Você está na página 1de 57
Robert A. Johnson HE A Chave do Entendimento da Psicologia Masculina O que 6, na verdade, ser um bomem? Quatis sto os grandes marcos ao longo do caminho até a maturidade mas Quais sto 05 componentes femininos da personalidade dos homens? “As mulheres sabem muito menos a respeito dos homens do que imaginam. Desenvolveram, pelos séculos afora, Uécnicas maravilbosas para se adaptarem a eles — mas isso niio quer dizer que os compreendam. (...) ‘Nao tém idéia do tamanho da complicagao que é a transigao, a passagem de um menino para a vida adulta de um bomem" _ _"Recomendo entusiasticamente este loro. E agradével, informativo, misterioso, poético e fa pensar Os homens que 0 lerem vito com certexa aprender muito sobre si priprios, e as mulheres — perticularmente aquelas que estejam sob a enganosa impressao de neles enxergar o'inimigo' — wo, com sua Leitura, abrir os olbos a novas descobertas" Ruth Tiffany Barnhouse, MD., Th. M. Harvard University MERCURYO ROBERT A. JOHNSON MERCURYO sil A Chave do Entendimento da Psicologia Masculina ROBERT A. JOHNSON MERCURYO E possivel ao homem de hoje en- contrar um significado para a sua vida? Como dominar 0 specto “Red Knight” — 0 poder agressivo da masculinidade — e usé-lo para atin- gir com sucesso todas as metas? De que formas pode um homem seduzir e set seduzido pela sua ani- ‘ma, a mulher que tem dentro de si? E quem € a “donzela tenebrosa” ‘que surge com suas tertiveis acusa- ges? Por que vai ser justimente cla a grande aliada do homem? R. A. Johnson utiliza 0 fascinio de um dos mais belos mitos de nossa civilizagio ocidental para expor, no seu estilo fluente © agradavel, as grandes verdades da psicologia jun- 1a do inconsciente. Ao final do ivro o leitor tetd encontrado a tes- posta para essas indagagdes que tan- to tém a ver com as prementes ques- tes que se colocam ao homem de ie. (O mito de Parsifal nasceu na Ida- de Média a época do lendério Rei Arthur ¢ sua Tévola Redonda. Pat- sifal 6 um dos vinte e quatro cava- Ieiros que partem a procura do Graal, 0 Célice Sagrado. ‘Apesar de nio falarmos mais em nossos dias de Graal, castelos e don- zelas encantadas, este € um mito para a nossa época. © leitor mas- culino nele encontrard os grandes marcos de sua vida psiquica, pois, como todo mito, a histéria de Par. € algo vivo, o reflexo do que cexiste de mais verdadeito dentro do homem. ‘As mulheres também se interes- satio pelos segredos do mito do Graal, seja porque cla tem dentro A Chave do Entendimento da Psicologia Masculina | ROBERT A. JOHNSON Titulo do Original Norte-Americeno + “HE — Understanding Masculine Psychology” Harper & Row, Publishers (Perennial Library) New York | | Copyright © by Robert A. Johnson | | ‘A Chave do Entendimento da Psicologia Masculina Capa Fotomontagem de Rodrigo Whitaker Salles Dinter Se bo nto de Pal | do Santo Graal, usando conceitos psicolégicos jungianos Dados de Catalogacio na Publicagéo (CIP) Internacional _ _ Tradugiode (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Maria Helena de Oliveira Tricca || Johnson, Robert A., 1921 Josh He’: a chave do entendimento da psicologia | masculina ; uma interpretagio baseada no. mito de Parsfalc « procura do Santo Graal, usando conceitos psicoldgicos jungianos / Robert A. Johnson ; tradu- { Go de Maria Helena de Oliveira Tricca. — Sto | Paulo : Mercuryo, 1987 1. Anima (Psicandlise) 2. Homens — Psicologia | I. Titulo: A chave do entendimento da psicologia | ‘masculina, cpp.155.632 f 87-1405 616.8917 | Indices pata catélogo sistemético: 1. Anima: Psicandlise : Medicina 616.8917 Edi 2. Homens : Psicologia 155.632 es eee io Paulo PREFACIO As mulheres, na realidade, no sabem tanto a res- a | peito dos homens como imaginam. Desenvolveram, | através dos séculos, muita habilidade nas téenicas de - como adaptar-se a eles, mas isso ndo significa té-los se compreendido verdadeiramente. | Geralmente incorrem elas no erro de penser que a vida é razoavelmente fécil para os homens, pelo me- is nos quando a comparam a sua propria, e nao fazem a idéia da luta intrincada que se processa na transigo da inffncia do homem & maturidade. Elas no imaginam como é longa ¢ ardua a estrada que deve ser percorrida pelo menino que precisa separar-se da matriz, indispen- sével, da mie nutriente, e aventurar-se por um caminho prprio; um caminho que nfo é 0 dela e que ao garo- to nio € dado conhecer por conselhos ou exemplos vindos da mie. Considerando tudo isto, é fécil ver que a menina precisa aprender a ser como sua mie, enquanto que 0 menino deve ser diferente dela, sem que esta diferen- a, todavia, degenere para o antagonismo ou para o medo. Infelizmente, as atuais condigdes da cultura oci- dental, na grande maioria das vezes, favorecem esse de- plordvel resultado, com funestas conseqiiéncias. Por esta razio, a abordagem jungiana, que tenta focalizar essa fofite permanente de problemas, é de grande ajuda para a elucidacéo do crescente conflito entre o homem e a mulher. Johnson € particularmen- te bem sucedido ao explicar, de forma simples, através da interpretagio criativa de mitos antigos (neste caso, Parsifal) essa perene “(guerra dos sexos”. Poderd parecer, a primeira vista, a0 leitor comum, que um livro cuja proposta seja elucidar um mito me- dieval com uma visio moderna seja talvez pedante enfadonho. Nao, mesmo! O estilo de Johnson € fluente € coloquial, ¢ suas exposigdes, muito claras, dos princi- ios jungianos correm facilmente pelo texto. Hé um toque novelfstica de suspense, ¢ estou certa de que a maiotia dos leitores nao seré capaz de largar o livro até terminé-lo, Ao mesmo tempo, uma vez lido, seré Iembrado como uma obra que vale a pena ser relida, pois a cada leitura serio descortinados novos pontos, de vista. Resumindo, recomendo-o enfaticamente, Serve de entretenimento, € informativo, faz pensar, € misterio- s0, poético. Os homens que lerem certamente vio aprender muito a respeito de si mesmos, e as mulheres — particularmente aquelas que sio levadas, infelizmen- 8 te, a ver no homem “o inimigo” — vio achélo um verdadeito instrumento para abrir-Jhes os olhos. Ruth Tiffany Barnhouse, M. D., Th. M. Assistente de Psiquiatria Universidade de Harvard Cambridge, Massachussets. A MITOLOGIA E O NOSSO CONHECIMENTO DE DEUS ‘Uma introdugio a historia do Santo Graal ‘A mitologia era sagrada para os povos primitivos; era como se os mitos contivessem suas almas. Suas vidas eram por ela embaladas, € a morte dessa mito- logia — como aconteceu aos {ndios norte-ameticanos — significou a destruisio de suas identidades ¢ até de suas vidas. Contudo, para a maioria das pessoas, hoje em dia a palavra mito € tida como sindnimo de fantasioso ou ilus6rio. Isto se dé pela idéia distorcida de que os mitos eram uma forma infantil pela qual o homem pri- mitivo tentava explicar os fendmenos que hoje séo es- clarecidos pela ciéncia. Mas alguns psicélogos ¢ antro- pologos estéo nos ajudando a ver os mitos sob uma outra luz; a entender que a mitologia reflete os varios processos psicoldgicos espirituais que se desenrolam na psique humana. C. G. Jung, por exemplo, com sua teoria do in- 13 consciente coletivo, demonstra-nos que os mitos sio representagées espontineas vindas do inconsciente, de verdades psicolégicas e espirituais. Para ele, os mitos fazem sentido para todos porque representa, de for- ma alegérica, os “arquétipos”, ou seja, padrées de vida universalmente reconhecidos. Um mito esta para a humanidade em geral, assim como 0 sonho esté para o individuo. O sonho mostra a alguém uma verdade psicolégica importante sobre si préprio. O mito, em contrapartida, mostra uma verda- de psicolégica importante que se aplica a toda a huma- nidade Uma pessoa que consiga desvendar seus sonhos pode conhecer-se melhor; uma pessoa que compreenda © significado intrinseco de um mito esté em ligacio com as indagagSes espirituais que a vida propde a to- dos ns Entre todos os intimeros mitos do homem ociden- tal, a histéria do Santo Graal é com certeza impar. Em ptimeiro lugar, € 0 mais recente de todos eles. Ainda que tenha origem tanto em temas antigos € pagios, quanto em cristios, ele realmente tomou forma nos séculos XII e XIII. Vérias versdes apareceram quase que simultaneamente na Franca, Inglaterra, Alemanha, em Gales ¢ em outros paises europeus, como se uma tinica e vasta vida subterrinea tivesse, de repente, sido trazida & luz. O contesdo cristo, a origem recente € européia, dao a essa lenda um significado importante para o posicionamento espiritual do homem ocidental moderno. Este livro teve sua origem numa série de pales- tras sobre o Santo Graal proferidas por Robert John- 14 son, na Igreja Episcopal de Sao Paulo, em San Diego, Califérnia, na primavera de 1969. O enfoque que ele dé a0 mito do Graal é baseado nos principios da psi- cologia