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COFV TAY MESH (00 INSU OU TEU OEE Ay “Muitos dos intelectuais que no passado foram adeptos do chamado MDA (Movimento do Diteito Alternative) migraram depois para as eee eee nea gradualista para melhor atingir os ideais revoluciondrios do materia, lismo juridico, Houve, na verdade, uma metamorfose do processo revalucionétio alternative por necessidades taticas. Com efeito, os ‘excessos proclamados por aqueles intelectuais em defesa do alternati- vismo jurfdico despertaram xeagGes, primeiro na Europa e depois na América Latina, Juristas mais conservadores no admitian deixar ao eee eee ee ae en ees as a eee ee conservar o império da lei, da ordem juxfdies, nio estava preparada para uma atitude definitivamente ousada e progressiata, sendo diffeil levaratras de sialgo oposto aesta mentalidade, 0 movimento alterna- tivo simulow entéo estar desaparccendo, réstando apenas alguns rest duos teéricos nas obras de juristas que the superestimaram os fine ‘bumanitaristas, Urgia uma mudanga de posicionamento idealégico, de tética propagativa, para que o processo de demolicio gradual do direito tradicional e suas raizes existis se desenvolvesse sobre bases ‘aie soguras, sem utilizar um marxismo primitive que rompesse declaradamente os limites da lei, sem outra justificativa que nde fosce SA OR OL te een em cada etapa de suas dominacies, a Revolucéo vai se metamorfose- ando ao longo da Histéria, 0 direito alternativo se fez, etm ponte ‘menor, direito garantista, porque entrou no interior do direito penal Sr a ene en an grande tragédia paradistaca, quando a carne de Adao transmitit. sua culpa original a carne de toda a espécie humana, o sangue tem jorrado por maos assassinas como uma fonte inesgotavel de peca- dos. A culpa do fratricida Caim, vieram juntar-se outras culpas, € se juntaréo muitas outras até a consumacao dos tempos, porque os crimes nao deixarao de existir, podendo ser arrefecidos com 0 antidoto do castigo exemplar. O género humano sempre aplicou esse remédio com uma fé invencivel e com um natural clamor, que se vem cumprindo, embora imperfeitamente, desde o principio do mundo. ue uantisro enaire -Afose ela aarti penal Mas os iluministas “purificaram” a filosofia penal desses residuos metafisicos, confiando aos seus seguidores a missto de Fpnstrulr uma ciéncia dinamica e revolucionsria que aponte sa. ‘das tteis para o problema da punibilidade, Minimizaram a vio. lencia penal, mas néo lograram minimizar a violencia crimino- sa. E como os novos “iluminados” ~ rebatizados com o nome de Sarantistas ~ nao encontram formulas possiveis, dissimulam esse fracasso proclamando um denominador comum, accito por to- dos, de fundamentos nao negocidveis: os direitos fundamentais. No af de destruir os verdadeiros alicerces da ordem Penal, no ue ela ainda tem de reativa e justiceira, nao construirae eles, por Soniraste, uma nova ordem de estrita legalidade penal e proces- sual, mais justa e democratica, seno uma simples precipitacdo na barbarie. Necessério se torna que o leitor compreenda claramente os Principais pontos doutrinérios do credo garantista, do qual se faz hoje, no meio juridico, tio intensa propaganda, A palavra garan- tismo se presta a diferentes interpretacées, Uma corresponde as Sarantias penais ¢ processuais penais erigidas a regras ¢ principios constitucionais, caracteristicos do Estado Democratico ou Cons. titucional de Direito. Os juristas ndo padem deixar de integré-las 8 aplicacao dos preceitos penais e processuais penais, para tutelar nao 86 0 réu sendo também a sociedade em geral. Porque, na per- secusdo penal, os tutelados nao so apenas os acusados. As garan- tas sao natural decorréncia do processo, e determinam como se ~xercido o poder acusatério, e, pela via da verdade, poder puni- vo. Outra ideia é 2 do garantismo ideolégico, que quer construir um sistema penal sob a égide da luta de classes. Esse garantismo