UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
(UNESP) FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus de Assis CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)
Disciplina: História Medieval II
Professor Responsável: Leandro Alves Teodoro
ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli
LE GOFF, Jacques. Cap.3: O Impulso da Moeda e do dinheiro na virada do século XII
para o século XIII. In: A Idade Média e o Dinheiro. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2014, p. 26-34.
Jacques Le Goff (Toulon, 1 de janeiro de 1924 — Paris, 1 de abril de 2014) foi
um historiador francês especialista em Idade Média. Autor de dezenas de livros e trabalhos, pertenceu à terceira geração da Escola dos Annales, empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval. Antigo estudante da École Normale Supérieure, estudou na Universidade Carolina em 1947-48, lecionou História em 1950 e foi membro da École Française de Rome. Nomeado assistente da Faculté de Lille (1954-59) antes de ser nomeado pesquisador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), em 1960. Em seguida, mestre-assistente da VI seção da École pratique des hautes études (1962) - sucedeu Fernand Braudel no comando da École des hautes études en sciences sociales, publicando estudos que renovaram a pesquisa histórica, sobre mentalidade e sobre antropologia da Idade Média. Seus seminários exploraram os caminhos da antropologia histórica, bem como as universidades medievais, o trabalho, o tempo, as maneiras, as imagens, as lendas, as transformações intelectuais da Idade Média. Suas principais obras são: Mercadores e banqueiros da Idade Média (1956); Civilização do Ocidente Medieval (1965); O Imaginário Medieval (1985); A História e Memória (1988). O autor inicia ressaltando a importância em considerar o dinheiro no medievo com outras denominações, pois a forma como conhecemos e lidamos com o capital, a moeda e as finanças são fenômenos da modernidade, de modo que o dinheiro não é o personagem de primeiro plano da época medieval, nem do ponto de vista econômico, nem do ponto de vista político, tampouco do ponto de vista psicológico e ético. De modo que Le Goff traz termos como “moeda”, “denário” e “pecúnia”, mais próximos do sentido atual de dinheiro. Portanto, o recorte apresenta um período no qual as moedas eram raras e fragmentadas, consistindo numa multiplicidade que vai longe de um cenário econômico homogêneo. Menos presente e importante do que era no Império Romano, terras, homens e poder definiam mais a riqueza medieval consistente, do que o dinheiro monetizado, fator que alteraria substancialmente a partir dos sécs. XVI-XVIII, mas com sua germinação no próspero séc. XIII, como o autor demonstrará no quarto capítulo da obra. Le Goff chama atenção para dois pontos principais ao tratar da temática: quais foram as moedas na economia, vida e mentalidade do medievo e como o cristianismo passou a legitimar e justificar a atitude que o cristão deveria adotar com o dinheiro. Inicialmente, o autor distinguirá os sujeitos sociais da Primeira Idade Média (séc. IV até XII) entre “potentes” e “humildes”, período caracterizado por um recesso da moeda, até seu lento retorno, nos sécs. XIII ao XV, onde o autor opta por denominar os agentes sociais entre “pobres” e “ricos”. Neste período limiar do capitalismo, são simbólicos os fenômenos da renovação econômica, do desenvolvimento urbano, bem como o fenômeno das ordens mendicantes. Ainda na introdução, dois aspectos importantes são levantados pelo autor: a utilização das moedas reais e das “moedas de cálculo”, que caracterizavam destrezas contábeis que levaram à utilização dos zeros nos cálculos, contribuição do matemático italiano Leonardo Fibonacci no séc. XX em seu Tratado do Ábaco, que transformou as tabuinhas de calcular da antiguidade em quadros de algarismos arábicos. Na mesma toada, foram vitais os avanços desenvolvidos por Luca Pacioli com sua Summa de arithmetic, bem como o Método de Cálculo de Nuremberg. O segundo aspecto é a ligação do dinheiro às questões culturais religiosas do medievo. Fato singular ao tratar das dinâmicas de enriquecimento no período medieval é a antítese da abastança, acumulação de dinheiro com os ideais morais cristãos que se cristalizavam no momento, configurando-se numa busca da Igreja em corrigir ou condenar os utilizadores de dinheiro. Exemplificativo dessa moral cristã: “Aquele