jungiana. Pode ser de grande ajuda resumir os pontos mais importantes dessa psicologia. A idéia central da psicologia de Jung & seu con: ceito de individuacio, isto é,'0 processo pelo qual a pes- soa vai-se tornando progressivamente, durante toda a sua vida, 0 ser pleno, unificado, tal como almejado por Deus,| Como conseqiiéncia, hé uma expansio gradual da consciéncia do ser, ¢ também uma capacidade sem pre maior da personalidade consciente em refletir 0 self integral. O ego pode ser entendido como sendo ‘0 centro da consciéncia, 0 “Eu” dentro de nés, aquela parte com a qual nos identificamos conscientemente. O self € 0 nome dado a personalidade total, ao ser na sua potencialidade, ao ser que est dentro de nés, desde 0 inicio, procurando ao longo da vida ser reconhecido ¢ manifestado através do ego. O processo da individuacéo envolve a pessoa em problemas psicolégicos e espirituais de grande comple- xidade. Um problema dificil é a questo de aceitar 0 seu Iado-sombra, aquele lado escuro, indesejado e peri goso da personalidade que est dentro de cada um, € que conflita com nossas atitudes ¢ ideais conscientes, mas com 0 qual todos precisam conviver, se quiserem tornar-se plenos. ‘A rejeigio da personalidade-sombra, resulta numa divisio interior ¢ no estabelecimento de um estado de hostilidade entre consciente e inconsciente. A aceitacéo ¢ integrago da personalidade-sombra € um processo muito dificil e doloroso, mas que tem por conseqiién- 15 cia o estabelecimento da unidade e do equilbrio psico- légico, que de outra forma nao seriam atingidos Ainda mais dificil é a incorporagao que o homem deve fazer do seu elemento inconsciente feminino, ¢ que a mulher deve fazer do seu elemento inconsciente masculino. Uma das maiores contribuigées de Jung foi a demonstragio de que o ser humano é andrégino, 0 que significa que combina em si os elementos masculi- no € feminino. Mas o homem geralmente se identifica com seu lado masculino e usa sua feminilidade no inte- rior, ao passo que a mulher faz 0 contrério, Esta mu- Iher interior no homem, Jung a chama anima, ¢ 0 ho- mem interior na mulher, animus A incorporagio do elemento feminino dentro do homem & uma questo psicolégica de grande sutileza ¢ dificuldade, Mas, a menos que ele consiga fazer isso, no pode sequer ter esperancas de compreender todo 0 mistétio do seu proprio self. O mito do Santo Graal emergiu numa época da histéria em que o lado feminino do homem estava co- mecando a atingir a consciéncia, numa nova forma, A histéria trata basicamente da importéncia e da dificul- dade da luta travada pelo homem para tornar conscien- te sua feminilidade interior e relacionar-se com ela. lenda do Graal é, por esta razo, fundamentalmente, a histéria de como acontece a individuacio na psique hu- mana. O leitor masculino deste livro vai encontrar grandes marcos de sua vida psiquica, os quais irfo sen- do colocados & sua frente 4 medida que a historia se desenvolver. Todavia, j4 que as mulheres tém de con- viver com os homens, elas também poderdo encontrar 16 grande interesse no significado da lenda do Santo Graal que as ajudara a compreender os homens em momentos cruciais de suas vidas. Hé um outro problema, Essa realizagio do self é algo problemética para a consciéncia crista tradicional. A consciéneia crista tfpica tem sido treinada ao longo dos séculos para almejar nada menos que a perfeicio, para levar uma vida sem manchas, uma vida perfeita Somos ensinados — e isso a despeito do Novo Testa- mento — que no fundo Deus nao € muito paciente com as nossas imperfeigdes, com nosso lado escuro sombrio. © apéstolo S40 Paulo é particularmente difi- cil, nesse ponto, Em varias passagens deixou bem claro que os cristdos por ele convertidos deveriam ser puros, imaculados, santos, perante Deus: isentos de ira, ran- cores € paixdes. ‘A psicologia da individuagio, entretanto, mostra que a meta desse processo que leva ao ser total nfo é a perfeicio, mas sim a plenitude. Um individuo, na sua inteireza, no € sempre inatacdvel, sem culpa, puto, mas é aquele em quem, no se sabe como, todos os as- pectos foram integrados num ser total. Esta paradoxal unidade do self, que € como uma combinacio de opostos (a vida nunca é isto ox aquilo, mas € ambos, € isto ¢ aquilo), € um segredo que nfo pode ser entendido ou compreendido racionalmente. A unidade é, por assim dizer, um mistério conhecido so- mente por Deus. O ego pode sentir a unidade do self, mas nfo pode compreendé-la logicamente. Em lingua- gem crista: s6 pela graca de Deus nos tornamos um todo, Ainda assim, para atingir esse ponto, um indivi- duo precisa passar por longa jornada e peregrinacao 17 — muita busca, quase sempre dolorosa, para construit as bases do seu ser e vir a preenché-lo, Este mistério da totalidade, que tanto € dédiva de Deus quanto fruto de grande esforgo da parte do homem, é 0 que consti- tui o grande tema no mito do Graal John A. Sanford - St. Paul’s Episcopal Church San Diego, Califéraia 18 Fregiientemente, quando uma nova era desponta na Historia, um mito brota a0 mesmo tempo, como se fosse uma pré-estréia do que vai acontecer, trazendo em si sébios conselhos para lidar com os elementos psi- coldgicos desse perfodo. No mito que fala da procura do Santo Graal empreendida por Parsifal temos essa teceita para o nosso préprio tempo. Ele apareceu no século XII, século que muitas pessoas dio como marco da era moderna. Idéias, atitudes e conceitos com os guais convivemos hoje tiveram seu aparecimento nos dias em que esse mito tomou forma. Seu tema principal esteve em muita evidéncia nos séculos XII, XIII e XTV, quando seu eco era ouvido por toda a Europa, Aqui, usaremos a versio francesa, que é a narrativa mais antiga extrafda de um poema de Chrétien de Troyes (v. pag. 105), Ha também uma 19 ——— versio alemi de Wolfram von Eschenbach ', e outra inglesa, Le Morte Dartur®, esta dltimo, do século XIV. Desde seu surgimento, a versio inglesa passou a ser muito elaborada e se tornou demasiadamente com- plexa. E tantas vezes foi editada que grande parte das suas verdades psicoldgicas esponténeas se perdeu. Jé a francesa, mais simples, mais direta, mais préxima do inconsciente, € mais util aos nossos propésitos. E importafte lembrar que um mito € algo vivo que existe dentro de cada um. Seremos capazes de cap- tarlhe a forma viva e verdadeira se o imaginarmos como uma espiral girando sem cessar dentro de nés; poderemos sentir como o mito esté vivo dentro da nos- sa propria estrutura psicolégica. © mito do Graal fala da psicologia masculina, ¢ tudo quanto acontece dentro da lenda pode ser toma- do como parte integrante do homem. Teremos de nos haver com um fascinante cortejo de donzelas, mas pre- cisaremos enfocé-las como parte da psique masculina. ‘Também as mulheres se interessario pelos segredos do mito do Santo Graal, pois que toda mulher tera de en- frentar uma dessas criaturas tio invulgares, 0 macho da, espécie, de uma forma ou de outra — pai, marido ou filho. Por isso mesmo, espero que seja titil a observa- fo dos incrfveis romances do homem mitol6gico Par- sifal e suas donzelas interiores. Nossa histéria comeca com 0 Castelo do Graal, que esté em sérias dificuldades. O rei desse castelo, 0 4, Foi usada esta versio para o “libretto” da Opera Parsfal de Richard Wagner. (NT) 2, Autor: Sit Thomas Malory. (N-T) 20 Fisher King’, foi ferido. Seus ferimentos so to gra- vves que o impedem de viver; e, por outro lado, ele nem sequer consegue morrer. Ele geme, ele grita, ele padece 0 tempo todo. O fato é que a propriedade esté em ruinas, 0 gado nao mais se reproduz, as colhei- tas no vingam, os cavaleiros sfo mortos, as ctiangas ficam na orfandade, as mocinhas choram, hé lamentos por toda parte, tudo porque o Fisher King esté ferido. A idéia de que o bem-estar de um reino depende da vitilidade ou do poder de seu governante tem sido muito comum, especialmente entre povos primitivos. Ainda existem alguns reinos nas areas menos civiliza- das do mundo, onde o rei € morto quando nao pode mais gerar nenhum descendente. Simplesmente o ma- tam em meio a cetimoniais, algumas vezes vagarosa- mente, outras vezes de formas terriveis, porque a cren- a € a de que 0 reino nao prosperaré sob um rei fraco ou enfermo. Assim, 0 Castelo do Graal esta com sérios proble- mas porque seu rei esté ferido; e 0 mito nos conta como foi que isto aconteceu, Anos antes, no infcio de sua adolescéncia, ao passear pelos bosques, o Fisher King deparou-se com um acampamento abandonado. Curiosamente, porém, havia ainda um fogo aceso ¢ um salmio’ sendo assado num espeto. O menino ingenua- mente serviu-se de um pedaco do peixe, num gesto mui to natural, pois estava com fome. O peixe queimou seus dedos de forma horrivel, e ele 0 deixou cair. Ins- 1. O Rei Pescador. (NT) 2, A. tradigio ofhica jf conhecia 