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Departamento de Direito

Licenciatura em Direito
Ano letivo 2020/21
Terças: 834 0805 1636 - 269549

Direito Comparado

Dinis Abrantes Figueiredo

Prof. Dr. Alex Sander Xavier Pires

Lisboa
Índice
1. Introdução ao Direito Comparado............................................................................................5
1.1 A formação do Direito Comparado como ciência e uma perspetiva metodológica.............5
1.1.1 Existe um ramo juscientífico conhecido por Direito Comparado? Resposta dada por
alguns comparativistas.........................................................................................................6
1.2 O objeto do Direito Comparado.........................................................................................7
1.2.1 Proposições do Direito Comparado.............................................................................7
2. A família jurídica romano-germânica.......................................................................................8
2.1 A confederação grega.........................................................................................................8
2.2 A génese grega – o racionalismo helénico..........................................................................8
2.3 A invasão romana à Grécia.................................................................................................9
2.3.1 A manutenção de pax romanorum...............................................................................9
2.3.2 A passagem do Direito consuetudinário ao Direito escrito em Roma..........................9
2.4 O Concílio de Niceia e a criação do Direito Canónico.....................................................10
2.5 O Corpus Iuris Civilis e o começo do fim do Império Romano........................................10
2.6 A “queda” do Império Romano e a “subida” do Direito Canónico...................................10
2.6.1 A autoridade do Direito Canónico e propostas para a sua reconstrução.....................11
2.6.2 O feudalismo e a questão acerca dos ordenamentos jurídicos aplicáveis...................12
2.7 A descoberta do livro I do Digesto de Justiniano.............................................................12
2.8 O conflito entre Felipe IV dos Francos e o Papa..............................................................13
2.9 O contributo germânico....................................................................................................14
2.10 Jusracionalismo, codificação e aculturação jurídica.......................................................15
2.10.1 As razões para a eclosão da Revolução Francesa.....................................................15
2.10.2 As consequências da queda do Ancien Régime.......................................................15
2.10.3 A insurgência do terceiro estado e a proposta de Joseph Sieyès..............................15
2.10.4 Os elementos definidos pela experiência jurídico-constitucional francesa..............16
2.10.5 A codificação...........................................................................................................17
2.10.6 A aculturação jurídica..............................................................................................17
2.11 Países que pertencem à família jurídica romano-germânico...........................................18
2.12 Conceitos fundamentais..................................................................................................19
2.12.1 Diferença entre Direito constituído e Equidade.......................................................19
2.12.2 Diferença entre Direito Público e Direito Privado...................................................19
2.13 Fontes do Direito............................................................................................................20
2.13.1 Noções.....................................................................................................................20
2.13.2 Tratados e fontes do Direito Internacional...............................................................20
2.13.3 Atos de Direito Supranacional.................................................................................20
2.13.4 Lei...........................................................................................................................21

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2.13.5 Costume...................................................................................................................22
2.13.6 Jurisprudência..........................................................................................................23
2.13.7 Doutrina...................................................................................................................24
2.13.8 Princípios jurídicos..................................................................................................24
2.14 A descoberta do Direito aplicável...................................................................................25
2.14.1 A importância da decisão judicial............................................................................25
2.14.2 Interpretação da lei..................................................................................................26
2.14.3 Integração da lei......................................................................................................26
2.15 A organização judiciária e sistemas de recurso...............................................................27
2.15.1 Organização Judiciária Portuguesa..........................................................................27
2.15.2 Organização Judiciária Francesa..............................................................................27
2.15.3 Organização Judiciária Alemã.................................................................................28
3. A família jurídica de Common Law.......................................................................................29
3.1 A formação do Direito Inglês...........................................................................................29
3.1.1 Características singulares do Direito Inglês...............................................................29
3.1.2 Período anglo-saxónico (409 DC até 1066 DC).........................................................29
3.1.3 Período de formação do Common Law (1066 DC até 1485 DC)...............................30
3.1.4 Período de reconstrução do Common Law (1485 DC até 1873 DC).........................32
3.1.5 Período moderno (1873 DC até a atualidade)............................................................34
3.2 Fontes do Direito..............................................................................................................34
3.2.1 Fontes de Direito principais.......................................................................................35
3.2.2 Fontes de Direito subsidiárias....................................................................................36
3.3 Organização Judiciária Inglesa.........................................................................................37
3.3.1 Tribunais superiores..................................................................................................37
3.3.2 Tribunais inferiores...................................................................................................38
4 O Direito Estadunidense..........................................................................................................38
4.1 A descoberta do Direito Estadunidense............................................................................38
4.1.1 Período colonial.........................................................................................................38
4.1.2 Independência política e formação do Direito Interno (1776 até os tempos atuais)...39
4.2 Estrutura política do Estado..............................................................................................40
4.3 Organização Judicial Federal básica.................................................................................40
4.3.1 Competência dos tribunais federais...........................................................................40
4.4 Fontes do Direito..............................................................................................................41
4.4.1 Fontes primárias........................................................................................................41
4.4.2 Fontes secundárias.....................................................................................................43
5 Família jurídica muçulmana....................................................................................................43
5.1 Âmbito pessoal do Direito Muçulmano............................................................................43

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5.2 Países onde vigora............................................................................................................43
5.3 Génese e evolução............................................................................................................44
5.3.1 Origem.......................................................................................................................44
5.3.2 O cisma entre Sunitas e Xiitas...................................................................................44
5.3.3 Formação do Direito Muçulmano..............................................................................45
5.4 Características gerais........................................................................................................46
5.4.1 Base religiosa............................................................................................................46
5.4.2 Pluralidade de fontes.................................................................................................46
5.4.3 Tendencial uniformidade do Direito..........................................................................46
5.5 Meios de resolução de litígios..........................................................................................46
5.5.1 Tribunais religiosos/da Xaria.....................................................................................46
5.5.2 Tribunais estaduais/laicos..........................................................................................46
5.6 Fontes do Direito..............................................................................................................46
5.6.1 Xaria..........................................................................................................................46
5.6.2 Outras fontes principais.............................................................................................47

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1. Introdução ao Direito Comparado
1.1 A formação do Direito Comparado como ciência e uma perspetiva
metodológica
O nosso ponto de situação é a rutura científica imposta pela revolução iluminista. Isto quer dizer
que existe um período anterior ao Iluminismo e outro que lhe é posterior.

O Iluminismo tem como característica o reforço da razão, portanto, a tensão entre o “mitos” e o
“logos” passa a ser uma questão menor porque só se discute como o conhecimento produzido
pela razão individual humana (logos) pode justificar o conhecimento humano e o progresso da
humanidade. Durante essa época, o Direito Comparado tem o objetivo de autodefinir-se como
Ciência, dado que não se sabia se deveria ser considerado como ciência autónoma ou como
método de investigação.

É em 1832, em França, que o College de France, observando a importância dos Direitos


criados e renovados pelo Iluminismo, determinou como fundamental para a justificação da
Ciência do Direito, o estudo da legislação comparada entre os Estados, principalmente os que
pertenciam à mesma família de Direito Francês (Alemão, Português, Espanhol, Italiano, etc.).
Esse estudo teve muito sucesso e várias universidades de outros países começaram a seguir o
exemplo do College de France e passaram a respeitar o estudo comparado das legislações.

Já em 1900, foi realizado o Congresso de Paris para discutir a atualidade da legislação


comparada e a necessidade de se passar das legislações comparadas para um verdadeiro Direito
Comparado. O momento foi oportuno pela edição e vigência do BGB (Código Civil Alemão)
que apareceu cem anos depois do Código Civil dos Franceses. Porquê essa demora? Os
alemães, tal como os franceses, procuraram justificar e estruturar o seu sistema jurídico a partir
da queda do Império Romano, respondendo à questão: “Como deve ser aplicado o Direito na
Alemanha?”. Esse processo foi algo demorado, pois os juristas alemães optaram ainda por
observar como é que outros países resolveram esse problema de identidade dos seus sistemas
jurídicos, aplicando praticamente técnicas da até então legislação comparada.

1924 marca o período pós-Grande Guerra, de grande instabilidade e início do movimento que
iniciará mais à frente a II Guerra Mundial, em que a Sociologia é reescrita por Max Weber, em
que a Sociologia do Direito está mais forte do que nunca com Eugen Ehrlich, em que começa a
ser questionada a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e em que o Direito Comparado
continua com a sua difícil missão de se autodefinir. É também em 1924 que é criada a
Academia Internacional de Direito Comparado, que se dedicou a facilitar o diálogo entre os
comparativistas (: jurista que se dedica ao estudo do Direito Comparado) e que propôs um
primeiro objetivo para o Direito Comparado: No artigo 2º do seu estatuto refere que o Direito
Comparado se preocupa com a aproximação sistemática e a conciliação das leis. Esse artigo 2º
foi posteriormente revisto e hoje define um pouco melhor o objetivo do Direito Comparado: o
estudo comparado dos sistemas jurídicos.

Quando as Nações Unidas foram criadas em 1945 pelo Tratado de São Francisco já se percebia
que a aproximação dos povos deveria ter prioridade diante da aproximação dos Estados, isto é,
mais valia a proteção dos indivíduos, seja qual fosse o sítio em que se encontravam, do que a
proteção dos Estados. Isto é bastante importante para o Direito Constitucional, pois marca uma
mudança da ideologia constitucional em que as Constituições formais foram sucedidas por
Constituições materiais dedicadas à proteção e garantia dos Direitos Fundamentais (: Direitos
Humanos reconhecidos pelas Constituições). É assim que em 1948, as Nações Unidas ratificam

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a Declaração Universal dos Direitos Humanos e em 1949 a UNESCO, o organismo das Nações
Unidas que se dedica à educação, reconhece que os Direitos Humanos só são eficazes quando
são ensinados aos indivíduos que devem assim conhecê-los e que os Direitos Humanos terão
melhor proteção se os Estados dialogarem uns com os outros. É, deste modo, que a UNESCO
cria o Comité Internacional de Direito Comparado, favorecendo o diálogo para o
conhecimento dos sistemas jurídicos dos Estados com a adoção das técnicas e do método de
Direito Comparado.

Quando a UNESCO então propõe essa medida prática no âmbito internacional, além de
reconhecer a importância do Direito Comparado, atribuiu aos comparatistas o dever de definir
cientificamente o que é o Direito Comparado e de responder à pergunta: “Existe um ramo
juscientífico conhecido por Direito Comparado?” Sendo assim, queria-se saber se o Direito
Comparado é uma ciência autónoma ou se é um método pelo qual a Ciência do Direito
consegue obter resposta às suas questões científicas. O primeiro comparatista que mergulhou
em busca da resposta a esta questão foi Gutteridge.

1.1.1 Existe um ramo juscientífico conhecido por Direito Comparado? Resposta


dada por alguns comparativistas
- H. C. Gutteridge alertou para a difícil perceção do Direito Comparado por não agrupar as
regras do Direito vigente no âmbito de uma matéria jurídica em si. O Direito Comparado é mais
amplo do que isso, pois propõe a análise dos sistemas jurídicos como um todo. Para além disso,
o Direito Comparado tem uma característica dúbia, pois alguns comparatistas só se prestam a
identificar as regras jurídicas em cada ordenamento jurídico, mas não vão mais além, ou seja,
não propõem a criação ou alteração de regras jurídicas. Duas questões que devem ainda ser
observadas:
1) O próprio Direito visto como ciência ainda procurava ser visto como tal naquela época. Por
conseguinte, já era difícil aceitar o Direito como Ciência, então aceitar um suposto ramo de
Direito como tal ainda o era mais.
2) A Constituição formal justificava a própria autoridade do Direito como Ciência, pois só se
podia falar do Estado e da sociedade a partir da Constituição. Essa estabilidade constitucional
havia posto em causa a mudança do paradigma constitucional. Essa questão teve de ser melhor
analisada.

- René David, em 1964, período dos movimentos sociais e do grande entusiasmo com a nova
ordem constitucional que garantiu o acesso a novos direitos fundamentais, é o primeiro
comparatista que foge à discussão se o Direito Comparado seria um método pelo qual a Ciência
do Direito conseguia obter resposta às suas questões científicas ou uma ciência autónoma e
define três pontos que esclarecem porque é que o Direito Comparado é importante, abrindo o
diálogo entre as duas teorias:
1) O Direito Comparado contribui para as investigações históricas e filosóficas do Direito visto
principalmente como norma. Ou seja, se se quiser saber como é que o Direito se comporta num
determinado Estado, precisa-se de analisar o seu passado, isto é, a evolução da sociedade e das
normas jurídicas.
2) O Direito Comparado interessa para o conhecimento e desenvolvimento do Direito Interno
dos Estados. Conhecer o método de Direito Comparado facilita perceber qual é o lugar do
Direito Interno no mundo, e por mais isolado que este seja, será sempre influenciado por
Direitos externos.
3) O Direito Comparado permite compreender os ordenamentos jurídicos dos mais diversos
países, favorecendo as relações internacionais. Quando se percebe o sistema jurídico de um

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determinado país pelos seus valores internos, está-se mais disposto a relacionar-se com ele, pois
consegue-se definir quais são as semelhanças e as diferenças entre os dois sistemas jurídicos.

A partir de René David, as teorias que se seguem vão propor uma certa harmonia entre as duas
teorias.

- Konrad e Hein, em 1969, propõem um significado mais contemporâneo para o Direito


Comparado que se mantém atual: A racionalização de um objeto, que é o Direito, por um
processo próprio que é o método de comparação que tem várias técnicas, como por exemplo:
-» Comparar uma lei  uma lei brasileira com uma lei portuguesa
-» Comparar uma jurisprudência  um determinado momento histórico português com um
momento histórico inglês
-» Comparar um instituto  a pena de morte entre o sistema português e o sistema chinês

- Marc Ancel, em 1971, propõe a observação das várias técnicas comparativistas que compõem
o método comparativo e que podem ser usadas pelos comparativistas. São os comparativistas
que terão de definir a técnica que irão usar para resolver o problema que pretendem resolver na
análise comparativista entre os sistemas jurídicos.

- Na mesma época, Constantinesco destaca a importância do Direito Comparado para retirar o


jurista da sua área de conforto intelectual imposta pela submissão ao seu Direito Interno,
estimulando o conhecimento dos mais variados sistemas jurídicos mundiais para pôr em causa
as leis, a jurisprudência e os institutos nacionais.

1.2 O objeto do Direito Comparado


O objeto do Direito Comparado é o Direito que pode ser visto sob duas perspetivas:
- Macro-comparação: Comparação de sistemas jurídicos como um todo, em que o
comparativista se preocupa com questões mais amplas e gerais (ex. Qual é o papel do Estado no
Direito Português em comparação com o Direito Suíço?).
- Micro-comparação: Comparação de normas ou institutos jurídicos de ordens jurídicas
diferentes com a intenção de se resolver um determinado problema (ex. Como se apura o dever
de um produtor de reparar os danos causados pela venda de bens defeituosos aos
consumidores?).

1.2.1 Proposições do Direito Comparado


Para termos o Direito Comparado, é necessário que o comparativista defina o processo de
comparação. Isto significa ter sempre presente a dualidade entre o tempo (: momento histórico)
e o espaço (: local geográfico). Portanto, tem-se:
- Comparação sucessiva num único país
-» Exemplo: Pretender-se-á perceber o desenvolvimento constitucional no âmbito do Direito
Português. Ter-se-á de dividir o Direito Português pelo método histórico num período pré-
constitucional (Formação do Estado Português até a Revolução Liberal do Porto em 1820) e
num período pós-constitucional (Constituição de 1822 até à Constituição de 1976, fazendo-se
ainda a distinção entre o período monárquico e o período republicano).
- Comparação simultânea no passado entre diferentes países
-» Exemplo: Pretender-se-á perceber os sistemas jurídicos português e brasileiro no período
de tempo entre a independência do Brasil e a vigência da primeira Constituição Portuguesa de
1822, em que o Brasil, agora independente, começa o processo de elaboração da sua primeira
Constituição e em que Portugal deixa de ser uma monarquia absoluta para se tornar uma
monarquia constitucional.

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- Comparação sucessiva em diferentes países
-» Exemplo: Pretender-se-á comparar o instituto da eutanásia nos sistemas jurídicos
holandês, que a repudiou, e português, que a aprovou, para, por exemplo, adquirir fundamentos
para uma discussão no âmbito da Assembleia da República sobre tal assunto
- História comparada de instituições de diferentes países
-» Exemplo: Pretender-se-á comparar o Constitucionalismo Português com o
Constitucionalismo Brasileiro, fazendo uma divisão entre o período monárquico e imperial e o
período republicano.

O grande erro do Direito Comparado é entendê-lo como mera descrição de um sistema jurídico.
A intenção do Direito Comparado é de comparar e não de descrever. O Direito Comparado
pretende identificar metodicamente as semelhanças e diferenças entre ordens, sistemas, normas
e institutos jurídicos. Para além disso, tem de se ter cuidado ótimo com a justaposição, ou seja,
com a observação de uma determinada norma de um determinado sistema jurídico e importá-la
para criar no próprio sistema jurídico o mesmo elemento exatamente igual como foi criado na
origem. Ter-se-á de definir as semelhanças e diferenças entre os sistemas jurídicos e adaptar a
norma à realidade do sistema jurídico ao qual se pretende importar a norma em questão.

2. A família jurídica romano-germânica


2.1 A confederação grega
Os gregos quando se começaram a desenvolver em nível de civilização, assim o fizeram tendo
em conta a importância do Direito. A Grécia do século 30 AC era um território vasto repartido
por várias cidades-estado que se distinguiam umas das outras quanto aos costumes locais, à
organização política e à base jurídica mas que, em conjunto, formavam a confederação grega.
Dentro dessa confederação grega existiam Atenienses, Tebanos, Corintos e Espartanos. Como já
referido, cada um desses povos, assentados nas suas cidades-estado, tinham certas
particularidades, o que possibilitava distingui-los uns dos outros:
- Atenas ficou reconhecida por ser o berço da Democracia, onde o poder político era exercido
pela Assembleia Popular que criava as leis para regulamentar a conduta humana em sociedade.
- Tebas e Corinto ficaram reconhecidas pela sua característica comercial, isto é, a sua
organização e administração política ficava a cargo ou de aristocratas ou de oligarcas,
resumindo, de um grupo de líderes reconhecidos como “os melhores”.
- Já em Esparta o poder político era de matriz totalitária, sendo exercido por um Rei que ditava
a sua vontade para que os seus súbditos a seguissem, centrando deste modo na sua pessoa os
atos políticos.
Estas cidades-estados permaneceram assim com o seu Direito consuetudinário, baseado nas suas
experiências sociais, até ao século IX AC.

