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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus de


Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)

Disciplina: História Medieval II


Professor Responsável: Leandro Alves Teodoro

ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli

SCHMITT, Jean-Claude. Práticas Espirituais na Idade Média: Os Limites de uma


Religião Popular. In: Schmitt, Jean-Claude, Leandro Alves Teodoro, e Pablo Martín
Prieto. Cativar as almas: diretrizes para a instrução espiritual (séculos XII-XV). São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2022. Print, p.23-49.

Jean-Claude Schmitt é professor emérito na École des Hautes Études en Sciences


Sociales, de Paris. Possui uma vasta obra publicada, tanto em quantidade quanto na temática
que circunscreve o período medieval, com destaque aos aspectos da crença e da construção
da sociedade cristã. Dentre seus livros, destacam-se: La raison des gestes dans l’Occident
Médiéval (1990); Les revenants: les vivants et les morts dans la societé médiévale (1994);
Les corps, les rites, les rêves, le temps: essais d’anthropologie médiévale (2001) Le corps des
imagens: essais sur la culture visualle au Moyen Âge (2002); La Conversion d’Hermann le
Juif. Autobriographie, historie et fiction (Librairie du XXI siècle) (2004); Les rythimes au
Moyern Âge (2006); L’Invention de l’anniversaire (2018); Penser par figure: Du compas
divin aux diagrames magiques (2019); Le cloître des ombres (2001). Além das colaborações
e edições coletivas, como a Historie des jeunes em Occident. L’Epoque contempoirane
(1996), com Giovanni Levi; e o Dictionnaire raisonné de l’Occident medieval (1999), com
Jacques Le Goff.
A obra realiza uma análise da atuação do fiel na conversão cristã, da forma como se
realizava a persuasão e a redefinição de suas ações cotidianas. Trazendo uma história da
vontade do sujeito, dos limites da escolha pessoal e da marcha das pastorais nas diferentes
regiões da Europa do século XIII ao XV, bem como o peso individual do fiel na efetividade
da conversão e no enraizamento das práticas devocionais, além da participação cada vez
maior dos leigos no processo de cristianização no recorte temporal realizado pelos autores,
com o compromisso de contar uma história sobre os mecanismos de “fazer crer” e as crenças
que davam sentido ao mundo dos séculos XIII, XIV e XV.

A obra foi idealizada pelo projeto “O ensino da fé cristã na Península Ibérica”,


financiada pela Fundação de amparo à pesquisa do Estado de SP (FAPESP), com sede no
departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Universidade Estadual de Campinas. Partindo de uma revisão de uma análise da revista dos
Annales, anos 70 do séc. XX sobre o termo “religião popular” na Idade Média, Schmitt
chama atenção ao fato do termo “popular” não pertencer ao vocabulário do medievo como
compreendemos hoje, o que gera ambiguidades epistemológicas. Com “popular”, é gerada
uma generalização conceitual pelo historiador Étienne Delaruelle, por unir ao mesmo tempo
práticas ensinadas por clérigos com ações e tradições independentes do poder eclesiástico.

Nesta toada, Jean-Claude busca caminhos alternativos à visão holística de


espírito/alma de um povo, partindo da metodologia teórica da história dos conceitos na busca
pelas manifestações culturais próprias das comunidades laicais, bem como do conceito de
culturalismo de Franz Boas, de modo a abarcar os atores sociais de fora do meio clerical, com
o conceito mais acurado de religião vernacular. No capítulo, o conceito de religião
vernacular é somado a três centros principais de vivência cristã (aldeia, cidade e castelo),
para se tratar do processo de subjetivação da religião, nos exames de consciência e
expressões da interioridade, subordinados ao conceito de fé. Ademais, o autor trata do
surgimento de uma política pastoral vernacular, paroquial, nas aldeias e cortes, na qual os
cotidianos, o valor ao amor voluntário, penitência, e a conversão espontânea vão cristalizando
o cristianismo para além das portas eclesiásticas.

Jean-Claude Schmitt vai além dos pólos ativos e passivos no processo de conversão
do século XII-XV, de modo a tratar do fenômeno social, cultural, linguístico e psicológico,
além dos pecados típicos de determinados grupos sociais/profissionais. É simbólico ao autor
a insuficiência das abordagens clássicas do processo de conversão e evangelização, por se
limitarem ao enfoque nos padres, frades e monges e da utilização dos sermões, homilias e
relatos hagiográficos. Mesmo utilizando-se majoritariamente de fontes clericais, Schmitt
busca uma aproximação dos autores da sensibilidade dos sujeitos da época, para então tratar
da cristianização vernacular, denominador comum entre clérigos e leigos, nobres e
camponeses, letrados e iletrados. Soma-se a isso a atuação dos pensadores eclesiásticos e o
poder do convencimento pelo exemplo, guiando o baixo clero e o laicato, mais do que
coagindo.