0 “peixe da sabedoria” — “Salmon of Wisdom” que queima 25 mos, mss uma vez na boca, confere a sabe: doria, (NT) 24 tintivamente, levou os dedos a boca para aliviar a quei- madura e a0 fazé-lo péde sentir um pouco do gosto do salmio. Mas estava gravemente machucado e passou desde entao a ser chamado Fisher King, por ter sido ferido por um peixe Vale a pena anelisar simbolismo desse curioso conjunto de circunstincias, porque temos aqui 0 pri- meio acontecimento na psicologia de um homem. O salmio é um dos-‘uitos simbolos de Cristo, e, assim, (© menino, no inicio da adolescéncia, toca algo da natu: reza de Cristo no seu intimo; s6 que o faz cedo demais; é ferido e deixa cair. Mas, observe-se, levando 0 dedo queimado a boca, prova o sabor do peixe ¢ desenvolve tum gosto que jamais esqueceré. Muitas feridas psicol6- gicas de um homem ocorrem quando ele toca prematu- ramente sua natureza cristica, que é seu processo de in- dividuacio, e, assim, ao no poder compreendé-lo, nem completéslo, € ferido. Todos os homens so Fisher Kings; todo menino esbarra ingenuamente, alguma vez, em algo muito gran- de para ele. Com o objetivo ainda por alcangar, vé que nfo pode suporté-lo se desestrutura. E entio machu- cado gravemente e retira-se para lamber as feridas. Uma certa amargura aparece no garoto. Ele tenta com todo empenho, consegue realmente tocar seu salmio — sua individuacio — mas é incapaz de seguré-lo, $6 conse- gue se queimar. Se vocé quiser entender um joven que jd passou da puberdade, € preciso que isso tudo fique bem claro. Virtualmente, todo menino tem de ter as feridas do Fisher King. E o que a Igreja chama de felix culpa, 0 exto feliz, a feliz lesio. 22 E doloroso observar um rapaz dar-se conta de que ‘0 mundo no é s6 feito de alegria e felicidade, obser- var a desintegracéo de seu encanto infantil, de sua fé otimismo, Triste, mas necessédrio. Se nao formos ex- pulsos do Jardim do Eden, nfo poderd haver a Jeru- salém Celestial, e na liturgia catdlica do Sabado de Ale- luia hd uma bela passagem: “O feliz erro que foi a causa de to sublime redengio”’ A ferida do Fisher King pode coincidir com um acontecimento definido como injustica, por exemplo, ‘como 0 caso de alguém que é acusado de algo que nfo fez. Lembro-me de uma passagem da autobiografia de Jung em que cle se refere a um professor que leu os trabalhos de todos os seus colegas, pela ordem das me- Ihores notas, com excecio do seu. E o professor disse: “Hi um trabalho aqui que deixa os outros muito atrés, mas obviamente € um plégio. Se eu puder encontrar 0 original, certamente farei com que o aluno seja expulso da escola”. Jung trabalhara muito e era seu trabalho. Nunca mais confiou naquele homem, e talvez nunca mais houvesse confiado no sistema escolar depois desse incidente. Esta foi a ferida do Fisher King para Jung. De acordo com a tradi¢Go, existem potencialmen- te trés estagios no desenvolvimento psicolégico do ho- mem. O padra> arquetipico é aquele em que um ser passa da perfeicio inconsciente da inféncia para a im- perfeigo consciente-da-meia-idade e, depois, para a perfeigio-consciente-da-velhice,-O ser caminha de uma plenitude ingénua, onde 0 mundo interior e 0 mundo exterior so unidos, depois passa para a separacio e di- ferenciacio entre esses dois mundos, acompanhado por um sentido de dualidade da vida, para finalmente — 23 esperase — atingir 0 “‘satori”, a iluminacio, uma re- conciliagao consciente do interior com o exterior, outra vez, em harmoniosa totalidade. Estamos falando agora do desenvolvimento do menino, do estégio um para o estégio dois. Nao se pode sequer falar sobre o tltimo estégio sem que o segundo tenha sido ultrapassado. Nao é bom discorrer sobre a unicidade do Universo, antes de se estar ciente da di- visio universal. Pédemos fazer as maiores acrobacias, mentais para falar,sobre a unidade de todas as coisas, € acontece ser isso verdade; mas nao hé possibilidade de conseguir isso até que tenhamos conseguido diferen- ciar 0 mundo interior do exterior. Falando de outra forma a mesma coisa: precisamos sai do Jardim do Eden antes mesmo de podermos empreender a jornada a Jerusalém Celestial, mesmo que ambos sejam o mes- mo lugar. Quando o homem sai do Paraiso e se depa- ra com a dor da dualidade, acontece-lhe a ferida do Fisher King. Essa ferida, muitas vezes, perturba o relaciona- mento do menino com o meio a sua volta. Quando um garoto dé o seu primeiro passo na direcéo da indivi- duagéo, isto é, quando toca seu salmao pela primeira vez, ele comega a ser alguém por si préprio. Mas 0 pro- cess0 86 se iniciou, nao foi completado, o que significa que ele foi expelido do coletivo, deixando de ser um carneiro no rebanho. Seu relacionamento com outras pessoas ¢ com a vida esté destruido, mas ele nfo foi Tonge o suficiente, o que significa que ainda nao se tor- nou um individuo que possa relacionar-se bem com a vida. Ele esté numa espécie de limbo, porque, afinal de contas, nfo esté nem aqui nem Id. Assim, na medida 24 em que é um Fisher King, ele nfo consegue se relacio- nar bem. ‘Alienacéo € um termo atual que exprime essa si- tuacio; somos pessoas alienadas, pessoas existencial- mente solitérias, carregamos as feridas do Fisher King Leia uma tipica novela moderna e verd que gira em torno da solido do homem alienado, de sua sensa- cio de estar perdido. E um étimo assunto, porque so- mos todos Fisher Kings e sé é preciso andar nas russ, examinar as expresses ¢ reconhecer o semblante do Fisher King, Estamos todos feridos e isso transparece claramente em cada um de nés. O mito também nos diz que o rei foi ferido na coxa, 0 que nos faz lembrar a passagem da Biblia em que Jacé luta com o anjo e € ferido na coxa. Esse feri- mento significa que o homem foi ferido sexualmente. Numa versio mais crua do mito do Graal, diz-se que 0 Fisher King foi atingido por uma flecha que lhe tres- passou os testiculos. Mas nao é suficiente dizer simplesmente que foi um ferimento sexual, pois foi ferido na sua masculini dade, na sua capacidade reprodutiva, na sua aptido de proctiar. Por esta razo € que as terras do rei séo improdutivas, 0 gado nfo procria, as plantagdes nfo produzem. O reino est ferido na sua capacidade gene- rativa Duvido que no mundo todo haja uma s6 mulher que nfo tenha presenciado seu homem passando pelas angistias de seu aspecto Fisher King. Pode ser que ela se aperceba da situacZo antes mesmo de o homem dat-se conta de seu sofrimento, de sua assustadora sensacio de estar machucado e vazio. Um homem com esse tipo 25 de sofrimento est no caminho de fazer qualquer tolice para curarse das feridas que carrega, na tentativa de diminuir o desespero que o persegue dia e noite, sema- na apés semana. Geralmente vai buscar uma solugao inconsciente, fora de si, queixando-se, pot exemplo, de seu trabalho, comprando um carro novo, até mesmo procurando uma nova mulher. Tudo isso poderd ser a consegiiéncia de sua tentativa inconsciente de curar-se daquela ferida. Essa é a ferida do Fisher King. O rei é carregado numa liteira por onde quer que vd, gemendo, gritando, sempre agoniado. O tinico momento em que se sente feliz é quando esta pescando, mas isso nao deve ser en- tendido literalmente; pois nao é indo pescar que um homem se cura. A pesca, em si, é apenas um simbolo para o trabalho com o inconsciente, Iutando para tornar consciente o processo de individuacéo que foi interrom- pido no inicio de sua adolescéncia, Se um homem tiver acesso a0 inconsciente outra vez, isso vai ajudé-lo, pois a cura definitiva adviré da complementagdo do proces- so que inadvertidamente iniciou quando ainda jovem. O Fisher King governa 0 Castelo do Graal, onde © Santo Graal — célice da Utima Ceia — é guardado. Mas a histéria nos conta que o rei no pode tocé-lo, por causa dos seus ferimentos, nem pode ser alimenta- do por ele. Como também no pode ser tornado inte- gral por ele, apesar de estar ali mesmo em seu castelo. Quantas vezes as mulheres j4 no disseram para seus matidos: “Veja todas as coisas boas que vocé tem; vocé esté no melhor emprego que jé teve na vida; nos- sos rendimentos nunca foram maiores; temos dois car- ros; sempre tiramos dois ou trés dias nos fins-de-se- 26 mana. Por que € que vocé no pode ser feliz? O Graal esté ao sen alcance. Por que € que vocé nao pode ser feliz?” © homem € incapaz de responder: “Porque sou um Fisher King, estou ferido e nfo posso tocar a feli- cidade”. E mais um sofrimento soma-se a sua dor, porque a felicidade estd ao aleance de suas méos, mas para ele é intocavel. O fato de ter todas as coisas que 0 pode- riam fazer feliz nao adianta, porque elas nao cicatrizam as feridas de Fisher King ¢ ele sofre justamente pela sua incapacidade de tocar as coisas boas, a felicidade que tem ao seu aleance. Continuemos nossa histéria. © bobo da corte (e sempre hé um