2.2 A génese grega – o racionalismo helénico


No século IX AC até ao século IV AC começou a observar-se a mudança do paradigma social
em que a tradição oral começou a dar lugar à tradição escrita. Atenas, nesse período, começou a
questionar o funcionamento das suas instituições jurídicas. Os juízes, aplicando o costume
jurídico local, não o faziam de acordo com o mesmo, mas antes como lhes apetecia, já que não
havia um documento escrito que limitava a arbitrariedade da sua atividade, recorrendo a
elementos míticos, fora do conhecimento racional humano e, portanto, impossíveis de serem
refutados para proferirem as sentenças, afirmando por exemplo: “Esta consequência jurídica foi
determinada com base na vontade de Zeus/ Poseidon/ Hades!” Devido à passagem do Direito
consuetudinário para o Direito escrito, a atividade arbitrária dos juízes foi limitada, tendo que

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aplicar não o que se achava, mas antes o que estava escrito para a solução dos litígios. O Direito
escrito era produzido na ágora (: centro político, jurídico, social, económico, cultural das
cidades-estado) e devia ser justificado na razão e vontade humanas em sociedade, e não na
deliberação dos deuses. É a fase do racionalismo helénico que muito deve aos três filósofos
Sócrates, Platão e Aristóteles que têm como objetivo intelectual comum, fundamentar o
racionalismo e as relações humanas pela razão e não pela divindade; pelo logos (: conhecimento
interno, produzido pela razão) e não pelo mitos (: conhecimento externo ao indivíduo, imposto
como verdade científica). Quando os Atenienses propõem a mudança da fonte do Direito dos
costumes para a lei, Esparta, Tebas e Corinto observaram essa mudança em Atenas e criaram
também as suas leis justificadas na razão. Quando os romanos invadem a Grécia e dominam a
confederação grega deparam-se com esse sistema que era completamente diferente do seu.

2.3 A invasão romana à Grécia


2.3.1 A manutenção de pax romanorum
Depois da invasão romana à confederação grega, os romanos aplicam a pax romanorum (:
manutenção da paz pela força), impondo aos povos dominados o seu Direito Romano mas
permitindo que cada um continuasse a cumprir o seu Direito local naquilo que não fosse
contrário ao Direito Romano. Quem ditava o Direito na Grécia era a Assembleia Popular em
Atenas, um grupo de líderes em Corinto e Tebas ou um governante único em Esparta. O Direito
em Roma, por sua vez, era criado pelo Senatus Populus Quae-Roma (SPQR), ou Senado do
Povo de Roma, que era um órgão de senadores que necessariamente tinham de ser civitas (:
cidadãos, isto é, descendentes diretos dos fundadores de Roma). O Império Romano teve uma
extensão territorial muito grande e colocava-se então a questão: Como convencer os povos
dominados a cumprir pela sua vontade o Direito Romano criado pelo SPQR que não os
representa? Como manter a pax romanorum?
-» Curiosidade: Mais tarde, a cidadania romana podia ser adquirida pela prestação de serviços
militares ou pelo cumprimento do bonum facere para que se reconhecesse a lealdade para com o
Império Romano.

Quando os romanos observaram o sistema grego, perceberam uma proximidade da Democracia


Grega (: palavra de origem grega formada por “demo” e “kratus” que significa governo do
povo) à República Romana (: palavra de origem do latim formada por “res” e “publius” que
significa coisa do povo). Para resolver a crise da legitimidade do SPQR e manter a pax
romanorum, Marco Túlio Cícero conseguiu adaptar a teoria grega à realidade romana,
identificando que se a Democracia nascia na ágora e todos os gregos a respeitavam, o Direito
criado pelo SPQR poderia ser considerado como a representação romana da ágora e deveria ser
cumprido e respeitado pelo povo, no seu sentido de populus (: todos aqueles que estavam sob o
domínio romano). Esta solução proposta por Cícero conseguiu conter a insatisfação social,
controlar os dominados e manter estável a pax romanorum até o século I da era cristã.

2.3.2 A passagem do Direito consuetudinário ao Direito escrito em Roma


Se na civilização grega verificou-se a formação do pensamento racionalista helénico mediante a
passagem do mitos ao logos, em Roma também se passou de um Direito consuetudinário
justificado na divindade (o fas (normas religiosas permissivas) e nefas (normas religiosas
proibitivas)), para um Direito escrito justificado na razão humana (a iura (normas humanas
permissivas) e iniura (normas humanas proibitivas)). A partir da Lei das XII Tábuas no século
IV AC, afastaram-se as normas religiosas e passou-se a reconhecer uma lex romanorum (:
legislação romana baseada na produção do SPQR).

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2.4 O Concílio de Niceia e a criação do Direito Canónico
A partir da crucificação de Jesus Cristo surgem no Império Romano várias seitas cristãs com
dogmas (: doutrina proclamada como fundamental e incontestável) e liturgias (: conjunto de
cerimónias e orações) próprios. Como consequência, instaurou-se praticamente uma guerra civil
entre as várias seitas que Roma pretendeu conter. A medida mais eficaz, para tal efeito, foi a
que aconteceu no século IV DC, nomeadamente a ordem dada por Constantino para reunir
num conselho, o Concílio de Niceia, todos os líderes das seitas cristãs surgidas a partir da
crucificação de Jesus Cristo para definir a estrutura religiosa e política de uma nova religião do
Império Romano, a Religião Católica Apostólica Romana, e do seu representante político que
dialogasse diretamente com o Imperador romano, o Papa. Quando a Santa Igreja Católica
Apostólica Romana então se estrutura religiosa e politicamente, é lhe atribuído o poder de criar
o seu Direito religioso e recuperar na História romana aquilo que foi o fas (: normas religiosas
do início do Império Romano). Essa ordem religiosa, justificada no poder divino e traduzida
pelo Papa, devia conviver com o Direito pagão (: que ou o que segue uma religião assente na
crença em vários deuses), a iura (: normas humanas), legitimado pelo SPQR e traduzido pelo
Imperador. Rapidamente se formou o Corpus Iuris Canonici ou Direito Canónico.

2.5 O Corpus Iuris Civilis e o começo do fim do Império Romano


Alguns anos mais tarde, Justiniano, observando que o Direito Romano estava a perder cada vez
mais a sua autoridade no sistema jurídico interno e estando em ameaça a pax romanorum,
ordena a Triboniano, um jurisconsulto, que adotasse a técnica de catarse (: retirar com força da
ordem interna do Estado todo o Direito que não fosse aplicado, que não tivesse vigência) para
criar o Corpus Iuris Civilis. Esse processo demorou tanto tempo que o Corpus Iuris Civilis
teve de ser dividido em quatro partes: constitutas (: ordens ditadas diretamente pelo
Imperador), institutas (: livro doutrinário do Direito romano vigente que definia como este
devia ser aplicado, os fundamentos da justiça, os princípios gerais de Direito e definições),
novelas (: parte responsável pelas inovações e correção de erros de modo a manter atualizado o
Direito vigente) e Digesto (: código universal romano que continha todo o Direito vigente em
nível de lei). Terminada a missão de Triboniano, o Corpus Iuris Civilis precisava de ser copiado
e divulgado. Como era Direito escrito, era necessário papiro e pessoas para o copiarem.
Contudo, é exatamente nesse momento que se inicia a queda do Império Romano, sendo o Egito
invadido e dominado pelos muçulmanos. Para além de impedirem o fornecimento de papiro que
era maioritariamente produzido no Egito, os muçulmanos tinham como objetivo destruir todos
os livros que não fossem o Alcorão. Segundo a principal teoria histórica, o Corpus Iuris Civilis
estava arquivado na Biblioteca de Alexandria, onde foi destruído após o incêndio que lá
acabaria por deflagrar.

2.6 A “queda” do Império Romano e a “subida” do Direito Canónico


Quando se fala na queda do Império Romano é fundamental ter clara a ideia de que o Império
Romano passou um período longo em declínio, perdendo paulatinamente a sua importância e
autoridade. Esse período é dividido pela História em duas fases:
- Queda do Império Romano no Ocidente que se inicia no século V DC
- Queda do Império Romano no Oriente que marca a queda definitiva do Império Romano em
1453 DC
O Corpus Iuris Civilis tinha como missão recuperar a autoridade do Direito Romano, evitando
que este se tornasse insignificante face à crescente relevância do Direito Canónico, copiando-o e
divulgando-o. Quando isso não é possível devido ao corte do fornecimento de papiro pela
campanha muçulmana, o Direito Romano progressivamente começa a perder rapidamente a sua

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importância para o Direito Canónico. Enquanto os clérigos divulgavam oralmente o Direito
Canónico nas missas e outros eventos eclesiásticos, o Direito Romano começou a ser esquecido
devido à impossibilidade de ser copiado e divulgado através da escrita. Como quem controla a
lei, controla o Estado, o Papa passou a exercer, enquanto representante político da Igreja
Católica e controlador do Direito Canónico, o cargo político no Império Romano que estava em
decadência.

2.6.1 A autoridade do Direito Canónico e propostas para a sua reconstrução


Desde o século IV DC, com o início do Direito Canónico e o seu desenvolvimento em grau de
autoridade, o princípio canónico criado por Santo Agostinho “omnis potesta a deo”,
significando “todo o poder vem de Deus”, passou a legitimar o poder dos Papas sobre o
argumento de que se Deus criou tudo, também criou o poder, e se ele o criou é a ele que
pertence, pois foi ele que o criou. Se ele detém o poder, é só ele que pode decidir a quem vai
entregar o poder. Segundo a estrutura canónica, esse poder foi entregue ao Papa, passando este a
ser o representante de Deus na Terra, para além de exercer um cargo político no Império
Romano quando este e o seu Direito estava em decadência.
O Direito Canónico vai-se desenvolvendo até se chegar a um Direito Canónico severo e
torturante.
 Por um lado, chegando-se aos séculos IX a XI DC, a Santa Inquisição ganhou contornos
de terror social, visto que a população cumpria as normas religiosas não pela sua vontade, mas
sim porque tinham medo do que lhes poderia acontecer se as infringissem. Só para servir como
exemplo, o Direito Canónico, para comprovar se uma determinada pessoa estava ligada à
bruxaria, aplicava a “lei de ordálias”. Nos termos dessa lei, a pessoa que se alegava ter uma
ligação com a bruxaria era colocada numa jaula de ferro e submersa num lago, onde devia ficar
durante 5 minutos. Contudo, os aparelhos utilizados para contar o tempo naquela altura não
eram precisos, sabendo-se hoje que o tempo que marcavam (5 minutos), na realidade
representava aproximadamente 12 minutos! Se a pessoa conseguisse sobreviver considerava-se
que Deus a tinha salvo por ser inocente, mas se morresse considerava-se culpada, pois já lhe
tinha sido aplicada a vontade de Deus.
 Por outro lado, a venda de indulgências (: remissão da pena temporal (originada pela
ofensa à ordem estabelecida e aos direitos dos outros), que só pode ser obtida no seguimento do
perdão da culpa (originada pelo pecado que feriu a relação com Deus)) pela Igreja Católica
causou algum desconforto nos principais humanistas clérigos que tinham a função de ser
doutores da lei canónica. Nesse momento, existem algumas tentativas de reconstrução do
catolicismo propostas por Tomás de Aquino, Jerónimo e Ivo de Kermartin, pretendendo voltar-
se às origens do catolicismo e superar a fase de autoridade da Igreja Católica naquele período:
-» Tomás de Aquino: Na sua obra “Summa Theologica”, propõe uma nova interpretação
do princípio canónico de Santo Agostinho “omnis potesta a deo”: Na génese lê-se que Deus
criou o Homem à sua imagem e semelhança. Isto significa que todos os seres humanos são
iguais e santos. Não se deve, por conseguinte, distinguir, aquilo que a Bíblia diz que é igual.
-» Jerónimo: Preocupa-se em dar teoria à reflexão filosófica de Tomás de Aquino e
propõe-se a reconstruir o Direito Canónico numa vertente mais humanista.
-» Ivo de Kermartin: Propõe uma aplicação mais humanista do Direito Canónico,
levando-se em consideração a igualdade proposta pelos valores morais religiosos.
Outros estudiosos católicos propuseram outras mudanças mais drásticas:
-» Martinho Lutero: Refuta as indulgências sobre a ideia de que o reino dos céus deve
ser igual e possível a todos e o caminho de ser seguir fielmente a moral cristã e não deve
depender da situação financeira do indivíduo, pois “era mais fácil um camelo passar pelo buraco

11
da agulha, do que um rico entrar no reino dos céus”.  Luteranismo
-» João Calvino: Propôs a ideia de se agir conforme os dogmas e as premissas, não se
pretendendo pecar e ser absolvido mediante o pagamento.  Calvinismo
Estas duas propostas de reconstrução do Catolicismo não foram aceites pela Igreja Católica,
mas permitiram o desprendimento do catolicismo enquanto sinonimo de cristianismo. Ou seja, a
partir dessas reformas religiosas reconheceu-se serem religiões cristãs o luteranismo e o
calvinismo que conviviam harmonicamente com uma terceira religião que seria a religião
católica. Existe ainda uma terceira escola protestante relevante, o anglicanismo, que foi criado
em Inglaterra e que ganha contornos no mundo anglófono a partir de então.

2.6.2 O feudalismo e a questão acerca dos ordenamentos jurídicos aplicáveis


A campanha muçulmana iria chegar à Península Ibérica, estimulando entretanto outros
movimentos de povos dominados pelos romanos, nomeadamente os povos bárbaros de leste e as
bestas do norte. O Império Romano começou, para além de perder a influência do Direito
Romano em grau de autoridade, a perder também o domínio político face aos muçulmanos,
bárbaros e bestas. Chegando ao século IX da era cristã, os romanos iniciam a sua campanha na
Grã-Bretanha. Quando chegam lá, Adriano, o então Imperador romano, mandou construir a
famosa muralha de Adriano para manter fora do Império Romano esse povo bárbaro. Porém,
não conseguiram dominá-los e a muralha de Adriano foi facilmente superada. Será neste âmbito
que se vai dar origem, após a invasão normanda e a vitória na batalha de Hastings, do common
law. No Direito Europeu Continental Ocidental, a clara insurgência dos povos locais contra o
domínio romano deu início ao feudalismo. É a fase em que os povos começam a libertar-se e
começam a perceber que têm de ter, para além de uma estrutura social, uma estrutura jurídica,
tendo em conta que “ubi societas, ibi ius”. Surge deste modo uma questão: Que Direito deve ser
aplicado a cada um dos feudos? Qual era a fonte do Direito (costumes, Direito Romano anterior,
Direito Canónico, Direito pagão anterior ao Direito Romano, etc.)? Se os ordenamentos
jurídicos fossem criados como as sociedades melhor entendessem, poderia eclodir um conflito
entre os ordenamentos jurídicos criados nos feudos que dificultasse a relação entre os feudos
tanto em nível de segurança como em nível comercial. Esse período entre o século IX e XI foi
assim um período de instabilidade e adaptação, de queda progressiva do Império Romano e de
um aumento dos feudos libertados do domínio romano.

2.7 A descoberta do livro I do Digesto de Justiniano


Como já foi mencionado, o fornecimento de papiro tinha sido impedido com o controlo
muçulmano sobre o Egito. A adaptação que se fez foi de pegar em papiros que não tinham
grande utilidade e pintá-los com uma tinta branca para serem reutilizados. No século XI, um
monge chamado Irnério, ao registar num palimpsesto a colheita mensal, deixou-o cair e este
quebrou. Ao pegá-lo do chão, percebeu que o papiro original tinha afinal informações
importantes: era o livro I do Digesto de Justiniano. Irnério decide então fazer uma cópia e enviar
o documento original para estudo na Universidade de Paris e na Universidade de Bologna,
estimulando que o Direito Romano fosse reinterpretado pelos valores locais do que viria a ser a
França e a Itália. Uma terceira cópia foi enviada da França para o mundo germânico para que aí
pudesse ser também reinterpretado, surgindo deste modo um diálogo entre as universidades,
estruturas criadas com o intuito de discutir o conhecimento humano e universalizá-lo, tendo em
conta o significado da palavra latina “universitas” que dá origem à palavra “universidade”.
-» Universidade de Bologna: Preocupa-se em resgatar a força positiva do Direito Romano
em reinterpretar um princípio consagrado na expressão “dura lex, sed lex”, o que significa,
“rígida é a lei, mas é a lei”. Ou seja, não importa o conteúdo da lei, importa sim que ela deve ser
cumprida. Os bolonheses adaptam então o livro I do Digesto de Justiniano à realidade do século

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XI DC, criando uma escola de glosadores (: estudiosos juristas que deixavam entre as linhas da
cópia do livro I do Digesto de Justiniano observações/sugestões sobre como se poderia adaptar e
atualizar o Direito Romano a determinada sociedade). Mais tarde, a escola de glosadores deu
origem a uma variação, nomeadamente a escola dos comentadores (: estudiosos juristas que
faziam comentários de como se deveria aplicar o Direito Romano na nova realidade social).
-» Universidade de Paris: Preocupa-se em aproximar o Direito Canónico ao Direito
Romano, muito devido à influência e experiência dos doutores clérigos que também eram
professores catedráticos em Paris (Tomás de Aquino, Jerónimo, Ivo de Kermartin) e devido ao
facto de que a lecionação do curso de Direito era consequente da teologia, ou seja, do estudo do
Direito Canónico. Surgiu assim a escola humanista (: procurava trazer os valores religiosos para
a realidade dos indivíduos em sociedade).
-» Mundo germânico: Os germânicos adaptam o Direito Romano aos costumes
comunitários, considerando que a lei pode ser criada de cima para baixo, como acontecia em
Roma, mas deve ser preferencialmente criada de baixo para cima, representando os valores
comunitários e dando os indivíduos autoridade à lei. Surgiu assim a escola das pandectas.

A redescoberta do Direito Romano exigiu assim a reconstrução do Direito Romano e a sua


adaptação do século V para os séculos XI a XII, missão essa entregue às universidades que
tinham que analisar e compreender as leis e os costumes locais e medievais (ius proprium ou ius
municipale), propondo o diálogo entre as semelhanças e diferenças de modo a definir princípios
que fossem comuns a todos (ius commune), dando-se a origem da família jurídica romano-
germânica. Reconheceu-se o aspeto universal que o Direito Romano demonstrou ter ao longo
da História, pois foi aplicado em todo o Império Romano, tendo em consideração os Direitos
locais que não lhe fossem contrários. Proporcionaram o fácil acesso às disposições no âmbito do
Corpus Iuris Civilis, redigiram-no em latim para que as várias universidades pudessem dialogar
facilmente umas com as outras e reconheceram que o Direito Romano conseguiu a sua
estabilidade por causa da ratio scripta, a ideia da confirmação de um texto escrito que tivesse
legitimidade e autoridade, criado por quem teve o poder para criar o Direito e aplicado por
quem teve força para fazer cumprir esse Direito.