Pertinente à temática, vejamos o historiador Leandro Alves Toledo sobre a


importância do exemplo clerical na condução dos leigos, presente nas políticas pastorais
castelhanas do séc. IV e XV:

A tarefa dos clérigos de iluminar os leigos não significava, contudo, o


mesmo que coagir ou forçar contra a vontade de outrem; ao
contrário, dizia respeito ao ato de condução pelo qual homens e
mulheres se convenceriam da utilidade daqueles exemplos
ensinados e vivenciados pelos clérigos para a sua própria formação.
No sentido empregado por Clemente Sánchez, o verbo “iluminar”
pode ser entendido como ato de guiar e de se fazer persuasivo, com
a finalidade de tornar os leigos mais atentos para com seus deveres
como cristãos no mundo e com a ideia de que aprendessem a
professar sua fé. (TEODORO, p.78)

De modo que a convergência de vontades que simboliza a efetiva cristianização só


poderia acontecer com a consciência e respeito pela existência de uma “cultura
intermediária”, fresta pela qual entrariam os ensinamentos clericais em língua vernacular,
bem como a importância do comportamento dos reis, nobres e clérigos, com seu gestual e
ações devendo refletir pureza e denodo religioso, fator este que levaria os núcleos da nobreza
e clero a cada vez mais se atentar às suas respectivas faltas e pecados pessoais, sejam
públicos ou privados.

O autor inicia o capítulo com uma analogia do Santo Antônio de Pádua, ressaltando a
importância da palavra pregada e seu apelo para cativar e seduzir o pecador, tratando do
aperfeiçoamento espiritual da penitência e da confissão, que iluminariam o sujeito. Tais
fatores são simbólicos de um contexto de emergência dos sermões no séc. XIII, da criação
das ordens mendicantes e a pregação como ferramenta de conversão, impulsionadas pela
renovação das tarefas pastorais da Igreja com o papa Inocêncio III. Para o autor, trata-se um
período de emergente sensibilidade espiritual, caracterizado pela emergência dos movimentos
laicos e da maturação das linguagens e literaturas vernaculares ocidentais.

De modo que o poder eclesiástico passa a se comunicar de maneira cada vez menos
impositiva, com sermões que passam a oferecer o papel ativo aos ouvintes no jogo de
comunicação com Deus. A necessidade de uma pregação cativante (que envolva o ouvinte e
o convença da graça divina como motor da prédica) e os exempla, manuais e constituições
sinodais (mirando a conduta clerical correta) acabam por oferecer um contraponto com o
cenário religioso carolíngio do séc. VIII.

Tomemos como exemplo o historiador André Vauchez sobre a limitação dos leigos
dentro da ritualística cristã carolíngia:

[...] Quanto aos leigos, não tinham mais um papel ativo no culto
depois que este se tornou apanágio de especialistas. O canto
litúrgico assumiu uma importância crescente nos ofícios por causa
de sua dificuldade, só podia ser executado por cantores formados
nas escolas catedrais ou nos mosteiros. A adoção do canto
gregoriano – ou romano -- sob a influência de Carlos Magno,
introduzindo em muitas regiões modos de expressão estranhos à
liturgia local, tornou ainda mais difícil a participação dos fiéis no
ofício[...] [...]A disposição interna das igrejas só podia favorecer a
passividade dos fiéis: ficavam de pé na nave, separados do
santuário pelo cancelo, e do altar pelos coros dos clérigos que
salmodiavam na schola cantorum. O celebrante lhes voltava as costas e
dirigia-se a Deus em nome deles [...]. (VAUCHEZ, p.16)

De modo que em meados do séc. XIII, pode-se observar um maior envolvimento dos
clérigos na vida paroquial, nas rotinas das regiões e aldeias. Seja na celebração de missas, no
reconhecimento dos fiéis pelo nome, denota-se um intercâmbio cada vez mais assíduo das
camadas da sociedade dentro do contexto religioso da cristandade.

Partindo de uma de suas primeiras publicações, (religião popular e cultura folclórica,


Annales, ESC, 1976, p.941-953), Schmitt critica severamente a noção de religião popular
empregada por historiadores próximos da igreja católica, pois se caracteriza como uma noção
historiográfica que ampliava os preconceitos tradicionais de um povo submetido à palavra e a
autoridade clerical, tolhida de iniciativa ou de crenças/rituais. Segundo (SCHMITT, 2022,
p.23) a problemática de uma “religião popular” foi distanciando-se da agenda medievalista,
por variadas causas (poucos historiadores de batina, preferência por temáticas como teologia,
direito canônico, santidade). De modo que o autor busca uma ruptura metodológica pautada
na antropologia social e cultural.

