a priori inerente
à obra – o clássico, o cânone – que fosse independente do contexto de leitura.

Os textos não podem ser dissociados de certa configuração ideológica,


na proporção em que o que é dito depende de quem fala no texto e
de sua inscrição social e histórica [...]. O critério para se questionar
um texto literário não pode se descurar do fato de que, numa dada
circunstância histórica, indivíduos dotados de poder atribuíram
o estatuto de literário àquele texto (e não a outros), canonizando-o
(REIS, 1992, p. 69).

55
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Para as teorias que se valem de elementos exteriores aos textos, acredita-


se na existência de modos de ver que, embora advindos de “fora para dentro”,
também influenciam o valor das obras, pois, para tais abordagens os pontos de
vista e as perspectivas de valor surgem das relações, muitas vezes contraditórias,
entre os discursos que proferimos e os acontecimentos históricos.

Se assim for, deve haver entre a linguagem e a realidade um divórcio de


princípio, como se uma onda nebulosa pairasse sobre o que vemos, transformando
a realidade que experimentamos menos em uma verdade incontestável do que
em um acordo momentâneo, ou seja, em um consenso sobre determinado fato
vivido em certo contexto histórico.

Os outros, para nós, não são somente o que deles vimos com nossos
próprios olhos, mas tudo aquilo que eles nos contaram a seu respeito,
ou aquilo que outros nos disseram deles; não são somente aqueles
que vimos, mas também todos aqueles de quem nos falaram. Isto não
é verdadeiro somente com relação aos homens, mas com relação às
próprias coisas, aos lugares, por exemplo, onde não estive, mas que
me descreveram (BUTOR, 1974, p. 9) .

Nessa perspectiva, o texto passa a ser visto como relação entre um autor
– ser histórico, ideológico – que emite uma mensagem a um leitor – também
ser histórico, ideológico –, que interagem não como elementos passivos de um
esquema comunicacional, mas com pontos de vista distintos, conquanto as
mensagens são negociadas e compromissadas a partir de discursos culturais, por
exemplo, o histórico, o científico, as especulações filosóficas e religiosas, ou até
mesmo o dogmatismo do senso comum.

O texto passa, assim, a ser entendido como lugar de interseção de


uma complexa teia de códigos culturais, de convenções e de outros
textos (explicitamente aludidos ou não), numa espécie de “mosaico
de citações” (Kristeva). Lemos sempre por transparência, pois lemos
outros textos num texto. O espaço da leitura é a cultura entendida,
esta como conjunto de textos – contexto – de diversa natureza, como
dimensão simbólica que superpomos à realidade e que funciona modo
mediação nas nossas interações com o real (REIS, 1992, p. 69).

De fato, basta utilizarmos a palavra para nos reportarmos a algum


acontecimento para que esse mesmo acontecimento já apareça ligado a um
ponto de vista que pode não coincidir necessariamente com o nosso, tampouco
com os de nossos destinatários, ou, o que pareceria ainda mais grave, chegar a
desvincular-se quase completamente do fato ocorrido em proveito de um olhar
mais aceitável, geralmente sedimentado pela cultura e, por esse mesmo motivo,
enraizado em nossa própria linguagem.

[a palavra] é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos


nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar as pessoas.
As palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas
[...]. Cada um está cônscio de que existem certas coisas em si que
não estaria absolutamente disposto a contar a outras pessoas ou que
consideraria inteiramente fora de cogitação revelar. São elas suas
‘intimidades’ (FREUD, 1996, p. 214).
56
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Assim, quando refletimos acerca de nossas experiências cotidianas – sejam


elas vividas, apenas observadas, ou ainda, para além de nossa existência imediata,
aquelas que nos parecem mais secretas, que ocultamos a todo custo, como as
do desejo inconfessado, de certos sonhos, da imaginação etc. – e procurarmos
comunicar essas mesmas experiências, não raro deparamo-nos com uma certa
dificuldade em saber se conseguimos efetivamente retratá-las.

Não sabemos se, ao serem transfiguradas pela linguagem, reconheceríamos


os fatos experimentados por trás dos nossos discursos, e se há tal discordância entre
fala/discurso/linguagem e experiência/vida/mundo é porque tal discordância
se deve a que o real, embora aparente ser o que há de mais familiar em nossa
existência, não é algo que compreendemos com facilidade ou que possamos
comunicar com clareza.

Este é um fenômeno que ultrapassa consideravelmente o domínio da


literatura; ele é um dos constituintes essenciais de nossa apreensão
da realidade [...]. Esta narrativa na qual estamos mergulhados toma
as mais variadas formas, desde a tradição familiar, as informações
que se transmite à mesa acerca do que se fez durante a manhã, até a
informação jornalística ou a obra histórica. Cada uma dessas formas
nos liga a um setor particular da realidade (BUTOR, 1974, p. 9).

Destarte, esse aparente divórcio entre a experiência vivida e essa
mesma experiência quando nos é dada por meio da linguagem, seja quando é
despretensiosamente relatada em uma conversa familiar, seja quando é descrita
com finalidades formais, ou ainda quando passa a ser elaborada de modo mais
sofisticado através de narrativas institucionais, filosóficas, literárias etc.; em todas
elas aparecem modos de representação que menos se prendem à veracidade
dos fatos do que às escolhas ideológicas, contextuais e históricas dos elementos
comunicacionais envolvidos.

O fato não preexiste a sua dimensão textual, de linguagem, de discurso;


não temos acesso ao mundo “real” a não ser a partir das representações
construídas sobre o mundo, as quais, por sua vez, são versões sobre os
eventos. Todo documento é uma versão, uma interpretação do que
“realmente ocorreu”, da história “verdadeira”, esta inapreensível em
termos de origem (REIS, 1992, p. 70).

Assim, a partir das relações que os textos estabelecem com a realidade


vivida, podemos pensar o real enquanto abertura a discursos variados. Nesse
sentido, o real histórico passa pelo crivo objetivo dos discursos estabelecidos,
geralmente, de modo consensual por uma determinada comunidade, que deve
baseá-los ora em índices materiais, ora em provas documentais da existência
desses mesmos fatos.

Se eventos assim ocorrem é porque os fatos vividos – que podem ser


compreendidos segundo diversas perspectivas, dentre as quais o prisma histórico
– estão sempre atravessados por discursos ou narrativas incapazes de tocar as
coisas em estado “puro”, ou, o que quer dizer o mesmo, tudo o que se vê, ouve,
ou que se vive já vem marcado por um olhar anterior, incrustrado na linguagem.
57
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos a você


assistir ao vídeo Brasil Século XXI – Cultura, Produção, Representação simbólica da
Sociedade – Antônio Candido, palestra do celebrado professor Antônio Candido, que
resenhou a literatura brasileira segundo uma leitura sociológica da arte, estabelecendo
nexos profundos entre literatura e sociedade, disponível no link: https://www.youtube.com/
watch?v=Z0M9A7Bzebc.

Entretanto, se nos modos de representação do real se atesta


incompatibilidades entre o fato experimentado e a relato desse mesmo fato, pode-
se ver aí – nesse lapso de continuidade, nessa fratura entre o gesto e sua figuração
através da linguagem – não uma erro de representação, mas, ao contrário, a
possibilidade de uma riqueza interpretativa, de diversos ângulos de chegada ao
que se chama de realidade.

Ademais, tal diversidade, quando assentada em pontos de vista exteriores


às obras, pleiteia a formação de parâmetros históricos e ideológicos que, ao serem
pensados sobre o eixo da diacronia, relativizam a ideia consagrada de cânone
literário como medida colocada acima do gosto e da existência concreta dos
discursos teóricos e críticos. Portanto, faz-se necessário observar o evento literário
também segundo um olhar diacrônico (através do tempo), que alguns teóricos de
renome e expressão vieram a consagrar.

3 HISTÓRIA DA LITERATURA E O EIXO DIACRÔNICO


Somente o enforcado, no momento da execução, se dá conta
do que significa cordas e madeira (BENJAMIN, 1984, p. 80).

Uma das críticas às teorias de análise interna é que elas fazem a descrição
dos dados inerentes aos textos à margem do contexto em que eles surgem ou
que são lidos. Assim, dizendo-se fiéis às obras por descrevê-las “de dentro”, tais
abordagens desmereciam a história da literatura ao postularem uma arte mais
relacionada a si mesma, como se as formas literárias pudessem pairar aquém ou
além do homem e do seu tempo.

O signo poético não se faz por si mesmo, mas em diálogo com a história,
fato que, na contramão das perspectivas internas de análise, pode revelar faces
ocultas da existência, ainda que a história literária se dê a ver não como poesia
pura, mas sob a face de uma arte e de uma literatura por vezes em ruínas, tal
como se observa na Figura 6 – Angelus Novus –, do pintor modernista Paul Klee.

58
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um


anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para
o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína
e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso
e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-
las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual
ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1987, p.
226).

FIGURA 6 – ANGELUS NOVUS (PAUL KLEE, 1920)

FONTE: <https://www.culturamas.es/wp-content/uploads/2012/04/angelusnovus1920.jpg>.
Acesso em: 17 out. 2019.

Não é à toa que, em Experiência e pobreza, Walter Benjamin (1987) sustenta


que as narrativas, em sua origem, associavam-se à transmissão de valores morais
experimentados pelos narradores, o que pressupunha que aquele que tivesse
novas experiências consequentemente se enriqueceria com elas. Entretanto,
com o advento das guerras, o soldado não retornava deslumbrado, mas louco,
destroçado, empobrecido de experiência, testemunha de um mundo de barbárie
que nada lhe acrescia, que, portanto, não sabia contar, que não cabia em qualquer
forma de narrativa.

59
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Destarte, as formas de narrativa ficcionais não podem se desprender da


referência ao mundo concreto, o que implica em dizer que o real, quando visto
a partir de uma ótica histórica, arma-se através de um discurso que dele não
se aparta, até porque a linguagem poética (o lirismo, “a poesia do instante”) é
um valor impregnado à realidade, permanecendo no mundo, nas pessoas e
nas paisagens, ainda que, como em “Angelus Novus”, permaneça um mundo
arruinado, não propriamente edificante.

NOTA

Walter Benjamin é um teórico crítico judeu-alemão, que discutia as relações


entre arte, sociedade e tecnologia na segunda metade do século XX. Benjamin previu as
relações entre arte e tecnologia que vivemos na atualidade, sustentando uma visão positiva
da tecnologia como fator educativo na medida em que ela poderia facilitar o acesso às
obras de arte, geralmente restrito a grupos seletos de intelectuais ou de especialistas.

De modo geral, quando um texto não emociona, isto é, quando não é


capaz de provocar algo como a catarse aristotélica, é porque o autor, segundo
uma visão teórica extraliterária, não soube se posicionar adequadamente no
processo histórico em que estava inserido para, a partir dele, captar os elementos
humanos concretos em sua narrativa. A necessidade de incorporar elementos
extraliterários à fatura poética atestam que o dado histórico é um dos elementos
inerentes à própria poeticidade.

É nesse sentido, por captar o universal no que é particular, que a literatura


é mais perene do que os seres reais, pois embora com eles dialogue, cada um de
nós, seres históricos, nascemos e morremos, entretanto os personagens ficcionais –
chapeuzinho vermelho, Dom Quixote, Capitu, Batman etc. – são eternos: uma vez
nascidos jamais morrem e se renovam a cada geração de leitores, que incorporam
a esses personagens valores humanos próprios a cada contexto histórico.

Com isso, não se quer dizer que a literatura é filha da história, que seja
dela uma face menor, mas, ao contrário, que o fazer literário, embora não tenha
compromisso direto com o fato histórico ou documental, amplia esse mesmo fato
ao retirá-lo de uma ótica particular, nela mostrando sua face universal.

O historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso


ou prosa; caso as obras de Heródoto fossem postas em metros, não
deixaria de ser história; a diferença é que um relata os acontecimentos
que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam
suceder. E é por isso que a poesia contém mais filosofia e circunspecção
do que história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a
segunda cuida do particular (ARISTÓTELES, 1977 apud PAZ, 1991, p.
16).

60
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Assim, dada a importância das diversas perspectivas históricas da


literatura, cabe ressaltar que elas se dão no eixo comparativo da diacronia, ou
seja, que ao se pretender analisar textos literários de “fora para dentro” passa-se a
comparar cada texto novo com à série histórica em que ele está inserido, e, apenas
nesse sentido, a abordagem diacrônica e histórica aproxima-se da abordagem
sincrônica e interna, visto que ambas estão mediadas pelo critério da comparação.

Dessa forma, enquanto a referência canônica do valor literário sustenta-se


no eixo da sincronia, ou seja, na comparação entre um série de obras independente
do contexto em que estejam vinculadas; por outro lado, a referência da história
literária sustenta-se no eixo da diacronia, isto é, levando em consideração não
propriamente a singularidade dessa ou daquela obra, mas a relação delas com a
série histórica que representa cada instante de uma cultura.

É, justamente, um ângulo comparativo. Trata-se de observar as opções


que animam qualquer discurso sobre a literatura, qualquer estudo
literário a respeito das relações dos textos entre si, do ponto de vista
da história literária e do valor literário. Qualquer comentário sobre
um texto literário toma partido em relação ao que seja a história da
literatura e ao que seja o valor em literatura (COMPAGNON, 2012, p.
194, grifo do original).

Tratar-se-ia, portanto, de observar as relações dos textos entre si e como


eles se movem e se transformam no eixo temporal, que faz da história literária
um modo de análise e interpretação complementar àquelas que observam o fazer
literário desde um ponto de vista evolutivo – que pensam cada obra como forma
de resposta às interrogações e enigmas de obras anteriores atestando um possível
progresso literário.

Segundo o prisma histórico, a literatura não evolui senão em consonância


com a evolução do próprio homem. Assim, tal qual o ser social que a constrói, ela
pode atestar tanto valores evolutivos quanto decadentes, como o comprova, no
período das grandes guerras europeias, o surgimento de tendências literárias de
textura formal rica, todavia marcadas pelo declínio de valores civilizatórios, cujo
obscurantismo expressa o absurdo do mundo pós-guerra.

Toda literatura está perto da realidade, pois se nutre dela. Desse


modo, o relato do escritor quer dar um depoimento da realidade
contemporânea, do prisma de quem faz a história. A História, que é a
síntese dos relatos de histórias, sejam elas ‘oficiais’, sem elas ‘paralelas’.
O romance, sem dúvida, oferece uma contribuição literária para a
compreensão da subjetividade e condição histórica contemporânea
(VASCONCELOS, 2013, p. 108).

61
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

3.1 CORRENTES DE ANÁLISE EXTERNA DOS TEXTOS


LITERÁRIOS
Caro acadêmico, de modo diverso às abordagens que analisam os textos
literários a partir da descrição de suas características internas – que vimos no
Tópico 2 –, outro campo metodológico se abre a partir das análises exteriores
– mais conhecidas como análises extrínsecas, de “fora para dentro” – que
municiam a crítica de elementos contextuais e de evolução literária possibilitando
compreender o quanto cada obra, enquanto artefato ideológico, é “filha de sua
época”.

Um soneto não é um poema, mas uma forma literária, exceto quando


esse mecanismo retórico – estrofes, metros e rimas – foi tocado pela
poesia. Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro lado, há
poesias sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos:
são poesia sem ser poemas (PAZ, 1991, p. 16).

Assim, a partir das relações de representação dos discursos histórico


e literário, é possível observar como, entre os textos e os fatos concretos aos
quais eles se vinculam – que ademais determinam modos de apreensão e de
representação da realidade – podem presidir pontos de vista distintos, dentre
os quais as vertentes sociológica, psicológica e arquetípica perfazem um recorte
histórico das análises modernas.

A análise sociológica, por exemplo, ao compreender o autor como


determinado pelo momento histórico e ideológico de sua época, supõe que o
autor falhado, ou seja, aquele que não encontra a forma literária capaz de adequar
e revelar em profundidade o mundo, menos se reporta a uma possível falta de
técnica ou de leitura individual, do que a sua desconexão com o grupo social a
que pertence.

E
IMPORTANT

Ao buscar inserir as obras literárias em contextos socioculturais, a análise


sociológica observa a interação entre o escritor e a sociedade segundo quatro fatores, a
saber:

• O escritor-emissor é um ser socializado, que sente e vive os problemas humanos


(políticos, sociais, religiosos, éticos) de seu grupo.
• O código: refere-se à língua de que se serve o escritor, que não é um fator individual,
mas institucional, coletivo, cuja função primordial é prática e comunicativa, e não
artística, pois mesmo que o escritor use a linguagem de um modo particular, mesmo
assim esse uso subordina-se às leis maiores do sistema língua.

62
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

• A mensagem: que equivale ao texto produzido, embora surja de uma individualidade


poética, está determinada pelas convenções e pelos gêneros literários de cada
época, que são criados pela sociedade, e mesmo os textos contestadores se realizam
ideologicamente em contraste com os textos precedentes.
• O leitor-destinatário: apesar de ser previsto virtualmente pelo escritor, em geral
participa de uma realidade social semelhante, embora a obra possa ser redimensionada
por outras gerações não de todo previstas pela intencionalidade autoral, que aponta para
a polissemia literária como uma de suas qualidades em literatura.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo:


Ática, 2006. p. 35.

Para essa corrente de análise, por conseguinte, a literatura autêntica não se


faz entre as quatro paredes de um gabinete, no qual o autor esgrimisse palavras
e frases até achar aquelas mais adequadas; mas, ao contrário, quando a literatura
consegue verdadeiramente dizer algo relevante – como em Dostoiéviski, Proust,
Machado de Assis etc. – é quando ela surge de um processo histórico de adesão
do escritor à estrutura social que pertence, e que preenche de tensão e concretude
a sua escrita.

Considera o fator social não apenas como matéria de que se serviria o


artista, mas também e especialmente como um agente de estrutura e,
então, como uma determinante do valor estético. Visto dessa maneira,
o fator social deixa de ser um fator puramente externo para tornar-se
interno, e a crítica sociológica torna-se uma crítica estética (D’ONOFRIO,
2006, p. 36, grifo do original).

Nesse sentido, a eficácia das personagens machadianas, por exemplo,


dever-se-ia ao fato sociológico delas não mimetizarem pessoas reais, mas
sim estruturas de grupos sociais, políticos e históricos. Assim, a tão discutida
personagem Capitu, de Dom Casmurro, não imitaria uma pessoa semelhante a
personagem, senão que daria a ver a estrutura sócio-política da condição feminina
no Brasil do século XIX, na qual as mulheres ascendiam socialmente apenas por
herança ou casamento.

DICAS

Sugerimos a você a releitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis, texto


canônico da literatura brasileira, no qual estão descritas as forças sociais do Brasil do século
XIX. Ademais, recomendamos comparar a personagem da época à mulher moderna de
modo a perceber as semelhanças estruturais entre personagem e tipo social, tal como se lê
no artigo Capitu e o retrato da mulher moderna, disponível no link: http://obviousmag.org/
asas_e_segredos/2016/capitu-e-o-retrato-da-mulher-moderna.html.

63
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Não apenas a análise sociológica, mas também a análise psicológica


pensa as estruturas literárias semelhantes às estruturas sociais, visto que as
formas literárias espelham conteúdos da vida, sejam grupais para as perspectivas
sociológicas, sejam individuais para as perspectivas psicológicas, que, nesse caso,
o fazem a partir de determinações inconscientes que atuam no plano individual.

Assim, o inconsciente coletivo, que se expressa na psicologia individual


do escritor, prepara transformações comuns a ele e a vários indivíduos, já que
a personalidade do autor se revela, desde tempos remotos, como a de alguém
dotado de uma psique especial:

É muito antiga a concepção de arte como fruto de uma personalidade


psiquicamente excepcional. Platão concebe o poeta como um indivíduo
temporaneamente possesso pela divindade: ele só pode criar nos
momentos em que está inspirado pelos deuses. Apesar da concepção
antitética de Aristóteles, que considera o poeta como um ser lúcido, no
pleno gozo de suas faculdades intelectuais, um artífice que estrutura
livre e conscientemente o material poético, a teoria platônica da
inspiração artística com dom divino impregna as concepções sobre a
criação literária da cultura ocidental (D’ONOFRIO, 2006, p. 36, grifo
do original).

Como se vê, tratando-se de compreender a personalidade no plano literário,


duas tendências atravessaram os séculos: a tendência platônica de considerar o
autor como um ser inspirado, e a tendência aristotélica de considerá-lo como uma
artífice da palavra. Essas tendências permaneceram como valores constantes nas
análises de cunho psicológico até que o surgimento da psicanálise, formulada
por Sigmund Freud (1987) no começo do século XX, trouxe a discussão para as
configurações neuróticas da psique humana.

Nessa concepção atual, o poeta aparece como indivíduo inadaptado ao seu


meio, que, não podendo realizar os seus desejos, sublima-os, isto é, transfigura
esses desejos em outras linguagens, transformando-os em obras literárias. São
consagradas as análises de personalidades de autores, como a de Leonardo da
Vinci, Moisés etc., realizadas por Freud a partir de dados biográficos, cartas e
documentos dos autores por ele estudados.

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos a você


assistir ao vídeo Freud e Breuer: o início da psicanálise, no qual o professor Christian Dunker
resenha sobre o surgimento da Psicanálise, estabelecendo relações com os saberes míticos
presente na arte e na literatura, no link: https://www.youtube.com/watch?v=IBISqHY-9pY.

64
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

A validade das abordagens psicológicas se reporta a uma mudança de


procedimento de análise, também comum às abordagens sociológicas, quando
passou a aplicar os princípios e fundamentos dessas vertentes não mais à esfera
autoral, mas sim ao texto, aplicando-as no estudo e determinação do caráter dos
personagens e dos contextos grupais das classes e esferas sociais que estão nas
obras inseridos.

A análise arquetípica, por sua vez, considera a crítica como uma forma de
pensamento não apenas distinto da arte, mas autônomo em relação a ela. Ela
parte de uma ideia de conjunto que se inserem tanto os textos literários, quanto os
textos críticos. Assim, se os textos literários não são entidades em si mesmas, mas
respostas ou reiterações de convenções de gênero, de formas literárias etc., então
a crítica não se debruçaria apenas sobre o objeto em si, mas sobre a complexa
origem motriz dos textos.

Podemos distinguir, do ponto de vista diacrônico, três fases,


correspondentes aos arquétipos da vida: nascimento, maturidade e
morte ou transformação. Quando um gênero literário chega ao seu
apogeu ele é canonizado, proposto como modelo digno de ser imitado,
torna-se um “clássico” na acepção etimológica do termo. Daí, pelas
constantes imitações, pelas sucessivas reproduções, cria automatismos
e estereótipos, sofre um desgaste que, privando-o de sua força criadora,
leva-o paulatina e inelutavelmente para a etapa final de sua vida, que é
o desaparecimento ou a mudança de funções ou a transformação num
novo gênero ou numa nova forma literária (D’ONOFRIO, 1990, p. 15).

Essa origem arquetípica, presente na formulação de cada texto, revelar-


se-ia através de analogias entre mitos, como os das estações do ano (primavera,
verão, outono e inverno), ou com os gêneros literários, ao observar a característica
rítmica de repetição enquanto epos, o ritmo de continuidade enquanto prosa, o
ritmo de associação enquanto lírica, e o ritmo de decoro enquanto drama.

Essas fases distintas foram levantadas pelo principal expoente dessa


vertente de análise literária, Northrop Frye, para quem a análise arquetípica daria
a ver quatro tipos distintos de crítica:

a) crítica histórica: teoria dos modos (trágico, cômico e temático);


b) crítica etológica: teoria dos símbolos (fase literal, formal, mítica e
anagógica); c) crítica arquetípica: teoria dos mitos (mito de primavera
= comédia; do verão = estória romanesca; do outono = tragédia; do
inverno = ironia e sátira); d) crítica retórica: teoria dos gêneros (epos,
prosa, drama, lírica) (D’ONOFRIO, 2006, p. 39, grifo do original).

65
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo à crítica arquetípica,


sugerimos a você assistir ao vídeo O conceito de arquétipo pela psicologia de Carl Yung,
que faz uma introdução ao conceito de inconsciente coletivo, que está raiz não só do
pensamento crítico de Northrop Frye, como também da crítica temática de Gaston
Bachelard, que abordamos na primeira unidade do presente livro, disponível no link: https://
www.youtube.com/watch?v=9D9aih12fYM.

4 A OBRA ABERTA E AS FORMAS DE RECEPÇÃO


Das relações entre a crítica literária e o real, coube-nos destacar as formas
objetivas de análise, que, a partir de fundamentação teórica específica, interpõem-
se contra o achismo (eu acho isso, eu acho aquilo) do senso comum. Esses modos
de análise muitas vezes se comportam como um pêndulo, ora acentuando as
características internas dos textos, ora situando-os no eixo comparativo da
diacronia, aditando-lhes uma perspectiva histórica.

A ambivalência do poema não decorre da história, entendida


como realidade unitária e total que engloba todas as obras, mas é
consequência da natureza dual do poema: [...] transmutação do tempo
histórico em arquetípico e encarnação desse arquétipo num agora
determinado e histórico [...]. O poeta não escapa à história, inclusive
quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais
se transformam em palavras sociais, históricas (PAZ, 1991, p. 229-230).

Nesse sentido, uma das contribuições mais relevantes das análises


extrínsecas é de terem demonstrado a natureza convencional do cânone literário,
que, em princípio, partia das observações dos grandes escritores. Bem ao contrário,
a observação histórica da literatura centrou no texto, e não no autor, o foco das
análises que definem o valor literário a despeito da intencionalidade autoral.

Dessa forma, não seriam “escritores clássicos”, como Clarice Lispector e


Fernando Sabino, a nos dizer quais autores comporiam o cânone – Guimarães
Rosa, no caso em questão –, mas a massa de teóricos, historiadores e críticos que
refletiriam sobre os aspectos objetivos das obras, para em seguida recomendar tal
ou tal autor como clássico.

Essa mudança radical – da ênfase no autor para a ênfase no texto –


municiou uma das principais críticas à ideia de pureza do cânone literário e dos
textos conhecidos como clássicos.

66
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Importaria considerar o locus institucional em que se efetiva o juízo de


valor, que seleciona/descarta as obras do cânon, tais como a escola ou
a universidade. A instituição legitima a autoridade do juiz que decreta
o veredito. Autoridade (e autor) está etimologicamente engatada ao
latim autor, termo que, na Idade Média, designava o escritor cujas
palavras impunham respeito e credibilidade (REIS, 1992, p. 73, grifo
do original).

Assim, a partir da observação do cunho ideológico das ideias consagradas,


reveladas pelas abordagens exteriores, o valor das obras não estaria propriamente
determinado por um discurso intrínseco às mensagens literárias, mas pelos
discursos ideologicamente realizados sobre as obras e a elas posteriores.

É o crítico quem passa a exercer a autoridade sobre o sentido, a


estrutura, as relações internas do artefato literário e, através do
exercício profissional, a disseminar as interpretações que lhe convém
para leitores e alunos. Sem o autor para reivindicar a sua interpretação
e a integridade semântica de sua obra, o crítico está liberado para
direcionar a exegese de acordo com suas premissas e propósitos, sejam
eles conscientes ou não (REIS, 1992, p. 75).

Esse deslocamento do autor para o texto conferiu ao discurso crítico um


lugar especial na medida em que passou não apenas a eleger, mas também a
corrigir, no cânone fixado, qual obra deveria entrar ou sair. A título de exemplo,
observe o quanto seria questionável, nos exames vestibulares, a permanência de
autores, datados historicamente, como José de Alencar, em detrimento das escritas
complexas e inovadoras de Osman Lins, Raduan Nassar etc. Esses autores, pouco
conhecidos devido a um critério defasado de formação do cânone nacional, são,
segundo critérios como riqueza vocabular, reflexão temática arrojada e arranjos
com a linguagem, mais complexos e expressivos do que as obras, reiteradas em
vestibulares, do escritor romântico brasileiro.

DICAS

Caro acadêmico, como forma complementar de estudo, sugerimos a


você assistir alguns vídeos sobre escritores brasileiros que, estando em parte fora das
obras estudadas em exames vestibulares, são pouco conhecidos, apesar da qualidade
inquestionável de suas obras. Sobre Raduan Nassar, sugerimos Tv Cult - Encontro com
Raduan Nassar e, sobre Osman Lins, De cada limitação, um aprendizado: o Brasil aos
olhos de Osman Lins, conferir, respectivamente, nos endereços: https://www.youtube.
com/watch?v=x0X-rFgIQNA e https://www.youtube.com/watch?v=yGXL2AK3G7E.

67
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Eis, portanto, um exemplo de indicação de um pequeno discurso crítico –


o que realizamos nos dois parágrafos anteriores – que discute o cânone literário
brasileiro, isto é, quais obras devem ser estudadas, quais devem ser deixadas de
lado, a partir do olhar de um analista, não de um escritor reconhecido – já que
não sou escritor consagrado de literatura, mas um acadêmico formado em Teoria
Literária por uma instituição de ensino superior.

Antes, entretanto, tínhamos uma ideia contrária: o bom crítico seria não
apenas aquele que avalia a obra de outros escritores propondo-lhes um lugar
no cânone, mas aquele que seria ele próprio um escritor canônico ou próximo a
isso. Essa ideia, embora o enfoque atual tenha se deslocado do autor para o texto,
permanece intuitivamente no senso comum e em algumas correntes críticas.

Levava-se em consideração a recepção, não sob a forma de leitura, mas,


ao contrário, sob a forma de uma obra que dava origem à escritura de
outras obras. Os leitores, na maioria das vezes, só eram levados em
consideração, quando se tornavam outros autores, através da noção
de “destino de um escritor”, um destino essencialmente literário
(COMPAGNON, 2012, p. 144).

Se não é mais assim, se o autor cedeu o seu condão ao analista de textos,


quer isso dizer que o crítico, ao dizer o que ler e o que não ler, tornou-se uma
entidade tão forte e, por vezes, similar ao escritor? Se o escritor revela o mundo
em sua obra, na obra do crítico revelar-se-ia uma obra mais complexa, já que
o discurso crítico discutiria o mundo e também o escritor através da obra do
próprio escritor? Seria o crítico, enfim, um escritor duplo, superior ao próprio
autor literário?

Não há fundamento para tal tese, pois o que se postula é que mesmo
que a obra original tenha previsto, por seu autor, um leitor ideal, a quem o
autor propunha um horizonte de leitura, ainda assim essa obra se dá de forma
“aberta” aos olhares de várias épocas que a atravessarão segundo um roteiro a ser
preenchido pelos diversos contextos sócio-históricos de leitura.

Ela deve inevitavelmente ser de caráter virtual, pois ela não pode
reduzir-se nem à realidade do texto nem à subjetividade do leitor, e é
dessa virtualidade que ela deriva seu dinamismo. Como o leitor passa
por diversos pontos de vista oferecidos pelo texto e relaciona suas
visões e esquemas, ele põe a obra em movimento, e se põe ele próprio
em movimento (ISER, 1985, p. 9).

Dessa forma, não deve haver preponderância de um ponto de vista sobre


o outro, mas sim observação dos dados contributivos de cada instância do tripé
literário autor-texto-leitor. Se o âmbito autoral e o âmbito textual conduzem-nos
a reflexões objetivas e formais sobre a literatura, o âmbito de leitura nos conduz a
discursos subjetivos, mas que são marcadamente pontuados pela objetividade do
contexto histórico dos leitores.

68
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

A análise crítica assemelha-se à interpretação musical: a partitura é a


mesma, mas há tantas formas de a executar que continuamente se renovam e
surpreendem a audição. Ao penetrar nos espaços da partitura, o novo intérprete
encontra brechas com que preencher, e tal preenchimento capta algo do seu
momento histórico particular, de seu humor, de sua sensibilidade. Ao buscar,
por paixão, os dados biográficos do compositor, além disso, ele preenche de um
certo clima de passado a sua execução atual.

[O texto literário] não pode ser analisado e compreendido na sua


integridade por um sujeito (o crítico) que não possua uma variedade
de critérios de abordagem e uma relevante erudição. De outro lado,
inúmeras são as formas literárias que solicitam a atividade crítica [...].
Tentando colher o que há de geral, de comum, na imensa variedade
das obras, [a teoria da literatura] chega a individualizar os elementos
constitutivos, a estrutura subjacente a toda obra literária (D’ONOFRIO,
2006, p. 49).

Nós nos deleitamos com a variedade de execução de uma obra, de uma


peça, de um texto musical. É ver as leituras críticas instigantes da obra de Marcel
Proust realizadas por Roland Barthes e Walter Benjamin, ou ouvir, enquanto
exercício de brevidade, a Ária das Variações Goldberg, de Joahnn Sebastian Bach –
do cânone ocidental da música erudita – pelas mãos de Vladimir Horowitz, Gleen
Gould, Daniel Barenboim, e de outros que ainda virão.

DICAS

Caro acadêmico, sugerimos a você escutar a obra prima do barroco europeu,


Ária das variações Goldberg, de Joahn Sebastian Bach, executada pelo pianista canadense
de renome internacional, Glenn Gould. Essa composição é a primeira peça musical sem
cunho religioso, visto que foi encomendada a Bach por um conde alemão no século XVII,
para distraí-lo do mal de insônia que lhe era frequente, disponível no link: https://www.
youtube.com/watch?v=Gv94m_S3QDo.

69
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

LEITURA COMPLEMENTAR

TEORIA DOS GÊNEROS E DOS MOVIMENTOS LITERÁRIOS

Salvatore D’onofrio

Para o estudo das inumeráveis obras literárias foi preciso, evidentemente,


estabelecer classificações em gêneros e épocas. O primeiro estudioso da literatura,
Aristóteles, no século III a. C., apresentou a primeira divisão das formas literárias
até então produzidas, lançando os fundamentos da Teoria dos gêneros. Conforme
sua concepção de arte como mimese da realidade, distinguiu as obras pelo
“objeto” da imitação: poesias épica e trágica (que imitam ações nobres) e poesias
cômica, satírica, lírica, ocasional (que imitam ações corriqueiras); e pelo “modo”
da imitação: a) o poeta assume a personalidade de outro e fala em terceira pessoa
(poesia épica ou gênero narrativo); b) o poeta fala em nome próprio (poesia lírica);
c) o poeta fala através de todos os personagens (gênero dramático).

Aristóteles apresenta, assim, a tripartição genérica, que se tornou


tradicional, baseada nas diferentes formas de comunicação entre o poeta e o
público: o genus narrativum, constituído pelo epos ou “a palavra narrada” por um
rapsodo perante um auditório; o genus liricum, que é a “palavra cantada” pelo
próprio poeta, expressão de sua subjetividade; o genus dramaticum, ou seja, “a
palavra representada” por atores para espectadores.

Essa divisão teve muito sucesso, mormente nas estéticas renascentista e


neoclássica, e se tornou o fulcro das distinções futuras.

Após o movimento do Sturm und Drang, o Romantismo insurge-se contra


a estética clássica e a revolta golpeia quase mortalmente a antiga teoria dos
gêneros literários. O princípio da liberdade, impregnando todas as atividades do
espírito, atinge a criação literária, libertando o escritor da fidelidade aos cânones
de composição poética. A tradicional divisão dos gêneros bem demarcados, com a
lei das três unidades (de ação, de tempo e de lugar), a norma de não-miscigenação
de assuntos e estilos ou da pureza dos gêneros, o princípio da coerência fabular
e caracterológica, o da conveniência e do respeito à sensibilidade do público, e
outras regras que constituem a essência da estética clássica, são considerados
empecilhos à livre imaginação criadora.

A concepção aristotélica do poeta “artífice”, o que projeta e constrói a obra


seguindo as normas estruturais de cada gênero, mediante uma elaboração formal
paciente e apurada, é substituída pela concepção platônica do poeta “inspirado”,
o que precisa mais de “engenho” do que de “arte”, usando a expressão camoniana.
Para Platão, poeta nascitur, pois a poeticidade reside em dons naturais revelados
por fugazes momentos de arrebatamento e expressos por uma linguagem emotiva.
Nessa concepção romântica da arte, o espírito dionisíaco sobrepõe-se ao apolíneo,
o individual ao social.

70
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Passada a fúria romântica, a estética moderna retoma a questão da divisão


da literatura em gêneros com um maior equilíbrio, sem os extremismos da teoria
clássica e romântica. Diferentemente da teoria clássica, que é “prescritiva”, a
concepção moderna do gênero literário é “descritiva”.

A primeira é apriorística na medida em que impõe normas de composição


às quais o escritor deve necessariamente submeter-se se quiser realizar uma
verdadeira obra de arte; a segunda, pelo contrário, não postula a existência
de modelos e de cânones estéticos anteriores à produção literária: a divisão, o
agrupamento ou a classificação em gêneros é feita a posteriori, após a análise das
características do cabedal artístico existente, sem prescrever nenhuma norma
para as obras futuras. Por isso, a moderna teoria dos gêneros não limita o número
das espécies possíveis, admite a possibilidade da mistura dos gêneros existentes
e do surgimento de formas literárias novas. A tripartição clássica em gênero épico
(narrativo), lírico e dramático é substancialmente mantida, embora reestudada.

Emil Staiger distingue os substantivos “épica”, “lírica” e “drama”,


usados tradicionalmente pela didática escolar para um macroagrupamento dos
diferentes tipos de obras de ficção, segundo determinadas características formais
(épica = uma longa narração; lírica = um poema curto; drama = uma peça teatral),
e os adjetivos “épico”, “lírico” e “dramático”, conceitos da ciência da literatura
que expressam as virtualidades fundamentais do ser humano, correspondentes,
respectivamente, ao domínio do figurativo, do emocional e do lógico.

A tripartição genérica lírico-épico-dramática corresponde à distinção


estabelecida, pelo filósofo alemão Cassirer, entre os três planos da linguagem: a
linguagem na fase de expressão sensorial (idade pueril), a linguagem na fase de
expressão figurativa (juventude) e a linguagem na fase de expressão lógica (idade
adulta).

Nesse sentido, o lírico é um estado de alma (e não de espírito, pois


este implica em clarividência), uma disposição anímica em que o passado e o
presente estão confundidos. A “recordação” (e não a memória, pois esta admite
distanciamento temporal e espacial) é o termo que Emil Staiger usa para indicar
a falta de distância entre o sujeito que percebe e o objeto percebido. No poema
lírico, o subjetivo e o objetivo, o mundo interior e o mundo exterior não estão
separados, são uma coisa só: é um estar-no-outro.

Já no estilo épico verificamos o distanciamento entre o poeta e o mundo


representado. A realidade é vista como “objeto”: o poeta está defronte à coisa
observada. O narrador, geralmente falando em terceira pessoa, é um observador
imparcial que olha o mundo circundante ou traz para diante de nossos olhos
um mundo passado, maravilhoso e imutável. A vida é vista como transparência
luminosa, em que predomina o espírito apolíneo.

71
UNIDADE 1 | PANORAMA CLÁSSICO DA LITERATURA

Se a recordação lírica se exprime no tempo presente e a apresentação


épica no tempo passado, o drama visa ao futuro. Fruto de espíritos em sua
plena maturidade intelectual, a obra dramática possui sempre uma finalidade a
atingir. Seu tema é constituído por um problema a resolver. É a explosão de um
mundo em conflito, afetando este conflito um homem, uma classe, um povo ou
a humanidade inteira. Implica um julgamento sobre as relações entre o homem
e a sociedade. A finalidade da obra dramática é sempre querer modificar o status
quo, mesmo quando se tem consciência de que o conflito, pelo menos no tempo
presente, é insolúvel. A essência da tragédia reside no dissídio entre a fatalidade
e o livre arbítrio.

Emil Staiger salienta oportunamente que nenhum dos três gêneros


literários encontra-se ao estado puro. A pureza dos gêneros foi um equívoco
da estética clássica. Com efeito, nenhum drama é totalmente “dramático”,
assim como um homem não é total e necessariamente “humano”, entendendo
o adjetivo como portador de semas específicos e não apenas genéricos. Nessa
perspectiva, qualquer texto participa dos três gêneros e é somente em função
da predominância das características de um gênero que o designamos “lírico”,
“épico” ou “dramático”.

É lícito falar, portanto, de “romance dramático” ou de “poema narrativo”,


se no primeiro, apesar de sua forma narrativa, há elementos característicos da
dramaticidade, e no segundo, não obstante sua pequena extensão, predominam
traços peculiares de narratividade. É apenas a posição hierárquica da
dramaticidade, da narratividade e da liricidade que determina a pertinência de
um texto a um gênero.

Essa multiplicidade de aspectos da obra de arte fundamenta-se na essência


da linguagem, que possui várias funções, e na essência da linguagem, que possui
várias funções, e na essência do homem, que é um ser plurifacetado. Por essa sua
função, a poética anuncia-se como contribuição importante para a antropologia
geral, visto que a obra de arte literária apresenta elementos fundamentais da
problemática humana.

Roman Jakobson, relacionando as funções da linguagem com os fatores


da comunicação inter-humana, vê o princípio diferenciador da poesia lírica na
predominância da função emotiva, orientada para a expressão do subjetivismo
do emissor; o do gênero narrativo na preferência para função referencial; o da
poesia dramática na marcação da função conativa, orientada para o destinatário.
Tal distinção está baseada no fato de que algumas espécies de obras literárias
focalizam a pessoa que fala, o “eu” do narrador (formas líricas), outras a pessoa
a quem se destina a mensagem, o “tu” do receptor (formas dramáticas), outras a
pessoa de quem se fala, o “ele” do enunciado (formas épicas e romanescas).