2.8 O conflito entre Felipe IV dos Francos e o Papa


O Direito Canónico fortaleceu de tal forma a atuação do Papa e o princípio canónico de Santo
Agostinho “omnis potesta a deo” que todos os Reis eram obrigados a procurar o Papa para
verem o seu poder reconhecido e legitimado pelo representante de Deus na Terra. A partir de
1253 a 1303, o Rei Felipe IV dos Francos, que pretendia unificar os Francos, expandir o
território e trazer segurança para a região, observa que o Papa tinha mais a dar ao reino dos
Francos do que o Reino dos Francos tinha a dar ao Papa, pois o reino dos Francos tinha acolhido
e protegido o Papa diante da instabilidade provocada pela reconstrução e reformas religiosas e
pelo declínio do Papado. Filipe IV então pede ao Papa a sua colaboração económica e militar ao
reino dos Francos para que pudesse vencer as guerras contra os seus inimigos. Caso o Papa não
quisesse aderir à sua causa, deveria ser aplicada uma aplicação da lei de ordálias, estipulando-se
que o Papa seria preso e posto em confinamento por sete dias, sem visitas, sem água nem
comida, ficando como responsável por manter o Papa em confinamento forçado, Guillaume de
Nogaret. Se ao fim de sete dias o Papa estivesse vivo, seria solto. Se o Papa fosse encontrado
morto, seria reconhecido como culpado por não ter cumprido a vontade de Deus e a partir de
então todo o controlo da Igreja Católica seria posto sob o domínio do Rei dos Francos. E assim
foi feito.
O Papa decide então recusar aderir à causa de Felipe IV e é, por conseguinte, mantido em
confinamento forçado. Ao terceiro dia ele pede que Guillaume o leve junto ao Rei, não cedendo

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da decisão que tomou. Algum tempo depois, todavia, o Papa morre, sucedendo-lhe como Papa o
cardeal de Paris que tinha uma grande proximidade para com Felipe IV. Quando foi nomeado
Papa, ele suspende a excomunhão aplicada ao Rei Felipe IV e a Guillaume de Nogaret pelo
Papa anterior, reconhecendo-os como os mais católicos dos católicos, declara como um ato de
loucura, não representando a vontade de Deus, a decisão do seu antecessor de não cooperar com
Felipe IV, obriga o Papado a idealizar o Rei da França e orienta os templários a prestarem
serviços militares ao Reino dos Francos. Essa última ordem não foi bem aceite, reconhecendo-
se e declarando-se a atividade dos templários como heresia (: ato ou palavra ofensiva da
religião), o que autoriza Felipe IV a perseguir e prender os templários.
A partir de Felipe IV o que se viu foi, juntamente com a legitimação do Direito divino, a
legitimação da força e do sangue. Ou seja, reconheceu-se que o Papa era um ser humano como
qualquer outro e, portanto, também está sujeito eventualmente às leis dos Reis. Já não era
necessária a autorização do Papa para reconhecer a legitimidade de um Rei e isso dava a
liberdade a cada reino de decidir o que quisesse. É também a partir da campanha de Felipe IV
que as universidades têm a autonomia para discutir a ciência sem a limitação dos valores
dogmáticos.

2.9 O contributo germânico


Os povos nórdicos tiveram de se adaptar a fenómenos físicos e naturais exigentes e existentes
no território em que estavam assentes. Por um lado, o clima severo que se fazia sentir
dificultava as práticas sociais comuns, tais como a caça, a pesca e a agricultura. Por outro lado,
a localização geográfica complicava, entre outros aspetos, a mobilidade. Estando sujeitos a estes
fatores, os indivíduos sentiram a necessidade de se aproximarem uns dos outros para
cooperarem mutuamente de forma a puderem sobreviver. É então que se verifica a construção
de uma estrutura político-jurídica centralizada no Earl que detém o poder social desses povos.
Num primeiro momento, o Earl é aquele que mantém os indivíduos próximos uns dos outros,
visa a satisfação das suas necessidades e contém os conflitos eventualmente gerados no âmbito
das relações sociais. Já num segundo momento, o Earl passa a ser um barão, ou seja, um nobre
reconhecido pelos monarcas que vai dar origem ao Lord, no sentido de titulo nobiliárquico.

Este valor coletivo/comum decorrente dos costumes comunitários dos povos nórdicos, aos quais
também pertenciam os povos germânicos, contrapunha-se aos valores individuais dos romanos,
dando maior importância à satisfação das necessidades coletivas em detrimento à satisfação das
necessidades individuais de cada indivíduo. Contudo, como é que se conseguiu conjugar dois
valores antagónicos após a queda do Império Romano e com a criação do ius commune? A
resposta estaria no reconhecimento da autoridade da lei como principal fonte do Direito
determinada pelos romanos e emanada pela instituição legítima do Senatus Populus Quae-Roma
e na aproximação dos costumes individuais dos povos de raiz latina aos costumes comunitários
dos povos nórdicos, fazendo com que fosse possível satisfazer os interesses individuais tendo
igualmente em consideração os interesses comunitários. É assim que a lei passou a ser percebida
como uma norma jurídica geral e abstrata, isto é, vinculativa à generalidade dos indivíduos que,
por sua vez, seriam responsáveis pelo seu cumprimento e pela satisfação dos seus interesses e,
da mesma forma, os interesses da coletividade.

É então esta teoria de conjugação entre o reconhecimento da lei como principal fonte do Direito
e o respeito dos costumes, sejam eles de raiz individual, sejam eles de raiz comunitária, que iria
passar à prática com a eclosão da Revolução Francesa.

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2.10 Jusracionalismo, codificação e aculturação jurídica
2.10.1 As razões para a eclosão da Revolução Francesa
Embora os conflitos e a insatisfação social relativamente à monarquia absoluta francesa se
foram construindo a partir do século XIV, a Revolução Francesa tem como marco histórico o
ano de 1789, ano este em que os conflitos e a insatisfação social chegaram a um tal nível
elevado que puseram em causa a monarquia absoluta francesa.

1) Foi no âmbito da Revolução Francesa que se percebeu que a lei mantinha a ordem em
sociedade. Portanto, quem tinha o poder de criar as leis, tinha o poder e o controlo sobre a
sociedade e sobre tudo o resto. Esse poder, naquela altura, pertencia aos reis absolutos franceses
que criavam as leis de acordo com os seus interesses e não de acordo com os interesses do povo.
Contudo, esta perceção social não foi suficiente para a eclosão da Revolução Francesa:
2) Por um lado, a Coroa Francesa estava em guerra com outros países.
3) Por sua vez, visto que Paris enfrentava uma situação de crise sanitária devido ao despejo de
dejetos no rio Sena que constituía a principal fonte de água da região parisiana, o rei, para
impedir a poluição desse rio e urbanizar a cidade, decidiu introduzir um novo imposto com vista
à construção de casas de banho públicas, traduzindo o princípio romano designado por “pecunia
nonolet” que significa “o dinheiro não cheira”. Ou seja, não importa a origem da cobrança dos
impostos, importa sim o dever de pagá-los.
4) Por outro lado, o ano de 1789 foi um ano de dificuldades no âmbito agrícola em França, o
que diminuiu a produção de grãos. O rei, sendo enfrentado com esta situação, decide aumentar o
imposto sobre a produção da principal fonte de alimentação da época, o pão.
 Encarados com estas dificuldades, a sociedade organizou-se para impedir as políticas
públicas tributárias, exigindo que o rei levasse em consideração o bem-social quando criasse
leis. O resultado foi a prisão dos reis de França em 1789.

2.10.2 As consequências da queda do Ancien Régime


A queda do Ancien Régime instaurou em França um sistema de não-respeito às leis sociais. Os
franceses, por um lado, esqueceram-se que, para substituir a monarquia absoluta francesa
(Ancien Régime), deviam colocar no seu lugar uma nova estrutura político-jurídica (Noveau
Régime). Por outro lado, os franceses evidenciaram que aquilo que Jean Jacques-Rousseau
havia referido na sua obra “Do Contrato Social” era simplesmente teoria: “Dai a liberdade ao
francês e ele saberá como resolver juridicamente os seus problemas.” O que se verificou, pelo
contrário, foi o estado de natureza hobbesiana.

2.10.3 A insurgência do terceiro estado e a proposta de Joseph Sieyès


Em 1789 são consagrados na Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão dois
princípios impassíveis de serem separados um do outro: o princípio da liberdade e princípio
da igualdade. Ou seja, os franceses queriam ser livres para escolher os seus fundamentos
jurídicos e que essa liberdade fosse igual para todos.

No Ancien Régime não havia uma Assembleia Representativa dos cidadãos francesas. Havia
sim uma estrutura político-jurídica de aconselhamento do rei, baseada em três estados gerais:
- Primeiro estado: Nobreza (max. 5’000)
- Segundo estado: Clero (max. 8’000)
- Terceiro estado: Povo (max. 20’000’000)
Nas votações, todos estes três estados, literalmente, tinham um único voto. Os dois primeiros
estados, apesar da sua insignificância numérica relativamente ao terceiro estado, tinham assim
maior poder de decisão do que este último, apesar de neste integrarem um número superior de

15
indivíduos. O terceiro estado acabou por se insurgir contra esta estrutura dos estados gerais,
baseando-se na proposta de Joseph Sieyès que, na sua obra “Qu’est-ce que c’est le troixième
État?”, ou seja, “o que é que é o povo?”, apresenta uma nova estrutura sociojurídica que dava a
cada indivíduo direito a um voto, construindo-se desta forma a cidadania francesa. É a partir da
proposta de Sieyès que a História Constitucional Francesa se forma. Para o Direito Comparado
o que se viu foi que, num curto espaço de tempo, se criaram várias ordens constitucionais com
valores políticos diferentes: a Monarquia Absoluta Constitucional de 1791, a Monarquia Liberal
Constitucional de 1793, o regime de terror de Robespierre, a Constituição excecional e
totalitária que legitimou o Império Napoleónico, a Primeira República, a Democracia Social de
1948, etc.

2.10.4 Os elementos definidos pela experiência jurídico-constitucional francesa


Os franceses lograram definir o seu Direito Interno e conseguiram igualmente definir um
conjunto de elementos que hoje contribuem para caracterizar a família jurídica romano-
germânica:

1) Princípio da separação dos poderes: O princípio da separação dos poderes, oriundo da


teoria do Barão de Montesquieu consagrada na sua obra “Do Espírito das Leis”, implica que os
poderes do Estado são exercidos separadamente pelos órgãos de soberania (artigo 110º da CRP).
Com a introdução deste princípio, Montesquieu quis impedir que alguém controlasse a
sociedade com o poder de criar as leis, defendendo que todos são livres para fazer ou deixar de
fazer algo, desde que esse algo esteja garantido/permitido pela lei, e a Constituição é uma lei,
sendo essa possibilidade igual para todos, obedecendo-se desta forma ao princípio da
liberdade e ao princípio da igualdade. Os poderes em Montesquieu são o poder legislativo, o
poder executivo e o poder judicial, cada um com uma competência específica prevista na Lei
Fundamental do Estado, na Constituição. Todos são submissos a essa lei, inclusive o Estado e
os seus poderes, reconhecendo-se deste modo a autoridade da lei como principal fonte do
Direito.
2) Criação de tribunais: A vida em sociedade gera relações que interessam ao Estado e ao
indivíduo (relação de interesse público) e relações que interessam aos indivíduos entre si
(relação de interesse privado). O Estado e os indivíduos estão todos subordinados à lei, mas os
indivíduos estão complementarmente subordinados ao Estado. Para que a atividade do Estado
seja contida e a proteção dos direitos e a imposição de deveres seja garantida existem tribunais
político-administrativos e tribunais jurisdicionais e judiciais.
3) Garantia da liberdade na lei: A lei é a grande garantia dos direitos. É submetendo-se à lei
que aos indivíduos é-lhes garantida a proteção do Estado. Por outro lado, sabendo dessa
consequência, é importante que as leis sejam bem criadas e bem aplicadas para representar, o
máximo possível, a vontade popular e os interesses coletivos. Sendo assim, só a lei criada por
Assembleias Representativas do povo exprime essa vontade e esses interesses.
4) Propriedade, contrato e igualdade: A ideia de liberdade tem um maior significado no
exercício de alguns direitos, como são o exemplo a propriedade, os contratos e a igualdade,
reconhecendo desde sempre que os indivíduos são seres gregários e, consequentemente,
precisam de outros indivíduos para satisfazer os seus interesses, vontades e necessidades. É
nessa relação, em pé de igualdade com os demais, que o indivíduo pode constituir propriedade e
relacionar-se com os outros através da celebração de contratos. A propriedade, os contratos e a
igualdade são os pilares do Direito Patrimonial Privado que pôs fim aos privilégios
constituídos na Idade Média, principalmente nos Estados feudais em que a nobreza e o clero
tinham privilégios, às limitações corporativas (: privilégios de natureza comercial/empresarial)
que foram substituídas pela intervenção do Estado e aos direitos dos filhos primogénitos.

16
2.10.5 A codificação
Na França:
Em 1804, Napoleão Bonaparte, Imperador dos Franceses, ordena a criação de um novo
Código Civil dos Franceses onde foram positivadas as normas jurídicas de natureza privada,
permitindo uma maior facilidade de perceber, de conhecer e de cumprir o Direito Civil. Foi a
partir da criação do Código Civil dos Franceses que se encontrou uma nova forma de se fazer
leis que representavam um ramo específico do Direito, uma nova forma de assegurar a
concentração e a divulgação da lei para lhe conferir primazia sobre as demais fontes do Direito.

Este primeiro Código teve, por um lado, uma aparência de liberdade, considerando aqueles
quatro elementos consequentes da experiência revolucionária francesa, mas previa, por outro
lado, a consagração de um “pouvoir neutre” proposto por Benjamin Constant que seria um
poder político superior aos demais poderes do Estado que os aproximasse quando estivessem
em conflito, poder esse atribuído ao próprio Napoleão. Para além disso, o Código Civil dos
Franceses representava os interesses dos cidadãos franceses independentemente do “estado
geral” a que pertenciam e era caracterizado pelos princípios e valores da Revolução Francesa:
- Individualismo liberal, ou seja, a satisfação das vontades individuais garantidas na lei
enquanto produto do Estado;
- Laicismo, sendo o Código Civil justificado na razão humana e não numa divindade;
- Substituição da família patriarcal, tentando-se estender a igualdade de género e a ideia de que
a família fosse construída em iguais condições entre a mulher e o homem.

Na Alemanha:
O Código Civil Alemão de 1900 (BGB) foi o último Código a ser criado no âmbito do
movimento de codificação, que representou ideais do individualismo liberal e foi marcado pela
precisão da linguagem técnica do mesmo. Já antes da criação do Código Civil dos Franceses,
existia um modelo de Código proposto por Friedrich Carl von Savigny que defendia a
recuperação da ideia de Justiniano e Triboniano que consistia na compilação de todo o Direito
vigente na Prússia. Esta proposta de Savigny foi oposta pela proposta de Rudolf von Ihering
que defendia um resgate da perceção de que alguns direitos são ditados pela natureza e
incorporados pela razão humana.

Em Portugal:
O Código Civil Português de António Luís de Seabra de 1867, embora com algumas
particularidades internas, foi influenciado pelo Código Civil dos Franceses, adotando o
individualismo liberal, o acesso dos indivíduos à lei em grau de igualdade, mas não aceitava a
laicização do Estado, sendo muitos dos elementos jurídicos contidos neste mesmo Código
justificados em valores morais católicos, podendo-se dar os seguintes exemplos:
- O casamento enquanto sacramento em vez de direito civil;
- O registo de batismo enquanto registo de nascimento;
- A manutenção de alguns privilégios à Igreja Católica.

2.10.6 A aculturação jurídica


A aculturação jurídica, para o Direito Comparado, preocupa-se com as consequências da
colonização que foram, entre outros fenómenos, a substituição do sistema jurídico vigente por
um outro sistema jurídico imposto que afastou a outra ordem jurídica, sendo esta a única
aplicável, diferentemente do que aconteceu com a pax romanorum. Foi a partir da aculturação
jurídica que os elementos da família jurídica romano-germânica, mas também da família
jurídica de Common Law, foram expandidos.
Apesar de os países colonizadores (Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Bélgica e Países-

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Baixos) terem mecanismos diferentes de colonização e de aculturação jurídica, todos eles
tinham um objetivo comum, nomeadamente a imposição do seu Direito nativo sobre as
colónias.

2.10.6.1 A aculturação jurídica portuguesa no caso do Brasil


O modelo de colonização e aculturação jurídica portuguesa do Brasil implicou, por um lado, a
sobreposição do Direito Português no Brasil de tal forma que até hoje não se percebem
quaisquer traços jurídicos anteriores à própria colonização e, por outro lado, uma influência
recíproca entre os dois sistemas jurídicos brasileiro e português a partir da declaração da
independência do Brasil no ano de 1820.

Datas históricas importantes:


- de 1500 a 1504: Domínio político sobre o território colonial brasileiro e extração de riquezas.
- a partir de 1504: Aplicação e adaptação do Direito Português à nova realidade colonial,
existindo desta forma uma relação direta entre os dois territórios.
- 1807: Fuga de D. João VI para o Brasil devido às Invasões Napoleónicas.
- a partir de 1820: Devido à Revolução Liberal do Porto, que visou restabelecer a ordem e
instaurar uma Monarquia Constitucional em Portugal, D. João VI volta para Portugal com a
orientação de se submeter a uma Constituição Liberal. Uma vez em Portugal, D. João VI sugere
a D. Pedro IV que fosse declarada a independência do Brasil. É assim que no dia 7 de Setembro
de 1822 é declarada a independência do Brasil que, por 15 dias, não se submete à primeira
Constituição Portuguesa, sendo esta aprovada no dia 22 de Setembro de 1822.

Influências recíprocas entre os sistemas jurídicos brasileiro e português:


1) Na Assembleia Constituinte Portuguesa para a elaboração da primeira Constituição para
Portugal estavam presentes Deputados brasileiros, uma vez que Portugal compunha com o
Brasil uma união real. Serão, já depois da independência do Brasil, estes mesmos Deputados
que formarão parte da primeira Assembleia Nacional Brasileira, o que quer dizer que as mesmas
ideias liberais e de limitação do poder absoluto monárquico portuguesas que moldaram a
primeira Constituição Portuguesa de 1822, estiveram presentes no Brasil.

2) A primeira Constituição Brasileira de 1824 foi elaborada e outorgada por D. Pedro I que
tinha como base a Carta Imperial Napoleónica que tinha ideias liberais, mas que previa um
controlo dessa liberdade por parte do poder moderador. Esse poder foi-lhe constitucionalmente
atribuído, garantindo-lhe o direito e o controlo político do Brasil. A Carta Constitucional de
1826, a segunda Constituição de Portugal, seria mutatis mutandis uma réplica da Constituição
Brasileira de 1824, tendo sido igualmente elaborada e outorgada por D. Pedro I, constando dela
a consagração de um poder moderador exercido pelo Rei.

3) A Constituição Imperial de 1824 foi vigente até ao ano de 1891, sendo adotada a primeira
Constituição Republicana do Brasil depois da instauração da República no ano de 1889. Esta
Constituição foi inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América que pertence à
família jurídica de Common Law, não deixando o Brasil todavia de pertencer à família jurídica
romano-germânica. Seria também a Constituição Republicana do Brasil o modelo ideológico da
Constituição Republicana Portuguesa de 1911.

