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Jean-Claude Schmitt vai além dos pólos ativos e passivos no processo de conversão
do século XII-XV, de modo a tratar do fenômeno social, cultural, linguístico e psicológico,
além dos pecados típicos de determinados grupos sociais/profissionais. É simbólico ao autor
a insuficiência das abordagens clássicas do processo de conversão e evangelização, por se
limitarem ao enfoque nos padres, frades e monges e da utilização dos sermões, homilias e
relatos hagiográficos. Mesmo utilizando-se majoritariamente de fontes clericais, Schmitt
busca uma aproximação dos autores da sensibilidade dos sujeitos da época, para então tratar
da cristianização vernacular, denominador comum entre clérigos e leigos, nobres e
camponeses, letrados e iletrados. Soma-se a isso a atuação dos pensadores eclesiásticos e o
poder do convencimento pelo exemplo, guiando o baixo clero e o laicato, mais do que
coagindo.
O autor inicia o capítulo com uma analogia do Santo Antônio de Pádua, ressaltando a
importância da palavra pregada e seu apelo para cativar e seduzir o pecador, tratando do
aperfeiçoamento espiritual da penitência e da confissão, que iluminariam o sujeito. Tais
fatores são simbólicos de um contexto de emergência dos sermões no séc. XIII, da criação
das ordens mendicantes e a pregação como ferramenta de conversão, impulsionadas pela
renovação das tarefas pastorais da Igreja com o papa Inocêncio III. Para o autor, trata-se um
período de emergente sensibilidade espiritual, caracterizado pela emergência dos movimentos
laicos e da maturação das linguagens e literaturas vernaculares ocidentais.
De modo que o poder eclesiástico passa a se comunicar de maneira cada vez menos
impositiva, com sermões que passam a oferecer o papel ativo aos ouvintes no jogo de
comunicação com Deus. A necessidade de uma pregação cativante (que envolva o ouvinte e
o convença da graça divina como motor da prédica) e os exempla, manuais e constituições
sinodais (mirando a conduta clerical correta) acabam por oferecer um contraponto com o
cenário religioso carolíngio do séc. VIII.
Tomemos como exemplo o historiador André Vauchez sobre a limitação dos leigos
dentro da ritualística cristã carolíngia:
[...] Quanto aos leigos, não tinham mais um papel ativo no culto
depois que este se tornou apanágio de especialistas. O canto
litúrgico assumiu uma importância crescente nos ofícios por causa
de sua dificuldade, só podia ser executado por cantores formados
nas escolas catedrais ou nos mosteiros. A adoção do canto
gregoriano – ou romano -- sob a influência de Carlos Magno,
introduzindo em muitas regiões modos de expressão estranhos à
liturgia local, tornou ainda mais difícil a participação dos fiéis no
ofício[...] [...]A disposição interna das igrejas só podia favorecer a
passividade dos fiéis: ficavam de pé na nave, separados do
santuário pelo cancelo, e do altar pelos coros dos clérigos que
salmodiavam na schola cantorum. O celebrante lhes voltava as costas e
dirigia-se a Deus em nome deles [...]. (VAUCHEZ, p.16)
De modo que em meados do séc. XIII, pode-se observar um maior envolvimento dos
clérigos na vida paroquial, nas rotinas das regiões e aldeias. Seja na celebração de missas, no
reconhecimento dos fiéis pelo nome, denota-se um intercâmbio cada vez mais assíduo das
camadas da sociedade dentro do contexto religioso da cristandade.
Ilustrativo disso é o termo em latim religio, que designava ordens religiosas (como as
mendicantes), distante assim do conceito contemporâneo de religiosidade:
De modo que seria mais acurado a terminologia de uma religião local do que popular,
de modo a privilegiar o alicerce espacial, as relações de convivência, as práticas simbólicas,
bem como as superstições e “magias” de determinadas comunidades camponesas e as
semelhanças com a dos nobres, do baixo clero e dos leigos de maneira geral. Partir desta
visão oferece uma perspectiva que coloca em pauta a importância das rogações e
peregrinações, aos modelos de expressão e comunicação fora do meio clerical, na linguagem
dos illiterati.
Ao tratar das comunidades criadoras das práticas cristãs abordadas, o autor destaca o
caráter fracionário e unilateral das fontes escritas no primeiro milênio cristão, composta
majoritariamente por livros penitenciais, leis dos reinos “bárbaros” e capitulários carolíngios.
