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Licenciatura em Direito
Ano letivo 2020/21
Terças: 834 0805 1636 - 269549
Direito Comparado
Lisboa
Índice
1. Introdução ao Direito Comparado............................................................................................5
1.1 A formação do Direito Comparado como ciência e uma perspetiva metodológica.............5
1.1.1 Existe um ramo juscientífico conhecido por Direito Comparado? Resposta dada por
alguns comparativistas.........................................................................................................6
1.2 O objeto do Direito Comparado.........................................................................................7
1.2.1 Proposições do Direito Comparado.............................................................................7
2. A família jurídica romano-germânica.......................................................................................8
2.1 A confederação grega.........................................................................................................8
2.2 A génese grega – o racionalismo helénico..........................................................................8
2.3 A invasão romana à Grécia.................................................................................................9
2.3.1 A manutenção de pax romanorum...............................................................................9
2.3.2 A passagem do Direito consuetudinário ao Direito escrito em Roma..........................9
2.4 O Concílio de Niceia e a criação do Direito Canónico.....................................................10
2.5 O Corpus Iuris Civilis e o começo do fim do Império Romano........................................10
2.6 A “queda” do Império Romano e a “subida” do Direito Canónico...................................10
2.6.1 A autoridade do Direito Canónico e propostas para a sua reconstrução.....................11
2.6.2 O feudalismo e a questão acerca dos ordenamentos jurídicos aplicáveis...................12
2.7 A descoberta do livro I do Digesto de Justiniano.............................................................12
2.8 O conflito entre Felipe IV dos Francos e o Papa..............................................................13
2.9 O contributo germânico....................................................................................................14
2.10 Jusracionalismo, codificação e aculturação jurídica.......................................................15
2.10.1 As razões para a eclosão da Revolução Francesa.....................................................15
2.10.2 As consequências da queda do Ancien Régime.......................................................15
2.10.3 A insurgência do terceiro estado e a proposta de Joseph Sieyès..............................15
2.10.4 Os elementos definidos pela experiência jurídico-constitucional francesa..............16
2.10.5 A codificação...........................................................................................................17
2.10.6 A aculturação jurídica..............................................................................................17
2.11 Países que pertencem à família jurídica romano-germânico...........................................18
2.12 Conceitos fundamentais..................................................................................................19
2.12.1 Diferença entre Direito constituído e Equidade.......................................................19
2.12.2 Diferença entre Direito Público e Direito Privado...................................................19
2.13 Fontes do Direito............................................................................................................20
2.13.1 Noções.....................................................................................................................20
2.13.2 Tratados e fontes do Direito Internacional...............................................................20
2.13.3 Atos de Direito Supranacional.................................................................................20
2.13.4 Lei...........................................................................................................................21
2
2.13.5 Costume...................................................................................................................22
2.13.6 Jurisprudência..........................................................................................................23
2.13.7 Doutrina...................................................................................................................24
2.13.8 Princípios jurídicos..................................................................................................24
2.14 A descoberta do Direito aplicável...................................................................................25
2.14.1 A importância da decisão judicial............................................................................25
2.14.2 Interpretação da lei..................................................................................................26
2.14.3 Integração da lei......................................................................................................26
2.15 A organização judiciária e sistemas de recurso...............................................................27
2.15.1 Organização Judiciária Portuguesa..........................................................................27
2.15.2 Organização Judiciária Francesa..............................................................................27
2.15.3 Organização Judiciária Alemã.................................................................................28
3. A família jurídica de Common Law.......................................................................................29
3.1 A formação do Direito Inglês...........................................................................................29
3.1.1 Características singulares do Direito Inglês...............................................................29
3.1.2 Período anglo-saxónico (409 DC até 1066 DC).........................................................29
3.1.3 Período de formação do Common Law (1066 DC até 1485 DC)...............................30
3.1.4 Período de reconstrução do Common Law (1485 DC até 1873 DC).........................32
3.1.5 Período moderno (1873 DC até a atualidade)............................................................34
3.2 Fontes do Direito..............................................................................................................34
3.2.1 Fontes de Direito principais.......................................................................................35
3.2.2 Fontes de Direito subsidiárias....................................................................................36
3.3 Organização Judiciária Inglesa.........................................................................................37
3.3.1 Tribunais superiores..................................................................................................37
3.3.2 Tribunais inferiores...................................................................................................38
4 O Direito Estadunidense..........................................................................................................38
4.1 A descoberta do Direito Estadunidense............................................................................38
4.1.1 Período colonial.........................................................................................................38
4.1.2 Independência política e formação do Direito Interno (1776 até os tempos atuais)...39
4.2 Estrutura política do Estado..............................................................................................40
4.3 Organização Judicial Federal básica.................................................................................40
4.3.1 Competência dos tribunais federais...........................................................................40
4.4 Fontes do Direito..............................................................................................................41
4.4.1 Fontes primárias........................................................................................................41
4.4.2 Fontes secundárias.....................................................................................................43
5 Família jurídica muçulmana....................................................................................................43
5.1 Âmbito pessoal do Direito Muçulmano............................................................................43
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5.2 Países onde vigora............................................................................................................43
5.3 Génese e evolução............................................................................................................44
5.3.1 Origem.......................................................................................................................44
5.3.2 O cisma entre Sunitas e Xiitas...................................................................................44
5.3.3 Formação do Direito Muçulmano..............................................................................45
5.4 Características gerais........................................................................................................46
5.4.1 Base religiosa............................................................................................................46
5.4.2 Pluralidade de fontes.................................................................................................46
5.4.3 Tendencial uniformidade do Direito..........................................................................46
5.5 Meios de resolução de litígios..........................................................................................46
5.5.1 Tribunais religiosos/da Xaria.....................................................................................46
5.5.2 Tribunais estaduais/laicos..........................................................................................46
5.6 Fontes do Direito..............................................................................................................46
5.6.1 Xaria..........................................................................................................................46
5.6.2 Outras fontes principais.............................................................................................47
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1. Introdução ao Direito Comparado
1.1 A formação do Direito Comparado como ciência e uma perspetiva
metodológica
O nosso ponto de situação é a rutura científica imposta pela revolução iluminista. Isto quer dizer
que existe um período anterior ao Iluminismo e outro que lhe é posterior.
O Iluminismo tem como característica o reforço da razão, portanto, a tensão entre o “mitos” e o
“logos” passa a ser uma questão menor porque só se discute como o conhecimento produzido
pela razão individual humana (logos) pode justificar o conhecimento humano e o progresso da
humanidade. Durante essa época, o Direito Comparado tem o objetivo de autodefinir-se como
Ciência, dado que não se sabia se deveria ser considerado como ciência autónoma ou como
método de investigação.
1924 marca o período pós-Grande Guerra, de grande instabilidade e início do movimento que
iniciará mais à frente a II Guerra Mundial, em que a Sociologia é reescrita por Max Weber, em
que a Sociologia do Direito está mais forte do que nunca com Eugen Ehrlich, em que começa a
ser questionada a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e em que o Direito Comparado
continua com a sua difícil missão de se autodefinir. É também em 1924 que é criada a
Academia Internacional de Direito Comparado, que se dedicou a facilitar o diálogo entre os
comparativistas (: jurista que se dedica ao estudo do Direito Comparado) e que propôs um
primeiro objetivo para o Direito Comparado: No artigo 2º do seu estatuto refere que o Direito
Comparado se preocupa com a aproximação sistemática e a conciliação das leis. Esse artigo 2º
foi posteriormente revisto e hoje define um pouco melhor o objetivo do Direito Comparado: o
estudo comparado dos sistemas jurídicos.
Quando as Nações Unidas foram criadas em 1945 pelo Tratado de São Francisco já se percebia
que a aproximação dos povos deveria ter prioridade diante da aproximação dos Estados, isto é,
mais valia a proteção dos indivíduos, seja qual fosse o sítio em que se encontravam, do que a
proteção dos Estados. Isto é bastante importante para o Direito Constitucional, pois marca uma
mudança da ideologia constitucional em que as Constituições formais foram sucedidas por
Constituições materiais dedicadas à proteção e garantia dos Direitos Fundamentais (: Direitos
Humanos reconhecidos pelas Constituições). É assim que em 1948, as Nações Unidas ratificam
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a Declaração Universal dos Direitos Humanos e em 1949 a UNESCO, o organismo das Nações
Unidas que se dedica à educação, reconhece que os Direitos Humanos só são eficazes quando
são ensinados aos indivíduos que devem assim conhecê-los e que os Direitos Humanos terão
melhor proteção se os Estados dialogarem uns com os outros. É, deste modo, que a UNESCO
cria o Comité Internacional de Direito Comparado, favorecendo o diálogo para o
conhecimento dos sistemas jurídicos dos Estados com a adoção das técnicas e do método de
Direito Comparado.
Quando a UNESCO então propõe essa medida prática no âmbito internacional, além de
reconhecer a importância do Direito Comparado, atribuiu aos comparatistas o dever de definir
cientificamente o que é o Direito Comparado e de responder à pergunta: “Existe um ramo
juscientífico conhecido por Direito Comparado?” Sendo assim, queria-se saber se o Direito
Comparado é uma ciência autónoma ou se é um método pelo qual a Ciência do Direito
consegue obter resposta às suas questões científicas. O primeiro comparatista que mergulhou
em busca da resposta a esta questão foi Gutteridge.