Portanto, em virtude do caráter holístico da cultura medieval e sua integração com o


papel transcendente e onipresente da religião (ainda que não no sentido que entendemos hoje
o conceito de religião), Schmitt busca analisar a religião do medievo como uma cultura, não
como uma escolha subjetiva de uma crença, valores e práticas rituais pessoais típicos da
cristandade moderna. De modo que a metodologia trabalhada é pautada no sentido
antropológico dos historiadores Franz Boas e Lévi-Strauss, pautada nas diferenças
significativas e da distinção cultural no espaço e no tempo, bem como o seu caráter
abrangente da noção cultural, que pede uma análise pormenorizada de dados sociais,
materiais, tecnológicos, ecológicos e especialmente simbólicos.

Deve-se frisar aqui a importância do gestual e da simbologia na religiosidade


medieval, nexo que podemos destacar tanto em meados do séc. VIII-IX como na
religiosidade castelhana dos séc. XIX. XVIII-XV, respeitando suas devidas particularidades e
distanciamentos temporais:

[...] Nesse clima de sacralidade indiferenciada, não se podia tratar de


vida interior, no sentido em que nós a entendemos. O homem
entrava em relação com o sobrenatural através de fórmulas e
principalmente através de gestos, pelos quais se expressavam os
seus estados de alma. Na própria liturgia, multiplicavam-se nessa
época os sinais rituais. Alguns exteriorizavam simplesmente o
sentido das palavras pronunciadas, como fazia o padre ao bater no
peito no momento do Confiteor. Mas outros elementos dessa
simbólica gestual mostram uma preocupação de comunicação direta
com Deus, como a abertura dos braços durante a leitura do Cânon
ou os muitos sinais-da-cruz e beijos no altar que escandem as fases
principais da missa. De modo geral, as formas e o significado da
ação cultual evoluíam. [...] (VAUCHEZ, p.27)

[...] O rito eucarístico é um signo composto por elementos de


natureza vocal, visual e espacial que facilitam a passagem do
invisível ao visível, dando corpo e sangue ao Cristo ressuscitado. Na
celebração, envolvem-se sentidos corpóreos diferentes, a visão, o
toque e a audição, a fim de reproduzir a eficácia do sacramento da
Eucaristia e mergulhar os fiéis num universo em que compreendem,
portanto, a presença de Cristo por meio da percepção sensorial,
degustação da hóstia, visão dos gestos e audição de cantos e
palavras [...] (TEODORO, p.74)

Portanto, o termo religião é pouco pertinente e limitador ao tratar da religiosidade do


medievo, precisando assim ser incluída numa noção mais ampla, como representações
simbólicas. Denota-se aqui um cuidado (que permeia todo o capítulo) do autor em não cair
numa visão teleológica de religião, que tal como os conceitos de política e economia ainda
não possuíam a autonomia que conhecemos hoje desde o iluminismo, no sentido de práticas
às quais os indivíduos podem livremente aderir ou não, de maneira plenamente
conscientemente.

Ilustrativo disso é o termo em latim religio, que designava ordens religiosas (como as
mendicantes), distante assim do conceito contemporâneo de religiosidade:

[...] Nos tempos medievais, a palavra religio não significava


comumente “a religião”, tal qual a entendemos, mas uma ordem
religiosa (cluniacense, cisterciense ou mendicante). A religião não se
distinguia então de cultura, e, inversamente, pode-se afirmar que
não havia, na cultura medieval, gestos, palavras, nem pensamentos,
lugares ou objetos, que não possuíssem de algum modo uma
dimensão “religiosa”. Para um camponês, por exemplo, semear seu
trigo ou plantar uma árvore não exigia apenas um saber agrícola
empírico ou teórico, mas supunha que ele rezasse ao santo protetor
ou pronunciasse qualquer fórmula benéfica para afastar o mau
tempo, os ataques de feiticeiros e a invasão de insetos nocivos.
(SCHMITT, p.25)

Ao tratar da problemática do conceito de uma “religião popular”, Schmitt chama a


atenção da ideia implícita de uma hierarquia de modelos religiosos, representada por um
magistério e seu saber teológico no topo, enquanto os fiéis simples restariam passivos na
base. Nada mais distinto das formas de sentir e pensar dos sujeitos medievais, pois a distância
sociocultural entre o senhor e o aldeão era muito próxima em diversos aspectos, no que tange
a ritualística da religiosidade e suas práticas, como veremos a frente.