bobo em toda corte que se preze) profe- tizara, havia muito tempo, que a ferida do rei cicatriza- ria quando chegasse & corte um bobo, um tolo absolu- tamente ingénuo. Qualquer corte medieval que se prezasse entenderia isso, e nem por um instante fica- iam as pessoas surpresas de que um jovem ingénuo pudesse ser a solucio para todos os problemas. O povo do reino passou entfo a esperar diariamente pelo bobo ingénuo que chegaria para curar 0 seu rei ‘Aqui 0 mito nos mostra que é a parte ingénua no homem que vai curélo, cicatrizando sua ferida de Fisher King. Sugere assim que, se um homem pretende curar-se, deveré reencontrar algo dentro de si que te- ‘nha a mesma idade e a mesma mentalidade que tinha na época em que foi ferido. Também nos diz porque 0 rei ndo pode curar-se a si proprio e porque a pescaria diminui sua dor, se bem que nao a possa curar. Para um homem realmente curar-se € necessério que ele per- 27 mita a entrada em sua consciéncia de um elemento in- teiramente diferente que o faca mudar. Nao poderé set curado se permanecer no mesmo estado de consciéncia do velho Fisher King, nao importa o que faca. Por isso € que aquele lado ingénuo de si préprio — o jovem bobo — precisa se integrar em sua vida para que se dé a cura. Em meu consultério, algumas vezes, os homens vociferam quando thes receito algo que acham estranho ou dificil: “Quem vocé pensa que eu sou? Algum tolo?” E eu digo: “Bem, isso seria de grande ajuda”. Fregiientemente é aquele algo ingénuo ¢ tolo num ho- mem que comeca por curé-lo; e ele precisa aceitar a idéia, precisa ser humilde o suficiente e encarar 0 sev lado jovem, ingénuo, adolescente, ¢ tolo, para entiio comegar a cicatrizar a ferida do Fisher King. ©. mito deixa agora de lado a ferida do Fisher King e vai para a histéria de um menino sem nome, nascido no Pais de Gales. Naqueles dias, nascer em Gales era nascer nos confins do mundo, Isso nos lem- bra um pouco as Escrituras: “Que bem poderd vir de Nazaré?” Aparentemente, Nazaré e Gales estavam por baixo, na mente coletiva. Pois é justamente de ld que vvird nosso heréi: 0 her6i, 0 socorro, vem sempre de onde menos se espera. Mais tarde ficaremos sabendo que o nome desse menino é Parsifal, o “‘tolo ingénuo”. # humilhante para um Fisher King depender de de sua natureza-Parsifal para a. sua salvacio. & mais ‘ou menos como a citagio bfblica: “Se um homem néo se tornar uma crianca outra vez, ndo entrard no reino dos céus”. A néo ser que confie na natureza-Parsifal para a sua redengio, nao haverd esperanca, ¢ isso € 29 pesado para um homem, pois seu orgulho masculino fica pisoteado. Jung descreve uma ocasido em que foi forcado a isto, dada a grande divergéncia entre ele e Freud por causa da natureza do inconsciente. Freud dizia ser o inconsciente um amontoado de sucata, formado de fa- tos sem valor reprimidos e rejeitados pelo individuo du- rante sua vida. Jung, por seu lado, insistia ser 0 incons- ciente a matriz, o-pogo artesiano do qual brotava toda a ctiatividade, 0 que Freud nao aceitava. Deu-se entio a ruptura entre os dois homens. Isso foi assustador para Jung, jovem, inexperiente e ainda sem reputagio; parecia-Ihe estar encerrando uma carreira antes mesmo de comeséla. ‘Mas Jung foi para casa e decidiu que, se acredi. tava realmente ser o inconsciente a fonte da qual brota toda a criatividade, teria de confiar nisso. Trancou-se em seu gabinete, deixou-se levar pelo inconsciente ¢ nfo demorou muito para se ver no chio, a divertir-se com jogos pueris. Isto 0 fez recordar suas fantasias in- fantis, que preferiu expressar na forma de jogos adultos, Por meses a fio, trabalhou em seu quintal, construindo com pedras vilarejos, fortes e cidades, tal qual fanta- siara quando crianga. Confiava no sew sentir inocente € isso foi para ele 0 comeco de um extravasamento do Inconsciente Coletivo, fato que nos legou toda a psico- logia jungiana. Foi um trabalho de Parsifal. Parsifal (chamé-lo-emos assim, apesar de que no mito s6 recebe esse nome bem mais adiante) foi criado por sua mie, cujo nome é Heart Sorrow ', sem nada 1. Dor de Coragio. (N.T!) 30 saber a respeito do pai, que jé morrera, Sem irmfos ou irmas, cresceu em circunstncias primitivas, usando roupas grosseiras, tecidas em casa, vivendo sem instru- cao € na mais completa ignordncia. Nao faz perguntas, é simplesmente um jovem ingénuo. Um dia, nos seus primeiros anos de adolescéncia, ‘enquanto brincava, avistou cinco cavaleiros em suas montarias. Como Parsifal jamais vira um cavaleiro em toda a sua vida, fica vivamente impressionado com os atavios vermelhos e dourados, as armaduras, os escu- dos e as langas, enfim, todos os equipamentos. Mara- vilhado, Parsifal corre para casa dizendo a mie que vira cinco deuses. Estava explodindo de tanta emocao pela maravilha que tinha visto, e decide partir incon- tinenti para reunir-se Aqueles magntficos reis. Nao fazia idéia, até ento, de que tal beleza pudesse existir. A mite chora desesperadamente, tenta dissuadi-lo mas, sébia como é, logo percebe que nfo tem como im- pediclo de juntar-se aos cavaleiros. Conta entéo a Par- sifal que seu pai também fora cavaleito e encontrara a morte ao tentar salvar uma linda jovem, e que também seus dois irmaos haviam sido mortos como cavaleiros. Depois desses trdgicos acontecimentos familiares, a mie, na esperanca de livrélo de destino semelhante, © levara para um lugar afastado e 0 conservara na igno- rancia da triste histéria. Agora, diante do irremediével, faz-lhe a revelacio, dé-lhe a béngio materna e délhe conselhos. Tais conselhos vio ecoar através de todo o mito. E bom, portanto, prestar atengao a eles. Primeiramente, ela diz que ele deve respeitar as 31 donzelas; em segundo lugar, que ele deve ir a igreja todos os dias; sempre que precisar de alimento poder recorrer & igreja. Orienta-o, em seguida, para que nfo faca perguntas, o gue € sempre um bom conselho para um rapaz falastréo. Mais adiante, porém, veremos que este ultimo conselho foi desastroso. Parsifal parte, entdo, muito feliz ao encalgo dos cinco cavaleiros. Jamais os encontraré; mas encontrou muitas outras coigas. A todos com quem se depara, pergunta: “Onde 'estio os cinco cavaleiros?” Obtém todos os tipos de resposta, todas as formas de conselho, uma infinidade de comentérios — e todos diferentes uns dos outros. E ele fica intrigado: os cinco cavaleiros so diffceis de encontrar, porque esto em toda parte ou talvez em parte alguma. Se vocé olhar nos olhos de um rapazote de 14 ou 15 anos no momento em que ele Ihe fizer a mesma pergunta — “Onde esto os cinco cavaleiros?” — e vocé Ihe responder seja 0 que for, vai encontrar a mesma perplexidade. Mais tarde, Parsifal chega a uma tenda. Nunca vira uma antes, pois crescera numa simples cabana, 0 que o faz presumir ser essa tenda uma catedral, exata- mente como a mie lhe dissera, isto é, que a igreja era um lugar magnifico. Bem, essa tenda era o lugar mais, magnifico que jamais vira; portanto, nada mais justo que pensasse estar diante de uma catedral de Deus. Num arroubo, invade a tenda para orar ¢ I encontra uma jovem. Esta € a primeira de um cortejo de bri- Ihantes, belas e incompreensiveis donzelas com as quais teremos de conviver. 32 Parsifal entio se lembra do que Ihe dissera sua mie, que era para tratar bem, tratar com carinho toda donzela que porventura viesse a encontrar. E ele, para mostrar carinho, atira-se 4 moga e a abraga; vendo um anel no dedo da jovem, tira-o ¢ coloca-o em seu pré- prio dedo. Agora tem um talisma, um presente da don- zela, que sera sua inspiragio para o resto de sua vida. Voc jé teve a oportunidade de ver um jovem em seu primeiro encontro? E sempre igual. Claro que a jovem donzela sente-se insultada ‘A mie de Parsifal Ihe dissera que ele encontraria todo 0 alimento, toda a comida de que necessitasse na igreja de Deus. Como que para comprovar isso, hé na tenda um banquete. Acontece que a donzela est espe- rando pelo seu amado cavaleiro, que a esté cortejando, e para cle & que preparara o que de melhor existia. Para Parsifal, porém, é a profecia que se esté cumprin- do de forma perfeita: 0 templo de Deus, a donzela tudo 0 que ele poderia desejar para comer. Parsifal senta-se & mesa para comer e chega A conclusio de que a vida é bela. A jovem, nessas alturas, comega @ se dar conta de que esté a frente de um ser incomum. Comeca a compreender ¢ jé nao est zangada, porque constata gue ela esta face a uma pessoa realmente santa, sim- ples e singela. Implora, entio, a Parsifal que saia ime- diatamente porque, se seu cavaleiro o encontrar na tenda, o matard com certeza. Para Parsifal, tudo est4 correndo &s mil maravi- Ihas. Encontrou a igreja de Deus, encontrou uma don- zela arrebatadoramente linda, cujo anel ele agora usa; 52) foi alimentado; tudo em ordem. (Se vocé leitor, tem tum filho