- René David, em 1964, período dos movimentos sociais e do grande entusiasmo com a nova
ordem constitucional que garantiu o acesso a novos direitos fundamentais, é o primeiro
comparatista que foge à discussão se o Direito Comparado seria um método pelo qual a Ciência
do Direito conseguia obter resposta às suas questões científicas ou uma ciência autónoma e
define três pontos que esclarecem porque é que o Direito Comparado é importante, abrindo o
diálogo entre as duas teorias:
1) O Direito Comparado contribui para as investigações históricas e filosóficas do Direito visto
principalmente como norma. Ou seja, se se quiser saber como é que o Direito se comporta num
determinado Estado, precisa-se de analisar o seu passado, isto é, a evolução da sociedade e das
normas jurídicas.
2) O Direito Comparado interessa para o conhecimento e desenvolvimento do Direito Interno
dos Estados. Conhecer o método de Direito Comparado facilita perceber qual é o lugar do
Direito Interno no mundo, e por mais isolado que este seja, será sempre influenciado por
Direitos externos.
3) O Direito Comparado permite compreender os ordenamentos jurídicos dos mais diversos
países, favorecendo as relações internacionais. Quando se percebe o sistema jurídico de um
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determinado país pelos seus valores internos, está-se mais disposto a relacionar-se com ele, pois
consegue-se definir quais são as semelhanças e as diferenças entre os dois sistemas jurídicos.
A partir de René David, as teorias que se seguem vão propor uma certa harmonia entre as duas
teorias.
- Marc Ancel, em 1971, propõe a observação das várias técnicas comparativistas que compõem
o método comparativo e que podem ser usadas pelos comparativistas. São os comparativistas
que terão de definir a técnica que irão usar para resolver o problema que pretendem resolver na
análise comparativista entre os sistemas jurídicos.
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- Comparação sucessiva em diferentes países
-» Exemplo: Pretender-se-á comparar o instituto da eutanásia nos sistemas jurídicos
holandês, que a repudiou, e português, que a aprovou, para, por exemplo, adquirir fundamentos
para uma discussão no âmbito da Assembleia da República sobre tal assunto
- História comparada de instituições de diferentes países
-» Exemplo: Pretender-se-á comparar o Constitucionalismo Português com o
Constitucionalismo Brasileiro, fazendo uma divisão entre o período monárquico e imperial e o
período republicano.
O grande erro do Direito Comparado é entendê-lo como mera descrição de um sistema jurídico.
A intenção do Direito Comparado é de comparar e não de descrever. O Direito Comparado
pretende identificar metodicamente as semelhanças e diferenças entre ordens, sistemas, normas
e institutos jurídicos. Para além disso, tem de se ter cuidado ótimo com a justaposição, ou seja,
com a observação de uma determinada norma de um determinado sistema jurídico e importá-la
para criar no próprio sistema jurídico o mesmo elemento exatamente igual como foi criado na
origem. Ter-se-á de definir as semelhanças e diferenças entre os sistemas jurídicos e adaptar a
norma à realidade do sistema jurídico ao qual se pretende importar a norma em questão.
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aplicar não o que se achava, mas antes o que estava escrito para a solução dos litígios. O Direito
escrito era produzido na ágora (: centro político, jurídico, social, económico, cultural das
cidades-estado) e devia ser justificado na razão e vontade humanas em sociedade, e não na
deliberação dos deuses. É a fase do racionalismo helénico que muito deve aos três filósofos
Sócrates, Platão e Aristóteles que têm como objetivo intelectual comum, fundamentar o
racionalismo e as relações humanas pela razão e não pela divindade; pelo logos (: conhecimento
interno, produzido pela razão) e não pelo mitos (: conhecimento externo ao indivíduo, imposto
como verdade científica). Quando os Atenienses propõem a mudança da fonte do Direito dos
costumes para a lei, Esparta, Tebas e Corinto observaram essa mudança em Atenas e criaram
também as suas leis justificadas na razão. Quando os romanos invadem a Grécia e dominam a
confederação grega deparam-se com esse sistema que era completamente diferente do seu.
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2.4 O Concílio de Niceia e a criação do Direito Canónico
A partir da crucificação de Jesus Cristo surgem no Império Romano várias seitas cristãs com
dogmas (: doutrina proclamada como fundamental e incontestável) e liturgias (: conjunto de
cerimónias e orações) próprios. Como consequência, instaurou-se praticamente uma guerra civil
entre as várias seitas que Roma pretendeu conter. A medida mais eficaz, para tal efeito, foi a
que aconteceu no século IV DC, nomeadamente a ordem dada por Constantino para reunir
num conselho, o Concílio de Niceia, todos os líderes das seitas cristãs surgidas a partir da
crucificação de Jesus Cristo para definir a estrutura religiosa e política de uma nova religião do
Império Romano, a Religião Católica Apostólica Romana, e do seu representante político que
dialogasse diretamente com o Imperador romano, o Papa. Quando a Santa Igreja Católica
Apostólica Romana então se estrutura religiosa e politicamente, é lhe atribuído o poder de criar
o seu Direito religioso e recuperar na História romana aquilo que foi o fas (: normas religiosas
do início do Império Romano). Essa ordem religiosa, justificada no poder divino e traduzida
pelo Papa, devia conviver com o Direito pagão (: que ou o que segue uma religião assente na
crença em vários deuses), a iura (: normas humanas), legitimado pelo SPQR e traduzido pelo
Imperador. Rapidamente se formou o Corpus Iuris Canonici ou Direito Canónico.
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importância para o Direito Canónico. Enquanto os clérigos divulgavam oralmente o Direito
Canónico nas missas e outros eventos eclesiásticos, o Direito Romano começou a ser esquecido
devido à impossibilidade de ser copiado e divulgado através da escrita. Como quem controla a
lei, controla o Estado, o Papa passou a exercer, enquanto representante político da Igreja
Católica e controlador do Direito Canónico, o cargo político no Império Romano que estava em
decadência.
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da agulha, do que um rico entrar no reino dos céus”. Luteranismo
-» João Calvino: Propôs a ideia de se agir conforme os dogmas e as premissas, não se
pretendendo pecar e ser absolvido mediante o pagamento. Calvinismo
Estas duas propostas de reconstrução do Catolicismo não foram aceites pela Igreja Católica,
mas permitiram o desprendimento do catolicismo enquanto sinonimo de cristianismo. Ou seja, a
partir dessas reformas religiosas reconheceu-se serem religiões cristãs o luteranismo e o
calvinismo que conviviam harmonicamente com uma terceira religião que seria a religião
católica. Existe ainda uma terceira escola protestante relevante, o anglicanismo, que foi criado
em Inglaterra e que ganha contornos no mundo anglófono a partir de então.
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XI DC, criando uma escola de glosadores (: estudiosos juristas que deixavam entre as linhas da
cópia do livro I do Digesto de Justiniano observações/sugestões sobre como se poderia adaptar e
atualizar o Direito Romano a determinada sociedade). Mais tarde, a escola de glosadores deu
origem a uma variação, nomeadamente a escola dos comentadores (: estudiosos juristas que
faziam comentários de como se deveria aplicar o Direito Romano na nova realidade social).
-» Universidade de Paris: Preocupa-se em aproximar o Direito Canónico ao Direito
Romano, muito devido à influência e experiência dos doutores clérigos que também eram
professores catedráticos em Paris (Tomás de Aquino, Jerónimo, Ivo de Kermartin) e devido ao
facto de que a lecionação do curso de Direito era consequente da teologia, ou seja, do estudo do
Direito Canónico. Surgiu assim a escola humanista (: procurava trazer os valores religiosos para
a realidade dos indivíduos em sociedade).
-» Mundo germânico: Os germânicos adaptam o Direito Romano aos costumes
comunitários, considerando que a lei pode ser criada de cima para baixo, como acontecia em
Roma, mas deve ser preferencialmente criada de baixo para cima, representando os valores
comunitários e dando os indivíduos autoridade à lei. Surgiu assim a escola das pandectas.
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da decisão que tomou. Algum tempo depois, todavia, o Papa morre, sucedendo-lhe como Papa o
cardeal de Paris que tinha uma grande proximidade para com Felipe IV. Quando foi nomeado
Papa, ele suspende a excomunhão aplicada ao Rei Felipe IV e a Guillaume de Nogaret pelo
Papa anterior, reconhecendo-os como os mais católicos dos católicos, declara como um ato de
loucura, não representando a vontade de Deus, a decisão do seu antecessor de não cooperar com
Felipe IV, obriga o Papado a idealizar o Rei da França e orienta os templários a prestarem
serviços militares ao Reino dos Francos. Essa última ordem não foi bem aceite, reconhecendo-
se e declarando-se a atividade dos templários como heresia (: ato ou palavra ofensiva da
religião), o que autoriza Felipe IV a perseguir e prender os templários.