que ama o dinheiro dificilmente escapa do pecado.” (SIRÁCIDE, 31, 5). Não menos distante: “Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará um e amará o outro, ou ligar-se-á a um e desprezará o outro. Não se pode servir a Deus e a Mamon (MATEUS, 6, 24) Portanto, não se pode escusar uma análise do dinheiro no período medieval que não leve em consideração os ideais de condenação da avareza pela Igreja, os elogios da caridade e a exaltação dos pobres, tidos pela Igreja como os mais próximos de Cristo e que mais facilmente adentrariam aos reinos do Céu. Simbólico deste sentimento, são as iconografias pejorativas do dinheiro, que vão desde representações de Judas recebendo os trinta dinheiros pelos quais vendeu Jesus Cristo, até Dante na Divina Comédia, com sua representação dos destinados ao sétimo círculo do inferno, endinheirados representados com uma bolsa de dinheiro pendurada ao pescoço, com as quais levariam suas riquezas materiais. Já no capitulo terceiro propriamente dito, após tratar das heranças do Império Romano e Cristianização e das dinâmicas carolíngias ao feudalismo, Le Goff se debruça nos acontecimentos fundamentais que caracterizam as concepções do uso monetário do sec. XII ao XIII: a passagem de um Mercado itinerante para um mais sedentário, o progresso urbano, com cidades consumindo e gerando cada vez mais dinheiro, a volta da moeda de ouro, além de indulgência do poder eclesiástico a respeito dos enriquecimentos e do sistema de lucros e juros. Neste recorte histórico, denota-se um reforço dos poderes públicos, fator que acaba por gerar uma difusão maior da moeda corrente. Não obstante, a ascensão das universidades e uma imagem do trabalho que vai se alterando, reforçada pela prática do Direito, vão fornecendo um arcabouço moral e sociológico que conspira para um dinamismo social e enaltecimento da riqueza, do lucro (ainda que o trabalho manual continue pejorado em detrimento da intelectualidade). Simultaneamente a estes fatores, coexiste o elogio da pobreza, a multiplicação da beneficência, associadas com a imagem de Cristo. De modo que podemos considerar o início do século XII como simultaneamente um tempo da canonização (em 1204, do Santo Homebon, rico comerciante de Cremona) e de glorificação da pobreza, por São Francisco de Assis. No que toca ao desenvolvimento do comércio, este pouco deve às cruzadas, num mercado que passa a ir cada vez mais além das atividades mercadológicas locais e regionais para atingir um raio mais “internacional”, com o fenômeno das grandes feiras (como as feiras de Champagne, Lagny. Provins, festa de Saint Ayoul), com os condes garantindo a legalidade e honestidade das operações financeiras realizadas. Neste contexto, corpos funcionários são necessários, fator que leva à criação das Clearing houses, de forma a regular as frequentes operações de câmbio e dívidas, fontes do enriquecimento citadino (e do campo, ainda que em escala muito menor) e de movimentação monetária. Ainda que no meio rural os senhores passem cada vez mais a receber o devido dos camponeses em dinheiro ao invés da corveia e produtos, é nos centros citadinos do medievo que a compra e venda de objetos fabricados e de matérias primas para o artesanato geram uma elevação significativa, gerando novas estratificações entre burgueses ricos e cidadãos pobres. Num quadro no qual as cruzadas sugavam os financiamentos da riqueza senhorial, não é de se espantar o declínio de sua importância em detrimento de uma burguesia comerciante em ascensão. Le Goff chama atenção aos perigos de uma tese como a de Robert S. Lopes, “Ceci a tué cela” (isto matou aquilo), especialmente no artigo no qual o autor ressalta que as catedrais teriam “matando” a expansão da economia monetária. Errôneo, pois as construções das catedrais eram acompanhas de um fomento ao mercado urbano, que passaria a uma progressiva atividade de construção de igrejas, catedrais e castelos-fortes, bem como casas urbanas (majoritariamente de madeira). Juntamente a este impulso, surgia a necessidade de criar praças, pontos de comércio onde a moeda “giraria”. Simbólico deste fenômeno de expansão citadina é a Paris de Filipe Augusto (1180-1223) com grandes empreendimentos na construção de muralhas e praças. Não obstante, a obtenção de franquias por determinadas cidades gerou o desaparecimento do peso das taxas senhoriais, difundindo-se assim a utilização do dinheiro e o fortalecimento