adolescente, voc® vai reconhecer tudo isso. & dofdo de se observar, mas de uma certa maneira tam- bém € belo.) Obedecendo & jovem, Parsifal prossegue sua via- gem € no muito longe dali se depara com um mostei- ro junto a um convento, ambos, em ruinas. Os monges € as freiras esto muito angustiados, pois o Santo Sa- cramento esté sobre o altar mas no pode ser atingido, ninguém pode dele se aproximar para usélo. A lavou- 1a nfo cresce, os animais nfo procriam, as fontes esto secas, as drvores nao dao frutos, 0 curso natural das coisas foi interrompido. E uma terra paralisada. Mitos freqtientemente repetem o mesmo tema, muitas e muitas vezes, de modo diverso, mostrando um princfpio manifestado em diferentes niveis, e € por isso que a situago do convento e do mosteiro é seme- Ibante Aquela do castelo do Fisher King. A regio de- vastada, com a Héstia Sagrada intocada no altar, iden- tifica a situagéo com uma condicéo neurética. Ter a0 alcance da mao tudo de que necessita, ¢ no saber usar, esta € a condigéo angustiante da estrutura neurética do homem dividido e fraturado Vivemos na época mais rica que a humanidade jé presenciou. Temos mais hoje do que qualquer povo j4 teve anteriormente; e ainda assim, algumas vezes, fico imaginando se também nao serfamos as criaturas mais infelizes que ja estiveram na face da Terra. Alie- nados, somos verdadeiros Fisher Kings, somos mostei- 10s sobre os quais sortilégios foram langados 34 Parsifal vé tudo isso mas no tem forgas para sa- nar o que lé acontece. Promete, porém, voltar um dia, quando for mais forte e capaz de retirar 0 encantamen- to desse mosteiro, Mais tarde, de fato, ele voltard dissolverd o sortilégio. Parsifal, continuando suas andangas, encontra 0 Red Knight, 0 enorme cavaleiro vermelho, que vem da corte do rei Arthur e sua Tévola Redonda. O Red Knight era tao forte que na corte todos quedavam-se impotentes frente a ele. Ele chegava, tomava a forca ‘© que queria, fazia 0 que quisesse. Nesse momento traz nas mios uma taca de prata, um célice que havia rou- bado Ié na corte. Parsifal esté encantado pelo Red Knight, que usa armadura © tinica escarlates. Também séo escarlates 08 arteios e selas dos cavalos e os atavios de’cavaleiro. Compée uma figura realmente magnifica. O rapaz 0 faz parar e Ihe pergunta o que deveria fazer para tor- nar-se ele também um cavaleiro. O Red Knight fica tio perplexo diante daquele joven ingénuo e tolo que resolve nfo Ihe fazer mal algum, aconselhando-o a ir 37 A corte de Arthur se quiser ser cavaleiro, Dé uma so- nora gargalhada ¢ continua seu caminho Parsifal, entio, dirige-se para a corte ¢ ao primei- ro escudeiro que vé pergunta 0 que deveria fazer para se tornar um cavaleiro. Cagoam dele, claro. O proces- so de tornar-se cavaleiro € muito 4rduo, mas Parsifal candidamente pergunta ¢ pergunta e pergunta, até que, finalmente, é levado & presenca do proprio rei Arthur. O tei, muito améyel, ndo zomba do rapaz, mas diz-lhe que, antes disso, precisa aprender muito e versar-se nas artes da Cavalaria. E Parsifal entende. Havia naquela corte uma donzela que, por algum problema, nao ria, nem sorria havia seis anos. A lenda gue corria na corte dizia que, quando chegasse 0 me- thor cavaleiro do mundo, a donzela, que nao rita por seis anos, explodiria em risos e gargalhadas. No instan- te em que ela pde os olhos em Parsifal desata a rir sem parar. Claro que a cotte fica muito impressionada com aquilo, pois, aparentemente, o melhor cavaleiro do mundo havia chegado! Esté af, entdo, esse jovem ingénuo, em suas roupas rudes, completamente igno- rante, e a donzela esté gargalhando. Extraordindrio! Sabemos que, até que o lado Parsifal da natureza de um homem venha & tona, hé um lado feminino nele que jamais riu, que é incapaz de ser feliz e que ganha a alegria de viver quando Parsifal desabrocha. Quando se consegue despertar o Parsifal num homem, outra parte de sua natureza imediatamente fica feliz. Tive uma experiéncia dessas recentemente, quan- do um senhor veio me procurar em casa, em prantos, porque a vida para ele ficara insuportavel. Como nfo dava para conversarmos, contei-lhe histérias e fiz com 38 que tomasse parte nelas. Fiz com que duscmpunuasse © papel de Parsifal e empreendesse essa viagem infan- til. Instantes depois, ele estava rindo — a jovem que nao ria fazia seis anos desatou a rit de alegria dentro dele — e sentiu que tinha energia para tocar a vida. O despertar de Parsifal em um homem proporciona vida dentro dele O tei Arthur leva a sério 0 que aconteceu com a jovem e ali mesmo sagra Parsifal cavaleiro. Um cama- reiro real nfo aceita a situacio e, muito zangado, em- purra 0 jovem contra a lareira, humilhando-o, sem, en- tretanto, 0 machucar, € esbofeteia a jovem donzela, que havia recuperado capacidade de sorrir. Parsifal, furioso, jura vinganca pela jovem insultada Vai entdo a presenca de Arthur e diz: “Tenho um pedido a fazer, quero um cavalo e quero a armadura do Red Knight”. Todos riem a larga porque nenhum cavaleiro da corte jamais fora tio forte a ponto de er frentar aquele personagem. Arthur também se ri ¢ res- ponde: “Tens minha permisséo para ficar com cavalo ¢ armadura, se conseguires tomé-los”. Parsifal vai. Encontrando o Red Knight, finalmen- te, dizhe que tem a permissio do rei para tomar-lhe cavalo e armadura. O Red Knight gargalha e responde: “Otimo, se vocé conseguir” Parsifal agora ja tinha seu préprio escudeiro, que he traz uma espada, Sou muito curioso, gostaria mui- to de saber de onde vem essa espada, mas nfo encontrei referéncia alguma. Ele simplesmente tem uma espada, talvez aquela espada que os meninos tém por heranca natural 39 Duelam os dois cavaleiros, e, por incrfvel que pa- reca, Parsifal mata o Red Knight, atingindo-o através de um dos olhos.’ Na versio francesa, essa é a vinica morte em todo o mito. Parsifal derrota dtizias de cava- leitos no decorrer da histéria, mas somente mata o Red Knight. A vitéria sobre o Red Knight pode ser conseguida internamente, externamente, ou em ambas as dimen- s6es. De qualquer-forma, o Red Knight representa 0 estofo viril, forte e masculino de que tanto necessita qualquer garoto. Se o Red Knight for morto “externa- mente”, entio 0 rapaz adquire a virilidade masculina, por superar um grande obstéculo. Ao derrotar ou ultra- passar um adversétio a0 longo de seu caminho, numa contenda que requer dele muita coragem, de alguma forma ele adquire o poder do Red Knight. Tal vitéria pode consistir em vencer algum tipo de competicio, chegar em ptimeiro lugar superando oponentes, ou, por exemplo, tomar parte em uma dificil excursio de alpi- nismo ou, ainda, desafiar alguém. Infelizmente, na maiotia das vezes, rapazes, em geral, conseguem obter sua armadura Red Knight, tomando-a de alguém. E a feroz competi¢ao da adolescéncia e da masculinidade em geral. Quase todo rapaz tem de competir e ganhar de alguém. Vitérias néo existem sem derrotas, 0 que significa que também ele tera de perder algumas vezes. ‘Mas, em algum ponto de sua vida, ele precisaré apode- rar-se da armadura do Red Knight para ser 0 vencedor, © niimero um. Os rapazes lutario bravamente por isso; € uma questo de vida e morte para eles. Muitas vezes é preciso um grande niimero de ex- petiéncias do tipo Red Knight para se obter esse poder, 40 mas se um homem nfo tomar cuidado, poderd passar 0 resto da vida se comportando como um Red Knight; os homens muitas vezes colocam competitividade — 0 que tem sempre uma certa tintura de adolescéncia — em tudo, Talvez muito do fascfnio das lutas, da guerra, do glamour da vida militar, tenha suas bases na estru- tura Red Knight. Mas ha também uma dimensao interior na dispu- ta Red Knight. Para se tomar homem, 0 menino pre- cisa dominar sua propria agressividade; precisa até mesmo saber como ser agressivo, uma ver que € neces- sério sélo, mas numa forma controlada, para que @ agressividade esteja a sua disposicgao conscientemente. Deixar-se vencer pela ira e violéncia néo é bom sinal; sua masculinidade ainda nfo esté formada. Psicologi- camente, terd sido, assim, detrotado dentro, no inte- rior, pelo seu Red Knight. Seu ego jaz prostrado; o Red Knight interior venceu, emergindo como um ferrabrés terrivel, de génio violento, agindo como um vindalo e até mesmo assumindo condutas criminosas. Assim, todo menino, no seu processo para tornar-se adulto, tem de aprender como dominar seu lado violento integrar em sua personalidade consciente, essa terrivel tendén- cia masculina que leva 0 homem a agressio. Visto por esse Angulo, o Red Knight o lado som- brio da masculinidade, o negativo, o lado potencialmen- te destrutivo. Para o menino tornar-se um verdadeiro homem, precisa trabalhar essa personalidade-sombra, nao reptimi-la; ele nfo pode reprimir sua agressividade se quiser ser um vencedor. Vai precisar exatamente do poder