compreende um conjunto de teorias sobre o direito e 0 processo penal com vistas a um modelo revolucionério de Justica penal, em va para o “fim prioritério de minimizar as lesdes (ou maximizay a tutela) dos direitos dos desviados, além do fim secundario de minimizar as lesées (ou maximizar a tutela) aos direitos dos nao 212 desviados”’, Quer dizer: 0 direito penal existe principalmente para garantir os direitos dos criminosos; secundariamente garantit os direitos dos nao criminosos (inclufdas as vitimas de quaisquer crimes). O processo penal também perde a sua finalidade instru. mental de punibilidade, para ser apenas instrumento de todas as franquias ¢ garantias voltadas a infeliz personagem do réu. Se o garantismo deita suas raizes teéricas ¢ filoséficas no iluminismo, também adquire a fluidez dialética do discurso revo. Jucionério, Nas esferas superiores do seu pensamento juridico-pe- nal, ele bebe do veneno gramsciano e de sua Revolucao Cultural, veneno aliciente que torna os homens incapazes de reconhecer diferencas ou distingdes éticas ou juridicas’. Ele tem avangado - melhor seria: quinta-essenciado ~ no seu discurso demagogico muito mais do que se imagina. Foi no passado direito alternati.. vo, criando ilusdes ideolégicas de insurreicao contra o texto da lei sob a deducdo marxista da insurreigao das classes subalternas; © depois, ante a resisténcia da esmagadora maioria dos juristas, JS RERRAJOL Ing E! Derecho Penal Minin, em Prevencién y teoria de la pena: presente » alternativas, Traducdo de Roberto Bergali, com a colaboragio de Heeler G Silveira e José I. Dominguez, Madri: PPU, 1986, nO, p. 0. 2 Clivis Rossi, conhecido jornalista, captou bem esse veneno: bonitos, de dentes bem brancos, sio os mesmos de sempre. O slogan étambémo merc o vermelho € a mais clissica cor da esquerda, a sua substituigao acaba sendo todo wn simbolo: os filhos (ou netos) do Malo de 1968, 0 ano de todas as revoltas, desotarany Je rato ae grita ‘Sea razoivel, peva o impossvel: A dnica e modestissime utopia que 6 ‘Spatalismo francés propée agora, quase 40 anos depois da ltima revolugio no planets, dings auc inacabada, ¢ construir ‘um pats de empreendedores, como disse Royal ro debate com o dieitista Nicolas Sarkozy, na quarta-feira. Os herdeiros, presumfrs oo Bins de 1968, vem na verdade, desbotando ha algum tempo, desde que Fula o Muro de Berlim. em 1989. O que permite a Sarkozy pedir publieamente que se pregue 0 dltine Prego no caixio do mitolbgico ‘mai 68: Hora da ordem. Para ele, no mais ortedens Reaiocinio da dlreite, 6s herdeiros de maio de 68 impuseram a ideia de que vale tudo, ue ndo hi diferenga entre o bem ¢ 0 mal, entre o certo eo ertado, entre o belo eo iy tentaram fazer crer que o aluno vale tanto quanto o professor, (.) que a vitinna cen ena ite 0 delinguente, que se acabara a autoridade, que nio hi henhums ones (ROSSI, Clovis. 1968, 0 ano que terminci em 2007, cri- me as suas consequéncias penais. Assim expde Miguel Reale: “O Principio que governa o mundo do ser é (..) 0 principio de cansali. dade, de tal maneira que tudo 0 que acontece pressupse uma causa; a0 contratio, no mundo do dever-ser, o principio dominante é 0 de imputabilidade, em virtude da qual se atribui uma consequéncia em razao da pratica de determinado ato”, A responsabilidade penal somente se explica pela existéncia de outra relagao que transponha os limites da relacio de causalid de entre o autor ¢ o crime: uma relagio entre o autor ea sociedade, Aqui reside, justamente, quanto a ordem légica de sucesso em que aparecem, © transito da imputabilidade para a responsabilidad, Com efeito, por ser culpivel, 0 crime possui a especial proprieda- de ser demeritério diante da sociedade, em virtude da paturel agregacao do individuo. A nogio de demérito identifica-se com a de responsabilidade civil, inscrita nas ages humanas ilicitas, coma entidade juridica distinta da existente nas relagdes entre o crime eo Seu autor, Por