72
TÓPICO 3 | ABORDAGENS EXTERIORES À OBRA LITERÁRIA

Essa tripartição, evidentemente, não é exclusiva e monopolizadora,


pois sempre encontramos a presença de funções diferentes numa mesma
obra literária. Como já dissemos, é apenas uma questão de hierarquia: o uso
acentuado determina a função dominante que subordina as outras e confere à
obra a característica do gênero. Como a função poética, mesmo não sendo uma
exclusividade da linguagem literária, é o elemento fundamental para diferenciar
um produto linguístico de arte de outro que não o é, assim a predominância do
uso da terceira pessoa caracteriza a “narratividade” de um texto, a da segunda
pessoa sua “dramaticidade” e a da primeira pessoa sua “liricidade”.

FONTE: D’ONOFRIO, S. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática,
1990. p. 10-11.

73
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Buscamos pensar acerca das possibilidades de convivência entre as narrativas


histórica e literária, geralmente discordantes, e, por isso mesmo, enriquecedoras
dos fatos que experimentados e representamos através da linguagem.

• Observamos que não apenas as narrativas literárias assumem um caráter


subjetivo – por expressar um ponto de vista particular – não voltado para a
verdade dos fatos, que produz efeitos catárticos e estéticos, em acordo com
as proposições aristotélicas –, mas também as análises, quando elas se negam
a apoiar-se em dados concretos das obras, sejam eles interiores ou a elas
exteriores.

• Para afastar-se do dogmatismo do senso comum, que “reage” às questões


sem qualquer fundamentação teórica, a leitura crítica deve propiciar uma
participação mais ativa do que colaborativa entre o emissor/autor e o leitor/
receptor, de modo a tornar possível encontrar nexos e significações plausíveis
entre as mensagens e as realidades a que elas se reportam.

• Ao importar elementos exteriores para a análise foi possível relativizar o


conceito rígido de cânone que se interpunha como valor estético independente
do horizonte de leitura. Isso em parte não se verifica, pois a definição dos
textos importantes de serem lidos modificou-se, passando da esfera produtiva
autoral para a esfera de leitura, especificamente da leitura crítica, marcada por
vieses ideológicos.

• As abordagens exteriores contribuem para a análise literária na medida em


que incorporam, aos aspectos descritivos verificados nas análises internas,
fatores aparentemente à margem, mas que revelam novos sentidos, dos quais
destacamos as correntes de pensamento sociológica, psicológica e arquetípica,
dentre outras possíveis.

• Essas formas de leitura extrínseca, que recuperam o valor dos dados históricos
para a análise são também verificadas na produção de diversos escritores e
poetas consagrados, que, mesmo sabendo do dever de alcançar formas literárias
inusitadas, sabem entretanto que essas formas literárias são preenchidas e
simultaneamente visam transformar dados reais da vida humana (dores,
alegrias, tristezas etc.) em literatura.

74
• A obra literária, desde um ponto de vista da análise crítica, deve estar aberta ao
horizonte de leitura, aos leitores atuais que não estão completamente livres, já
que suas incursões também respondem às demandas surgidas do próprio texto
literário, demandas que se enriquecem quando a elas se acrescem de dados
históricos, contextuais e ideológicos.

CHAMADA

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75
AUTOATIVIDADE

1 Em literatura, as abordagens exteriores das obras tomam os dados históricos


e contextuais como elementos que contribuem para uma boa análise literária
na medida em que vinculam os textos literários às realizações dos homens
de cada época, portanto creem que cada autor é produto de seu tempo. A
partir dessa reflexão, é CORRETO afirmar:

a) ( ) Que os dados exteriores ao texto, como a biografia do autor, em nada


contribuem para determinar o valor de um texto literário.
b) ( ) Que as escolas literárias, medidas no eixo diacrônico, não reproduzem o
conteúdo ideológico dos autores e dos estilos.
c) ( ) Que a personalidade e as condições socioculturais dos autores fornecem
dados contextuais e ideológicos que podem contribuir para uma melhor
compreensão dos textos literários.
d) ( ) Que o texto literário, por suas características específicas, não necessita de
dados externos para sua melhor compreensão.

2 Sobre a integração dos métodos de análise crítica das obras literárias, Daiches
(apud D’ONOFRIO, 2006, p. 48) sentenciou que “todos os críticos literários
eficientes enxergam algumas facetas da arte literária e desenvolvem nossa
consciência a seu respeito. Mas a visão total, ou até mesmo algo que se
aproxime dessa visão, só advém àqueles que aprenderam a combinar as
modalidades de compreensão proporcionadas por inúmeros critérios
críticos”. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras
e F para as sentenças falsas:

( ) É desejável que o crítico literário detenha a maior variedade possível de


métodos de abordagem.
( ) A análise de uma obra requer que se encontre o único método de análise
que dê conta da obra em sua variedade interpretativa.
( ) Os métodos críticos, apesar de terem suas abordagens específicas, não são
incompatíveis entre si.
( ) A análise crítica se enriquece com a eleição de critérios interiores e
exteriores às obras a serem estudadas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – V.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – F – V.
d) ( ) F – V – V – V.

3 As formas modernas de análise externa em literatura priorizam a descrição


das características das obras segundo os seus contextos de produção e de
leitura, observando comparativamente a evolução delas em relação ao

76
mundo e ao tempo histórico. Dentre esses tipos de análise, destacam-se a
sociológica, a psicológica e a arquetípica. Considerando essas informações,
associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Análise sociológica.
II- Análise psicológica.
III- Análise arquetípica.

( ) Corrente de análise que acredita haver homologia entre as estruturas


literárias e sociais.
( ) Corrente de análise que analisa a personalidade autoral a partir de dados
inconscientes.
( ) Corrente de análise que observa as analogias das obras com um contexto
mítico maior, como as quatro estações, as fases da vida etc.
( ) Corrente de análise para a qual os personagens literários não espelham
pessoas reais, mas tipos que representam grupos ou classes sociais.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – III – I.
b) ( ) II – I – III – II.
c) ( ) II – I – I – III.
d) ( ) I – III – I – II.

4 (ENADE, 2008):
FONTE: http://www.pucrs.br/edipucrs/enade/letras2008.pdf. Acesso em: 23 out. 2019.

Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(PESSOA, F. Autopsicografia. In: Obra completa. Porto: Lello & Irmãos, 1975. p. 255).

77
De acordo com o poema, é específico do processo de criação literária o fato de
o poeta:

I-  Escrever não o que pensa, mas aquilo que deveras sente.


II-  Ser capaz de captar e expressar os sentimentos dos leitores.
III-  Transformar um elemento extraliterário, como a dor, em objeto estético.

Está certo o que se afirma apenas em:


a) ( ) I.
b) ( ) II.
c) ( ) III.
d) ( ) I e II.
e) ( ) I e III.

78
UNIDADE 2

PANORAMA MODERNO DA
LITERATURA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender como os estudos da forma no tratamento da mensagem lin-


guística trouxeram uma perspectiva moderna e inovadora para o fazer
literário;

• perceber a evolução do pensamento formalista em direção ao estrutura-


lismo literário como radicalização da teorização moderna contra a ideia
clássica de mimese e representação;

• observar o impacto das relações entre literatura e sociedade a partir dos


adventos tecnológicos que consideraram a obra de arte como mercadoria;

• verificar a atualidade do pensamento crítico da escola de Frankfurt, es-


pecialmente das teorias de Walter Benjamin e Theodor Adorno no debate
literário atual.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX


TÓPICO 2 – O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA
TÓPICO 3 – LITERATURA E SOCIEDADE

CHAMADA

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frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás
melhor as informações.

79
80
UNIDADE 2
TÓPICO 1

TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, na primeira unidade do livro esboçamos um panorama
clássico da literatura, discutindo alguns conceitos e pontuando as primeiras
teorizações que, surgidas com a teoria dos gêneros literários, fixou-se em duas
formas de análise dos textos literários: por uma lado, as análises de dentro para
fora, ou intrínsecas, que observam as obras a partir de seus dados internos; por
outro lado, as análises de fora para dentro, ou extrínsecas, que observam as obras
a partir de prismas históricos.

Entretanto, com a evolução das teorias, houve, em certo momento, a


necessidade de ruptura com a ideia de que a linguagem literária deveria apresentar
um mundo fora dela, ou que a fala e a escrita deveriam estar a serviço do que elas
pretendiam comunicar. O século XX foi marcado por essa necessidade de ruptura
com a ideia de mimese ou representação.

Prepare-se, caro acadêmico, para uma viagem um pouco mais estranha,


pois rumaremos ao lado de teorias que questionam o que nós acreditamos ver
com os nossos olhos. Em outras palavras, as teorias modernas tornaram a forma
literária mais relevante do que a representação do mundo. Assim, a mimese
literária foi questionada, dando lugar ao conceito de literariedade, proposto pelo
formalismo russo. Esse movimento ocorria não apenas na esfera teórica, mas
também na própria literatura.

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, antes de prosseguirmos, recomendamos que você revisite a


Figura 2 do Subtópico 3.1 da primeira unidade, que versa sobre os elementos e funções da
comunicação segundo Roman Jakobson, através dos quais iniciamos a discussão acerca
da função poética enquanto um dos pressupostos da análise literária.

81
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Teoria e Literatura: duas formas distintas de discurso. A bem dizer, ao


estudarmos o esquema de comunicação de Jakobson, observamos que todo
discurso é uma forma de mensagem situada entre um emissor e um receptor
(emissor-mensagem-receptor); também que essa mensagem/discurso se refere a
algo exterior a ela mesma (o referente), ou seja, representa alguma coisa existente
no mundo.

Com isso, queremos dizer que, desde um prisma moderno, toda e qualquer
mensagem é comunicacional (por isso, Jakobson batizou seu modelo linguístico
de Esquema da Comunicação). Outra observação: a maior parte das mensagens
– desde as mais corriqueiras, utilizadas no cotidiano, até as mensagens mais
complexas, como as de cunho acadêmico – são mensagens linguísticas.

Ser mensagem linguística significa que, para efetivar a comunicação, ela


deve, obrigatoriamente, valer-se de um código linguístico: uma língua (esse livro
está escrito em língua portuguesa), mais um canal de comunicação (o canal é
o próprio texto escrito), além dos quatro elementos já mencionados: emissor,
mensagem, referente e receptor. Há, além disso, outras formas de mensagem que
mesclam elementos linguísticos e não linguísticos e é dessa mistura específica
que trata a semiótica, disciplina que não abordaremos nesse livro.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Elementos da


Comunicação, que apresenta, de modo bastante elucidativo, a teoria do linguista romeno
Roman Jakobson, figura central do Formalismo Literário, que estabeleceu seis elementos
da comunicação e suas respectivas funções nas mensagens linguísticas, disponível no link:
https://www.youtube.com/watch?v=hMvTeF6yIZk.

Detenhamo-nos, por agora, nos tipos de mensagem linguísticas aptas a


observar o fenômeno literário desde um prisma moderno, cujo suporte material
preferencial se deu através do livro impresso, que criaria uma estética mais
complexa do que a decorrente das literaturas orais.

Esse acontecimento histórico levou ao desenvolvimento de uma


“cultura da escrita”, em oposição a uma “cultura da oralidade”. Como
atestam alguns pesquisadores, a cultura literária, decorrente da escrita,
implementou um estilo de pensamento mais complexo, sequencial e
hierárquico, se comparado com o pensamento altamente padronizado
e repetitivo da pré-literatura e das culturas orais (KIRCHOF, 2006, p.
2).

82
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, quando tratarmos do panorama pós-moderno da literatura,


observaremos como os aparatos tecnológicos – o cinema dentre eles – valer-se-ão da
estrutura secular da literatura – marcada ora pela oralidade, ora pelo suporte material do
livro – para construir suas próprias narrativas, fruto do

desenvolvimento de recursos tecnológicos que permitem diferir a


oralidade, tais como discos, cassetes, cinema. Dentre tais recursos,
destaca-se, sem dúvida, a tecnologia digital. A escrita digital parece
estar mudando a “cultura do livro”, implantada a partir do surgimento
da imprensa, desde o século XVI (KIRCHOF, 2006, p. 3).

Nesses termos, a mensagem mais frequente se dá quando visamos um


conteúdo a ela exterior, um “referente” fora da própria mensagem, que tende a
fazê-la desaparecer em proveito do sentido que se pretende comunicar; e, nessa
situação, encontram-se não apenas a maior parte das mensagens linguísticas, mas
também os vários discursos voltados ao exercício da teorização.

Assim, a teoria, apoiando-se em hipóteses sobre algum objeto ou realidade


que visa explicar, busca dar a ver os fatos que os causam ou os condicionam. O
discurso da literatura, entretanto, ao contrário do discurso teórico, não pretende
explicar objeto algum ou realidade factível, detendo-se mais propriamente “na
maneira de dizer” do que “no que se diz”, e, nesse sentido, mais sugere do que
revela realidades. “O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento
das palavras. O poeta arranca-as de suas conexões e misteres habituais: separados
do mundo informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos, como se acabassem
de nascer” (PAZ, 1991, p. 47).

A literatura clássica é ficção e mantém relação de verossimilhança com


o real ao sugerir realidades que poderiam ou não acontecer, tal como definiu
Aristóteles. Desde um panorama moderno, a literatura se opõe aos textos e
discursos referenciais, extrapolando o seu caráter ficcional clássico pelo tratamento
diferenciado que confere à mensagem linguística, fazendo a mensagem centrar-
se mais em si mesma do que no referente, de modo a que o seu arranjo tenda a
permanecer em nossa memória.

Dessa forma, a mensagem literária tende a causar estranhamento no leitor


– tese central do formalismo russo, a literariedade, que veremos a seguir – abalando
os nossos sentidos pelo tratamento conferido ora às sonoridades: assonâncias,
aliterações etc., ora aos jogos sintáticos: hipérbatos, figuras de pensamento
etc., ou ainda por criar uma imagem inusitada – uma alegoria, mais comum na
prosa literária –, fazendo com que as mensagens, voltando nosso olhar para elas

83
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

mesmas, estejam, no dizer de Jakobson, na função poética. “A linguagem, em sua


função poética, se liberta dos constrangimentos da prática monovalente do uso
linguístico e pode continuar ad infinitum sua função criadora de realidades,
renovando incessantemente códigos e ideologias” (D’ONOFRIO, 2006, p. 12,
grifo do original).

E
IMPORTANT

As figuras de linguagem são recursos estilísticos que se valem tanto da


modalidade oral quanto da escrita para aumentar a expressividade das mensagens
linguísticas. São figuras de palavra (alegoria, perífrase, catacrese, símile, metonímia, metáfora,
sinestesia, sinédoque); figuras de som (aliteração, assonância, onomatopeia, paronomásia);
figuras de construção (anáfora, anacoluto, anástrofe, hipérbato, assíndeto, polissíndeto,
zeugma, elipse, silepse, hipálage, pleonasmo); figuras de pensamento (antítese, apóstrofe,
eufemismo. gradação, hipérbole, ironia, paradoxo, prosopopeia).
Eis alguns exemplos citados: alegoria é uma figura de palavra que reporta-se ao uso de
expressões para representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada, e que foi
um método de interpretação aplicado por pensadores gregos aos textos literários homéricos
para descobrir ideias ou concepções filosóficas embutidas figurativamente nas narrativas
mitológicas; assonâncias e aliterações são figuras de som em que ocorre a repetição
ritmada e harmônica de sons: consonantais no caso da aliteração, como na repetição do
“r” no trava-língua “o Rato Roeu a Roupa do Rei de Roma”; e sons vocálicos no caso da
assonância, como na repetição do “a” em “A pÁlida lÁgrima da FlÁvia”; hipérbato é uma
figura de construção em que ocorre inversão brusca na ordem esperada das palavras em
uma frase, como no verso de Bandeira: “Mas, como o dele, batia/Dela o coração também”.

A literatura, por conseguinte, usando até aqui dois critérios para definir
sua especificidade, é resumidamente uma forma de discurso que “ficcionaliza” o
mundo segundo um tratamento diferenciado da linguagem, convertendo o que
se vê ora em um sentimento de se ver (gênero lírico), ora em um drama do que se
vê (gênero dramático), ou ainda em uma outra narrativa sobre o que se vê (gênero
narrativo).

Observe, caro acadêmico, colocado entre parênteses: gênero lírico,


gênero narrativo e gênero dramático; classificações do efeito literário sobre os
observadores/leitores, que já não é propriamente literatura, mas teoria, ou seja,
um modo conceitual de agrupar essas formas literárias e catalogar os seus efeitos,
no caso em questão, segundo a teoria aristotélica dos gêneros literários.

84
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

FIGURA 1 – TEORIAS, COMO FLECHAS, APONTAM PARA UM DESTINO COMUM: A OBRA


LITERÁRIA

FONTE: <https://images.freeimages.com/images/premium/previews/1091/10919641-arrows-on-
target.jpg>. Acesso em: 3 mar. 2019.

Teoria da literatura é, portanto, um tipo de discurso, ou melhor, discursos


– há várias formas de teorizar, explicar, criticar, historicizar uma obra literária
– que refletem sobre um objeto específico: o texto literário. Assim, se retiramos
da prateleira uma única obra, sobre ela pesará diversas formas de compreensão
que pretendem revelar algum aspecto de seu valor enquanto obra, algo do seu
“segredo”.

Os rapazes leem versos para se ajudarem a expressar ou conhecer seus


sentimentos, como se somente nos poemas as arriscadas, pressentidas
batalhas do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem ser
contempladas com nitidez. Cada leitor procura algo no poema. E não
é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si (PAZ, 1991, p. 29).

Essas formas teóricas de discurso revelam um saber educacional, cujo


maior mérito é de poder ser pedagogizado como instrumento facilitador em
sala de aula. É o que vimos, no primeiro caso, dentro de um prisma clássico,
ao caracterizar o literário em sua especificidade ficcional e verossimilhante,
teorizado por Aristóteles para reavaliar a ideia de mimese platônica. “A obra de
arte, por não ser relacionada diretamente com um referente do mundo exterior,
não é verdadeira, mas possui a equivalência da verdade, a verossimilhança, que
é característica indicadora do poder ser do poder acontecer” (D’ONOFRIO, 2006,
p. 20).

Quando, mais adiante, observarmos o mesmo texto literário enquanto


mensagem linguística na qual prepondera, dentre outras funcionalidades, a
função poética, estaremos em verdade utilizando um prisma teórico não mais
clássico, mas moderno, posto que advém do movimento formalista russo do início
do século XX, que reavaliou a ideia de mimese estética consagrada na Poética de
Aristóteles.

85
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

2 ABORDAGENS LITERÁRIAS FRENTE À MIMESE


Talvez uma primeira questão a ser posta, quando pretendemos observar
a migração de pontos de vista sobre o fazer literário, é compreender o porquê
e quais diferenças se impuseram ao longo do tempo, que levaram os modos de
observação clássico a tomarem um viés moderno. Se mudança houve, caberia
ponderar: foi a obra que mudou ou os seus modos de leitura?

Ademais, se ocorreu a mudança, talvez também tenha mudado o próprio


estatuto do que é o saber literário, o que torna oportuno perguntar: de que trataria
mesmo a literatura? Tratar-se-ia da representação de um conteúdo existente fora
da própria mensagem literária, ou seria ela a expressão de uma forma linguística
que versaria mais sobre si mesma, que produz uma realidade advinda da própria
forma, só ligeiramente referindo-se ao que é externo a ela.

Essa é a postulação do fazer literário frente à mimese: a literatura é um


discurso ficcional sobre algo já existente, ou é um discurso que cria uma existência
própria? Ele imita o real ou cria um real próprio? Antes, segundo o viés clássico,
a literatura parecia representar um mundo estável de coisas existentes aludidas
por meio de uma codificação própria, cifrados por meio dos expedientes da ficção
e da verossimilhança.

Essa é a mais corrente definição humanista de literatura, enquanto


conhecimento especial, diferente do conhecimento filosófico ou
científico. Mas qual é esse conhecimento literário, esse conhecimento
que só a literatura dá ao homem? Segundo Aristóteles, Horácio e
toda tradição clássica, tal conhecimento tem por objeto o que é geral,
provável ou verossímil, a dóxa, as sentenças e máximas que permitem
compreender e regular o comportamento humano e a vida social
(COMPAGNON, 2012, p. 35, grifo do original).

Tal ideia “humanista” de literatura, preconizada pela Poética de
Aristóteles, perduraria como lei canônica até meados do Renascimento, pois
até um certo momento apoiava-se na pressuposição da existência de realidades
anteriores a suas formulações por meio da linguagem, e, nesse sentido, a
linguagem apresentava-se como instância secundária ao mundo, ou seja, como
um dos construtos humanos voltados para a sua tradução.

Os partidários da mimèsis, apoiando-se tradicionalmente na Poética de


Aristóteles, diziam que a literatura imitava o mundo; os adversários
da mimèsis (em geral os teóricos modernos da poesia), vendo,
sobretudo na Poética uma técnica de representação, retrucavam que
ela não possuía uma exterioridade e apenas fazia pastiche da literatura
(COMPAGNON, 2012, p. 124, grifo do original).

Por conseguinte, esse viés clássico apresentava o discurso literário como


uma variação “estética” dos discursos utilitários e da linguagem cotidiana. Por
um viés moderno, todavia, a forma literária assumiria um valor quase oposto a
esse ao reportar-se a uma forma linguística situada na função poética proposta
por Jakobson, a saber: embora a mensagem literária pudesse revelar algo do
86
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

mundo circundante, ela seria um tipo de mensagem que refere-se mais a si


mesma e a seus arranjos linguísticos, que pouco pode garantir acerca do mundo
representado fora dela.

A respeito da distinção entre os pontos de vista clássico e moderno pelo


viés da mimese, você acha que ao falarmos sobre algo, esse algo existiria por si
e utilizaríamos a linguagem apenas como ferramenta para transmiti-lo; ou, ao
contrário, as coisas não teriam existência por si mesmas, não seriam independentes
da linguagem que as comunicam? Registre sua impressão, tomando como ponto
de reflexão a sentença: “a casa azul de Maria mora no meu coração”. Para você, a
casa azul é uma realidade criada pela linguagem ou traduz uma casa existente ou
que poderia existir independente da linguagem?

Esperamos, caro acadêmico, que aos poucos você vá se familiarizando
com o fato de que a linguagem, à medida que vai entrando na função poética,
passa a não transmitir uma realidade claramente verificável, ao menos da maneira
a como estamos habituados, que é como se a nossa sensação de ver as coisas não
se afetasse pela maneira como elas são ditas. No exemplo, “a casa azul de Maria”
refere-se a alguma casa imaginária, que vai criando um espaço de transição entre
um olhar clássico, que é mais realista (uma casa qualquer), e um olhar moderno,
que está mais do domínio sonoro do texto, que abre o espaço intuitivo de sonho
(uma casa azulada).

Didaticamente, uma boa forma de verificar a diferenciação dos pontos de


vista clássico e moderno seria observá-los em transformação, ou seja, enquanto
evolução de algum período estético ou mesmo das obras de determinado autor,
não necessariamente literário, mas que tivesse migrado de uma perspectiva
inicialmente clássica, na qual a linguagem estivesse apoiada sobre a “ilusão
referencial” rumo a uma perspectiva moderna, na qual a obra produziria, ao
final, uma realidade desprendida da noção tradicional de mimese.

Todo sistema que serve para a comunicação humana pode ser


considerado uma linguagem. Esta se define como um conjunto de
signos regido por regras de combinação e apto a expressar um modelo
do mundo, uma visão ideológica da existência. Entre os vários sistemas
semióticos, criados pelo homem para comunicar ideias, sentimentos,
normas de vida (línguas naturais, artes, mitos, modas, códigos
de trânsito, qualquer prática social, enfim), existe uma hierarquia
(D’ONOFRIO, 2006, p. 9, grifo do original).

É o caso do pensamento pictórico de Piet Mondrian, artista moderno que


inicialmente apresentou um enquadramento na tela de objetos representados
a partir da realidade observável para, tempos depois, depurar essa mesma
realidade em direção a um pensamento puro ou, no seu dizer, uma atividade
pictórica neoplástica das artes visuais, que caracterizou a última fase de sua obra,
a partir da qual a realidade é que deveria se ater ao mundo estabelecido na tela,
e não o contrário.

87
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

Piet Mondrian (1872-1944) foi um pintor holandês que despontou no começo


do século XX e sua obra virou um símbolo poderoso da modernidade. Filho de pastor,
cresceu em um ambiente extremamente religioso. Quando era iniciante pintava paisagens,
mas já revelava uma inquietação peculiar ao moldar a natureza, os moinhos e as igrejas
com uma visão geométrica do mundo. Suas obras mais antigas seguiram o estilo da Escola
de Haia e dos impressionistas de Amsterdam. Por volta de 1909, começou a pintar em um
estilo mais abstrato. Ao longo dos anos, objetos e paisagens foram se decompondo em
traços básicos. Para Mondrian, o mínimo era o máximo. “Na natureza, a superfície das coisas
é bela, mas sua imitação é sem vida”, dizia ele. Em 1911, foi para Paris onde manteve contato
com os artistas abstracionistas e cubistas, entre eles Pablo Picasso e Georges Braque. Durante
a primeira Guerra Mundial, retornou à Holanda, onde conheceu o movimento holandês “De
Stijl” (O Estilo), que trabalhava com formas geométricas abstratas. Na base da pintura de
Mondrian estava uma utopia de fundo religioso. Ele era entusiasta da Teosofia – doutrina
esotérica fruto da filosofia humanista e espiritual sincrética – de onde extraiu a noção de
que por baixo da matéria uma engrenagem básica constituiria a essência do mundo. Ao
abraçar a abstração continuou pintando flores, símbolo universal feminino para a Teosofia
(também as pintava porque ninguém comprava suas telas abstratas). As composições
clássicas com quadrados e retângulos delimitados por linhas pretas surgiram por volta dos
seus 50 anos. Ele rompera com os colegas do De Stijl por não aceitar a adoção de linhas
diagonais. No estilo radical de Piet Mondrian, conhecido como Neoplasticismo, só havia
lugar para os traços horizontais e verticais e, na paleta de tintas, apenas as cores primárias
– vermelho, azul, amarelo, preto, branco. Em 1940, durante a segunda Guerra Mundial,
mudou-se para Nova York, onde conheceu os ritmos musicais jazz e boogie-woogie e os
transpôs para a tela o andamento urbano e o ritmo agitado desses gêneros. Faleceu em
Nova York em 1944.

FONTE: <https://www.ebiografia.com/piet_mondrian/>. Acesso em: 18 out. 2019. (adaptado)

Mondrian partiu de um olhar clássico sobre a realidade ao buscar


representar em suas pinturas uma visão própria sobre o que se apresentava fora
da tela. Assim, quando pinta a Árvore vermelha, não apenas impressiona com
sua visão apaixonada de uma árvore, mas também nos garante que essa árvore
representa uma árvore que existe ou poderia existir fora da tela, ainda que na
condição de modelo. “A primeira atitude do homem diante da linguagem foi de
confiança: o signo e o objeto representado eram a mesma coisa. A escultura era
uma cópia do modelo; a fórmula ritual uma reprodução da realidade, capaz de
engendrá-la” (PAZ, 1991, p. 35).

88
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

FIGURA 2 – ÁRVORE VERMELHA (1908) DE PIET MONDRIAN

FONTE: <https://i.pinimg.com/736x/be/07/c7/be07c7159df24a24eceec54b0ac2742f.jpg>.
Acesso em: 18 out. 2019.

A bem da verdade, a imagem da Figura 2 apresenta não propriamente


uma árvore, tal como observamos em nosso dia a dia, mas um conjunto
vibrante de pinceladas preponderantemente vermelhas, alaranjadas e azuis
que fazem aparentar a representação vulcânica de uma árvore. Parte o pintor e,
consequentemente, o observador, da pressuposição de haver uma árvore similar
no mundo circundante, a qual, ainda que modelar, teria existência própria fora
do enquadramento da tela.

Pouco a pouco o raciocínio pictórico de Mondrian caminha no sentido da


depuração das figuras representadas em busca de um arcabouço mínimo, que
estaria na base das figuras e sustentaria todo os objetos; no caso, o esqueleto que
estaria por trás de qualquer ideia do que fosse uma árvore. É o que podemos
observar em Árvore cinzenta, na Figura 3, que antecipa os esforços neoplásticos,
ainda que mantendo laços com a realidade aparente.

89
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

FIGURA 3 – ÁRVORE CINZA, PIET MONDRIAN

FONTE: <http://twixar.me/JN3T>. Acesso em: 18 out. 2019.

Esse processo, que observamos na decomposição de uma árvore em seu


esqueleto comum a qualquer outra árvore, atinge em cheio a discussão acerca
da arte moderna, quer dizer, não podemos afirmar a existência concreta de uma
realidade fora da obra, senão através de uma ilusão referencial. No caso da
literatura, implica compreender que os signos aludem a uma realidade existente
sem jamais tocar efetivamente nessa realidade.

A tarefa da linguagem é semelhante: [...] a mesma migração de


um sentido esparso na experiência [...] mobiliza em seu proveito
instrumentos já investidos, e os emprega de modo que eles se tornam
para ele o próprio corpo de que tinha necessidade enquanto passa
à dignidade da significação expressa (MERLEAU-PONTY, 1974, p.
62).

Observamos, por conseguinte, um tipo de linguagem pictórica também
observável na linguagem literária, que vai se desprendendo da imitação dos dados
exteriores à composição; no caso em questão dando a ver o processo transitório
de Mondrian de tornar visível a estrutura e as correspondências entre o traçado
da tela, que estaria na origem de qualquer árvore, e qualquer objeto existente.

Nossa comparação da linguagem e da pintura só é possível graças a


uma ideia de expressão criadora que é moderna [...]. O pintor joga os
peixes e conserva a rede. Seu olhar se apropria das correspondências,
[...] ele os desinveste [os objetos], os liberta e proporciona um corpo
mais ágil [...]. Por outro lado, as cores e uma tela que fazem parte do
mundo, ele as priva subitamente de sua inerência: [...] tornam-se como
as fontes ou as florestas, [...] só estão lá como o mínimo de matéria
de que um sentido tinha necessidade para se manifestar (MERLEAU-
PONTY, 1974, p. 61).

90
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

Tratava-se, dentro de uma perspectiva moderna, e essa é também a tese


que postula a ideia rítmica de Série Árvores, como a da Figura 4, a partir da qual
não é mais possível deduzir a imagem de uma árvore concreta, senão de alguns
vínculos entre linhas verticais, que fariam alusão aos troncos das árvores, e linhas
horizontais, aludindo aos galhos, expressando não mais a imagem concreta de
uma árvore, mas a célula motriz de verticais e horizontais desde onde qualquer
árvore poderia surgir ou, que é dizer o mesmo, tornar-se visível. “A visão do pintor
não é mais um olhar sobre um exterior. [...] O mundo não mais está diante dele
por representação: antes, o pintor é que nasce nas coisas como por representação
e vinda a si do visível” (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 294).

FIGURA 4 – SÉRIES ÁRVORES, PIET MONDRIAN

FONTE: <http://www.educ.fc.ul.pt/icm/icm2000/icm33/images/line_color.jpg>. Acesso em: 18


out. 2019.

Assim, quando chega a definir figuras neoplásticas em seu percurso


pictórico, como a da Figura 5, elas passariam a estar na origem de qualquer
outra imagem, doravante alheia à representação de qualquer objeto exterior à
tela e construída enquanto rítmica de conjuntos de linhas verticais e horizontais
dialogando com as três cores primárias – cores que estão na origem de todas as
cores possíveis – levando o pintor a uma perspectiva radicalmente moderna por
prescindir da realidade aparente, revelando-a, por conseguinte, como construção
ideológica, porque a obra, para Mondrian, já não se apoia no mundo exterior,
senão que revela algo inusitado a esse mundo exterior.

91
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

A perspectiva moderna, posta, assim, de modo radical na obra pictórica


de Piet Mondrian, deixa claro que o que aceitamos como realidade não é senão
construção cultural e ideológica, ou seja, que o que acreditamos ver já está
colocado por nosso olhar: por tudo o que lemos, vemos, aprendemos etc., enfim
pelos modos de ver aos quais nos acostumamos a achar natural.

Assim a realidade que parece ser o que há de mais claro e evidente


para qualquer pessoa, que parece “natural” ao senso comum, em verdade não
retrata as coisas mesmas tal como elas existem, mas sim o modo como elas
estão “naturalizadas” por um olhar treinado socialmente. Contra esse olhar
automatizado, no plano da linguagem, é que se voltou o formalismo russo,
primeira escola moderna a revisar a ilusão histórica das perspectivas clássicas do
fazer literário.

FIGURA 5 – NEOPLASTICISMO, PIET MONDRIAN

FONTE: <https://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2009/09/Composition-with-red-
yellow-blue-and-black.jpg>. Acesso em: 18 out. 2019.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Mondrian –


História da Arte, que apresenta, de forma divertida e comunicativa, Piet Mondrian e o
Neoplasticismo, apresentando dados biográficos, a obra e sua atualidade, que chegou
a influenciar a moda e outros eventos semióticos, no link: https://www.youtube.com/
watch?v=ckI9iClVutY.

92
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

3 O FORMALISMO RUSSO E A LITERATURA


A escola de pensamento moderno, literariamente representada pelos
aportes teóricos do formalismo russo, baseou-se na observação de uma prática e
de uma teoria voltada para um leitor diferenciado, que impulsionaria seus autores
à construção de uma perspectiva implicada em reconhecer esse novo leitor como
um tipo de sujeito distanciado de um mundo previsível e estável, que antes se
consagrava ao leitor clássico, cuja estabilidade estendia-se também à concepção
de linguagem como ferramenta de representação do mundo.

A atividade dos formalistas teve início em Moscou, em 1914, e, depois


da condenação pública pelos marxistas em 1930, continuou em Praga
e de lá se estendeu para o Ocidente. Entre suas contribuições para
a crítica literária, assinalamos, além dos princípios teóricos algo
revolucionários, os estudos sobre o verso e o conceito de função,
entendida como átomo de narratividade, formulado por Vladimir
Propp e aplicado ao estudo do conto maravilhoso. (D’ONOFRIO,
2006, p. 41)

E
IMPORTANT

Entre os principais representantes da escola formalista estão, além de Roman


Jakobson, Vladimir Propp, Chklovsky, Mukarovski e Tynianov. Dentre eles, destaca-se pelo
seu poder de atualidade, tanto nos estudos literários quanto nos estudos linguísticos, Roman
Jakobson, que ao formular o esquema dos elementos e das funções da comunicação
observou a função poética como a caracterizadora da transformação do discurso linguístico
em literário, ou seja, quando a mensagem passa a ter por principal função não apenas
comunicar, mas conferir destaque aos aspectos estéticos e de estranhamento da própria
mensagem.

Tal concepção clássica de mundo foi quebrada não apenas pelos avanços
tecnológicos da modernidade, mas também pela revolução da linguagem que
adveio com a linguística moderna, na qual Ferdinand de Saussure sustentou a
ideia de arbitrariedade do signo. Se o signo é convencional e arbitrário, se não
há uma relação necessária entre a palavra e o que ela representa, então o uso
aparentemente natural da linguagem cotidiana será o primeiro castelo a ruir com
as postulações formalistas.

Na linguagem científica e diária faz-se largo uso de estereótipos,


seguindo padrões linguísticos e petrificando a palavra. O cientista e o
homem comum não pensam no código que utilizam: o uso linguístico
cria automatismos psíquicos e intelectuais que levam à perda do sentido
do significante. A força da repetição aniquila o significado original da
palavra, que perde seu poder de criatividade. (D’ONOFRIO, 2006, p.
15)

93
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Assim, quando falamos “a xícara de café”, em nenhum momento


suspeitamos que os vocábulos “xícara” e “café” não possuam necessariamente
vínculo com o objeto “xícara” a ser preenchido por um líquido escuro conhecido
como “café”, pois a língua é um código de convenções arbitrárias, de hábitos
praticados “sem pensar”, ou seja, que nossas palavras carregam um viés
ideológico transmitido por gerações segundo uma ideia de naturalidade que é
apenas aparente.

Destarte, por manusearmos tão bem a língua, esquecemos que ela foi
aprendida, que as coisas existentes não têm relação direta com o sentido que
comunicamos e é nesse sentido que o formalismo voltará os seus primeiros
esforços contra a norma linguística para recuperar o poder expressivo da palavra,
cuja potência tornara-se enfraquecida pela força do hábito.

Visto que a língua é o primeiro sistema de signos com o qual aprendemos a


nos comunicar uns com os outros e com o mundo, ela passa a ser assimilada como
se sempre tivesse existido, como se fosse uma coisa automatizada, a ponto de
esquecermos que ela é mais um artifício para chegar as coisas. Ora, é contra esse
automatismo da linguagem cotidiana, que a escola russa se insurge de imediato.

Para os formalistas russos, a linguagem poética se caracteriza pelo


poder de singularização, pois usa o método de representação insólita:
os objetos são descritos como se desconhecidos, como se vistos pela
primeira vez, deformados de suas proporções habituais. Segundo
Mukarovski ‘somente a função estética tem condição de reservar ao
homem, em relação ao universo, a posição de um estrangeiro que
visita países sempre novos com uma atenção não gasta e não rija’
(D’ONOFRIO, 2006, p. 15).

Segundo o viés formalista, caberia ao escritor moderno, especialmente


ao poeta, produzir textos a partir da linguagem comum e cotidiana de forma
a recriar o jogo de relações entre as palavras de modo a ser possível observar
a realidade sob novas perspectivas, isto é, sob um olhar não automatizado que
caracterizará a essência do enfoque formalista.

Daí o efeito surpreendente, fascinante, fantástico da linguagem e da


cosmovisão artísticas. Refletir nas palavras leva, consequentemente, a
pensar no sentido que as palavras encerram. E, como à esteriotipização
do código linguístico corresponde, na vida diária, uma ancilose
do código ideológico, assim, na obra poética, à violação do hábito
linguístico corresponde uma ruptura com o código ideológico
(D’ONOFRIO, 2006, p. 16).

De fato, se retomarmos a metáfora formalista a partir da pintura de


Mondrian, notaremos que árvores, como das Figuras 3 e 4, antes mesmo do
advento do neoplasticismo de sua última fase, representam um novo olhar sobre
o real, ou seja, a apresentação de uma realidade criada a partir do jogo inusitado
de cores, linhas e uma concepção de arte que, em conjunto, despreocupada de
representar o mundo, revela um novo olhar sobre esse mesmo mundo.

94
TÓPICO 1 | TEORIAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XX

Destarte, para o formalismo, a linguagem artística, e não apenas a literária,


assenta-se na ideia de que qualquer signo é, por um lado, transparente devido
ao uso cotidiano, carregando em si um significado gratuito e literal, construído
por uma certa cultura social, e também, por outro lado, pode ser obstáculo à
transmissão fácil de significados ideológicos, por ser passível de ser tratado como
fonte de novos sentidos.

A linguagem cotidiana é mais espontânea, a linguagem literária é mais


sistemática (organizada, coerente, densa, complexa). O uso cotidiano
da linguagem é referencial e pragmático, o uso literário da língua é
imaginário e estético. A literatura explora sem fim prático, o material
linguístico. Assim se enuncia a definição formalista de literatura
(COMPAGNON, 2012, p. 39).

A respeito das qualidades do poético requeridas pelo formalismo russo,


as mensagens linguísticas poderiam ser transformadas em literárias conforme
se procedesse a determinados arranjos linguísticos, levando-as ora a migrar da
função referencial da comunicação prática para a dimensão estética da função
poética, tal como apontou Jakobson. Ainda que se saiba que o “estado de poesia”
não se vincula apenas à forma da mensagem, você concordaria que a expressão
(a) “o velho professor levantou uma caneta azul” é menos poética do que a
expressão (b) “uma caneta azulada foi ostentada pelo professor entardecido”?
E que a mudança de significação estaria presa ao tratamento da forma, tal como
indica a escola formalista? Registre sua impressão sobre esse manuseio didático
da forma.

Espera-se que você tenha percebido, caro acadêmico, que a ênfase


formalista se dá sobre o tratamento da linguagem, o que demonstra que o
fazer literário tem menos a ver com “inspiração poética” do que com um jogo
específico com a linguagem, portanto acessível a qualquer um. A literariedade,
nesse sentido, estaria presente na transformação da mensagem comunicacional
“caneta azul” na mensagem estética “bela caneta azulada”, que a aproxima da
função poética.

Nessa linha de pensamento radical que caracterizou o formalismo


literário, a literatura, assim como a arte em geral, parecia não ter necessidade de
voltar-se para fora, para o mundo existente, pois seus postulados contestavam
os conteúdos desse mundo existente se eles não estivessem explicitados pelas
próprias formas que os revelam. A bem dizer, para o formalismo existe a forma
da qual derivam os conteúdos e que se revelam em uma segunda instância.

A literariedade formalista, nesse sentido, aparece como procedimento


chave no qual a forma pouco deve aos conteúdos expressos e centra-se no
expediente do estranhamento como condição do fazer literário. O formalista
Roman Jakobson destacou, como exemplo típico do corolário formalista, a função
poética como uma das seis funções da comunicação, mas cuja singularidade se
daria no modo de tratamento da mensagem que pode tornar qualquer mensagem
linguística uma mensagem poética.

95
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Jakobson afirmava ao mesmo tempo que, em poesia, ‘a função


comunicativa é reduzida ao mínimo’ e que ‘a poesia é a linguagem na
sua função estética’, como se as outras funções pudessem ser esquecidas.
A literariedade (a desfamiliarização) não resulta da utilização de
elementos linguísticos próprios, mas de uma organização diferente
(por exemplo, mais densa, mais coerente, mais complexa) dos mesmos
materiais linguísticos cotidianos (COMPAGNON, 2012, p. 42).