De modo que seria mais acurado a terminologia de uma religião local do que popular,
de modo a privilegiar o alicerce espacial, as relações de convivência, as práticas simbólicas,
bem como as superstições e “magias” de determinadas comunidades camponesas e as
semelhanças com a dos nobres, do baixo clero e dos leigos de maneira geral. Partir desta
visão oferece uma perspectiva que coloca em pauta a importância das rogações e
peregrinações, aos modelos de expressão e comunicação fora do meio clerical, na linguagem
dos illiterati.

Não obstante, o autor ressalta as dificuldades deste deslocamento de olhar


metodológico, haja visto a preponderância das fontes clericais, em latim e com base nas
formas de julgamento do eixo eclesiástico da sociedade medieval. Simbólico desta distância
entre os clérigos e laicos foi a Reforma Gregoriana, que passou a estabelecer com ainda mais
força o papel de ambos, dando aos primeiros uma santidade e o celibato e legando aos
segundos à conjugati, a reprodução biológica.

Schmitt ressalta, antes de abordar as comunidades religiosas e a geografia cultural das


práticas religiosas vernaculares, a tripla existência de uma igreja institucional, clerezia
hierárquica (e juridicamente estabelecida) e um dogma fixo (escrito), tripé que representa a
cristandade medieval e serve como ponto de observação de como se concretizavam as
relações entre as iniciativas individuais e às restrições comunitárias neste cenário religioso ao
longo dos sécs. XII e XV.

Ao tratar das comunidades criadoras das práticas cristãs abordadas, o autor destaca o
caráter fracionário e unilateral das fontes escritas no primeiro milênio cristão, composta
majoritariamente por livros penitenciais, leis dos reinos “bárbaros” e capitulários carolíngios.
De modo que a Arqueologia vem para completar e colorir o quadro religioso do período,
usando práticas funerárias e arquitetura dos santuários. Conforme SCHMITT (2022, p.28)
Juntamente a isto, a economia e as sociedades rurais ganham um peso esmagador após o lento
declínio dos quadros institucionais da cultura urbana do mundo Antigo, num quadro no qual
camponeses e pagãos ainda não são claramente distinguidos pela literatura eclesiástica dos
pagãos a converter e os cristãos supersticiosos a corrigir:
[...] O bispo Sulpício Severo (363-425 d.C.), autor da Vida de São
Martinho (cerca de 400 d.C), narra um milagre famoso do seu herói,
que viria a figurar mais tarde nas miniaturas dos manuscritos ou nos
vitrais das igrejas: o santo ordenou cortar um grande pinho aos pés
do qual os pagãos celebravam um culto e estes quiseram esmagá-lo
sob a árvore; porém, o santo desviou milagrosamente a queda do
tronco, o que levou os pagãos a se convertem ao cristianismo.
(SCHMITT, p.28)

De modo que a hagiografia do período mostrava pagãos e camponeses que ainda eram
evocados como uma coletividade anônima unida pelo ódio ao cristianismo.
Concomitantemente, na Idade Média central, fontes da literatura penitencial (oferecendo
listas de desvios em relação a norma eclesiástica), prevenção de penitências tarifadas, são
demonstrativos de um poder eclesiástico buscando reprimir a sobrevivência do paganismo e
das superstições.

Para o autor, a decadência da religião galo-romana foi primordial para o renascimento


de crenças e práticas, que por sua vez eram vistas como interferências do diabo pela Igreja.
Aqui, devemos considerar a importância de observar uma topografia dos lugares tidos como
sagrados às práticas pagãs, bem como sua sobrevivência nos escritos eclesiásticos até os
eruditos e folcloristas do século XIX. Schmitt reforça a importância de considerar a cultura
em sua coerência estrutural dentro do momento histórico trabalhado, mais do que a partir de
sua construção teleológica por heranças diversas. As atividades, crenças e conceitos, por mais
antigas, devem ser trabalhadas com suas funções presentes ao recorte histórico realizado.

De modo que numa sociedade rural ameaçada pela escassez, morte súbita de crianças
e adultos (até a revolução médica dos ainda distantes sécs. XIX e XX), o primordial ao
campônio do medievo era de se precaver contra o “mal” biológico, contra a fome endêmica,
as epidemias, violências e “mal olhados” que podiam ser lançados a todo momento pelos
vizinhos. Portanto, num contexto permeado por sacralidades difusas dos campônios, não é de
se estranhar que a Igreja buscasse cristianizar determinados atos da “religiosidade popular”.
Segundo VAUCHEZ (1994, p.26) “[..] apareceram ao lado da liturgia eucarística, todo tipo de
paraliturgias, das quais as mais importantes eram as bênçãos e exorcismos. [...]. Por essa
profusão de ritos, a Igreja procurava impregnar de religião a existência cotidiana dos fiéis”.
Reflexo da impotência dos clérigos, face às expectativas de uma população incapaz de
separar os instrumentos simbólicas das igrejas de outros meios tradicionais de defesa locais e
tradicionais, podem ser vistos nas repetidas condenações eclesiásticas contra os pagani pelos
sortilégios e adivinhações, bem como nas ilusões de mulheres cavalgando bestas fantásticas,
lendas sobre a origem do granizo e trovão (descritas pelos bispos Reginon de Prüm e do bispo
Agobard de Lyon).

