Com isso, houve uma reorientação da atuação institucional da FEB, que por
estratégia passou a enfatizar no espiritismo seu caráter especificamente
religioso, conduta que acabou modificando definitivamente a presença (e o
modo de presença) do espiritismo no Brasil. (ARRIBAS, 2009, p. 31).
Foi através deste movimento da FEB que o Espiritismo conseguiu fincar suar
raízes no país de forma definitiva. Ao assumir o caráter da religiosidade como sua
principal característica, o movimento se delimitou como uma religião de fato, e
passou a jogar através das regras do campo religioso. Desta forma, ainda em 1889
a FEB organizou o Centro Espírita do Brasil (CEB), no intuito de servir como núcleo
e engatilhar o processo de normatização da doutrina, iniciando assim os
procedimentos de estruturação do espiritismo enquanto religião, e antes de tudo,
uma religião originalmente brasileira. Neste sentido, coube ao médico Adolfo
Bezerra de Menezes capitanear tais procedimentos da FEB e do CEB durante a
organização do espiritismo no Brasil, de forma que em 1900 já existiam federações
espíritas em quase todos os Estados brasileiros (ibidem).
É dentro deste cenário, com o espiritismo já bem delineado e firmado nas
terras brasileiras, que em meados da década de 20 do século passado despontaram
os primeiros acontecimentos que dariam início a história do Espiritismo kardecista no
distrito barbacenense de Ponte do Cosme. Neste sentido, uma breve passagem pelo
contexto histórico do nascimento da cidade de Barbacena-MG se faz fundamental
para entendermos o lugar do catolicismo no município e para que a partir deste
ponto, possamos compreender um pouco mais sobre o cenário religioso local.
3
Segundo o último censo o Espiritismo cresceu 65% de 200 até 2010.
No entanto, a população espírita do distrito de Ponte do Cosme foge
completamente a esta média, chegando a números próximos a 50% dos moradores
do distrito.
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Existe um boato que houve a tentativa de se introduzir uma igreja evangélica no distrito, mas sem
sucesso.
2017).
O caso da família Bertolla é muito semelhante ao caso de Dr. Bezerra de
Menezes, figura central da legitimação do Espiritismo no Brasil. Segundo Camurça
(2014), Bezerra chega ao espiritismo por conta do “processo de loucura sofrido por
um de seus filhos e o diagnóstico e cura oferecidas pelo Espiritismo, como sendo
uma obsessão (...), levou o médico Bezerra a definir-se e aprofundar-se no
conhecimento da cosmologia espírita” (CAMURÇA, 2014, p. 49).
O caso dos jovens irmãos Bertolla levou a família, assim como no caso do
filho de Menezes, a buscar o que definem como “as luzes da doutrina espírita”. A
família começou então a frequentar o centro “Coração de Jesus” em Barbacena,
buscando ajuda da comunidade espírita. Por volta de 1938, formaram um pequeno
grupo no distrito e começaram a realizar reuniões espíritas na residência de Pati
Pereira Mazzoni e Ângelo Mazzoni. A residência do casal era humilde e pequena, e
o fluxo de pessoas interessadas pela doutrina aumentava, de forma que seus
proprietários decidiram por construir uma grande sala exclusivamente para as
realizações das reuniões. Neste período o grupo era constituído por moradores de
Ponte do Cosme e de Dr. Sá Fortes, distrito também composto por imigrantes
italianos da cidade vizinha de Antônio Carlos, até que mais tarde estes últimos
viriam a fundar seu próprio centro espírita (PRESOTI; SCHIAVO, 2018).
O início da prática do Espiritismo em Ponte do Cosme não foi diferente da
forma com a doutrina se constituía em outros espaços. A doutrina fecundou no
distrito através de um grupo privado que se reunia na casa da família Bertolla para a
realização de reuniões para estudos doutrinários, além das seções espíritas. Até
1944, os trabalhos foram realizados na residência de Ângelo e Pati, quando, devido
à crescente demanda, foi construída a sede antiga, uma pequena construção que
resiste de pé ainda hoje.
Segundo o registro histórico do centro, em agosto do mesmo ano houve o 1º
Congresso Espírita Mineiro, contando com a representação do centro por parte de
José Abrantes Júnior, onde foram criadas as Alianças Municipais Espiritas. Em
setembro de 1944 o centro “Amor a Verdade” é registrado em cartório na cidade de
Belo Horizonte. Ainda no mesmo mês, integrantes do centro espírita redigiriam o
termo de compromisso e filiação a União Espírita de Minas Gerais (UEM), órgão
federativo filiado a FEB e fundando assim, para todos os fins, o “Centro Espírita
Amor a Verdade” (PRESOTI; SCHIAVO, 2018).
Desde os seus primeiros anos, o centro espírita de Ponte do Cosme pôde se
ancorar na estrutura institucionalizada pela FEB por intermédio da UEM. Como
analisou Giumbelli (2003), “(...) a FEB investiu sobre a legitimação e a criação de
instrumentos que permitissem a concretização de suas pretensões, diante de outros
grupos espíritas, quanto à orientação doutrinária e à representação institucional” (p.