A partir de Felipe IV o que se viu foi, juntamente com a legitimação do Direito divino, a
legitimação da força e do sangue. Ou seja, reconheceu-se que o Papa era um ser humano como
qualquer outro e, portanto, também está sujeito eventualmente às leis dos Reis. Já não era
necessária a autorização do Papa para reconhecer a legitimidade de um Rei e isso dava a
liberdade a cada reino de decidir o que quisesse. É também a partir da campanha de Felipe IV
que as universidades têm a autonomia para discutir a ciência sem a limitação dos valores
dogmáticos.
Este valor coletivo/comum decorrente dos costumes comunitários dos povos nórdicos, aos quais
também pertenciam os povos germânicos, contrapunha-se aos valores individuais dos romanos,
dando maior importância à satisfação das necessidades coletivas em detrimento à satisfação das
necessidades individuais de cada indivíduo. Contudo, como é que se conseguiu conjugar dois
valores antagónicos após a queda do Império Romano e com a criação do ius commune? A
resposta estaria no reconhecimento da autoridade da lei como principal fonte do Direito
determinada pelos romanos e emanada pela instituição legítima do Senatus Populus Quae-Roma
e na aproximação dos costumes individuais dos povos de raiz latina aos costumes comunitários
dos povos nórdicos, fazendo com que fosse possível satisfazer os interesses individuais tendo
igualmente em consideração os interesses comunitários. É assim que a lei passou a ser percebida
como uma norma jurídica geral e abstrata, isto é, vinculativa à generalidade dos indivíduos que,
por sua vez, seriam responsáveis pelo seu cumprimento e pela satisfação dos seus interesses e,
da mesma forma, os interesses da coletividade.
É então esta teoria de conjugação entre o reconhecimento da lei como principal fonte do Direito
e o respeito dos costumes, sejam eles de raiz individual, sejam eles de raiz comunitária, que iria
passar à prática com a eclosão da Revolução Francesa.
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2.10 Jusracionalismo, codificação e aculturação jurídica
2.10.1 As razões para a eclosão da Revolução Francesa
Embora os conflitos e a insatisfação social relativamente à monarquia absoluta francesa se
foram construindo a partir do século XIV, a Revolução Francesa tem como marco histórico o
ano de 1789, ano este em que os conflitos e a insatisfação social chegaram a um tal nível
elevado que puseram em causa a monarquia absoluta francesa.
1) Foi no âmbito da Revolução Francesa que se percebeu que a lei mantinha a ordem em
sociedade. Portanto, quem tinha o poder de criar as leis, tinha o poder e o controlo sobre a
sociedade e sobre tudo o resto. Esse poder, naquela altura, pertencia aos reis absolutos franceses
que criavam as leis de acordo com os seus interesses e não de acordo com os interesses do povo.
Contudo, esta perceção social não foi suficiente para a eclosão da Revolução Francesa:
2) Por um lado, a Coroa Francesa estava em guerra com outros países.
3) Por sua vez, visto que Paris enfrentava uma situação de crise sanitária devido ao despejo de
dejetos no rio Sena que constituía a principal fonte de água da região parisiana, o rei, para
impedir a poluição desse rio e urbanizar a cidade, decidiu introduzir um novo imposto com vista
à construção de casas de banho públicas, traduzindo o princípio romano designado por “pecunia
nonolet” que significa “o dinheiro não cheira”. Ou seja, não importa a origem da cobrança dos
impostos, importa sim o dever de pagá-los.
4) Por outro lado, o ano de 1789 foi um ano de dificuldades no âmbito agrícola em França, o
que diminuiu a produção de grãos. O rei, sendo enfrentado com esta situação, decide aumentar o
imposto sobre a produção da principal fonte de alimentação da época, o pão.
Encarados com estas dificuldades, a sociedade organizou-se para impedir as políticas
públicas tributárias, exigindo que o rei levasse em consideração o bem-social quando criasse
leis. O resultado foi a prisão dos reis de França em 1789.
No Ancien Régime não havia uma Assembleia Representativa dos cidadãos francesas. Havia
sim uma estrutura político-jurídica de aconselhamento do rei, baseada em três estados gerais:
- Primeiro estado: Nobreza (max. 5’000)
- Segundo estado: Clero (max. 8’000)
- Terceiro estado: Povo (max. 20’000’000)
Nas votações, todos estes três estados, literalmente, tinham um único voto. Os dois primeiros
estados, apesar da sua insignificância numérica relativamente ao terceiro estado, tinham assim
maior poder de decisão do que este último, apesar de neste integrarem um número superior de
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indivíduos. O terceiro estado acabou por se insurgir contra esta estrutura dos estados gerais,
baseando-se na proposta de Joseph Sieyès que, na sua obra “Qu’est-ce que c’est le troixième
État?”, ou seja, “o que é que é o povo?”, apresenta uma nova estrutura sociojurídica que dava a
cada indivíduo direito a um voto, construindo-se desta forma a cidadania francesa. É a partir da
proposta de Sieyès que a História Constitucional Francesa se forma. Para o Direito Comparado
o que se viu foi que, num curto espaço de tempo, se criaram várias ordens constitucionais com
valores políticos diferentes: a Monarquia Absoluta Constitucional de 1791, a Monarquia Liberal
Constitucional de 1793, o regime de terror de Robespierre, a Constituição excecional e
totalitária que legitimou o Império Napoleónico, a Primeira República, a Democracia Social de
1948, etc.
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2.10.5 A codificação
Na França:
Em 1804, Napoleão Bonaparte, Imperador dos Franceses, ordena a criação de um novo
Código Civil dos Franceses onde foram positivadas as normas jurídicas de natureza privada,
permitindo uma maior facilidade de perceber, de conhecer e de cumprir o Direito Civil. Foi a
partir da criação do Código Civil dos Franceses que se encontrou uma nova forma de se fazer
leis que representavam um ramo específico do Direito, uma nova forma de assegurar a
concentração e a divulgação da lei para lhe conferir primazia sobre as demais fontes do Direito.
Este primeiro Código teve, por um lado, uma aparência de liberdade, considerando aqueles
quatro elementos consequentes da experiência revolucionária francesa, mas previa, por outro
lado, a consagração de um “pouvoir neutre” proposto por Benjamin Constant que seria um
poder político superior aos demais poderes do Estado que os aproximasse quando estivessem
em conflito, poder esse atribuído ao próprio Napoleão. Para além disso, o Código Civil dos
Franceses representava os interesses dos cidadãos franceses independentemente do “estado
geral” a que pertenciam e era caracterizado pelos princípios e valores da Revolução Francesa:
- Individualismo liberal, ou seja, a satisfação das vontades individuais garantidas na lei
enquanto produto do Estado;
- Laicismo, sendo o Código Civil justificado na razão humana e não numa divindade;
- Substituição da família patriarcal, tentando-se estender a igualdade de género e a ideia de que
a família fosse construída em iguais condições entre a mulher e o homem.
Na Alemanha:
O Código Civil Alemão de 1900 (BGB) foi o último Código a ser criado no âmbito do
movimento de codificação, que representou ideais do individualismo liberal e foi marcado pela
precisão da linguagem técnica do mesmo. Já antes da criação do Código Civil dos Franceses,
existia um modelo de Código proposto por Friedrich Carl von Savigny que defendia a
recuperação da ideia de Justiniano e Triboniano que consistia na compilação de todo o Direito
vigente na Prússia. Esta proposta de Savigny foi oposta pela proposta de Rudolf von Ihering
que defendia um resgate da perceção de que alguns direitos são ditados pela natureza e
incorporados pela razão humana.
Em Portugal:
O Código Civil Português de António Luís de Seabra de 1867, embora com algumas
particularidades internas, foi influenciado pelo Código Civil dos Franceses, adotando o
individualismo liberal, o acesso dos indivíduos à lei em grau de igualdade, mas não aceitava a
laicização do Estado, sendo muitos dos elementos jurídicos contidos neste mesmo Código
justificados em valores morais católicos, podendo-se dar os seguintes exemplos:
- O casamento enquanto sacramento em vez de direito civil;
- O registo de batismo enquanto registo de nascimento;
- A manutenção de alguns privilégios à Igreja Católica.
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Baixos) terem mecanismos diferentes de colonização e de aculturação jurídica, todos eles
tinham um objetivo comum, nomeadamente a imposição do seu Direito nativo sobre as
colónias.
2) A primeira Constituição Brasileira de 1824 foi elaborada e outorgada por D. Pedro I que
tinha como base a Carta Imperial Napoleónica que tinha ideias liberais, mas que previa um
controlo dessa liberdade por parte do poder moderador. Esse poder foi-lhe constitucionalmente
atribuído, garantindo-lhe o direito e o controlo político do Brasil. A Carta Constitucional de
1826, a segunda Constituição de Portugal, seria mutatis mutandis uma réplica da Constituição
Brasileira de 1824, tendo sido igualmente elaborada e outorgada por D. Pedro I, constando dela
a consagração de um poder moderador exercido pelo Rei.
3) A Constituição Imperial de 1824 foi vigente até ao ano de 1891, sendo adotada a primeira
Constituição Republicana do Brasil depois da instauração da República no ano de 1889. Esta
Constituição foi inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América que pertence à
família jurídica de Common Law, não deixando o Brasil todavia de pertencer à família jurídica
romano-germânica. Seria também a Constituição Republicana do Brasil o modelo ideológico da
Constituição Republicana Portuguesa de 1911.