2.11 Países que pertencem à família jurídica romano-germânico


Sistemas-jurídicos de fácil perceção:
- Países latinos: Portugal, Espanha, França e Itália
- Países germânicos: Alemanha, Áustria e Suíça

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- Países do Benelux: Bélgica, Países-Baixos e Luxemburgo
- Países eslavos: Eslováquia, Polónia, República Checa e Rússia
- Países do sudeste: Grécia e Turquia

Sistemas-jurídicos de difícil perceção:


- Países nórdicos: Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca e Islândia

Sistemas-jurídicos fruto da aculturação jurídica e da colonização:


- Antigas colónias africanas de Portugal, Espanha, França e Bélgica que preservam o sistema de
Direito imposto pela metrópole.
- Antigas colónias europeias que sofreram influência de metrópoles que seguem o sistema
romano-germânico.

2.12 Conceitos fundamentais


2.12.1 Diferença entre Direito constituído e Equidade
O Direito constituído é o conjunto de todas as normas jurídicas vigentes, aplicáveis e criadas
pelo Estado a partir das fontes do Direito, sendo a principal delas a lei.

A Equidade tem a sua origem na palavra “aequitas” que nasce no período em que o Direito
Romano era extremamente severo e torturante e que não levava em consideração as
particularidades do caso concreto, mas levava em consideração sim a aplicação formular das
sentenças (ex. A pena de morte era idêntica para alguém que roubasse e matasse um indivíduo e
para alguém que roubasse uma maçã de uma árvore).
Esse Direito Romano desmedido foi posto em causa, surgindo como solução a Equidade que
pretendia abrandar o rigor das leis romanas severas e torturantes.
Celso, um jurisconsulto, iria criar a “iuris praecepta”, ou seja, princípios de Direito que iriam
ajudar a aplicar o sentido de Equidade aos casos concretos, de forma a se fazer justiça. Foram
três esses princípios de Direito:
- honeste vivere - viver honestamente;
- nominem laedere - não causar danos a alguém/ não prejudicar o direito alheio;
- suum cuique tribuere - dar a cada um o que é seu.
Esse contributo de Celso foi tão forte que serviu de inspiração a Ulpiano para a formulação da
definição romana de Justiça: “Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuere.” Isto é: A Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe pertence.
E é exatamente a própria lei que diz o que é de cada um, tendo somente o juiz de aplicar
equitativamente aquilo que a lei diz ao caso concreto, fazendo-se deste modo Justiça. É assim
que se fortalece o elemento que reconhece a lei como a principal fonte do Direito da família
jurídica romano-germânica.

2.12.2 Diferença entre Direito Público e Direito Privado


- O Direito Público compreende as normas e os princípios que disciplinam as relações jurídicas
entre duas partes em que uma delas está subordinada à outra que detém o poder político, sendo a
lei que regulamenta as condutas no âmbito dessas mesmas relações, obedecendo ao princípio da
legalidade, sendo este tratamento igual para todos, em obediência ao princípio da igualdade.

- O Direito Privado compreende as normas e os princípios que disciplinam as relações jurídicas


entre particulares ou entre particulares e entes públicos, mas em que estes estão em nível de
igualdade, observando-se o princípio da liberdade na medida em que as partes cooperam entre si
para chegarem a um acordo negocial e satisfazerem os interesses que estão em causa.

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2.13 Fontes do Direito
2.13.1 Noções
A principal fonte do Direito para a família jurídica romano-germânica, como já foi previamente
referido, é a lei, seja pela importância, seja pela prevalência hierárquica que possuiu. Contudo,
como foi observado no âmbito da formação histórica da família jurídica romano-germânica, a
autoridade da lei deve conviver com a existência dos costumes comunitários fruto da
experiência germânica. É assim que, em Portugal ou em França, a lei é fonte quase que
exclusiva para a criação de direitos, enquanto que na Alemanha ainda se confere alguma força
jurídica aos costumes de raiz comunitária. Para além da lei, existem para a família jurídica
romano-germânica outras fontes do Direito, sendo elas:
- Tratados e fontes de Direito Internacional (2.13.2)
- Atos de Direito Comunitário (2.13.3)
- Lei (2.13.4)
- Costume (2.13.5)
- Jurisprudência (2.13.6)
- Doutrina (2.13.7)
- Princípios jurídicos (2.13.8)

2.13.2 Tratados e fontes do Direito Internacional


- O Direito Internacional tem a missão de aproximar os Estados que exercem o seu poder
político em grau de igualdade com os demais através da celebração de tratados internacionais
que os encarreguem de cumprir aquilo que neles foi estabelecido. Quando esses tratados de
Direito Internacional são celebrados, ficam regidos pelo princípio romano “pacta sunt
servanda”, que significa que os contratos devem ser cumpridos. Sendo assim, quando um
Estado manifesta a sua vontade e toma a livre decisão de ficar vinculado a um tratado, este
deve, a partir da assinatura do mesmo, cumprir as disposições normativas que foram
estipuladas. Sem embargo, existem ainda muitos Estados que, apesar de se terem comprometido
na cena internacional ao cumprimento de um determinado tratado, não o fazem, sendo esse o
caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem ou do Tratado de Paris. Para que o
cumprimento de tais tratados por parte dos Estados seja garantido, o Direito Internacional
necessita de ser transposto para o Direito Interno.

- O Direito Interno é o Ordenamento Jurídico Interno criado pelo Estado no exercício regular
do seu poder político, sendo este aplicável em determinado tempo e dentro do seu território.
Desta forma, os indivíduos e entes encontram-se subordinados ao poder político do Estado,
cabendo ainda mencionar que não é necessário transpor o Direito Interno.

 O Direito Comparado averigua que todos os Estados que pertencem à família jurídica
romano-germânica criaram disposições constitucionais sobre o procedimento de transposição
das normas de Direito Internacional para o seu Direito Interno (ex. artigo 8º da CRP). A partir
dessa transposição, às normas de Direito Internacional é-lhes reconhecida a força de lei.

2.13.3 Atos de Direito Supranacional


O Direito Supranacional é constituído por um sistema de coordenação, em grau de respeito das
soberanias dos Estados que marca o Direito Internacional, e de subordinação, em grau de
detenção da soberania do Estado sobre os entes e indivíduos que marca o Direito Interno,
situando-se entre estes dois Direitos (ex. União Europeia).

O Direito Supranacional é marcado, por um lado, pela transferência de parte da soberania dos
Estados-membros em favor da formação de uma União dos Estados e, por outro lado, pela

20
cessão parcial da soberania desses Estados-membros, encontrando-se estes subordinados às
normas que forem criadas pelos órgãos supranacionais, tendo o dever obrigatório de as cumprir.
Para além disso, cada Estado-membro possuiu o direito de representação, podendo-se e
devendo-se representar nos órgãos de criação do Direito (ex. Parlamento Europeu).

 O Direito Comparado percebe que existem mais semelhanças entre os indivíduos do que
diferenças, tendo sido construído o princípio do respeito entre os iguais que significa que não
importa as diferenças entre os indivíduos, mas importa sim o respeito que os indivíduos devem
ter uns pelos outros por serem iguais na condição de serem seres humanos. Este foi o principal
fundamento para a celebração do tratado de Schengen, um tratado de livre circulação de pessoas
no âmbito da União Europeia, o que possibilitou que os indivíduos percebessem que,
independentemente das suas diferenças, são todos iguais por serem seres humanos.

O Direito Supranacional distingue-se do Direito Internacional, de acordo com Dário Moura


Vicente:
- Ideal de solidariedade ou união entre os Estados-membros: Há mais semelhanças do que
diferenças entre os indivíduos, justificando-se a sua unificação, uma vez que são mais os
benefícios que os prejuízos que podem ser gerados no âmbito das suas relações.
- Transferência da soberania dos Estados-membros para os órgãos supranacionais: Os Estados-
membros transferem uma parcela da sua soberania aos órgãos supranacionais em favor da
formação de uma União dos Estados que cria normas de Direito Supranacional que, por sua vez,
devem ser obrigatoriamente cumpridas pelos Estados-membros.
- Primazia das normas de Direito Comunitário: O que se produz no âmbito do Direito
Supranacional é automaticamente incorporado no Direito Interno.

-» Conclusão: A lei é tão importante para a família jurídica romano-germânica que a sua força
pode ser evidenciada no Direito Internacional, no Direito Supranacional e no Direito Interno.
Todas essas leis são fundamentais para caracterizar um Estado enquanto pertencente da família
jurídica romano-germânica.

2.13.4 Lei
Para os sistemas-jurídicos da família jurídica romano-germânica, a principal fonte do Direito é a
lei e, dentre as leis, a lei que melhor manifesta a autoridade da lei é a Constituição. É ela que...
... cria os mecanismos para a transposição das normas de Direito Internacional;
... reconhece a autoridade das normas de Direito Supranacional;
... determinada a força e os critérios formais que cada lei tem no Direito Interno.

De acordo com Joaquim Gomes Canotilho, a Constituição moderna é...


1) ... uma ordem sistemática e racional plasmada num documento escrito...
2) ... onde são declaradas a consagração e garantia de um conjunto de direitos e liberdades...
3) ... e que estabelece o compromisso de limitação e organização do exercício do poder político.

2.13.4.1 O caráter jurídico da Constituição


Todas as Constituições dos sistemas jurídicos pertencentes à família jurídica romano-germânica
têm em comum a previsão e a garantia dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais é
tudo aquilo que a Constituição diz que é seu, tendo ou não raiz nos Direitos Humanos, o que
abre uma vasta gama de possibilidades (direitos políticos, direitos sociais, direitos humanos
constitucionais, direitos individuais, direitos coletivos, etc.).

2.13.4.2 O caráter político da Constituição


Todas as Constituições dos sistemas jurídicos pertencentes à família jurídica romano-germânica

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têm em comum regras fundamentais de organização e limitação do exercício do poder político,
sendo este baseado numa conceção de Democracia Representativa que se irá distinguir
consoante a definição que cada país constitucionalmente dá ao princípio democrático. A
expressão “democracia” já não corresponde com a definição dada pelos gregos (demo | kratos =
governo do povo), nem à definição de Abraham Lincoln (governo do povo, pelo povo e para o
povo). Hoje em dia percebe-se que é impossível que o povo, por si, governe o Estado e cuide da
coisa pública. Reconhece-se, contudo, que é fundamental que alguém o faça, ocupando-se dessa
tarefa os representantes eleitos pelo povo de acordo com um sistema de sufrágio
constitucionalmente consagrado, viabilizando deste modo a Democracia Representativa.

 O Direito Comparado não se preocupa em dar resposta à questão “Qual é o sistema de


sufrágio mais certo ou mais errado?” Preocupa-se sim em determinar as diferenças e
semelhanças que existem entre os sistemas de sufrágio constitucionalmente consagrados nos
sistemas jurídicos da família romano-germânica, trazendo igualmente elementos
comparatísticos que permitem aos sistemas-jurídicos da família jurídica romano-germânica
evoluírem.

2.13.4.3 A Constituição como principal lei do Estado


A Constituição é a lei fundamental do Estado, porque é ela que define o momento de criação do
Estado, garante os direitos e liberdades aos indivíduos e limita o poder político, determinando
os critérios formais e materiais para a criação das leis infraconstitucionais. Sendo assim, a
Constituição é o critério último de validade do ordenamento jurídico. Quer isto dizer que:

A lei é a principal fonte do Direito da família jurídica romano-germânica. A Constituição, que é


dentre todas as leis a mais importante, ocupa o vértice da pirâmide hierárquico-constitucional
das fontes do Direito e as leis infraconstitucionais ocupam um lugar inferior, sendo criadas
através dos critérios constitucionalmente previstos. Sendo assim, poder-se-á deduzir que...
... as leis infraconstitucionais que são conformes à Constituição são válidas e constitucionais;
... as leis infraconstitucionais que são contrárias à Constituição são inválidas e inconstitucionais.

Observa-se deste modo, por um lado, o fundamento para a fiscalização da constitucionalidade


das leis infraconstitucionais que tem como objetivo a proteção da Constituição e, por outro lado,
a obediência ao princípio da supremacia da Constituição, podendo-se definir como o princípio
que indica que todos, incluindo o Estado, são submissos à Constituição, estabelecendo-se dois
corolários:

1- Todas as Constituições dos Estados que pertencem à família jurídica romano-germânica


preveem mecanismos de fiscalização da constitucionalidade das leis infraconstitucionais e
respeitam o princípio da supremacia da Constituição, decorrendo desta relação de subordinação
o surgimento dos seguintes princípios constitucionais: o princípio democrático, o princípio do
Estado de Direito, o princípio da separação e limitação dos poderes, etc.
2- Para guardar o texto constitucional, as Constituições consagram tribunais constitucionais que
lhes são atribuídas competências e poderes específicos para guardá-la, fiscalizando a
constitucionalidade das leis infraconstitucionais.

2.13.5 Costume
A importância do costume como fonte do Direito é assumida de distinta maneira entre os países
que formam a família jurídica romano-germânica:

- Os países latinos não reconhecem a força dos costumes como fonte do Direito, muito devido
ao movimento de codificação que assentou o reconhecimento da lei como a principal fonte do

22
Direito, afastando os costumes. Sendo assim, para estes países, o costume não indica uma fonte
para a criação do Direito (imediata), mas é sim uma fonte de compreensão do Direito (mediata).
- Os países germânicos reconhecem a força dos costumes como fonte do Direito, muito devido
à formação dos costumes comunitários no âmbito da sua História, que se referem ao interesse de
todos pelo bem comum, como foi previamente analisado.

2.13.6 Jurisprudência
A jurisprudência, dentre as demais fontes do Direito da família jurídica romano-germânica é a
mais complexa e a de mais difícil perceção, existindo dois sentidos:

1. Sentido etimológico: A jurisprudência tem a sua origem etimológica na palavra latina “iuris
prudentia” em que “iuris” significa Direito e “prudentia”, dentre tantos outros significados,
significa ciência. Sendo assim, a jurisprudência significa ciência do Direito. Como ciência do
Direito, a jurisprudência é vista como a teoria que serviu de fundamento para a construção do
Direito.
2. Sentido prático: A jurisprudência significa os julgados dos tribunais. Este sentido, sendo o
mais comum para os países latinos pertencentes à família jurídica romano-germânica, pressupõe
a aplicação do Direito ou da lei pelos juízes ao proferirem as suas sentenças e ao resolverem os
processos. Contudo, é com base neste sentido que se levantam questões acerca dos limites da
liberdade de julgar dos juízes da família jurídica romano-germânica. Para tentar responder a
essa questão, existem três elementos de limitação:
1) Lei: Quando o juiz profere uma sentença, ele tem que identificar qual o fundamento na lei
que lhe garante a decisão que tomou.
2) Factos jurídicos (: acontecimento que gere consequências jurídicas): A
fundamentação da decisão tomada pelo juiz está ligada à análise dos factos jurídicos.
3) Provas: Ao juiz só lhe é possível verificar quais foram os factos jurídicos através das
provas.
-» Exemplo: “Homicídio”
1) Uma pessoa ao conduzir o seu automóvel, bêbedo, perde o controlo do mesmo, atropela uma
pessoa e mata-a.
2) Uma pessoa, sem ter consumido álcool, sofre um infarto ao conduzir o seu automóvel, perde
o controlo do mesmo, atropela uma pessoa e mata-a.
3) Uma pessoa, sem ter consumido álcool, ao conduzir o seu automóvel, reconhece o seu pior
inimigo que está a ultrapassar a rua, atropela-o e mata-o.
 Quando o juiz for julgar estes três casos, deduzirá que todos eles tiveram o mesmo resultado:
a morte pelo atropelamento (prova). Contudo, os factos jurídicos que geraram a morte
distinguem-se:
1) O condutor não quis o resultado mas assumiu o risco.
2) O condutor não quis o resultado e não assumiu o risco.
3) O condutor quis o resultado e teve a intenção de causar o dano.
Encarando as provas e os factos jurídicos, o juiz irá, com base no Código Penal (lei), tomar uma
decisão e proferir uma sentença que será diferente para todos os três casos.

 Para o Direito Comparado, o importante é como cada Estado reconhece a Equidade (:


tratamento igual dos casos assemelhados), esperando-se que, para os casos que requeiram a
aplicação da mesma lei e que tenham factos jurídicos parecidos e provas parecidas, a decisão
que for tomada pelo juiz seja a mesma ou semelhante.

Todos os países que formam a família jurídica romano-germânica preocupam-se em tornar a


Equidade numa realidade para a jurisprudência, existindo dois elementos que tentam resolver

23
esse problema:
1 – Jurisprudência (pre)dominante: A jurisprudência (pre)dominante é um modelo de decisão
que serve para preservar a Equidade e o respeito pela autoridade hierárquica entre os tribunais.
2 – Hierarquia entre os tribunais: Sempre que o juiz proferir uma sentença e é criado um
prejuízo para uma das partes, a parte prejudicada tem o direito ao recurso da decisão do juiz.
-» Organização judicial em Portugal: Tribunal Constitucional > Supremo Tribunal de
Justiça > Tribunais da Relação > Tribunais de instrução.

 O Direito Comparado questiona-se se a jurisprudência é de facto uma fonte do Direito, ou


seja, se, por um lado, a jurisprudência cria Direito/ se o juiz cria Direito quando julga ou, por
outro lado, se o Direito já está criado, tendo o juiz somente de identificar qual a lei que deve ser
aplicada diante dos factos jurídicos e das provas.

A resposta a esta pergunta está longe de ser consensual, existindo três pontos de vista distintos:
1) A jurisprudência não é uma fonte do Direito, uma vez que as decisões dos tribunais só
encontram aplicação no caso concreto. Ou seja, o juiz, ao aplicar a jurisprudência, só esclarece o
seu julgado, tendo o Direito sido anteriormente criado.
2) Por via de regra, a jurisprudência não é reconhecida como fonte do Direito, servindo somente
de orientação para a aplicação do Direito, mas, em certas matérias, pode ser reconhecida como
fonte do Direito, uma vez que interpreta, desenvolve ou completa normas legais ou preenche as
suas lacunas.
3) A jurisprudência assume o valor de costume jurisprudencial, criando-se o hábito de os
tribunais aplicarem a jurisprudência aos casos assemelhados.

2.13.6.1 As características da jurisprudência


São três as características da jurisprudência:
1. Como a jurisprudência está ligada à busca da Equidade, a sua intenção é de permitir que os
casos semelhantes tenham um julgamento semelhante.
2. Nas ordens jurídicas não existem precedentes judiciais obrigatórios. O que são precedentes
judiciais obrigatórios:
-» Precedente judicial… : A palavra “precedente” é uma palavra adaptada da expressão
“stare decisis” do sistema jurídico do Common Law que significa decisão estável, i.e.,
jurisprudência que já foi uniformizada pelo tribunal que lhe reconheceu autoridade.
-» …obrigatório: Para a família jurídica romano-germânica, o único Direito obrigatório é o
criado na lei, não reconhecendo força obrigatória a esses precedentes.
3. A jurisprudência esclarece o Direito vigente, desenvolvendo-o e fortalecendo a interpretação
e a aplicação das normas jurídicas.