De modo que a Arqueologia vem para completar e colorir o quadro religioso do período,
usando práticas funerárias e arquitetura dos santuários. Conforme SCHMITT (2022, p.28)
Juntamente a isto, a economia e as sociedades rurais ganham um peso esmagador após o lento
declínio dos quadros institucionais da cultura urbana do mundo Antigo, num quadro no qual
camponeses e pagãos ainda não são claramente distinguidos pela literatura eclesiástica dos
pagãos a converter e os cristãos supersticiosos a corrigir:
[...] O bispo Sulpício Severo (363-425 d.C.), autor da Vida de São
Martinho (cerca de 400 d.C), narra um milagre famoso do seu herói,
que viria a figurar mais tarde nas miniaturas dos manuscritos ou nos
vitrais das igrejas: o santo ordenou cortar um grande pinho aos pés
do qual os pagãos celebravam um culto e estes quiseram esmagá-lo
sob a árvore; porém, o santo desviou milagrosamente a queda do
tronco, o que levou os pagãos a se convertem ao cristianismo.
(SCHMITT, p.28)
De modo que a hagiografia do período mostrava pagãos e camponeses que ainda eram
evocados como uma coletividade anônima unida pelo ódio ao cristianismo.
Concomitantemente, na Idade Média central, fontes da literatura penitencial (oferecendo
listas de desvios em relação a norma eclesiástica), prevenção de penitências tarifadas, são
demonstrativos de um poder eclesiástico buscando reprimir a sobrevivência do paganismo e
das superstições.
De modo que numa sociedade rural ameaçada pela escassez, morte súbita de crianças
e adultos (até a revolução médica dos ainda distantes sécs. XIX e XX), o primordial ao
campônio do medievo era de se precaver contra o “mal” biológico, contra a fome endêmica,
as epidemias, violências e “mal olhados” que podiam ser lançados a todo momento pelos
vizinhos. Portanto, num contexto permeado por sacralidades difusas dos campônios, não é de
se estranhar que a Igreja buscasse cristianizar determinados atos da “religiosidade popular”.
Segundo VAUCHEZ (1994, p.26) “[..] apareceram ao lado da liturgia eucarística, todo tipo de
paraliturgias, das quais as mais importantes eram as bênçãos e exorcismos. [...]. Por essa
profusão de ritos, a Igreja procurava impregnar de religião a existência cotidiana dos fiéis”.
Reflexo da impotência dos clérigos, face às expectativas de uma população incapaz de
separar os instrumentos simbólicas das igrejas de outros meios tradicionais de defesa locais e
tradicionais, podem ser vistos nas repetidas condenações eclesiásticas contra os pagani pelos
sortilégios e adivinhações, bem como nas ilusões de mulheres cavalgando bestas fantásticas,
lendas sobre a origem do granizo e trovão (descritas pelos bispos Reginon de Prüm e do bispo
Agobard de Lyon).
Da ilusão outrora vista como superstição e crendice pelos clérigos, passamos para a
concretização da superstição, que além de dar atestado de credibilidade às crenças locais, as
colocando no espectro negativo da santidade cristã, como algo a ser combatido. Tais fatores
são ilustrativos da impossibilidade de se separar a cultura erudita eclesiástica da religião
vernacular e local, bem como suas antíteses pagãs, ao analisar a cultura religiosa no medievo.
Ao tratar da aldeia na idade média central, o autor chama atenção para uma presença
clerical irregular e ainda esparsa, caracterizada pelas paróquias, ainda limitadas em suas
funções catequéticas. A subdivisão de dioceses e capítulos, instituições seculares e
eclesiásticas começará a tomar fôlego e se cristalizará entre o período carolíngio e o sec. XII.
De modo que os pontos centrais de estabilização topográfica social e administrativa
consistiam nas paróquias rurais, em agrupamentos ao redor do cemitério e da igreja
paroquial. Segundo WICKHAM (2019, p.113) o cristianismo do século V era uma religião de
massas, que foi chegando cada vez mais ao campesinato, com seus participantes (leais aos
bispos e líderes religiosos locais) capazes de mobilizações contra outras províncias,
verdadeiras tropas de choque de monges monofisitas.
Nessa mesma toada, na comunidade rural, cenário no qual o cura era extremamente
próximo de seus paroquianos, o modo de vida de ambos acabava apresentando similaridades,
e casos de concubinato não eram uma raridade:
Outro fator que chama atenção é a dinâmica do dízimo, que funcionava como uma
espécie de seguridade social à sobrevivência da comunidade. Um quarto desses rendimentos
eram destinados ao sustento dos pobres da paróquia, de modo que raramente foi posto em
causa nos países católicos até o fim do Antigo Regime.
Já nas cidades, que passam por um renascimento a partir dos séculos X e XII,
evidencia-se um crescimento demográfico, material e monetário, fator que leva à
multiplicação dos bairros e paróquias urbanas. Somado à emancipação política e aos
movimentos comunais dos séculos XII e XIII, Schmitt demonstra uma dinâmica concorrência
entre as novas Igrejas fundadas, bem como a criação de confrarias e de novas formas
devocionais.