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- Países do Benelux: Bélgica, Países-Baixos e Luxemburgo
- Países eslavos: Eslováquia, Polónia, República Checa e Rússia
- Países do sudeste: Grécia e Turquia
A Equidade tem a sua origem na palavra “aequitas” que nasce no período em que o Direito
Romano era extremamente severo e torturante e que não levava em consideração as
particularidades do caso concreto, mas levava em consideração sim a aplicação formular das
sentenças (ex. A pena de morte era idêntica para alguém que roubasse e matasse um indivíduo e
para alguém que roubasse uma maçã de uma árvore).
Esse Direito Romano desmedido foi posto em causa, surgindo como solução a Equidade que
pretendia abrandar o rigor das leis romanas severas e torturantes.
Celso, um jurisconsulto, iria criar a “iuris praecepta”, ou seja, princípios de Direito que iriam
ajudar a aplicar o sentido de Equidade aos casos concretos, de forma a se fazer justiça. Foram
três esses princípios de Direito:
- honeste vivere - viver honestamente;
- nominem laedere - não causar danos a alguém/ não prejudicar o direito alheio;
- suum cuique tribuere - dar a cada um o que é seu.
Esse contributo de Celso foi tão forte que serviu de inspiração a Ulpiano para a formulação da
definição romana de Justiça: “Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuere.” Isto é: A Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe pertence.
E é exatamente a própria lei que diz o que é de cada um, tendo somente o juiz de aplicar
equitativamente aquilo que a lei diz ao caso concreto, fazendo-se deste modo Justiça. É assim
que se fortalece o elemento que reconhece a lei como a principal fonte do Direito da família
jurídica romano-germânica.
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2.13 Fontes do Direito
2.13.1 Noções
A principal fonte do Direito para a família jurídica romano-germânica, como já foi previamente
referido, é a lei, seja pela importância, seja pela prevalência hierárquica que possuiu. Contudo,
como foi observado no âmbito da formação histórica da família jurídica romano-germânica, a
autoridade da lei deve conviver com a existência dos costumes comunitários fruto da
experiência germânica. É assim que, em Portugal ou em França, a lei é fonte quase que
exclusiva para a criação de direitos, enquanto que na Alemanha ainda se confere alguma força
jurídica aos costumes de raiz comunitária. Para além da lei, existem para a família jurídica
romano-germânica outras fontes do Direito, sendo elas:
- Tratados e fontes de Direito Internacional (2.13.2)
- Atos de Direito Comunitário (2.13.3)
- Lei (2.13.4)
- Costume (2.13.5)
- Jurisprudência (2.13.6)
- Doutrina (2.13.7)
- Princípios jurídicos (2.13.8)
- O Direito Interno é o Ordenamento Jurídico Interno criado pelo Estado no exercício regular
do seu poder político, sendo este aplicável em determinado tempo e dentro do seu território.
Desta forma, os indivíduos e entes encontram-se subordinados ao poder político do Estado,
cabendo ainda mencionar que não é necessário transpor o Direito Interno.
O Direito Comparado averigua que todos os Estados que pertencem à família jurídica
romano-germânica criaram disposições constitucionais sobre o procedimento de transposição
das normas de Direito Internacional para o seu Direito Interno (ex. artigo 8º da CRP). A partir
dessa transposição, às normas de Direito Internacional é-lhes reconhecida a força de lei.
O Direito Supranacional é marcado, por um lado, pela transferência de parte da soberania dos
Estados-membros em favor da formação de uma União dos Estados e, por outro lado, pela
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cessão parcial da soberania desses Estados-membros, encontrando-se estes subordinados às
normas que forem criadas pelos órgãos supranacionais, tendo o dever obrigatório de as cumprir.
Para além disso, cada Estado-membro possuiu o direito de representação, podendo-se e
devendo-se representar nos órgãos de criação do Direito (ex. Parlamento Europeu).
O Direito Comparado percebe que existem mais semelhanças entre os indivíduos do que
diferenças, tendo sido construído o princípio do respeito entre os iguais que significa que não
importa as diferenças entre os indivíduos, mas importa sim o respeito que os indivíduos devem
ter uns pelos outros por serem iguais na condição de serem seres humanos. Este foi o principal
fundamento para a celebração do tratado de Schengen, um tratado de livre circulação de pessoas
no âmbito da União Europeia, o que possibilitou que os indivíduos percebessem que,
independentemente das suas diferenças, são todos iguais por serem seres humanos.
-» Conclusão: A lei é tão importante para a família jurídica romano-germânica que a sua força
pode ser evidenciada no Direito Internacional, no Direito Supranacional e no Direito Interno.
Todas essas leis são fundamentais para caracterizar um Estado enquanto pertencente da família
jurídica romano-germânica.
2.13.4 Lei
Para os sistemas-jurídicos da família jurídica romano-germânica, a principal fonte do Direito é a
lei e, dentre as leis, a lei que melhor manifesta a autoridade da lei é a Constituição. É ela que...
... cria os mecanismos para a transposição das normas de Direito Internacional;
... reconhece a autoridade das normas de Direito Supranacional;
... determinada a força e os critérios formais que cada lei tem no Direito Interno.
21
têm em comum regras fundamentais de organização e limitação do exercício do poder político,
sendo este baseado numa conceção de Democracia Representativa que se irá distinguir
consoante a definição que cada país constitucionalmente dá ao princípio democrático. A
expressão “democracia” já não corresponde com a definição dada pelos gregos (demo | kratos =
governo do povo), nem à definição de Abraham Lincoln (governo do povo, pelo povo e para o
povo). Hoje em dia percebe-se que é impossível que o povo, por si, governe o Estado e cuide da
coisa pública. Reconhece-se, contudo, que é fundamental que alguém o faça, ocupando-se dessa
tarefa os representantes eleitos pelo povo de acordo com um sistema de sufrágio
constitucionalmente consagrado, viabilizando deste modo a Democracia Representativa.
2.13.5 Costume
A importância do costume como fonte do Direito é assumida de distinta maneira entre os países
que formam a família jurídica romano-germânica:
- Os países latinos não reconhecem a força dos costumes como fonte do Direito, muito devido
ao movimento de codificação que assentou o reconhecimento da lei como a principal fonte do
22
Direito, afastando os costumes. Sendo assim, para estes países, o costume não indica uma fonte
para a criação do Direito (imediata), mas é sim uma fonte de compreensão do Direito (mediata).
- Os países germânicos reconhecem a força dos costumes como fonte do Direito, muito devido
à formação dos costumes comunitários no âmbito da sua História, que se referem ao interesse de
todos pelo bem comum, como foi previamente analisado.
2.13.6 Jurisprudência
A jurisprudência, dentre as demais fontes do Direito da família jurídica romano-germânica é a
mais complexa e a de mais difícil perceção, existindo dois sentidos:
1. Sentido etimológico: A jurisprudência tem a sua origem etimológica na palavra latina “iuris
prudentia” em que “iuris” significa Direito e “prudentia”, dentre tantos outros significados,
significa ciência. Sendo assim, a jurisprudência significa ciência do Direito. Como ciência do
Direito, a jurisprudência é vista como a teoria que serviu de fundamento para a construção do
Direito.
2. Sentido prático: A jurisprudência significa os julgados dos tribunais. Este sentido, sendo o
mais comum para os países latinos pertencentes à família jurídica romano-germânica, pressupõe
a aplicação do Direito ou da lei pelos juízes ao proferirem as suas sentenças e ao resolverem os
processos. Contudo, é com base neste sentido que se levantam questões acerca dos limites da
liberdade de julgar dos juízes da família jurídica romano-germânica. Para tentar responder a
essa questão, existem três elementos de limitação:
1) Lei: Quando o juiz profere uma sentença, ele tem que identificar qual o fundamento na lei
que lhe garante a decisão que tomou.
2) Factos jurídicos (: acontecimento que gere consequências jurídicas): A
fundamentação da decisão tomada pelo juiz está ligada à análise dos factos jurídicos.
3) Provas: Ao juiz só lhe é possível verificar quais foram os factos jurídicos através das
provas.
-» Exemplo: “Homicídio”
1) Uma pessoa ao conduzir o seu automóvel, bêbedo, perde o controlo do mesmo, atropela uma
pessoa e mata-a.
2) Uma pessoa, sem ter consumido álcool, sofre um infarto ao conduzir o seu automóvel, perde
o controlo do mesmo, atropela uma pessoa e mata-a.
3) Uma pessoa, sem ter consumido álcool, ao conduzir o seu automóvel, reconhece o seu pior
inimigo que está a ultrapassar a rua, atropela-o e mata-o.
Quando o juiz for julgar estes três casos, deduzirá que todos eles tiveram o mesmo resultado:
a morte pelo atropelamento (prova). Contudo, os factos jurídicos que geraram a morte
distinguem-se:
1) O condutor não quis o resultado mas assumiu o risco.
2) O condutor não quis o resultado e não assumiu o risco.
3) O condutor quis o resultado e teve a intenção de causar o dano.