2.13.7 Doutrina
A doutrina tem, para os países pertencentes à família jurídica romano-germânica, força para
desenvolver o Direito, dando a conhecer e explicando o conteúdo da lei e podendo propor a
alteração de quaisquer leis. Mas a doutrina não tem força para criar Direito, sendo somente uma
fonte mediata do Direito, sendo este criado somente pela lei.

2.13.8 Princípios jurídicos


O reconhecimento dos princípios jurídicos como fontes mediatas do Direito aparece pela
necessidade de regressar à origem do Direito atual e de se resgatar os princípios que serviram de
fundamento para a sua criação de forma a esclarecer e desenvolver o Direito Contemporâneo.
Porém, os princípios jurídicos não são imediatamente aplicáveis aos casos concretos,
necessitando de serem, para o efeito, regulamentados pela lei. Mas nem por isso devem ser

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deixados de ser considerados como elementos do Direito Positivo, dotados de valor próprio e,
como tal, suscetíveis para serem utilizados como base para a fundamentação e orientação nas
decisões jurídicas. São exemplos:
- Pacta sunt servanda: Os contratos são para ser cumpridos (princípio da obrigatoriedade)
- Honeste vivere + neminem laedere -» bonum facere (princípio da boa-fé)
- Nullum crimen, nulla poena, sine lege -» Não existe crime sem lei anterior que o defina.
- Nemo iudex sine actore -» Ninguém é juiz sem que o autor da causa o provoque, pedindo a
proteção do Estado.

2.14 A descoberta do Direito aplicável


A descoberta do Direito aplicável é reconduzida à descoberta de uma norma contida no sistema
legal, descoberta essa da qual está encarregue quem tem jurisdição.

No âmbito da família jurídica romano-germânica, a jurisdição é constituída por três elementos:


1. A jurisdição é o poder e o dever que o Estado, ou mais precisamente, que o juiz detém.
2. A jurisdição tem o objetivo de solucionar os litígios (: conflito de interesses que chegou ao
poder judiciário) que os indivíduos, por si, são incapazes de fazer e, com isso, resguardar a
ordem jurídica e a autoridade da lei.
3. A jurisdição está sempre em busca de aplicar o Direito ao caso concreto, ou seja, de dar a
cada um o que é seu e, com isso, fazer justiça.

Esta definição de jurisdição não se mostra, todavia, de fácil aplicação na prática, uma vez que as
leis são criadas para resolver os problemas jurídicos na teoria. O juiz, quando acontece o caso
concreto, terá de partir dessa teoria e adaptar a solução à prática, para isso tendo a liberdade de
julgar. Porém, essa liberdade encara-se com três elementos de limitação, como foi já analisado:
1) Lei: O juiz tem o dever de identificar na Ordem Jurídica do Estado a lei aplicável ao caso
concreto.
2) Factos jurídicos: Tendo identificado a lei aplicável ao caso concreto, o juiz tem de
justificar a sua escolha, tendo em conta os factos jurídicos.
3) Provas: Os factos jurídicos devem ser determinados pelas provas.

2.14.1 A importância da decisão judicial


Ainda que a liberdade de jurisdição do juiz esteja limitada, essa sua tarefa ainda assim é difícil
porque não existe uma fórmula através da qual o juiz possa identificar a lei que seja diretamente
aplicável ao caso concreto. Para resolver esta questão, aplica-se hoje em dia o método dedutivo
proposto por Aristóteles, através do qual se parte de uma premissa maior para se chegar a uma
premissa menor até se chegar a uma conclusão deduzida dessas premissas que seja verídica, ao
que Aristóteles definiu como “silogismo” (: exercício técnico do logos/da razão).

Silogismo aristotélico Cada premissa tem dois elementos:


I Premissa maior: 1º homem + 2º mortal
I Premissa maior -» Todo o homem é mortal. II Premissa menor: 1º Sócrates + 2º homem
II Premissa menor -» Sócrates é homem.
Cruzamento de elementos:
III Conclusão -» Logo, Sócrates é mortal.  I 1º + II 2º = Homem é homem.
-» Afirmação que se autojustifica.
 II 1º + I 2º = Sócrates é mortal.
-» Criação de uma nova afirmação.

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Como é que o silogismo aristotélico adaptado ao silogismo processual dos dias atuais?
Primeiro, cabe definir o que é o processo. O processo para os países pertencentes da família
jurídica romano-germânica é um instrumento da jurisdição. É assim que, através do processo, o
juiz exerce a jurisdição e resolve os litígios. Contudo, como foi observado, a liberdade de julgar
do juiz está limitada pelos três elementos de limitação (lei, factos jurídicos e provas), sendo
estes mesmos elementos incorporados no silogismo, criando para o juiz um método que o
permita obter uma resolução científica do litígio que esteja concorde com o seu dever de
descobrir na Ordem Jurídica a lei aplicável ao caso concreto, diante da apuração dos factos
jurídicos demonstrados pelas provas.
Silogismo processual
I Premissa maior -» Dentre de todas as normas jurídicas aplicáveis, escolher aquela que
deve ser aplicada ao caso concreto.
II Premissa menor -» Identificar, diante dos factos jurídicos demonstrados pelas provas, a
norma jurídica que deve ser aplicada ao caso concreto
III Conclusão -» Norma jurídica aplicável no âmbito dos factos jurídicos demonstradas
pelas provas

Ainda assim, o silogismo processual não é um método exato, através do qual o juiz identifica a
norma jurídica diretamente aplicável ao caso concreto.

2.14.2 Interpretação da lei


É no âmbito do silogismo processual que o juiz escolhe, dentre todas as normas jurídicas
existentes na Ordem Jurídica, a norma jurídica diretamente aplicável aos casos concretos.
Contudo, depara-se com dois problemas:
-» Como é o juiz, descobrindo a norma jurídica que deve ser diretamente aplicável ao casos
concreto, toma a mesma decisão para os casos semelhantes?
-» Como é que deve ser criado o método legislativo que ajude ao silogismo processual a tratar
os casos iguais identicamente?

Propostas de resolução dos problemas indicados:


- Uniformização da jurisprudência
- Determinação dos elementos de interpretação da lei

2.14.2.1 Artigo 9º do Código Civil


O artigo 9º do Código Civil indica dois elementos que devem ser analisados conjuntamente:
1) Letra da lei -» elemento literal (: valor gramatical das palavras)
-» Problemas: Cada língua atribui um significado e valor específico às suas palavras que
diferem entre si.
2) Espírito da lei -» elemento lógico (elemento histórico (: momento em que a lei foi criada),
elemento teleológico (: razão pela qual a lei foi elaborada) e elemento sistemático (: lei existe
conjuntamente com outras leis que formam um sistema))
Importa igualmente ter em mente a importância que a Constituição e as normas de Direito
Supranacional têm para a interpretação da lei.

2.14.3 Integração da lei


Existe ainda a possibilidade de o juiz não encontrar na Ordem Jurídica a norma que deve ser
diretamente aplicada ao caso concreto, existindo uma lacuna na lei que deve ser preenchida

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através da integração da lei para definir a norma jurídica aplicável ao caso concreto ou a
interpretação a dar à norma jurídica que naquele momento existe.

2.14.3.1 Artigo 10º do Código Civil


Portugal e França:
O artigo 10º do Código Civil faz especificamente referência à analogia, sendo um elemento de
integração da lei.
- n. 1: A analogia adapta a lei a um caso que não tenha sido diretamente previsto na lei.
- n. 2: Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da
regulamentação do caso previsto na lei.
- n. 3: Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete
criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema. Decorre deste artigo os seguintes
corolários:
1. O juiz tem o dever de proferir uma sentença e resolver o caso concreto, não podendo
alegar que há uma lacuna na lei para não o fazer.
2. Quando não é possível aplicar o método analógico, o juiz pode criar uma “norma
hipotética do caso concreto”. Assim, o juiz define a solução jurídica, levando em consideração
o que provavelmente seria a lei se ela realmente tivesse sido criada. Contudo, esta norma
hipotética só tem força de lei para o caso concreto, não podendo ser aplicada na generalidade.

Na Alemanha:
Devido à equiparação do costume à lei, a Alemanha considera o costume como elemento de
integração da lei, antes de ser aplicada a analogia.

2.15 A organização judiciária e sistemas de recurso


Para todos os países que pertencem à família jurídica romano-germânica, por um lado, têm uma
estrutura complexa de tribunais que têm o dever de proteger a lei. Protege-se a lei, conferindo às
partes o direito de pedir ao juiz a solução do litígio e de pedir aos tribunais de recurso a revisão
das decisões. Por outro lado, todos os países pertencentes à família jurídica romano-germânica
estabelecem uma hierarquia entre esses tribunais que pressuponha aos tribunais de nível
superior o poder de fixar a jurisprudência que contribua para a proteção da lei.

2.15.1 Organização Judiciária Portuguesa


A organização judiciária portuguesa é constituída por quatro níveis:

1) Tribunal Constitucional: Órgão superior da organização judiciária portuguesa em matéria


constitucional
2) Tribunais comuns: Tribunais divididos em três instâncias:
- Primeira instância  Tribunais de comarca/ de instrução
- Segunda instância  Tribunais de Relação (Coimbra, Évora, Guimarães, Lisboa e Porto)
com competência para julgar recursos
- Supremo Tribunal de Justiça com competência para julgar recursos e definir a
jurisprudência uniforme para todo o território nacional
3) Tribunais especiais: Tribunais administrativos e fiscais, donde destaca-se o papel do
Supremo Tribunal Administrativo com competência para julgar recursos administrativos
4) Tribunal de Contas: Órgão responsável pelo controlo e fiscalização dos gastos públicos

2.15.2 Organização Judiciária Francesa


A organização judiciária francesa deve muito à sua construção histórica. Por um lado, quando
se encerra o período do Ancien Régime, percebe-se a ausência de um Parlamento. O que existia

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era uma estrutura própria que nenhum país tinha, os estados gerais, que era um órgão de
consulta para o Rei. Por outro lado, percebe-se que a centralização do poder para controlar a
coisa pública no Rei (L’État, c’est moi!).
Com a vitória da Revolução Francesa mantém-se o dever de reconstruir um Noveau Régime
constitucional que, por um lado, respeitasse a necessidade da criação de um Parlamento que
criasse leis (Assembleia Nacional) e, por outro lado, uma estrutura jurisdicional que
contemplasse os tribunais administrativos. Sendo assim, a jurisdição na ordem interna francesa
divide-se em jurisdição judiciária (competência civil, comercial, social e penal) e jurisdição
administrativa (competência administrativa).

Com a dualidade entre os tribunais jurisdicionais judiciais e os tribunais jurisdicionais


administrativos, existe uma tríplice divisão entre:
1) Primeira instância: Tribunais divididos por matérias que definem a sua competência
material:
Matéria civil: Tribunais de comarca divididos em:
-» Tribunais inferiores (Tribunaux d’instance)  Tribunais que julgam
-» Tribunais superiores (Tribunaux de grande instance)  Tribunais que julgam os
recursos
Matéria comercial: Tribunais de comércio (Tribunaux de commerce)
Matéria de relações de trabalho: Tribunais de trabalho (Conseils de prud d’hommes)
Matéria penal e contravencional: Tribunais de polícia (Tribunaux de police), tribunais
correcionais (Tribunaux correctionels e cours d’assises)
2) Segunda instância: Tribunais de apelação (Cours d’appel) com competência para julgar
recursos
3) Corte/ Tribunal de Cassação (Cour de cassation): Órgão superior da organização judiciária
que desempenha essencialmente duas funções:
1. Integrar nacionalmente o Direito infraconstitucional na ordem judiciária francesa
2. Proteger juridicamente a Constituição Francesa, dever este desempenhado pelo Conselho
Constitucional

2.15.3 Organização Judiciária Alemã


A Alemanha é, ao contrário de Portugal e da Franca (ambos Estados unitários), uma federação,
existindo uma divisão entre as competências legislativas e judiciais entre as Länder e a
Federação.

A organização judiciária alemã prevê Tribunais Constitucionais em nível estadual, existindo


um Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) em nível federal

Para além dos Tribunais Constitucionais, o sistema jurídico alemão tem cinco ordens de
jurisdição divididos em função da sua competência em razão da matéria: ordinária,
administrativa, financeira, laboral e social.

A jurisdição ordinária está organizada em três instâncias, sendo que as primeiras duas
pertencem às Länder e a última instância possuiu natureza federal:
1) Primeira instância: Tribunais cantonais (Amtsgerichte) e Tribunais regionais
(Landgerichte)
2) Segunda instância: Tribunal Regional Superior (Oberlandesgerichte) com competência
para julgar os recursos
3) Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof) com competência para determinar a
jurisprudência uniforme infraconstitucional

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3. A família jurídica de Common Law
Até ao século XVIII, a história do Common Law confunde-se com a história do Direito Inglês.
Será a partir da independência dos Estados Unidos da América que o Common Law perde a sua
pureza devido à criação de uma base constitucional e jurídica própria dos EUA que, embora
tenha a sua origem no Common Law, apresenta características diferentes deste.

3.1 A formação do Direito Inglês


3.1.1 Características singulares do Direito Inglês
A Britannia, ao contrário de muitos territórios europeus continentais, não foi inteiramente
submetida ao domínio político do Império Romano, uma vez que os romanos somente
conseguiram entrar no terço sul da Ilha, muito devendo à forte resistência por parte dos povos
locais designados por “bárbaros do norte” e, a partir do século VIII, de dominadores como
foram, por exemplo, os vikings.

Embora os britânicos conhecessem o sistema de dominação romana baseada na dominação


política pela força para a manutenção da paz e a imposição do sistema jurídico romano (pax
romanorum), não foram sujeitos a ele. Sendo assim, o Common Law tem de ser analisado tendo
em conta os seguintes dois elementos:
- O Direito Inglês é fruto da sua História, mais precisamente da relação dos povos assentes
na Britannia, não tendo sido imposto pelos romanos. Portanto, o Direito Inglês foi e é um
sistema em constante construção e desenvolvimento.
- No Direito Inglês não há um sistema de leis legisladas, ou seja, não existe uma Assembleia
que, representando a vontade do Rei ou do povo, cria as leis. Pelo contrário, a construção das
leis tem lugar de baixo para cima, i.e., da base social para o Estado através da transformação dos
costumes em leis pela interpretação dos tribunais.

Tendo em conta a importância da História da formação do Common Law, deve-se proceder à


sua análise, sendo constituída por quatro fases:

3.1.2 Período anglo-saxónico (409 DC até 1066 DC)


O período anglo-saxónico é o período de formação dos primeiros fundamentos do Common
Law, compreendido entre a tentativa romana de dominação da Britannia a partir do século V até
à batalha de Hastings no século XI.

É durante esse período de tempo que se verificam as seguintes ocorrências:


- tensões entre as tribos e os povos na Ilha;
- a expulsão dos romanos do terço sul da Ilha a partir do século V que, para além de não
conseguirem avançar para conquistar o resto da Britannia, tiveram de se restruturar militarmente
para conter a invasão dos muçulmanos, com o seu início no século VI, e as insurgências dos
povos que estavam sobre o seu domínio político;
- o movimento viking com o seu início no século VIII;
- a tentativa de povos recém-libertados do domínio do Império Romano de invadir a Ilha. Um
desses povos eram os normandos oriundos de França que invadem a Britannia e vencem a
batalha de Hastings no ano de 1066 sobre os povos locais, i.e., os anglos, os saxões e os britões.

1) Não existia Direito na Britannia? Sim, existia Direito, cuja base era formada pelos variados
costumes locais. Existiam costumes bárbaros dos povos locais, costumes violentos dos
colonizadores vikings, costumes romanos devido à tentativa de introdução do Direito Romano e
costumes religiosos devido à implantação do Direito Canónico na Britannia.

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2) Mas, tendo em conta a variada base costumeira na Ilha, como é que o seu Direito se
estruturava? Devido à coexistência dos variados costumes, o que se verificava eram relações
tensas entre as tribos e os povos na Ilha. Porém, essas tensões iriam terminar com a campanha
normanda na Inglaterra.

3.1.3 Período de formação do Common Law (1066 DC até 1485 DC)


Quando os normandos invadem a Britannia e vencem a batalha de Hastings, impõem os seus
costumes sobre os povos dominados e adotam um sistema de dominação para uniformizar o
controlo militar e político da Britannia. Contudo, eles obtêm uma rejeição por parte dos povos
dominados. A estrutura escocesa, por exemplo, não se baseava no individualismo dos
normandos, mas antes nos valores coletivos da família. Por conseguinte, quando um normando
se relacionava com um escocês, e como os valores culturais assentes nos seus costumes eram
diferentes, gerava-se um conflito entre os dois.
-» Exemplo: William Wallace foi um dos cultores/amantes da liberdade dos costumes de
raiz familiar escoceses na relação com os costumes de raiz individual inglesa/normanda. Um
ponto, no entanto, aproximava ambos os sistemas jurídicos: a liberdade. Contudo, o legal
English diferencia as palavras “liberty” e “freedom” que na língua portuguesa são traduzidas
para uma mesma palavra: liberdade.
- A palavra “liberty” para o sistema jurídico do Common Law é considerada como o
principal elemento da sua origem e o principal bem dos indivíduos (o poder de tudo fazer).
Tanto é assim que a partir do século XVIII, a “liberty” é definida na Constituição Norte-
Americana como “blessing”, ou seja como bênção. Quer isto dizer que a liberdade é
considerada como o principal bem que os indivíduos podem ter quando nascem e que deve ser
mantido a seu favor para sempre.
- A palavra “freedom” caracteriza a liberdade individual fundamental dos indivíduos.
 O Common Law, na sua fase de criação, devia sempre preocupar-se em garantir a “liberty”,
ou seja, o poder de tudo fazer, definindo e permitindo a “freedom”, ou seja, a liberdade de
escolha de cada indivíduo.
1) Mas quem é que define a liberdade? O Direito.
2) Mas que Direito? O Direito Inglês ou o Direito Escocês? Percebe-se que deve existir um
único Direito Comum a todos os povos na Inglaterra e a todos os povos por ela dominados, o
Common Law.
3) Quem define o Direito Comum? Os valores normandos? Os valores escoceses? Os valores
irlandeses? É então que se cria uma estrutura judicial que tinha três missões:
- Descobrir qual é a origem da tensão da formação do Direito;
- Agir em nome do Rei e quando os interessados lhes pedissem o esclarecimento sobre o
Direito aplicável. Esse Direito era definido num writ (: ordem real);
- Tomar a decisão por jurados (: pessoas escolhidas como representantes do povo).
A criação dos tribunais vai dar origem a uma nova ordem judicial que supera rapidamente os
costumes locais como fonte do Direito, sendo estes substituídos pela jurisprudência (case law).

Permite-se observar duas questões fundamentais:


1. Na Europa Ocidental, as universidades procederam à reconstrução do Direito Romano a
partir da descoberta do livro I do Digesto de Justiniano com o objetivo de criar um ius commune
a todos os países recém-libertados do domínio do Império Romano, superando o seu ius
municipale. Já na Inglaterra, apesar de haver a necessidade da criação de um Direito Comum,
não se fê-lo através da reconstrução do Direito Romano pelas universidades, uma vez que este
nunca chegou a ser incorporado na Ilha, mas sim através da atuação dos tribunais. Daí a
importância da jurisprudência como fonte do Direito para o sistema jurídico do Common Law.