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, a leitura do ensaio Formalismo Russo –


Fortuna Crítica II, de Ivan Junqueira, no qual o crítico apresenta análises formalistas de
textos literários, cujo início se deu pelas mãos do russo Vítor Chklowski ao interpretar a
novela Kholstomer, do escritor russo Tolstoi; leitura que influenciaria algumas leituras
formalistas no Brasil, tal como a do resgate do poeta romântico Souzandrade, realizado
pelos renomados críticos, irmãos Augusto e Haroldo Campos. Disponível no link: http://
www.usp.br/cje/depaula/wp-content/uploads/2017/03/Ivan_Cult_Formalismo-Russo-
ilovepdf-compressed.pdf.

Assim, se retomarmos as diferenças entre o olhar clássico e o olhar


moderno segundo a imagem de um pêndulo, poderíamos ver nas Figuras 2 e 3
representações de árvores existentes – para as quais as linhas e cores das telas
de Mondrian dariam forma a conteúdos preexistentes – conformando um lado
mais à esquerda, no passado, para o qual o pêndulo se inclinaria segundo uma
perspectiva clássica de representação.

Todavia, nas formas das Figuras 4 e 5, os conteúdos são revelados a partir


das próprias telas, as quais não mais são imitação de conteúdos preexistentes. O
pêndulo, em tal circunstância, tenderia para a direita, para o olhar desfamiliarizado
que propôs a modernidade. Em tais figuras, últimas do percurso pictórico de
Mondrian, capturou-se o olhar moderno do qual o formalismo literário foi um
movimento exemplar.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo A Arte em


nossos tempos – Arte Moderna, que apresenta os fundamentos da arte moderna por meio
da pintura, a qual, na modernidade, se afastara da imitação da realidade, função ocupada
pela fotografia recém-surgida. Ao contrário da técnica da fotografia, o olhar pictórico deixa
de ser técnico para captar a subjetividade de um ponto de vista humano sobre a realidade.
Essa vertente pictórica influenciou vários autores literários, como no clássico Em busca
do tempo perdido, de Marcel Proust, e, no Brasil, na descrição de personagens revelados
através de impressões, como se observa em O Ateneu, de Raul Pompeia, no link: https://
www.youtube.com/watch?v=csH9hOS5Xsk.

96
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A teoria da literatura reflete sobre os princípios, os critérios e as noções gerais


do que seja o fenômeno literário. Para fazê-lo, ela armou-se inicialmente do
enquadramento desse fenômeno em três gêneros: lírico, épico-narrativo,
dramático. Entretanto, tanto a literatura quanto a reflexão sobre ela, apoiavam-
se na ideia de um mundo preexistente e estável que as formas artísticas viriam
representar, e, por esse motivo, a noção de mimese ou imitação tornou-se
central nas análises literárias do período clássico.

• Ao migrar a expressão do conteúdo para a forma compreendeu-se as


dicotomias levantadas pelas teorizações literárias do século XX, observando
que tais produções artísticas e as análises a elas consequentes já não mais se
apoiavam em um mundo estável no qual os autores se aprimoravam na arte de
representar. Ao contrário, o mundo dinâmico esfacela-se diante do observador
e por isso a nova arte busca capturar não mais um conteúdo preexistente à
obra, mas a forma que dá a ver a infinidade de conteúdos do mundo exterior.

• Na pintura, houve o movimento exemplar de artistas como Piet Mondrian,


que partiram de um olhar mais preso à representação clássica de objetos, como
na fase inicial da “série árvores”, até chegar a uma autonomia pictórica que
revelou a prioridade da forma sobre o conteúdo. Dali em diante, o jogo de linhas
e cores primárias dariam a ver qualquer árvore possível, não necessariamente
existente.

• No campo da literatura, o formalismo russo foi a primeira escola a promover


essa desfamiliarização do olhar ao centrar o fazer literário no arcabouço
linguístico, capturando um novo jogo de organização das palavras que daria a
ver novas relações e modos inusitados de olhar o mundo.

• A literariedade, conceito chave do formalismo, seria capturada pelo sequestro


da palavra de seu uso ordinário, no qual a palavra se via presa a um aparente
mundo preexistente que se mostrava, ao final, não como a realidade, mas sim
como um construto ideológico e cultural ao qual estava preso os modos de
representação clássica.

97
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da literatura passou à modernidade através dos aportes teóricos


do Formalismo Russo, escola de pensamento que destacou a linguagem
não como tradutora de um conteúdo fora dela, mas, ao contrário, como um
tratamento dado a essa mesma linguagem de modo a revelar conteúdos
muitas vezes insuspeitados. Nesse sentido, para o Formalismo a forma se
sobrepõe ao conteúdo. A partir dessa reflexão, é CORRETO afirmar:

a) ( ) Que a mensagem literária é um tipo de mensagem linguística falsa em


relação ao mundo que ela revela.
b) ( ) Que a literatura baseia-se no conflito insuperável entre a forma e o
conteúdo por ela representado.
c) ( ) Que a literatura, enquanto evento moderno, caracteriza-se pelo
tratamento diferencial da linguagem cotidiana, enfatizando o tratamento
da forma de modo a poder revelar novos conteúdos.
d) ( ) Que o literário, independente do procedimento consagrado à linguagem,
será sempre e prioritariamente uma forma de representação do mundo.

2 A teorização da literatura assume parâmetros distintos se a situamos


desde uma perspectiva clássica ou desde uma perspectiva moderna. Essa
forma de focalização do fazer literário e de sua consequente análise assume
funções e codificações distintas conforme se assente a leitura em uma dessas
perspectivas. Considerando essas informações, associe os itens, utilizando
o código a seguir:

I- Ponto de vista clássico.


II- Ponto de vista moderno.

( ) Roman Jakobson foi um dos expoentes de tal perspectiva, mostrando que


a linguagem literária é uma reorganização da mensagem linguística de
forma a alcançar uma dimensão estética.
( ) Aristóteles foi um dos expoentes de tal perspectiva, a partir da qual
categorizou as obras literárias conforme a tripartição genérica em lírico,
épico e dramático.
( ) Vlamidimir Propp foi um dos mais notáveis expoentes desse ponto de vista
interno de análise ao observar as obras e suas funções independentemente
do contexto autoral ou de recepção.
( ) Em tal perspectiva, há uma realidade anterior à obra, e esta última
representa algo dessa realidade.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – I.
b) ( ) II – I – II – I.
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) I – II – I – II.
98
3 Para a teoria literária formalista, a literariedade é o principal procedimento
de caracterização do texto literário, pois está baseado na desfamiliarização
da linguagem usual e cotidiana em prol de novos arranjos linguísticos que
podem revelar novas perspectivas de relação com o real. A partir dessa
reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as sentenças
falsas:

( ) De certo modo, a literariedade não implica na formulação de uma nova


linguagem, mas na reorganização da linguagem corrente no sentido de
recuperar o seu valor estético.
( ) A partir do senso comum é quase impossível um rearranjo linguístico
formalista, já que a modernidade proposta por essa escola propõe um
procedimento de estranhamento da linguagem cotidiana.
( ) Via de regra, o senso comum age através da linguagem automatizada,
como se cada palavra representasse um dado real da natureza. Esse
sentido literal e denotativo é o mesmo contra o qual o formalismo russo se
voltou.
( ) A teoria formalista, de um modo geral, sobrepôs a forma ao conteúdo,
destacando que a realidade tratada pelas mensagens literárias seriam
dadas na própria capacidade da forma de exprimir esse conteúdo, e não o
seu contrário.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – V – V.
d) ( ) V – F – V – V.

4 (ENADE, 2008) A literariedade, conceito que remete à especificidade da


linguagem literária, vem sendo discutida por teóricos e críticos, tal como se
verifica nos textos a seguir.

FONTE: <http://www.pucrs.br/edipucrs/enade/letras2008.pdf>. Acesso em: 23 out. 2019.

Texto 1: A literariedade, como toda definição de literatura, compromete-se,


na realidade, com uma preferência extraliterária. Uma avaliação (um valor,
uma norma) está inevitavelmente incluída em toda definição de literatura
e, consequentemente, em todo estudo literário. Os formalistas russos
preferiam, evidentemente, os textos aos quais melhor se adequava sua noção
de literariedade, pois essa noção resultava de um raciocínio indutivo: eles
estavam ligados à vanguarda da poesia futurista. Uma definição de literatura
é sempre uma preferência (um preconceito) erigida em universal.

FONTE: COMPAGNON, A. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Trad. Cleonice


P. Barros e Consuelo F. Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 44.

99
Texto 2: Literariedade: termo do formalismo russo (1915–1930), que significa
observar em uma obra literária o que ela tem de especificamente literário:
estruturas narrativas, rítmicas, estilísticas, sonoras etc. Foi a tentativa de
especificar o ser da literatura, propondo um procedimento próprio diante do
material literário. Os formalistas trabalharam, portanto, um novo conceito
de história literária, e foram, digamos assim, a base para o comportamento
estruturalista surgido na França.

FONTE: adaptado de CHALUB, S. A metalinguagem. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. p. 84.

A partir da interpretação dos textos acima, assinale a opção CORRETA:


a) ( ) Chalub, em seu texto, discute o conceito de literariedade, seu alcance e
seus possíveis limites.
b) ( ) Infere-se dos dois fragmentos que literariedade é um conceito que está
acima de escolhas subjetivas, culturais ou sociais.
c) ( ) Os dois autores afirmam que o conceito de literariedade é histórico,
marcado pelo momento em que foi formulado.
d) ( ) Para os dois autores, a literariedade revela o ser da literatura, algo que
a diferencia da linguagem cotidiana.
e) ( ) Compagnon questiona a concepção dos formalistas russos de que há
especificidade universal na linguagem literária.

5 (ENADE, 2011)

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2011/LETRAS.pdf>.
Acesso em: 23 out. 2019.

Vou-me embora vou-me embora


Vou-me embora pra Belém
Vou colher cravos e rosas
Volto a semana que vem.

Vou-me embora paz na terra


Paz na terra repartida
Uns têm terra muita terra
Outros nem pra uma dormida.

Não tenho onde cair morto


Fiz gorar a inteligência
Vou reentrar no meu povo
Reprincipiar minha ciência.

Vou-me embora, vou-me embora


Volto a semana que vem
Quando eu voltar minha terra
Será dela ou de ninguém.

FONTE: ANDRADE, M. Lira Paulistana & O carro da miséria. São Paulo: Martins, 1945.

100
Considerando esse poema de Mário de Andrade, qual dos procedimentos a
seguir define a sua construção no que concerne a aspectos de literariedade?

a) ( ) Abordagem desprovida de procedimentos inovadores, tanto da


perspectiva estrutural do poema quanto da temática. O reaproveitamento
puro e simples do verso “Vou-me embora”, lembrando o famoso verso
“Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, demonstra essa
ausência de inovação.
b) ( ) Embora o texto seja de autoria de consagrado escritor da literatura
brasileira, a linguagem utilizada, de caráter notadamente popular,
aproxima-se do cotidiano, comprometendo a sua literariedade.
c) ( ) Apropriação de uma estrutura poética fixa, para tratar de temas
populares por meio de uma elaboração estilizada da linguagem, na qual
interagem, no mesmo espaço textual, traços caracterizadores da linguagem
popular e da erudita.
d) ( ) O tom de proximidade com as cantigas da tradição popular leva à
perda da literariedade do poema, o que descaracteriza os elementos que
configuram o texto como produto artístico.
e) ( ) A estrutura poética revela um fazer que privilegia padrões da
versificação, purismo de linguagem acadêmica e uso do repertório de
grandes temas da tradição literária.

101
102
UNIDADE 2 TÓPICO 2
O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, o formalismo russo destacou-se como uma das primeiras
teorias da literatura que chamou a atenção menos para a realidade que a obra
retratava do que para as realidades criadas pelos próprios textos. A partir daí, as
abordagens teóricas – o Estruturalismo de modo especial – não se comportariam
de um modo clássico, mas moderno, ou seja, a realidade jamais seria pensada de
modo autônomo à linguagem que a retratava.

Assim, ciência literária, filha do Formalismo Russo, o Estruturalismo


literário resultou de uma evolução natural daquela escola de pensamento ao
evidenciar que o conteúdo do mundo está implicado primeiramente por uma
forma linguística que a ele se refere sem, necessariamente, tocá-lo, operando
segundo uma “estrutura” que possui leis próprias de funcionamento a despeito
da realidade por ela apontada.

O texto literário, nesse sentido, opera por meio de leis linguísticas que,
embora não toquem diretamente o mundo real, a ele aludem na medida em que
suas normas internas de funcionamento podem tangenciar as normas que regem
o mundo real. Haveria, minimamente, portanto, dois processos paralelos ligados
tanto às formas de narrativas quanto aos acontecimentos existenciais.

O termo estrutura encontra-se em Saussure e nos formalistas, que


usam indiferentemente forma ou estrutura. Por isso os enfoques
estruturalista e formalista não se diferenciam muito. Foi Claude
Lévi-Strauss que deu notoriedade ao termo estrutura ao transferi-
lo da linguística para a antropologia. A teoria lévi-straussiana
está fundamentada no princípio do isomorfismo entre as leis do
pensamento e as leis do real (D’ONOFRIO, 2006, p. 42).

Caro acadêmico, nessa acepção moderna que parte do formalismo literário


em direção ao enfoque estruturalista, há de se convir que se o texto não toca
diretamente o mundo, ele, entretanto, agita outra cadeia de textos – fenômeno
academicamente denominado de intertextualidade – abrindo janelas possíveis a
outros olhares para a realidade.

A referência não tem realidade: o que se chama de real não é senão um


código. [...] o realismo é, pois, a ilusão produzida pela intertextualidade
[...], os outros textos tomam explicitamente o lugar da realidade, e é a
intertextualidade que se substitui à referência, [...] a intertextualidade
se apresenta como uma maneira de abrir o texto, senão ao mundo,
pelo menos aos livros, à biblioteca (COMPAGNON, 2012, p. 108).

103
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Assim, para a escola do estruturalismo não se trataria mais da análise


das leis de um único objeto, como enfatizava o formalismo na direção dos
procedimentos de desfamiliarização de cada obra, mas da construção de uma
teoria que desse conta do conjunto de regras comuns a todo e qualquer objeto de
uma mesma espécie, fosse do comportamento humano, fosse das relações sociais,
especialmente, na parte que aqui nos interessa, na comunidade das narrativas
literárias.

NOTA

A intertextualidade é o conceito-chave da teórica Julia Kristeva que, em 1969,


publicou Semiótica, importante livro na história do estruturalismo, definindo o texto como
espaço de trabalho e produtividade em que se desarticula a representação da “língua
natural” em prol da multiplicidade de sentidos que autores e leitores geram a partir de uma
cadeia aparentemente fixa. Kristeva chama esse trabalho de significância, que, ao contrário
da significação, não pode ser reduzida à representação, à expressão ou à comunicação.

Essas noções modernas aportadas pelo formalismo e pelo estruturalismo


literários, onde a linguagem, desde a linguística saussuriana e o esquema da
comunicação de Jakobson, não fala diretamente do mundo, senão que a ele se
refere ou aponta algo dele, convenhamos, são difíceis de assimilar ao senso
comum, ao nosso modo cultural de pensar e perceber a realidade existente
independentemente da linguagem que a visa. “Distinguiríamos, então, a forma (=o
todo orgânico de um objeto concreto) da estrutura (=modelo geral elaborado pela
análise dos elementos constitutivos e invariáveis, comuns a esse e a outros objetos
do mesmo grupo ou da mesma espécie)” (D’ONOFRIO, 2006, p. 42).

Aquilo que no formalismo literário era recurso de desfamiliarização e


estranhamento caracterizadores da literariedade buscados em um objeto, fosse
poema, fosse drama, fosse narrativa, agora se estendia como regra comum de
composição de qualquer poema, de qualquer narrativa, de qualquer obra enfim
que se queira afirmar como literária.

A bem dizer, o estruturalismo, mais que abdicar radicalmente da


representação do mundo, afirma a sua não existência fora do olhar analítico e
da teorização que captam as regras de composição e funcionamento de qualquer
composição literária. O triunfo da estética estruturalista se assentava, portanto,
em duvidar das teses que apostavam na mimese e na representação como modos
de ler o real.

104
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

Se, como quer a linguística saussuriana, da qual depende a teoria


literária, a língua é forma e não substância, sistema e não nomenclatura,
se ela não pode copiar o real, o problema torna-se o seguinte: não mais
“Como a literatura copia o real?”, mas “Como ela nos faz pensar que
copia o real?”, “Por quais dispositivos?” (COMPAGNON, 2012, p.
107).

De modo ainda mais radical, observamos o trabalho de classificação


das funções narrativas do formalismo literário, realizado por Vladimir Propp,
que estendeu a análise formalista aplicada a um único objeto a todas as formas
de narrativas literárias, reportando-as estruturalmente como constituintes de
qualquer narrativa, sintetizadas na obra Morfologia do conto maravilhoso.

Propp foi o primeiro a considerar a obra literária como um organismo,


composto de partes essenciais e partes específicas, capaz de ser
desmontado para se individualizem seus elementos constitutivos.
Usando um método científico, o da botânica, Propp estuda a forma,
isto é, as partes constitutivas ou a estrutura da narrativa (D’ONOFRIO,
2006, p. 199).

E
IMPORTANT

O Estruturalismo foi uma metodologia aplicável ao estudo dos textos


literários a partir de princípios universais que governam o uso da linguagem, e que estão
relacionados entre si por um sistema único de significação, a que se chama estrutura.
Segundo Barthes (2007a, p. 58), trata-se de uma atividade que tem um fim específico: “o
fim de toda atividade estruturalista, seja ela reflexiva ou poética, é de reconstituir um objeto
de maneira a manifestar nesta reconstituição as regras de funcionamento (funções) deste
objeto”. O estruturalismo não é exclusivo dos estudos literários, pois pode-se encontrá-lo
na psicologia, na sociologia, na antropologia, na filosofia, na psicanálise e na linguística. Na
psicologia, a noção de estrutura (Gestalt) aparece no princípio do século XX; na sociologia,
Parsons apresenta uma visão ontológica da estrutura social; na filosofia, Althusser tentou
uma interpretação estrutural da obra de Marx; na psicanálise, os seminários de Lacan
atestam a noção de um inconsciente “estruturado como linguagem”; na linguística,
os estruturalistas consideram a língua como um sistema de relações cujos elementos
(fonemas, morfemas, palavras etc.) não têm nenhum valor independente das relações de
equivalência e oposição que os ligam. Sobretudo, cabe destacar, na antropologia social,
a referência à Claude Lévi-Strauss, decisiva para o nascimento da teoria estruturalista na
literatura. Quando falamos hoje em dia em estruturalismo literário, reportamo-nos ao
movimento da Nouvelle critique francesa da década de 60 do século XX, no qual a crítica
tradicional francesa e europeia sofrerá o peso das teorizações estruturalistas de Todorov,
Barthes, Jakobson, Greimas, dentre outros.

105
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Propp observou a existência de 31 funções encontradas pontualmente nos


contos populares, mas extensivas não apenas ao universo literário. As funções
aparecem como elementos mínimos, como átomos de todos os tipos de narrativa,
inicialmente pensadas como consequência das ações dos personagens no
desenrolar do enredo das fábulas. Posteriormente, teóricos como Roland Barthes
estenderiam o conceito de função a todos os eventos narrativos, e não apenas os
personagens, relevantes nas fábulas.

Se deixarmos de lado a fixidez do modelo proppiano, poderemos


perceber nele relações básicas encontráveis em qualquer narrativa,
porque pertencem ao universo antropológico. Os conceitos de
interdição / transgressão, dano/ reparação do dano, luta/vitória,
interrogação/resposta, trapaça/cumplicidade, malefício/castigo,
benefício/prêmio são aplicáveis não apenas a narrativas estereotipadas,
mas, enriquecidos pelas ideias de “eventualidade” do acontecer (que
nega o princípio da necessidade) e da possibilidade de um resultado
“negativo” (luta/derrota, dano/reparação), podem dar conta da
análise estrutural de vários tipos narrativos (D’ONOFRIO, 2006, p.
15)

Estava assentada, por conseguinte, com a cartada do estruturalismo


proppiano, as bases do cientificismo literário que descartava de vez todo tipo
de crítica literária que não fosse imanente à obra analisada. A crítica literária,
nesse sentido, já não se ateria ao conjunto de impressões de um leitor qualificado
para se pautar pela identificação dos elementos comuns, comprováveis através
de um método científico, impessoal, que caracterizaria a escola do estruturalismo
literário.

Consideramos o objeto artístico provido de estrutura. Por mais que o


poeta [..] consiga violentar a norma linguística para poder expressar a
inefabilidade de seu mundo interior, é sempre possível individualizar
no produto de sua criação, no texto literário, sus elementos constitutivos
e as relações entre estes elementos (D’ONOFRIO, 2006, p. 11)

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, a leitura do artigo acadêmico Análise


comparada do conto e da versão para o cinema de ‘A Bela e a Fera’, de Francisca Garcia e
Vera Silva, no qual as autoras analisam os segmentos do conto A Bela e a Fera em relação
com as funções estruturalistas elencadas por Vladimir Propp na Morfologia do conto
maravilhoso. No link: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/entreletras/article/
download/2876/9259/.

106
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

2 O SENTIDO E A SIGNIFICAÇÃO LITERÁRIOS


Uma das consequências imediatas do divórcio entre linguagem e mundo,
postulado pelo estruturalismo literário é que, se a língua com a qual tratamos
das coisas do mundo é fruto de uma convenção histórica e cultural, se ela refere-
se a algo do mundo sem jamais tocá-lo, então o que chamamos de sentido de
uma mensagem não é propriamente a realidade, mas algo que indica algo desse
mundo nomeado, que pode ou não repousar sobre ele.

Quando se trata do discurso literário, este não pretende alcançar a clareza


requerida na esfera da comunicação, posto que a mensagem comunicacional é um
sistema da língua que é primeiro, pois visa denotar as coisas que existem com a
máxima lucidez e quer possuir as coisas do mundo através do artifício da palavra.

Assim, é fácil perceber como o significado conceptual se aproxima do


que chamamos de conteúdo “denotativo”, característico da linguagem
científica e quotidiana, e o significado referencial do conteúdo
“conotativo”, de que é impregnada a linguagem literária. Em poesia,
a um mesmo referente podem corresponder dois ou mais significados,
cujos sentidos variam em função do cabedal cultural e da situação
afetiva do leitor (D’ONOFRIO, 2006, p. 11).

Nesse sentido, o discurso literário, ao contrário do discurso comunicacional,


não tem por função a comunicação clara, nem encobre as asperezas do discurso,
não evita as suas sombras e acolhendo, por conseguinte, as quebras expressivas
das regras gramaticais, que o faz operar notadamente como um sistema que é
segundo em relação aos usos práticos da língua.

A linguagem é significado: sentido disto ou daquilo. As plumas são


leves; as pedras, pesadas. O leve é leve em relação ao pesado, o escuro
diante do luminoso etc. Todos os sistemas de comunicação vivem no
mundo das referências e dos significados relativos [...]. Cada vocábulo
possui vários significados, mais ou menos conexos entre si [...].
Ou, dizendo de outro modo: em si mesmo o idioma é uma infinita
possibilidade de significados (PAZ, 1991, p. 129).

Dito de outra maneira, se buscarmos definir o que é esse “referente” que


tanto a língua, quanto o discurso literário visam, perceberemos que em ambos os
discursos esse referente não trata unicamente de uma realidade física exterior,
senão que ele “denota” ou “conota” significações que são lidas pelo contexto de
recepção, sem entretanto desconsiderar o sentido intencional de produção, dada
na esfera do emissor-autor.

Na linguagem comum, a palavra rosa tem como significante (plano


da expressão) o conjunto dos fonemas /ro za/ e como significado
(plano do conteúdo) a referência a um objeto do mundo real, a um tipo
especifico de flor; na linguagem literária, esse conjunto de significante
e significado torna-se significante (constitui o plano da expressão)
de outro significado, o poético, que pode sugerir a ideia de amor,
delicadeza, perfume, efemeridade etc., dependendo do contexto e da
sensibilidade do leitor (D’ONOFRIO, 2006, p. 10).

107
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

O significante rosa, visto anteriormente, não separa-se do significado, ou


melhor, da imagem mental que associamos à palavra rosa, pois há uma relação
direta em que significante e significado se expressam como duas partes de uma
mesma moeda, o que implica em dizer que não se pode separar a expressão
sonora e gráfica da palavra rosa de sua ideia correspondente a uma rosa real.
Todavia, o significado que vem associado à palavra rosa é uma imagem mental
que alude a uma rosa verdadeira e, ainda que eu esteja apontando, com meu dedo
indicador, uma rosa do mundo, a palavra rosa me dá uma referência, isto é, um
som correspondente a uma imagem aplicável a esta rosa que estou apontando,
como a qualquer outra rosa existente no mundo.

“É preciso notar, que o conceito de referente não implica apenas a existência


de uma realidade física, a relação com objetos do mundo exterior: o referente é o
reservatório de todas as experiências, sensações e representações que temos do
objeto, seja ele exterior ou interior” (D’ONOFRIO, 2006, p. 11).

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, se o texto literário se afasta do texto comunicacional pelo


artifício da “conotação”, entretanto ela não é específica do domínio artístico:

A linguagem literária, por ser um sistema semiótico secundário que


tem como significante o sistema linguístico, constitui-se num discurso
conotado, porque seu plano da expressão já inclui uma significação
primária. É preciso distinguir a conotação poética, ou artística em
geral, da conotação de outros sistemas semióticos: a da linguagem
jurídica, médica, diplomática, dos marginais, gíria etc. o sentido
conotativo dessas linguagens, uma vez descoberto seu código, torna-
se denotativo, porque é unívoco. A linguagem literária, pelo contrário,
é sempre polissêmica, ambígua, aberta a várias interpretações
(D’ONOFRIO, 2006, p. 14).

Para a teoria literária, tanto a de cunho formalista quanto a estruturalista,


a língua se comporta, tal como nos postulados da linguística, aludindo ao real
sem copiá-lo, pois a própria noção de real vivido ou observado pelo senso comum
e pelo olhar realista – antes de sua postulação enquanto interface tridimensional
entre o simbólico e o imaginário – é também um código de representação.

Tal ideia decorre da noção de arbitrariedade do signo, de seu


convencionalismo cultural e ideológico, que nos faz, ao pensar um objeto, ter
esse mesmo objeto como pensamento ou imagem, foi-nos dado pelas postulações
binárias da linguística moderna de Ferdinand de Saussure: língua e fala,
significante e significado, sincronia e diacronia, eixo sintático e eixo paradigmático,
que estão na base do estruturalismo.

108
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

Do estruturalismo atual a sua versão mais especial e, por consequência,


a mais pertinente, entendendo sob essa denominação certo modo de
análise das obras culturais na medida em que esse modo se inspira
nos métodos da linguística atual. Vale dizer que o estruturalismo, ele
próprio nascido de um modelo linguístico, encontra na literatura, obra
da linguagem, um objeto mais que afim: homogêneo (BARTHES, 2004,
p. 6).

O sentido, nessa equação estruturalista, jamais toca o existente, senão que


dá conta de uma intencionalidade autoral, de uma fé do emissor que enuncia sua
mensagem querendo dizer algo que não sabe como será lida pelos receptores.
Assim, aquilo que os receptores/leitores leem e entendem das mensagens
emitidas por alguém pode estar mais vinculado ao horizonte de expectativas
desses próprios receptores.

As obras de arte transcendem a intenção primeira de seus autores e


querem dizer algo de novo a cada época. A significação de uma obra
não poderia e determinada nem controlada pela intenção do autor,
ou pelo contexto de origem (histórico, social, cultural) sob o pretexto
de que algumas obras do passado continuam a ter, para nós, interesse
e valor. Se uma obra pode continuar a ter interesse e valor para as
gerações futuras, então seu sentido não pode ser paralisado pela
intenção do autor nem pelo contesto de origem (COMPAGNON, 2012,
p. 84).

Como exercício de fixação, tomemos de uma expressão corriqueira


e não literária, um exemplo em que se confrontem a intenção do emissor com
a aceitação do receptor, como quando um determinado rapaz dirige-se a uma
determinada moça, dizendo: “Quer ficar comigo?” Sabe-se que, na intenção do
emissor-rapaz, há um sentido que não é traduzido diretamente, senão que ganha
uma nova significação a partir do contexto do receptor-moça. Assim, se mudarmos
o contexto da frase de (a) 1910, para (b) 2010, você acredita que a significação
dada pela moça à proposta do rapaz mudaria? Por quê?

Observe, caro acadêmico, que o sentido da expressão “Quer ficar


comigo?” pode assumir interpretações distintas de acordo com o contexto em
que é enunciada. Assim, assumirá uma significação diversa, posto que em relação
ao contexto de 1910, “ficar” significaria estar junto, ou seja, o rapaz pretenderia
estar ao lado da moça; por outro lado, no contexto de 2010, “ficar” pode assumir
conotação erótica, implicando em o rapaz estar desejando ter relações sexuais
com ela.

Por estar mais vinculado ao plano intencional do emissor, o sentido torna-


se significação ao ser submetido ao contexto de expectativas dos leitores, e é certo
que, nessa querela – entre o sentido autoral do polo do emissor e a significação da
leitura do polo da recepção – ambos: autores e leitores, significado e significação
armam-se em uma equação mais para a esquerda ou mais para a direita, sem
entretanto tocarem verdadeiramente o mundo.

109
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Consequência da complexidade da estrutura poética é sua polivalência;


o poético apresenta-se como um feixe de possibilidades significativas,
instaurando um processo de semiose ilimitada, pois encerra em
seu núcleo sêmico a co-ocorrência dos dois polos de uma oposição
(D’ONOFRIO, 2006, p. 11).

Nesse sentido, se a própria natureza da língua é ser uma convenção ao


redor do existente, a literatura, em sendo um jogo armado da linguagem sobre a
própria linguagem comunicacional, isto é, ao priorizar o tratamento da mensagem
linguística para alcançar o estatuto do literário, acaba sendo, também ela, uma
convenção sobre a própria convenção que é a língua.

Como ciência, o estruturalismo encontra-se ele mesmo, pode-se


afirmar, em todos os níveis da obra literária. No nível dos conteúdos
em primeiro lugar, ou mais exatamente da forma dos conteúdos,
já que procura estabelecer a “língua” das histórias contadas, suas
articulações, suas unidades, a lógica que encadeia umas às outras,
numa palavra, a mitologia geral de que participa cada obra literária.
No nível das formas do conteúdo em seguida: o estruturalismo, em
virtude de seu método, dá especial atenção às classificações, às ordens,
aos arranjos; seu objeto essencial é a taxonomia, ou modelo distributivo
estabelecido, fatalmente, por toda obra humana, instituição ou livro,
pois não há cultura sem classificação (BARTHES, 2004, p. 6-7).

Tese aparentemente estranha essa que decorre do radicalismo linguageiro


proposto pelo estruturalismo, não é, caro acadêmico? Pois, vista desse ponto de
vista, a literatura enquanto forma mais parece se afastar das coisas, malgrado seus
efeitos sejam, não de ocultamento, mas de aproximação com o real. A literatura,
nesse sentido, fura o muro da realidade revelando ali um real, e, nesse sentido,
denuncia que a realidade é também uma convenção.

A formação do discurso poético remete ao mecanismo simbólico


da prática significante da linguagem humana, anteriormente a sua
estruturação lógica, a sua codificação monovalente. A linguagem
poética procura alcançar as raízes naturais do processo simbólico,
ainda na fase de interrogação, e não de resposta, aos anseios da
comunicação inter-humana (D’ONOFRIO, 2006, p. 12).

Essa virtude do literário pode ser comparada aos jogos infantis com a
linguagem, quando a criança, ao emitir um significante nos jogos da infância,
faz o próprio significante tremular, pois embora haja um significado colado a
ele, para a criança esse significado é tão mais real quanto mais impreciso. Nesse
ponto, literatura e infância se aproximam na medida em que abalam toda a lógica
saussuriana que busca clareza e ordem nos eventos da linguagem.

Entretanto, o discurso literário muda ao converter-se em reflexão,


em análise. Nesse ponto, o jogo perde sua ludicidade e pode ser desvendado
através de suas “estruturas”, inicialmente dadas pelo binômio linguístico do
significante/significado, posteriormente pelos enfoques teóricos que distinguem

110
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

um polo de sentido, do lado do emissor com sua intencionalidade, e um polo de


significação, do lado do leitor/receptor com seus graus de aceitabilidade ou de
não aceitabilidade da intenção autoral.

As grandes obras são inesgotáveis: cada geração as compreende à


sua maneira; isso quer dizer que os leitores nelas encontram algum
esclarecimento sobre algum aspecto de suas experiências. Mas se uma
obra é inesgotável, isso não quer dizer que ela não tenha um sentido
original, nem que a intenção do autor não seja o critério deste sentido
original. O que é inesgotável é sua significação, sua pertinência fora do
contexto de seu surgimento (COMPAGNON, 2012, p. 86).

Nessas formas exemplares de captar o funcionamento dos textos


literários, isto é, na demarcação da estrutura de qualquer narrativa realizada
sobre condições similares, o estruturalismo demonstra ser uma escola exemplar,
ferramenta metodológica útil de análise e aprofundamento do olhar reflexivo do
crítico, do historiador e do teórico da literatura.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Filosofia 3 –


Aula 21 - Estruturalismo, que apresenta os principais postulados do Estruturalismo enquanto
corrente de pensamento, com suas implicações em áreas diversas da cultura, para além
do fenômeno exclusivamente literário, no link: https://www.youtube.com/watch?v=-
FKDp6A6pmQ.

3 FENOMENOLOGIA, INTENCIONALIDADE E ESTRUTURA


Caro acadêmico, na tentativa de captar a estrutura geral dos textos, o
estruturalismo literário em certo momento deitou suas redes na fenomenologia,
pois essa corrente filosófica, dentro de uma forma de análise interna, priorizou
o objeto apresentado em detrimento de suas condições sócio-históricas e do
contexto de produção ao substituir a ideia de um observador separado do objeto
a ser analisado.

Certamente o contexto histórico é geralmente ignorado por esse


tipo de crítica, em proveito de uma leitura imanente, vendo no texto
uma atualização da consciência do autor, e esta consciência não tem
muito a ver com uma biografia nem com uma intenção reflexiva ou
premeditada, mas corresponde às estruturas profundas de uma visão
de mundo (COMPAGNON, 2012, p. 65).

A consciência, nessa abordagem, nem explica nem está separada do


objeto visado, por isso é substituída pela ideia de intencionalidade. Essa máxima
fundou a fenomenologia como uma nova corrente filosófica a partir de Edmund
111
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Husserl e de seus continuadores na França, que em certa medida aplicaram a


fenomenologia em sua versão existencialista, voltando-a à descrição do fazer
literário e do pictórico, como em Jean Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

O estruturalismo, misto de antropologia e psicanálise, permanecia uma


hermenêutica fenomenológica [...]: ‘a nova crítica demanda uma volta
à obra, mas esta obra, não é a obra literária [...], é a experiência total
de um escritor. Assim também ela se quer estruturalista; entretanto,
não se trata de estruturas literárias [...], mas de estruturas psicológicas,
sociológicas, metafísicas etc. (COMPAGNON, 2012, p. 65).

Husserl, pai da fenomenologia, partia da ideia da epoché, isto é, de colocar


entre parênteses os objetos que nos são dados no mundo da percepção, e, através
dessa redução do campo de observação ao que “está dentro do parênteses”
poderiam ser neutralizados os nossos preconceitos, nossa formação cultural,
enfim tudo o que depositamos naquilo que percebemos.

Em 1935, três anos antes de sua morte, Edmund Husserl realizou


célebres conferências sobre a crise da humanidade europeia [...].
Ele localizava as raízes da crise no início dos tempos modernos, em
Galileu e Descartes, no caráter unilateral das ciências europeias, que
tinham reduzido o mundo a um simples objeto de exploração técnica
e matemática, e tinham excluído de seu horizonte o mundo concreto
da vida (KUNDERA, 2016, p. 11).

A tese husserliana, pensada assim, seria não de criar realidades, verdades,


ou impressões vindas do leitor, mas sim de “retornar às coisas mesmas”, ou seja,
retornar à experiência pura de leitura através da descrição do que aparece na
consciência enquanto as coisas não são determinadas, enquanto permanecem,
portanto, como fenômenos abertos e indeterminados.

Nessa intencionalidade fenomenológica, o sujeito e o objeto estão


mutuamente implicados, portanto, o sentido e suas consequentes significações
nunca estão nos extremos, nem no polo do sujeito nem no polo do objeto, mas sim
no espaço “entre” eles. Dessa forma, a partir de tal procedimento, cujo propósito
é devolver o estado original dos seres, seria possível enxergar verdadeiramente
as coisas como elas aparecem à consciência intencional, ou seja, como aparecem
na intencionalidade.

Assim, da mesma forma que buscamos através da fenomenologia


neutralizar nossos preconceitos e as ideias formadas que temos sobre as coisas,
também a significação de um texto, ao ser pensando sob o prisma da fenomenologia
literária, passa a ser capturada durante a leitura qualificada, que pode transformar
o sentido autoral em novas significações muitas vezes insuspeitadas.

Caro acadêmico, embora se dê numa linguagem complexa, podemos fazer


um pequeno exercício de redução ou “epoché” fenomenológica. Assim, vamos
questionar nossas crenças e tentar “por entre parênteses” o que acreditamos
ser a realidade, observando como essa realidade aparece em nossa consciência

112
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

intencional. Por exemplo, tendo uma xícara quente de café sobre a mesa, o que
você descreveria? Experimente, caro acadêmico, relatar esse fenômeno como se
você nada soubesse sobre ele e registre suas impressões.

Ao colocar “entre parênteses” tal experiência, você pode ter relatado que
não havia propriamente “uma xícara”, mas um objeto rígido, quente, que continha
um líquido mole e quente, e que você sentiu temperatura, sabores, rugosidades,
afora memórias que podem ter aparecido enquanto você bebia o líquido escuro.
Assim, ao relatar minuciosamente a experiência, entra-se no “fenômeno”, nas
coisas mesmas como aparecem antes de se tornarem algo que possa ser dito.
Portanto, não há xícara, não há café, mas um conjunto de sensações que se dão
numa intencionalidade presente.

Tal concepção de experiência e de mundo, válida também para captar a


estrutura dos textos literários surgida durante a leitura, confrontou a ideia de
“realidade estável” do senso comum, para o qual tudo está posto no mundo
“naturalmente”, sem questionar se essa naturalidade que percebemos nas coisas,
fora da epoché, estariam carregadas de preconceitos já dados por nossa cultura.

O enfoque fenomenológico do texto limita-se à descrição da obra


literária, considerada como um “fenômeno”, isto, é, como ela “aparece”
aos olhos e à intuição do observador [...]. O crítico fenomenológico
aproxima-se da obra com mente pura, afastando de si as influências
de qualquer tradição literária, de qualquer autoridade crítica, de
qualquer pressuposição lógica sobre a constituição do objeto artístico,
de qualquer modelo de análise preestabelecido (D’ONOFRIO, 2006, p.
44).

Essas coisas, percebidas entre parênteses através da epoché


fenomenológica, não seriam mais objetos percebidos por uma consciência,
mas inscritos na própria percepção, na qual quem percebe já está dentro do
que é percebido. Em outras palavras, mais próximo ao fenômeno literário, o
leitor diante do livro não seria mais alguém lendo um objeto livro, mas uma
intencionalidade que se estabelece enquanto fluxo de leitura.

Quando percebemos um objeto qualquer, este se nos apresenta


como uma pluralidade de qualidades, sensações e significados. Essa
pluralidade se unifica instantaneamente no momento da percepção.
O elemento unificador de todo esse conjunto de qualidades e de
formas é o sentido. As coisas possuem um sentido, mesmo no caso
da mais simples, casual e distraída percepção, verifica-se uma certa
intencionalidade, segundo demonstraram as análises fenomenológicas
(PAZ, 1991, p. 131).

Por conseguinte, se na intencionalidade também conhecida como


consciência intencional, não há mais sujeito nem objeto, nem consciência nem
mundo, revelar-se-ia, então, uma estrutura em que ambos aspectos estariam
mutuamente implicados, estrutura advinda da obra que se sustentaria entre o que
antes se pensava ser um sujeito leitor diante de um objeto livro, ambos diluídos
num fenômeno chamado leitura.

113
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Aplicada ao estudo da obra literária, a fenomenologia põe em evidência


o aspecto óptico, fônico, lexical, sintático, figurado, ideológico etc. É
preciso salientar, porém, que essa estratificação só existe graças ao
esforço analítico do crítico, pois o texto é percebido pelos sentidos e
pela consciência, à primeira vista, como um todo orgânico, uma forma
homogênea (D’ONOFRIO, 2006, p. 45).

Destarte, para Husserl, a consciência não se reporta a um objeto apartado


dela mesma, mas existe enquanto intencionalidade, fluxo situado entre dois polos:
o polo do que observa e o polo do que é observado. Em sua versão para a análise
literária, os teóricos buscaram não mais explicar, mas descrever a estrutura que se
apresenta no instante de leitura, captando estratos e camadas de sentido surgidas
entre a intenção postulada nas obras e as intenções postas pelos leitores, armando
um jogo estrutural entre significado e significações.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir à videoaula ilustrativa Edmund


Husserl (Fenomenologia) – Resumo de Filosofia para o Enem, que apresenta, de modo
bastante didático, os principais postulados da fenomenologia a partir das formulações teóricas
de Edmund Husserl, seu criador, no link: https://www.youtube.com/watch?v=pEf1YX6CiIE.