Já na virada do século XV, com o tratado Malleus Maleficorum destinado aos


inquisidores, denota-se uma mudança de atitude a respeito das superstições. De modo que o
suposto “Vôo” das feiticeiras passa a ser dito como verdadeiro, efeito do pacto com o diabo,
que abre o caminho para a repressão violenta e caça às bruxas, deslanchada nos séculos XVI
e XVII.

Da ilusão outrora vista como superstição e crendice pelos clérigos, passamos para a
concretização da superstição, que além de dar atestado de credibilidade às crenças locais, as
colocando no espectro negativo da santidade cristã, como algo a ser combatido. Tais fatores
são ilustrativos da impossibilidade de se separar a cultura erudita eclesiástica da religião
vernacular e local, bem como suas antíteses pagãs, ao analisar a cultura religiosa no medievo.

Ao tratar da aldeia na idade média central, o autor chama atenção para uma presença
clerical irregular e ainda esparsa, caracterizada pelas paróquias, ainda limitadas em suas
funções catequéticas. A subdivisão de dioceses e capítulos, instituições seculares e
eclesiásticas começará a tomar fôlego e se cristalizará entre o período carolíngio e o sec. XII.
De modo que os pontos centrais de estabilização topográfica social e administrativa
consistiam nas paróquias rurais, em agrupamentos ao redor do cemitério e da igreja
paroquial. Segundo WICKHAM (2019, p.113) o cristianismo do século V era uma religião de
massas, que foi chegando cada vez mais ao campesinato, com seus participantes (leais aos
bispos e líderes religiosos locais) capazes de mobilizações contra outras províncias,
verdadeiras tropas de choque de monges monofisitas.

Conforme o autor, fora das cidades os ensinamentos penetravam de maneira mais


dificultosa. Isso se deve pela natureza composta das experiências religiosas, como no caso de
Joana D’Arc, e sua crença “sincrética” na árvore das damas, pela qual ouvia vozes de anjos,
além de sua identificação com as santas protetoras, Margarida e Catarina. Neste contexto,
percebe-se que uma imagética cristã passa a ser moldada, na presença cada vez mais
frequente do crucifixo, altares representando a Virgem, Jesus, além de afrescos da dance
macabre, lembrança da injunção memento mori, muito bem caracterizada na obra
cinematográfica de 1959, “O Sétimo Selo” do diretor sueco Ingmar Bergman.

Nessa mesma toada, na comunidade rural, cenário no qual o cura era extremamente
próximo de seus paroquianos, o modo de vida de ambos acabava apresentando similaridades,
e casos de concubinato não eram uma raridade:

[...] Ainda no século XIV, na aldeia pirenaica de Montaillo, o cura


Pierre Clergue baseia-se na lei do celibato eclesiástico para
multiplicar suas conquistas femininas: “Eu sou padre, não quero
esposa”, declara hipocritamente, o que quer dizer que, não podendo
canonicamente, esposar nenhuma mulher, ele as queria todas! Com
a capelã Beatriz de Planissoles, sua mais bela presa, com
consentimento, ele recorre às velas receitas campesinas para que
ela não engravide: ele pendura em volta do pescoço dela, deixando
pender entre os seios, um sachê contendo uma erva com supostas
virtudes contraceptivas. (SCHMITT, p.32. apud LE ROY LADURIE,
p.226)

Quadros que se mantiveram praticamente os mesmos dentro dos quadros da religião


vernacular aldeã foram os meios de identificação coletiva: sejam materiais (como as
igrejas, seu relógio, capelas, cemitérios) e imateriais (santos, ritos agrários, festas
paroquiais). Outro fator que não pode escapar da atenção é que as comunidades rurais eram
compostas por territórios contíguos, de modo que trocas e alianças (festas, peregrinações,
feiras e mercados) e conflitos de vizinhanças eram uma constante que engrossava o quadro
cultural. Um exemplo seria o culto a São Guinefort, que ocorria ao norte de Lyon, floresta
equidistante de quatro aldeias.