isso, todo o crime acarreta uma relacao de demérite Penal diante da sociedade, que se traduz numa retribuicao, segundo ONG RBRVADA, Javier. Introduccion Critica al Derecho Natural, 4* ed Pamplona: EUNSA, 1986, p. 147, 79 REALE, Miguel. Flosofia do Dieta, 9 ed, Séo Pale: Saraiva, 1978, p. 457 © magistério de Santo Tomés: “O mérito ¢ o demérito se definem relativamente a retribuigao feita conforme a justigas e esta se faz a quem age em beneficio ou detrimento de outrem”” Elucidemos melhor com as palavras de Jeronimo Montes: “Responder traz consigo a ideia de um dever, a0 qual corresponde um direito: a responsabilidade, portanto, se converte praticamen. te numa divida contraida mediante o fato livremente realizado, eo responsdvel é um devedor, que necessariamente supée um credor © devedor € sempre o homem, autor da acdo que dew origem a responsabilidade; mas o credor, o que tem direito de exigir, de pe- dir contas, pode ser Deus (responsabilidade moral), um particular qualquer (responsabilidade civil) ou a sociedade (responsabilida- de criminal)”*. Expliquemos, numa breve sintese, 0 processo de formacao do reato da pena. © crime implica a pena em duas perspectivas: 1) € ato culpavel e, portanto, imputavel, pela priméria existéncia da imputabilidade, a qual designa uma relacao de causalidade entre o autor e 0 crime; 2) € ato demeritério, vinculando 0 sew autor a responsabi- lidade penal, a qual manifesta uma relagao juridica entre ele ¢ a sociedade, reato da pena nao é outra coisa sendo a reac4o da ordem Juridico-penal contra a desordem provocada. Uma reacio con- servadora ~ igual ¢ oposta ~ A ago destruidora, que n3o pode ter outro sentido e finalidade senao 0 de recolocar novamente na ordem do dever aquele que dele se afastou. 74 TOMAS DE AQUINO, Santo. Summa Theologiae, I-Il, q21, 23. 75 MONTES, Jeronimo. Derecho penal espaol. El Escorial: Imprenta del Real Monasterio, 1929, p, 54 -45- { I Capitulo 3 Justiga Penal Vindicativa 3.1 As trés ordens de violagao do crime O crime esta definido sob a ética do direito penal. Por exi- géncia do principio da legalidade, sua construgio dogmitica se faz necessariamente através do texto da lei, fonte formal de toda a configura¢ao juspolitica no campo punitivo. A lei descreve aque- as condutas que se vao classificando em espécie conforme o bem tutelado. Sao as figuras delitivas, com suas respectivas penas, con- tidas na parte especial, figuras tipicas que representam o limite de exercicio do direito penal, além de estarem associadas evidente- mente a outras normas clucidativas e orientadoras da parte geral Os fatos puniveis terdo ressonancia mais ou menos intensa no meio social conforme a importancia, ou o grau de estimacao politico-social, do bem imediatamente ofendido, Visto sob a dtica do direito, esse bem é sempre um bem juridico, individual ou cole- tivo, porque corresponde A no¢ao essencial de um direito protegi- do na formagao do tipo. Ainda que o bem juridico seja individual, toda a sociedade intervém para reprimir, através do Estado, os atos cometidos contra ele, porque as infracdes penais afetam de alguma maneira qualquer um dos elementos constitutivos do bem comum. Historicamente 0 Estado tomou em suas maos o ius pu- 47. Sarnia ebuttie = Ate es ea er niiendi, para impedir 0 exercicio da vinganga privada, embora em determinadas infragdes penais se conceda ao ofendido o direie de promover a acao penal vindicativa. O crime tem assim natine. 