Encarando as provas e os factos jurídicos, o juiz irá, com base no Código Penal (lei), tomar uma
decisão e proferir uma sentença que será diferente para todos os três casos.
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esse problema:
1 – Jurisprudência (pre)dominante: A jurisprudência (pre)dominante é um modelo de decisão
que serve para preservar a Equidade e o respeito pela autoridade hierárquica entre os tribunais.
2 – Hierarquia entre os tribunais: Sempre que o juiz proferir uma sentença e é criado um
prejuízo para uma das partes, a parte prejudicada tem o direito ao recurso da decisão do juiz.
-» Organização judicial em Portugal: Tribunal Constitucional > Supremo Tribunal de
Justiça > Tribunais da Relação > Tribunais de instrução.
A resposta a esta pergunta está longe de ser consensual, existindo três pontos de vista distintos:
1) A jurisprudência não é uma fonte do Direito, uma vez que as decisões dos tribunais só
encontram aplicação no caso concreto. Ou seja, o juiz, ao aplicar a jurisprudência, só esclarece o
seu julgado, tendo o Direito sido anteriormente criado.
2) Por via de regra, a jurisprudência não é reconhecida como fonte do Direito, servindo somente
de orientação para a aplicação do Direito, mas, em certas matérias, pode ser reconhecida como
fonte do Direito, uma vez que interpreta, desenvolve ou completa normas legais ou preenche as
suas lacunas.
3) A jurisprudência assume o valor de costume jurisprudencial, criando-se o hábito de os
tribunais aplicarem a jurisprudência aos casos assemelhados.
2.13.7 Doutrina
A doutrina tem, para os países pertencentes à família jurídica romano-germânica, força para
desenvolver o Direito, dando a conhecer e explicando o conteúdo da lei e podendo propor a
alteração de quaisquer leis. Mas a doutrina não tem força para criar Direito, sendo somente uma
fonte mediata do Direito, sendo este criado somente pela lei.
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deixados de ser considerados como elementos do Direito Positivo, dotados de valor próprio e,
como tal, suscetíveis para serem utilizados como base para a fundamentação e orientação nas
decisões jurídicas. São exemplos:
- Pacta sunt servanda: Os contratos são para ser cumpridos (princípio da obrigatoriedade)
- Honeste vivere + neminem laedere -» bonum facere (princípio da boa-fé)
- Nullum crimen, nulla poena, sine lege -» Não existe crime sem lei anterior que o defina.
- Nemo iudex sine actore -» Ninguém é juiz sem que o autor da causa o provoque, pedindo a
proteção do Estado.
Esta definição de jurisdição não se mostra, todavia, de fácil aplicação na prática, uma vez que as
leis são criadas para resolver os problemas jurídicos na teoria. O juiz, quando acontece o caso
concreto, terá de partir dessa teoria e adaptar a solução à prática, para isso tendo a liberdade de
julgar. Porém, essa liberdade encara-se com três elementos de limitação, como foi já analisado:
1) Lei: O juiz tem o dever de identificar na Ordem Jurídica do Estado a lei aplicável ao caso
concreto.
2) Factos jurídicos: Tendo identificado a lei aplicável ao caso concreto, o juiz tem de
justificar a sua escolha, tendo em conta os factos jurídicos.
3) Provas: Os factos jurídicos devem ser determinados pelas provas.
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Como é que o silogismo aristotélico adaptado ao silogismo processual dos dias atuais?
Primeiro, cabe definir o que é o processo. O processo para os países pertencentes da família
jurídica romano-germânica é um instrumento da jurisdição. É assim que, através do processo, o
juiz exerce a jurisdição e resolve os litígios. Contudo, como foi observado, a liberdade de julgar
do juiz está limitada pelos três elementos de limitação (lei, factos jurídicos e provas), sendo
estes mesmos elementos incorporados no silogismo, criando para o juiz um método que o
permita obter uma resolução científica do litígio que esteja concorde com o seu dever de
descobrir na Ordem Jurídica a lei aplicável ao caso concreto, diante da apuração dos factos
jurídicos demonstrados pelas provas.
Silogismo processual
I Premissa maior -» Dentre de todas as normas jurídicas aplicáveis, escolher aquela que
deve ser aplicada ao caso concreto.
II Premissa menor -» Identificar, diante dos factos jurídicos demonstrados pelas provas, a
norma jurídica que deve ser aplicada ao caso concreto
III Conclusão -» Norma jurídica aplicável no âmbito dos factos jurídicos demonstradas
pelas provas
Ainda assim, o silogismo processual não é um método exato, através do qual o juiz identifica a
norma jurídica diretamente aplicável ao caso concreto.
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através da integração da lei para definir a norma jurídica aplicável ao caso concreto ou a
interpretação a dar à norma jurídica que naquele momento existe.
Na Alemanha:
Devido à equiparação do costume à lei, a Alemanha considera o costume como elemento de
integração da lei, antes de ser aplicada a analogia.
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era uma estrutura própria que nenhum país tinha, os estados gerais, que era um órgão de
consulta para o Rei. Por outro lado, percebe-se que a centralização do poder para controlar a
coisa pública no Rei (L’État, c’est moi!).
Com a vitória da Revolução Francesa mantém-se o dever de reconstruir um Noveau Régime
constitucional que, por um lado, respeitasse a necessidade da criação de um Parlamento que
criasse leis (Assembleia Nacional) e, por outro lado, uma estrutura jurisdicional que
contemplasse os tribunais administrativos. Sendo assim, a jurisdição na ordem interna francesa
divide-se em jurisdição judiciária (competência civil, comercial, social e penal) e jurisdição
administrativa (competência administrativa).
Para além dos Tribunais Constitucionais, o sistema jurídico alemão tem cinco ordens de
jurisdição divididos em função da sua competência em razão da matéria: ordinária,
administrativa, financeira, laboral e social.
A jurisdição ordinária está organizada em três instâncias, sendo que as primeiras duas
pertencem às Länder e a última instância possuiu natureza federal:
1) Primeira instância: Tribunais cantonais (Amtsgerichte) e Tribunais regionais
(Landgerichte)
2) Segunda instância: Tribunal Regional Superior (Oberlandesgerichte) com competência
para julgar os recursos
3) Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof) com competência para determinar a
jurisprudência uniforme infraconstitucional
28
3. A família jurídica de Common Law
Até ao século XVIII, a história do Common Law confunde-se com a história do Direito Inglês.
Será a partir da independência dos Estados Unidos da América que o Common Law perde a sua
pureza devido à criação de uma base constitucional e jurídica própria dos EUA que, embora
tenha a sua origem no Common Law, apresenta características diferentes deste.
1) Não existia Direito na Britannia? Sim, existia Direito, cuja base era formada pelos variados
costumes locais. Existiam costumes bárbaros dos povos locais, costumes violentos dos
colonizadores vikings, costumes romanos devido à tentativa de introdução do Direito Romano e
costumes religiosos devido à implantação do Direito Canónico na Britannia.
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2) Mas, tendo em conta a variada base costumeira na Ilha, como é que o seu Direito se
estruturava? Devido à coexistência dos variados costumes, o que se verificava eram relações
tensas entre as tribos e os povos na Ilha. Porém, essas tensões iriam terminar com a campanha
normanda na Inglaterra.
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2. O Direito para a família jurídica romano-germânica é representado por um triângulo
em que a base está em baixo e a vértice em cima. Na vértice encontra-se a instituição político-
jurídica que cria a lei que é imposta por coação e coerção a toda a sociedade que forma a base
do triângulo. Já o Direito para a família jurídica do Common Law é representado por um
triângulo em que a base está em cima e a vértice em baixo. Enquanto que na vértice se encontra
o Estado, na base encontra-se o costume que define os critérios com base nos quais os juízes
julguem e para que a sua decisão forme o Direito.
Órgão legislativo
Sociedade Estado
Família jurídica romano-germânica Família jurídica do Common Law
Foi exatamente no âmbito deste tribunal que se formalizou a Magna Charta Libertatum,
tendo este contrato sido celebrado no ano de 1215 entre os nobres ingleses e o então Rei João
Sem Terra. O facto de este Rei ter assumindo o trono da Inglaterra, uma vez que o seu irmão e
legítimo Rei Ricardo Coração de Leão estava em plena campanha militar no âmbito das
Cruzadas, não foi bem interpretado pelos nobres ingleses reunidos na Curia Regis que não
reconheciam a autoridade, a legitimidade e o poder de João, exigindo desta forma que a sua
liberdade fosse respeitada. Foi então que João Sem Terra, sem autoridade e sem legitimidade
assinou a Magna Charta, tendo sido ainda necessário de ser reconhecida pelo Papa. Este,
verificando que o contrato não havia sido assinado pelo legítimo Rei de Inglaterra, anulou-o.
Seria dez anos depois, em 1225, que a Magna Charta Libertatum, para além de reeditada, seria
assinada por alguém que tinha autoridade, legitimidade e poder para tal. Já em 1232 procedeu-
se a uma revisão da Magna Charta Libertatum para que muitos dos direitos ali consagrados
fossem limitados. Por fim, no ano de 1297, a Magna Charta Libertatum foi reconstruída,
retornando à sua redação de 1215.