Outro fator que chama atenção é a dinâmica do dízimo, que funcionava como uma
espécie de seguridade social à sobrevivência da comunidade. Um quarto desses rendimentos
eram destinados ao sustento dos pobres da paróquia, de modo que raramente foi posto em
causa nos países católicos até o fim do Antigo Regime.

Quanto ao castelo, Schmitt expõem uma dominação simbólica e material sobre a


população campesina, ainda que os mestres do castelo compartilhassem amplamente das
crenças e comportamentos rurais, sendo ricas as trocas de informações e costumes entre os
castelos, aldeias e os estabelecimentos eclesiásticos. Simbólico disso são as crenças na Fada
Melusina, nos mesnin Hallequin, e na “caçada selvagem”. Junto a isso, autores, monges e
clérigos serviam como intermediários da cultura cristão entre os mosteiros, capítulos sinodais
e as cortes.

Outro fator de sínteses culturais na religião da corte com a vernacular do campesinato


pode ser compreendido por meio dos calendários litúrgicos, com datas como a Páscoa e a
Circuncisão coincidindo com prazos tributários. Para LE GOFF (1990, p.488) o lugar que o
calendário ocupa nos primeiros séculos do cristianismo demonstra a sua importância para a
Igreja cristã [..], considerado como “expressão da determinação do tempo por Deus”
[Danielou e Marrou, 1963, p.65]. Assim, datas e festa cristãs, numa época na qual ainda não
havia a laicização do tempo à imagem dos poderes públicos, vinculam tanto camponeses
quanto nobres.

Já nas cidades, que passam por um renascimento a partir dos séculos X e XII,
evidencia-se um crescimento demográfico, material e monetário, fator que leva à
multiplicação dos bairros e paróquias urbanas. Somado à emancipação política e aos
movimentos comunais dos séculos XII e XIII, Schmitt demonstra uma dinâmica concorrência
entre as novas Igrejas fundadas, bem como a criação de confrarias e de novas formas
devocionais.

O autor apresenta aqui uma noção de religião cívica, que se adapta às novas
realidades urbanas e a crescente importância da religião local e vernacular, oferecendo agora
um sentido mais político. A partir do momento que os laicos são mais reconhecidos dentro
dos quadros da Igreja, graças a Reforma Gregoriana, passa-se a ter uma dupla hierarquia
estabelecida de maneira mais clara entre clérigos e laicos, homens e mulheres.

Ainda assim, haviam movimentos reformadores, tidos como “heréticos” quando não
controlados pelo poder eclesiástico. Neste contexto, surgem as ordens mendicantes,
compostas majoritariamente por laicos convertidos à vida apostólica, compartilhando um
ideal de pobreza absoluta. Inicialmente informais, vão ganhando prosperidade conforme
expandem as pregações pela cidade, de modo que novas ordens menores vão sendo criadas
em seu bojo (um núcleo feminino, homens e mulheres que não pronunciavam votos de
maneira completa). A partir dessa religio, novas formas vão sendo dadas à religião cívica.
Desde o patronato celeste confiado a Virgem Maria, até santos e santas franciscanos,
Schmitt ressalta o grande afluxo de laicos aos quadros religiosos intermediários entre a vida
religiosa e secular, fenômeno denominado como Zwischenstand pelos historiadores alemães.
Com as ordens mendicantes, solidifica-se a reconciliação da igreja institucional e as
populações urbanas, com a disseminação da palavra de Deus por meio da pregação
vernacular.

Neste contexto, nota-se que os bispos e vigários estavam mais preocupados com a
garantia da ortopraxia dos fiéis do que com uma compreensão profunda da ortodoxia.
Portanto, buscava-se a introjeção do mínimo implícito de crença nos fiéis, como a repetição
mecânica de orações (pater noster, Ave maria, credo);

Fora dos conventos e igrejas, cabia às irmandades penitentes e procissões religiosas


levarem a religião vernacular às ruas. Com o calendário litúrgico, passam a se justificar as
manifestações coletivas de outrora (mascaradas, Carnaval) com a proximidade das datas da
quaresma, familiarizando assim os espectadores às cenas da paixão de Cristo, a ressurreição e
a vida dos santos. Com uma linguagem cotidiana e roupagem contemporâneas, atualizava-se
a representação, levando a uma participação mais ativa da multidão.

Assim, graças às peças litúrgicas dos séculos XI e XII, a religiosidade cristã começa a
ganhar cada vez mais espaço público na cidade. Não obstante, em 1215, com Concílio de
Latrão IV, a obrigação anual da penitência passa a ser auricular e secreta, um avanço sem
precedentes da prática ultrapassada da penitência pública e tarifada da Alta Idade Média.
Aqui, o papel da particularização do rito, do exame de consciência do fiel que perscruta seus
pecados, torna a relação com o divino mais sólida e familiarizada.