da masculinidade que se encontra na sombra-Red Knight. Assim, a questéo é 0 seu ego vir a tornar-se 41 forte o suficiente para nao ser vencido pela ira; é usar © poder dela para propésitos conscientes, 0 que signi- fica vencer os obstéculos do caminho ¢ atingir suas metas, Obviamente, tanto a batalha interna quanto a ex- terna sio partes do trabalho. Para vencer 0 oponente externo ¢ vir a tornar-se o manda-chuva, 0 garoto pre- cisaré ser capaz de reunir e ditigir suas energias mas- culinas, pondo de Jado sua covardia e seu desejo de ser sempre protegido pela mamie. Portanto, nio poderd vencer os adversitios Red Knight fora dele se também niio vencer sua luta interior. Acontece que serao poucos (08 que terfo essa vitdria apenas interior. O encontro com obstéculos externos que desafiam sua vontade identidade, so necessérios para realmente consolidar a masculinidade dentro de si. Hé aqui um detalhe muito interessante. Quando Parsifal esté para colocar a armadura do Red Knight, seu escudeiro Ihe diz: “Tire essa horrivel roupa que sua mie lhe deu, antes de colocar a armadura”. Mas Parsi- fal se recusa ¢ veste a armadura sobre a roupa Em outras palavras, ele mistura sua nova masculi- nidade com a sua fixagio materna, e é claro que tudo di errado imediatamente. E um ponto frégil na trajet6- tia de vida de um jovem, ele tomar essa forca recém- descoberta, essa masculinidade fanfarrOnica — s6 ago- ra conseguida, aos 15 ou 16 anos — e a vestir por sobre a fixago materna, E uma combinagio ridicula, que por certo nao funciona. Parsifal entiio monta 0 cavalo do Red Knight ¢ segue viagem. Uma das versées dessa hist6ria, em de- talhe significante, diz que Parsifal cavalga o dia inteito 42 por nfo saber como frear o animal. De qualquer forma, © cavalo péra, pot exausto, ou por ter anoitecido, nfo se sabe ao certo. Assim Parsifal atravessou o seu pri- meito dia a cavalo. Um homem suficientemente honesto consigo pré: prio, lembrar-se-4 com certeza da primeira vez em que montou © cavalo do Red Knight ¢ nao soube como paré-lo! Dai, Parsifal vai para o castelo de Gournamond, Este € uma espécie de padrinho de Parsifal; treina-o, lapida-the algumas arestas (entre outras coisas, Gour- namond tirou do rapaz as roupas grosseiras que ele usa- va por baixo da armadura Red Knight) e ensinalhe 0 necessério para a busca do verdadeiro espirito da Cava- laria, Insiste para que Parsifal ali permaneca ainda por mais um ano, aprendendo. Parsifal recusa, e vai-se embora subitamente, por pressentir que sua mie esté em dificuldades. Gournamond deu dois conselhos a Parsifal e gran- de parte do mito gira em torno deles. O primeiro: se Parsifal resolver ir 4 busca do Santo Graal — a tinica tarefa digna de um cavaleito — haveré de suportar um requisito bésico: jamais seduzir uma mulher ou ser por ela seduzido. Que no haja intimidade fisica com mu- Iheres, ou no haverd esperanga de conquistar 0 Graal. A segunda recomendagio é de que, ao entrar no Castelo do Graal, deverd fazer uma pergunta especifi- ca: “A quem serve o Graal?” E uma pergunta curiosa, que, por enquanto, nao ¢ por nés entendida, mas essas duas recomendagées sio marteladas nos ouvidos de Parsifal por Gournamond, 43 Parte ele, entéo, ao encontro da mie. Fica saben- do, porém, que tio logo ele deixara a casa, sua mie morrera com 0 coracio partido (lembremo-nos de seu nome: Heart Sorrow). Naturalmente Parsifal se sente terrivelmente culpado pelo ocorrido, mas também isso faz parte do desenvolvimento masculino. Nenhum fi- tho consegue a maioridade sem que, num certo sentido, seja desleal para com sua mae. Se permanecer com ela, consolando-a e copfortando-a, néo conseguird libertar- se da fixagdo materna. E comum a mie fazer todo o possivel para retet o filho junto de si, e uma das formas mais sutis de consegui-lo é inculcar nele a idéia de ser leal a ela. Ai dele, porém, se se submeter, pois ela aca- bard por ter junto de si um filho com a masculinidade gravemente comprometida. Filhos devem cavalgar e deixar suas mies, mesmo que isso pareca ser desleal- dade; e a elas, por sua vez, cabe suportar essa dor. Mais, tarde, como Parsifal, o filho poderd voltar para a mae € juntos poderio descobrir um novo relacionamento, num novo plano, mas isso s6 poderd acontecer apés ter © filho completado sua independéncia e transferido seus afetos para uma mulher de sua propria idade, Em nosso mito, a mie de Parsifal jé havia morrido quando ele voltou. Talvez ela represente aquela espécie de mu- Iher que 6 tem existéncia como mie, e que psicologi- camente “more” quando esse papel lhe é tirado, por incapacidade sua de se tornar uma mulher independen- te, um ser individual. $6 sabe ser mae. IV Parsifal nunca mais torna a ver sua mie, mas, ini- ciada a viagem de volta, chega ao castelo de Blanche Fleur e af encontra uma jovem desesperada, Essa jo- vem é Blanche Fleur ', que sera a principal donzela do mito. Tudo que Parsifal fizer, dai por diante, seré por causa dela Blanche Fleur parece ser a mulher mais inconvin- cente que se possa imaginar, mas € preciso lembrar que no é uma mulher de carne e osso. E parte da es- trutura intima de Parsifal, a mulher interior; e se uma mulher de carne osso agisse como Blanche Fleur, por certo seria dispensada bem depressa. O castelo da jovem esta sitiado, por isso ela pede a ajuda de Parsifal. Promete-lhe céus e terras caso ele a ajude a liberté-lo do cerco inimigo. Parsifal vai, chama 1. Blanche Fleur: Branca Flor. & tradicional na literature hermética as mulheres fatais serem conhecidas como "mulheresflor”. (NT) © lugar-tenente do exército sitiante, desafia-o para um duelo, vence-o e obtém sua promessa de submissio. Em seguida, manda-o para a corte de Arthur. O préximo passo € perseguir 0 comandante, para fazer com ele a mesma coisa, Haverd, até o final do mito, uma enorme sucesso de cavaleiros que ele sub- juga ¢ despacha para a corte de Arthur. Essas Iutas com o segundo e 0 primeiro em co- mando podem simbolizar as muitas batalhas que um garoto tem de travar para libertar-se do pai ou de um irmao. Um menino em processo de crescimento vai bri- gar com todos os membros de sua familia, para deles se libertar, e muitas vezes pode projeté-los psicologi- camente em outras pessoas. Assim, por exemplo, quan- do se dé algum entrevero com colegas de trabalho, poderd estar ressurgindo naquele momento uma situa- cao da longinqua adolescéncia, com os irmaos. Tendo levantado o cerco, Parsifal volta 0 castelo € passa a noite com Blanche Fleur. Tém-se todos os detalhes de como foi essa noite, que € contada de for- ma resumida mas bela: eles se deitaram abragados, ca- besa com cabega, ombro com ombro, quadril com qua- dril, joelho com joelho, pés com pés. Mas € uma noite casta, so como irm@o e irma. Parece dificil de acredi- tar, mas de repente se percebe que esse € um encontro, interior, algo que se passou no intimo de Parsifal. Como podemos obsetvar, 0 mito aqui nfo esté tratando da mulher de carne ¢ osso, quando cita Blan- che Fleur, mas sim da mulher interior do homem, sua anima, & muitissimo importante fazer esta distingao, entre a mulher de carne e osso € a caracteristica femi- 46 nina interior do homem, e manter as leis internas dife- renciadas das externas. As leis da psique, as leis que regem a parte inte- rior, séo muito proprias, e freqiientemente diferentes das externas. A questéo de como tratar a mulher inte- rior, e principalmente como diferencié-la da de came e 0850, € a parte mais importante do mito. E, pois, de grande importéncia entender a estra- nha determinagio de que 0 homem nfo pode manter relacdes carnais com mulher alguma, enquanto ele esti- ver & procura do Graal. Isso € 0 fato mais importante de todo o mito e se pudermos compreender seu signifi- cado teremos um tesouro nas maos. Mais uma vez, por favor, entendam que estas séo recomendagGes especificas para que 0 homem possa li- dar e se relacionar com sua mulher interior, sua anima. Nada tem a ver com o relacionamento do homem com a mulher de carne e osso. Em geral as pessoas nfo sa- bem disso: falta-lhes dimensio para tal cogitacao. Por essa razio, aplicam essa proibi¢ao extetior- mente, € com isso 0 mito, a Idade Média e todo o mo- vimento da Cavalaria continuam largamente mal com- preendidos. Ninguém chega mais préximo da felicidade ou do Graal sé por evitar mulheres de carne € osso. Se to- marmos essa lei, que € interna, € tentarmos aplicé-la externamente, acabaremos puritans e submissos a0 sentimento de culpa — o que praticamente acontece ‘com todos nés — e ainda assim continuaremos sem leis para nossas condutas de foro intimo, Muito poucas in- formacées so dadas no mito sobre como tratar as mu- Theres de carne ¢ osso, mas, em contrapartida, sio mui- 47 tas as que ensinam como tratar a mulher interior. E é justamente destas que