Por orientação da Curia Regis foram criados os três primeiros tribunais ingleses que no ano de
1300 se instalaram em Westminster, sendo a partir daí denominados de Tribunais de
Westminster. São eles:
- Court of Exchequer (Tribunal do Tesouro Real) com competência fiscal
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- Court of Common Pleas (Tribunal dos Pleitos Comuns) com competência para resolver
litígios sobre terras
- Court of King’s Bench (Tribunal do Banco do Rei) com competência criminal
Devido à criação gradual e sucessiva da comune ley, antecessora do Common Law, por parte
atuação dos tribunais e da adaptação interna das regras consuetudinárias, do Direito Romano e
do Direito Canónico que as tensões entre os diversos povos se acalmaram. A criação deste
Direito Comum foi orientado por dois princípios:
1) Razoabilidade: Considerava-se razoável aquilo que está concorde à liberdade e à freedom.
2) Bom senso: Considerava-se que se tinha de levar em consideração as particularidades dos
costumes dos países que se relacionavam com a Inglaterra.
Seria igualmente durante este período que se criou o Habeas Corpus Act (: a regra de deixar o
corpo livre). Esta regra foi definida a partir de uma sequência de julgamentos acontecidos no
condado de Clarendon num precedente (: jurisprudência uniformizada pelo tribunal que lhe
reconhece autoridade), ficando por isso conhecido como o “Clarendon’s case”.
Neste período de formação do Common Law, os indivíduos ingleses dirigiam-se aos tribunais
para pedir a criação do Direito. Para tal tinham de apresentar esse seu pedido ao Chancellor (:
conselheiro do Rei) que encaminhava o caso a um dos três tribunais em razão da matéria. A
matéria era então julgada e formava-se a decisão judicial, o writ. Esse writ era posteriormente
enviado e entregue ao Sheriff que representava o juiz no seu condado (count). Ora se o juiz
representava o Rei e se o Sheriff era o rei naquele condado, este tinha, por conseguinte, a
autoridade policial naquele local. Acontece que o Sheriff, com o poder todo que foi era
atribuído, passou a tirar proveito da condição social dos britânicos e a satisfazer os seus
interesses pessoais. Como é que fazia isso? O Sheriff, como foi mencionado, quando recebia o
writ, teria de se dirigir à praça pública e lê-lo ao povo para que estes ficassem a conhecer o novo
Direito que havia sido criado. Contudo, naquela época poucas eram as pessoas que sabiam ler e
escrever. Sendo assim, aquilo que havia fixado no writ, não correspondia com aquilo que o
Sheriff anunciava…
O “Clarendon’s case”, observando toda essa situação, percebeu a arbitrariedade na atuação
dos Sheriffs e definiu como precedente jurisprudencial a regra de que sempre que um nobre
fosse preso ou acusado por um Sheriff deveria o mais breve possível ser apresentado ao Rei. Se
o Sheriff não cumprisse esta ordem, o acusado tinha direito a ser posto em liberdade.
-» Exemplo: A lenda de Robin Hood demonstra bem o poder ilegítimo que os Sheriffs
tinham. Na realidade, não existiu um Robin Hood, mas sim quatro Robins. Esses quatro nobres,
que tinham nomes parecidos e comuns na época, tinham problemas com o Sheriff de
Nottingham porque este lhes tinha arbitrariamente e ilegalmente confiscado a propriedade das
suas terras para seu benefício.
Nesse período, o Direito Canónico era muito forte na Inglaterra que tem uma característica de
opressão e de severidade. O Rei Henrique VIII, insatisfeito com um sacramento católico em
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particular, o casamento, e com a regra “o que Deus uniu, o Homem não separa”, porque gostava
de se casar e de se separar das suas esposas, acabando sempre por matá-las e de romper relações
diplomáticas e por entrar em guerras com os demais países, uma vez que as rainhas eram filhas
de Reis, resolve o problema, criando uma religião para ele que lhe permitisse casar as vezes que
quisesse, a Igreja Anglicana, de raiz cristã, mas com valores protestantes. Instaura-se assim na
Inglaterra o Anglicanismo, o que iria desencadear uma rutura no Parlamento. Estando o
Parlamento dividido, este passou a deixar de ter o controlo sobre as decisões dos tribunais que
havia constituído quando ainda era a Curia Regis. O Direito Comum foi posto de lado, passando
a ser a grande preocupação do Parlamento decidir qual seria a verdadeira religião do Estado.
Chega-se ao ano de 1688. Nesse ano, D. Carlos II, Rei católico, expulsa do Parlamento os
parlamentares protestantes, embora estes terem sido legitimamente eleitos. O Parlamento passa
a ser formado única e exclusivamente por católicos e os protestantes, perseguidos, são exilados
na Holanda. Lá foram recebidos por Guilherme II que era casado com Maria I, sucessora
protestante do trono inglês. É então que os parlamentares protestantes convencem Guilherme II
a invadir a Inglaterra, depor o Rei católico e instaurar uma nova dinastia protestante, coroando
Maria I. Ao início Guilherme II não quis envolver-se numa guerra política contra a Inglaterra.
Contudo, os protestantes apresentaram-lhe um argumento suficientemente válido para o
convencer: “Invada a Inglaterra, porque não terá resistência! Uma vez que o Exército Inglês é
financiado por nobres protestantes e esses estão exilados na Holanda, será uma invasão
pacífica!” E assim o foi. Maria I foi coroada, a Revolução Gloriosa terminou e o Parlamento
aprova a primeira declaração de direitos humanos, a Carta de Direitos Inglesa, ou the English
Bill of Rights, reafirmando a Magna Charta Libertatum e o Habeas Corpus Act e estendendo os
direitos, não apenas aos nobres, mas também aos súbditos. É então que se cria uma tríplice
previsão que vai recompor o Common Law e regulamentar a Equity:
1) Submissão do Rei ao Common Law
2) Inexistência de uma distinção entre direitos públicos e Direto privado. O que pertence ao
individuo pertence ao individuo, incluindo o Estado. Todos são responsáveis pelo seu e pelo
todo. Todos têm o dever de contribuir como deve ser, pelo bem comum.
3) Proteção e satisfação das liberdades individuais sobre os poderes do Estado
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3) A Equity é substituída por um sistema mais estável, criado pela uniformização das
decisões dos tribunais tomadas pela Equity formadas em precedentes, o rule of precedent, que
será posteriormente transformado em case law.
4) Enquanto a Equity passa a constituir o Direito prático, o Common Law passa a constituir
o Direito teórico. Enquanto o Common Law vai-se construindo conforme a formação do Direito
Inglês ao longo da sua história, a Equity atualiza esse Direito, adaptando-o à atualidade.
-» Exemplo: O “Clarendon’s case” ainda é aplicado, mas adaptado a casos atuais. “Os
tempos passam, mas os vilões continuam os mesmos”.
5) Instaura-se um sistema que até hoje é aplicado no Common Law, salvo nos Estados
Unidos da América: o sistema dualista entre o statutory law (Common Law) ligado à lei e o
case law (Equity, rule of precedent) ligado à jurisprudência.
A partir dos Judicature Acts entre 1873 e 1875, procedeu-se a remodelação do Common Law e
do Direito Inglês. A partir de então, os Acts of Parliament, ou seja as regras ditadas pelo
Parlamento em nível de Common Law e pelos tribunais vinculados ao Parlamento em nível de
Equity passam a ter uma nova conceção. Fortaleceu-se a legislação (statutory law) como Direito
teórico e a jurisprudência (case law) como Direito prático.
Em 2005 foi criada a Supreme Court of United Kingdom (Tribunal Supremo do Reino Unido)
que seria um Tribunal Constitucional para o Reino Unido. Essa ideia foi negociada com a União
Europeia, tendo sido exigida a existência de uma estrutura que permitisse transpor as regras do
Direito Supranacional da União Europeia para o Ordenamento Jurídico Inglês e a existência de
tribunais que dialogassem com os Tribunais Constitucionais da União Europeia. Só que a
Inglaterra não tem uma Constituição escrita, mas antes um corpo constitucional no qual consta,
a título de exemplo, a Magna Charta Libertatum de 1215, o Habeas Corpus Act, the English Bill
of Rights de 1689, o Act of Settlement de 1701, até o Reform Act de 2005. Uma vez que esta
estrutura é considerava pelos ingleses demasiado positivista para uma tradição baseada nos
costumes, o Parlamento Inglês já chegou a discutir a dissolução desse mesmo tribunal.
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2) Fontes de Direito subsidiárias:
- Costume (costum)
- Doutrina (doctrine, books of authority)
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já não podem ser aplicados à realidade existente (Practice Statements). Neste âmbito, o tribunal
esquece o precedente antigo, julga o caso concreto como se fosse um leading case e forma um
novo precedente, substituindo a stare decisis do caso anterior.
3) Quando existir um conflito entre precedentes, sempre terá prevalência a stare decisis definida
por um tribunal hierarquicamente superior (Overruling).
4) Mutação por forma oblíqua:
-» Quando a ratio decidendi precisa de ser ampliada, o tribunal estuda, nos casos passados,
quais foram os argumentos dos outros juízes na obter dicta.