2a diretamente social, uma dimensao necessariamente publica, Mas, se a funcao da lei penal é a protecdo de bens ou interes- ses juridicamente tutelados, nao se pode esquecer que a sua lesdo ou a sua exposicao a perigo nao esgotam o contetido da ilicitade Proibicao contida implicitamente no tipo. A norma penal supée ssatiamente o dever juridico. Sem o dever, o direito seria, no dizer de Cathrein, como “um éculos sem lentes””™ A proibigao penal integra um sistema de Proibicgées mais amplo, as quais hao de ser impostas 20s homens secundum eorum conditionem. Coexistentes na mesma norma, a tutela juridica e © mandamento proibitivo nao seriam eficazes se estivessem de- sacompanhados de sangao, nao moveriam a vontade humana ao Propésito de paz social e de manutencao da Propria coletividade. Como diz o Aquinate, certos homens sdo protervos, inclinados aos vicios, e se nao deixam facilmente mover Por palavras. B, as- sim, as palavras da lei penal coibem pelo termor da pena (cogens meu poenae), para que, ao menos assim, desistindo de fazer 0 mal, e deixando a tranquilidade aos outros, também eles préprios Pelo costume sejam levados voluntariamente 0 que antes faoiare Por medo, e deste modo se tornem virtuosos. Essa disciplina, que cofbe pelo temor da pena, é a disciplina da lei penal”, Talvez por sua exterioridade e cognoscibilidade, nossas vis- tas tendem a alcangar somente essa vertente publica do crime, ¢ em funcdo dos bens juridicos que sejam juridicamente relevanres para alei. Além disso, a ciéncia penal nao tem outro alcance dog- matico sendo o estudo analitico das regras juridicas para desco- brir sua interpretagao; sua base de estudo é a ordem penal positi- Fada REIN, Victor. Filosofia del Derecho, El Derecho Natural y el Derecho Pestvo. Tradugio de Alberto Jardon ¢ César Barja. Madri: Reus, 1958, 275, 77 TOMAS DE AQUINO, Santo, Summa Theologiae, VT, 95,1 -48- i j i | | si ana dia va. Esta ordem é irrecusavelmente heterénoma, porque a criagao de suas regras, além de nao ser suficiente para abarcar todas a. classes de deveres que possam tevestir os atos humanos, est en raizada ontologicamente na naturera humana, cuja fungao expia. teria permite compreender, numa maior elevagao mental, 0 juizo penal de Deus, que, no dizer do Apéstolo, “dard a cada um se. gundo suas obras”. A lei penal positiva nao é bastante em sis seu Conceito ultrapassa o émbito humano e o juridico, para alcancar o lume dg luz natural, que nao é senio a impressio em nos do hime divino”. Assinala Ives José de Miranda Magalhaes que “a experi- éncia juridico-politica nos induz, por via da ldgica, a afirmar que toda a lei humana supde necessariamente uma causa, ainda que remota, como Deus. Todo 0 que governa legislando recebe eaa forca de uma lei e de um governante superior. Nesta escale, no se pode terminar arbitrariamente a um nivel humano. Dai a tese da lei eterna, como conclusao inarredavel. A lei eterna é assim a lei suprema emana de quem tem o supremo governo. Por isso, dela derivam todas as leis humanas, como a suprema expressdo legal da suprema razao””. Nao hd excluir da lei penal suas premissas éticas, pois certos bens tutelados nao podem perder sia natural importancia na lei de perfeigao € desenvolvimento de cada ho- mem, diante de novas concep¢des axiolégicas. Os deveres éticos due subordinam as proibigoes legais nao séo celebrados apenas Shure 0 individuo e o Estado, mas envolvem uma relagao superior de dependéncia a ordem da criagdo, & natureza criada, a ardem das coisas que Deus criou e para as quais assinalou um fim, Somente os bens juridicamente relevantes, que envolvam determinadas relagoes do destinatério da norma com os demais membros da sociedade, caem debaixo da protecao penal, Nao sao Punidos os atos simplesmente preparatérios, mas os atos atentat6_ 78 Rom. 2,6. 79 TOMAS DE AQUINO, Santo, Summa Theologiae I-11, 4.91, a2. J IRGARAES, [ives José de Miranda, Direito Natural Visdo Metufisica & Antropolégica, Rio de Janeiro: Forense Universtiria, 1991, p. 181 49: nace eco gearter pa rios daqueles bens, em sua forma consumada ou tentada, ou que de alguma maneira lhes representam perigo real ou potencial. A intervengao penal justifica-se pela necessidade de tutela de um bem ou interesse juridico, de grande valor intrinseco (natural) ou social, “em proporcao ao relevo da objetividade jurfdica ¢ a0 con- junto de normas positivas existentes no direito positive”. Dada a dimensio