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2. O Direito para a família jurídica romano-germânica é representado por um triângulo
em que a base está em baixo e a vértice em cima. Na vértice encontra-se a instituição político-
jurídica que cria a lei que é imposta por coação e coerção a toda a sociedade que forma a base
do triângulo. Já o Direito para a família jurídica do Common Law é representado por um
triângulo em que a base está em cima e a vértice em baixo. Enquanto que na vértice se encontra
o Estado, na base encontra-se o costume que define os critérios com base nos quais os juízes
julguem e para que a sua decisão forme o Direito.

Órgão legislativo

Sociedade Estado
Família jurídica romano-germânica Família jurídica do Common Law

Como o Direito nasce na sociedade e é transposto ao Estado, os indivíduos são considerados


como a fonte direta de criação do Direito e, portanto, têm de respeitar o que criaram. Quando,
pelo contrário, o Direito é criado por um órgão legislativo imposto ao indivíduo, este nem
sempre se vê representado na lei. O Common Law, sendo assim, não foi um ato de autoridade,
mas sim um ato de iniciativa/liberdade/escolha dos indivíduos.

3.1.3.1 A estrutura judiciária, a Magna Charta Libertatum e o Habeas Corpus Act


Para que os indivíduos pudessem pedir a criação de Direito, era necessário que existisse uma
estrutura judiciária que tratasse de o fazer. Foi então institucionalizado a Curia Regis que mais
tarde iria ser denominada King’s Council. A Curia Regis era um órgão de consulta do Rei,
formado por nobres, que concentrava em si os poderes executivo, legislativo e jurisdicional.
Este órgão iria ulteriormente dar origem ao Parlamento.

Foi exatamente no âmbito deste tribunal que se formalizou a Magna Charta Libertatum,
tendo este contrato sido celebrado no ano de 1215 entre os nobres ingleses e o então Rei João
Sem Terra. O facto de este Rei ter assumindo o trono da Inglaterra, uma vez que o seu irmão e
legítimo Rei Ricardo Coração de Leão estava em plena campanha militar no âmbito das
Cruzadas, não foi bem interpretado pelos nobres ingleses reunidos na Curia Regis que não
reconheciam a autoridade, a legitimidade e o poder de João, exigindo desta forma que a sua
liberdade fosse respeitada. Foi então que João Sem Terra, sem autoridade e sem legitimidade
assinou a Magna Charta, tendo sido ainda necessário de ser reconhecida pelo Papa. Este,
verificando que o contrato não havia sido assinado pelo legítimo Rei de Inglaterra, anulou-o.
Seria dez anos depois, em 1225, que a Magna Charta Libertatum, para além de reeditada, seria
assinada por alguém que tinha autoridade, legitimidade e poder para tal. Já em 1232 procedeu-
se a uma revisão da Magna Charta Libertatum para que muitos dos direitos ali consagrados
fossem limitados. Por fim, no ano de 1297, a Magna Charta Libertatum foi reconstruída,
retornando à sua redação de 1215.

Por orientação da Curia Regis foram criados os três primeiros tribunais ingleses que no ano de
1300 se instalaram em Westminster, sendo a partir daí denominados de Tribunais de
Westminster. São eles:
- Court of Exchequer (Tribunal do Tesouro Real) com competência fiscal

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- Court of Common Pleas (Tribunal dos Pleitos Comuns) com competência para resolver
litígios sobre terras
- Court of King’s Bench (Tribunal do Banco do Rei) com competência criminal

Devido à criação gradual e sucessiva da comune ley, antecessora do Common Law, por parte
atuação dos tribunais e da adaptação interna das regras consuetudinárias, do Direito Romano e
do Direito Canónico que as tensões entre os diversos povos se acalmaram. A criação deste
Direito Comum foi orientado por dois princípios:
1) Razoabilidade: Considerava-se razoável aquilo que está concorde à liberdade e à freedom.
2) Bom senso: Considerava-se que se tinha de levar em consideração as particularidades dos
costumes dos países que se relacionavam com a Inglaterra.

Seria igualmente durante este período que se criou o Habeas Corpus Act (: a regra de deixar o
corpo livre). Esta regra foi definida a partir de uma sequência de julgamentos acontecidos no
condado de Clarendon num precedente (: jurisprudência uniformizada pelo tribunal que lhe
reconhece autoridade), ficando por isso conhecido como o “Clarendon’s case”.

Neste período de formação do Common Law, os indivíduos ingleses dirigiam-se aos tribunais
para pedir a criação do Direito. Para tal tinham de apresentar esse seu pedido ao Chancellor (:
conselheiro do Rei) que encaminhava o caso a um dos três tribunais em razão da matéria. A
matéria era então julgada e formava-se a decisão judicial, o writ. Esse writ era posteriormente
enviado e entregue ao Sheriff que representava o juiz no seu condado (count). Ora se o juiz
representava o Rei e se o Sheriff era o rei naquele condado, este tinha, por conseguinte, a
autoridade policial naquele local. Acontece que o Sheriff, com o poder todo que foi era
atribuído, passou a tirar proveito da condição social dos britânicos e a satisfazer os seus
interesses pessoais. Como é que fazia isso? O Sheriff, como foi mencionado, quando recebia o
writ, teria de se dirigir à praça pública e lê-lo ao povo para que estes ficassem a conhecer o novo
Direito que havia sido criado. Contudo, naquela época poucas eram as pessoas que sabiam ler e
escrever. Sendo assim, aquilo que havia fixado no writ, não correspondia com aquilo que o
Sheriff anunciava…
 O “Clarendon’s case”, observando toda essa situação, percebeu a arbitrariedade na atuação
dos Sheriffs e definiu como precedente jurisprudencial a regra de que sempre que um nobre
fosse preso ou acusado por um Sheriff deveria o mais breve possível ser apresentado ao Rei. Se
o Sheriff não cumprisse esta ordem, o acusado tinha direito a ser posto em liberdade.
-» Exemplo: A lenda de Robin Hood demonstra bem o poder ilegítimo que os Sheriffs
tinham. Na realidade, não existiu um Robin Hood, mas sim quatro Robins. Esses quatro nobres,
que tinham nomes parecidos e comuns na época, tinham problemas com o Sheriff de
Nottingham porque este lhes tinha arbitrariamente e ilegalmente confiscado a propriedade das
suas terras para seu benefício.

3.1.4 Período de reconstrução do Common Law (1485 DC até 1873 DC)


Quando se percebeu que no procedimento adotado pelos tribunais para a formação do Direito
Inglês haviam-se perdido interesses individuais, a antiga Curia Regis, agora denominada King’s
Council, começou a dar mais atenção ao Direito criado pelos tribunais e percebeu que quem
criava o Direito, controlava o poder. É assim que nasce para o Common Law o reign of law que
pressupõe a reconstrução do sistema do Common Law para que se fortalecesse a criação e se
trouxesse licitude ao cumprimento do Direito.

Nesse período, o Direito Canónico era muito forte na Inglaterra que tem uma característica de
opressão e de severidade. O Rei Henrique VIII, insatisfeito com um sacramento católico em

32
particular, o casamento, e com a regra “o que Deus uniu, o Homem não separa”, porque gostava
de se casar e de se separar das suas esposas, acabando sempre por matá-las e de romper relações
diplomáticas e por entrar em guerras com os demais países, uma vez que as rainhas eram filhas
de Reis, resolve o problema, criando uma religião para ele que lhe permitisse casar as vezes que
quisesse, a Igreja Anglicana, de raiz cristã, mas com valores protestantes. Instaura-se assim na
Inglaterra o Anglicanismo, o que iria desencadear uma rutura no Parlamento. Estando o
Parlamento dividido, este passou a deixar de ter o controlo sobre as decisões dos tribunais que
havia constituído quando ainda era a Curia Regis. O Direito Comum foi posto de lado, passando
a ser a grande preocupação do Parlamento decidir qual seria a verdadeira religião do Estado.

Para que o Direito se mantivesse em constante desenvolvimento, exigiu-se que o Parlamento no


controlo dos tribunais, admitisse uma variação do Direito para que este não ficasse prejudicado
pelas discussões existentes naquele período. É então que se cria a Equity com o objetivo de
adaptar o Direito Comum à nova realidade inglesa.

Chega-se ao ano de 1688. Nesse ano, D. Carlos II, Rei católico, expulsa do Parlamento os
parlamentares protestantes, embora estes terem sido legitimamente eleitos. O Parlamento passa
a ser formado única e exclusivamente por católicos e os protestantes, perseguidos, são exilados
na Holanda. Lá foram recebidos por Guilherme II que era casado com Maria I, sucessora
protestante do trono inglês. É então que os parlamentares protestantes convencem Guilherme II
a invadir a Inglaterra, depor o Rei católico e instaurar uma nova dinastia protestante, coroando
Maria I. Ao início Guilherme II não quis envolver-se numa guerra política contra a Inglaterra.
Contudo, os protestantes apresentaram-lhe um argumento suficientemente válido para o
convencer: “Invada a Inglaterra, porque não terá resistência! Uma vez que o Exército Inglês é
financiado por nobres protestantes e esses estão exilados na Holanda, será uma invasão
pacífica!” E assim o foi. Maria I foi coroada, a Revolução Gloriosa terminou e o Parlamento
aprova a primeira declaração de direitos humanos, a Carta de Direitos Inglesa, ou the English
Bill of Rights, reafirmando a Magna Charta Libertatum e o Habeas Corpus Act e estendendo os
direitos, não apenas aos nobres, mas também aos súbditos. É então que se cria uma tríplice
previsão que vai recompor o Common Law e regulamentar a Equity:
1) Submissão do Rei ao Common Law
2) Inexistência de uma distinção entre direitos públicos e Direto privado. O que pertence ao
individuo pertence ao individuo, incluindo o Estado. Todos são responsáveis pelo seu e pelo
todo. Todos têm o dever de contribuir como deve ser, pelo bem comum.
3) Proteção e satisfação das liberdades individuais sobre os poderes do Estado

Maria I é, no seguimento do término da Revolução Gloriosa de 1688, coroada Rainha de


Inglaterra. Guilherme II volta à Holanda e sua esposa fica a governar a Inglaterra, acabando por
não aguentar. Quando Maria I pretende renunciar ao trono, é convencida pelos protestantes a
assinar em 1701 um termo, o Act of Settlement, reconhecendo-se que, desde então, a sucessão
ao trono da Inglaterra devia obedecer certos requisitos que são até hoje aplicados:
1) Devido à insuficiência do sistema baseado no procedimento originário, cria-se, para além
dos três tribunais, a Court of Chancery (Tribunais da Chancelaria) que define a aplicação
adaptativa das regras do Common Law às particularidades próprias do caso concreto.
2) O writ avança, por força do Direito Canónico, a ser escrito, inquisitório e secreto,
passando o julgamento a ser feito por um juiz. Porém, esse sistema não dura muito. Os ingleses
demonstram-se contrários a esse sistema e afastam-se desse tipo de julgamento, preferindo uma
solução sem a necessidade de recorrer aos tribunais, baseada no princípio da liberty: “Só tenho a
Equity se quiser que o juiz resolva o caso. Como não acredito na Equity, resolvo eu o caso.”

33
3) A Equity é substituída por um sistema mais estável, criado pela uniformização das
decisões dos tribunais tomadas pela Equity formadas em precedentes, o rule of precedent, que
será posteriormente transformado em case law.
4) Enquanto a Equity passa a constituir o Direito prático, o Common Law passa a constituir
o Direito teórico. Enquanto o Common Law vai-se construindo conforme a formação do Direito
Inglês ao longo da sua história, a Equity atualiza esse Direito, adaptando-o à atualidade.
-» Exemplo: O “Clarendon’s case” ainda é aplicado, mas adaptado a casos atuais. “Os
tempos passam, mas os vilões continuam os mesmos”.
5) Instaura-se um sistema que até hoje é aplicado no Common Law, salvo nos Estados
Unidos da América: o sistema dualista entre o statutory law (Common Law) ligado à lei e o
case law (Equity, rule of precedent) ligado à jurisprudência.

3.1.5 Período moderno (1873 DC até a atualidade)


Chegando ao século XIX, ao século do Iluminismo, percebe-se a necessidade de o Common
Law ter valores iluministas.

A partir dos Judicature Acts entre 1873 e 1875, procedeu-se a remodelação do Common Law e
do Direito Inglês. A partir de então, os Acts of Parliament, ou seja as regras ditadas pelo
Parlamento em nível de Common Law e pelos tribunais vinculados ao Parlamento em nível de
Equity passam a ter uma nova conceção. Fortaleceu-se a legislação (statutory law) como Direito
teórico e a jurisprudência (case law) como Direito prático.

Em 2005 foi criada a Supreme Court of United Kingdom (Tribunal Supremo do Reino Unido)
que seria um Tribunal Constitucional para o Reino Unido. Essa ideia foi negociada com a União
Europeia, tendo sido exigida a existência de uma estrutura que permitisse transpor as regras do
Direito Supranacional da União Europeia para o Ordenamento Jurídico Inglês e a existência de
tribunais que dialogassem com os Tribunais Constitucionais da União Europeia. Só que a
Inglaterra não tem uma Constituição escrita, mas antes um corpo constitucional no qual consta,
a título de exemplo, a Magna Charta Libertatum de 1215, o Habeas Corpus Act, the English Bill
of Rights de 1689, o Act of Settlement de 1701, até o Reform Act de 2005. Uma vez que esta
estrutura é considerava pelos ingleses demasiado positivista para uma tradição baseada nos
costumes, o Parlamento Inglês já chegou a discutir a dissolução desse mesmo tribunal.

3.2 Fontes do Direito


A principal fonte do Direito no sistema jurídico inglês, na linha tradicional, tem sido e continua
a ser considerada a jurisprudência (case law) no sentido de ser o modo de produção e de
revelação do Direito desde o momento histórico em que os costumes foram superados pela
jurisprudência. No entanto, na linha hierárquica, a lei foi sempre a primeira das fontes do
Direito, visto que tem eficácia revogatória em relação ao precedente jurisprudencial, ou seja, a
lei pode revogar um precedente, mas um precedente não pode revogar uma lei. Não deve ser
esquecida a mudança na estrutura de poder ocorrida a partir da Revolução Gloriosa de 1688
com o fortalecimento do Parlamento Inglês, tornando-se o guardião da produção do Direito na
Inglaterra, centralizando o poder de definir o Direito Inglês e de criar o statutory law.

As fontes do Direito no sistema jurídico inglês dividem-se em:


1) Fontes de Direito principais:
- Jurisprudência (case law ou Common Law)
- Lei (statute, statutory law, legislation)

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2) Fontes de Direito subsidiárias:
- Costume (costum)
- Doutrina (doctrine, books of authority)

3.2.1 Fontes de Direito principais


3.2.1.1 Jurisprudência
A stare decisis (: decisão estável) pretende ser um princípio que vai criar uma fórmula de
julgamento para os casos concretos futuros, ou seja, semelhantemente os casos semelhantes. A
stare decisis constitui-se como força jurídica a partir da reforma no século XIX, quando se
formou a doctrine of binding precedent (: doutrina do precedente vinculativo). Então a partir
do rule of precedent, a Equity reconstruída, conferiu ao seu precedente a força de cumprimento
obrigatório por todos os indivíduos e por todos os tribunais relacionados ao tribunal que decidiu
a stare decisis.

A stare decisis no Common Law tem quatro partes:


1. Factos: Os factos são o que deve ser esclarecido para a solução do litígio.
2. Obter dicta: A obter dicta são statements by the way (afirmações a propósito), ou seja, todos
os elementos que levaram o juiz a pensar/refletir sobre o problema jurídico -» pensamento do
juiz. A obter dicta não é vinculante, mas tem uma força meramente persuasiva.
3. Ratio decidendi: A ratio decidendi é a conclusão do juiz daquilo que pensou na obter dicta -»
conclusão do juiz. É a ratio decidendi que constitui a força vinculativa da stare decisis.
4. Decisão: A decisão é o comando judicial que cria o vínculo e o dever de cumprimento da
sentença nos limites do caso julgado.
A partir da formação da stare decisis forma-se o Direito para o caso concreto.

Fundamento da importância da stare decisis:


- A stare decisis indica a regra de Direito que constitui a ratio decidendi de um caso anterior
semelhante.
- Quando uma stare decisis é decidida abre-se um leading case (: primeiro caso que foi julgado),
criando-se um precedente. Quando se cria um precedente, o juiz profere uma sentença, levando
em consideração os quatro elementos da sentença. A stare decidis criada tem como elementos
fundamentais nesse leading case duas partes:
- os factos que são importantes para determinar se os casos futuros são semelhantes
- a ratio decidendi que é a razão jurídica daquele caso concreto.
Formando-se a stare decisis, passa-se a saber o elemento de comparação (factos) e o Direito
posto em causa (ratio decidendi). Num caso futuro, quando o juiz for julgar, terá de analisar o
facto e irá determinar, dentre todos os precedentes anteriores, qual aquele que se aplica ao caso
concreto. Se determinar que o leading case e o caso sub judice (: caso em julgamento) são casos
semelhantes, terá de aplicar a mesma decisão.
- Para os Direitos romano-germânicos, a controvérsia sobre as questões de Direito tende a
centrar-se na discussão sobre a norma legal aplicável. Já nos Direitos de Common Law, a
controvérsia correspondente incide sobre a seleção do caso anterior.
- Quanto ao caráter vinculativo do precedente no âmbito da natureza do tribunal, a regra geral
indica que os tribunais hierarquicamente subordinados devem aplicar os precedentes
vinculativos dos tribunais superiores.

Existem quatro formas de rever o case law:


1) Revogação das normas jurisprudenciais por normas legais.
2) Faculdade conferida ao tribunal de rever os seus precedentes quando estes são antigos e que

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já não podem ser aplicados à realidade existente (Practice Statements). Neste âmbito, o tribunal
esquece o precedente antigo, julga o caso concreto como se fosse um leading case e forma um
novo precedente, substituindo a stare decisis do caso anterior.
3) Quando existir um conflito entre precedentes, sempre terá prevalência a stare decisis definida
por um tribunal hierarquicamente superior (Overruling).
4) Mutação por forma oblíqua:
-» Quando a ratio decidendi precisa de ser ampliada, o tribunal estuda, nos casos passados,
quais foram os argumentos dos outros juízes na obter dicta.
-» Casos sem precedentes e casos inovadores (Leading cases)

3.2.1.2 Lei
A lei divide com a jurisprudência a importância entre as fontes do Direito no sistema jurídico
inglês. Se a jurisprudência é o modo normal de produção e de revelação do Direito, a lei pode
ser considerada o modo anormal de produção e de revelação do Direito.