-» Casos sem precedentes e casos inovadores (Leading cases)
3.2.1.2 Lei
A lei divide com a jurisprudência a importância entre as fontes do Direito no sistema jurídico
inglês. Se a jurisprudência é o modo normal de produção e de revelação do Direito, a lei pode
ser considerada o modo anormal de produção e de revelação do Direito.
A regra geral é que podem ser regulamentadas pelas leis do Parlamento matérias como Direito
da Administração Pública, Direito fiscal, Direito social e Direito económico. Há, no entanto,
uma progressiva invasão através da regulamentação do Parlamento de matérias que
historicamente pertencem à jurisprudência, como por exemplo as disposições sobre alguns
contratos, propriedades e até sobre trusts.
A regra de interpretação mais adequada é aquela fundamentada na literal rule. Isto significa que
o intérprete deve atender ao sentido ordinário, gramatical ou literal das palavras, tendo em conta
que os textos escritos têm uma redação detalhada e pormenorizada.
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Pode-se, porventura, tentar perceber alguma influência dos costumes no Direito Constitucional,
principalmente na fase da Magna Charta Libertatum e no “Clarendon’s case”, e no Direito
Comercial, principalmente as regras pré-concebidas na fase de navegações da Inglaterra.
3.2.2.2 Doutrina
A doutrina tem no Direito Inglês uma influência significativamente menor do que nos Direitos
romano-germânicos. As principais razões para esta diferença residem na menor tradição
universitária e na preponderância dos juízes na comunidade jurídica. Os textos doutrinários,
cuja citação é suscetível de ser tomada em consideração como fonte do Direito, devem pertencer
aos chamados books of authority, entre os quais se salientam os seguintes:
- Bracton no século XIII
- Coke no século XVII
- Blackstone no século XVIII
Outras obras podem ser acrescentadas a esta lista, como as de Pollok, já no século XX.
Sendo assim, a doutrina só pode ser considerada como fonte de Direito quando for utilizada
para interpretar a história do Common Law.
Os tribunais ingleses não são centros de legitimação de direitos. Ou seja, as partes e os seus
advogados somente vão ao tribunal para se reunir e conversar com o juiz e para lhe apresentar
as suas dúvidas. O juiz, percebendo os pontos que devem ser esclarecidos, ouve as possíveis
soluções e escolhe a que mais se adequa ao caso concreto. Sendo assim, os tribunais ingleses
adotam a natureza voluntária. Pelo contrário, os tribunais da família jurídica romano-germânica
adotam a natureza adversarial. Isto significa que as partes e os seus advogados apresentam-se
diante o juiz como inimigos no Direito. Da solução do juiz sairá uma parte vitoriosa e uma parte
derrotada.
No sistema jurídico inglês, existe uma estrutura judiciária dividida em dois níveis de tribunais:
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-» Chancery Division: julgamento em primeira instância de questões de Direito das
sociedades e Direito comercial e de trust (: dever e responsabilidade fiduciária atribuída a um
indivíduo de administrar propriedades alheias como se fossem suas sem usufruir do benefício
das mesmas)
-» Family Division: julgamento em primeira instância de questões de divórcio
litigioso, de adoção e de Direito sucessório que não envolvam a questão do trust e em grau de
recurso de ações do âmbito do Direito da família decididas em primeira instância por tribunais
inferiores
-» Queen’s Bench Division: decide assuntos de responsabilidade civil contratual e
extracontratual (torts (: responsabilidade civil e criminal por delitos)) em primeira instância e
em grau de recurso
- Crown Court (tribunal da coroa) centraliza, desde 1971, a competência criminal
apenas para julgamento de crimes mais graves, com admissão do tribunal do júri para os
acusados que se declaram inocentes, e para julgamento de recursos criminais advindos de
tribunais inferiores
4 O Direito Estadunidense
4.1 A descoberta do Direito Estadunidense
4.1.1 Período colonial
A História dos Estados Unidos da América começa em 1607 com o período colonial. Período
esse que demarca o movimento de colonização inglês das Américas. A sua política de
colonização baseava-se em três elementos:
- Colonização religiosa: Missão religiosa
- Colonização criminal: Cumprimento de uma pena
- Colonização comercial: Desenvolvimento do comércio e da exploração de matérias-primas
Para estimular os colonos e manter a integridade do Common Law, o birthright foi estendido
aos ingleses que pretendessem colonizar as Américas e àqueles que lá nascessem, tendo esta
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decisão sido registada no “Calvin’s case”, julgado em 1608, pelo qual o inglês levava consigo o
Direito Inglês para onde quer que fosse.
Treze colónias começaram a ser instituídas na América do Norte que, apesar de terem de
cumprir o Common Law, não o fizeram, ao ponto de a aplicação do Common Law inglês nas
colónias se tornar instável. Esta instabilidade deve-se a dois motivos:
1) Natureza da colónia: Se a colónia fosse religiosa, os indivíduos davam mais importância
à liberdade religiosa do que nas outras duas. Se a colónia fosse criminal, os indivíduos davam
mais importância à liberdade de ir e vir do que nas outras duas. Se a colónia fosse comercial, os
indivíduos davam mais importância à liberdade contratual e de propriedade do que nas outras
duas.
2) Distância: Era muito difícil e demorado o conhecimento do Common Law produzido na
Inglaterra nas 13 colónias.
Ainda assim as 13 colónias desenvolveram um sistema próprio para manter vivo o Common
Law, contudo adaptado à realidade colonial. Até que o Parlamento Inglês, desvirtuando a sua
função e abusando do seu poder de criar leis, criou um conjunto de leis desiguais para os
indivíduos das colónias e para os indivíduos da metrópole, esquecendo-se o “Calvin’s case”.
Uma das leis desiguais prejudicou de forma agravada a relação entre as colónias e a metrópole,
nomeadamente a sobretaxa de produtos advindos das colónias. Essa desproporção levou a que
fosse enviado um pedido de esclarecimento das colónias ao Parlamento Inglês, questionando-se:
“Se todos somos ingleses, a que se deve a distinção na lei?” Como resposta, o Parlamento
aumentou os impostos sobre o chá, produto importantíssimo na Inglaterra, o que levou a uma
primeira reação violenta entre colonos e ingleses, conhecida como “Boston Tea Party”. Essa
primeira insurgência desencadeia uma primeira reflexão sobre a independência das 13 colónias.
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Americana conta com 27 amendments, sendo consequentemente formado por 34 artigos. Tanto
o “núcleo duro” como as amendments da Constituição respeitam a identidade de cada um dos
Estados federados, existindo, para além da Constituição Federal, 50 Constituições estaduais.
- O artigo 1º regulamenta o poder legislativo: Sistema bicameral composto pelo Senate (órgão
representativo dos Estados federados) e pela House of Representatives (órgão representativo
do povo)
- O artigo 2º regulamenta o poder executivo dividido numa esfera federal (Presidente dos
EUA) e numa esfera estadal (Governador do Estado)
- O artigo 3º regulamenta o poder judicial (estrutura complexa)
Os quatro artigos seguintes cuidam da estrutura republicana, federativa e das relações
internacionais.
Existe para além dos 7 artigos que formam o “núcleo duro” da Constituição e das 27
amendments, um preâmbulo (: introdução ao texto constitucional). Nesse preâmbulo consta a
expressão “the Blessings of Liberty”, significando que, para a interpretação da Constituição
Federal dos Estados Unidos da América, a liberdade é reconhecida como um princípio
fundamental hermenêutico. A liberdade distingue-se da freedom, devendo aquela ser respeitada
e garantida a todos igualmente.
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4.4 Fontes do Direito
As fontes do Direito Estadunidense dividem-se em:
1) Fontes primárias:
- Lei (statutory law)
- Jurisprudência (case law)
2) Fontes secundárias:
- Doutrina (doctrine)
- Restatements of the law
Contudo, os juristas estadunidenses dizem que não existe uma hierarquia em si entre a lei e a
jurisprudência. Há sim um fenómeno de validade da norma, baseado na revogação:
-» A lei prevalece sobre a jurisprudência. Se a lei for revogada, a jurisprudência perde a sua
validade.
-» O Direito Federal prevalece sobre os Direitos Estaduais.
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que foi votada, aprovada e ratificada pelos representantes escolhidos para a formação do novo
Estado recém independente no final do século XVIII e, a partir de então, o que está na
Constituição é regra imperativa. No entanto, a partir de 1803, foi definida uma regra sobre o
controlo da constitucionalidade no julgamento do caso Marbury vs. Madison em que se
reconheceu a judicial review (revisão judicial), ou seja, reconheceu-se que todos os juízes de
todos os tribunais, sejam eles federais ou estaduais, têm o dever de proteger a Constituição.
Sendo assim, sempre que o juiz julgue, precisa de saber se a lei ou o precedente que vai aplicar
como solução para o caso concreto é constitucional.
Competência legislativa:
- A 10ª amendment determina o que pode ser criado com força de lei pelo Congresso
Americano, reconhecendo-se o princípio da reserva federal. Esta amendment define então que
compete ao poder legislativo federal legislar sobre as matérias reservadas na Constituição (ex.
tributos e afins, produção de dinheiro, controlo das forças armadas, relações internacionais,
nacionalidade/cidadania, relações comerciais entre os Estados federados, etc.) e o que não for de
“reserva federal” deve ser legislado pelos Estados federados.