Schmitt também chama a atenção para a importância do culto do corpus christi,


oficializado e solenizado em 1264. Juntamente com os relatos de milagres e da mística por
trás dos mártires, se gera uma solidificação do culto eucarístico, distanciando-o cada vez mais
dos costumes pagãos das primeiras eucaristias:

Durante as celebrações eucarísticas, a recepção do Corpo de Cristo


parece ter sido frequente. São Bonifácio, no século VIII, a
recomendava nas grandes ocasiões, isto é, quando das principais
festas do ciclo litúrgico: Natal, Páscoa e Pentecostes. Entretanto,
advertia os fiéis contra as comunhões sacrílegas [...] No século XI,
os camponeses ainda se apoderariam de hóstias consagradas, para
enterrá-las nos campos, a fim de garantir a sua fertilidade. Essas
práticas e outras similares, mencionadas pelos penitenciais da
época, explicam talvez as reticências dos clérigos e o pouco
empenho que tinham em fazer com que seus fiéis comungassem.
(VAUCHEZ, p.18)

A hóstia sagrada também se tornou o marcador por excelência da


identidade cristã diante dos judeus: no final da Idade Média, estes
são frequentemente acusados de profanar a hóstia com golpes de
faca; mas são imediatamente confundidos pelo sangue precioso que
dela brota, comparado ao corpo sofredor de Cristo na Cruz.
(SCHMITT, p.38 apud VAUCHEZ, p.77-92)

Após tratar da perspectiva coletiva e objetiva da religião vernacular, Schmitt se


propõe a analisar os pontos de vistas particulares dos sujeitos, das experiências singulares,
tarefa complicada, haja visto a rarefação de fontes de fora do meio eclesiástico, no qual os
leigos e laicos se confessem e demonstrem suas crenças e culturas religiosas.

Para Schmitt, o nascimento do indivíduo começa no processo de individuação,


enfatizando deste modo as construções mútuas de solidariedade coletiva e identitárias do
indivíduo do medievo. Portanto, a experiência religiosa individual se relaciona ao conceito de
sujeito, definição antropológica daquele que tem consciência de si e das formas de expressar
sua interioridade. Outrossim, uma noção de subjetividade e autonomia religiosa distante da
que temos na contemporaneidade, e que por sua vez é pautada na importância da salvação
individual e subjetiva do sujeito, com uma Igreja buscando promover seu desenvolvimento.

De modo que o fiel precisa alinhar seus passos por vontade própria aos de Cristo para
obter a salvação, bem como aceitar o guia dos padres e clérigos:

No universo cristão da Idade Média dos séculos XIV e XV, cresce a


preocupação com a formação individual, com a importância de a
confissão auricular ser voluntária e a conversão espontânea.
Contudo, obras como o Libro de las confessiones, de Martín Pérez
[...] defendiam que o indivíduo que almejava ser virtuoso não era, na
verdade, soberano sobre sua alma e seu corpo. Logo, a crença de
que contrição era resultante de uma escolha individual pelo perdão
não se confundia com uma convicção na força absoluta do indivíduo.
Embora este não devesse ser coagido, tinha de ser orientado e
iluminado por pessoas do grupo. (TEODORO, p.87)

Além disso, a introspecção e exames da consciência eram fortificados pela já citada


obrigação anual da confissão individual dos pecados, além da publicação de livros didáticos
confessionais, apresentado técnicas usadas pelos padres para incitar a prática da confissão.
Ademais, nos dois séculos finais da Idade Média, o fenômeno da “escrita de si” passa a
escapar do domínio dos literatti e do latim e laicos instruídos passam a realizar registros
mnemônicos em língua materna.

Livros de razão (visando a edificação política das gerações futuras) e conselhos para
o prosseguimento de negócios demonstram uma busca pelos laicos instruídos pela
conciliação entre o lucro material com os fins últimos da morte. Homens devotos e de posses
passam então a testamentar em detrimento de fundações piedosas, realizando doações aos
pobres, conventos e igrejas. Já nos mosteiros, o autor ressalta um aprofundamento da
consciência que passa a dar mais importância ao fenômeno oníricos, com os sonhos
representando tanto a vontade do Criador como a sordidez do Inimigo, bem como o caráter
premonitório das manifestações dos mortos, informando de seus sofrimentos e implorando
sufrágios aos vivos. Na virada do séc. XIII e XIV, leigos em língua vernacular passam a
relatar seus sonhos, como no caso de Dante Alighieri em Vita Nova (1292-1295).