exterior das condutas delitivas, tudo 0 que permanece no foro interno do homem nao se integra em uma relagao social, porque continua incognoscivel pelos demais. Hé por isso mesmo uma ordem intrinseca ao homem, inerente a sua liberdade, a sua estrutura Ontica; uma ordem que corresponde ao miicleo essencial de todos os homens, que nao é por eles constitufda, mas derivada da natureza humana, A raz4o, faculdade diretriz das ages huma- nas, emite juizos de obrigacdo, que giram em torno das nogdes de bem (o que deve fazer-se) e de mal (0 que deve evitar-se). Esses juizos deénticos da razdo, com caréter de norma vinculante, € 0 que se denomina lei natural”. Cabe A filosofia moral o estudo pormenorizado dessa or- dem natural, num patamar de abstrago mais elevado ou mais profundo (metapositivo), 0 que inevitavelmente levaré ao estudo das relagSes do homem para com Deus. Nao ha aqui nenhuma incompatibilidade com a ciéncia penal, mas uma unido vital en- tre esta e os conhecimentos superiores da filosofia e da teologia. Sem o cepticismo ilusdrio e a especulacao vazia do materialismo histérico que marcam o pensamento garantista, com sua visio pu- ramente privilegiadora do sistema de garantias do direito penal ¢ do processo penal, o pensamento filoséfico, seguro de sua consis- téncia e de seus valores préprios, e sem nenhuma inquietude com a sua identidade, pode aprofundar a natureza de seu objeto, como também abrir-se fundamentalmente a ciéncia da fe”. Bi MEDICI, Sérgio de Oliveira, Teoria dos Tipos Penais. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 206. 82 HERVADA, Javier. Introducci6n Critica al Derecho Natural, pp. 140-141, 83 V. MARTINEZ DORAL, José Maria. La Estructura del Conocimiento Juridico. Pamplona; Universidad de Navarra, 1953, pp 135-150. -30- O homem, assim, nao esta apenas sujeito lei penal positi- va, ordenada ao bem comum da justia e da paz, mas as leis de sua natureza e de seus fins. Como também esta vinculado as leis que impdem suas relagdes com Deus, Autor da natureza. Essas trés ordens esto intimamente entrelagadas, vinculadas entre si, pela coexisténcia de violagdes da culpa penal. A partir dessas nogdes, podemos encontrar trés ordens de violagao do crime, que fundamentam o direito penal: a ordem pré- pria da razao (fandamento moral), a ordem de quem nos governs as acées externas (fandamento juridico) e a ordem universal du governo divino (fundamento metafisico). Se cada uma dessas or- dens é perturbada pelo crime, obrando o seu autor contra a lei da razo, contra a lei humana e contra a lei divina, far-se-4 devedor de triplice pena. A teologia penal de Santo Tomas de Aquino in- corpora essa triplice fundamentagao: “O homem pode ser punido por uma triplice pena, relativa a triplice ordem a que esta sujeita a vontade humana. Pois, primeiramente, a natureza humana esté sujeita 4 ordem da prépria razdo; depois, 4 de quem nos governa as ages externas, espiritual ou temporalmente, politica ou do- mesticamente; em terceiro lugar, & ordem universal do governo divino. Ora, qualquer destas ordens fica pervertida pelo pecado, porque pecador encontra a razo, a lei humana ¢ a divina. Dai © incorrer em triplice pena: a proveniente de si mesmo, ‘que é 0 remorso da consciéncia; a outra, proveniente do homem e, a ter- ceira, de Deus”. Essas trés ordens de violacdo do crime conduzem, portan to, as trés ordens de punibilidade, as quais se refundem em uma 86 ordem de razao, porque é préprio da razao ordenar (imperara est actus rationis)". A Razio divina ordena todas as coisas a Ele, como ao ultimo fim, constituindo a ordem natural; a raz4o huma- na individual ordena os atos do individuo mediante os ditames de BA TOMAS DE AQUINO, Santo. Summa Theologiae, LI q 87, acs. também 1M, 9.72 85 TOMAS DE AQUINO, Santo. Summa Theolagiae, Ill, .17, a. ost Grancimo tate Ace cua do gsranome pal sua consciéncia moral, ¢ a razdo coletiva, através de sua legitima autoridade, impée a ordem juridica na sociedade. Analisaremos pormenorizadamente esses trés fundamentos. 