- Enquanto que o Congresso concentra o poder legislativo federal, cada Estado federado possui
a sua Câmara Parlamentar.
- Existe a possibilidade de o poder legislativo federal delegar o poder de legislar sobre uma
determinada matéria ao poder executivo federal (delegated legislation). Há também cada vez
mais juízes que acham ser legisladores e criam decisões com força de stare decisis que torna a
legislação fragilizada (judicial activism).
4.4.1.2 Jurisprudência
- Não há qualquer dúvida de que o precedente é uma fonte do Direito para a formação da stare
decisis.
- Os tribunais inferiores vinculam-se às decisões dos tribunais superiores, baseando-se no
princípio de que “os casos semelhantes devem ter julgamentos iguais”.
- As regras da jurisprudência aplicam-se aos tribunais federais e estaduais.
- Admite-se o overruling, ou seja, quando existir um conflito entre precedentes, sempre terá
prevalência a stare decisis definida por um tribunal hierarquicamente superior.
- Rule vs. policy: Enquanto que na Inglaterra os precedentes aplicam-se por força de regra
vinculativa (rule), nos Estados Unidos da América não há mais do que uma política do
precedente (policy), uma vez que se admite a hipótese do tribunal deixar de aplicar um
precedente na convicção de que o tribunal superior também não o faria.
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- A descoberta e a evolução do precedente são muito semelhantes às do Direito Inglês,
alterando-se, apenas, a expressão ratio decidendi para “holding of the case”. Ou seja, quando o
juiz nos Estados Unidos da América fixa um precedente, ele descobre primeiro a lei. Logo, ele
delimita a aplicação da lei diante do facto jurídico no caso concreto, criando-se a stare decisis.
O Direito Muçulmano é um Direito construído entre os séculos VII e IX da era cristã e que, a
partir do século X se autodefiniu como “pronto e acabado”. Esta sua característica marca uma
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diferença entre as restantes famílias jurídicas, uma vez que os seus Direitos estão em constante
construção e desenvolvimento. Mas a sua História não acabou por aí, tendo muitos países que
seguem o Direito Muçulmano relações híbridas com outros sistemas jurídicos não-muçulmanos,
muito devido ao imperialismo, sendo de distinguir entre:
-» Direito Muçulmano puro: Sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em que
a Xaria está viva, presente e conducente dos hábitos e atos na vida pessoal, familiar, económica
e cívica dos muçulmanos, como se vê nos Direitos da Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos,
Iémen, Irão, etc.
-» Direito Muçulmano híbrido: Sistemas jurídicos pertencentes à família muçulmana em
que a Xaria é conjugada com importantes elementos de influência romano-germânica
(codificação e constitucionalismo), como se vê nos Direitos da Argélia, Egipto, Líbano,
Marrocos, Tunísia, etc., ou elementos de Common Law (costumes e precedentes), como é o
caso dos Direitos da Nigéria, Paquistão, Bangladeche, e Malásia.
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sucederam a Maomé). Sendo assim, para além do Corão e da Suna, os Xiitas vêm nos Ijmas
uma legítima fonte do Direito religioso.
3) Declínio: A partir do século XIX, devido ao movimento de colonização por parte das
potências europeias de vários países islâmicos, o Direito Muçulmano é objeto de uma mutação,
nomeadamente através da adoção de codificações inspiradas nas codificações europeias. Ocorre
concomitantemente um certo retraimento da Xaria, que em muitos países passa a cingir-se à
regulação das relações familiares e sucessórias. Este declínio do Direito Muçulmano coincide
com o próprio declínio da civilização islâmica, fruto de diversos fatores entre os quais se
destacam a dominação estrangeira e a ausência de uma verdadeira industrialização.
Contudo, com a formação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) no
ano de 1960 essa posição dos países muçulmanos iria sofrer uma alteração significativa.
Percebendo que quem controlava o petróleo, controlava a economia, a OPEP iria desempenhar
um papel económico mundial importantíssimo para os países desenvolvidos por consequência
dos avanços técnicos e tecnológicos verificados na II Guerra Mundial. A partir de então, as
potências europeias não podiam impor as suas ordens aos países muçulmanos, mas teriam de
dialogar com eles para chegarem a um acordo e, assim, prover os seus interesses.
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5.4 Características gerais
5.4.1 Base religiosa
- O Direito Muçulmano é um Direito religioso, sendo a sua fonte primordial a índole religiosa
desvelada dos textos sagrados.
- Não há uma separação entre Estado, Direito e Religião. Portanto, o Direito é uma
consequência das bases religiosas e o Estado, ainda que constitucional, é posto ao serviço da
dessa missão ideológica.
- Não existe uma ideia de Estado de Direito ou de soberania popular como fundamento da
Ordem Jurídica, mas sim o dever moral e jurídico de cumprir a Xaria.
- Dado o critério personalista, a Xaria só se aplica aos muçulmanos.
5.6.1.1 Corão
O Corão é formado por 6000 versículos (: pequenos versos), dois quais aproximadamente 600
são de conteúdo jurídico. O Corão não constitui um Código jurídico, embora tenha, em si, os
principais preceitos do Direito muçulmano, daí ser reconhecido como “fonte-mãe”. No Direito
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Muçulmano, ao contrário da família jurídica romano-germânica e de Common Law, o crente
muçulmano cumpre as regras jurídicas em função do vínculo que tenha com a sua religião.
Sendo assim, quanto maior for a fé, maior será o dever de cumprimento das regras do Direito
Muçulmano. Já para as família jurídicas em cima mencionadas, cumprem-se as leis se estas
forem criadas por um órgão legislativo que represente o povo ou se o Estado obrigue o
cumprimento das leis que criou através da coerção.
5.6.1.2 Suna
A Suna significa “o caminho percorrido”, ou seja, os atos de Maomé que inspiram a tradição de
como cumprir e seguir corretamente o Corão, tendo como objetivo de o formar, esclarecer e/ou
complementar. Tem-se assim a teoria no Corão e a prática na Suna, estando esta subordinada
àquele.
5.6.1.3 Ijma
O Ijma representa a manifestação dos doutores do Islão, explicando e definindo qual a conduta
que deve ser realizada quando não houver representação direta na Suna.
Enquanto que os Xiitas rejeitam-no como fonte do Direito, os Sunitas atribuem ao Ijma,
formado até ao século X, a qualidade de fonte da Xaria. Sendo assim, tudo aquilo que foi
produzido a partir do século X não tem força de fonte de Direito, mas é antes uma fonte de
esclarecimento do Direito.
5.6.1.4 Qiyas
O Qiyas, ou a analogia, desempenha um papel fulcral na descoberta do Direito aplicável aos
casos concretos, uma vez que é por via dela que se dá solução a muitas situações não previstas
no Corão e na Suna. Contudo, o Qiyas não se pode tratar de uma fonte do Direito, mas sim de
uma ferramenta lógica, utilizada pelo jurista para descobrir a norma relevante.
O Qiyas no Direito Muçulmano é, deste modo, a combinação da revelação com a razão humana.
A analogia tem uma característica própria de manter estável e respeitada a interpretação e a
formação do Direito Muçulmano até ao século X, mas com as atualizações necessárias para as
novas sociedades.
-» Exemplo: Imagine-se a existência de uma regra criada no século X, na qual constasse:
“Aquele que se obriga a vender um camelo, obriga-se a entregá-lo.” Isto significa que um
indivíduo, cumprindo esta regra, assume um dever jurídico com a compra e venda de um bem.
Contudo, hoje em dia é muito raro que os muçulmanos, e ainda mais aqueles que se encontrem
no Ocidente, sejam proprietários de e negociem com camelos. Sendo assim, como é que esses
muçulmanos interpretariam essa regra hoje em dia? Como o camelo, no século X, era um meio
de transporte, o muçulmano pode interpretar aquela regra por analogia da seguinte forma:
“Quem se obriga a vender um carro, obriga-se a entregá-lo”.
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5.6.2.2 Codificação e leis avulsas
A codificação e as leis avulsas para os países muçulmanos que tiveram influência francesa é
uma realidade, mas a Xaria ainda é a regra geral, sendo regulamentado nos Códigos apenas
aquilo que não é matéria específica da Xaria.
5.6.2.3 Costumes
Os costumes têm uma dúplice importância:
- Serviu de fonte de inspiração para a Xaria
- Serviu de fonte subsidiária para desvelar o Direito vigente em consonância com a Xaria em
questões de adaptação a novas comunidades.
5.6.2.4 Doutrina
A partir do século X, a doutrina, ao menos no pensamento sunita tradicional, regeu-se pelo
princípio do taqlid, conforme o qual haveria que aceitar as orientações fixadas pelos fundadores
das escolas jurídicas do Islão, sem as questionar. Mesmo sob esse princípio, a doutrina
conservou um papel fundamental tanto na determinação do Direito aplicável aos casos
singulares como na fixação do conteúdo das leis que visam explicitar a Xaria.
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