- O povo inglês, historicamente, reconhece a jurisprudência como a principal fonte do seu


Direito, atribuindo uma função secundária ao Parlamento de corrigir ou completar a
jurisprudência. Mas devido ao fortalecimento do Parlamento a partir do século XVII, este órgão
político torna-se o guardião da produção do Direito na Inglaterra, centralizando o poder de
definir o Direito Inglês e de criar o statutory law.
- O Parlamento tem produzido cada vez mais leis, ao mesmo tempo que cresce a prática
legiferante pelo Governo dianto do uso da delegated legislation. Esta legislação delegada tem
como característica facilitar a governança, conferindo o Parlamento excecionalmente o poder ao
Governo de criar leis que sejam fundamentais para a sua gestão pública. No entanto, o que se vê
cada vez mais, é que o Governo tem ultrapassado os limites legislativos exclusivos do
Parlamento.
- Para além disso, não existe na Inglaterra um controlo de constitucionalidade em razão da
inexistência de uma Constituição escrita, mas sim de um corpo de leis com caráter
constitucional.
- Não se adotou o sistema de codificação tradicional romano-germânico na Inglaterra. Sendo
assim, não existe um Código Civil, Código Penal, etc.

A regra geral é que podem ser regulamentadas pelas leis do Parlamento matérias como Direito
da Administração Pública, Direito fiscal, Direito social e Direito económico. Há, no entanto,
uma progressiva invasão através da regulamentação do Parlamento de matérias que
historicamente pertencem à jurisprudência, como por exemplo as disposições sobre alguns
contratos, propriedades e até sobre trusts.

A regra de interpretação mais adequada é aquela fundamentada na literal rule. Isto significa que
o intérprete deve atender ao sentido ordinário, gramatical ou literal das palavras, tendo em conta
que os textos escritos têm uma redação detalhada e pormenorizada.

3.2.2 Fontes de Direito subsidiárias


3.2.2.1 Costume
O costume (costum) não é considerado fonte do Direito para o Common Law. Porém, pode ser
considerado como fonte de inspiração do Direito numa fase de formação do Common Law, ou
seja, no período anglo-saxónico.

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Pode-se, porventura, tentar perceber alguma influência dos costumes no Direito Constitucional,
principalmente na fase da Magna Charta Libertatum e no “Clarendon’s case”, e no Direito
Comercial, principalmente as regras pré-concebidas na fase de navegações da Inglaterra.

3.2.2.2 Doutrina
A doutrina tem no Direito Inglês uma influência significativamente menor do que nos Direitos
romano-germânicos. As principais razões para esta diferença residem na menor tradição
universitária e na preponderância dos juízes na comunidade jurídica. Os textos doutrinários,
cuja citação é suscetível de ser tomada em consideração como fonte do Direito, devem pertencer
aos chamados books of authority, entre os quais se salientam os seguintes:
- Bracton no século XIII
- Coke no século XVII
- Blackstone no século XVIII
Outras obras podem ser acrescentadas a esta lista, como as de Pollok, já no século XX.

Sendo assim, a doutrina só pode ser considerada como fonte de Direito quando for utilizada
para interpretar a história do Common Law.

3.3 Organização Judiciária Inglesa


O Direito Inglês é um Direito que foi sendo construído pelo povo e pelas instituições desde o
início da História da Inglaterra, não tendo ocorrido qualquer tipo de rutura com a estrutura
político-jurídica vigente. Ao contrário dos países pertencentes à família jurídica romano-
germânica e dos Estados Unidos da América, que possuem Constituições, a Inglaterra não tem
uma Constituição escrita, mas tem uma ordem constitucional que se legítima num conjunto de
leis que formam um corpo normativo constitucional, como foi previamente referido.

Os tribunais ingleses não são centros de legitimação de direitos. Ou seja, as partes e os seus
advogados somente vão ao tribunal para se reunir e conversar com o juiz e para lhe apresentar
as suas dúvidas. O juiz, percebendo os pontos que devem ser esclarecidos, ouve as possíveis
soluções e escolhe a que mais se adequa ao caso concreto. Sendo assim, os tribunais ingleses
adotam a natureza voluntária. Pelo contrário, os tribunais da família jurídica romano-germânica
adotam a natureza adversarial. Isto significa que as partes e os seus advogados apresentam-se
diante o juiz como inimigos no Direito. Da solução do juiz sairá uma parte vitoriosa e uma parte
derrotada.

No sistema jurídico inglês, existe uma estrutura judiciária dividida em dois níveis de tribunais:

3.3.1 Tribunais superiores


Tribunais superiores (superior courts/ higher courts):
1) Supreme Court of United Kingdom (Tribunal Superior do Reino Unido)  formado por
12 conselheiros (Justices of Supreme Court) com competência para julgar recursos sobre
matérias cíveis e criminais em última instância

2) Senior Courts of England and Wales (Tribunal Superior da Inglaterra e do País de


Gales)  divide-se em três tribunais:
- Court of Appeal (tribunal de apelação)  divide-se em Civil Division e em Criminal
Division
- High Court of Justice (tribunal superior de justiça)  competência para julgar em
primeira instância em matéria civil as questões que não sejam reservadas aos tribunais inferiores
e em grau de recurso das decisões tomadas pelos tribunais inferiores. O High Court of Justice
divide-se em:

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-» Chancery Division: julgamento em primeira instância de questões de Direito das
sociedades e Direito comercial e de trust (: dever e responsabilidade fiduciária atribuída a um
indivíduo de administrar propriedades alheias como se fossem suas sem usufruir do benefício
das mesmas)
-» Family Division: julgamento em primeira instância de questões de divórcio
litigioso, de adoção e de Direito sucessório que não envolvam a questão do trust e em grau de
recurso de ações do âmbito do Direito da família decididas em primeira instância por tribunais
inferiores
-» Queen’s Bench Division: decide assuntos de responsabilidade civil contratual e
extracontratual (torts (: responsabilidade civil e criminal por delitos)) em primeira instância e
em grau de recurso
- Crown Court (tribunal da coroa)  centraliza, desde 1971, a competência criminal
apenas para julgamento de crimes mais graves, com admissão do tribunal do júri para os
acusados que se declaram inocentes, e para julgamento de recursos criminais advindos de
tribunais inferiores

 Os tribunais superiores da Supreme Court of United Kingdom e das Senior Courts of


England and Wales podem ser chamados a julgar em primeira instância ou em grau de recurso.
As suas decisões têm força para criar precedentes vinculativos para o Reino Unido e
respetivamente para a Inglaterra e o País de Gales. Ou seja, as suas decisões obrigam ao
cumprimento por todos, inclusive os juízes de outros tribunais.

3.3.2 Tribunais inferiores


Tribunais inferiores (inferior courts/ lower courts)  têm competência para julgar causas civis
e criminais de menor complexidade e importância, dividindo-se em:
1) County Courts (tribunais de condado)  foram criados em 1846 e decidem litígios de
natureza civil, cuja competência abrange casos da mesma natureza dos que são julgados pelo
High Court of Justice (contratos, responsabilidade civil, trusts, falência, Direito sucessório)
desde que o seu valor seja inferior a determinado montante, fixado em função da matéria em
causa. Julga ainda certas ações no âmbito do Direito da família, como divórcios não
contestados/ consensual.
2) Magistrates Courts  competência para a decisão de pequenos delitos, assegurando
aproximadamente 95% dos casos criminais. Em matéria civil, têm intervenção na cobrança de
certas dívidas e na solução de questões de família que não exijam especiais conhecimentos
técnicos como as relativas ao poder familial e a alimentos. Das suas decisões cabe sempre
recurso, embora cerca de 90% dos processes criminais terminem num destes tribunais.

4 O Direito Estadunidense
4.1 A descoberta do Direito Estadunidense
4.1.1 Período colonial
A História dos Estados Unidos da América começa em 1607 com o período colonial. Período
esse que demarca o movimento de colonização inglês das Américas. A sua política de
colonização baseava-se em três elementos:
- Colonização religiosa: Missão religiosa
- Colonização criminal: Cumprimento de uma pena
- Colonização comercial: Desenvolvimento do comércio e da exploração de matérias-primas
Para estimular os colonos e manter a integridade do Common Law, o birthright foi estendido
aos ingleses que pretendessem colonizar as Américas e àqueles que lá nascessem, tendo esta

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decisão sido registada no “Calvin’s case”, julgado em 1608, pelo qual o inglês levava consigo o
Direito Inglês para onde quer que fosse.

Treze colónias começaram a ser instituídas na América do Norte que, apesar de terem de
cumprir o Common Law, não o fizeram, ao ponto de a aplicação do Common Law inglês nas
colónias se tornar instável. Esta instabilidade deve-se a dois motivos:
1) Natureza da colónia: Se a colónia fosse religiosa, os indivíduos davam mais importância
à liberdade religiosa do que nas outras duas. Se a colónia fosse criminal, os indivíduos davam
mais importância à liberdade de ir e vir do que nas outras duas. Se a colónia fosse comercial, os
indivíduos davam mais importância à liberdade contratual e de propriedade do que nas outras
duas.
2) Distância: Era muito difícil e demorado o conhecimento do Common Law produzido na
Inglaterra nas 13 colónias.

Ainda assim as 13 colónias desenvolveram um sistema próprio para manter vivo o Common
Law, contudo adaptado à realidade colonial. Até que o Parlamento Inglês, desvirtuando a sua
função e abusando do seu poder de criar leis, criou um conjunto de leis desiguais para os
indivíduos das colónias e para os indivíduos da metrópole, esquecendo-se o “Calvin’s case”.
Uma das leis desiguais prejudicou de forma agravada a relação entre as colónias e a metrópole,
nomeadamente a sobretaxa de produtos advindos das colónias. Essa desproporção levou a que
fosse enviado um pedido de esclarecimento das colónias ao Parlamento Inglês, questionando-se:
“Se todos somos ingleses, a que se deve a distinção na lei?” Como resposta, o Parlamento
aumentou os impostos sobre o chá, produto importantíssimo na Inglaterra, o que levou a uma
primeira reação violenta entre colonos e ingleses, conhecida como “Boston Tea Party”. Essa
primeira insurgência desencadeia uma primeira reflexão sobre a independência das 13 colónias.

4.1.2 Independência política e formação do Direito Interno (1776 até os tempos


atuais)
Até que no dia 4 de Julho de 1776, os representantes das 13 colónias dos Estados Unidos da
América, se autodefinem como independentes. Como colónias independentes, era necessária
que se autoconstituíssem enquanto Estado, existindo duas possibilidades:
- República ou monarquia? -» Optou-se pela criação de um Estado Republicano,
reconhecendo que os representantes das 13 colónias, reunidas agora sobre um mesmo Estado,
seriam capazes de administrar a coisa pública.
- Confederação ou Federação? -» Instaura-se uma crise politico-ideológica que vai
desencadear uma guerra entre federados e confederados. Os federados defendiam a existência
de um poder político central no novo Estado que fosse delegado por cada Estado federado, mas
que cada Estado federado conservasse em si um poder político suficiente e particular para
manter viva a identidade de formação da antiga colónica e as suas particularidades. Os
confederados, ao contrário, defendiam a ideia de que as províncias não deveriam ter qualquer
poder próprio, devendo ceder todo esse poder para a União. Nasce para além da dicotomia de
disputa entre confederados e federados, a dicótoma entre libertários e escravocratas, entre
ingleses e franceses, etc. Por fim, vence a Federação.

Instaurada a República e vitoriosa a Federação, elabora-se e aprova-se uma Constituição para os


Estados Unidos da América no ano de 1787, vigente a partir do ano de 1788. É a primeira
Constituição formal escrita no mundo que limita os poderes públicos fundamentais do Estado,
garantindo o acesso a direitos constitucionais. Em 1789 foram incorporadas ao texto
constitucional amendments (: acréscimo futuro de direitos constitucionais que convivem
harmonicamente com o “núcleo duro”), estendendo-o. Atualmente, a Constituição Norte-

39
Americana conta com 27 amendments, sendo consequentemente formado por 34 artigos. Tanto
o “núcleo duro” como as amendments da Constituição respeitam a identidade de cada um dos
Estados federados, existindo, para além da Constituição Federal, 50 Constituições estaduais.

4.2 Estrutura política do Estado


A Constituição Norte-Americana é formada por sete artigos que são definidos como “núcleo
duro” da Constituição. Desses sete artigos, os três primeiros pretendem a limitação dos poderes:

- O artigo 1º regulamenta o poder legislativo: Sistema bicameral composto pelo Senate (órgão
representativo dos Estados federados) e pela House of Representatives (órgão representativo
do povo)
- O artigo 2º regulamenta o poder executivo dividido numa esfera federal (Presidente dos
EUA) e numa esfera estadal (Governador do Estado)
- O artigo 3º regulamenta o poder judicial (estrutura complexa)
Os quatro artigos seguintes cuidam da estrutura republicana, federativa e das relações
internacionais.

Existe para além dos 7 artigos que formam o “núcleo duro” da Constituição e das 27
amendments, um preâmbulo (: introdução ao texto constitucional). Nesse preâmbulo consta a
expressão “the Blessings of Liberty”, significando que, para a interpretação da Constituição
Federal dos Estados Unidos da América, a liberdade é reconhecida como um princípio
fundamental hermenêutico. A liberdade distingue-se da freedom, devendo aquela ser respeitada
e garantida a todos igualmente.

4.3 Organização Judicial Federal básica


A estrutura do sistema judicial é extremamente complexa, sendo dividida em dois planos:
- plano federal  determinada no artigo 3º da CNA.
- plano estadual  determinada e definida nas Constituições dos Estados federados.

Observe-se a estrutura judicial dos Estados Unidos da América no plano federal:


1) US district courts (tribunais distritais)  Cada Estado federado tem pelo menos um tribunal
distrital em função do número de habitantes. Os tribunais distritais têm competência de julgar
causas federais de primeira instância.
2) US courts of appeal (tribunais de apelação)  Os tribunais de apelação são tribunais de
recurso. A sua jurisdição é designada por “circuito” e abrange o território de vários Estados.
3) US Supreme Court (Tribunal Supremo dos Estados Unidos da América)  O Tribunal
Supremo dos Estados Unidos da América é sediado em Washington e é o tribunal no topo da
hierarquia judiciária e o único que foi diretamente criado pela Constituição. Tem competência
para proteger a Constituição Federal dos Estados Unidos da América.

4.3.1 Competência dos tribunais federais


A competência dos tribunais federais é atribuída em função de dois critérios alternativos:
- em razão da matéria: É da competência federal quando a matéria está reconhecida numa lei
federal (federal-question Jurisdiction), por exemplo, processos de insolvência ou propriedade
intelectual.
- em razão das pessoas: É da competência federal sempre que as partes sejam cidadãos de
diferentes Estados federados ou quando pelo menos uma delas seja cidadão estrangeiro.
Excluídas dos tribunais federais estão as ações de divórcio e aquelas cujo valor seja inferior a
75 000 dólares.

40
4.4 Fontes do Direito
As fontes do Direito Estadunidense dividem-se em:
1) Fontes primárias:
- Lei (statutory law)
- Jurisprudência (case law)

2) Fontes secundárias:
- Doutrina (doctrine)
- Restatements of the law

É no âmbito do Constitucionalismo Estadunidense que se percebe que a forma de criação do


Direito Estadunidense é totalmente diferente da experiência inglesa. Uma vez que para os
Estados Unidos da América o grande vilão na relação entre os indivíduos é o poder público
exercido pelo Estado, foi essencial que eles se constituíssem sobre uma Constituição que o
controlasse e limitasse os seus poderes. É dessa leitura que se percebe que os Estados Unidos da
América vêm na lei a garantia das liberdades. Sendo assim, a lei e a jurisprudência são ambas
fundamentais para a produção e revelação do Direito legal.

Contudo, os juristas estadunidenses dizem que não existe uma hierarquia em si entre a lei e a
jurisprudência. Há sim um fenómeno de validade da norma, baseado na revogação:
-» A lei prevalece sobre a jurisprudência. Se a lei for revogada, a jurisprudência perde a sua
validade.
-» O Direito Federal prevalece sobre os Direitos Estaduais.

Ordenação das fontes primárias:


1º nível  Constituição Federal e jurisprudência da US Supreme Court
2º nível  leis federais infraconstitucionais e jurisprudência vinculativa sobre estas leis, criada
pelos tribunais federais de apelação
3º nível  Constituições Estaduais e jurisprudência dos Supremos Tribunais estaduais que
tenham como competência proteger as Constituições Estaduais
4º nível  leis estaduais infraconstitucionais e jurisprudência vinculativa sobre estas leis, criada
pelos tribunais estaduais
5º nível  (inexistência de lei aplicável ao caso concreto e) criação de jurisprudência estadual
autónoma em relação à legislação

4.4.1 Fontes primárias


4.4.1.1 Lei
Importância da Constituição:
A importância da Constituição é evidente através dos seguintes princípios:
- Due process of law (devido processo legal) -» Dever atribuído a cada juiz de cumprir cada fase
processual como definida nas leis procedimentais.
- Equal protection (proteção igual na lei) -» Toda a garantia, o poder, a possibilidade ou o
direito conferido a uma parte, deve ser aplicado à parte concreta e, por conseguinte, a todas as
partes em semelhante situação.
- Checks and balance system (sistema de freios e contrapesos) -» Todos os poderes públicos
fundamentais (legislativo, executivo e judicial), apesar de se consagrar constitucionalmente a
separação dos poderes, têm o dever de intervir em outro poder público fundamental quando este
não cumpra a sua função constitucional.
- Marbury vs. Madison -» Diferentemente do Direito Inglês que não tem uma Constituição
formal escrita, o Direito Estadunidense possuiu uma que tem uma autoridade normativa, visto

41
que foi votada, aprovada e ratificada pelos representantes escolhidos para a formação do novo
Estado recém independente no final do século XVIII e, a partir de então, o que está na
Constituição é regra imperativa. No entanto, a partir de 1803, foi definida uma regra sobre o
controlo da constitucionalidade no julgamento do caso Marbury vs. Madison em que se
reconheceu a judicial review (revisão judicial), ou seja, reconheceu-se que todos os juízes de
todos os tribunais, sejam eles federais ou estaduais, têm o dever de proteger a Constituição.
Sendo assim, sempre que o juiz julgue, precisa de saber se a lei ou o precedente que vai aplicar
como solução para o caso concreto é constitucional.

Competência legislativa:
- A 10ª amendment determina o que pode ser criado com força de lei pelo Congresso
Americano, reconhecendo-se o princípio da reserva federal. Esta amendment define então que
compete ao poder legislativo federal legislar sobre as matérias reservadas na Constituição (ex.
tributos e afins, produção de dinheiro, controlo das forças armadas, relações internacionais,
nacionalidade/cidadania, relações comerciais entre os Estados federados, etc.) e o que não for de
“reserva federal” deve ser legislado pelos Estados federados.
- Enquanto que o Congresso concentra o poder legislativo federal, cada Estado federado possui
a sua Câmara Parlamentar.
- Existe a possibilidade de o poder legislativo federal delegar o poder de legislar sobre uma
determinada matéria ao poder executivo federal (delegated legislation). Há também cada vez
mais juízes que acham ser legisladores e criam decisões com força de stare decisis que torna a
legislação fragilizada (judicial activism).