do mercado interno e seus intercâmbios com outras cidades. Neste contexto, fortalecem-se as associações, como as guildas nas cidades comuns, que configuravam associações de seguro mútuo entre comerciantes, e as hansas, associações de cidades abastadas alemãs que buscavam repartir o lucro de modo mais eficiente. De modo que onde o dinheiro circulava mais, as regiões da cristandade passavam a conhecer um maior desenvolvimento urbano e comercial, que seus vizinhos de fluxo menor desconheciam. Segundo Le Goff, duas regiões se destacam: o nordeste europeu, de Flandres até os países bálticos, Arras, Ypres, Hamburgo, Bruges e Londres. Sua riqueza consistia majoritariamente na venda de tecidos, produção artesanal (quase industrial) e numa grande rede de circulação de mercadorias. A segunda região, que consiste na Itália do norte e o espaço mediterrâneo, com cidades como Milão, Veneza, Pisa, Florença, possuía um forte afluxo de escravos (especialmente em Gênova, composto por escravos catalães e maiorquinos, tanto pela reconquista espanolha, quanto pelas regiões do mar negro), enquanto Veneza possuía uma forte indústria de vidro desde o sec. XIII. O autor também chama a atenção para três cidades da costa atlântica francesa, La Rochelle, Bordeaux e La Poitou, com um intenso mercado vinicultor. De modo que os centros citadinos eram mais dinâmicos em relação ao campo, que fica praticamente estagnado no sec. XII. São significativos os progressos tecnológicos das cidades, como os moinhos e sua geração de energia para metalurgia, operação de cortumes e produção de cerveja. Cristaliza-se a posição dos comerciantes, que vão galgando posições de patronato nas cidades, acumulando e investindo riquezas, além da contratação operários/mão de obra para seus negócios. Se expande o uso das moedas, no plural, pois ainda não há mercado monetário propriamente dito, sua utilização ainda não caracterizando os grupos sociais da forma como entenderemos a partir do séc. XV. Conforme Le Goff, ainda que em decorrência do desenvolvimento urbano, o uso de moedas vai além do cenário citadino, especialmente no setor têxtil, gerando compras, vendas e trocas tanto dentro de feudos e no campo, até para fora da cristandade. No campo, o preparo da terra, fator que continuou nos séculos XII e XIII, permitiu ao mesmo tempo uma produção de madeira frequentemente vendida, fonte de dinheiro e criação de espaços entregues a culturas, induzindo novas rendas. O autor chama atenção para o campo de estudos de Bruno Lemesle, tratando do fenômeno na região de Anjou, e o dinamismo econômico dos mosteiros, que gerava latentes conflitos entre senhores e monges. Quanto ao setor têxtil, foi um dos únicos setores do recorte histórico que chegou perto de atingir um estágio industrial, induzindo uma circulação crescente de dinheiro, especialmente para os comerciantes de tecidos de Flandres e Hainaut. Ainda, o autor aponta para o mundo da construção, com a madeira recuando em detrimento do uso da pedra e metal, sendo a pedra da caen (sécs. XI ao XV), objeto de extração e comércio mais eficiente à economia monetária que a exploração das florestas. Com os avanços da arqueologia medieval (por escavações na Borgonha, na aldeia de Dracy, Côte-d’Or) foi possível perceber que a casa dos trabalhadores era construída em pedra, não madeira; Por fim, no Século XII para o XIII, Le Goff destaca também o apogeu e o declínio das ordens monásticas na circulação do dinheiro (com suas redes de mosteiros cujo centro era Cluny), outrora constituindo a principal rede de empréstimos aos leigos endividados. Com a enorme demanda por dinheiro, os mosteiros saem do circuito, devido à falta de recursos em metais precisos do poder eclesiástico, ainda que houvesse uma difusão de moedas de prata de valor forte e de moedas de ouro (bizantinas e muçulmanas). É singular do período entre o séc. XII até o XIII a limitação de se precisar qual era a importância que se revestia o dinheiro, devido a ambiguidade entre fontes escritas, que torna difícil definir as moedas reais ou de referência. A partir do sec. XIII, o cenário se torna mais receptivo ao pesquisador histórico, pois aumentam as documentações monetárias, graças a um progresso real na economia monetária da cristandade.
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Cidade. in Dicionário Temático Do Ocidente Medieval. (Coordenador de Tradução Hilário Franco São Paulo. Editora EDUSC, 20