3.1 PERCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA DA LITERATURA


Dos filósofos continuadores da fenomenologia, Maurice Merleau-Ponty
foi um pensador exemplar, pois, ainda que tenha voltado sua reflexão para o
estudo da literatura de forma indireta, apanhou os fenômenos literário e pictórico
como eventos da percepção nos quais a obra de arte se revela como forma singular
do mundo que percebemos.

“A fenomenologia é, ao mesmo tempo, ‘um modo de ver’ e um ‘método’.


O método consiste no modo de ver, e esse modo de ver constitui o método. A
análise fenomenológica distingue no objeto artístico vários ‘aspectos’ ou ‘estratos’”
(D’ONOFRIO, 2006, p. 44).

Suas formulações primeiras capturaram a estrutura de dois tipos de fala,


que dimensionariam as relações expressivas com a linguagem: fala falada e fala
falante. Enquanto a primeira se prestava a uma instância explicativa do mundo,
a segunda se constituía como forma criativa de descrição do mundo na medida
em que, de modo similar ao discurso da literatura, para retratar a diversidade
do mundo da percepção se propõe a incorporar essa diversidade na própria
linguagem.

114
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

“Os princípios da fenomenologia só recentemente foram aplicados


ao estudo da literatura por Roman Ingarden, ligado à escola fenomenológica
de Husserl. Outros críticos literários que, de algum modo, estão ligados à
fenomenologia são Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty” (D’ONOFRIO, 2006, p.
45).

Dessa forma, Merleau-Ponty voltou a reflexão para inspecionar as coisas


da maneira como elas aparecem, ou seja, de uma maneira indistinta e um pouco
confusa, sobre a percepção inacabada da xícara de café), cujo as dicotomias
(xícara, café, sujeito etc.) não estariam plenamente consolidadas.

E
IMPORTANT

Merleau-Ponty nasceu em 1908, em Rochefort sur Mer, na França, e faleceu em


1961, em Paris. Estudou filosofia, ocasião em que conheceu os existencialistas Sartre e Simone
de Beauvoir, e em suas primeiras publicações surgia a ideia de que a nossa subjetividade é
essencialmente corporal ou encarnada. Henri Bergson ainda era vivo quando Merleau-Ponty
leciona. Mais tarde, quando é eleito para o renomado Colégio de França, em seu discurso
inaugural faz comentários atenciosos à obra de Bergson, posteriormente publicado com
o título de Elogio da Filosofia, no qual a experiência aparece como elemento central do
conhecimento. Merleau-Ponty tomou contato com a Fenomenologia Husserliana em 1929,
fazendo avançar a teoria do conhecimento intencional com a primazia da percepção. Entre
suas obras destacam-se A estrutura do Comportamento, de 1942, e sua tese de doutorado
Fenomenologia da Percepção, publicada em 1945 e considerada a sua principal e obra, na
qual critica a psicologia clássica, a fisiologia mecanicista e o cogito racionalista cartesiano.
Publicou também as coletâneas Sens et Non-Sens, em 1948, e Signes, em 1960. Nessa
última, é quando se aproxima do estruturalismo de Claude-Levi-Strauss e da linguística de
Ferdinand de Saussure. Morreu repentinamente, no esplendor da carreira, quando escrevia
O visível e o invisível, uma das obras mais relevantes do pensamento moderno.

Para Merleau-Ponty, esse sentido fenomenológico nunca se deixa reduzir


ao conjunto de falas estabilizadas que caracterizam o pensamento e, assim,
antecipando-se continuamente a toda e qualquer operação reflexiva, o filósofo
encontraria na experiência literária a ocorrência exemplar dessa ordem primeira,
que enforma tanto a nossa experiência perceptiva, quanto as nossas realizações
culturais.

Um texto e uma leitura assim, inaugurais, que adviessem e ao mesmo


tempo fomentassem outros textos e leituras, também inaugurais, colocar-nos-ia
diante do que, para Merleau-Ponty (1991, p. 81), seria a essência de toda obra de
arte, isto é, o fato de “conter, mais do que ideias, ‘matrizes de ideias’ [que nos faz]
pensar como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo, porque a análise encontra
no objeto apenas o que nele pusemos”.

115
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Tais textos e leituras inscrevem-nos, por conseguinte, em regimes


semânticos ainda não pensados e possíveis de serem apreendidos quanto maior
a torção, o adentramento, o arriscar-se no mesmo jogo – lúdico, tratando-se do
literário – com a linguagem, sem, entretanto, prescindir do papel teórico – ou
lúcido – em relação ao texto inicialmente prestado à decifração. Tratava-se, nessa
linha de ação, de dar continuidade ao movimento, para o qual nunca cessou
de apontar a reflexão fenomenológica, de circunscrição ao redor do que já está
pensado para nele abrir o que, a partir de novas incursões, aponta sempre para
algo ainda a se pensar.

Constitui como que uma lei da cultura não avançarmos senão


obliquamente, tornando-se cada ideia nova, depois daquele que a
instituiu, algo que nele não chegara a ser. Não pode nenhum homem
receber um legado de ideias sem que, pelo simples fato de das mesmas
tomar consciência, as transformar, sem nelas injetar sua própria
maneira de ser, sempre outra (MERLEAU-PONTY , 1991, p. 28).

Esse percurso atesta o próprio filósofo quando, coerente com a matriz de


pensamento husserliana, fez da fenomenologia uma disciplina que, “assim como
a arte, é antes a realização de uma verdade do que o reflexo de uma verdade
prévia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19); com ela declinando da pretensão de
posse objetivada do mundo e, à despeito da sólida construção filosófica que
elaborara até então, obrigando-se indefinidamente a retornar ao nível pré-objetivo
que sustenta toda experiência expressiva.

Assim, quando chega à obra de arte, e, mais especificamente, a refletir


sobre o que fenomenologicamente significa literatura, Merleau-Ponty chega
por exigência, ou mesmo radicalização, de um projeto fenomenológico que
reconheceria na experiência artística – nessa espécie de “fazer” experimentando
com a palavra – uma “filosofia em andamento”, isto é, uma espécie de filosofia
que se deixaria influenciar por nuances da escrita literária.

Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem


mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das
pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso portanto,
essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui
a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no
interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela
mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de
que ela é o teatro (BARTHES, 2007, p. 16).

De fato, ao opor a descrição fenomenológica às formas de discurso que


tratam as palavras de forma auxiliar – como se elas fossem índices provisórios, o
mais das vezes sonoros, de sustentação dos sentidos, que deveriam desaparecer
(ideal de uma ciência e filosofia perfeitas) na medida em que os sentidos fossem
aparecendo –, Merleau-Ponty teria se dado conta de que, para dar a ver a
diversidade da experiência perceptiva, sua própria linguagem teria que encerrar,
nela mesma, uma dimensão também expressiva.

116
TÓPICO 2 | O ESTRUTURALISMO NA LITERATURA

Residiria aí – virtude irrecusável do literário – a dimensão inaugural de


toda escrita, isto é, dos signos nunca se apagarem diante do sentido, de modo
que para ter acesso aos sentidos já falados demanda-se refazer sempre o mesmo
percurso por meio do qual entre uma e outra palavra, ou nos vazios entre elas,
uma certa atmosfera surge a oferecer-nos o pensamento enquanto estilo.

Isso porque a linguagem – assegura-nos contra o conteudismo, o filósofo


– “antes de ter uma significação, ela é significação”, porque opera descentrando
ou privando a linguagem constituída de seu aparente equilíbrio, reordenando-a a
ponto de “ensinar ao leitor – ou mesmo ao autor – o que ele não sabia pensar nem
dizer” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.36).

Dessa característica lacunar da expressividade dos signos, assentirá


Merleau-Ponty, desabona-se tanto a ideia de equivalência entre o texto e a
realidade por ele visada, quanto a de um pensamento que se sustentasse antes,
ou apesar, de sua realização em palavras.

O texto contém nele a força de fugir infinitamente da palavra gregária


(aquela que se agrega), mesmo quando nele ela procura reconstituir-se;
ele empurra sempre mais para longe – e é esse movimento de miragem
que tentei descrever e justificar há pouco, ao falar de literatura – ele
empurra para outro lugar, um lugar inclassificado, atópico, por assim
dizer, longe dos topoi da cultura politizada (BARTHES, 2007, p. 34).

Dessa maneira, se o discurso crítico não abdica da dimensão expressiva


da palavra, então, por meio dessa espécie de abertura, de inacabamento do signo
linguístico, algo como um impensado vem a revelar-se e se sustém, na malha
performática da linguagem, de modo a preparar, como em toda obra de arte,
o tempo propício a sua recepção: “foram os próprios quartetos de Beethoven
(os de número xii, xiii, xiv e xv) que levaram cinquenta anos para dar vida e
número ao público dos quartetos de Beethoven [...]. É preciso que a obra crie a sua
posteridade” (PROUST, 2007, p. 137).

Tratava-se, enfim, de renovar o esforço de dar a ver – ora no olhar, ora na


escrita – a força e o espanto que em certa medida irmanam a inquietação filosófica
aos fazeres da criança e do artista, pois é das lacunas entre as palavras, ou das
falhas do dizer que se retomam a dimensão falante e estruturante da linguagem.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo introdutório sobre o


pensamento fenomenológico em Merleau-Ponty Merleau-Ponty: Filosofia e Percepção”,
realizado pelo filósofo Franklin Silva, no qual apresenta os principais postulados da
fenomenologia da percepção, tema caro ao pensador francês do século XX, no link: https://
www.youtube.com/watch?v=eZs-4fLUJ9c.

117
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O estruturalismo radicalizou os procedimentos formalistas que destacavam a


capacidade singular de cada obra literária de conferir um novo tratamento à
linguagem na medida em que estabelecia novas relações entre as palavras a
despeito da realidade fora dos textos, desfamiliarizando-os e apontando novas
relações não apenas com a linguagem, mas também com o mundo nomeado
fora dela.

• Esse estranhamento que o formalismo observava em cada obra foi observado


pelo estruturalismo, não mais como estranhamento de uma obra em particular,
mas como estrutura presente em obras similares e, dessa forma, passível de ser
catalogado enquanto modos de relação com a linguagem e com os eventos da
realidade como forma estrutural presente em diversas obras.

• O estruturalismo, nesse sentido, radicalizaria o projeto moderno, presente no


formalismo, ao voltar o olhar teórico para o conjunto de obras que demonstram
modos de funcionamento intrínsecos, semelhantes e independentes das
realidades fora dos textos. Os textos responderiam, portanto, mais ao fenômeno
intertextual de diálogo com outros textos, conhecido como intertextualidade,
do que a uma relação de representação com a realidade.

• Nesse sentido, a escola estruturalista é também uma denúncia do caráter


ideológico e social que aparenta, em sua pretensa neutralidade, ser “natural”,
quando tudo é convenção, convenção esta que atravessa como uma estrutura
diversas obras literárias, diversos comportamentos sociais, diversas estruturas
psicológicas individuais, antropológicas etc.

• Ficavam estabelecidos, segundo o olhar estruturalista, critérios que identificam,


a partir das obras, o sentido original proposto pelo autor, ou seja, sua intenção,
e também as significações abertas pelos leitores em seus contextos de recepção.
Assim, no primeiro caso busca-se no texto o que ele propõe ao seu próprio
contexto de origem: cultural, linguístico, histórico; e, no segundo caso, o
analista busca no texto o que nele se implica com o contexto atual dos leitores.

• A fenomenologia, na medida em que isolava a obra a ser analisada das


influências culturais postas inconscientemente pelo sujeito que a lê, influenciou o
estruturalismo, que também foi partidário dos procedimentos fenomenológicos,
cuja linha filosófica iniciada por Edmund Husserl encontraria nas análises de
Maurice Merleau-Ponty uma fenomenologia mais próxima da percepção, que
demonstrava a literatura e a pintura como ocorrências exemplares.

118
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da literatura encontraria no Estruturalismo literário uma


radicalização do projeto moderno iniciado no Formalismo Russo, pois, para
aquela corrente teórica, o olhar analítico deveria se debruçar sobre as formas,
os modelos e funções que se determinavam mutuamente em um conjunto
de obras a despeito da realidade exterior a elas. A partir dessa reflexão, é
INCORRETO afirmar:

a) ( ) Que a identidade de funções presentes nas obras literárias atestavam o


papel secundário das análises clássicas fundadas na ideia de representação,
ou mimese, dos dados da realidade.
b) ( ) Que o estruturalismo captou as estruturas em várias áreas da atividade
humana, não apenas a literatura, mas também na antropologia, na psicanálise
etc.
c) ( ) Que a mimese ou imitação clássica apresentava-se como mais um evento
da modernidade, já que passou a ser também uma perspectiva estruturalista.
d) ( ) Que a ideia de uma literatura realista, vista sob a ótica estruturalista,
destoava da verdade na medida em que o realismo copia uma convenção de
realidade e não a realidade propriamente dita.

2 As teorias literárias do século XX, ao substituírem a ideia clássica de um


mundo existente a ser representado pela linguagem, trouxeram um olhar
dúbio sobre o valor da mensagem literária, já que, do ponto de vista moderno,
aportado pelo formalismo e pelo estruturalismo literários, a mensagem
adquiria um sentido ou uma significação conforme se posicionasse a
perspectiva no polo autoral ou no polo de leitura. Considerando essas
informações, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Significado.
II- Significação.

( ) Atributo de interpretação mais voltado para o polo do emissor da


mensagem em sua esfera autoral.
( ) Atributo de interpretação mais voltado para o polo do receptor da
mensagem em sua esfera de leitura.
( ) Se expressa através da intencionalidade do autor, da instância autoral.
( ) Se expressa através do grau de aceitabilidade ou de não aceitabilidade da
intenção autoral.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – I.
b) ( ) II – I – II – I.
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) I – II – I – II.

119
3 A fenomenologia contribuiu para o olhara moderno que está na raiz tanto do
formalismo, quanto do estruturalismo literário, na medida em que em sua
origem propunha olhar para o fenômeno “entre parênteses”, ou seja, sem
colocar no que seria o objeto toda uma esfera cultural e ideológica vinda do
que seria o sujeito. Para a fenomenologia, portanto, não há sujeito nem objeto,
mas sim uma intencionalidade captada enquanto fluxo de consciência. A
partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
sentenças falsas:

( ) A fenomenologia aplicada à literatura abstrai o contexto histórico e social


para manter seu enfoque sobre o fenômeno de leitura, que faz dela uma
corrente teórica moderna.
( ) Ao abstrair a realidade exterior ao fenômeno a ser estudado, a
fenomenologia facilita o processo de captar as estruturas do fenômeno que
se aliam, portanto, ao método estruturalista de leitura.
( ) A fenomenologia é um fenômeno tão clássico quanto moderno, pois crê na
existência do mundo, na existência de objetos a serem observados, dentre
os quais o livro, o texto literário.
( ) A fenomenologia da percepção, formulada por Merleau-Ponty, esmerou-
se em descrever o fenômeno desde o ponto de vista da experiência, dentre
os quais destacou a experiência com a pintura e a literatura.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – F – V.
d) ( ) V – F – V – V.

120
UNIDADE 2 TÓPICO 3
LITERATURA E SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, em nossa viagem pelas diversas teorias de abordagem
dos textos literários, foi possível notar que as teorias literárias que preponderaram
na primeira metade do século XX tendiam a afastar os textos das referências ao
mundo. Assim, as escolas que desaguaram no estruturalismo literário tinham
um caráter objetivo e uma metodologia científica que pretendiam, em última
instância, realizar um divórcio com a realidade histórica. Em outras palavras, a
literatura, embora tratasse da realidade, teria sua especificidade na forma literária
que nada devia ao contexto de produção ou de recepção das obras.

De fato, essa autonomia teórica foi possível devido ao grande impacto,


ocorrido no começo do século XX, causado pelo surgimento dos novos paradigmas
da linguística moderna, que observavam a língua preponderantemente como um
sistema autônomo em relação aos fatos sociais. Desse modo, a fenomenologia,
o formalismo, o estruturalismo literários e todas as formas críticas imanentes
passaram a observar os textos a partir de seus próprios elementos constituintes.
Resultado: a história e a sociedade, banidas do meio acadêmico, pareciam
condenadas a um papel irrelevante ou secundário.

Assim, a realidade, a história e o contexto biográfico e autoral das obras


pareciam ter perdido seu valor na modernidade, posto que as abordagens
imanentes, características das teorias modernas, ao considerarem a linguagem
como a primeira instância de relação com o mundo, certificavam que tudo o
que devesse ser nomeado teria seu valor atravessado pelas características e
propriedades da linguagem, e não apenas passar através da linguagem.

Em Saussure, a ideia do arbitrário do signo implica a autonomia


relativa da língua em relação à realidade e supõe que a significação
seja diferencial (resultando da relação entre os signos) e não referencial
(resultando da relação entre as palavras e as coisas) [...]. O mundo
sempre é já interpretado (COMPAGNON, 2012, p. 97).

Assim, após as formulações de Saussure, a filosofia, as ciências humanas


e as análises artísticas não seriam mais as mesmas, pois tudo o que houvesse
a ser pensado, antes mesmo de tocar o plano objetivo e existencial das coisas,
deveria ser mediado por esse novo objeto, a linguagem, que interpõe-se entre
o olhar, que observa, e as coisas a serem nomeadas. Surge, a bem dizer, “outro
tipo de crítica que prescinde de qualquer fator externo e se preocupa com o texto

121
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

qua texto. Partindo do princípio de que a obra literária é composta de palavras,


procura extrair o sentido poético operando sobre a estrutura linguística do texto”
(D’ONOFRIO, 2006, p. 40).

Todavia, os eventos tecnológicos desencadeados pelas guerras mundiais


afetariam de tal modo os autores e as correntes teóricas de análise dos textos,
que voltou a ter relevância a literatura como evento ligado aos fatores históricos
e sociais. Assim, ainda em plena modernidade teórica, passou-se a considerar,
nas análises literárias, não apenas o ponto de vista universal e sincrônico (no
mesmo tempo) das obras, mas também o olhar diacrônico (através do tempo) da
literatura:

A oposição fundamental é entre o ponto de vista sincrônico e


universalista sobre a literatura próprio do humanismo clássico –
todas as obras são percebidas em sua simultaneidade, elas são lidas
(julgadas, apreciadas, amadas) como se fossem contemporâneas
entre si, e contemporâneas de seu leitor atual, fazendo-se abstração
da história, da distância temporal – e o ponto de vista diacrônico e
relativista, que considera as obras como séries cronológicas integradas
a um processo histórico (COMPAGNON, 2012, p. 130).

2 O FATO HISTÓRICO INVADE O FATO LITERÁRIO


Vimos que, com a modernidade, parecia ter definitivamente caído por terra
a ideia de representação, da existência concreta de algo para além da linguagem,
cujo exemplo maior foram os ataques frontais à ideia de mimese levadas a cabo
pelo formalismo e pelo estruturalismo literário.

Entretanto, observa-se que o que se atacava não era propriamente o real,


enquanto instância do vivido sempre por fazer, mas as realidades estabilizadas
pelo senso comum. “Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a
literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente:
o real. O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente
representá-lo por palavras que há uma história da literatura” (BARTHES, 2007,
p. 21).

Nesse sentido, se a verdadeira arte literária representa não a realidade, mas


o real, já que aquela seria tão somente um jogo de discursos frutos do consenso,
ou seja, se a “verdadeira realidade” não está do outro lado da linguagem,
mas enquanto “realidade com a linguagem”, decorre daí que a capacidade de
representação e, consequentemente, a mimese, não poderiam mais ser concebidas
com o uso da palavra apenas como objeto comunicativo.

Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura


não quer, nunca quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real
e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa,
talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina
incessante, a literatura (BARTHES, 2007, p. 22).

122
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

Assim, a mimese enquanto cópia da realidade, sem consideração pelo


instrumento “linguagem” que a mediava não se sustentava mais. Uma teoria
moderna que incorporasse os dados sociais que são atualizados pelo real e não
estabilizados por realidades consensuais passava a ser necessária. É essa vertente
que fundamentaria a ideia de literatura e sociedade, ou seja, que há dados sociais
que inevitavelmente impregnam as formas literárias.

Por exemplo, até mesmo a fenomenologia, que está na base especulativa de


várias teorias literárias internas que tendem a excluir de suas análises o contexto,
propunha substituir a falsa explicação do real pela descrição minuciosa desse
real, o que implicava em tornar visível que toda percepção se dá entre um polo
da linguagem, centrado no emissor, e um outro polo, alvo da intencionalidade,
cujo conteúdo se refere a obra.

A mimèsis foi questionada pela teoria literária que insistiu na


autonomia da literatura em relação à realidade, ao referente, ao
mundo, e defendeu a tese do primado da forma sobre o fundo, da
expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da
significação sobre a representação (COMPAGNON, 2012, p. 95).

Nesse polo fenomenológico do conteúdo existencial, a reflexão, ainda que


pairasse em descrições aparentemente desvinculadas do real, acabava revelando
o substrato dos fatos concretos, no qual compareceria, mesmo dentro de uma
redução fenomenológica, não apenas as estruturas da linguagem, mas também a
dinâmica histórica dos acontecimentos e do contexto que mobiliza as produções
literárias e suas respectivas recepções de leitura.

A esse polo histórico e diacrônico associam-se, a pensar com Compagnon


(2012, p. 195), “uma série de termos pertencentes a oposições familiares, como
‘imitação e inovação’, ‘antigos e modernos’, ‘tradição e ruptura’, ‘classicismo e
romantismo’, ou, segundo as categorias introduzidas pela estética da recepção,
‘horizonte de expectativa e desvio estético’’, que particularizam um tipo de crítica
desde sempre impregnado nos estudos de teoria.

O triunfo fácil da teoria da literatura sobre a mimèsis dependia de


uma concepção simplista e exacerbada da referência linguística: ou a
alucinação ou nada. Mas outras teorias da referência mais sutis estão
à nossa disposição há muito tempo: elas permitem que repensemos
as relações da literatura com a realidade e desse modo inocentar
igualmente a mimèsis. Esta explora as propriedades referenciais da
linguagem comum, ligadas sobretudo aos índices, aos dêiticos e aos
nomes próprios (COMPAGNON, 2012, p. 130).

Um teórico ligado ao formalismo russo, que observou a relevância do


jogo social na fundamentação das formas da literatura, foi Mikhail Bakhtin, que
intuiu um princípio dicotômico de composição das obras, ora formadas por uma
percepção idealista e monológica da realidade, ora por uma percepção dialógica,
em contraste àquela, que daria a ver a realidade plurifacetada, rica em vozes
diversas presentes na escrita, que se apresentaria marcada pelo jogo social, tal
como observou na obra de Dostoievski.
123
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

O “polimorfismo” é visto como constituinte específico da estrutura


poética da ficção dostoievskiana. Através de uma análise minuciosa e
exaustiva das obras, Bakhtine salienta as formas poéticas do ficcionista
russo relacionando-as com a “série” literária a que estão ligadas (as
obras de caráter dialógico) e, por sua vez, relaciona a série literária
com a série cultural (a percepção carnavalesca do mundo), isto é, um
tipo específico de concepção de vida, que possibilita a produção de
certas formas artísticas (D’ONOFRIO, 2006, p. 48).

E
IMPORTANT

Nascido em 1895, na Rússia, Mikhail Bakhtin foi pensador e filósofo, além de


teórico de artes e cultura da Europa. Considerado um dos maiores estudiosos da linguagem,
suas obras influenciaram diversas áreas, como: crítica da religião, estruturalismo, semiótica,
marxismo; além das disciplinas: psicologia, antropologia, história, filosofia, crítica literária,
entre outras. Nos anos 60, um grupo de estudiosos redescobriu sua obra, fazendo com
que suas ideias fossem difundidas: menippea, carnavalização, cronotopo, cultura cômica e
polifonia são alguns de seus principais conceitos. Bakhtin produziu várias questões de teoria
geral, teoria e estilo dos gêneros de discurso. É considerado um dos líderes do Círculo de
Bakhtin, grupo formado por intelectuais da Rússia. As principais obras de teoria literária
de Mikhail Bakhtin são: Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais,
Estética da Criação Verbal, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de Literatura
e de Estética.

FONTE: <https://www.infoescola.com/biografias/mikhail-bakhtin/>. Acesso em: 21 out.


2019.

Decorre daí que a literatura, assim como a crítica legítima, teriam que
revelar as forças sociais que animam os conteúdos das obras, que muitas vezes
ditam suas formas expressivas. Ora, os horrores da Segunda Guerra Mundial
forçariam aos escritores a tarefa de legitimar o impossível, o que implicava em
reconhecer as forças sociais e históricas por trás dos fatos, inclusive dos fatos
literários.

Que o real não seja representável – mas somente demonstrável –


pode ser dito de vários modos: que o definamos, com Lacan, como
o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer
se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir
uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional
(a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica
que a literatura não quer, nunca quer render-se (BARTHES, 2007, p.
21).

124
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

FIGURA 6 – INCÊNDIO, HOLLAND HOUSE, LONDRES, 1940

FONTE: <http://webpages.fc.ul.pt/~ommartins/album/images/ruins.jpg>. Acesso em: 10 maio


2019.

Assim, sustentar uma total ausência de referente fora da linguagem


tornou-se uma aventura de tamanho radicalismo que, ao desconhecer a verdade
dos saberes intuitivos, assim como dos saberes parciais do senso comum, a crítica
poderia acabar desconhecendo o próprio fundo social que anima a concretude
das relações humanas, que não estão apenas mediadas pela linguagem. É o caso
das guerras, impossíveis de serem estudadas nas obras a partir de críticas de
natureza imanente.

De fato, com o clima de barbárie, experenciado na Segunda Guerra


Mundial, surgiu uma leva de autores, de reconhecido talento, que expressariam
o absurdo da existência e o “nonsense” (falta de sentido) surgidos diante dos
horrores e das catástrofes ali revelados. Assim, embora reconheça-se o valor
estético, por exemplo, das obras de Albert Camus, Franz Kafka, Samuel Becket,
seria impossível desvincular os efeitos da guerra em suas narrativas.

125
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

A relação entre literatura e guerra é antiga. Um dos textos fundadores da


Literatura Ocidental é o relato de uma guerra: A Ilíada, de Homero. Em textos ainda mais
antigos, que sobreviveram a guerras posteriores – nas quais tudo se queimou, de casas a
bibliotecas – escritores celebraram vitórias ou lamentaram derrotas [...]. O papel do poeta
épico era cantar as glórias de sua nação. São conhecidas as histórias de reis que levavam
poetas a guerras para que seus feitos fossem imortalizados. No caso de derrotas, os
poetas muitas vezes transformavam os acontecimentos em mitos de coragem e bravura,
propagandas militaristas de caráter patriótico. Muitos historiadores argumentam que não se
pode mais falar em Primeira e Segunda Guerra Mundial, mas numa única Grande Guerra,
[pois] as consequências do conflito entre 1914 e 1918 foram sentidas para além dele [...].
As conturbações políticas da República de Weimar, que logo desembocariam no Regime
Nazista e na Segunda Guerra, foram muito bem retratadas no grande romance alemão do
período, Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, e no trabalho de expressionistas que
sobreviveram à Primeira Guerra, como Bertolt Brecht. Após a Primeira Guerra, diminuiu a
frequência com que escritores se lançaram à glorificação bélica, como em alguns daqueles
autores do início do século. Em especial com os horrores da Segunda Guerra, a produção
de autores vê uma transformação. A lamentação pela destruição das cidades permanece.
Entretanto, o apelo patriótico toma forma de chamada à resistência contra a barbárie
nazista.

FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/a-literatura-na-primeira-guerra-mundial/a-17606784>.
Acesso em: 21 out. 2019.

As guerras do século XX, nesse sentido, trouxeram uma transformação


tecnológica (canhões, aviões, navios de guerra) não assimilável pelas formas
artísticas artesanais. No plano teórico, mostrou-se certa determinação histórica
dos fatos para toda a literatura, sem a qual a crítica e a teoria correriam o risco de
permanecer em uma visão imanente e unívoca da em meio a um mundo caótico
e em transformação.

A literatura muda porque a história muda em torno dela. Literaturas


diferentes correspondem a momentos históricos diferentes. Como
observou Walter Benjamin em 1931: “é impossível definir o estado
atual de uma disciplina qualquer sem mostrar que sua situação
atual não é somente um elo no desenvolvimento histórico autônomo
da ciência considerada, mas principalmente um elemento de toda a
cultura no instante correspondente” (COMPAGNON, 2012, p. 194).

Portanto, as relações entre literatura e sociedade se sustentam sobre um


fundo de realidade, a bem dizer o real, que também subjaz nas alusões referenciais
das teorias formalistas e estruturalistas, mesmo que elas a neguem ou lhe deem
pouca relevância, mesmo que tentem fazer pouco caso da mimese, do poder
representacional da arte, mas não pode escapar de um ponto de vista histórico
fundando essa linguagem, o que implica na relevância do contexto comparativo
das obras e sua relação com a temporalidade.

126
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

É contra esse unilateralismo do olhar crítico de base fenomenológica,


formalista ou estruturalista, que observava as obras a despeito de suas condições
de produção e do jogo social que em boa parte determinam os conteúdos da
literatura, que voltaram-se estudiosos consagrados pela escola de Frankfurt,
como Walter Benjamin e Theodor Adorno, cujo atualidade dos pensamentos se
destacam sobremaneira até os dias de hoje.

3 A ESCOLA DE FRANKFURT
“Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo
ridículo [...]. Os seres amados sabem bem disto. Mas se a resposta for sincera [...]”
(CAMUS, 2007, p. 27).

Chegar, como de costume, a mais uma livraria: verticais, perfilados nas


estantes, os livros se expõem, convidativos, agrupados segundo uma classificação
diversa: literatura infantil, literatura de autoajuda, direito, negócios, arte,
filosofia, etc. Trata-se provavelmente de uma taxonomia mercadológica, pode-
se concluir. Assim, a pensar com Walter Benjamin (1987), ao serem etiquetados
como quaisquer objetos, os livros não passariam de simples mercadorias.

Tal fenômeno foi batizado por Benjamin de “perda da aura”, que a seu ver
aparecia como um dos sintomas da modernidade, isto é, o fato de os objetos e as
ações humanas abandonarem a esfera do sagrado e do exemplo – no sentido do
que tem reconhecido valor para ser transmitido a outras gerações – e passarem a
ser experimentados como mais uma coisa dentre outras.

Para nós, para o nosso próprio horizonte de experiências, a mercadoria


produz, enquanto esvaziamento do mundo, exatamente aquilo que a
maneira alegórica de ver havia produzido ainda no século XVII [...].
Benjamin diz, de uma forma muito bonita, “a cosmovisão alegórica
faz jus a este mundo, pois ele é um mundo no qual o detalhe não tem
a menor importância” (BOLZ, 1992, p. 92).

Entrávamos em uma outra espécie de tempo, também moderno, mas


observado a partir das produções e ações marcadas pelo absurdo das grandes
guerras, que fez com que se esvaziassem os valores das coisas e das ações que
transferiam valores a certos objetos e a certas narrativas, cujos fundamentos se
sustentavam, antes das guerras, nas experiências humanas fora da linguagem.

O que temos que perceber agora é que a modernidade estruturou cada


vez mais, através da tecnologia, as funções da percepção, e que faz parte
de nossas experiências mais fundamentais o fato de nossa percepção
ser perpassada por aparelhos e construções. Estas construções, pelo
menos segundo Benjamin, não devem ser entendidas de tal forma que
obstruam a nossa visão natural do mundo (BOLZ, 1992, p. 92).

127
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Dentre esses objetos e narrativas estavam a arte e os artefatos culturais,


que perdiam seu valor de culto, não apenas em decorrência do que transmitiam,
mas também devido ao crescimento dos aparatos tecnológicos, que ultrapassaram
a mão humana, artesanal, por engrenagens velozes e mais eficientes da indústria,
tal como ocorreu às pinturas figurativas, que perdiam lugar para a máquina
fotográfica e as telas dos cinemas.

Os diferentes métodos de reprodução técnica da obra de arte


multiplicaram de forma tão notável as possibilidades de exposição da
obra, que o deslocamento quantitativo entre seus dois polos de valor
provocou uma mudança qualitativa em sua natureza, semelhante
àquela experimentada em tempos primitivos [...]. A fotografia e,
melhor ainda, o cinema fornecem os fundamentos mais úteis para o
estudo dessa questão (BENJAMIN, 2012, p. 17).

Quer dizer, se a obra de arte perdia a sua “aura” – por Benjamin (2012,
p. 14) definida “como uma aparição única de algo distante, por mais próximo
que esteja” – devido aos mecanismos tecnológicos de reprodutibilidade técnica –
pense-se nas fotografias das pinturas consagradas, na fotocópia dos manuscritos
dos grandes autores, na dessacralização da arte provocada pelo cinema e pela
fotografia –, também o ser humano estava sendo contabilizado pelo mesmo
sistema como se fosse uma mercadoria.

FIGURA 7 – ESCOLA DE FRANKFURT, ALEMANHA, 1924

FONTE: <https://sabedoriapolitica.com.br/_files/system_preview_detail_200002228-
1dd881fcbe/Institut.jpg>. Acesso em: 10 maio 2019.

Assim, o ser humano, que parecia ter uma natureza singular, perdia
sua singularidade ao ser observado enquanto objeto de consumo, ou seja, na
qualidade de um tipo de consumidor que consome, enquadrado enquanto
“massa” de pessoas guiadas por gostos e vontades muitas vezes distantes dos
valores individuais de cada um. Enquanto massa de consumo, o homem enquanto
mercadoria podia ser controlado pela propaganda, pelo sistema político, e, no
plano artístico, pelas formas de arte pragmática, utilizadas para fins de controle
social.
128
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

“O aparato técnico da câmara, incapaz de ‘retribuir nosso olhar’, capta a


apatia dos olhos que confrontam a máquina – ‘olhos que perderam a capacidade
de olhar’. É claro que os olhos ainda veem. Bombardeados por impressões
fragmentadas, veem demais – e não registram nada (BUCK-MORSS, 2012, p. 169).

Caro acadêmico, você percebe que muito do que desejamos está de


alguma forma induzido pela publicidade, pelas propagandas políticas, pelas
promoções do comércio, e que esses meios de comunicação estão continuamente
expondo nossa sensibilidade a objetos ou a fazer coisas que não desejaríamos se
não fôssemos motivados por esses mesmos mecanismos de indução? Consegue
observar como esses mecanismos se dirigem não exclusivamente a você enquanto
indivíduo, mas a um conjunto de pessoas, como se você fizesse parte de uma
“massa humana” tratada como mercadoria?

Você deve ter observado o quanto nossos desejos estão condicionados por
mecanismos de sedução mercadológica, que não nos vê como pessoa individual,
mas como uma espécie de mercadoria consumidora de outras mercadorias, sejam
elas serviços, ações ou objetos. Se até nossos desejos estão determinados pela
ideologia de um sistema socioeconômico, impossível pensar em uma literatura e
em uma teoria literária apartadas dessa forma de contaminação histórica.

De fato, com a ascensão do capitalismo na Europa do final de século XIX,


coincidia a ascensão da fotografia e das técnicas de reprodução que substituiriam
a mão humana pela sofisticação técnica e, como consequência direta disso,
findas as inclinações em torno da aura sagrada de determinados objetos, como o
livro, estaríamos todos – autores, obras, leitores – previstos na economia de um
mesmo sistema: “é muito mais importante ver que estes aparelhos e construções
configuram de maneira fundamental – filosoficamente eu diria a priori – a nossa
percepção do mundo” (BOLZ, 1992, p. 92).

No “grande espelho” da tecnologia, a imagem que retorna é deslocada,


refletida num plano diferente, no qual o sujeito vê a si mesmo como
um corpo físico separado da vulnerabilidade sensorial – um corpo
estatístico cujo comportamento pode ser calculado, um corpo atuante
cujas ações podem ser cotejadas com “a norma”; um corpo virtual,
capaz de suportar sem dor os choques da modernidade (BUCK-
MORSS, 2012, p. 185).

129
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

Em 1924, a Escola de Frankfurt reuniu um círculo de filósofos e cientistas sociais


de mentalidade marxista, que cultivavam a conhecida Teoria Crítica da Sociedade. Seus
principais integrantes eram Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert
Marcuse, Leo Löwenthal, Erich Fromm, Jürgen Habermas, entre outros. Essa corrente de
pensamento crítico foi a responsável pela disseminação de expressões como “indústria
cultural” e “cultura de massa”. A Escola de Frankfurt foi praticamente o último expoente da
Filosofia Alemã em seu período áureo: tinha uma sede, o Instituto para Pesquisas Sociais;
um mestre, Horkheimer, substituído depois por Adorno; uma doutrina que orientava
suas atitudes; um modelo por eles adotado, baseado na união do materialismo marxista
com a psicanálise, criada por Freud; uma receptividade constante ao pensamento de
outros filósofos, tais como Schopenhauer e Nietzsche; e uma revista como porta-voz. O
programa por eles adotado passou a ser conhecido como Teoria Crítica. Os integrantes
da Escola assistiram, surpresos e assustados, a deflagração da Revolução Russa, em 1917, o
aparecimento do regime fascista, e a implantação do Nazismo na Alemanha, que culminou
com um exílio forçado do grupo, composto em grande parte por judeus, a partir de 1933.
Essa mudança marcou definitivamente cada um deles, principalmente depois do suicídio
de Walter Benjamin, em 1940, que fugia da polícia nazista. Eles se tornam nômades, [...]
Adorno, até hoje tido como um dos filósofos mais importantes da Escola de Frankfurt,
prosseguiu sua missão de transformação dialética da racionalidade do Ocidente. Sua morte
marca a passagem para o que alguns estudiosos consideram a segunda etapa da Escola,
que encontra seu principal líder em Habermas, ex-assessor de Adorno e, posteriormente,
seu crítico mais ardoroso.

FONTE: Adaptado de SANTANA, A. L. A Escola de Frankfurt. Disponível em: https://www.


infoescola.com/filosofia/escola-de-frankfurt/. Acesso em: 21 out. 2019.

Acerca desse modo “moderno” de produção cultural, a reflexão


benjaminiana capturou um processo de dessacralização da arte, dado através da
suplantação gradativa da ideia de “aura” pelo avanço estético dos procedimentos
que, ao ressaltarem o caráter convencional e arbitrário dos signos – decorrentes
das teorias linguísticas de Saussure – testemunhavam, segundo Kothe (1978, p.
70), o esvaziamento sociológico de um mundo “em que o detalhe, que pode ser
uma pessoa, não é importante, pois pode ser substituído por outro detalhe”.

Segundo o ponto de vista de Benjamin, só existem obras de arte na


medida em que elas estão embutidas na forma de mercadorias. E que
tudo aquilo que foi produzido esteticamente antes da arte pela forma
de mercadoria não tinha a qualidade específica da arte autônoma, mas
tinha caráter de culto [...]. Assim que a arte se constitui, no sentido
próprio que hoje lhe damos, ela é inseparável da forma de mercadoria.
Ou seja, não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria, [...]
não mais existem obras de arte no sentido tradicional, mas existe um
retorno das práxis estética, ou da prática estética (BOLZ, 1992, p. 92).

Esse esvaziamento sociocultural da existência, essa premência do


desmonte das hierarquias que estabilizavam as instituições e os valores
individuais, que estavam afetados pelos dados que se revelaram absurdos após
130
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

o advento das guerras, também denunciavam a ascensão de formas de arte e


de uma literatura não tradicionais, cuja instabilidade indisfarçável, por vezes
incompreensível, afetaria também a escrita.

A escrita alfabética sofre, ao longo do desenvolvimento da


modernidade, mudanças decisivas, que poderiam ser resumidas com
a seguinte frase: “A escrita se emancipa do livro”. A escrita sai do livro,
emigra do livro e imigra para as formas da moda, para as formas da
arquitetura e, sobretudo, naturalmente, para as formas da propaganda.
E por isso, estes fenômenos, moda, arquitetura e propaganda, são tão
infinitamente importantes para Benjamin, justamente por poderem ser
decifrados como escrita (BOLZ, 1992, p. 93).

Para Benjamin, a destituição da aura e o fenômeno da modernidade,


provocada pelo avanço dos aparatos tecnológicos – primariamente voltados
para aperfeiçoamento das máquinas de guerra e que, em um segundo estágio,
incorporaram-se aos usos tecnológicos cotidianos, sociais e culturais –, têm como
marco literário a poesia de Charles Baudelaire na França, visto como o último
poeta lírico frente à ascensão das engrenagens esmagadoras do capitalismo.

A modernidade foge da forma épica. Não dá para contar nada de


instrutivo a respeito da modernidade. Por isto diz Benjamin: “A
história se decompõe em imagens, não em histórias”. É exatamente
isso o que isto significa. Não há mais histórias que possam ser contadas
a respeito da modernidade. A forma épica está gasta, não é mais capaz
de produzir qualquer estímulo (BOLZ, 1992, p. 29).