O autor apresenta aqui uma noção de religião cívica, que se adapta às novas
realidades urbanas e a crescente importância da religião local e vernacular, oferecendo agora
um sentido mais político. A partir do momento que os laicos são mais reconhecidos dentro
dos quadros da Igreja, graças a Reforma Gregoriana, passa-se a ter uma dupla hierarquia
estabelecida de maneira mais clara entre clérigos e laicos, homens e mulheres.
Ainda assim, haviam movimentos reformadores, tidos como “heréticos” quando não
controlados pelo poder eclesiástico. Neste contexto, surgem as ordens mendicantes,
compostas majoritariamente por laicos convertidos à vida apostólica, compartilhando um
ideal de pobreza absoluta. Inicialmente informais, vão ganhando prosperidade conforme
expandem as pregações pela cidade, de modo que novas ordens menores vão sendo criadas
em seu bojo (um núcleo feminino, homens e mulheres que não pronunciavam votos de
maneira completa). A partir dessa religio, novas formas vão sendo dadas à religião cívica.
Desde o patronato celeste confiado a Virgem Maria, até santos e santas franciscanos,
Schmitt ressalta o grande afluxo de laicos aos quadros religiosos intermediários entre a vida
religiosa e secular, fenômeno denominado como Zwischenstand pelos historiadores alemães.
Com as ordens mendicantes, solidifica-se a reconciliação da igreja institucional e as
populações urbanas, com a disseminação da palavra de Deus por meio da pregação
vernacular.
Neste contexto, nota-se que os bispos e vigários estavam mais preocupados com a
garantia da ortopraxia dos fiéis do que com uma compreensão profunda da ortodoxia.
Portanto, buscava-se a introjeção do mínimo implícito de crença nos fiéis, como a repetição
mecânica de orações (pater noster, Ave maria, credo);
Assim, graças às peças litúrgicas dos séculos XI e XII, a religiosidade cristã começa a
ganhar cada vez mais espaço público na cidade. Não obstante, em 1215, com Concílio de
Latrão IV, a obrigação anual da penitência passa a ser auricular e secreta, um avanço sem
precedentes da prática ultrapassada da penitência pública e tarifada da Alta Idade Média.
Aqui, o papel da particularização do rito, do exame de consciência do fiel que perscruta seus
pecados, torna a relação com o divino mais sólida e familiarizada.
De modo que o fiel precisa alinhar seus passos por vontade própria aos de Cristo para
obter a salvação, bem como aceitar o guia dos padres e clérigos:
Livros de razão (visando a edificação política das gerações futuras) e conselhos para
o prosseguimento de negócios demonstram uma busca pelos laicos instruídos pela
conciliação entre o lucro material com os fins últimos da morte. Homens devotos e de posses
passam então a testamentar em detrimento de fundações piedosas, realizando doações aos
pobres, conventos e igrejas. Já nos mosteiros, o autor ressalta um aprofundamento da
consciência que passa a dar mais importância ao fenômeno oníricos, com os sonhos
representando tanto a vontade do Criador como a sordidez do Inimigo, bem como o caráter
premonitório das manifestações dos mortos, informando de seus sofrimentos e implorando
sufrágios aos vivos. Na virada do séc. XIII e XIV, leigos em língua vernacular passam a
relatar seus sonhos, como no caso de Dante Alighieri em Vita Nova (1292-1295).
Não obstante, o sentimento de iminência da morte nos últimos séculos do medievo era
uma constante, como demonstram os afrescos do Triunfo da morte, ars morriendi, serviços
funerários, gerando uma recordação diária da fragilidade existencial do sujeito do medievo.
Neste ínterim, os autorretratos, verdadeiros desafios lançados à morte, consistem em meios
de superação dessa efemeridade de vida. Por meio da memória material, Schmitt chama a
atenção para uma tensão entre cultura cristã (que pregava pelo afastamento das aparências do
mundo) e o fenômeno de um autorretrato que passa a se legitimar pelo anonimato,
representando cenas religiosa da qual os pintores ou representados são pintados como
testemunhas diretas, como nos casos do chanceler Nicolas Rolin, no retábulo de Pieter
Bladelin, humildemente afastados da cena central da Natividade.
Por fim, o autor finaliza o capítulo trazendo o fenômeno de uma catequização mais
profunda em virtude das reformas, além de uma “heresia” que acaba por se transformar em
outras Igrejas e religiões. Além disso, são suscitadas novas formas de superstição no campo,
devido a uma intrusão da religiosidade cultural cristã em todas as áreas da vida cotidiana dos
fiéis. Difundem-se os santuários de repouso, bem como a intervenção de juízes eclesiásticos,
fatores que são cruciais na geração da prática de perseguição aos sabás das ditas bruxas, e dos
supostos cultos ao demônio.
REFERÊNCIAS