Interpretação judicial da lei:


A interpretação judicial da lei é tendencialmente voltada à literalidade, com as seguintes
ressalvas:
1) Admite-se maior flexibilidade na interpretação da Constituição Federal, a incluir a
autorização do uso de elementos teleológicos e sistemáticos.
2) Em comparação entre as leis federais e as leis estaduais, sente-se maior flexibilidade na
interpretação naquelas do que nestas por causa da amplitude do Direito Estadunidense.
3) Há respeito a dois princípios:
-» O juiz deve partir da lei para definir o limite na jurisprudência. Se a lei está sempre junto
da jurisprudência, o juiz vai sempre primeiro interpretar a lei e depois vinculá-la aos
precedentes.
-» Os tribunais somente se pronunciam sobre a inconstitucionalidade de leis que foram
anteriormente interpretadas e aplicadas por um tribunal.

4.4.1.2 Jurisprudência
- Não há qualquer dúvida de que o precedente é uma fonte do Direito para a formação da stare
decisis.
- Os tribunais inferiores vinculam-se às decisões dos tribunais superiores, baseando-se no
princípio de que “os casos semelhantes devem ter julgamentos iguais”.
- As regras da jurisprudência aplicam-se aos tribunais federais e estaduais.
- Admite-se o overruling, ou seja, quando existir um conflito entre precedentes, sempre terá
prevalência a stare decisis definida por um tribunal hierarquicamente superior.
- Rule vs. policy: Enquanto que na Inglaterra os precedentes aplicam-se por força de regra
vinculativa (rule), nos Estados Unidos da América não há mais do que uma política do
precedente (policy), uma vez que se admite a hipótese do tribunal deixar de aplicar um
precedente na convicção de que o tribunal superior também não o faria.

42
- A descoberta e a evolução do precedente são muito semelhantes às do Direito Inglês,
alterando-se, apenas, a expressão ratio decidendi para “holding of the case”. Ou seja, quando o
juiz nos Estados Unidos da América fixa um precedente, ele descobre primeiro a lei. Logo, ele
delimita a aplicação da lei diante do facto jurídico no caso concreto, criando-se a stare decisis.

4.4.2 Fontes secundárias


4.4.2.1 Doutrina
A doutrina, diferentemente do Direito Inglês, tem importância para a criação do Direito e para a
descoberta do Direito aplicável. Existe uma infinidade de formas da doutrina produzir os seus
efeitos: Enciclopédias, tratados, looseleaf series, case books, lições universitárias, manuais
abreviados, etc.

4.4.2.2 Restatements of the law


Os Restatements of the law são típicos do sistema estadunidense, tendo sido criados a partir da
década de 1930 por iniciativa do American Law Institute que convidou diversos especialista em
áreas específicas do Direito para investigar e publicar o Common Law em áreas onde a
jurisprudência é mais densa. Esta foi uma tentativa de aproximação entre o Direito Federal e os
Direitos Estaduais, para que cada um destes percebesse como é que os diversos temas eram
tratados por cada legislação estadual e, a partir daí, definir um Direito Comum para os Estados
Unidos da América.

Apesar da aparência de Código, os Restatements baseiam-se fundamentalmente na


jurisprudência estadual, mas são fontes secundárias de natureza doutrinária, não tendo força
para criar Direito, mas sim para desenvolvê-lo.

5 Família jurídica muçulmana


5.1 Âmbito pessoal do Direito Muçulmano
Dentre todas as famílias jurídicas até agora observadas, o seu fundamento era racional e laico. A
família jurídica muçulmana, pelo contrário, é justificada por valores não-racionais. Para além
disso, o Direito Muçulmano tem ainda uma característica própria que é o de entregar a cada fiel
do Islamismo a condição de ser um portador do Direito Muçulmano onde quer que esteja,
sendo, consequentemente, um Direito pessoal. Sendo assim, a principal fonte do Direito da
família jurídica muçulmana é a Xaria (: conjunto ordenado de normas essencialmente jurídicas
que regulam as condutas dos muçulmanos e as relações destes entre si), sendo composta por
quatro elementos: o Corão (: livro sagrado do Islamismo), a Suna (: tradições relativas aos
ditos e atos do Profeta Maomé), o Ijma e o Qiyas.
O Direito Muçulmano é, pois, essencialmente, o Direito de uma comunidade de crentes que
professam o Islamismo.

5.2 Países onde vigora


- Generalidade dos países árabes do Médio Oriente: Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes
Unidos, Iémen, Jordânia, Kuwait, Oman, Qatar, Síria, etc.
- Países africanos: Argélia, Egipto, Guiné, Líbia, Marrocos, Quénia, Tunísia, Nigéria, Senegal,
Somália e Sudão.

- Países asiáticos: Afeganistão, Indonésia, Irão, Paquistão, etc.

O Direito Muçulmano é um Direito construído entre os séculos VII e IX da era cristã e que, a
partir do século X se autodefiniu como “pronto e acabado”. Esta sua característica marca uma

43
diferença entre as restantes famílias jurídicas, uma vez que os seus Direitos estão em constante
construção e desenvolvimento. Mas a sua História não acabou por aí, tendo muitos países que
seguem o Direito Muçulmano relações híbridas com outros sistemas jurídicos não-muçulmanos,
muito devido ao imperialismo, sendo de distinguir entre:
-» Direito Muçulmano puro: Sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em que
a Xaria está viva, presente e conducente dos hábitos e atos na vida pessoal, familiar, económica
e cívica dos muçulmanos, como se vê nos Direitos da Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos,
Iémen, Irão, etc.
-» Direito Muçulmano híbrido: Sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em
que a Xaria é conjugada com importantes elementos de influência romano-germânica
(codificação e constitucionalismo), como se vê nos Direitos da Argélia, Egipto, Líbano,
Marrocos, Tunísia, etc., ou elementos de Common Law (costumes e precedentes), como é o
caso dos Direitos da Nigéria, Paquistão, Bangladeche, e Malásia.

5.3 Génese e evolução


5.3.1 Origem
Diferentemente dos outros sistemas jurídicos, o Direito Muçulmano foi revelado por Alá ao
Profeta Maomé que viveu entre os séculos VI e VII da era cristã. Foi através da tradição oral
que, por um lado, se determinaram os valores morais e dogmáticos do Islamismo e, por outro
lado, se transmitiram esses mesmos valores aos demais, uma vez que, naquela época, havia um
elevado nível de analfabetismo. Para além disso, a principal fonte do Direito Muçulmano e do
Islamismo, o Corão, foi constituída em versos para facilitar a difusão do conhecimento entre
muçulmanos.

Toda essa dinâmica de formação é definida por cinco pilares básicos:


- Crença num Deus único (Alá) de quem Maomé foi o mensageiro
- Dever de orar 5 vezes ao dia
- Jejum no período do Ramadão
- Dar esmola aos pobres
- Peregrinação a Meca, pelo menos uma vez na vida

5.3.2 O cisma entre Sunitas e Xiitas


Existe uma tensa relação entre duas seitas, entre duas formas de se ver a religião e o Direito, no
âmbito do Islamismo: a visão dos Sunitas e dos Xiitas.
- Sunitas: Seita formada pelos partidários da dinastia Umayyad que governou a comunidade
islâmica logo após a deposição do califa Ali, primo e genro do Profeta. Atualmente, os Sunitas
representam a maioria dos crentes islâmicos e é a seita que tem uma visão mais aberta dos
dogmas e do Direito.
- Xiitas: Seita formada pelos opositores à dinastia Umayyad, não lhe reconhecendo
legitimidade, porque preferem a relação doutrinal e político regida pelos descendentes diretos
do Profeta, ou seja, pela sua filha Fátima ou pelo seu esposo Ali. Atualmente, os Xiitas
representam a minoria dos crentes islâmicos, embora sejam a maioria no Irão.

Da separação da forma de conceber a estrutura religiosa e jurídica islâmica entre Sunitas e


Xiitas, duas características interessam diretamente ao Direito Comparado:
- Para os Sunitas, dos quatro elementos que formam a Xaria, só o Corão e a Suna são legítimas
fontes do Direito religioso.
- Para os Xiitas, o Direito Muçulmano coube igualmente aos 12 Ijmas (: chefes supremos que

44
sucederam a Maomé). Sendo assim, para além do Corão e da Suna, os Xiitas vêm nos Ijmas
uma legítima fonte do Direito religioso.

5.3.3 Formação do Direito Muçulmano


A formação do Direito Muçulmano reparte-se por quatro fases:
1) Formação: O Direito Muçulmano formou-se a partir do surgimento do Islamismo, da
revelação ao Profeta Maomé, e foi-se constituindo-se depois da sua morte, tendo este período se
compreendido entre os século VII e IX. Sendo assim, o Direito Muçulmano é totalmente
dependente dos valores religiosos. Primeiro, através da redução a escrito das fontes da Xaria, e
depois, pela sistematização do Direito levada a cabo por especialistas a partir dessas fontes.

2) Estabilização e disseminação: O Islamismo forma-se com o Profeta e as ideias se


solidificam e são transmitidas entre os crentes através da oralidade. Para além disso, uma vez
que os indivíduos eram nômadas, tal facilitava a divulgação do conhecimento da nova religião,
tendo-se difundido rapidamente naquelas regiões. Expandindo-se a fé, expande-se o Direito. A
partir do século X, o Direito Muçulmano encontra-se definitivamente fixado, ao menos para os
Sunitas. Até ao século XVIII o Direito Muçulmano é aplicado em todo o mundo muçulmano,
apesar de com diferentes graus de intensidade, sendo complementado por costumes locais. É
também a partir desse período que começa a ser trabalhada a ideia de jihad (Guerra Santa) que
consiste no movimento de imposição da nova religião sobre os chamados infiéis. É também
durante este período que se intensifica a tensão entre muçulmanos e católicos, o que vai
culminar com as Cruzadas, o movimento militar para a libertação de Jerusalém.

3) Declínio: A partir do século XIX, devido ao movimento de colonização por parte das
potências europeias de vários países islâmicos, o Direito Muçulmano é objeto de uma mutação,
nomeadamente através da adoção de codificações inspiradas nas codificações europeias. Ocorre
concomitantemente um certo retraimento da Xaria, que em muitos países passa a cingir-se à
regulação das relações familiares e sucessórias. Este declínio do Direito Muçulmano coincide
com o próprio declínio da civilização islâmica, fruto de diversos fatores entre os quais se
destacam a dominação estrangeira e a ausência de uma verdadeira industrialização.
Contudo, com a formação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) no
ano de 1960 essa posição dos países muçulmanos iria sofrer uma alteração significativa.
Percebendo que quem controlava o petróleo, controlava a economia, a OPEP iria desempenhar
um papel económico mundial importantíssimo para os países desenvolvidos por consequência
dos avanços técnicos e tecnológicos verificados na II Guerra Mundial. A partir de então, as
potências europeias não podiam impor as suas ordens aos países muçulmanos, mas teriam de
dialogar com eles para chegarem a um acordo e, assim, prover os seus interesses.

4) Renascimento: Devido à tomada de consciência pelos povos muçulmanos do seu novo


poderio económico, derivado do aumento exponencial dos preços do petróleo ocorrido devido à
crise petrolífera de 1973, o Direito Muçulmano renasce. Fortalece-se o diálogo entre países
muçulmanos e o mundo, aqueles passam a ser respeitados por estes e estes querem estar
próximos daqueles. Contudo, devido ao caráter pessoal do Direito Muçulmano, para onde um
muçulmano vá, ele leva o seu Direito, gerando-se tensões entre os povos de acolhimento e os
povos muçulmanos. Tanto é assim que volta a ideia do jihad (: desvio na política internacional
para controlar o petróleo, justificado ilegitimamente em valores religiosos), formando-se, a
partir da formação do ISIS, uma nova leitura do jihad (: terrorismo político de extermínio contra
os infiéis). Contudo, estas duas ideias não refletem a ideia original do jihad (: divulgação
ideológica da moral religiosa muçulmana).

45
5.4 Características gerais
5.4.1 Base religiosa
- O Direito Muçulmano é um Direito religioso, sendo a sua fonte primordial a índole religiosa
desvelada dos textos sagrados.
- Não há uma separação entre Estado, Direito e Religião. Portanto, o Direito é uma
consequência das bases religiosas e o Estado, ainda que constitucional, é posto ao serviço da
dessa missão ideológica.
- Não existe uma ideia de Estado de Direito ou de soberania popular como fundamento da
Ordem Jurídica, mas sim o dever moral e jurídico de cumprir a Xaria.
- Dado o critério personalista, a Xaria só se aplica aos muçulmanos.

5.4.2 Pluralidade de fontes


- O Direito Muçulmano híbrido tendencialmente dá uma força maior à legislação laica do que o
Direito Muçulmano puro. Contudo, essa legislação, em regra, submete-se à Xaria.

5.4.3 Tendencial uniformidade do Direito


Se o Direito Muçulmano foi criado no século X da era cristã e tradicionalmente seguindo pelos
crentes muçulmanos, verifica-se que o Direito Muçulmano atual é o mesmo que aquele no
século X para toda a comunidade muçulmana. No entanto, há que se relembrar que as seitas
sunita e xiita criaram as suas próprias variações.

5.5 Meios de resolução de litígios


5.5.1 Tribunais religiosos/da Xaria
Os tribunais religiosos são tribunais singulares compostos por cádis (: juízes) nomeados e
destituídos pelos Imãs, Califas e Governadores, com competência para administrar a justiça nas
questões de Direito Privado muçulmano. A jurisdição dos cádis cinge-se às questões entre
muçulmanos.

5.5.2 Tribunais estaduais/laicos


Os tribunais estaduais são tribunais que julgam causas entre estrangeiros ou entre muçulmanos
e estrangeiros, ligados à legislação laica.

5.6 Fontes do Direito


5.6.1 Xaria
A Xaria é o Direito positivo de origem divina e com caráter revelado, cujas regras são impostas
aos indivíduos porque emanam da vontade de Deus, sendo constituída em quatro partes:
- Corão que representa a palavra de Alá
- Suna que representa a conduta exemplar do Profeta Maomé
- Ijma que representa o consenso da comunidade islâmica
- Qiyas que representa a analogia

O processo de determinação do conteúdo da Xaria dá-se com fundamento, primeiramente no


Corão (Direito teórico) e na Suna (Direito prático), as principais fontes do Direito Muçulmano,
recorrendo-se se for necessário ao Ijma (Resolução proposta pelos doutores do Islão) e,
excecionalmente, ao Qiyas.

5.6.1.1 Corão
O Corão é formado por 6000 versículos (: pequenos versos), dois quais aproximadamente 600
são de conteúdo jurídico. O Corão não constitui um Código jurídico, embora tenha, em si, os
principais preceitos do Direito muçulmano, daí ser reconhecido como “fonte-mãe”. No Direito

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Muçulmano, ao contrário da família jurídica romano-germânica e de Common Law, o crente
muçulmano cumpre as regras jurídicas em função do vínculo que tenha com a sua religião.
Sendo assim, quanto maior for a fé, maior será o dever de cumprimento das regras do Direito
Muçulmano. Já para as família jurídicas em cima mencionadas, cumprem-se as leis se estas
forem criadas por um órgão legislativo que represente o povo ou se o Estado obrigue o
cumprimento das leis que criou através da coerção.

5.6.1.2 Suna
A Suna significa “o caminho percorrido”, ou seja, os atos de Maomé que inspiram a tradição de
como cumprir e seguir corretamente o Corão, tendo como objetivo de o formar, esclarecer e/ou
complementar. Tem-se assim a teoria no Corão e a prática na Suna, estando esta subordinada
àquele.

5.6.1.3 Ijma
O Ijma representa a manifestação dos doutores do Islão, explicando e definindo qual a conduta
que deve ser realizada quando não houver representação direta na Suna.

Enquanto que os Xiitas rejeitam-no como fonte do Direito, os Sunitas atribuem ao Ijma,
formado até ao século X, a qualidade de fonte da Xaria. Sendo assim, tudo aquilo que foi
produzido a partir do século X não tem força de fonte de Direito, mas é antes uma fonte de
esclarecimento do Direito.

5.6.1.4 Qiyas
O Qiyas, ou a analogia, desempenha um papel fulcral na descoberta do Direito aplicável aos
casos concretos, uma vez que é por via dela que se dá solução a muitas situações não previstas
no Corão e na Suna. Contudo, o Qiyas não se pode tratar de uma fonte do Direito, mas sim de
uma ferramenta lógica, utilizada pelo jurista para descobrir a norma relevante.

O Qiyas no Direito Muçulmano é, deste modo, a combinação da revelação com a razão humana.
A analogia tem uma característica própria de manter estável e respeitada a interpretação e a
formação do Direito Muçulmano até ao século X, mas com as atualizações necessárias para as
novas sociedades.
-» Exemplo: Imagine-se a existência de uma regra criada no século X, na qual constasse:
“Aquele que se obriga a vender um camelo, obriga-se a entregá-lo.” Isto significa que um
indivíduo, cumprindo esta regra, assume um dever jurídico com a compra e venda de um bem.
Contudo, hoje em dia é muito raro que os muçulmanos, e ainda mais aqueles que se encontrem
no Ocidente, sejam proprietários de e negociem com camelos. Sendo assim, como é que esses
muçulmanos interpretariam essa regra hoje em dia? Como o camelo, no século X, era um meio
de transporte, o muçulmano pode interpretar aquela regra por analogia da seguinte forma:
“Quem se obriga a vender um carro, obriga-se a entregá-lo”.

5.6.2 Outras fontes principais


5.6.2.1 Constituição dos Estados
Todos os Estados muçulmanos têm uma legislação laica própria em grau maior ou menor de
importância, mas sempre subordinadas ao Direito Muçulmano. As Constituições estão, sendo
assim, submissas à Xaria. Por outro lado, são Constituições que legitimam a Xaria,
reconhecendo o Islamismo como religião oficial dos Estados e a Xaria como a principal fonte
do Direito.

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5.6.2.2 Codificação e leis avulsas
A codificação e as leis avulsas para os países muçulmanos que tiveram influência francesa é
uma realidade, mas a Xaria ainda é a regra geral, sendo regulamentado nos Códigos apenas
aquilo que não é matéria específica da Xaria.

5.6.2.3 Costumes
Os costumes têm uma dúplice importância:
- Serviu de fonte de inspiração para a Xaria
- Serviu de fonte subsidiária para desvelar o Direito vigente em consonância com a Xaria em
questões de adaptação a novas comunidades.

5.6.2.4 Doutrina
A partir do século X, a doutrina, ao menos no pensamento sunita tradicional, regeu-se pelo
princípio do taqlid, conforme o qual haveria que aceitar as orientações fixadas pelos fundadores
das escolas jurídicas do Islão, sem as questionar. Mesmo sob esse princípio, a doutrina
conservou um papel fundamental tanto na determinação do Direito aplicável aos casos
singulares como na fixação do conteúdo das leis que visam explicitar a Xaria.

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