E
IMPORTANT

Charles Baudelaire (1821-1867) foi um dos mais influentes poetas franceses do


século XIX. Considerado um dos precursores do Simbolismo, inaugurou a modernidade da
poesia. Nasceu em Paris e, com seis anos, ficou órfão de pai, entrando em conflito com o
mundo que o cercava e, especialmente, com seu padrasto militar. Mostra-se melancólico
e solitário e começa a escrever. Por indisciplina, é expulso da escola, época em que decide
se dedicar à literatura e passa a levar uma vida boêmia. Pressionado pela família, embarca
para Calcutá, mas abandona o navio e, ao atingir a maioridade, recebe a herança deixada
por seu pai. Torna-se um boêmio incurável, usuário de ópio e heroína, escandalizando
Paris com a mulata Jeanne Duval, sua amante. Em dois anos havia desperdiçado metade
da herança levando sua mãe a entrar com uma ordem judicial para controlar seus gastos.
O poeta refugia-se no misticismo em busca de experiências exóticas e procura afirmar
sua individualidade e seu desprezo pela sociedade. Lança As Flores do Mal, obra pela qual
é acusado de atentar contra a ordem moral. Baudelaire afirmava que a finalidade de sua
poesia era “extrair a beleza do mal” e comunicar aos homens a tragédia essencial do ser
humano, dividido entre Deus e o demônio. Além de poeta, foi tradutor, ensaísta e crítico
de arte. Traduziu e comentou diversas obras de Edgar Allan Poe, tornando-o conhecido
na França. Entre 1864 e 1866 viveu na Bélgica, quando começaram a surgir problemas de
saúde. Sua obra, que inaugurou a modernidade, só foi reconhecida após sua morte.

FONTE: <https://www.ebiografia.com/charles_baudelaire/>. Acesso em: 21 out. 2019.

131
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

O poeta francês, consagrado pela coletânea As flores do mal, obra lírica


ainda marcada por composições de vanguarda no plano do conteúdo, mantinha-
se tradicional do ponto de vista formal com a preponderância de sonetos, mas
que seria, entretanto, implodida na coletânea Pequenos poemas em prosa, cuja forma
e conteúdo simultaneamente revelavam a presença de um mundo marcado
pelo esvaziamento, apresentando heróis incomuns: velhinhas abandonadas,
personagens marcados pelo tédio e pela loucura, que contradiziam cindiam o
movimento literário, Romantismo, em que o poeta estava aparentemente inserido.

Ao situar a modernidade na estética alegórica de Charles Baudelaire


– poeta ícone do romantismo francês, mas que dele se afastou ao inaugurar,
dentro desse movimento literário, um novo tempo da arte: a modernidade –,
Walter Benjamin observaria que as demandas de mercado impulsionadas pelo
capitalismo emergente na Europa do século XIX, assim como a reprodutibilidade
técnica e os avanços tecnológicos da Paris do segundo império, passariam a
configurar um novo modo de vida e de produção cultural.

Não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria. Ela não


existe, pelo menos do ponto de vista metodológico, para Benjamin.
O que Benjamin pesquisou, por exemplo, no século XVII, sob o título
“emblema e Alegoria”, visava sempre os efeitos de um esvaziamento
do mundo. Quer dizer, a alegoria esvaziara o mundo, tornara-o
isento de substância, aleatório e funcionalmente aplicável em seus
componentes. Este esvaziamento alegórico do mundo é ultrapassado
infinitamente na nossa modernidade tardia, isto é, mais tardar desde
o século XIX, por aquilo que a mercadoria oferece (BOLZ, 1992, p. 92).

Em outros termos, fora da forma aparentemente “vazia” da linguagem,


parecia haver uma substância inscrita nas coisas, também nas aglomerações
humanas propiciadas pela urbanização das cidades e pela tecnologia, que
condicionariam uma nova forma de arte. Assim, de modo distinto às outras
vertentes da modernidade, embora inscrita no mesmo intercurso temporal
da fenomenologia, do formalismo e do estruturalismo literários, essa é a tese
histórica que a escola de Frankfurt buscou dar a ver.

Dos teóricos do pensamento crítico da Escola de Frankfurt – Max


Horkheimer, Jürgen Habermas, Herber Marcuse, Erich Fromm e Gyorgy Lukács,
dentre outros –; afora o estudo das narrativas literárias desde um ponto de vista
marxista realizada por Lukács, dois teóricos se notabilizaram ao sustentarem
pontos-de-vista opostos e complementares, para o bem e para o mal, acerca das
relações entre a obra de arte e as técnicas de reprodução: Theodor Adorno e
Walter Benjamin.

132
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo introdutório à teoria crítica


Teoria Crítica – Escola de Frankfurt, que caracterizou um estilo de pensamento histórico
surgido na Escola de Frankfurt, voltado contra o consumismo alienado e desenfreado do
capitalismo do século XX, que Theodor Adorno desenvolveu em torno do conceito de
“indústria cultural”, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=gRkrTYdJteU.

4 A QUERELA ADORNO-BENJAMIN
A modernidade, e a crítica a ela filiada, observada desde um ponto de
vista não imanente à arte e às obras literárias – em contraposição, portanto,
ao formalismo russo, ao estruturalismo francês e, em parte, às abordagens
fenomenológicas da literatura – ou seja, quando buscasse captar o modo de ser
das obras em relação aos panoramas histórico, social e econômico teria que se
deparar, inevitavelmente, com os fenômenos tecnológicos que atingiam os meios
de convivência social, as relações do trabalho, assim como os artefatos culturais.

As mudanças de exposição ocasionadas pela reprodutibilidade técnica


também podem ser constatadas no plano político [...]. As democracias
expõem seus governantes de forma direta pessoalmente diante dos
seus representantes: o parlamento é o seu público! Mas, como as novas
técnicas permitem que o orador seja ouvido e visto por um número
indefinido de pessoas, essa exposição do político diante da máquina
torna-se mais importante do que aquela anterior (BENJAMIN, 1992,
p. 37).

De fato, se colocarmos o horizonte histórico da modernidade no


contexto industrial do entreguerras, notaremos que, desde um ponto de vista
mercadológico, os artefatos culturais e, dentre eles o livro, passaram a ser tratados
não mais como objetos sagrados, ou consagrados ao culto, mas como mercadorias,
passíveis de serem exploradas pelos modos de produção e de comercialização do
sistema capitalista em franca expansão na Europa do século XX.

Husserl, o fundador da fenomenologia moderna, escreveu na virada


para o século XX, na era em que a profissionalização, a perícia
técnica, a divisão do trabalho e a racionalização dos métodos estavam
transformando as práticas sociais [...]. O que houve de novo foi o tema
da coletividade social e a divisão do trabalho a que o processo criativo
passou a se submeter (BUCK-MORSS, 2012, p. 180).

Entrávamos, por conseguinte, numa forma distinta de percepção


claramente afetada pela reprodução técnica, que mudaria substancialmente as
relações com a obra de arte na medida em que tornava possível, através das
reproduções, uma arte voltada para o grande público, que alcançaria inclusive o

133
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

homem iletrado, isto é, o indivíduo das “massas”, para falar com Benjamin (2012),
ao possibilitar-lhe a substituição da contemplação pictórica praticada nos museus
pela velocidade e pelos choques das imagens vistas nas salas dos cinemas, por
exemplo.

O ensaio de Walter Benjamin intitulado A obra de arte na era da sua


reprodutibilidade técnica é tido, em geral, como uma afirmação da
cultura de massas e das novas tecnologias por meio das quais ela é
disseminada. Com razão. Benjamin enaltece o potencial cognitivo e,
portanto, político da experiência cultural mediada pela tecnologia,
privilegiando particularmente o cinema (BUCK-MORSS, 2012, p. 155).

Esse fenômeno, latente com a formação dos grandes centros urbanos,


irradiados desde a Paris do século XIX – observado por Walter Benjamin no ensaio
sobre Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo – expandiu a capacidade
urbana das cidades através do alargamento das vielas transformadas em
avenidas, também possibilitou a configuração de novas aglomerações humanas,
cuja existência passava a ser regulada pelo poder de comunicação da arte e da
propaganda.

Theodor Adorno, por seu turno, verá a reprodutibilidade técnica


desfavoravelmente, como um fenômeno de alienação das massas mobilizada
por expedientes mercadológicos que denominará de “Indústria cultural”. Walter
Benjamin, por sua vez, observará na destituição da aura pela reprodução técnica
um modo de disseminação do contato com a arte, que antes se limitava a um
público restrito, quase aristocrático; tornando-a mais acessível às massas.

FIGURA 8 – PENSADORES CRÍTICOS DA ESCOLA DE FRANKFURT: THEODOR ADORNO


(ACIMA, NO CENTRO) E WALTER BENJAMIN (ABAIXO, NO CANTO À DIREITA)

FONTE: <http://twixar.me/3Q3T>. Acesso em: 10 maio 2019.

134
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

Em carta a Walter Benjamin, seu amigo Bernhard Reich surpreende-se


com a agudeza do pensamento benjaminiano acerca da suplantação da aura pela
técnica, posto que Benjamin observa tal fenômeno desde um prisma histórico
e descritivo, sem valorar negativamente a reprodutibilidade, tal como a ela se
contraporão boa parte dos teóricos de Frankfurt, como Horkheimer e Adorno.

Meu querido amigo, é absolutamente correta a sua afirmação de que


a existência das massas tornou viável a reprodução técnica e que a
busca da massificação da reprodução técnica exerceu, ela própria, uma
influência decisiva na estrutura da obra de arte. O senhor crê que, entre
outras consequências, a reprodução técnica massiva trouxe consigo a
perda da aura (SCHÖTTKER, 1992, p. 120).

A obra de arte encontrava, desde aí, um público expandido que, por razões
diversas impossibilitado de aceder ao universo dos museus e, consequentemente,
ao contato direto com as obras originais, poderia, entretanto, encontrar nas
reproduções daquelas obras um substituto capaz de instruir sem, entretanto,
competir com sua autenticidade. Essa ideia positiva da reprodução técnica está
na base do pensamento benjaminiano, em parte ligado às diretrizes da teoria
crítica de Frankfurt.

Justamente porque a autenticidade não pode ser reproduzida, a


introdução de determinados processos técnicos de reprodução levou
a uma gradação da autenticidade. Essa era uma importante função
do comércio da arte, pois ele tinha interesse palpável em diferenciar
impressões de uma gravura em madeira que tivessem sido feitas antes
ou depois de uma gravura de cobre e suas semelhantes (BENJAMIN,
1992, p. 34).

FIGURA 9 – MONALISA, LEONARDO DA VINCI – MUSEU DO LOUVRE

FONTE: <https://st2.depositphotos.com/1166351/5427/i/950/depositphotos_54278561-stock-
photo-tourists-take-photos-of-mona.jpg>. Acesso em:10 maio 2019.

135
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Muito mais do que questionar a autenticidade das obras através da


reprodução técnica, Benjamin apontava para uma nova forma de apreciação que
já a sua época estava sensorialmente comprometida pelas influências tecnológicas.
Tomemos, por exemplo, nos dias de hoje – em pleno avanço tecnológico do
século XXI, com as modernas máquinas fotográficas ou aquelas automatizadas
em aparelhos celulares – alguém que visite a obra Monalisa de Leonardo da Vinci,
que se encontra exposta no museu do Louvre em Paris.

Os adventos tecnológicos mudaram a nossa percepção da arte e do mundo.


Hoje, se vamos ao museu do Louvre ver de perto a Monalisa, você acredita que,
como antigamente, contemplamos a obra em profundidade buscando captar
silenciosamente a complexidade dos traçados e das cores captados pelo pintor
italiano? Ou substituímos essa antiga forma de contemplação pela pose diante de
uma foto que tiramos ao lado da imagem original, o que implica em reconhecer
que nosso olhar atual está mediado pela tecnologia de uma máquina fotográfica
ou de um aparelho de celular?

Você deve ter notado, caro acadêmico, a atualidade da reflexão de


Walter Benjamin acerca da perda da aura e de sua suplantação pela técnica de
reprodução. No caso do museu, da Figura 9, a Monalisa aparece não como centro
de contemplação de uma subjetividade dita moderna, mas como fundo de uma
nova percepção menos sensorial e mais ligada à tecnologia dos aparelhos de
fotografia e imagem; uma forma de percepção menos humana, portanto, tal como
acusaria Theodor Adorno.

Pensemos juntos, caro acadêmico. Para os que não podem ir a Paris ver a
pintura de Leonardo no museu do Louvre, a técnica de reprodução, observada
pelos teóricos de Frankfurt, no século passado, dão-nos não só a possibilidade
de acesso à Monalisa, que está no Louvre, como também a todas as obras de Da
Vinci, não importa onde elas estejam. O mesmo fenômeno se estende aos demais
artistas consagrados: Van Gogh, Piet Mondrian, Pablo Picasso, Michelangelo etc.

Na medida em que se seculariza o valor de culto da imagem, tornam-


se cada vez mais indeterminadas as noções a respeito da substância
que constitui o seu valor único. O espectador tende cada vez mais
a substituir a unicidade do fenômeno presente na imagem do culto
pela unicidade empírica do artista ou da sua arte [...]. O conceito de
autenticidade jamais cessa de se remeter a algo além da certificação de
autenticidade (BENJAMIN, 1992, p. 35).

Nesse contexto, podemos crer, tal qual Benjamin, que as técnicas de


reprodução das obras propiciaram um melhor acesso à cultura, tornando-a
mais acessível ao público em geral, embora esse acesso não seja propriamente
ao original, e essa é a questão de Adorno, ou seja, que essa forma de acesso,
dado pela reprodução técnica, pode comprometer a profundidade de leitura e
contemplação das obras.

136
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

Cabe lembrar que ambos os pensadores, filhos do pensamento teórico e


crítico de Frankfurt, tinham projetos semelhantes, um para a crítica literária, outro
para a música. Mas, de fato, enquanto Benjamin lia a história, Adorno a lia através
de Benjamin. Resultado: o pensamento de Adorno retém-nos na perspectiva
ainda da modernidade; o de Benjamin, lança-nos diretamente no contemporâneo.

Gostaria de formular, nesse contexto, a teoria de que, quanto à sua


orientação estética, Benjamin reagiu aos choques da Primeira Guerra
Mundial – e que Adorno reagiu a Benjamin [...]. Benjamin quer ser o
melhor crítico literário – digamos da Alemanha, ou, entre parênteses,
da Europa – e ao mesmo tempo, não quer esquecer a carreira acadêmica.
Adorno que ser o melhor crítico musical do seu tempo e nem pensa em
esquecer sua carreira acadêmica (FONTAINE, 1992, p. 99).

Vale lembrar que Adorno publica, em 1947, junto a Max Horkheimer,


o artigo Indústria cultural para enfatizar a utilização da tecnologia para fins
potencialmente comerciais e de alienação cultural, já que a reprodutibilidade
técnica se prestava, em última instância, não em dar acesso aos clássicos, mas de
diluir o contato com a verdadeira arte. De certo modo, sua visão pessimista da
indústria se confirma quando ela valoriza a quantidade sobre a qualidade.

Observe-se, nessa linha de raciocínio, o destaque para a produção de


literatura de valor questionável, em que volumes de sucesso propulsionam a
produção contínua de obras superficiais marcadas pelo signo, não da complexidade
e da investigação profunda dos valores humanos, mas de conteúdos fáceis,
marcados pela preponderância da falta de instrução do leitor potencializado por
essas instâncias de mercado.

NOTA

Segundo Adorno, na Indústria Cultural, tudo se torna negócio. Enquanto


negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais. Um exemplo disso, dirá ele, é o cinema. O que
antes era um mecanismo de lazer, ou seja, uma arte, agora se tornou um meio eficaz
de manipulação. Portanto, podemos dizer que a Indústria Cultural traz consigo todos os
elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel especifico,
qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema.
É importante salientar que, para Adorno, o homem, nessa Indústria Cultural, não passa
de mero instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto. O homem é tão bem
manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho.
[...] O consumidor não precisa se dar ao trabalho de pensar, é só escolher. É a lógica do
clichê. Esquemas prontos que podem ser empregados indiscriminadamente só tendo
como única condição a aplicação ao fim a que se destinam. Nada escapa a voracidade da
Indústria Cultural.

FONTE: <http://www.urutagua.uem.br/04fil_silva.htm>. Acesso em: 21 out. 2019.

137
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

Ainda na linha do pensamento de Adorno, esse fenômeno observa-se


mais na parcela da população de menor nível de instrução, ou seja, no despreparo
das “massas” para ler em profundidade, incapaz de releituras infinitas de uma
mesma obra que, por ser clássica, pouco aquece o mercado editorial. A bem
da verdade, os clássicos rivalizam com o mercado e favorecem a formação da
subjetividade e da educação.

A releitura, prática contrária aos hábitos comerciais e ideológicos [...]


que recomenda “jogar fora” a história uma vez consumida para que se
passe a outra história, para que se compre outro livro [...] é capaz de
salvar o texto de repetição (aqueles que não releem estão condenados
a ler em tudo a mesma história); já não se trata de consumo, mas de
um jogo (esse jogo que consiste no retorno do diferente). Portanto, se
relemos o texto é para chegarmos [...] não ao verdadeiro texto, mas ao
texto plural: mesmo e novo (BARTHES, 1992, p. 49).

Quer dizer: diante de Shakespeare, Proust, Guimarães Rosa etc., o


investimento volta-se para a qualidade escolar e para o conteúdo das obras. Para
o mercado, a quem importa o poder de venda, interessa a capa do livro, o leitor de
baixa instrução, a avidez por comprar. Roland Barthes sustenta, no contraponto
disso, a releitura enquanto estratégia de aprofundamento contra a reedição do
“mesmo”, mesmo texto em outra capa ou título, por assim dizer.

Condiz com o pensamento de Benjamin, que via a reprodutibilidade


por outro ângulo: o de dar acesso aos grandes textos, tal como disse, através da
máxima do flâneur (daquele que passeia pela cidade com olhar artístico) em seu
livro Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo: “em nosso mundo uniformizado,
é ao lugar que estamos, e em profundidade, que precisamos ir; o mudar de país e
a surpresa, o exotismo mais cativante, estão bem perto” (HALÉVY, 1932, p. 153).

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo introdutório Indústria


Cultural e Cultura de massa, que, de modo sintético, relaciona as características centrais
das teorizações de Walter Benjamin e Theodor Adorno sobre a reprodutibilidade técnica
e a cultura de massa, situando-as não apenas no contexto da Escola de Frankfurt, mas
apontando a atualidade de tais teorias da cunho histórico, no link: https://www.youtube.
com/watch?v=3jLpR344d0A.

138
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

VLADIMIR PROPP: DO FORMALISMO LITERÁRIO AO


ESTRUTURALISMO

Salvatore D’onofrio

O formalista russo Vladimir Propp publicou em Leningrado, em 1928, a


Morfologia do conto. Essa obra, duas décadas mais tarde traduzida para o inglês, o
italiano e o francês, obteve sucesso internacional e foi comparada a outras obras
que causaram uma verdadeira revolução no campo da cultura: A origem das
espécies, de Darwin; O capital, de marx; Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de
Freud.

Realmente, Propp foi um revolucionário. Antes dele, o texto artístico


era submetido a uma abordagem externa: estudava-se a vida do autor, o meio
cultural em que viveu, a escola literária a que pertenceu. Propp foi o pioneiro
da abordagem interna ou estrutural do texto literário. Uma narrativa é vista
como uma obra de arte que, assim como uma estátua ou um quadro, uma vez
produzida passa a ter uma vida independente do autor e da época. Tem de ser
apreciada através da análise de seus elementos constitutivos. Morfologia significa
estudo da forma ou da estrutura, pois os componentes principais do texto literário
são vistos não isoladamente, mas inventariados pelas relações necessárias que
estabelecem entre si.

O estudioso russo parte do pressuposto de que a narrativa, como qualquer


organismo, humano, vegetal ou mineral, é composta de partes essenciais ou
genéricas e de partes contingentes ou específicas. Operando por abstração,
Propp individualiza os elementos comuns e invariáveis próprios de um gênero,
separando-os dos elementos particulares de uma espécie. Analisando o corpus
de cem contos maravilhosos, salienta 31 sintagmas narrativos, constantes na
generalidade dos contos, que condensa em lexemas metalinguísticos, tais como
afastamento, interdição, dano etc. Tais átomos narrativos, que Propp denomina
funções, ligados entre si pelo mecanismo da causalidade, constituem o arcabouço
da fábula de uma narrativa.

A função é assim definida por Propp: “a ação de uma personagem, definida


do ponto de vista de seu significado ou desenrolar da intriga”. Deduz-se, então,
que toda função é uma ação, mas a recíproca não é verdadeira, porque, para ser
considerada uma função, a ação de uma personagem deve estabelecer relações
de causa ou de efeito com outras ações distribuídas no eixo sintagmático da
narrativa. Vejamos as 31 unções inventariadas por Vladimir Propp.

1. Afastamento: uma personagem afasta-se de sua casa para ir trabalhar, ir à


guerra, fazer negócios etc. Essa ação implica a passagem de um espaço tópico
ou de segurança (casa) para um espaço atópico ou de insegurança (floresta,
mar etc.).
139
UNIDADE 2 | PANORAMA MODERNO DA LITERATURA

2. Interdição: geralmente essa função é provocada pelo afastamento, pela saída


do lugar de segurança (os pais proíbem a menina de entrar na floresta). Na
forma inversa, a interdição é uma ordem (voltar antes de escurecer).
3. Transgressão: a interdição (expressa ou implícita) é violada pela personagem,
futura vítima, que já começa a sofrer os efeitos da presença do agressor.
4. Interrogação: o agressor tenta obter informações da futura vítima no intuito
de pôr em prática seu plano de cometer o dano.
5. Informação: emparelhada com a anterior, essa função consiste na resposta da
vítima à pergunta do agressor.
6. Engano: o agressor, geralmente disfarçado, utiliza meios enganosos para
persuadir a vítima.
7. Cumplicidade: sem querer, a vítima deixa-se enganar e assim ajuda seu
inimigo; evidentemente, trata-se de uma cumplicidade involuntária.
8. Dano: chegamos assim à função central do conto maravilhoso e de qualquer
tipo de narrativa. As sete funções anteriormente elencadas podem ser
consideradas como preparatórias à função do dano. Essa ação aparece com
duas modalidades: dano por maldade sofrida (roubo, rapto, calúnia etc.);
dano por falta de alguma coisa (carência de amor, de dinheiro, de saúde, etc.).
9. Pedido de socorro: anunciada a existência do dano, entra em cena o herói para
repará-lo.
10. Início da ação contrária: o herói aceita a incumbência de reparar a maldade
cometida.
11. Partida: o herói deixa sua casa e parte em busca do agressor.
12. Função do doador: essa personagem, no conto maravilhoso, exerce o papel
de ajudante do herói. Antes de propiciar-lhe a ajuda, submete o herói a uma
prova.
13. Reação do herói: o herói supera a prova.
14. Recepção do objeto mágico: consequência imediata do cumprimento da tarefa
é o recebimento da ajuda de que necessita, que pode consistir numa espada
milagrosa, num cavalo alado, num tapete voador etc.
15. Deslocamento espacial: o herói é levado perto do local onde se encontra o
objeto de sua demanda.
16. Luta: o herói defronta-se em combate com o agressor.
17. Marca: o herói recebe uma marca por ferimento ou outro tipo de sinal para
seu reconhecimento futuro (um anel, um lenço etc.).
18. Vitória: o herói vence o agressor.
19. Reparação: o herói repara o dano inicial, recuperando o objeto de demanda.
20. Volta: o herói inicia o caminho de retorno ao lugar tópico.
21. Perseguição: uma personagem, que geralmente é um ajudante do agressor
derrotado, persegue o herói.
22. Socorro: o herói é salvo de seus perseguidores ou por mérito próprio ou com
a ajuda de outra personagem.
23. Chegada incógnita: o herói regressa ao lar, às vezes disfarçadamente, pois a
longa ausência tornara seu local de origem inseguro.
24. Pretensões falsas: outra personagem usurpa o papel de herói, atribuindo
falsamente a si as ações gloriosas.

140
TÓPICO 3 | LITERATURA E SOCIEDADE

25. Tarefa difícil: para dirimir a dúvida sobre a identidade, o herói é submetido a
uma prova (de mestria, de força etc.).
26. Tarefa cumprida: o herói supera a prova.
27. Reconhecimento: graças à tarefa, à marca recebida durante a luta contra o
agressor, ao anel ou outro sinal, o herói é reconhecido como tal.
28. Desmascaramento: o falso herói é reconhecido como um impostor.
29. Transfiguração: o herói recebe uma nova aparência que certifica sua glória.
30. Punição: o falso herói ou agressor é punido.
31. Casamento: o herói casa-se com a princesa e ascende ao trono.

O conceito de função, suas regras e seus corolários (número limitado,
ordem rígida de sucessão, independência das funções em relação personagens
ou à maneira de seu preenchimento) têm sido objeto de estudos posteriores por
parte de estruturalistas, semanticistas, antropólogos que, tendo o texto proppiano
por modelo, procuraram aperfeiçoar seu método de análise e alargar o campo de
sua aplicação.

FONTE: D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São


Paulo: Ática, 2006, p. 65-69.

141
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• As teorias literárias imanentes voltavam-se contra as críticas que tentavam


explicar, de modo simplista, a obra pelo contexto autoral, pela biografia do
autor. É conhecido o prognóstico positivista “o homem é o homem e suas
circunstâncias”, que animou em boa parte o debate do Naturalismo e do
Realismo literários. A linguagem, nessa acepção extrínseca, seria transparência
e não uma instância fundadora da própria realidade.

• Contra essa cegueira, que não observava em profundidade o processo artístico


e literário, a fenomenologia voltou sua atenção para o mundo da percepção,
captando as formas e estruturas que permaneciam nas narrativas a despeito
das mudanças sócio-históricas e temporais vividas pelas gerações.

• Os eventos tecnológicos motivados pelas primeiras grandes guerras do século XX


não permitiam mais desvincular a realidade social, histórica e política das obras de
arte, afetadas pela tecnologia e pela transformação do ser humano em mercadoria.
A escola de Frankfurt, especialmente as reflexões de Walter Benjamin e Theodor
Adorno vieram inserir, em profundidade, o tema da arte e sociedade.

• Enquanto Walter Benjamin acreditava no valor positivo da reprodutibilidade


técnica na medida em que, tornando acessível as grandes obras às massas,
poderia promover um evento educacional revolucionário de transformação
social, Theodor Adorno via com desconfiança a popularização da cultura por
meios tecnológicos. Para Adorno, que cunhou o termo Indústria cultural, o
mercado sempre impõe padronização dos produtos culturais com a intenção
de manipular as massas.

• Um ou outro teórico, embora discordantes em alguns pontos, atestavam que


as teorias que não considerassem a realidade histórica – não as realidades
estanques pensadas pelo dogmatismo “naturalista” – chegariam a perder o
poder e comunicabilidade, pois é fato: ainda que o vivido deva ser considerado
a partir da linguagem que o formula (tese central da modernidade), algo
entretanto se sustenta fora da linguagem.

CHAMADA

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142
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da moderna literatura centrou o seu discurso – fenomenologia,


formalismo, estruturalismo – na natureza interior das obras literárias a
despeito dos meios sociocultural e mercadológico de produção. Entretanto,
com o advento tecnológico propiciado pelas duas guerras mundiais não
seria mais possível excluir o contexto exterior das obras literárias em suas
teorizações, ressuscitando o debate, em outros termos, sobre literatura e
sociedade. A partir dessa reflexão, é INCORRETO afirmar:

a) ( ) Que o aperfeiçoamento dos meios de comunicação tornaram de certa


forma obsoletas as concepções de arte contemplativa, nas quais a tela e o
livro originais, por exemplo, mantinham uma certa “aura” sagrada.
b) ( ) Que o debate sobre arte e tecnologia seria imprescindível em um mundo
marcado pelos avanços bélicos e tecnológicos.
c) ( ) Que a realidade, estilhaçada pela destruição das cidades e das pessoas,
impregnava inevitavelmente a arte, a literatura, especialmente com as
noções de arte do absurdo e do nonsense.
d) ( ) Que arte e sociedade, apesar das interferências tecnológicas provocadas
na percepção humana pós-guerra continuavam a ser um desvio do
verdadeiro caráter teórico sobre a literatura, que na modernidade seria
imanente.

2 A Escola de Frankfurt inaugurou, no começo do século XX, a quinta


etapa do pensamento filosófico alemão ao desenvolver uma linha teórica
conhecida como pensamento crítico, que observou a sociedade a partir de
teorias marxistas e das diretrizes da psicanálise freudiana. A teoria literária
daí decorrente, refletiria sobre a transformação da obra de arte segundo
a transformação social operada pelas novas tecnologias. A partir dessa
reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as sentenças
falsas:

( ) O pensamento crítico pensaria sua fundamentação teórica a despeito da


realidade entreguerras vivida na Escola de Frankfurt.
( ) A escola de Frankfurt notabilizou o pensamento crítico ao discorrer sobre
os impactos das novas tecnologias na produção das obras de arte.
( ) Expoentes do pensamento crítico, como Walter Benjamin e Theodor
Adorno, sustentaram posicionamentos contrários, um favorável outro
desfavorável, em relação à perda da aura e à reprodução técnica das obras
de arte.
( ) A reprodutibilidade técnica, embora tenha alcance na realidade atual, não
impactou o mundo ocidental do século XX, onde floresceu o pensamento
de Frankfurt.

143
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – V – V – F.
c) ( ) V – V – F – V.
d) ( ) V – F – V – V.

3 A confrontação dos pensamentos de Walter Benjamin e Theodor Adorno tem


origem na reflexão do primeiro sobre a destituição da aura das obras de arte
através da reprodutibilidade técnica. Benjamin observava positivamente
tal fenômeno na medida em que torna a arte acessível à grande massa
social antes excluída de tal possibilidade. Adorno, ao contrário, via na
reprodutibilidade e na substituição do estilo em arte pela propaganda um
fenômeno cujo centro gira em torno da superficialidade e do consumo.
Considerando essas informações, associe os itens, utilizando o código a
seguir:

I- Theodor Adorno.
II- Walter Benjamin.

( ) Para esse teórico, não há diferença entre arte e mercadoria.


( ) Ao formular o conceito de indústria cultural, esse teórico apontará a
regressão do ouvido musical dada pelas músicas de entretenimento
divulgadas pelas rádios.
( ) Formula a ideia de que a obra de arte, enquanto detentora de uma aura,
tem os dias contados, mas que sua substituição não é de todo negativa, já
que torna a arte acessível às massas.
( ) Para ele, a esfera burguesa da contemplação ligada a aura das obras de arte é
substituída pelo poder comunicacional da máquina, da reprodutibilidade.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – I.
b) ( ) II – I – II – II.
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) II – II – I – II.

4 (ENADE, 2006) A indústria cultural consiste na reprodução em série


de elementos culturais, da arte e do entretenimento. Segundo Adorno e
Horkheimer, “o cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada
setor é congruente em si mesmo, e todos o são em conjunto”. Para Adorno,
“a novidade que esta [indústria cultural] oferece continuamente é apenas
a representação, em formas sempre diferentes, de algo igual”. De acordo
com o pensamento de Adorno e de Horkheimer expresso acima acerca da
indústria cultural, assinale a opção CORRETA:

FONTE:<http://download.inep.gov.br/download/enade/2006/Provas/PROVA_DE_
COMUNICACAO_SOCIAL.pdf>. Acesso em: 24 out. 2019.

144
a) ( ) O mercado de massa impõe padronização e organização na produção
cultural.
b) ( ) Os produtos culturais possuem alta qualidade e fogem aos estereótipos.
c) ( ) A indústria cultural não exerce domínio sobre o público.
d) ( ) A indústria cultural não apresenta novidade entre a reprodução e a obra
original.
e) ( ) O mercado de massa incorpora o novo e o diferencial de uma obra.

145
146
UNIDADE 3

PANORAMA PÓS-MODERNO DA
LITERATURA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final dessa unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender como o pós-estruturalismo incorporou dados exteriores à


análise das obras, não de um modo determinista, mas aprofundando as
perspectivas teóricas conquistadas na modernidade;

• perceber como a centralidade do autor e da ideia de origem decaíram nas


análises pós-estruturalistas, renovando os horizontes de leitura na medi-
da em que tornaram os leitores mais produtivos;

• observar a importância de inclusão dos meios digitais nos estudos literá-


rios, especialmente a partir do gênero hipertexto, que aponta para uma
pedagogia sincrônica em sala de aula;

• relacionar a literatura com outras formas artísticas a partir das mútuas


relações intersemióticas constatadas entre as diversas formas de arte.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA


TÓPICO 2 – A QUEDA DA AURA LITERÁRIA
TÓPICO 3 – DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E
OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

CHAMADA

Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em


frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás
melhor as informações.

147
148
UNIDADE 3
TÓPICO 1
PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, estamos entrando na última etapa de nossa viagem
pelo universo da teoria da literatura, através da qual vimos as análises literárias
assumirem dois lugares de observação aparentemente distintos: “de fora para
dentro” e “de dentro para fora”. Todavia, com o passar do tempo, quanto mais
aprofundaram-se as teorias, mais essa distinção dos tipos de análise foi ficando
menos nítida passando a combinar-se, ainda que uma certa perspectiva – de fora
ou de dentro – prevalecesse.

É assim que, por um viés didático das teorias, pudemos assistir à passagem
cronológica da perspectiva clássica para a perspectiva moderna, assim como
veremos a passagem da perspectiva moderna para a contemporânea, na qual a
cena pós-estruturalista vem enfatizar um olhar social (de fora para dentro) das
obras literárias, sem, entretanto, desconsiderar os aspectos internos (de dentro
para fora), que as singularizam.

Assim, nas duas primeiras unidades, abordamos os panoramas clássico e


moderno da literatura segundo teorias literárias que para a época os sustentaram
e que ainda lhes são correspondentes. Na presente unidade, interessa-nos estudar
o panorama contemporâneo da literatura, no qual o fenômeno literário, seja na
esfera da produção, seja na esfera da recepção das obras, está sobremaneira
afetado pelos artefatos culturais tecnológicos pelos eventos sócio-políticos ligados
ao fenômeno cultural da globalização.

Em todas as artes há um aspecto físico que não pode mais ser


considerado ou tratado como no passado, pois não pode mais se
furtar aos efeitos da ciência e da práxis moderna. Matéria, espaço e
tempo não são mais o que eram há vinte anos. Inovações tão colossais,
que alteram o conjunto das técnicas artísticas, acabam por influenciar
a própria invenção e talvez terminem por modificar da forma mais
extraordinária o próprio conceito de arte (VALÉRY, 1944 apud
BENJAMIN, 1992, p. 9)

De fato, e em parte devido a esses mesmos avanços tecnológicos, a


universalização das literaturas, antes de tendência marcadamente nacionais,
daria maior visibilidade à dinâmica das classes sociais e às demandas etnográficas
– como as questões raciais, de origem, de gênero, de cor de pele etc., antes, pouco
evidentes no debate literário – trazendo a discussão também para o plano social e

149
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

passando a questionar o valor estético das obras, por séculos consagrado a partir
da ideia de um cânone estético centrado no valor inerente a elas mesmas, sem,
contudo, questionar acerca dos sujeitos implicados nessa mesma ideia de valor.

Essa ideia moderna de dimensionar o valor das obras por critérios como
a neutralidade, isto é, a partir de valores inerentes às obras, parecia desdenhar
dos sujeitos nelas implicados, como se o autor e o leitor por elas exigidos fossem
necessariamente tributários do paradigma secular do cânone literário, assim
como das teorizações fundadas na concepção moderna de autonomia da arte, que
centravam a análise no material inerente a cada modalidade artística a despeito
da realidade implicada fora do texto.

Para a teoria literária, nascida do estruturalismo e marcada pela


vontade de descrever o funcionamento neutro do texto, o leitor
empírico foi igualmente um intruso [...]. Quando chegaram a atribuir
um lugar ao leitor em suas análises, contentaram-se com um leitor
abstrato ou perfeito: limitaram-se a descrever as imposições textuais
objetivas que regulam a performance do leitor concreto, desde
que, evidentemente, ele se conforme com o que o texto espera dele
(COMPAGNON, 2012, p. 140).

Acontece que “essa realidade” fora do texto tinha mudado radicalmente


após o evento das grandes guerras, adentrado inclusive o temperamento e a
verve literária de muitos escritores canônicos, trazendo à baila a importância do
social e do histórico de um modo irrecusável, fato que demonstrava que os fatores
sociais e históricos não pairam à margem da determinação interna do cânone e
das estruturas dos textos literários.

Dessa forma, embora no panorama moderno defendesse não o assunto


“falta de sentido existencial do homem do pós-guerra”, mas sim “a forma”
como esse assunto era tratado por meio da linguagem, ainda assim os conteúdos
vividos, ao moldarem o temperamento de escritores e leitores, compareceriam
com suas marcas nas cenas literárias e, consequentemente, nas análises delas.

A teoria que denunciava o lugar excessivo conferido ao autor nos


estudos literários tradicionais tinha uma ampla aprovação. Mas ao
afirmar que o autor é indiferente no que se refere à significação do
texto, a teoria não teria levado longe demais a lógica, e sacrificado a
razão pelo prazer de uma bela antítese? E, sobretudo, não teria ela se
enganado de alvo? Na realidade, interpretar um texto não é sempre
fazer conjeturas sobre uma intenção humana em ato? (COMPAGNON,
2012, p. 49)

Se a título de exemplo considerarmos a obra do prêmio Nobel de literatura


francesa Albert Camus – notabilizado em obras como O estrangeiro, A peste e O mito de
Sísifo –, veremos que sua forma de escrita renovadora, ou, a pensar com a terminologia
do formalismo russo, que sua escrita econômica, seca, formalmente arrebatadora,
respondia não apenas a uma “estrutura interna do texto”, mas também a um estado
emocional social de desesperança, que marcava tanto a dicção lacônica da escrita de
Camus quanto a ambiência turbulenta da França do pós-guerra.

150
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

De fato, a potência humana capturada na linguagem pelo escritor franco-


argelino, tal como enfatizaria não só o Formalismo, mas também uma análise
que adviesse do Estruturalismo literário, pecavam em parte por subdimensionar,
na escrita de Camus, o quanto ali havia de resposta a fatores existenciais e
tecnológicos, que estavam para além da dinâmica interna do texto e que, em certa
medida, o condicionavam.

O sujeito que muito prometia e que agora trabalha em um escritório.


Ele não faz nada de diferente, voltando para casa, se deitando e
esperando a hora do jantar fumando, se deitando de novo e dormindo
até o outro dia. Domingo, ele se levanta bem tarde e se põe à janela
observando a chuva ou o sol, os transeuntes ou o silêncio. Assim o ano
todo. Ele espera. Espera morrer. Para que servem as promessas, já que
de qualquer maneira [...] (CAMUS, 2007, p. 26).

Assim, o panorama moderno de análise fundava-se prioritariamente nos


dados internos do fenômeno literário – a forma, a estrutura – e, consequentemente,
a seleção das obras canônicas se dava menos pela relação com o contexto social
e histórico dos autores e leitores do que pelo tratamento diferencial conferido à
linguagem e na identificação das funções e características comuns às obras, que
em síntese apontavam para uma tradição interna, sincrônica, construída de obra
a obra.

Ao não se fazer participar, nas análises literárias, o contexto e a posição


social dos sujeitos autores e leitores, os teóricos modernos estariam se apoiando na
tese de que a obra de verdadeiro valor estético teria o poder de criar o seu próprio
público, independente do contexto e do tempo de sua aparição. Exemplar dessa
teoria – reconhecido não apenas pela crítica especializada, mas também pelo
senso comum – é o caso de Van Gogh, pintor que em vida não obteve qualquer
reconhecimento, mas que, ao longo do tempo, sua obra assistiu à formação de um
público de admiradores crescente, que ainda se perpetua.

NOTA

Vincent Van Gogh (1853-1890) foi um importante pintor holandês e um dos


maiores representantes da pintura pós-impressionista, estilo surgido em 1910 durante a
exposição Manet e os Pós-Impressionistas, cujos principais artistas eram Cézanne, Gauguin
e Van Gogh. Filho de pastor calvinista, Van Gogh era uma criança rebelde e insociável. Ainda
jovem, trabalha com o tio na Galeria Goupil, uma empresa que comercializava telas e livros.
A serviço da galeria, transfere-se para Paris, mas, após indispor-se com clientes, é demitido
e torna-se depressivo, sofrendo seguidas crises nervosas e longos períodos de solidão. Em
1877, decide seguir a carreira do pai, ingressando no Seminário teológico de Amsterdã, no
qual é reprovado, tornando-se pregador missionário nas minas de carvão da Bélgica. O
contato com a miséria dos trabalhadores provocou uma crise espiritual, acompanhada da
perda da fé, e, em 1879, é demitido. Em 1880, vai para Bruxelas, financiado pelo irmão Theo,
estudar anatomia e perspectiva. Passa os dias desenhando e em 1881 muda-se para Haia,

151
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

onde é acolhido pelo pintor Mauve. Pinta aquarelas, numerosos desenhos e pinturas a óleo,
onde aparecem marinheiros, pescadores e camponeses. De volta à casa dos pais, passa os
dias lendo e pintando. Após a morte do pai, pinta Os Comedores de Batata, caracterizado
pelas tonalidades escuras. Em 1886, viaja para Antuérpia, inicia estudos na Academia local e,
em seguida, hospeda-se em Paris na casa de Theo. Essa é a época mais sociável do pintor.
Familiariza-se com os impressionistas Monet, Renoir e Pissarro. Mais tarde, fica amigo de
Gauguin. A influência dos artistas impressionistas e a crescente admiração pela arte oriental
o faz desenvolver um estilo próprio: toma de uns a prática de construir a figura por meio de
pinceladas separadas, e, de outros, as cores fortes e definidas.

FIGURA – A NOITE ESTRELADA (1889), DE VAN GOGH

FONTE: <https://cdn.culturagenial.com/imagens/noiteestrelada-cke.jpg>. Acesso em: 28


out. 2019.