precisamos. Pode-se pensar em muitos conceitos de ambito es- piritual que foram invalidados por terem sido tomados como externos, a0 invés de internos. O nascimento de uma crianga de mie virgem é um deles. Este fato con- tém um poderoso significado para qualquer um que es- teja caminhando por seu processo de individuacio, por- que ele nos fala dé evento miraculoso — o nascimento de Cristo dentro:de nds — que acontece através do relacionamento dos poderes divinos com a eterna alma humana. Este nascimento de Cristo pode dar-se também em nds, se nossa alma interagir com Deus; e, quando acontece, é to miraculoso ou inacreditével quanto o rascimento virginal. Se ficarmos presos & chivida histé- rica, no sentido literal — terd isto, ou nfo, acontecido com 0 nascimento humano de Jesus — af munca che- garemos 20 significado intimo, com sua verdade pro- funda. Muito do Cristianismo € resumido por leis que sio ditigidas a parte mais intima dos seres. Tais leis lidam com esta parte intima e devem torné-la significa- tiva. Nao foram feitas para a conduta exterior. Poucas, pessoas, entretanto, dio-se conta desta diferenciagio. Se confundirmos essas leis — as internas com as externas — teremos um problema, Se um homem tratar a mulher de carne ¢ osso de acordo com as leis que so apropriadas a sua feminilidade interior, 4 sua anima, acontecers 0 caos. Note-se 0 que aconteceu na Idade Média, quando ‘0 homem realmente comegou a haver-se com a aninta 48 Esta sempre existiu, mas s6 recentemente foi que o hhomem teve capacidade de chegar a qualquer tipo de relacionamento consciente com sua propria feminilida- de. Antes disso, tudo era vivenciado instintivamente em conjunto com as mulheres de care e osso em torno dele. $6 quando o homem comecou a sentir a complexi- dade da anima e o perigo que ela representava para ele, € que se iniciou a caga as bruxas. Em vez de dominar 0 interior feminino, que é perigoso, ele optou por quei- ‘mar alguimas criaturas que estavam se comportando fora dos padres. Estamos chegando ao ponto, agora, de queimar a mulher certa, a saber, a interior (apesar de que queimé-la nfo é a melhor solusio, pois ela poderé voltar-se contra 0 homem e também queimé-lo). Nao fomos ainda muito a fundo no passado da caga as bru- xas. Ainda estamos projetando fora, no nosso relacio- namento, ou na falta dele, com a mulher de carne 08s0, nossa parte intima feminina. AAs leis da Cavalaria dizem que se deve ser cava- Iheiresco com a mulher, no tocé-la, traté-la como se ela fosse a rainha dos céus. Mas essas regtas nfo fazem muito sentido quando se fala da mulher real de carne € 0880, apesar de que existem, sim, leis externas tam- bém. A mulher exterior merece grande respeito e toda a ternura, mas seré profundamente infeliz, e seu rela- cionamento com o homem nao dard certo, se ele a con- fundir com a mulher interior. Para saber mais sobre como essa mulher interior age sobre um homem, precisaremos fazer uma distinc40 entre emogio, “feeling” e humores'. A maioria das 1, Em inglés: emotion, feeling © mood. (N-T.) pessoas confunde e mistura estas sensagdes indiscrimi- nadamente, e a distingao se faz necesséria porque torna © homem capaz de caracterizar sua mulher interna e enxergar claramente a forma como ela age em sua psi- cologia. Dedicaremos, entio, algum tempo a esse assunto, Emogio é a soma de energia que ocotre — ou que é liberada — numa pessoa através de uma experiéncia significativa; sua’ principal caracteristica é sua energia. A emogio, em si, é moralmente neutra, podendo ser boa ou destrutiva, dependendo de onde ou como ela é manifestada, Excitar-se realmente com algo pode trazer muita emogio, proporcionando, assim, belas coisas na vida de um ser. Hé também muita emogio envolvida na depressio, quando, por exemplo, alguém esta cris- pando as méos ou andando em circulos na sala, pto- curando alguma coisa para se sentir um pobre coitado. Emogao definida como energia é relativamente fécil de ser entendida, Mais dificil, porém, € descrever “feeling”. E uma palavra usada corrente ¢ imprecisamente, ¢, exatamente por isso, quase perde a significagio: vou empregar “feeling” da forma precisa, para descrever a sensagio especifica a que ela se refere. “Feeling” € 0 ato de ava- liar, valotizar. Nao & necessariamente quente ¢ volétil ‘como emosao, mas é aquela faculdade racional que con- fere valor a uma sensacio. E neste sentido que Jung usa 0 termo nas definigdes de pensamento, “feeling”, sensacio e intuigéo. Pensa-se sobre algo, faz-se uma apreciagao intelec- tual a respeito, e entende-se. Ao fazermos somente isto, 50 porém, nao existe ainda o “feeling” sobre este algo pensado, Nao hé ainda sentido de julgamento, ainda no se conferiu valor, néo houve, portanto, envolvi mento total, O ato de pensar é bem diferente do ato de sentir, que é dar valor a uma sensacéo. Quando entiéo se pergunta a clguém qual o seu “feeling” a respeito de algo, a tinica resposta cabivel do individuo seria: € bom ou mau, terrivel ou belo. Assim, através do “feeling”, teremos dado valor a esse algo. Existem também os “humores”, assunto espinho- so, pois eles apresentam uma particularidade estranha: como se fossem uma pequena psicose ou possessio, € aparecem num individuo que foi dominado pela parte feminina de sua natureza. E 0 que se chama também de “estar de veneta”. Os humores foram descritos de uma forma muito bela na mitologia hindu, como sendo ‘Maya, a deusa da ilusio. Assim, quando presa dos hu- mores, 0 homem € dominado ou possuido por alguns aspectos de sua constitui¢éo feminina interior, parte de seu inconsciente. Quando tomado de humores, € como se 0 homem se tornasse uma “‘mulherzinha”, Um ver- dadeiro “dodéi”. E raro o homem que conhesa bastante sobre seu. componente interior feminino, sua anima, ou que tenha um relacionamento satisfatério com ela, E justo dizer que, se um homem pretende qualquer desenvolvimento interior, é essencial que descubra sua anima, que @ co- loque, por assim dizer, numa garrafa, arrolhando-a, em seguida. Ele vai precisar tiré-la de 14, mas primeiro tem de aprender a no ser dominado por seus humores € seduges. Claro que colocar a rolha na garrafa & s6 0 51 primeiro passo para se lidar com a anima. O passo se- guinte, e muito mais importante, ¢ aprender como re- lacionar-se com ela, té-la como a companhia interior, que com ele caminhard e Ihe traré calor no decurso da vida. Em dltima andlise, 0 homem sé tem duas alter- nativas: ou ele rejeita seu lado feminino, que entao se voltaré contra ele em forma de maus humores e sedu- Ges insidiosas, ou ele 0 aceita e se relaciona bem com ele. Esse lado feriinino faz parte da vida e transmitird forga ¢ entusiasmo ao homem. Alguns homens parecem ter um potencial muito grande de anima, 0 que significa que possuem mais do feminino dentro de si. Isso nfo € nem bom nem mau, em si mesmo. Se eles conseguirem fazer com que seu lado feminino se desenvolva bem, tornar-se-Go altamen- te criativos, sem que deixem de ser mésculos por causa desse poderoso componente feminino interior. Nestes ‘casos estéo inclufdos os artistas, videntes, os homens intuitivos e sensitivos, que tém tanto valor cultural para qualquer sociedade. Mas se nfo puderem chegar a um acordo com a mulher interior, ela os atropelard € acabard, muito provavelmente, por destrut-los. Toda mulher rejeitada torna-se negativa, e essa mulher inte- ior nfo é excegio. relacionamento do homem com a sua anima expressa-se em sua fisionomia. E sé andar nas ruas € observar os transeuntes para ver como se dio com ela, Um individuo sem nenhum contato com seu lado femi- nino torna-se duro, inflexivel, amargo, e se sentiré cor- roido por dentro, Conta-se uma passagem sobre Lin- coln, que, a0 término de uma entrevista, comentou com 52 sua secretéria: “Nfo gosto da cara deste homem”. Ao que ela respondeu: “Mas no hé nada que ele possa fazer a esse respeito; ele ndo é responsével pela cara que tem!” Lincoln, entao, replicou: “Depois dos 40, todo homem é responsével por sua cara”. Voltemos 4 diferenciacao entre “feeling” (a capa- cidade que temos de avaliacio) e “humores” (quando se € possuido pelo componente feminino interior). Tor- nando ao tema, se um homem tem um bom relaciona- mento com sua anima, com a feminilidade interior, ele é capaz de sentir (ter “feeling”), de valorizar, e por isso encontra significado em sua vida, 0 que nfo acon- tece na auséncia deste relacionamento. Existe aqui um choque marcante entre as duas espécies de sensagdes etiores que um homem pode experimentar. O que o mito do Graal nos diz € que, no relacio- namento com seu interior feminino, o homem deve tratar aquela mulher intima a nivel do “feeling”, néo dos humores. Parsifal ¢ instrufdo a lidar com Blanche Fleur, isto é, com sua antima, usando seu “feeling”, que € um sentido nobre, util