3.2 As trés ordens de punibilidade 3.2.1 A pena di As nogGes universais de crime e castigo formam os dois pi- lares sobre os quais se levanta 0 edificio do discite penal. Punir Os Pecadores ¢ recompensar os virtuosos, eis o principio univer, sal de justiga retribuidora enraizado na consciéncia hurnana Neo faltaram discussdeé difusas sobre a lesividade do crime ¢ saine a sua propria reprovabilidade, desde uma visio utilitaria até uma fundamentacao metafisica. Mas, excecaio feita a alguns idedlogos anarquistas, que em nome da transformacao humanista do sistema Penal pretencem destrui-lo, o fundamento imediato desse sistema Sempre descansou na necessidade da retribuicéo penal para a con, eurvacio € seguranga da ordem juridica. As ideias de culpa e de expiaso sempre estiveram arraigadas nas representacbes socials € se entrelacam com toda a histéria do género humano, Como castigo de sua culpa, foram nossos primeitos pais expulsos do pa- raiso; inundou o diltivio toda a terra; destruiram-se com enxctre “ “ogo as cidades de Sodoma e Gomorra. O conhecide Cédigo de samurabi contém um direito punitivo profundo e minucioss que regia os babilonios hé mais de 4.000 anos, Mas a retribuicao penal nao se restringe ao ambito social, © fundamento iltimo da justiga penal esté no restabeleci- mento universal e definitivo da ordem conspurcada, quando Deus jastificard os inocentes e confundira os pecadores. Seria ilégico e insensato pensar num direito penal exclusivamente humane, sem nenhuma razdo sobrenatural, porque os homens, embora dotadoc de liberdade, e governantes de si mesmos, sao necessariamente 52 usa Peat nitive governados por Deus ¢ participantes de Sua justica ¢ de Sua lei Nesse itinerdrio ascendente, h4 uma evidente relacdo entre o cri- me € © pecado, como existe uma relacdo de subordinacao entre a lei penal ¢a lei moral ea lei eterna. Voltaire, influente pensador da Iustracao, satirizou essa relacao: “Prouvera aos céus, que um Ser Supremo nos tivesse dado leis e proposto penas e recompensas!”™, Mas sua boa satide permitia entao esquecer 0 que a agonia (furiis agitatus obiit) oprime e desespera nos grandes incrédulos. A verdade sobrenatural das penas divinas nao poderia ser conhecida pela razdo humana, enquanto abandonada As suas préprias forcas, sendo pela divina revelacéo. No entanto, tao 16- gicas ¢ persuasivas sao as razes que postulam a necessidade de tum castigo para além da vida presente, que desde a mais remota antiguidade, os fildsofos pagios ja acreditavam e ensinavam essa necessidade, vindo a ser confirmada pelo supremo Juiz dos vives € dos mortos, que dirigiu terrivel sentenca aos réprobos: “Apartai- vos de mim, malditos, ao fogo eterno”. Essa pena da alma desor- denada é causada pelo pecado por perverter ele a ordem universal do governo divino. Trata-se de uma perversio irreparavel, porque “o pecado cometido contra Deus implica uma certa infinidade, re- lativamente a infinidade da majestade divina”™. E importard, por isso, como razao tiltima de toda a pena, uma pena infinita, A santidade e a justica de Deus permitém-nos compreen- der a necessidade de castigos além da vida terrena, para reparar crimes repugnantes que lograram escapar ao controle da justica humana € permaneceram impunes. Dante colocou na porta de seu inferno a famosa inscrigao: “Renunciai As esperangas, vés que entrais”. As razdes teoldgicas indicam que a justica de Deus tenha uma sangao perfeita e eficaz, proporcionada a infinitude do pe- 86 VOLTAIRE, Tratado de Metefisica, em Os Pensadores, Tradugdo de Marlena de Souza Cheui, Sdo Paulo: Abril Cultural, 1978, p, 82 87 Mt.25,41. 