269).
A sede foi erguida sobre o terreno doado por Joaquim Pereira, sendo
inaugurada no dia 25 de dezembro de 1944 para a comemoração do natal de Jesus.
As reuniões mediúnicas, no entanto, continuaram sendo realizadas na residência de
Pati até 1963, quando foram transferidas para a sede. Após desencarnar, Pati
Mazzoni torna-se mentora espiritual da Escola de Evangelização, a qual recebeu
seu nome. Hoje o centro é um grande edifício, com uma quantidade de salas
capazes de comportar separadamente todas as atividades desenvolvidas, tal como a
reunião pública que acontece nas sextas feiras 5 – e, mesmo assim, sabe-se que
existe a demanda de aumentar as instalações devido à grande procura.
Apesar da introdução dos trabalhos espíritas no distrito não fugir à regra da
entrada através de um grupo privado, a difusão do Espiritismo no local guarda suas
particularidades como veremos a seguir.
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Reunião com maior fluxo de pessoas, contando com participantes até mesmo de fora da cidade de
Barbacena.
(CAMURÇA, 2014).
O caso espírita de Ponte do Cosme se assemelha e difere do modelo de
difusão constatado por Camurça (2014). No distrito o Espiritismo manteve a máxima
das reuniões privadas na residência de seus organizadores, a residência da família
Bertolla neste caso. No entanto, a doutrina por lá se desenvolveu em contexto rural,
e se propagou por meio dos colonos imigrantes, de forma que apresenta um grande
contraste com a tendência de disseminação predominantemente através da parcela
letrada e intelectual dos núcleos urbanos.
O fato de o Espiritismo em Ponte do Cosme ter se difundido via colonos
imigrantes rompe com a ideia do caráter urbano da doutrina, e mesmo que seja
possível identificar que, hoje, os adeptos da doutrina apresentam uma condição de
instrução mais elevada se comparados com a população católica local, ainda sim
este não é o caso de difusão por meio das camadas intelectuais.
Uma hipótese que apresentamos é que, através destes colonos europeus, a
doutrina ganhou certo respaldo social. Isto porque, desde o início, as atividades
foram identificadas como Espiritismo kardecista, o que garantiu certa “(...) distinção
entre os adeptos de doutrinas respeitáveis pelos seus fins de assistência e
educação e praticantes do falso espiritismo, cartomancia e demais formas de
abusão e mercancia” (GIUMBELLI, 2003, p. 255).
Considerações Finais
O Espiritismo se apresenta como uma reinterpretação moderna da narrativa
cristã estruturada a partir dos fenômenos paranormais, conferindo uma culpabilidade
e responsabilidade ao indivíduo em seu processo de salvação em uma relação de
iniciativa e aperfeiçoamento. Configura-se, portanto, como uma espécie de
neocristianismo voltado para aspectos mais racionais e individualistas.
Estas características despertaram o interesse de parte da elite imperial
brasileira que começou a disseminar a doutrina principalmente no Rio de Janeiro, de
forma que logo se ramificaria para todo o país. Pelo seu perfil moderno e racional, o
Espiritismo se difundiu através de conferências voltadas principalmente para as
camadas letradas dos centros urbanos do Brasil criando grupos privados,
constituídos em sua maioria por intelectuais e figuras relevantes nos campos sociais
e econômicos.
Como era de esperar, a Igreja Católica assumiu uma postura de perseguição
e erradicação frente à nova doutrina. No entanto, estes ataques serviram para que o
Espiritismo se estruturasse e passasse a agir a partir do campo religioso, conferindo
à doutrina o caráter institucional de religião e contribuindo ainda mais para sua
disseminação pelo país.
A doutrina encontrava adeptos mesmo dentro de contextos locais onde o véu
do catolicismo cobria hegemonicamente todo o campo religioso. Este é o caso de
Barbacena e, particularmente, seu distrito, Ponte do Cosme, que além de trazer um
campo religioso pouco comum, dividido entre católicos e espíritas, por lá a doutrina
se manifestou em um contexto rural através da ação disseminadora de colonos
imigrantes.
Deste modo, se em Ponte do Cosme não houve a difusão da doutrina
marcada pelo caráter urbano, através da camada letrada e intelectual, comum no
restante do país, de outra forma houve a blindagem social à difusão da doutrina em
decorrência da descendência europeia dos pioneiros do Espiritismo no distrito, e
também em razão do alinhamento com todo o aparato legal e institucional da FEB
mediado pela UEM.
O “Centro Espírita Amor à Verdade” está consolidado no distrito e atrai
pessoas até mesmo de outras cidades, colocando o Espiritismo em posição de
destaque no campo religioso local. O edifício passa por constantes reformas e
ampliações para atender a demanda de adeptos que cresce de forma lenta, porém
constante, assim como em todo o território nacional.
Referências Bibliográficas
ROUSSO, H. A memória não é mais o que era. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes;
AMADO, Janaína (Orgs). Usos e Abusos da História Oral. 5 ed. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2002.
Os Autores