Em seus últimos anos, Van Gogh encontra-se com a saúde precária, e, seguindo os
conselhos de Toulouse-Lautrec, vai para os campos de Arles pintar ao ar livre. Datam
dessa época Vista de Arles com lírios, Girassóis e Quarto em Arles, em que uma única
tonalidade é valorizada através das modulações de luz. Durante algum tempo vive em
companhia de Gauguin até que, após uma discussão, agride o amigo com uma navalha.
Arrependido, corta um pedaço de sua orelha e manda num envelope para Gauguin. É
recolhido a um hospital e pinta o Autorretrato com a orelha cortada (1888). Em 1889,
internado no Hospital de Saint-Rémy-de-Provance, transforma seu quarto em um ateliê,
produzindo centenas de quadros, dentre eles o famoso A noite estrelada (1889). Através
de Signac, organiza-se uma exposição de sua obra. Um jornal da França lhe faz elogios e
se vende o único quadro durante a sua vida: A vinha vermelha (1888). Em 1890, vai para
Auvers, ficar aos cuidados do Dr. Gachet. No período, pinta o conhecido Campo de trigo
com corvos (1890), mas no dia 27 de julho, sai para o campo de trigo com um revólver e
dá um tiro no peito. Morre em Auvers, na França. No dia de sua morte, no sótão da Galeria
Goupil, em Paris, 700 quadros amontoam-se sem comprador.

FONTE: ELGAR, F. Van Gogh. Paris: Fernand Hazan, 1975.

152
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

Na descrição do percurso de Van Gogh – tal como podemos observar


na sinopse (UNI anterior), na qual se destaca a obra emblemática A noite
estrelada – comparece alguns lampejos de análise estrutural, na qual se descreve
aspectos formais da obra, como as características das pinceladas, a predileção de
determinadas cores na paleta do artista, resultando em uma forma de relato que
vincula, ao plano pessoal, a evolução pictórica do artista.

Todavia, a par com a descrição formal, o texto faz predominar uma


perspectiva de análise biográfica de cunho tradicional, na qual se acredita que
os eventos vividos pelo artista o levariam inevitavelmente a produzir a obra
que produziu, o que pode induzir o leitor a erroneamente supor que, caso outra
pessoa houvesse vivido os mesmos acontecimentos que acometeram ao pintor,
essa pessoa também poderia produzir uma obra similar à de Van Gogh.

Caro acadêmico, ao observarmos a sinopse da vida e obra de Van Gogh,


como na nota de chamada UNI, percebemos um certo determinismo entre a vida
e a obra do autor. Quer dizer, foi a vida de Van Gogh que produziu a obra de Van
Gogh? Você acredita que qualquer indivíduo, colocado para viver os mesmos
acontecimentos que viveu a pessoa Van Gogh, acabaria produzindo a mesma
obra que ele? Em outras palavras, a obra artística seria efeito da vida pessoal,
podendo ser, portanto, por ela determinada?

Embora muitos contemporâneos de Van Gogh houvessem tido uma vida
similar a dele, tal similitude não os levou, entretanto, a produzir uma obra de
tamanha dimensão ou de mesmo alcance. Por esse motivo, ao incorporar dados
externos às análises críticas desaconselha-se proceder leituras tradicionais que
vinculem biografia à produção artística, pois tal tipo de leitura faz crer que a
obra, ao invés de ser exigida como uma resposta possível à vida, erroneamente
faz parecer que é por ela determinada.

Nesse sentido, ao incorporar aos dados de análise elementos internos,


conquistados pela fenomenologia, pelo formalismo e pelo estruturalismo, o pós-
estruturalismo, ao levar em consideração também os elementos exteriores às
obras, não o fará de um modo tradicional, mas em outra perspectiva, a saber: lerá
a participação do autor observando os dados autorais a partir de funções que não
eram cogitadas nas análises biográficas pregressas.

A teoria voltará, como tudo, e seus problemas serão redescobertos


no dia em que a ignorância for tão grande que só produzirá tédio”.
Philippe Sollers anunciava esse retorno desde 1980 [...] ao reunir as
assinaturas de Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrrida,
Julia Kristeva e todo o grupo do Tel Quel, o melhor da teoria então no
ápice (COMPAGNON, 2012, p. 14).

Antes de prosseguirmos, cabe destacar que nossa opção pela análise


das artes visuais – pinturas, esculturas etc. – ao invés de, exclusivamente, obras
literárias se dá em razão de que a pintura e a escultura causam uma impressão
direta no observador acarretando, por conseguinte, um alcance reflexivo imediato,

153
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

enquanto que a análise dos textos literários demanda o conhecimento das obras
e dos autores a serem analisados, o que, consequentemente, exigiria mais tempo
de estudo.

Assim, ao partimos da observação de uma pintura de Van Gogh, como


se verá mais adiante, que se faz para obter melhor efeito didático, avançando
dos dados de análise interna da modernidade – fenomenologia, formalismo,
estruturalismo – em direção a perspectivas teóricas da contemporaneidade, dentre
as quais destacam-se a “desconstrução”, os “estudos culturais” e a interface entre
literatura e tecnologia capturada através do “hipertexto”.

2 TEORIAS PÓS-ESTRUTURALISTAS
Se a partir das correntes de análise interna, que vieram à tona na
modernidade, foi possível observar o declínio das críticas baseadas no contexto e
na relação com a sociedade, com a quase exclusão dos fatores sociais das análises,
houve entretanto um redimensionamento crítico que retomou a relação “obra
versus sociedade” em outra chave de leitura, a saber, através das abordagens
teóricas pós-estruturalistas.

O que resta fazer? Em primeiro lugar, abandonar as soluções que


foram apresentadas na modernidade; abandonar, por exemplo, a
visão otimista da história humana; abandonar a aposta de que tudo
pode ser resolvido através do cumprimento da norma, e por isso
abandonar também a aposta no “estado de direito” (ASSMANN, 2007
apud AGAMBEN, 2007, p. 13).

É assim que, no final dos anos 1960, aparece uma reação ao estruturalismo
literário e cultural que predominava em grande parte da Europa, especialmente na
França. A começar pelo teórico Roland Barthes, que teve no estruturalismo um dos seus
grandes eixos de análise, mas que, em 1967, ao publicar “S/Z”, obra em que analisa um
conto de Balzac, o teórico amplia o sentido captado de um modo estrutural, fazendo
interferir na leitura o modo como a obra atinge o próprio Roland Barthes.

A partir daí, começa a rever suas posições iniciais, pouco a pouco se


afastando das leituras binárias que serviam de modelo às leituras estruturalistas.
A obra em análise, a partir daí, entra em uma dinâmica distinta, que vai além
do estatismo das leituras anteriores, sofrendo modulações não apenas no nível
das vozes capturadas dos textos, como também nas modulações de significado
obtidas pela interferência ativa do leitor: “o leitor e o crítico passam do papel de
consumidor para o de produtor” (EAGLETON, 2006, p. 207).

À secura do estruturalismo aplicado, ao gelo da semiologia científica,


ao tédio que se desprende das taxinomias narratológicas, Barthes,
desde o início, opôs o prazer da “atividade estruturalista” e a felicidade
da “aventura semiológica”, [...] essa é, a meu ver, a lição irônica de
Barthes, que nunca cessou de tentar novos caminhos (COMPAGNON,
2012, p. 254).

154
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

E
IMPORTANT

Em 1970, outro responsável maior por um reexame crítico do estruturalismo


literário, Roland Barthes, tinha revisto a sua própria posição e publica aquele que é
considerado o seu primeiro trabalho da fase pós-estruturalista: S/Z [...]. Barthes começa por
repudiar a sua própria opção inicial pelo estruturalismo, recusando agora a pretensão de
fazer corresponder todos os textos a uma única estrutura e, consequentemente, estabelecer
um modelo único de análise que ignore na prática as diferenças entre os textos. A crítica
literária tornar-se-á doravante autorreflexiva, utilizando um discurso que se constrói e
desconstrói a si mesmo, afirmando-se, sobretudo, pelo fato de nunca se tornar um método
instituído em receitas mais ou menos científicas capazes de servir os comodismos da
crítica [...]. Em S/Z, Barthes recusa ainda a ideia de um modelo transcendente ao texto, para
postular que todo o texto é de alguma forma o seu próprio modelo e, portanto, deve ser
tratado na sua diferença, no sentido derridiano.

FONTE: <http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/posestruturalismo/>. Acesso em: 28 out. 2019.

De um ponto de vista pós-estrutural, a ideia de um eixo único de leitura,


tal como propunham as abordagens clássicas e as abordagens modernas, não se
sustentava face à abertura de interpretações e à pluralidade de vozes que podiam
atravessar as obras a serem analisadas, desde que se considerasse nas leituras o
lugar de fala, não apenas do autor ou da obra, mas o lugar do leitor, especialmente
quando esse leitor assumisse a posição de um leitor crítico.

Essa nova atitude crítica, por conseguinte, estava quase diametralmente


oposta às teses fenomenológica, formalista e principalmente estruturalista de
corresponder, aos textos, um único modelo de leitura, modelo que, ao olhar pós-
estrutural, no estruturalismo pecava por apagar as diferentes vozes que, surgidas
durante a leitura, atravessavam inevitavelmente os textos.

O estruturalismo em geral, a poética e a narratologia, inspirados


no formalismo, deviam valorizar do mesmo modo o desvio e a
autoconsciência literária, em oposição à convenção e ao realismo. A
distinção proposta por Barthes, em S/Z, entre o legível (realista) e o
escriptível (desfamiliarizante), é também valorativa. [..] Daí inferia,
[tal como Genette], renunciando às pretensões do formalismo e do
estruturalismo, que “a literariedade, sendo um fato plural, exige uma
teoria pluralista” (COMPAGNON, 2012, p. 43).

Assim, ao buscar legitimar a pluralidade de vozes nascidas da leitura, o


foco teórico do pós-estruturalismo denunciava o apagamento de vozes causadas
pelas leituras canônicas, visto que elas sustentavam uma verdade inerente aos
textos e anteriores à entrada em cena do leitor, que trazia não apenas um olhar
particular, individual, mas um olhar afetado por marcas sociais e históricas que
produziriam, na leitura, significados livres, por vezes inusitados.

155
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

3 QUADRO COMPARATIVO DE ANÁLISE


Caro acadêmico, a essa altura é possível exercitarmos nossa reflexão
teórica estabelecendo um quadro comparativo de leitura que, a título de exemplo,
ponha em jogo aspectos de análise não apenas estruturais ou pós-estruturais, mas
aplicando as distintas abordagens que nesse livro nos propusemos a estudar.
Assim, tomando como eixo de estudo a tela de Van Gogh Autorretrato com chapéu
de palha (Figura 1), poderíamos adotar minimamente três perspectivas teóricas:
clássica, moderna ou contemporânea.

FIGURA 1 – AUTORRETRATO COM CHAPÉU DE PALHA (1908), DE VAN GOGH

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8e/Self-portrait_with_Felt_Hat_
by_Vincent_van_Gogh.jpg>. Acesso em: 28 out. 2019.

3.1 ENSAIO DE LEITURA CLÁSSICA


Em uma perspectiva clássica, poderíamos abordar a tela segundo o
seu gênero de composição a partir de estratégias conceituadas por Platão ou
Aristóteles, dimensionando o discurso crítico, por exemplo, segundo o valor
social que a imagem representa. Nesse caso, a cena representada na tela da Figura
1 elevaria o valor do homem ou o diminuiria?

156
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

As discussões acerca da finalidade da arte são bem antigas e remontam


aos primeiros teorizadores da literatura ocidental. Enquanto Platão
expulsava de sua República ideal os poetas, por considerar a arte
mentirosa, inútil e nociva aos bem-estar social, Aristóteles enaltecia
as funções da poesia, atribuindo-lhe uma finalidade catártica
(D’ONOFRIO, 2006, p. 21).

Assim, poderíamos responder à questão “valor imitado”, ou valor
mimético, na pintura de Van Gogh a partir da hierarquia criada por Platão, que
atribuía um lugar especial à “ideia de homem”, lugar secundário ao “homem
existente”, e um grau menor à “representação pictórica do homem”. Nesse
sentido platônico, portanto, a arte é vista de forma negativa, posto que não imita
a ideia perfeita de homem, mas o próprio homem imperfeito.

Platão tenta atenuar seu conceito negativista da função artística,


reconhecendo a utilidade da arte desde que sua atividade seja
programada pelo Estado e orientada para uma finalidade cívica. Mas,
na medida em que o filósofo nega a autonomia da arte, destrói-lhe
a própria essência, fundamentada na independência em relação ao
código linguístico e ideológico (D’ONOFRIO, 2006, p. 22) .

O homem representado na tela de Van Gogh seria, para Platão, inferior


ao homem real, o qual, por sua vez, seria inferior à ideia inteligível de homem.
Ora, que discurso crítico se construiria a partir dessa perspectiva teórica?
Provavelmente algum discurso que destacasse a aproximação, ainda que
imperfeita, das pinceladas de Van Gogh em relação à verdade das coisas, verdade
que seria exclusivamente a verdade filosófica: “na República, a mimèsis é subversiva,
ela põe em perigo a união social, e os poetas devem ser expulsos da Cidade em
razão de sua influência nefasta sobre a educação” (COMPAGNON, 2012, p. 96,
grifo do original).

Aristóteles, por sua vez, concebia a arte de um modo positivo, como


forma de catarse, como método de aliviar os sentimentos do leitor/expectador,
prestando-se não ao regime da verdade, como queria Platão, mas ao regime de
ficção, no qual importa não o real em si, mas o verossimilhante, ou seja, o que
poderia vir a ser real. Por esse viés, o autorretrato, embora não seja o homem Van
Gogh tal qual existiu, representa uma certa perspectiva de quem foi Van Gogh,
um sentimento de si mesmo vivido pelo pintor.

Pode-se dizer que Platão e Aristóteles faziam teoria da literatura


quando classificavam os gêneros literários na República e na Poética,
e o modelo de teoria da literatura ainda é, hoje, para nós, a Poética de
Aristóteles. Platão e Aristóteles faziam teoria porque se interessavam
pelas categorias gerais, ou mesmo universais, pelas constantes
literárias contidas nas obras particulares, como por exemplo, os
gêneros, as formas, os modos, as figuras. Se eles se ocupavam de obras
individuais (a Ilíada, o Édipo rei), era como ilustrações de categorias
gerais (COMPAGNON, 2012, p. 19, grifo do original)

157
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Pensar assim, na existência de valor, positivo ou negativo, já é adotar uma


perspectiva clássica, posto que nela se crê na existência da obra independente do
discurso que a legitima, ou do modo de quem a vê. Nesse sentido, a obra tem uma
existência relativamente autônoma em relação ao olhar que a perscruta. Assim
“a arte, sendo livre expressão da faculdade imaginativa e criativa do homem,
não pode estar subordinada a injunções de ordem filosófica, científica, religiosa,
moral ou patriótica” (D’ONNOFRIO, 2006, p. 22).

Destarte, ao teorizar por meio de uma abordagem clássica através do


recurso teórico da mimese ou imitação, recomenda-se definir o modo de leitura
crítica não em conformidade à hierarquia negativa preconizada por Platão,
mas utilizando parâmetros da Poética de Aristóteles, que permanecem atuais
conquanto ainda refletem, positivamente, o valor e o alcance da literatura.

Pois a prática que [Platão e Aristóteles] queriam codificar não era o


estudo literário, ou a pesquisa literária, mas a literatura em si mesma.
Procuravam formular gramáticas prescritivas da literatura, tão
normativas que Platão queria excluir os poetas da cidade. Atualmente,
embora trate da retórica e da poética, e revalorize sua tradição
antiga e clássica, a teoria da literatura não é, em princípio, normativa
(COMPAGNON, 2012, p. 19).

3.2 ENSAIO DE LEITURA MODERNA



Podemos observar a mesma tela, da Figura 1, segundo uma perspectiva
moderna de apreciação. Se adotarmos um ponto de vista formalista, estruturalista
ou fenomenológico, devemos colocar o significado que a obra nos remete, ou
a sua referência imediata, para um plano secundário, de modo a destacarmos
sobretudo os dados internos da composição artística.

Assim, embora numa leitura moderna se reconheça que a obra trata de


algo fora dela mesma, esse algo, entretanto, estará contido mais na obra em si
do que representado fora dela. Na leitura clássica valia-nos dos atributos da
verossimilhança aristotélica, de a obra ser semelhante às coisas do mundo, ou
seja, de ela representar algo possível no mundo, todavia, na modernidade, o que
importa não é bem a representação externa que a obra de arte realiza, mas uma
forma distinta de verossimilhança, posto que centrada na própria obra.

Distinguimos uma verossimilhança interna à própria obra, conferida


pela conformidade com seus postulados hipotéticos e pela
coerência de seus elementos estruturais [...]. Mais importante é a
verossimilhança interna, a coerência estrutural da obra, porque,
quanto à verossimilhança externa, a fuga para o fantástico, para o
mundo da imaginação, é comum à literatura. (D’ONOFRIO, 2006, p.
21, grifo do original).

158
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

Assim, a análise moderna priorizará em Autorretrato com chapéu de palha,


dentre outros aspectos, o ritmo e a sinuosidade das pinceladas, o contraste entre
o jogo de linhas e de cores, as tensões entre a luminosidade e o sombreamento,
e outras qualidades formais de composição inerentes à tela e a despeito da
realidade que essa mesma tela pretende representar, tal qual se procede em um
tipo de análise estruturalista.

Pode-se adotar, também, a ideia fenomenológica de descrever a essência


de um fenômeno estético. Para essa corrente teórica, advinda da filosofia de
Edmund Husserl, devemos isolar o objeto visado – o livro, o quadro, a escultura,
ou qualquer artefato cultural – dos conceitos convencionais com os quais o
explicamos para, em seguida, voltar a ele de variadas formas até encontrar, na
variação, aquilo que nesse objeto visado não muda, isto é, sua essência.

A arte é uma construção formal baseada em elementos do mundo real


e, como estes, ela possui a qualidade da estruturação. Deve-se notar,
todavia, que a estrutura não é característica peculiar do texto literário.
Qualquer objeto, desde que não seja composto de agregados, possui
uma estrutura (D’ONOFRIO, 2006, p. 19).

Assim, das diversas partes inerentes à própria tela, aos modos como
observamos a Figura 1, ou seja: como a vemos, como a sentimos, como a olhamos
etc., de onde surgirá uma figura que pode ou não ter relação direta com o homem
Van Gogh existente. O que há, verdadeiramente, nessa perspectiva moderna, é a
imagem de um homem colhido entre as tensões formais do quadro, imagem que
não necessita qualquer relação com o homem fora da tela.

Ler-se-á, também, na disposição centralizada da figura humana –


estratégia descoberta por Leonardo da Vinci em pleno Classicismo Renascentista,
que consistia em dispor a figura a ser destacada no triângulo central da tela,
tal como fez em Monalisa – o autorretrato dispondo o elemento humano como
centro da realidade, conformando uma possível leitura antropocêntrica, isto é,
ressaltando o homem como centro de tudo.

O livro, a obra, cercados por um ritual místico, existem por si mesmos,


desgarrados ao mesmo tempo de seu autor e de seu leitor, em sua
pureza de objetos autônomos, necessários e essenciais. Do mesmo
modo que a escritura da obra moderna não pretende ser expressiva,
sua leitura não reivindica identificação por parte de ninguém
(COMPAGNON, 2012, p. 138).

As pinceladas em Autorretrato com chapéu de palha convergiriam de


forma centrípeta para o rosto humano, destacado ainda pelo contraste amarelo
alaranjado da figura, em detrimento do azulado da roupa e dos arredores que
estacionam no fundo e nos arredores do rosto, do chapéu e do pescoço. Por essa
razão, o autorretrato é a imagem de um homem que é centro do universo, ideia
que destoa da situação biográfica vivida por Van Gogh, que perambulava pela
Holanda e França quase como um mendigo.

159
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

3.3 ENSAIO DE LEITURA CONTEMPORÂNEA


Voltemos à literatura. Observa-se que as leituras modernas tendiam
a apoiar-se na sofisticação do cânone literário, cânone estabelecido desde o
classicismo literário e que conferia centralidade a determinados autores a
despeito de outros que não se enquadravam nos critérios estéticos estabelecidos
pela crítica especializada. Nesse contexto, as vozes possíveis dos leitores, que
podiam destoar do cânone, estavam de certo modo limitadas à intencionalidade
do autor ou ao poder estético da obra.

Apesar da querela sobre a intenção do autor, o historicismo


(remetendo a obra a seu contexto original) e o formalismo (pedindo a
volta ao texto, em sua imanência) concordaram durante muito tempo
em banir o leitor. [...] eles definiam a obra como uma unidade orgânica
autossuficiente, da qual convinha praticar uma leitura fechada
(COMPAGNON, 2012, p. 138).

O que se quer demonstrar é que, com a jogada contemporânea, as obras de


valor passam a ser enriquecidas pelos olhares críticos, que captam, a cada época
e segundo modos próprios – clássico, moderno, contemporâneo – essas mesmas
obras conforme a sensibilidade de cada geração, substituindo assim os alicerces
que sustentavam as literaturas de caráter local, como as literaturas regionais e
nacionalistas, em prol das práticas culturais que afetaram, e ainda hoje afetam, o
jogo literário.

Já que o leitor começa sempre por uma interpretação, não há texto


preexistente que possa controlar sua resposta: os textos são as
leituras que nós fazemos deles; nós escrevemos os poemas que lemos
[...]. Toda hierarquia na estrutura que une autor, texto e leitor, é,
pois, desconstruída, e essa tríade se funde numa simunltaneidade
(COMPAGNON, 2012, p. 159).

Essa é uma característica da obra pós-moderna, ou seja, de poder reler


ou referendar-se pelo universo do período clássico ou do período moderno. Esse
fenômeno, observa-se na produção de vários escritores pós-modernos. Assim, por
exemplo, observa-se na escrita intimista e psicológica de uma romancista como
Lygia Fagundes Telles, marcas do simbolismo brasileiro, do impressionismo
literário francês, por vezes resvalando as personagens com traços da segunda
geração romântica.

Quer-se dizer, com isso, que ser pós-moderno é poder ser simbolista a seu
modo, ou seja, sem ter que se filiar obrigatoriamente a uma escola, por exemplo:
“simbolista”, “impressionista” etc. Assim, refletir segundo o paradigma do “pós”
– pós-estruturalismo, pós-modernismo etc. – implica não desdizer os paradigmas
clássico e moderno, senão conceituá-los sob uma nova chave de leitura.

“O leitor é livre, maior, independente: seu objetivo é menos compreender


o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele não pode
compreender um livro se não se compreende ele próprio graças a esse livro”
(COMPAGNON, 2012, p. 142).
160
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

No caso do autorretrato da Figura 2, a leitura pós-moderna enfatizará o


encontro possível entre a obra e o leitor, ou seja, como ela se implica em um
determinado leitor situado historicamente. Leitor branco ou negro, pobre ou
elevado socialmente, de sexualidade precisa ou indeterminada, ou seja, em cada
janela que a obra tocar em cada leitor um valor inusitado, essa janela torna-se
janela de leitura crítica.

Assim, o homem representado no autorretrato será tantos homens


possíveis quanto razoáveis forem as formas históricas de leitura da tela. Nesse
sentido, o contemporâneo é múltiplo e amplia a possibilidade de significação das
obras, inclinando o que antes era sentido autoral, ou sentido estrutural da tela, à
força imaginativa do leitor.

4 MORRE O AUTOR, NASCE O TEXTO


De um modo geral, acreditamos que por trás de cada pintura assinada
por Van Gogh haja um autor chamado Van Gogh. Além disso, esse homem Van
Gogh seria não apenas o autor das telas que pintou, mas também o detentor dos
sentidos que adviessem de suas telas e, nesse sentido, a melhor forma de crítica
de arte seria aquela capaz de mais se aproximar da intenção do autor; no caso em
questão, da intencionalidade do homem e, ao mesmo tempo, autor Van Gogh.

O autor reina [...] nas biografias de escritores, nas entrevistas dos


periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar,
graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que
se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada
no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica
consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire
é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, ade
Tchaikovski é o seu vício: a explicação da obra é sempre buscada do
lado de quem a produziu (BARTHES, 1988, p. 66).

Essa tese, vigente no senso comum, é a mesma que fundamenta as formas


tradicionais de crítica biográfica, segundo a qual haveria um autor para cada
livro, que o compôs de acordo com uma intenção que lhe seria própria. a cena
pós-estruturalista rumou contra essa ideia corrente de o autor ser detentor de
uma verdade original, verdade que, consequentemente, ele transporia para a
obra, tornando secundária, senão passiva, a posição do leitor

Assim, as primeiras leituras pós-estruturalistas tornar-se-iam possíveis na


medida em que essa figura autoral e a intencionalidade da obra, a ela associada,
declinassem em prol das múltiplas vozes que aparecem, não mais na instância
produtiva, mas na instância de leitura, que confere um horizonte de aceitabilidade
à obra, interpretando-a a partir do intercruzamento de mundos surgidos na
leitura, cuja figura central passa a ser o leitor. “Um texto é feito de escrituras
múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em

161
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

diálogo, em paródia, em contestação: mas há um lugar onde essa multiplicidade


se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor”
(BARTHES, 1988, p. 70).

Quer dizer, quando lemos uma obra, nela entramos com nosso mundo
próprio, com nossa intencionalidade situada historicamente, que se abre, na leitura,
a um emaranhado de possibilidades de significação só possíveis pelo encontro da
obra com a nossa forma particular de leitura. Nesse sentido, a intencionalidade
que antes estava ligada à ideia de que o autor detinha uma intenção específica da
obra – e que seria a verdade dessa obra, a ser lida e estudada pela crítica – cai por
terra.

Considera-se que o Autor nutre o livro, quer dizer que existe antes
dele, pensa, sofre, vive por ele; está para a sua obra na mesma relação
de antecedência que um pai para com o filho. Bem ao contrário, o
escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto, [...] todo texto
é escrito eternamente aqui e agora (BARTHES, 1988, p. 68).

Dessa maneira, ao colocar o leitor no centro, Roland Barthes não apenas


passa a questionar essa noção de origem, que destacava a figura autoral por trás
da obra, como também a transformar, e pouco a pouco substituir, a noção de
“obra” – que sugere um significado último advindo de um autor exclusivo, a
ser investigado pela crítica de cunho tradicional – pela noção de “texto”, que,
destacando a interface entre produção e leitura, captada não antes, mas no
instante da leitura, veio a conferir uma participação ativa do leitor.

FIGURA 2 – ROLAND BARTHES

FONTE: <http://zone-critique.com/wp-content/uploads/2015/05/
mep-francois-lagarde-portraits-rolland-barthes_large.jpg>. Acesso em: 15 jul. 2019.

162
TÓPICO 1 | PÓS-ESTRUTURALISMOS NA LITERATURA

Assim, autor e leitor passam a abrir-se, conjuntamente, segundo uma


textualidade aberta na etapa de leitura, não exclusivamente dentro de um horizonte
de intencionalidade, ou seja, da intenção de quem produz a obra visando um
certo tipo de leitura, mas rumo ao que, para a aposta pós-estruturalista, seria uma
forma de leitura que confere novas significações à obra, que a supera, portanto,
fazendo ela abrir-se em texto.

Como parte importante do processo, mas referindo-se à literatura


de modo geral, Umberto Eco pontua que, no processo de escrita de
qualquer narrativa ficcional, não se pode explicar tudo sobre aquele
mundo criado [...]. Especialmente nas narrativas breves mais recentes,
cada vez mais fragmentadas e alusivas, é necessário que se estabeleça
uma espécie de pacto entre o texto que foi escrito e o texto que é
produzido/ressignificado no momento de leitura (PRADO, 2017, p.
206).

Outra tese pós-estrutural é que, dentro do horizonte de aceitabilidade


do leitor, que aceita ou recusa algumas proposições da obra, a leitura não um
território de exclusividade, mas de conjunção, debate, diálogo, desenhando
enfim uma teia de significações que, para usar uma terminologia propriamente
barthesiana, não se encerram em único sentido, mas abre-se em significância, em
sentidos múltiplos.

O texto não deve ser entendido como um objeto computável [...]. A


diferença é a seguinte: a obra é um fragmento de substância, ocupa
alguma porção do espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca).
Já o texto é um campo metodológico [...]. A obra se vê (nas livrarias,
nos fichários, nos programas de exame), o texto se demonstra [...]. A
obra segura-se na mão, o texto mantém-se na linguagem: ele só existe
tomado num discurso (BARTHES, 1988, p. 72).

Nesse sentido, a morte do autor, proposta por Roland Barthes, leva


a esse lugar de diálogo que desmonta as hierarquias, posto que começa a
questionar a tradição literária ocidental, constituída de um cânone de obras quase
exclusivamente ditadas por uma tipologia de homens, brancos, europeus, mas
que são lidas por africanos, negros, mulheres etc., isto é, por esferas do social que
sempre estiveram à margem das condições de publicação.

Esses leitores, em certa medida marginalizados, não buscam nas obras


a confirmação de uma intencionalidade autoral em que eles não se reconhecem.
Querem compor, através de uma leitura particular, um ser compósito que já não cabe
na obra, que não se encerra nos limites estritos de um livro em particular, mas que
se dá através de uma textualidade cultural que se revela, não na obra, mas na leitura.

A obra é tomada num processo de filiação [...]. O autor é reputado pai


e proprietário da obra: a ciência literária ensina então a respeitar o
manuscrito e as intenções declaradas pelo autor [...]. Não é que o autor
não possa ‘voltar’ no Texto, no seu texto: mas será, então, por assim
dizer: ele torna-se, por assim dizer, um autor de papel: [...] o eu que
escreve o texto, também, nunca é mais do um eu de papel (BARTHES,
1988, p. 75-76).

163
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

O texto é produtivo, pois ao invés de buscar o sentido da obra, retoma


aquilo que na própria obra escapa da intenção autoral, como se fosse um certo
pensamento que, embora não estivesse originalmente escrito pelo autor, é,
entretanto, possível de ser pensado pelo leitor. Esse é o teorema que a morte
do autor, formulada por Roland Barthes, anuncia, a saber: a aventura pós-
estruturalista revelará não mais o livro como centro de significação, mas em uma
espacialidade cultural diluída em todas as formas livres do texto.

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Centenário


de Roland Barthes, que compõe uma perspectiva biográfica, além de uma panorâmica
geral das teses desse autor sui generis para o pensamento estruturalista, em um primeiro
momento, e, ao superá-lo, tornar-se teórico de fôlego também para a cena pós-estruturalista
e pós-moderna no mundo, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?time_
continue=23&v=7EmOJPV_Ji4.

164
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A teoria da literatura moderna centrou suas formas de análise no modelo


intrínseco de leitura, isto é, “de dentro para fora”, o que conferia demasiada
primazia aos princípios da intencionalidade autoral e dos valores inerentes às
próprias obras, em detrimento do leitor, renegado a uma função passiva de
tradutor de um sentido original localizado na obra.

• Contra essa tendência centralizadora, cujo expoente maior se deu com o


estruturalismo, a cena pós-estrutural trouxe uma perspectiva renovadora, “de
fora para dentro”, conferindo ao leitor uma participação mais ativa e fazendo
da leitura um lugar de coprodução de sentidos que não estão exclusivamente
na obra ou no universo autoral, mas que incorporam, nas análises literárias,
dados substanciais do leitor, como: gênero, raça, eventos tecnológicos da
atualidade etc.

• O pós-estruturalismo partiu, incialmente, da desmontagem do lugar de


centralidade conferido ao autor, que parecia depositar na obra o seu universo
próprio, universo particular que caberia à leitura e à boa crítica decifrar.
Roland Barthes, que por determinado tempo foi teórico estruturalista, pôs o
estruturalismo em questão ao descolar a atenção desse lugar de centralidade
do autor para um novo lugar, o lugar da inventividade do leitor.

• O resultado desse procedimento foi a queda da obra enquanto fonte de sentido


de leitura, que passa a ter não mais uma significação dada pelo leitor durante a
leitura, mas “significância”, ou seja, uma teia variada de significações surgidas
do confronto entre leitor e obra, obra que decai em nome de uma nova instância
produtiva, desligada de uma origem rígida, numa espécie de instância móvel
que Barthes denominará de “texto”, a partir da qual se deslindará a cena
literária contemporânea.

• Assim, com o momento pós-estrutural abre-se a terceira perspectiva de análise


artística e literária, a saber: a perspectiva contemporânea, que sucedeu a
moderna e a clássica, sem, entretanto, excluí-las. Por um lado, se a obra de arte,
de um ponto de vista clássico, era concebida como representação (mimese)
na qual os objetos se viam transformados pelas técnicas artísticas da pintura,
da escultura ou da literatura; por outro lado, a ênfase nas técnicas artísticas
a despeito do que elas pretendiam representar caracterizou, por sua vez, a
perspectiva moderna. A perspectiva contemporânea contempla ambas as
formas, relendo-as em nova chave de leitura.

165
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da literatura rumou do estruturalismo para o pós-estruturalismo


através da incorporação de leituras externas ao texto, leituras que apontavam
não um lugar de origem, no autor ou no leitor, mas na conjunção de ambos
no instante de leitura. O leitor, não mais passivo, fez rumar a obra, fixa
em sua origem, para o texto, livre em sua chegada. Nesse sentido, o pós-
estruturalismo abriu as perspectivas da literatura. A partir dessa reflexão, é
CORRETO afirmar:

a) ( ) Que o autor manteve seu lugar de destaque nas instâncias interpretativas


das obras literárias.
b) ( ) Que a literatura mantém, no próprio nome pós-estruturalismo, o escopo
teórico da escola estruturalista.
c) ( ) Que a literatura salta ao contemporâneo ao diluir a figura do autor, da
obra, das origens em prol da re'ssureição do espaço textual.
d) ( ) Que o literário, independente da perspectiva em que se dê – clássica,
moderna o contemporânea – sustenta formas similares de leitura e de
interpretação.

2 A teoria da literatura pós-estruturalista teve seu caminho aberto pelas


proposições de Roland Barthes que oporia, à primazia do autor e da noção
de origem, a liberdade de leitura, que, consequentemente, deslocou a análise
do universo localizado das obras para os universos sempre em composição
do texto. Considerando essas informações, associe os itens, utilizando o
código a seguir:

I- Noção de Obra
II- Noção de Texto

( ) Noção contemporânea, que confere lugar de destaque ao leitor.


( ) É ligada explicitamente a uma filiação, aos sentidos de quem o compôs, é,
portanto, um objeto de consumo.
( ) É plural, portanto não depende de uma interpretação, mas expande-se
para além de uma origem a que se ligasse os sentidos interpretados.
( ) Noção tradicional, que se fecha em um significado ligado à origem, ao
autor.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – I.
b) ( ) II – I – II – I.
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) I – II – I – II.

166
3 A tese da morte do autor demonstrou que a centralidade dos significados
colocadas na intenção do autor, ou seja, naquele que compôs a obra, era
uma centralidade menos natural do que marcada ideologicamente, ou,
como diria Barthes (1998, p. 66), “a explicação da obra é sempre buscada
do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos
transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa,
o autor, a entregar a sua ‘confidência’”. A partir dessa reflexão, classifique V
para as sentenças verdadeiras e F para as sentenças falsas:

( ) A tese da morte do autor, em termos literário, é um questionamento radical


de toda a ideia de origem.
( ) A tese da morte do autor abria espaço para a ideia de “texto”, espaço
teórico que buscava a origem no leitor, e não no autor da obra.
( ) A tese da morte do autor entendia o texto como um espaço aberto de
significação.
( ) A tese da morte do autor referendava a noção medieval de autor e a vertente
antropocêntrica que se seguiu, pondo o homem no centro da concepção de
mundo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – V – V.
d) ( ) V – F – V – V.

4 (ENADE, 2005) É célebre a escultura de Laocoonte, em que estão


representados pai e filhos envolvidos por serpentes. Nela está tematizada a
dor de um pai que vê os filhos serem devorados. O crítico alemão Lessing
sentiu-se intrigado pela seguinte questão: como entender que a personagem
principal do grupo representado mal abra a boca, apesar de sofrer de modo
tão intenso? Para explicar a composição moderada da dor, assinala: é que as
leis da escultura impõem a figuração da dor de modo totalmente diverso do
da poesia. A escultura e a pintura não podem representar senão um único
momento de uma ação; é preciso então escolher o momento mais fecundo;
ora, só é fecundo aquilo que deixa campo livre à imaginação; não é preciso,
pois, escolher o momento do paroxismo [o momento mais intenso], mas o
que o precede ou segue.

O que se pode deduzir corretamente do texto acerca da representação artística?

a) ( ) Na arte, o modo como se retratam certas emoções depende do


conhecimento da sua natureza pelo artista, pois o seu ideal é reproduzir
o mundo natural.
b) ( ) Numa obra de arte, a expressão não é determinada pela natureza do
objeto representado, mas está relacionada aos princípios que regem a
modalidade artística adotada.

167
c) ( ) Em algumas formas de expressão artística, a representação corresponde
necessariamente à diminuição da intensidade das emoções experimentadas.
d) ( ) Na composição artística, a escolha de traços de um objeto que podem
ser mais produtivos para a criação depende mais da perícia do artista em
lidar com eles do que da linguagem da arte em que ele se expressa.
e) ( ) Em qualquer expressão artística, é mais importante a capacidade que
o artista tem de apontar, no ser humano representado, a grandeza e a
serenidade da alma, do que retratar o vigor de um sofrimento.

FONTE: <http://papaprova.com/questoes/e-celebre-a-escultura-de-laocoonte-em-que-
estao-representados-pai-e-filhos-envolvidos-por-serpentes-nela->. Acesso em: 4 nov. 2019.

168
UNIDADE 3
TÓPICO 2
A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

1 INTRODUÇÃO
As perspectivas contemporâneas de análise não implicaram
necessariamente na anulação dos modos clássico e moderno de estudo da
literatura. Ao contrário, assim como o valor de uma obra, especialmente aquelas
consagradas pelo cânone literário, não decai em função do tempo, também as
teorias de outras épocas, quando bem fundamentadas, conseguem sobreviver
como mais um olhar possível de leitura.

Assim, ao trazer os contextos de leitura para dentro da análise, isso não


implicou, dentro de uma perspectiva contemporânea, o mesmo que se dava com
o resgate de dados biográficos tradicionais – como nos eventos históricos que
a análise tradicional circundavam ao redor dos autores e obras, como vimos
na descrição biográfica de Van Gogh, na introdução do primeiro tópico –, mas
na incorporação de olhares exteriores às obras que a ela não são propriamente
exteriores.

As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da


pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas
um “senhor” entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua
obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua
[...]. A literatura assume muitos saberes [...]. É nesse sentido que se
pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome
das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela
é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real (BARTHES, 2007, p. 16-
18).

Nesse sentido, com a cena pós-estruturalista a valoração das obras


literárias passou a ser mediada por critérios outros, que não apenas expandiram
a afetação tecnológica, como a queda da aura prenunciada pelos teóricos críticos
da escola de Frankfurt – cujo estudo iniciamos na segunda unidade deste livro – e
que abalaram sobremaneira o suporte de leitura “livro”, como centraram o olhar
menos para a tradição, e mais para a realidade dada na leitura.

Se isso assim se dá, é porque a análise e a crítica literárias refletem uma


forma de linguagem que não se fecha nem como descrição precisa da realidade,
tal como pretende a linguagem científica, nem como reflexo de um ponto de vista
autoral, mas numa forma de linguagem que, por estar contida nos domínios
ficcionais da literatura, é, por esse mesmo motivo, um saber sempre em abertura,
indeterminado.

169
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

A partir da concepção de Giorgio Agamben (2009) a respeito do


contemporâneo, pode-se inferir que a literatura que se inscreve na
contemporaneidade é aquela que, de modo anacrônico, não pertence
à literatura de seu tempo e que, justamente por isso, é capaz de
apreender esse outro tempo – o agora – através de uma relação de
ruptura e distanciamento (PRADO, 2017, p. 201).

O resultado disso se deu na incorporação dessa espécie de inacabamento,


própria do literário, na própria forma de análise literária, cujo gênero se modalizou
nos “ensaios críticos”, de natureza mais leve que as análises estruturalistas, e que
desconstruíram os modelos de estudo de cunho científico, passando a incorporar,
assim, critérios externos à leitura, como: gênero, cor de pele, situação social dos
sujeitos implicados na análise etc., que relativizavam o caráter valorativo das
obras.

E se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho


no campo da ciência, literária, lexicológica ou sociológica, devo
reconhecer que produzi tão-somente ensaios, gênero incerto onde a
escrita rivaliza com a análise [...] tendo sido tão propenso a deslocar
sua definição, mal essa me parecia constituída, e apoiar-me nas forças
excêntricas da modernidade (BARTHES, 1988, p. 65).

É assim que se abrirá espaço para a diversidade de leitura e dos diferentes


tipos de leitores na cena pós-estrutural, diversificando os modos de abordagem
da literatura, como na desconstrução literária, proposta por Jacques Derrida,
ou nos Estudos culturais; movimentos que emergem a partir da tese da morte
do autor, como se verá na conceituação da função-autor proposta por Michel
Foucault – que veremos, mais adiante, na ideia de autor como gesto, proposta
por Agamben. “A escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é
esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-
e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do
corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).

2 A DESCONSTRUÇÃO NA LITERATURA
Jacques Derrida foi o filósofo francês criador da noção de desconstrução,
que em certa medida tirou de evidência os sistemas críticos que se pautavam
por conceitos centralizadores e estáveis, tal como se dera com o formalismo e o
estruturalismo literários, correntes que sustentavam suas perspectivas de leitura
de um viés “de dentro para fora” dos textos literários.