88 TOMAS DE AQUINO, Santo, Summa Theologiae, Il, 4.1, 0.2, ad 2. asa. eedizgtrm sie cado, Pois o homem peca em sua eternidade subjetiva, conforme explica Santo Tomés: “Diz-se que alguém peca em sua eternidade, nao sé quanto a continuacao do ato que perdura toda a sua vida, mas também porque, pelo mero fato de haver posto seu fim no pecado, tem a vontade de pecar eternamente. E, por isso, diz S40 Gregorio, os maus quereriam viver sem fim, para poderem sem fim viver na iniquidade””. Espanta-nos a verdade sobrenatural da pena divina, porque sua eternidade é inacessivel a razo, A razéo humana compreende a justiga das penas temporais, por mais duradouras que sejam; mas uma pena sem fim, uma justica que eternamente castiga, sem abrandar o rigor da dor e sem corrigir 0 sentenciado, so verda- des aparentemente confusas. Nés, que viemos do nada, que nos julgamos téo importantes ¢ tao poderosos, nao formamos juizo exato da gravidade do pecado e de suas consequéncias diante da justiga infinita. De tal natureza ¢ 0 pecado que, para expié-lo, foi preciso a morte de Deus-homem, Nosso Senhor Jesus Cristo, Ne- gar a Justica Penal divina é negar a redencao do género humano, é recusar os meios de regeneracao do pecado que essa redengao nos proporciona, meios tao inesgotaveis que 0 maior dos pecadores, carregado de crimes, pode cometer o pior deles: desesperar do perdao. A justia penal humana nao pode servir de estalao para medir a justica divina. Assim como a misericérida de Deus esta envolta nos mesmos arcanos de Sua justica, o homem nao pode reduzi-la ao mesmo patamar da justiga humana. “Se Deus ~ ar- gumenta Augusto Nicolés - é infinito e soberanamente incom- preensivel em todos os Seus atributos: em Sua Misericérdia, em Sua Onipoténcia, em Sua Sabedoria, e, numa sé palavra, em Sua Existéncia, por que nao haveria de ser em Sua Justiga?”. Se, apesar do conhecimento da penas divinas, a histéria nos revela repetidos lances de selvageria em incontéveis crimes, que 89 TOMAS DE AQUINO, Santo. Summa Theologiae, I-11, q87, a3, ad 1 90 NICOLAS, Augusto. Estudios Filosdficos sobre el Cristianismo, vol. 2, p. 222. 54 seria da humanidade sem o discernimento dessas penas? Pouco se cré, hoje, no inferno, pela dorméncia doutrinéria de nossos pas- tores. Talvez por isso a paz social se distancie a passos largos nos dias atuais. Os castigos de Deus sao tao reais quanto o préprio Deus. Se fosse possivel conhecer todos os crimes que o temor da eternidade do inferno tem evitado no curso da historia, estaria- mos convencidos de sua necessidade e de sua prépria realidade. Alguns Estados utilizam a propria eternidade em sua justica pe- nal, como a prisao perpétua ¢ a pena capital, o que indica que ne- Jes existem crimes irremissiveis. Se os ba para alguns Estados, po que nao haveré para Deus, no Seu julgamento definitivo das almas nao arrependidas? Nao é demais lembrar que, em boa e tradicio- nal teologia, na hora da morte a opcao da alma condenada tera sido pela ruptura, depois de incontaveis oscilagées entre o pecado € 0 arrependimento; tera sido ela quem, primeiro, rompeu com a Lei de Deus. E, por isso, aceitando Deus essa torpe decisao, dira ao pecador com definitiva repulsa: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Nem a sociedade nem o Estado podem converter-se em principio ¢ fim do sistema penal. Neste agnosticismo filoséfico caem os garantistas, quando recusam a Deus como supremo legis- lador e no admitem nenhuma norma moral superior & sua cons- ciéncia. Falta-lhes a certeza metafisica de que crime também ¢ um pecado, por perverter fundamentalmente a ordem absoluta e uni- versal, isto é, a lei eterna, summa ratio in Deo existens. E, negando aquela certeza, trazem sérios prejuizos @ tutela social pelo inevita- vel amerceamento da tutela penal, como ja previra Alvaro Dors: “A perda da nogao de pecado, j4 denunciada muitas vezes como ruinosa para a humanidade, conduz irremediavelmente 4 perda da nogao de delito e de pena, e & mais absoluta impunidade””. 91 Mat. 25,31. 