Outro fator expressivo da cultura religiosa do período é a devoção “flamboyante”,


significativa nos dois últimos séculos do Medievo, na qual se valoriza as devoções
individuais e penitenciais extremas. Por exemplo, a Devoção do Rosário, consiste na
repetição de orações que garantem dezenas de milhares de anos de indulgência. O aumento
excessivo de indulgências, que passam a ser alienadas por uma taxa, também é simbólico do
período (fator que levaria ao ataque dos reformadores protestantes, como Jean Gerson e
Lutero). Aqui, denota-se toda uma ritualística composta por uma “aritmética da fé”, que traria
uma garantia mecânica de salvação a quem realizasse determinado número de pater noster ou
dispusesse dos meios para comprar sua salvação.

Significativa dessa abrangência do mundo cristão aos laicos é o aumento exponencial


de registros e contabilizações da vida cristã em diferentes camadas sociais. Famílias
burguesas passam a registrar em livros contábeis os nascimentos, casamentos, mortes,
aniversários, bem como análises dos horóscopos, das influências benéficas e maléficas,
gerando assim uma inversão cultural de hábitos medievais. Outrora, o anniversarium do
medievo consistia na comemoração de um falecido após um ano da sua morte, passando
assim a uma comemoração do aniversário de nascimento.

Não obstante, o sentimento de iminência da morte nos últimos séculos do medievo era
uma constante, como demonstram os afrescos do Triunfo da morte, ars morriendi, serviços
funerários, gerando uma recordação diária da fragilidade existencial do sujeito do medievo.
Neste ínterim, os autorretratos, verdadeiros desafios lançados à morte, consistem em meios
de superação dessa efemeridade de vida. Por meio da memória material, Schmitt chama a
atenção para uma tensão entre cultura cristã (que pregava pelo afastamento das aparências do
mundo) e o fenômeno de um autorretrato que passa a se legitimar pelo anonimato,
representando cenas religiosa da qual os pintores ou representados são pintados como
testemunhas diretas, como nos casos do chanceler Nicolas Rolin, no retábulo de Pieter
Bladelin, humildemente afastados da cena central da Natividade.

Por fim, o autor finaliza o capítulo trazendo o fenômeno de uma catequização mais
profunda em virtude das reformas, além de uma “heresia” que acaba por se transformar em
outras Igrejas e religiões. Além disso, são suscitadas novas formas de superstição no campo,
devido a uma intrusão da religiosidade cultural cristã em todas as áreas da vida cotidiana dos
fiéis. Difundem-se os santuários de repouso, bem como a intervenção de juízes eclesiásticos,
fatores que são cruciais na geração da prática de perseguição aos sabás das ditas bruxas, e dos
supostos cultos ao demônio.

Já no séc. XVII, as mudanças de paradigmas intelectuais e a autonomização das


ciências em relação à religião faz com que o poder eclesiástico e dominação cultural cristã
passem a ser questionadas. Com o advento das revoluções econômicas do séc. XVII e XIX, o
conceito de religião acaba por emergir numa concepção autônoma de pensamento e
comportamento social, podendo ser escolhidas pelo sujeito, que passa a ganhar uma
autonomia distante da religiosidade, cada vez mais antropocêntrica. Simbólico deste período
são as concepções do materialismo e do pensamento livre, bem como o escritor alemão
Friedrich Nietzsche e suas concepções contra a metafísica e os efeitos danosos da
religiosidade cristã na genealogia dos indivíduos pela história.
Com o Concílio do Vaticano II, Schmitt ressalta o desaparecimento de um modelo
tradicional de religião. Em contrapartida, aumenta-se a busca individual pela espiritualidade,
simbolizada pela oferta sem precedentes de religiões, todas em pé de igualdade, reflexos de
um mundo atomizado e cada vez mais globalizado dos séc. XX-XXI. Para o autor, Deus não
está morto, mas possui agora inúmeras feições.

REFERÊNCIAS

SCHMITT, Jean-Claude. Práticas Espirituais na Idade Média: Os Limites de uma


Religião Popular. In: Schmitt, Jean-Claude, Leandro Alves Teodoro, and Pablo Martín
Prieto. Cativar as almas: diretrizes para a instrução espiritual (séculos XII-XV). São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2022.

TEODORO, Leandro Alves. Frestas para o Aparecimento de Escritos Devocionais


em Vernáculo. In: Schmitt, Jean-Claude, Leandro Alves Teodoro, and Pablo Martín Prieto.
Cativar as almas: diretrizes para a instrução espiritual (séculos XII-XV). São Leopoldo: Ed.
Unisinos, 2022.

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII-XIII).


Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

WICKHAM, Chris. O Legado de Roma, Iluminando a Idade das Trevas, 400-1000.


Campinas: Ed. Unicamp, 2019.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Ed. Unicamp, 2000.

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