Historicamente, foi na conferência La structure, le signe et le jeu dans le


discours des sciences humaines (A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências
humanas), pronunciada por Derrida em 1966, que o pós-estruturalismo teve o
seu marco inicial enquanto forma de pensamento, cujas formulações teóricas
concorriam contra a ideia de centrismo cultural, frequente nas proposições
estruturalistas.

170
TÓPICO 2 | A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Documentário


sobre Jacques Derrida, no qual se apresentam trechos primorosos de um filme que
contextualiza o pensamento desconstrucionista do filósofo franco-argelino em meio
a cenas biográficas, ao mesmo tempo em que as irmanam às teses voltadas contra a
centralidade da civilização ocidental, caras ao autor, disponível no link: https://www.
youtube.com/watch?time_continue=23&v=7EmOJPV_Ji4.

Assim, o pós-estruturalismo se fez representar, com mais evidência, no


final dos anos setenta do século XX, pela Desconstrução, escola de pensamento
que, como estratégia metodológica, pôs-se a questionar a referência das mensagens
em relação ao mundo, como era de praxe nas teorias literárias, mas, de modo
diferente: passou a questionar palavra por palavra sua validade referencial ao
que está fora de cada palavra.

Derrida entendeu que a significação de um texto dado (romance, ensaio,


artigo etc.) “era o resultado da diferença entre as palavras usadas, mais do que
a referência às coisas que elas representam [...]. Assim, por outras palavras, as
diferentes significações de um texto poderão ser descobertas, decompondo a
estrutura da linguagem na qual ela é redigida” (MENESES, 2013, p. 180).

Feito isso, foi possível anular todas as distinções inscritas na linguagem,


como a distinção entre filosofia e literatura, entre discurso objetivo e discurso
poético etc. Assim, se anteriormente as possibilidades de leitura restringiam as
análises a exercícios de compreensão literária, esses exercícios se caracterizavam
pela restrição de liberdade na medida em que tinham que se voltar para a busca
de sentidos intencionais situados na origem das obras, portanto na esfera autoral.

171
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

Filósofo francês (nascido na Argélia), a obra de Jacques Derrida tem


sido objeto de estudo em diversas áreas, especialmente em filosofia e crítica literária.
Destacou-se principalmente pela abordagem de desconstrução crítica, linha de
pensamento a qual é mais identificado. Ensinou filosofia na Sorbonne e dirigiu a École
des Hautes Études en Ciências Sociales, em Paris, e, desde 1986, também foi professor de
Filosofia, Francês e Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, lecionando em
instituições acadêmicas de ambos os lados do Atlântico. As obras desconstrucionistas de
Derrida são integralmente relacionadas ao fenômeno mais geral do pós-modernismo.
Especialmente no domínio teórico, o desconstrucionismo de Derrida é provocativo, se
não subversivo, ao questionar o caráter da autoevidência, lógica e sem julgamento de
dicotomias que vivemos, como legítimo/ilegítimo, racional/irracional, verdade/ficção
ou observação/imaginação. Sua contribuição mais famosa é sobre a forma que lemos e
entendemos diversos textos: às vezes pode parecer que quando estamos a ler um texto
iremos compreender grande parte do que o autor pretende transmitir ou ensinar, porém
Derrida diz que todos os textos estão crivados com o que ele chama de “aporias”, isto é,
“contradição”, “dificuldade”, “paradoxo”, “dúvida”. A desconstrução é uma forma de ler
determinados textos e revelar suas aporias. Derrida foi um proverbial ativista-teórico, que
tem lutado por uma série de causas políticas, incluindo os direitos dos imigrantes argelinos
na França, antiapartheid etc.

FONTE: <http://www.afilosofia.com.br/post/jacques-derrida/413>. Acesso em: 28 out. 2019.

Estava aberta uma forma de crítica radical aos binarismos saussurianos e


estruturalistas, e às correntes de pensamento a eles associados, como o significante
e o significado, a margem e o centro, o inteligível e o sensível platônico, dentre
outros; que fez da desconstrução uma forma de análise crítica voltada contra as
ideias logocêntricas da civilização ocidental, isto é, contra os modos de pensar
que têm a racionalidade como centro. “Derrida classifica de metafísico qualquer
sistema de pensamento que dependa de uma base inatacável, de um princípio
primeiro de fundamentos inquestionáveis, sobre o qual se pode construir toda a
hierarquia de significações” (EAGLETON, 2006, p. 198).

Ademais, com a queda da aura literária impulsionada pela tese da morte


do autor, de Roland Barthes, e a valoração dos diversos espaços de convivência
social, inclusive os espaços marginalizados, apontados pelas teses heterotópicas
de Michel Foucault, o leitor passou a ir mais além, tornando-se apto a ler as
textualidades do mundo segundo um modo particular de leitura, muitas vezes
resultando em um desvio não previsto, inesperado, que predizia, de certa forma,
a ideia da “desconstrução”.

Diante da abertura teórica instaurada pelas abordagens


contemporâneas, os limites entre os territórios disciplinares são
enfraquecidos, provocando o questionamento dos lugares produtores
de saber, assim como dos conceitos operatórios responsáveis pela
produção de paradigmas e metodologias críticas (SOUZA, 2000, p. 43).

172
TÓPICO 2 | A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

FIGURA 3 – JACQUES DERRIDA, À ESQUERDA; MICHEL FOUCAULT, À DIREITA

FONTE: <https://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2010/04/derridaefoucault.
jpg>. Acesso em: 15 jul. 2019.

Assim, o que em Barthes se nomearia como escrita – ou escritura, para


utilizarmos uma terminologia que lhe era cara – tem como característica distinta
não apenas o fato de conferir maior liberdade ao leitor, mas de ele, leitor, poder
compor uma outra escrita, própria, produtiva, que em alguma medida rivaliza
com aquela expressa na obra, e que não pretende conferir superioridade a quem
lê, mas revelar que os sentidos estão sempre por se fazer.

Não é de se admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do Autor


tenha sido também o do Crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo
nova) esteja hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor. Na escrita
múltipla, com efeito, tudo está para ser deslindado, mas nada para ser
decifrado (BARTHES, 1988, p. 69).

2.1 O AUTOR COMO GESTO


Além de Barthes e Derrida, outro filósofo central para o pensamento pós-
estruturalista, e que vai recusar qualquer aliança com as proposições binárias
advindas do estruturalismo, foi Michel Foucault.

Foucault pronunciou uma conferência célebre, em 1969, intitulada


“Qu’Est-ce qu’un Auteur?” (O que é um Autor?), e Barthes havia
publicado, em 1968, um artigo com título bombástico, “La Mort de
l’Auteur” (A Morte do Autor) [...]. Estamos em 1968: a queda do
autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistemático ao pós-
estruturalismo desconstrutor (COMPAGNON, 2012, p. 49-51).

173
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

Michel Foucault, após tentativa de suicídio, iniciou tratamento psiquiátrico.


Em contato com a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise, leu Platão, Hegel, Marx,
Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud, Bachelard, Lacan, e aprofundando-se em Kant,
embora criticasse a noção do sujeito enquanto mediador e referência de todas as coisas.
Diplomado, lecionou psicologia e filosofia em diversas universidades, escrevendo para
jornais e trabalhando como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Conviveu com
intelectuais importantes como Sartre, Jean Genet, Deleuze, Merlau-Ponty, Lacan etc. Foi
com História da Loucura (1961), sua tese de doutorado na Sorbone, que se firmou como
filósofo, embora se chamasse de “arqueólogo”: arqueólogo do silêncio imposto ao louco,
da visão médica (O Nascimento da Clínica, 1963), das ciências humanas (As Palavras e as
Coisas, 1966), do saber em geral (A Arqueologia do Saber, 1969). A obra seguinte, Vigiar e
Punir, é um amplo estudo sobre a disciplina na sociedade moderna, para ele “uma técnica
de produção de corpos dóceis”, como se assiste nos processos disciplinares empregados
nas prisões, considerados exemplos da imposição, às pessoas, de padrões “normais” de
conduta estabelecida pelas ciências sociais. A partir desse trabalho, explicitou-se que
as formas de pensamento são também relações de poder, que implicam em coerção e
imposição. Assim, é possível lutar contra a dominação representada por certos padrões de
pensamento e comportamento sendo, no entanto, impossível escapar completamente a
todas e quaisquer relações de poder. Em seus escritos sobre medicina, criticou a psiquiatria
e a psicanálise tradicionais, deixando inacabado seu projeto História da Sexualidade, que
pretendia mostrar como a sociedade ocidental faz do sexo um instrumento de poder, não
por meio da repressão, mas da expressão. Em 1984, em função da AIDS, Foucault morreu
aos 57 anos, em plena produção intelectual.

FONTE: <https://www.sohistoria.com.br/biografias/foucault/>. Acesso em: 28 out. 2019.

Vale lembrar que o estruturalismo cultural parte da concepção da


linguagem tal como propunha a linguística moderna, que a limitava a um jogo
entre pares abstratos, como significante e significado, sincronia e diacronia etc.,
estabelecendo relações dentro da língua que não consideravam, na prática, os
usuários desse “sistema língua”. Assim, ao se afastar do sistema abstrato “língua”,
Foucault revelou uma instância social e política que subsistia por trás dessa ideia
exclusivista qual sustentava as teses estruturalistas.

Observou, ademais, que a palavra não paira inocentemente em uma


relação de distinção com outras palavras; ao contrário, elas se realizam mediante
os “discursos” dos usuários dessa língua que habita mecanismos restritivos, e
também coercitivos, que regem uma sociedade historicamente hierarquizada.

O signo saudável é aquele que chama a atenção para a sua própria


arbitrariedade – aquele que não tenta fazer-se passar por “natural”,
mas que, no momento mesmo de transmitir um significado, comunica
também alguma coisa de sua própria condição relativa e artificial [...].
O impulso que está por trás dessa convicção é político: o signo que se
pretende natural, que se oferece como única maneira concebível de
ver o mundo, é por isso mesmo autoritário e ideológico (EAGLETON,
2006, p. 203).

174
TÓPICO 2 | A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

Os pensadores pós-estruturalistas atentariam que centrar o autor


em uma biografia de determinada pessoa é, de certo modo, esconder que a
pessoa que escreve, mesmo a que constrói o discurso crítico, está determinada
ideologicamente por seu tempo, por sua classe social e por escolhas que, muitas
vezes inconscientes, atestam a cisão, a divisão do próprio sujeito.

Nesse sentido, para Foucault, não há relação ingênua entre as palavras e


os discursos, entre a enunciação e o que é dito, pois toda palavra pronunciada,
muitas vezes de forma silenciosa, está marcando uma posição de poder. É o que
sucede com a figura do autor que, mais do que um ser existente, é pensado de
modo pós-estrutural como um “sujeito” cultural.

Uma vez afastado o Autor, a pretensão de ‘decifrar’ um texto se torna


totalmente inútil. Dar ao texto um autor é impor-lhe um travão, é
provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção
convém muito à crítica, que quer dar-se como tarefa importante
descobrir o Autor (ou as suas hipóteses: a sociedade, a história, a
psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está
“explicado”, o crítico venceu (BARTHES, 1988, p. 69).

Caro acadêmico, você acredita que as palavras utilizadas


preconceituosamente, como ao se chamar um homem do campo de “caipira”
ou “bugre”, que essas palavras ocorrem espontaneamente em uma relação
linguística abstrata, ou, ao contrário, elas estão marcadas com uma intenção de
poder de determinados grupos ao buscarem diferenciar-se hierarquicamente de
outros grupos no intuito de se mostrarem superiores também através dos usos
da língua?

Foucault observou que as palavras demarcam, antes de tudo, relações
de poder e de domínio social; portanto “caipira” e “bugre”, nesse contexto, são
vocábulos que marcam relações em que a linguagem é ideologicamente utilizada
como instrumento político de sujeição do outro, de controle do que é diferente, de
tudo que é estranho ou que escapa ao costumeiro.

“Faz pensar no cuidado que se tem com o que existe e como o que poderia
existir; [...] uma prontidão para perceber que o que nos cerca é estranho e singular;
uma certa determinação para descartar os caminhos familiares do pensamento e
para olhar as mesmas coisas de forma diferente” (FOUCAULT, 1988, p. 325).

Foucault foi contemporâneo de Barthes e percebeu, na tese da morte do


autor, a inventividade de um teórico que, situado na passagem do estruturalismo
ao pós-estruturalismo, recuperou a relevância dos fatores sociais e históricos para
dentro das análises. Esses fatores, frutos da desconstrução de modelos impostos
ao longo de séculos, encontravam nos espaços da obra um lugar de centralidade
que seria destituída pela espacialidade livre do “texto” barthesiano.

175
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a


produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a
“mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas,
onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma
é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da
cultura (BARTHES, 1988, p. 68-69).

Assim, quando se fala da tese pós-moderna da “morte do autor”, nela


se implica a distinção entre o autor biográfico e a função que esse mesmo autor
desempenha no ato da escrita, pois a “função-autor” reincorpora dados biográficos
não ao indivíduo, mas a um sujeito marcado culturalmente, lido fora do modo
simplista “causa-efeito” que as análises tradicionais associavam o evento artístico
a eventos particulares e pessoais.

Foucault formula [...] a indiferença a respeito do autor como mote


ou princípio fundamental da ética da escritura contemporânea. No
caso da literatura – sugere ele – não se trata tanto da expressão de
um sujeito quanto da abertura de um espaço no qual o sujeito que
escreve não para de desaparecer: “a marca do autor está unicamente
na singularidade da sua ausência” (AGAMBEN, 2007, p. 55).

Caro acadêmico, quando lemos uma obra como Memórias póstumas


de Brás Cubas, de Machado de Assis, você tem a impressão de que os sentidos
que aparecem durante a leitura parecem ter sido previstos e escritos pelo autor
Machado de Assis? Que tudo que emerge da leitura advém da pessoa que foi
Machado de Assis, mulato criado no Rio de Janeiro do século XIX, e que, por isso,
associamos nossa leitura às tensas condições sociais em que o escritor viveu à
época?

Embora seja uma tese difícil para o senso comum, em realidade, o autor
Machado de Assis pouco tem a ver com o cidadão Machado de Assis, pois não
há uma relação unívoca entre essas duas faces, que só podem ser igualadas por
uma opção ideológica. Nessa perspectiva, o biográfico descola-se da esfera do
autor-homem-existente na mesma medida em que entra numa espécie de função
que se exerce por meio da escrita, isto é, da função-autor que deslocou a reflexão
biográfica segundo uma perspectiva contemporânea.

Desse modo, em parte, reitera-se a tese barthesiana da tirania autoral, na


medida em que o autor se apresenta como figura ideológica que, acreditando-
se possuidora de uma obra com limites claros e definidos, pretende controlar o
leitor. Foucault avança em outra direção demonstrando que se não há prevalência
do autor sobre o leitor é porque o lugar do autor é um lugar vazio, ocupado
apenas por um gesto cuja função marca a própria limitação, senão a morte, do
indivíduo autor.

176
TÓPICO 2 | A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

O lugar – ou melhor, o ter lugar – não está, pois, nem no texto nem no
autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em
jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso. O autor
não é mais que a testemunha, o fiador da própria falta na obra em
que foi jogado; e o leitor não pode deixar de soletrar o testemunho,
não pode, por sua vez, deixar de transformar-se em fiador do próprio
inexausto ato de jogar de não se ser suficiente (AGAMBEN, 2007, p.
63).

Dessa maneira, ao dar lugar às diferentes vozes, rumávamos para


um espaço de conjunção heterogêneas, de espacialidades distintas, de olhares
distintos, ou, para usar uma terminologia proposta por Michel Foucault,
rumávamos a uma “heterotopia” (hetero, diferente; topos, lugar), ou seja, a um
lugar que acolhe, que hospeda, num mesmo lugar, a diferença.

Não basta repetir perpetuamente como afirmação vazia que o autor


desapareceu, [...] [é preciso] localizar o espaço assim deixado vago
pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas
e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição
faz aparecer [...] e que permite diferenciar em um romance, por
exemplo, “o relato de um narrador” enquanto um “alter ego” cuja
distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao
longo da mesma obra (FOUCAULT, 2009, p. 271-279).

Essa abertura a diversas vozes de leitura, a diversos olhares perante as


obras culturais, que eclodiram com a cena pós-estrutural – desde a tese barthesiana
da morte do autor, a desconstrução metafísica de Derrida, e ainda com a tese da
função-autor, de Michel Foucault – abriram uma área de conhecimento voltada
ao estudo das práticas culturais das populações de baixa renda, de modo geral
expulsas dos cânones artísticos e literários, e que passaram a ter algum lugar
teórico de relevância com os Estudos Culturais.

3 OS ESTUDOS CULTURAIS
O pós-estruturalismo trouxe, para o plano cultural, a descentralização
da ideia de origem ligada a um determinado indivíduo-autor, induzindo a
teoria literária à observação de todas as esferas possíveis da literatura, desde a
produção até à circulação, e da circulação ao consumo do fenômeno literário,
vista não como algo elevado por uma natureza sagrada, mas como mais uma
mercadoria simbólica, que tornaria possível a revisão dos cânones literários a
partir do revisionismo sustentado pelos estudos culturais.

Nesse sentido, são infundadas as acusações feitas aos estudos culturais


de que a literatura deixa de ser considerada objeto de pesquisa, ao ser
relegada a segundo plano e ao ser substituída por outros discursos e
diferentes interesses político-culturais. A abrangência assumida pela
literatura – ou a obra de ficção – possibilita maior abertura textual e
independe do critério de valor exclusivista e fechado assumido pela
crítica literária tradicional (SOUZA, 2000, p. 44).

177
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Essa vertente teórica sustentava, contra a ideia de qualidade estética


do cânone literário, que, uma vez consideradas como clássicas, não mais se
questionavam os critérios de eleição de tal ou tal autor. Todavia, será que a eleição
das obras estaria amparada exclusivamente em parâmetros estéticos, ou haveria
uma intenção ideológica a fazer dela uma determinação proveitosa para certos
grupos de poder?

O cânone clássico eram obras-modelo, destinadas a serem imitadas


de maneira fecunda; o panteão moderno é constituído pelos escritores
que melhor encarnam o espírito de uma nação. Passa-se, assim, de
uma definição de literatura do ponto de vista dos escritores (as obras a
imitar) a uma definição de literatura do ponto de vista dos professores
(os homens dignos de admiração). Alguns romances, dramas ou
poemas pertencem à literatura porque foram escritos por grandes
escritores, segundo este corolário irônico: tudo o que foi escrito por
grandes escritores pertence à literatura, inclusive a correspondência
e as anotações irrisórias pelas quais os professores se interessam
(COMPAGNON, 2012, p. 33)

Essa suspeita também está na raiz da desconstrução da autoria em


Foucault, assim como a de cânone, que pressupõem a ideia de controle, isto é,
da imposição de sentidos ideológicos ao leitor, contra a qual Foucault proporia
uma ética de leitura baseada em uma liberdade radical que retiraria a ideia de
propriedade do texto e ademais abriria, ao discurso crítico, as diferentes formas
de leitura arregimentadas pelos estudos culturais.

E
IMPORTANT

Houve uma longa trajetória de embates entre classes sociais, entre o poder
constituído e os grupos sociais colocados à margem, até que se firmassem os Estudos
Culturais. Assim, apesar da oposição entre as classes sociais mais elevadas (aristocracia e
burguesia), havia em comum o fato de elas sempre buscarem se apartar das classes menos
incultas, populares, ou, como se diz, do “povão”. É o que observa Eggensperger: “durante
a segunda metade do século XX, a literatura perdeu o seu lugar privilegiado em favor de
outras mídias. Estudar as práticas culturais da grande massa da população abaixo da classe
média: isto era a proposta no início dos estudos culturais na Grã-Bretanha. O inglês Richard
Hoggart, que cunhou o termo cultural studies em 1963, era professor universitário de
literatura, [que havia] ‘procurado aplicar métodos literários de análise ao estudo de textos
não-literários, assim como descrever, analisar e criticar a cultura popular contemporânea
[...]. Tem-se desfeito da primazia da literatura escrita como a que existiu por, no mínimo,
dois séculos e meio no ocidente alfabetizado [...]. Enquanto na sociedade capitalista dos
tempos da revolução industrial o consumo e as mídias de massas eram desconhecidos,
ambos agora parecem dominar a nossa vida. Michael Jackson, os Simpsons ou Star Wars de
Georg Lucas têm tido mais relevância para a socialização cultural de muita gente do que a
leitura de Rilke, Cervantes ou Shakespeare” (EGGENSPERGER, 2010, p. 55-56).

178
TÓPICO 2 | A QUEDA DA AURA LITERÁRIA

A par com as teses de Roland Barthes, haveria, nessa forma de livre


leitura, uma multiplicidade de vozes que se irmanam à liberdade de leitura
proposta pela desconstrução e, nesse contexto, a noção estável de cânone literário
começa a perder força na mesma medida em que alguns setores da sociedade,
até então culturalmente marginalizados, como a escrita feminina, a escrita negra
etc. começaram a atuar como leitores produtivos, conseguindo uma posição de
destaque nos estudos literários.

A proliferação de práticas discursivas consideradas “extrínsecas” à


literatura, como a cultura de massa, as biografias, os acontecimentos
do cotidiano, além da imposição de leis regidas pelo mercado,
representam uma das marcas da pós-modernidade, que traz para o
interior da discussão atual, a democratização dos discursos e a quebra
dos limites entre a “alta literatura” e a cultura de massa (SOUZA, 2000,
p. 44).

Esse lugar, como bem prenunciou Barthes, não seria mais o livro enquanto
corpo físico, mas a textualidade inscrita nesse espaço cultural em que o autor
descola-se da premência de um ser biográfico para ser mais uma das vozes que
entram no jogo literário, a saber, a voz que escreve e que, livre da individualidade
de um homem que não está por trás da palavra como um determinante dela,
traça-se como gesto da “écriture”, ou seja, como gesto de escrita.

Nesse sentido, Barthes observará que a biografia contemporânea, ou seja,


o “biografema” vai nutrir a ideia de Foucault da função-autor, que é de natureza
plural e fragmentária, na qual jamais encontra-se um “sentido” original da ordem
do indivíduo autor, mas tão somente “mais um sentido” possível, capturado não
na ordem do indivíduo, mas do sujeito – autor, leitor – que espelha as marcações
de uma determinada cultura.

A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação


complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura
além de seus limites intrínsecos e exclusivos, [...] [por isso] propõe
a caracterização da biografia como biografema (Roland Barthes),
conceito através do qual se constrói uma imagem fragmentária do
sujeito, uma vez que não se acredita mais no estereótipo da totalidade
e nem no relato de vida como registro de fidelidade e autocontrole
(SOUZA, 2000, p. 43-45).

Nesse contexto, não apenas o livro tende a tornar-se secundário, como
também a centralidade dos discursos canônicos preservados ao redor do livro
perde, em grande medida, o seu poder abrindo espaço para os diversos estratos
sociais que mais “assistem” do que leem as obras de arte. Negros, homossexuais,
mulheres, enfim, setores antes relegados socialmente a um segundo plano, passam
a invadir, em igual medida, os territórios disciplinares até então hegemônicos.

179
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

No campo da teoria, um efeito imediato foi o enfraquecimento dos


territórios bem demarcados das disciplinas modernas – leitura estrutural, leitura
formalista etc. – na medida em que seus conceitos modeladores também estavam
sendo questionados pelas abordagens pós-estruturalistas, cujo epicentro situava-
se numa relação permanentemente crítica com o poder.

Os estudos culturais são intervencionistas no sentido de tentar os


melhores recursos intelectuais para conhecer mais satisfatoriamente
as relações de poder (como a evolução ou o equilíbrio em um jogo de
forças) num contexto específico, acreditando que esse conhecimento
pode capacitar melhor as pessoas a mudar o contexto e, com isso, as
relações de poder [...]. Além disso, procura entender não somente
as organizações de poder, mas, também, as possibilidades de luta,
resistência e mudança (GROSSBERG, 2009, p. 31).

De fato, não apenas os modelos de escrita, mas também os produtores de


saber – críticos, teóricos e historiadores de arte e de literatura – começavam a ter
seu território necessariamente minado pela invasão, no mínimo democrática, dos
estudos culturais na cena contemporânea.

Nos estudos culturais, a preocupação é a de lançar luz ao sujeito e suas


possibilidades de apropriação e ressignificação dos sentidos hegemonicamente
construídos. Ao trabalharem mais sistematicamente com a ideia de resistência,
os autores ligados a esta vertente sugerem que o indivíduo não é um mero
reprodutor das estruturas e recuperam a ideia de uma correspondência dialética
entre os agentes e as instituições (CASTRO; PAOLIELLO, 2013, p. 8).

DICAS

Sugerimos a você, car@ acadêmic@, assistir ao vídeo ilustrativo Estudos Culturais


(https://www.youtube.com/watch?v=T69SfWmtu-g), que estabelece uma panorâmica geral
desse movimento, situando-o historicamente em suas principais vertentes. Observe que,
neste UNI, grafamos o final das palavras com “@”, ao invés de “o” para o gênero masculino,
ou “a” para o gênero feminino, sem portanto diferenciar os gêneros , como os sexuais, de
modo a sinalizar uma discussão cara aos estudos culturais, a saber, a tese da diluição de
fronteiras, inclusive as de gênero.

180
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• As teorias da literatura pós-estruturalistas, surgidas em torno da década de


60 do século XX, traziam, cada uma a seu modo, um novo modo de inserção
do fenômeno social na representação literária. Tinham em comum destronar
os paradigmas de análise modernos, especialmente os alicerces teóricos do
estruturalismo, os aspectos abstratos da linguística de Ferdinand de Saussure
e as bases do formalismo de Roman Jakobson.

• Assim, prenunciado pela tese da “morte do autor”, de Roland Barthes – teórico


francês que viveu a cena do estruturalismo, irrompendo de dentro dela em
direção a um papel mais ativo do leitor, promovendo a substituição da obra
pelo texto, condição para fazer do leitor um novo tipo de escritor –, o pós-
estruturalismo passa a ganhar novo fôlego através da noção de função-autor,
de Michel Foucault, e das estratégias da Desconstrução, de Jacques Derrida.

• Esses três autores fundamentaram as condições de estudo crítico pós-moderno


ao preconizarem a fluidez dos discursos sociais frente à centralização rígida
operada pelo estruturalismo – que estudava a relação entre as obras, a
despeito do contexto social de leitura –, abrindo novos parâmetros teóricos,
que se voltavam contra as práticas engessadas de leitura que, por essa ótica,
mascaravam discursos ideológicos e de poder.

• Ademais, pouco a pouco também democratizava-se a leitura por outro viés: a


par com os avanços tecnológicos decaía a centralidade do objeto livro em prol
de meios mais ágeis e menos profundos de ler a realidade: a internet, as mídias,
o cinema etc., que embora apontassem para textos de menor profundidade,
entretanto abriam espaço para setores até então marginalizados participarem
ativamente da leitura do mundo, constituindo a escola de pensamento dos
Estudos Culturais.

181
AUTOATIVIDADE

1 A teoria da literatura, retomada segundo o viés pós-estrutural de Jacques


Derrida, colocou a desconstrução literária como eixo metodológico de
leitura, desse modo, abrindo espaço para análise das contradições lógicas
e discursivas que se apresentavam nos textos, sem, entretanto, relegá-las a
um segundo plano. Nesse sentido, o pós-estruturalismo derrideano abriu
novas perspectivas de análise literária. A partir dessa reflexão, NÃO é
correto afirmar:

a) ( ) A tese da desconstrução busca dar lugar a tudo que é heterogêneo, por


conseguinte acolhendo as contradições textuais.
b) ( ) A tese da desconstrução, ao questionar, palavra por palavra, a
fundamentação dos textos, revela-se como tática de desmontagem da
metafísica ocidental.
c) ( ) A tese da desconstrução é uma estratégia pós-moderna que foi além da
relação intrínseca entre os textos propagada pelo estruturalismo.
d) ( ) A tese da desconstrução guardava uma contradição em si mesma, posto
que, ao propor ler o heterogêneo, voltava-se contra a igualdade textual e
dos sexos.

2 Em a função-autor, Michel Foucault expande a tese barthesiana da morte


do autor ao apontar o estatuto ideológico de controle inserida na ideia
de autor-indivíduo, indivíduo que determinaria, a partir de seu ponto de
vista intencional, os limites da leitura e do leitor. Contra essa tese, Foucault
sustentou a ideia de autor-sujeito, deslocando a sustentação do autor como
pessoa para o autor como gesto. Considerando essas informações, associe
os itens, utilizando o código a seguir:

I- Indivíduo-autor
II- Autor-sujeito

( ) Termo que designa uma entidade humana: física, afetiva e cognitiva.


( ) Termo que designa a forma cultural em que o indivíduo se torna ente
social por meio do discurso.
( ) Designa uma entidade pensante, não uma pessoa em particular.
( ) É o homem de carne e osso, não a marca cultural e social inscrita nesse
mesmo homem.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – I – I.
b) ( ) II – I – II – I.
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) I – II – I – II.

182
3 Após a cena estruturalista, que centrou seus postulados em leituras a
partir das obras, o pós-estrutralismo retomou a preocupação com o sujeito
histórico, que se colocava em uma posição passiva devido aos discursos
de controle ideologizantes dos quais o estruturalismo continuava. Nesse
sentido, os estudos culturais espelharam uma abertura aos diversos tipos
de leitor até então colocados fora de cena pelo cânone dominante. A partir
dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as
sentenças falsas:

( ) Os estudos culturais abriram espaço para temas ligados a estilos dos


jovens, questões corporais, conflitos raciais, entre outros.
( ) Os estudos culturais decorrem da descentralização do discurso canônico,
cujos atores centrais foram Derrida e Foucault.
( ) Os estudos culturais são também espaços de resistência, que englobam
questões ligadas a identidade, consumo, gênero sexual, subjetividade etc.
( ) Os estudos culturais é uma perspectiva teórica que se coloca como
representante da arte culta em relação às artes vulgares.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) V – F – V – V.

183
184
UNIDADE 3
TÓPICO 3

DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E


OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

1 INTRODUÇÃO
Como fica a literatura e a crítica literária após a explosão tecnológica
ocorrida na virada do século XX para o XXI, quando os livros passam a ser
substituídos, em larga escala, por aparelhos eletrônicos e aparelhos portáteis?
Pode-se assentir que houve aspectos positivos, como a facilidade de acesso dada
pelo que Walter Benjamin chamou de “reprodutibilidade técnica”, a saber, que
a arte tecnologicamente reprodutível democratiza os meios de acesso às obras,
antes restritas a um seleto grupo de pessoas esclarecidas.

Historicamente, a gênese do homem está vinculada à gênese da língua;


o segundo grande passo foi o desenvolvimento da escrita e a longa
substituição do paradigma oral pelo paradigma da escrita. No século
XX, os universos da oralidade e da escrita foram completados pelo
paradigma audiovisual e, ultimamente, é o paradigma multimedial
que tem ganho importância para os processos de produção e recepção
de códigos culturais (RAIBLE, 2006 apud EGGENSPERGER, 2010, p.
57).

Entretanto, havia uma suspeita muito levantada pelos contestadores do
pensamento de Benjamin, na escola de Frankfurt, de que o acesso fácil à arte
não implicava em verdadeiro acesso, senão em uso superficial das obras de arte.
Comprova-se esse fenômeno na busca social de visibilidade a qualquer custo, que
tomou conta das mídias e das redes sociais, como a postagem na internet de fotos
de pessoas nos museus em meio às grandes obras de arte, ali menos preocupadas
na contemplação delas do que em divulgar imagens em que essas mesmas obras
aparecem como fundo de suas existências esvaziadas.

É assim que muitos teóricos filiados à escola de Frankfurt, especialmente


aqueles vinculados às teses de Theodor Adorno, valer-se-ão do argumento da
“indústria cultural” – isto é, do vaticínio dos efeitos alienantes e de anestesia
cultural provocados pela produção de bens culturais de fácil acesso e com
rentabilidade imediata – para contestar a queda da arte para fenômenos culturais
como o Kitsch, palavra alemã que designa formas rebaixadas de arte, em geral
adequadas ao gosto de homens de pouca cultura.

185
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

As pessoas estão cansadas. Elas querem ser distraídas, e a indústria


do Kitsch fornece o inferior, que é mais fácil. Contudo é anestesia,
não tem nada a ver com compreensão, com encontro, com arriscar-se.
Sentar-se sozinho, ler refletir sem barulho, sem som de fundo, tudo
isso virou um esforço (NZZ, 2009 apud EGGENSPERGER, 2010, p. 65).

Mesmo que Adorno estivesse com razão ao denunciar a migração dos
questionamentos da arte acerca da condição humana em favor da exposição
superficial da indústria do entretenimento, todavia seu pensamento crítico não
pode contestar que o mundo atual, amparado na tecnologia, trouxe uma nova
forma de percepção, já intuída por Walter Benjamin, cujos efeitos imediatos
revelam-se especialmente no processo de substituição dos suportes midiáticos na
dimensão cultural contemporânea.

“Considerar o computador apenas um instrumento a mais pra produzir


textos, sons ou imagens sobre um suporte fixo (papel, película, fita magnética)
equivale a negar sua fecundidade propriamente cultural, ou seja, o aparecimento
de novos gêneros ligados à interatividade” (LEVY, 1996, p. 44).

Assim, a queda da aura literária, ocorrida na segunda metade do século


XX, foi em parte provocada pelo confronto da “aura” das obras de arte frente
ao desenvolvimento dos aparatos tecnológicos de reprodução, tal como previu
Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Entretanto,
embora esse efeito tecnológico fosse evidente na perda da aura, há outra forma
de perda, no caso da literatura, em que o livro deixa de ser o espaço central de
discussão e de reprodução dos meios culturais.

Essa queda do livro como espaço singular da literatura foi prenunciada


pelo poeta simbolista francês Stephane Mallarmé, que escreveu o primeiro poema
visual Un coup de dés (Um lance de dados) no final do século XIX (Figura 4) –
poema fragmentado, esparso em distintas partes do livro, com letras de diversos
tamanhos e uma tipografia mais avançada para a época, que requeria uma outra
forma de espacialidade, não mais bidimensional, portanto mais afeita ao mundo
tecnológico do século XXI.

“Apollinaire afirma que os dias do livro estão contados: “a tipografia


termina brilhantemente sua carreira na aurora dos novos meios de reprodução
que são o cinema e o fonógrafo” [...]. Un coup de dés encerra um período, o da
poesia propriamente simbolista, e abre outro: o da poesia contemporânea” (PAZ,
1991, p. 104).

186
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

E
IMPORTANT

O francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) foi um autor de uma obra poética


ambiciosa e difícil, que promoveu renovação da poesia na segunda metade do século XIX.
Utilizava símbolos para expressar a verdade através da sugestão e sua poesia se caracterizou
pela ênfase da musicalidade, da experimentação gramatical e de um pensamento refinado
repleto de alusões, em virtude dos quais é considerado um poeta difícil e hermético. Seus
comentários críticos sobre literatura, arte e música estimularam escritores simbolistas
franceses, assim como artistas e compositores da escola impressionista, que ao final
do século XIX desenvolveram uma arte espontânea em oposição ao formalismo da
composição. Um Jogo de Dados (Un coup de dés), de 1897, é um longo poema de versos
livres e tipografia revolucionária que constitui a declaração trágica da impossibilidade de se
atingir o estabelecido no livro. Mallarmé desempenhou um papel fundamental também na
evolução da literatura no século XX, especialmente nas tendências futuristas e dadaístas,
além de ser um dos precursores da poesia concreta brasileira.

FONTE: <http://biografiaecuriosidade.blogspot.com/2014/08/biografia-de-stephane-
mallarme.html>. Acesso em: 28 out. 2019.

Se Mallarmé sustentava uma escrita que, em meio à precariedade dos


recursos tipográficos do século XIX, requeria outros aparatos tecnológicos,
isso implica em reconhecer que, bem antes do “bum” tecnológico que vivemos
atualmente, havia uma declarada limitação do suporte livro diante de uma nova
estética que estava por vir.

FIGURA 4 – UM COUP DE DÉS (1987), DE STEPHANE MALLARMÉ

FONTE: <https://www.artcurial.com/sites/default/files/styles/840_width/public/lots-imag
es/2017-08-31-08/2059_10358782_0.jpg?itok=AcNGSqRt>. Acesso em: 28 out. 2019.

187
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Dessa forma, no lugar do livro, outros meios midiáticos, tecnologicamente


mais avançados, como a televisão, o cinema, a internet, o computador etc.,
ganhariam lugar de maior relevância, deslocando a aura das figuras canônicas
para personagens dispersos num mundo cibernético e fragmentado.

Se considerarmos o computador como uma ferramenta para produzir


textos clássicos, ele será apenas um instrumento prático que a
associação de uma máquina de escrever mecânica, uma fotocopiadora,
uma tesoura e um tubo de cola [...]. Mas se considerarmos o conjunto
de todos os textos (de todas as imagens) que o leitor pode divulgar
automaticamente interagindo com um computador a partir de uma
matriz digital, penetramos num novo universo de criação e de leitura
de signos (LEVY, 1996, p. 43-44).

Ademais, essa arte futura, que o computador veio a dar suporte,


possibilitaria também aprofundar as relações de mútua influência entre as diversas
modalidades de arte. Modalidades artísticas como a pintura, a música e a literatura
sempre sofreram mútua influência sem perder, cada qual, o estatuto originário:
os quadros se expunham nos museus, as audições musicais se executavam nos
sarais, nas apresentações de orquestra etc. Com a nova tecnologia, a forma de
relação entre as artes mudaria radicalmente.

Acontece que, com o avanço dos eventos tecnológicos, a apropriação de


diversas artes na tela de um computador tornou-se mais radical, testemunhando
uma intersemiose produtiva de novas percepções.

As potencialidades da linguagem digital cresceram


extraordinariamente, em brevíssimo espaço de tempo, com hardwares
e softwares cada vez mais aperfeiçoados e disponibilizados, reavivando
no mundo dos signos a pertinência antecipadora das propostas da
vanguarda, fulguradas em conceitos como a materialidade do texto
e sua projeção pluridimensional, visual e sonora (“verbivocovisual”),
a interpretação do verbal e do não verbal, a montagem, a colagem,
a interdisciplinaridade, a simultaneidade e, por fim, a interatividade,
em substituição aos modelos convencionais do discurso ortodoxo e
fechado (CAMPOS, 1975, p. 132).

2 LITERATURA, INTERSEMIOSE E A AVENTURA


TECNOLÓGICA
No mundo das artes, há e sempre houve compenetração, implícita ou
explícita, de modalidades artísticas, caracterizando um fluxo intersemiótico
que faz da arte um repertório ilimitado de linguagens. Assim, a música e a
pintura, as artes visuais e as literaturas, dentre outros modalidades, destacam-
se por revelarem mecanismos de mútua contaminação, fenômeno ganhou maior
relevância no mundo cibernético, em que a mescla de modalidades tornaram-se
mais evidentes.

188
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Nossa comparação da linguagem e da pintura só é possível graças a


uma ideia de expressão criadora que é moderna [...]. O pintor joga os
peixes e conserva a rede. Seu olhar se apropria das correspondências,
[...] por outro lado, as cores e uma tela que fazem parte do mundo, ele
as priva subitamente de sua inerência: [...] tornam-se como as fontes
ou as florestas, [...] só estão lá como o mínimo de matéria de que um
sentido tinha necessidade para se manifestar. A tarefa da linguagem
é semelhante: [...] a mesma migração de um sentido esparso na
experiência [...] mobiliza em seu proveito instrumentos já investidos,
e os emprega de modo que eles se tornam para ele o próprio corpo
de que tinha necessidade enquanto passa à dignidade da significação
expressa (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 61-62).

Exemplar de tal expressividade, vê-se, por exemplo, a pintura e a escrita,
ou, mais propriamente, os modos de composição a um só tempo inaugurais, que
se depreendem das telas de Joan Miró e da poética de poeta João Cabral de Melo
Neto, segundo a leitura que este poeta intuiu da obra pictórica daquele, como,
por exemplo, na linha de continuidade entre A Quinta e Azul II, nas Figuras 5 e 6,
respectivamente, e em alguns excertos de autorreflexão do pintor espanhol.

Precisei de quase dois anos para terminar este quadro, mas não
porque tivesse dificuldade de pintar. Não, a razão foi porque o que
eu observava ia-se metamorfoseando. O quadro era absolutamente
realista. Não inventei nada. Se retirei a vedação da capoeira foi porque
me impedia de ver os animais. Antes de se produzir a metamorfose
tinha que registrar o mais pequeno pormenor da quinta, que tinha ali,
à minha frente, em Montroig (MIRÓ, 1960 apud MINK, 1994, p. 32).

FIGURA 5 – A QUINTA (1922), DE JOAN MIRÓ

FONTE: <https://onelivedesign.files.wordpress.com/2009/03/miroaquinta3.jpg?w=300&h=225>.
Acesso em: 28 out. 2019.

189
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Anotará João Cabral a luta, comum a diversos pintores, para devolver o


dinamismo à superfície do quadro, mas que no pintor espanhol se apresentava
de modo singular, dada por um progressivo acento “negativo” que, ao voltar-
se contra as próprias fórmulas conquistadas, resultaria em um processo
poético-pictórico para ambos redutivo.