92 DIOR, Alvaro, La Crisis del Derecho Penal, p. 387. oss. Gorantsroeabiie Ales ects do gant pana Encia, pela ofensa consciente e voluntaria dos ditames da rasio A ponsciéncia nao designa apenas a capacidade de o espirito aperce- ber-se a si mesmo, tal como a concebe a psicologia, ines o Conta, cimento dos deveres ¢ dos juizos dednticos referentes 4 bondade ona malicia dos atos humanos, Nao esté ela dotada, evidenteman, » de autoridade prépria, como autora exclusiva do imperativo moral: Teriamos aqui, influenciados pela doutrina de Kat, uma espécie de autolegislacéo”, de modo que toda pessoa que deso- bedecesse aquele imperativo moral estaria desobedecendo 5 si siesma. A consciéncia conhece a lei moral e Ihe aplica, mas nao é fonte criadora da lei moral, porque seus ditames. vendo embora normas, refletem normas superiores a que esta sujeita, a lei eterna © por participaco, a lei natural, A vontade esté sujeita, assim, & ordem propria da razio, Que transforma em preceitos as exigéncias da natureza humane Quando o fogo pestifero das paixdes, consumado ne crime, de- satender a voz da consciéncia ~ muitas vezes ténue ¢ impotente ~ 9 homem poderd ser punido pelo remorso da consciéneis Dai © caréter moral da culpa e do correlato castigo interno, Lm seve Feguucraveis Sermoes, 0 Pe. Ant6nio Vieira analisa a triplice or. dem de retribuic4o penal sob o prisma da vergonha do pecador: ita & eficdcia maravilhosa da vergonha sobre 0 pecade come, tido: Pudor commissi. © pecado é pai da vergonha e a vergonha filha e morte do mesmo pai: mas qual seré na mesma vergonha, ¢ sobre o mesmo pecado, o ponto mais fino, mais herdice, , como fala 0 nosso Texto, o mais limpo: ‘Limpidissimos lapides?’ Eu 0 direi: a vergonha, que toda é uma paixéo, ou afete respectivo, se divide, ou se reduz a trés respeitos: envergonhar-se lee ho- mens, envergonha-se de Deus, envergonhar-se de si mesmo, A 93 V. YORE, Gregirio R. de. Eece. Visca: Eset, 1968, p. 68, “56. ests Pens dev vergonha a respeito dos homens atende a fama, a respeito de Deus a culpa, a respeito de si mesmo A dignidade prépria”™, Esta dltima € a vergonha que pune, que fustiga, que imprime uma inquietacao na tessitura da consciéncia pela culpa. E sera 3X Passagem da culpa para a vergonha que a forca reparadora do arrependimento preparard a emenda do pecador, Os homens nao experimentam com a mesma intensidade 2 Pena moral. Se so perigosos, deformados, obstinados, difi. cilmente terdo aquele espirito corretério e pedagégico da alma, Porque sua consciéncia pouco acusa ou escusa. Nem a pena corporal, mesmo exacerbada, poder torné-lo décil, bom, Pto- vido de condigées para a sua harménica integracao social. £ auc. com o entorpecimento da consciéncia moral, a pratica da injustiga torna-se conatural pelo habito. Alguns criminosos revelam, por isso mesmo, absoluta insensibilidade moral, em razao de sua indole particularmente malvada. Nao eram, antes, assim. Seus defeitos nasceram das sucessivas concessdes ae max tendéncias, ¢ se foram aumentando no itinerario do arbitrio até o obscurecimento do senso moral. Ainda assim, jamais se poder contradizer a agdo da li- berdade e da consciéncia moral como principais fatores crimi- négenos, a menos que se queira fazer uma mutacao ontolégica no homem, deixando de ser propriamente homem,. No parti- cular formagao de cada delinquente, sempre haveré uma cone. ciéncia mal formada, uma gradual perversao de sua vontade, E Para combater essa fraqueza moral, essa especial inclinacao ac mal, de nao querer outra coisa senio 0 mal, em sas diversas Upologias, conforme sejam as diferentes personalidades dos delinquentes, sera solugao ministrar-lhes 9 remédio garantis- ‘af Um remédio recheado de franquias e imunidades, ‘oposto a cert Antonio, Sermbes. Lisbos: Lello & Irmao, 1948, X1V/232-233. Dante Geers Bo Pevoroso abismo de circulos escavados, os pecados panies em oe Gitta formas de violencia: “A Deus, a si proprio e a0 protimo orviclene tens CAIGHTERL Dante A Divina Comédia. 9 ed, Mildo: Edoarde Songozn 188° Ietaas, canto XD). -57-

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