FIGURA 6 – AZUL II (1961), DE JOAN MIRÓ

FONTE: <https://www.freeart.com/gallery/m/miro/miro68.jpg >. Acesso em:15 ago. 2019.

NOTA

O escritor brasileiro Joao Cabral de Melo Neto e o artista catalão Joan Miró
se tornaram amigos na década de 1940, quando João Cabral, na condição de diplomata,
se desloca para Barcelona. Nesse período em que conhece Cabral, Miró vivia angustiado
por conta do regime fascista na Espanha, que colocou sua obra na posição de inimiga do
regime. É nesse contexto que João Cabral chega a Miró, levando consigo um pouco do
frescor da curiosidade e da juventude. É possível abordar o ensaio que João Cabral escreve
sobre Joan Miró pela perspectiva de um dos subgêneros no qual se encaixa – as reflexões
críticas sobre grandes pintores realizadas por grandes escritores. A arte modernista do início
do século XX, em suas múltiplas formas, representa o auge desse contato tão produtivo
entre escritores e artistas visuais.

FONTE: <https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/221/o-miro-de-joao-cabral-de-
melo-neto>. Acesso em: 28 out. 2019.

No caso em questão, o poeta confessa sua adesão tácita a uma forma


poética que encontra na pintura: uma poética “do menos”, a seu ver “antilírica”,
que se caracterizava por uma linguagem o mais enxuta, precisa e mais impessoal
possível, que João Cabral tomou de empréstimo confessadamente, menos de
outros escritores, do que da lição pictórica de alguns pintores modernos.

190
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

QUADRO 1 – O SIM CONTRA O SIM (PRIMEIRA PARTE)


Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse


o muito que aprendera
a fim de encontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se


a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não é canhoto)


é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
FONTE: Melo Neto (1997, p. 287)

Para Merleau-Ponty (1991), a percepção já estiliza, tal como se observa


em A Quinta, Figura 7, na presença de sinais que relativizam o olhar consensual:
o retângulo em torno da horta e a roda da carroça vermelhos, o círculo negro
ao redor da árvore de raiz branca, a parede da granja ruindo sob o peso da
imaginação etc., a atestar o estilo de um pintor que se esmera no tratamento dos
objetos em detalhe, configurando uma espécie de “pormenorismo” que também
se refletiria na poesia do poeta pernambucano.

À ideia da subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele


substitui um tipo de composição em que todos os elementos merecem
igual destaque. Nesse tipo de composição não há uma ordenação em
função de um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que
se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de
fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do
quadro (MELO NETO, 1997, p. 24).

Dispondo, assim, não de uma fórmula Miró, mas de modos de aprofundar,


tela após tela, essa espécie de “lirismo do mínimo”, o pintor espanhol poderia
dialogar com uma maior diversidade de estilos, marcando-o mais diretamente
nas composições da série Azuis, numa forma estética condensada cuja magnética
estamparia na tela Azul II, da Figura 6.

191
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Ali o “choque” de um azulado desprovido de qualquer hostilidade


revelava o ápice de um processo pictórico redutivo-construtivo da pintura
espanhola, que o poeta pernambucano, a seu modo, teria incorporado em seu
processo de escrita antilírica, voltada contra qualquer forma de rigidez:

Este não se fixar numa solução para convertê-la em maneira, este


saber-passar permanente de uma a outra solução impediu qualquer
estagnação do artista. Foi esse saber não chegar que lhe permitiu dar a
sua obra uma continuidade que nada tem a ver com a versatilidade de
muitos de seus contemporâneos (MELO NETO, 1997, p. 22).

Esse tratamento espacial levaria o pintor, e indiretamente o poeta, a uma


perspectiva moderna não ideológica, a revelar que a imagem profunda é sempre
estranha ao nosso olhar, portanto, que a percepção artística de um modo geral
rivaliza com o reconhecimento familiar das formas que – como se frutos de uma
“mão direita”, expressiva na arte tanto de Joan Miró quanto de Piet Mondrian –
costuma-se chamar de “natural”.

FIGURA 7 – COMPOSIÇÃO (1917), DE PIET MONDRIAN

FONTE: <https://es.wikipedia.org/wiki/Neoplasticismo#/media/Archivo:Mondrian_Compositie_
in_kleur_A.jpg>. Acesso em: 28 out. 2019.

192
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

De fato, a rítmica das figuras neoplásticas, como a da Figura 7 – temática


já abordada no Tópico 1 da Unidade 2 – espelhava não mais a representação de
um mundo exterior à tela, mas de algo “invisível” à percepção comum, a vibrar
numa tensão visual dada por meio de conjuntos quase simétricos compostos de
linhas verticais e horizontais em diálogo com as três cores primárias.

Houve uma concepção prosaica da linha como atributo positivo e


propriedade do objeto em si [...]. Esse tipo de linha é contestado por
toda a pintura moderna, provavelmente por toda a pintura, visto
como Da Vinci, no Tratado da Pintura, falava de “descobrir em cada
objeto [...] a maneira particular como se dirige, através de toda a sua
extensão [...] uma certa linha flexuosa que é como que o seu eixo
gerador (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 295).

Assim, antes mesmo da explosão do “bum” tecnológico – que influenciará


não apenas o movimento concretista literário brasileiro, mas autores da geração
literária de 1945, como o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto – já se
revelavam as marcas de uma relação intersemiótica, no caso entre poesia e pintura,
na medida em que João Cabral tomava de empréstimo modos de composição das
artes pictóricas, não só de Joan Miró, mas também da poética redutiva de Piet
Mondrian.

QUADRO 2 – O SIM CONTRA O SIM (SEGUNDA PARTE)

Mondrian, também, da mão direita


andava desgostado;
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.

Assim, não a trocou de braço


queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela.

Fez-se enxertar réguas, esquadros


e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.

Assim foi que ele, à mão direita


impôs tal disciplina:
fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda.
FONTE: Melo Neto (1997, p. 288)

193
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Tamanha foi a “contaminação” da linguagem pictórica na linguagem


poética, que João Cabral chegou a compor uma produção poética em série na
obra Serial, construída a partir de poemas geométricos em que as estrofes
possuem quatro versos cada e que mimetiza a produção também em série do
neoplasticismo holandês. Ademais, o poeta buscou compor poemas não apenas
regulares, mas nos quais as estrofes se aproximassem visualmente do formato de
retângulos, tão caros à linguagem pictórica de Mondrian:

QUADRO 3 – A ESCULTURA DE MARY VIEIRA (TRECHO)

Dar ao número ímpar


o acabamento do par.
Então ao número par
o assentamento do quatro.
FONTE: Melo Neto (1997, p. 247)

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo [Arquivo N] Dez


Anos sem João Cabral de Melo Neto (https://www.youtube.com/watch?v=XvxWkAVVl-k),
que faz uma panorâmica de sua poesia segundo uma tendência pós-moderna que o poeta
cultivou, aproximando-se teoricamente dos poetas concretistas brasileiros, que indicava
uma certa inclinação visual, posto que o autor consagrava sua escrita, menos à expressão
de sentimentos íntimos e biográficos do que descrever objetos exteriores, a “pintá-los”
como se fossem poemas pictóricos, bem ao estilo das reflexões e da arte de Joan Miró e
Piet Mondrian – pintores modernos de sua preferência.

Se as relações semióticas entre as diversas artes – assim como demonstramos


entre a poesia de João Cabral e algumas obras pictóricas modernas: de Joan Miró,
de Piet Mondrian – antes pareciam consagradas exclusivamente aos “homens
de gênio” como era o próprio poeta brasileiro, essa cena modifica-se com as
plataformas midiáticas contemporâneas – fenômeno hipermídia – na medida
em que a hipermídia possibilita ao leitor um acesso simultâneo a sons, textos e
imagens, fazendo da leitura um processo construtivo e intersemiótico.

As páginas [de um livro] não deveriam obedecer a uma ordem fixa:


deveriam ser agrupáveis em ordens diversas, consoante leis de
permutação. Estabelecida uma série de fascículos independentes
(não reunidos por uma paginação que determinasse sua sequência)
[...], no interior dela deslocar-se-iam folhas soltas, simples, móveis,
intercambiáveis, mas de tal maneira que, fosse qual fosse a ordem de
sua colocação, o discurso possuísse um sentido completo (ECO, 1991,
p. 52-53).

194
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

2.1 LITERATURA E HIPERTEXTO


Vivemos em pleno século XXI, em um período histórico vertiginosamente
tecnológico e informatizado, que, embora tenha sido previsto pela escola de
Frankfurt em meados de 1950, ganhou tamanha expansão na atualidade – com
o desenvolvimento da rede mundial de computadores e aparelhos portáteis –
que tem instado o pensamento teórico a buscar novos entendimentos do que seja
fazer literatura e análise literária na contemporaneidade.

Com base na arquitetura não-linear das memórias de computador,


pode-se hoje conceber obras em que textos, sons e imagens estariam
ligados entre si por elos probabilísticos e móveis, podendo ser
configurados pelos receptores de diferentes maneiras, de modo a
compor possibilidades instáveis em quantidades infinitas. Isso é
justamente o que chamamos de hipermídia (MACHADO, 1997, p.
252).

Ao permitir acesso interativo e simultâneo a sons, imagens e textos, esse


meio tecnológico desenvolve um tipo de linguagem que requer nova forma de
percepção, portanto de uma atitude diferenciada diante da obra de arte e, mais
especificamente, da literatura em versão digital. Assim, exigida por uma instância
cultural demasiadamente midiatizada – internet, computadores, telefones
celulares etc. –, a hipermídia abre espaço para outras abordagens teóricas na
medida em que dá a pensar a literatura sobre novo enfoque.

Longe de ser apenas uma nova técnica, um novo meio para transmissão
de conteúdos preexistentes, a hipermídia é, na realidade, uma nova
linguagem [...]. Toda nova linguagem traz consigo novos modos de
pensar, agir, sentir [...]. A hipermídia significa uma síntese inaudita
das matrizes da linguagem e pensamento sonoro, visual e verbal com
todos os seus desdobramentos e misturas possíveis (SANTAELLA,
2001, p. 392).

195
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

E
IMPORTANT

O avanço tecnológico digital disponibilizou ao homem instrumentos


como computadores, pagers, telefones celulares, correio eletrônico,
Internet dentre outros [...]. A Internet é acima de tudo um campo para
divulgação de ideias e conhecimento; nesse campo denominado
ciberespaço a literatura encontrou um meio ideal para sua propagação.
Será, então, que a literatura ao utilizar o ciberespaço estaria extinguindo
o uso do livro? A resposta nos parece clara, visto que esse é apenas
mais um meio para a difusão da palavra e da transformação desta.
A utilização da máquina de escrever para transpor a escrita manual
para a mecânica quebrou a ideia de que escrever era uma atividade
artesanal. Experienciamos, atualmente, a virtualização da escrita e
seguimos para a construção no ciberespaço daquilo que Pierre Lévi
chama de Inteligência coletiva, uma rede de cabeças pensantes
que estão constantemente e silenciosamente transformando a
realidade humana de forma planetária ou globalizada. Com tantas
transformações tecnológicas, muitos podem pensar no fim do livro e,
até os mais extremistas, no fim da literatura. Isso é um grande equívoco,
pois esses são dois finais ou, como queiram alguns, “duas mortes” que
estão muito distantes. Podemos afirmar que o futuro da literatura está
no espaço virtual, ou ciberespaço, o qual pode ser considerado como
um mundo cheio de possibilidades (SILVA, 2011, p. 2).

Destarte, o fenômeno hipermídia passaria a exigir mudanças substanciais


dos modos tradicionais de leitura – que antes estavam fundadas sobre a fixidez do
objeto “livro” – em prol de uma instância teórica livre, heterogênea, que viesse a
abarcar novas formas de interação do leitor com a literatura, ou melhor, para falar
em termos digitais, do usuário-leitor no espaço digital, ou seja, no ciberespaço, e,
mais especificamente no campo das representações literárias, a cibercultura.

O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de


comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O
termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação
digital, mas também o universo oceânico de informações que ela
abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo. Quando ao neologismo “cibercultura”, especifica aqui o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes,
de modos de pensamento e valores que se desenvolvem juntamente
com o crescimento do ciberespaço (LEVY, 1999, p. 17).

Nessa perspectiva, similar às modificações de leitura decorrentes da


aparição da máquina de escrever – que modificou as relações entre escritor e leitor,
visto que a leitura, em virtude da impressão tipográfica das letras, realizava-se
com mais clareza e menos “aura mágica” –, o leitor atual passa a ser um usuário-
leitor, isto é, alguém capaz de fazer “links” entre elementos midiáticos, assumindo
o controle sobre sua própria navegação em rede e personalizando, de modo mais
ativo, a leitura.

196
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Tal tese implica em reconhecer que as novas formas de percepção, que


podem ser estudadas pela teoria da literatura, não são decorrência exclusivamente
da mudança do suporte dos textos, isto é, não se trata apenas de substituir o
livro impresso por “livros eletrônicos”, que implicaria tão somente em registros
históricos, mas de verificar em que medida o espaço midiático cria ou não cria um
novo gênero literário.

O livro atingiu um patamar de instituição, haja vista que, em sua forma


impressa, configura-se como ferramenta para transmitir a memória
cultural de uma sociedade, propiciando um saber coletivo, papel
também exercido pela tecnologia. Evidentemente, o livro impresso e
o livro eletrônico possuem hierarquicamente valoração diferenciada
entre si e culturalmente (SILVA, 2011, p. 3).

Não restrita à passagem de um meio “físico”, como o livro, para um meio
“eletrônico”, como o computador, incorreu-se em uma ressignificação do objeto
literário, provavelmente dando lugar ao surgimento de mais gênero literário:
digital, lido a partir de qualquer posição, de trás para frente, de frente para trás,
do meio para o fim, do fim para o começo, de modo semelhante a como nos
comportamos ao frequentar ferramentas das redes sociais, como Instagram,
Facebook etc.

Nesse espaço surge o hipertexto, escritas associadas não-sequenciais,


conexões possíveis de se seguir, oportunidades de leituras em
diferentes direções. Assim, o texto hipertextual tem como característica
principal ser um documento digitalizado, apresentando vários
“planos”, que contêm informações relacionadas entre si por meio de
“links” associativos, a fim de compor voas estruturas narrativas ou
teias poéticas, submetidas à intencionalidade do leitor ou à proposta
estética do autor (SILVA, 2011, p. 4).

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, assistir ao vídeo ilustrativo Hipertexto –


Brasil Escola (https://www.youtube.com/watch?v=7bF6SwRqcFg) que apresenta definições
básicas do hipertexto e da hipertextualidade, enfocando-os de modo prático, ou seja,
voltado para produção textual no gênero discursivo “redação para concursos vestibulares”.

197
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

Essa nova modalidade do literário, embora participe da literatura


impressa, denominar-se-á “hipertexto”, constituindo mais um sistema semiótico
na medida em que relaciona, em determinado contexto, uma grande diversidade
de signos, imagens, sons etc. Para diferenciá-lo dos gêneros textuais linguísticos,
cunhou-se o neologismo “ciberliteratura” – literatura gerada por computador
– em substituição a cibercultura, de modo a aproximar a reflexão teórica desse
fenômeno especificamente literário.

Com a aparição do gênero hipertexto formou-se uma grande possibilidade


de articulação não hierarquizada, não apenas das tradicionais imagens verbais,
mas da linguagem verbal junto à visual e à sonora, cujo ineditismo só o ambiente
hipermídia poderia potencializar. Assim, mais do que uma nova ferramenta de
informação, o hipertexto caracteriza-se como um novo sistema semiótico que
redefine a uma nova literatura, a ciberliteratura, com a qual a teoria literária terá
de se debruçar.

Surge o princípio da interatividade – participação do leitor na


elaboração do texto, escolha de caminhos, estruturação narrativa.
A reprodução para o meio eletrônico é feita por escanerização ou
digitação dos textos, com as palavras-elo destacadas ou ainda pela
introdução de ícones representativos da temática da obra ou do bloco
[...]. Os dados são conectados por elos ou nós ou links que direcionam
para informações textuais, sonoras, iconográficas etc. Por estarem
pautados na relação, ele nunca apresentará um modelo padrão pré-
definido. A estrutura da obra acaba por se constitui enquanto sistema
semiótico (SILVA, 2011, p. 4).

E
IMPORTANT

Por ser mais do que uma forma de literatura ligada aos computadores, a
ciberliteratura traz dificuldades conceituais similares ao da própria definição da literatura.
Todavia, embora o conceito não seja unânime, algumas características gerais da
ciberliteratura podem ser descritas:

• Todos os textos literários disponíveis nas redes, cobrindo tanto a prosa quanto a poesia
que aparecem em sites e blogs de escritores profissionais, em antologias digitais e em
revistas literárias on-line.
• Textos literários não profissionais disponíveis na internet, cuja inclusão na análise literária
expande as fronteiras da literatura tradicional. Aqui a rede funciona, antes de tudo, como
um espaço independente de publicação, abraçando os sites de escritores amadores,
portais de grupos de jovens autores ainda não reconhecidos. Também se incluem aqui
as periferias da literatura, como a ficção fanzine, textos baseados em games e narrativas
coletivas on-line.
• Literatura hipertextual e cibertextos que incluem textos literários de estrutura mais
complexa, explorando várias soluções possíveis de hipertextos e intricados cibertextos
multimídia que fazem a literatura misturar-se com as artes visuais, vídeo e música (VIIRES,
2006 apud SANTAELLA, 2012, p. 231).

198
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

3 PERSPECTIVAS DIDÁTICAS: ABORDAGENS SINCRÔNICA E


DIACRÔNICA DA LITERATURA
No mundo contemporâneo, em que a solidez das instituições está cada
vez mais imprevisível, passamos a nos agrupar socialmente, segundo Zigmuth
Bauman, em relações líquidas, cuja única certeza é a própria diluição. Nesse
contexto, como dar ao professor o lugar estável de mediador cultural, isto é, do
profissional que se põe como ponto de chegada de uma tradição cultural, e, por
conseguinte, como ponto de referência para os educandos, de quem se formará a
sociedade futura?

A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua


a não-satisfação de seus membros [...]. Do contrário, a busca acaba ou o
ardor com que é feita (e também sua intensidade) cem abaixo do nível
necessário para manter a circulação de mercadorias entre as linhas de
montagem, as lojas e as latas de lixo. Sem a repetida frustração dos
desejos, a demanda de consumo logo se esgotaria e a economia voltada
para o consumidor ficara sem combustível (BAUMAN, 2008, p. 64).

Nessa sociedade líquida, cuja base é o consumo, fica evidente o


desinteresse, em sala de aula, dos educandos diante de obras e das abordagens
literárias que, ou não funcionam mais, ou demonstram pouca aplicabilidade
prática. Decorre daí o fato pedagógico atual mais premente, a saber, que
as disciplinas ministradas em sala de aula não podem perder o poder de
comunicabilidade, na medida em que passem a considerar o leitor/educando
não como um leitor clássico, tradicional.

Em não se procedendo assim, o resultado previsível é o que já ocorre


costumeiramente, isto é, diante de uma geração “informatizada”, há um choque
evidente com os saberes escolares, nos quais figuras não versadas em saberes
tecnológicos – como o antigo professor que leciona nos moldes tradicionais – mal
se movimentam no ambiente virtual em que jovens alunos chegam com excessiva
familiaridade.

O aprendizado não é mais um processo que está inteiramente sob


controle do indivíduo, uma atividade interna, individualista: está
também fora de nós, em outras pessoas, em uma organização ou em
um banco de dados, e essas conexões externas, que potencializam o
que podemos aprender, são mais importantes que nosso estado atual
de conhecimento (MATTAR, 2013, p. 30).

199
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

FIGURA 8 – TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM 2015

FONTE: <http://s2.glbimg.com/Dh55RgJ3MSI4mVy001VCFb0iRR0=/
s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2014/06/09/jose_antonio_costa.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Um dos exemplos de boa apropriação do tecnológico se dá, por exemplo,


com as formas digitais da literatura contemporânea, cuja esferas de discussão se
valem de outros tipos de suportes do fenômeno literário, que não o livro, mas
vídeos, cinema, quadrinhos, redes hipertextuais e literatura no universo on-line
etc., que acionadas em hipertexto, em nada diminuem a discussão dos textos
socialmente relevantes, posto que as narrativas são um fenômeno atemporal, que
surgem com o próprio ser humano, independente dos suportes que as sustentam.

Houve, portanto, ao longo da história readaptação da estrutura literária


secular em novas linguagens tecnológicas. No caso da linguagem do cinema,
por exemplo, houve migração das narrativas tradicionais dos romances e contos
literários para os roteiros de curta e longa metragens, assim como podemos
reconhecer, nas novelas literárias escritas em folhetins e livros, um movimento
compatível com o gênero, que migrou, com eficiência e comunicabilidade a ele
inerentes, para novelas e minisséries de televisão.

A narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares,


em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história
da humanidade; não há, nunca houve em lugar nenhum povo algum
sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm as suas
narrativas, muitas vezes essas narrativas são apreciadas em comum por
homens de culturas diferentes, até mesmo opostas: a narrativa zomba
da boa e da má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural,
a narrativa está sempre presente, como a vida (BARTHES, 2002, p.
103).

200
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Reiteramos a anotação de Barthes (2002), “a narrativa zomba da boa e


da má literatura”, no sentido de que ela pode indicar que, migrando da relação
homem/livro para homem/máquina, a interação pode estar a serviço do “prazer
do texto” e assim não condenar a atração que jovens e adolescentes sentem por
jogos e games, cujas interfaces seriam proveitosas, se bem utilizadas, para o
ensino de literatura.

Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque
foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com
as queixas do escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me
assegura – a mim, escritor – o prazer do meu leitor? De modo algum.
Esse leitor é mister que eu o procure (que eu o ‘drague’) sem saber onde
ele está. (BARTHES, 1987, p. 9 – grifo original).

E
IMPORTANT

Alguns autores sugerem modos de dinamizar as aulas de literatura utilizando


ferramentas digitais, como:

• Internet: a criação de uma página da turma em redes sociais ou mesmo um blog ou e-mail
coletivo para troca de materiais já proporciona uma interação diferente e a possibilidade
de troca e divulgação de arquivos digitais relacionados às aulas de Literatura. O professor
pode pedir ao representante da turma que crie a página da turma no Facebook, por
exemplo, ou uma conta de e-mail para compartilhamento de vídeos, sites, imagens etc.
No decorrer das aulas, fotos ou conteúdos podem ser postados em tempo real pelos
alunos, fazendo o uso útil dos celulares e tablets com acesso à internet e utilizando as
redes sociais como ferramenta para a aprendizagem.
• Lista eletrônica/Fóruns literários/Grupos: são algumas sugestões de interação via web
da turma, além de possibilitar a troca de arquivos já mencionada. O professor pode
sugerir um clube de leitura on-line, por exemplo, em que os alunos dividirão com outros
leitores impressões sobre as leituras realizadas, sugestões de livros ou sites, filmes etc. Os
fóruns também são uma fonte interessante de pesquisa, onde o professor pode dividir a
turma em grupos com determinado tema para pesquisa e discussão.
• Blogs literários: meio eficiente de divulgação dos trabalhos dos alunos, de vídeos
relacionados aos temas, além de permitir a participação ativa dos alunos, que podem
fazer comentários e sugerir publicações. Ao publicar textos e imagens produzidos pelos
alunos, o professor dá visibilidade ao que é produzido, incentivando e motivando uma
maior produção por parte deles. O próprio professor ou um aluno pode ficar responsável
pela administração do blog, mantendo-o atualizado e aberto à visitação. É uma boa
estratégia também para divulgar outros trabalhos da escola.
• Realizar e Publicar Vídeos: ao produzir vídeos sobre alguma obra literária, desde
dramatizações a comentários ou debates, os alunos se sentem motivados e mais ativos
nas aulas de Literatura, levando para a web e para outras mídias o conteúdo da aula. O
próprio blog da turma, a página no Facebook ou um canal no Youtube são meios de
divulgação desses vídeos, que podem ser: uma dramatização de determinado livro; uma
dramatização adaptada ou parodiada; gravação de debates e comentários etc.
• E-Portfólio: sites de armazenamento de arquivos e documentos que podem ser
consultados e trocados pelos alunos. É uma boa sugestão para e-books, resenhas,
pequenos vídeos ou mesmo músicas relacionados às obras literárias. Por esse canal o

201
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

professor pode compartilhar e-books para leitura no tablet ou celular (muitos clássicos
da Literatura Brasileira já são considerados de Domínio Público) além de uma música que
será trabalhada em sala de aula etc.
• Ferramentas de construção colaborativa/Aulas-pesquisas: apesar de constarem
em tópicos separados, são dois recursos que podem se unir. Ao incentivar o aluno a
pesquisar, o professor também pode fomentar a construção do conceito pelos alunos,
ao registrar os resultados de suas pesquisas em diferentes fontes (inclusive nos livros).
Uma estratégia interessante nesse sentido é a utilização dos fóruns de discussão para
uma posterior produção de um texto coletivo sobre o tema, que poderá ser publicado na
página do Facebook ou no blog da turma.
• Vídeo: sem se ater à concepção de que vídeo na sala de aula significa um momento
de lazer, o professor pode incentivar que os alunos assistam a eles no laboratório de
informática em sites da internet como parte do conteúdo, não se detendo somente a filmes
e documentários, mas também a vídeos curtos no YouTube, por exemplo. Existem muitos
vídeos com dramatizações, debates, paródias ou mesmo de aulas sobre conteúdos de
Literatura, oferecendo alternativa para a questão do tempo e proporcionando atratividade
para o aluno, que não ficará duas horas diante de um documentário que muitas vezes
desmotiva pela linguagem ou pelo ritmo.
• Outros: outro ponto que pode ser destacado é a pesquisa orientada via celulares com
acesso à internet na própria sala de aula. Além de enriquecer o conteúdo trabalhado, é
uma oportunidade de mostrar ao aluno que os recursos tecnológicos também servem
aos propósitos educacionais.

FONTE: BARBOSA, A. O ensino de literatura e o uso de recursos tecnológicos no ensino


médio. Revista Educação Pública, 2017. Disponível em: https://educacaopublica.cederj.edu.
br. Acesso em: 10 ago. 2019.

Pretendendo chegar a uma perspectiva menos teórica e mais pedagógica


de reflexão, resta saber que lugar se deve dar às correntes de estudos literários e
verificar sua aplicabilidade em sala de aula. Permanece, por exemplo, o embate
entre “alta cultura” e “cultura de massa”, cuja representação emblemática
podemos aproximar da “indústria cultural”, por um lado, ao redor dos “estudos
culturais”, por outro lado.

Nesse sentido, a teorização literária, que começou solidamente na poética


de Aristóteles, não pode evitar a discussão em torno das novas plataformas
tecnológicas, incluindo, no percurso, a noção capital de reprodutibilidade técnica
benjaminiana, que em nada desmereceu o pensamento da escola de Frankfurt via
Adorno – que sopesou a base da verdadeira arte (arte clássica) versus a indústria
cultural (arte de entretenimento).

Segundo Theodor Adorno, uma obra torna-se clássica quando seus


efeitos primários se amainam ou são ultrapassados, sobretudo
parodiados. Segundo esse raciocínio, o primeiro público se engana
sempre: ele aprecia, mas por falsas razões [...]. O afastamento no
tempo desembaraça a obra do seu quadro contemporâneo e dos efeitos
primários que impediam que ela fosse lida tal como é em si mesma
[...]. É o afastamento no tempo que é, em geral, considerado como
uma condição favorável ao reconhecimento dos verdadeiros valores
(COMPAGNON, 2012, p. 247).

202
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Assim, se estabelecermos um relativismo moderado, mais adequado ao


contexto de sala de aula, sugere-se equacionar a apresentação da boa literatura
sem desprezar as facilidades dos dispositivos tecnológicos, que se faz possível, na
senda de Adorno, ao adotarmos um recorte “sincrônico” de ensino da literatura,
isto é, quando se funda o estudo mais no valor estético das obras – valor sincrônico
– do que na série histórica da literatura.

A razão para que se leia os mesmos textos clássicos, está claro, é porque
os meios de leitura modificaram-se, desde os estudos culturais até o hipertexto,
conferindo maior liberdade ao leitor. O recorte sincrônico, nesse sentido, torna
acessível os grandes textos não para manter um cânone literário rígido, mas
porque ativa as obras em outras chaves de leitura, a saber: ler o igual em modos
diferentes, como agora, em meio digital, na era da ciberliteratura.

O surpreendente é que as obras-primas perduram, continuam a


ser pertinentes para nós, fora de seu contexto de origem. E a teoria,
mesmo denunciando a ilusão do valor, não alterou o cânone. Muito ao
contrário, ela o consolidou, propondo reler os mesmos textos, mas por
outras razões, razões novas, consideradas melhores (COMPAGNON,
2012, p. 250).

203
UNIDADE 3 | PANORAMA PÓS-MODERNO DA LITERATURA

LEITURA COMPLEMENTAR

O AUTOR COMO GESTO

Em 22 de fevereiro de 1969, Michel Foucault proferiu sua conferência O que


é um autor? perante os membros e convidados da Sociedade Francesa de Filosofia.
Dois anos antes, a publicação de As palavras e as coisas o havia tornado famoso
subitamente, e entre o público [...] não era fácil fazer a distinção entre a curiosidade
mundana e as expectativas pelo tema anunciado. Logo depois das primeiras
frases, Foucault formula, com uma citação de Beckett (“O que importa quem fala,
alguém disse, o que importa quem fala”), a indiferença a respeito do autor como
mote ou princípio fundamental da ética da escritura contemporânea. No caso da
literatura – sugere ele – não se trata tanto da expressão de um sujeito quanto da
abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não para de desaparecer: “a
marca do autor está unicamente na singularidade da sua ausência” [...].

Há, por conseguinte, alguém que, mesmo continuando anônimo e sem


rosto, proferiu o enunciado, alguém sem o qual a tese, que nega a importância
de quem fala, não teria podido ser formulada. O mesmo gesto que nega qualquer
relevância à identidade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade.

Nessa altura, Foucault pode esclarecer o sentido de sua operação. Ela se


fundamenta na distinção entre duas noções que frequentemente são confundidas:
o autor como indivíduo real, que ficará rigorosamente fora de campo, e a função-
autor, a única na qual Foucault concentrará toda a sua análise. O nome do autor
não é simplesmente um nome próprio como os outros, nem no plano da descrição
nem naquele da designação. Se, por exemplo, me dou conta de que Pierre Dupont
não tem olhos azuis, ou não nasceu em Paris conforme acreditava, ou não exerce
a profissão de médico – o que, por algum motivo, lhe atribuía –, o nome próprio
Pierre Dupont continuará para sempre referindo-se à mesma pessoa; mas se
descubro que Shakespeare não escreveu as tragédias que lhe são atribuídas e,
pelo contrário, escreveu o Organon de Bacon, certamente não se poderá dizer que
o nome de autor Shakespeare não tenha mudado sua função. O nome de autor
não se refere simplesmente ao estado civil; [...] ele se situa, antes, “nos limites
dos textos”, cujo estatuto e regime de circulação no interior de uma determinada
sociedade ele define. “Poder-se-ia afirmar, portanto, que, em uma cultura como a
nossa, há discursos dotados da função-autor, e outro que são desprovidos dela... A
função-autor caracteriza o modo de existência, de circulação e de funcionamento
de certos discursos no interior de uma sociedade” [...].

Foucault opõe ainda mais drasticamente o autor-indivíduo real à função-


autor. “O autor não é uma fonte infinita de significados que preenchem a obra,
o autor não precede as obras. É um determinado princípio funcional através
do qual, em nossa cultura, se limita, se exclui, se seleciona: em uma palavra, é
o princípio através do qual se criam obstáculos para a livre circulação, a livre
manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição da ficção”.

204
TÓPICO 3 | DISCUSSÕES CONTEMPORÂNEAS: LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Nessa perspectiva, a função-autor aparece como processo de subjetivação


mediante o qual um indivíduo é identificado e constituído como autor de um
certo corpus de textos. Falta dizer que, desse modo, toda investigação sobre o
sujeito como indivíduo parece ter que ceder o lugar ao regesto (coletânea de atas
e documentos, resumidos o transcritos em suas partes consideradas essenciais,
ou então um resumo de um determinado documento histórico), que define as
condições e a s formas sob as quais o sujeito pode aparecer na ordem do discurso.
Nessa ordem, segundo o diagnóstico que Foucault não para de repetir, “a marca
do escritor reside unicamente na singularidade da sua ausência; a ele cabe o papel
do morto no jogo da escritura”. O autor não está morto, mas pôr-se com autor
significa ocupar o lugar de um morto. Existe um sujeito-autor, e, no entanto, ele
se atesta unicamente por meio dos sinais da sua ausência [...].

O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada,
não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de
continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível
a leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso. O gesto do
autor é atestado na obra a que também dá vida, como uma presença incongruente
e estranha [...].

Se chamarmos de gesto o que continua inexpressão em cada ato de


expressão, poderíamos afirmar então que, exatamente como o infame, o autor
está presento no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma
medida em que nela instala um vazio central [...].

O lugar – ou melhor, o ter lugar – não está, pois, nem no texto nem no autor
(ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao
mesmo tempo, infinitamente fogem disso. O autor não é mais que a testemunha,
o fiador da própria falta na obra em que foi jogado; e o leitor não pode deixar de
soletrar o testemunho, não pode, por sua vez, deixar de transformar-se em fiador
do próprio inexausto ato de jogar de não se ser suficiente.

FONTE: AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 55-63.

205
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• As artes, em geral, sempre se nutriram de sua própria diversidade. Não é


incomum artistas visuais confessarem estar renovando o seu panteão artístico
a partir de ideias e intuições captadas de outras esferas artísticas. É o caso do
pintor moderno Piet Mondrian, um dos pais do neoplasticismo, que confessou
explicitamente, em sua derradeira fase, demarcar as figuras nas telas a partir
da rítmica dos músicos jazzistas norte-americanos.

• No caso do Brasil, o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto notadamente


estabelece esse diálogo intersemiótico apropriando-se de “dicas” dos pintores
Joan Miró e Piet Mondrian. Desse último, inclusive, importa a ideia de escrever
estrofes em quadras, assemelhando-as a figuras retangulares, tal como as
figuras que aparecem no próprio neoplasticismo.

• É Importante destacar que a intersemiose, enquanto relação de mútua


influência entre as artes, antes limitavam-se a artistas e “homens de gênio”,
mas que se expande, na contemporaneidade tecnológica, para o leitor digital, o
qual, manipulando sons, textos e imagens num ambiente virtual, pode passa a
compor caminhos inusitados de leitura em certa medida similar às composições
dos escritores e artistas.

• Nasce um novo gênero que expande a ideia semiótica de relação entre


linguagens. Esse gênero é o hipertexto, que fará do espaço midiático mais
do que um ciberespaço, mas um espaço voltado para a literatura em meios
eletrônicos, a ciberliteratura, capaz de dar a ver narrativas poéticas em novos
formatos, como poesia visual, hiperconto etc.

• A nova literatura digital, entretanto, não diminui o valor dos textos clássicos,
senão que os potencializa em novas chaves de leitura – é o que aponta o recorte
sincrônico de estudos literários, o qual, mesmo inserido numa série histórica
– recorte diacrônico – possibilita reconhecer, pelos modos atuais de leitura,
novos sentidos para os textos consagrados.

CHAMADA

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206
AUTOATIVIDADE

1 Não é de hoje que a literatura estabelece relação com outras linguagens:


palavra e som, palavra e imagem visual, palavra e tecnologias
contemporâneas, dentre outras. É o que se deu, por exemplo, com o poema
sinfônico Un coup de dés, de Stephane Mallarmé, ao final do século XIX;
ou com a poesia de João Cabral de Melo Neto e sua poética em acordo
com as lições pictóricas dos pintores Joan Miró e Piet Mondrian; ou, mais
recentemente, do salto da palavra em meio ao meio tecnológico virtual. A
partir dessa reflexão, é CORRETO afirmar:

a) ( ) Que arte e tecnologia não se relacionam, posto que são categorias


distintas.
b) ( ) Que arte e tecnologia relacionam-se na medida em que o meio digital
facilita o uso de imagens, textos, sons, tal como o faziam alguns artistas ao
criar laços entre linguagens distintas, como a da pintura e da poesia.
c) ( ) Que não há relação verdadeiramente intersemiótica entre as artes.
d) ( ) Que literatura e pintura não devem se relacionar, pois se tratam de
estéticas distintas.

2 A explosão tecnológica, ocorrida no final do século XX, criou um novo


ambiente de interação do leitor com as narrativas literárias. Conectado a
múltiplas interfaces tecnológicas, o leitor pode ser chamado de usuário-
leitor, na medida em que interage de modo construtivo em sua própria
leitura, leitura digital que, no ambiente midiático, chama-se de navegação.
Por isso, diz-se “navegar pela internet”. Esse ambiente chama-se hipermídia,
que se distingue do fenômeno literário hipertexto. Considerando essas
informações, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Hipermídia
II- Hipertexto

( ) Termo que designa um conjunto de meios de acesso digital e simultâneo a


textos, imagens e sons.
( ) Termo que designa o modo interativo não-linear em que o usuário
estabelece uma versão pessoal, mediante controle de elementos da mídia,
criando sua própria navegação na web.
( ) Termo que designa um gênero literário digital, que transformou o espaço
midiático em ciberliteratura, ou seja, em literatura gerada por computador.
( ) Gênero digital em que a escrita literária associa conexões mais livres do
que nos textos impressos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – I – II – II.
b) ( ) II – I – II – I.

207
c) ( ) I – II – II – I.
d) ( ) I – II – I – II.

3 Um dos maiores desafios da educação na atualidade, em se tratando do


estudo de literatura, é como possibilitar o melhor acesso aos textos clássicos
– recorte sincrônico –, que implica em repensar o papel do professor, não
apenas como leitor especial e crítico das tradições literárias, mas também
como mediador das melhores práticas escolares que facilitem o estudo,
como parece ser a leitura em meio digital. A partir dessa reflexão, classifique
V para as sentenças verdadeiras e F para as sentenças falsas:

( ) Os docentes têm que dar exemplo aos educandos, apropriando-se com


qualidade, dos espaços digitais de leitura.
( ) As escolas devem incluir em seus currículos também a tecnologia, de
modo a ampliar o universo de leitura dos alunos.
( ) Estudar os clássicos em meio digital é uma abordagem adequada à
realidade contemporânea, na medida que estabelece laços entre o recorte
sincrônico e tecnologia.
( ) Se sincrônico ou diacrônico, não importa o recorte escolhido, a escola deve
manter-se a mesma e priorizar o estudo tradicional dos grandes textos.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V – F.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) V – F – V – V.

4 (ENADE, 2005) É célebre a escultura de Laocoonte, em que estão


representados pai e filhos envolvidos por serpentes. Nela está tematizada a
dor de um pai que vê os filhos serem devorados. O crítico alemão Lessing
sentiu-se intrigado pela seguinte questão: como entender que a personagem
principal do grupo representado mal abra a boca, apesar de sofrer de modo
tão intenso? Para explicar a composição moderada da dor, assinala: é que as
leis da escultura impõem a figuração da dor de modo totalmente diverso do
da poesia. A escultura e a pintura não podem representar senão um único
momento de uma ação; é preciso então escolher o momento mais fecundo;
ora, só é fecundo aquilo que deixa campo livre à imaginação; não é preciso,
pois, escolher o momento do paroxismo [o momento mais intenso], mas o
que o precede ou segue.

Quanto à arte literária, é CORRETA a seguinte inferência:

a) ( ) A literatura distingue-se da escultura porque, nela, em todos os gêneros


literários (lírico, épico e dramático), predomina a expressão de tempos
simultâneos.
b) ( ) Uma obra de arte bem realizada (um romance ou um conto, por exemplo)
renuncia ao clímax da situação narrada, em busca do ideal de preservar o
imaginário do leitor.
208
c) ( ) O processo de criação artística, em qualquer gênero literário que
se considere, representa as paixões segundo modelos historicamente
prestigiados.
d) ( ) A brevidade do poema lírico o aproxima da pintura e da escultura, pois
o eu poético só tem tempo para o desenrolar de uma única ação.
e) ( ) Os discursos literários, graças à natureza da linguagem verbal, podem
retomar uma mesma ação em distintos momentos, diferentemente do que
ocorre na escultura ou na pintura.

5 (ENADE, 2008) Antes de compreender o que significam as inovações


tecnológicas, temos de refletir sobre o que são velhas e novas tecnologias. O
atributo do velho ou do novo não está no produto, no artefato em si mesmo,
ou na cronologia das invenções, mas depende da significação do humano,
do uso que fazemos dele.

FONTE: CORREA, J. Novas tecnologias da informação e da comunicação; novas estratégias


de ensino/aprendizagem. In: COSCARELLI, C. V. (Org.). Novas tecnologias, novos textos,
novas formas de pensar. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 44 (com adaptações).

Relacionando as ideias do fragmento de texto anterior à formação e à ação do


professor em sala de aula, conclui-se que:

a) ( ) A chegada das inovações tecnológicas à escola torna obsoletos os saberes


acumulados pelo professor.
b) ( ) As inovações tecnológicas no campo do ensino-aprendizagem não
garantem inovações pedagógicas.
c) ( ) A inclusão digital é assegurada quando as escolas são equipadas com
computadores e acesso à Internet.
d) ( ) Os novos modos de ler e escrever no computador devem ser transpostos
para a modalidade escrita da língua no espaço escolar.
e) ( ) O acervo impresso das bibliotecas escolares deve ser substituído por
acervos digitais, de maior circulação e funcionalidade.

209
210
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