e criativo, e nao valendo-se da sedugiio, que é destrutiva. Seduzir ou deixar-se seduzir 355 é coisa vedada a alguém em busca do Graal, pois sig- nifica sempre uma priséo. Assim que um homem se entrega a humores nao consegue mais sentir, e perde sua capacidade de relacionamento e de avaliacio. Qualquer mulher sabe isso, e quando seu homem sucumbe aos humores ela pode desistir de qualquer en- tendimento por um dia, ou, pelo menos, por uma hora, porque sabe que ele esté fora de seu alcance, nfo est disponivel. Mesmarbons humores, que podem ser diver- tidos, séo uma forma de possessio. A deusa Maya, a deusa da ilusio, nada faz a nao ser criar problemas, pois sempre que esta sedutora deusa aparece, toda a reali- dade, toda a objetividade, toda. 4 criatividade, desapa- recem. Ou, nos termos do mito, a0 seduzir ou deixar-se seduzir por uma donzela, isto 6, pela anima, as chances de um homem conseguit o Graal desaparecem, Bem, hé aqui um certo exagero — 0 que € préprio tanto de mitos como de sonhos. Na verdade, essas chances no desaparecem. Apenas somem por algum tempo. Se um homem for seduzido por sua anima, on se a deusa Maya conseguir apanhé-lo em sua teia, caird no seu encanta- mento € estar acabado — incapaz de pensar, agir ¢ rela- cionar-se. Pensando estar fazendo muita coisa, como seu interior esta em ebulicio, na verdade estard virtual- mente fora de combate, até que os humores se dissipem, ou ele os afaste. Todos sabem 0 que acontece a um homem presa de humores: tudo se apresenta colorido de cada um desses humores. Se, a0 acordar pela manhi, ele se “le- vantar com 0 pé esquerdo”, isto é, se estiver de mau humor, tudo vai lhe parecer horrivel. Ele sabe, antes, ‘mesma de ler o jornal matutino, que a Bolsa despencou. 356 Nao vai sequer precisar olhar pela janela para saber que esta chovendo. Esté convencido de que a ordem das coisas foi subvertida, e que se elas ainda nao esto to- talmente erradas ele as fard ficar assim. Imprime na realidade exterior o tipo do humor que o domina que 6 to contagioso que logo, logo, sua esposa e filhos esta- rio perturbados, se néo forem sébios o bastante para perceber 0 que se passa. Isto € particularmente verdadeiro para a esposa, pois, de alguma forma, sente-se ela culpada pelo mau humor do marido: “Que foi que eu fiz?”, ela se per- gunta. O fato de o marido achar que ela também é culpada ainda agrava as coisas. Por causa dessa verda- deita ansiedade, ela pode comecar a fazer sérias besteiras — tais como agredir o matido com seu animus, o lado ‘masculino de sua personalidade. Ela se sente compelida a atravessar de qualquer jeito a barreira daquele humor, para reencontrar seu homem e descobrir 0 que se passa. Mas claro que nao dé certo e isso geralmente termina numa briga monumental entre a “mulherzinha carente”” que surgiu no homem e o “macho raivoso” surgido na mulher. Esta é a pior das brigas, quando o lado feminino do homem se debate contra o lado masculino da mulher, porque ambos estio inteiramente tomados. Neste ponto, as coisas realmente ficam pretas. Mas no precisaria acontecer isso se a mulher se-advertisse de que nio € por sua culpa que seu matido esté nesse estado. Os humores do homem so problema dele, ¢ se ela simplesmente ficar de lado por algum-tempo e parat de se sentir culpada, ele poderd sair desse estado. Uma das principais caracteristicas dos humores € que nos roubam inteiramente a sensatez. Se quisermos 37 ser razoaveis ou nos sentirmos realizados, devemos manter intacta uma disponibilidade permanente a rela- cionamentos. Na falta dela, o sentido da vida desapa- rece, 0 que pode levar & depressio. Descobrese que grande parte de uma psicose, para um homem, tem suas causas na anima. & um transbordamento, uma possessio, Esses humores so, portanto, uma pequena loucura, ‘uma ligeira psicose, que toma conta de alguém. Alguma vez. vocé jé comprou um objeto e, no dia seguinte, olhou para aquilo e disse: “(Que diabo ¢ isso?” Obra de humores. Um individuo fica entusiasmadissimo com um novo apetrecho de pesca, ou com um disposi- tivo para o barco. Pois a anima se apodera de coisas muito pouco préticas: uma carretilha nova, um tipo novo de isca artificial, uma réplica de carro antigo ou algo semelhante. Este € 0 territério da anima, Se voce observar, verd que o homem faz um carnaval por essas, coisas, apesar de saber que na semana seguinte isso jé ted pasado. Tanto dinheiro gasto, tanta energia des- perdicada pelos humores. Duvido que haja um sé lar que nao tenha prateleiras atulhadas com os resultados de ataques de anima, de bons humores que nos fazem agir por impulso. Nio se pode dizer a um homem 0 que ele deve ou fazer. Ele pode sair num sébado depois do almoco, levando consigo seu equipamento de pesca, ¢ pasar um dia muito feliz, sentindo-se revigorado. No sébado se- guinte, também depois do almoco, poderd levar 0 mes- ‘mo equipamento e ter um ataque de aninta justamente por causa dele. Nao é 0 equipamento; € 0 fato de algo terse apoderado dele ou nao. A infeccio de anima € que causa o problema. 58 O homem nfo € senhor de sua prépria casa quando presa dos humores, porque est sendo governado e € impossivel viver assim, Também torna-se um critico mordaz em relagio @ mulher mais préxima, a que esti- ver ao seu alcance. Alguma coisa Ihe diz que aquela mulher, a mulher interior, € perigosa. Por isso, critica sua esposa, claro, por ele nada saber a respeito da mu- Iher que tem dentro de si. Gournamond disse a Parsifal que ele nao deveria seduzir nem deixar-se seduzir. Acontece que pode-se muito bem ser seduzido pela anima, como também se pode tentar seduzia. Quando € dito que nfo se deve seduzir a donzela interior, acho que isso significa que ninguém deve procurar humores bons, euforias, pois isso significaria violentar o lado feminino. Deve-se pro- curar realizaco pessoal, mas nao euforias. Existe aqui uma diferenciagéo que a maioria das pessoas € incapaz de fazer, até o dia em que chegam a um bom entendimento psicolégico. Aqueles humores exuberantes do tipo dono-do-mundo, efervescentes, meio fora de controle, tio apreciados entre os homens, é algo perigoso: também é uma seducao, o homem sedu- ziu sua anima. Ele a agarra pelo pescoco e diz: “Voce vai me fazer feliz, ou entio...”” Isto é pura seducio e vai custar um alto prego mais tarde, pois a lei das compensacées faré com que, apés a euforia, venba uma depressio, para que 0 equilibrio seja restabelecido, Hi tempos aprendi a nfo gestar sensagdes antes da hora, Se pretendo dar uma escapada na segunda. feira, tenho de esperar a hora certa, caso contrério pode- rei estragar tudo. Seria seducio da anima se eu come- asse desde jé a sugar algum prazer. 39 Este € um passatempo bem americano. Pensamos que é um direito natural nosso o de ser feliz, no sentido de euforia, o que no funciona. Conheso dois rapazes que planejaram um acampamento e, por dias ¢ dias, fantasiaram como ia ser sensacional. Todos as caracte- risticas de euforia vieram & tona, Pecas e equipamentos subitamente viraram Santos Graais. Uma faca bem afiada ou um pedaco de corda eram um fascinio, O que ‘os dois fizeram foi exaurir toda a felicidade da expe- rigncia antes que ela se thes apresentasse, Soube que foram ao lago Tahoe, perambularam por lé meio dia, no arranjaram nada para fazer, tomaram o carro € vol- taram para casa. Nada mais havia ld para eles, Haviam esgotado toda a vida da viagem, antes de realizé-la. Nés, americanos, precisamos estar numa boa. Pen- samos ser, pura e simplesmente, direito nosso dar uma mergulhada para conseguir 0 que quisermos daquela “mulherzinha” interior. E € ai que freqtientemente encontramos enctenca, porque quando nossas expecta- tivas so frustradas, caimos, por conseqiiéncia, num humor tenebroso. Alguns homens tentam levar a vida em humores quase eternos, e isso € muito exaustivo. Jamais esque- cerei o dia em que me dei conta de que néo precisava ceder a isso. Foi uma revelagZo. Eu achava que se “‘pe- gava"” um humor como se pega uma gripe; que se devia suporté-lo, poupando os outros tanto quanto possivel. Descobri que se pode fazer melhor que isso. E bom para um homem ter conhecimento sobre este assunto € tornar-se com isso sabio o bastante para recusar humores, ou pelo menos adié-los. Nao é necessé- rio cair-se prisioneiro de uma dessas emanagGes etéreas 60 inconscientes, vindas de Maya, Os humores, algumas vyezes, aproximam-se rastejando € 0 individuo nem per- cebe 0 que esté acontecendo. Ai as coisas comecam a ficar ameacadoras. Pois bem, néo aceite, nfo se deixe seduzir por isso, Nao entre nesse atoleiro. E muito se- dutor e simplesmente muito facil cair nele, mas nao é preciso, se soubermos o que esté acontecendo conosco, ‘Uma pessoa doente € sempre mais sujeita aos hu- mores. Por ter sua resisténcia fisica debilitada, ela se torna mais vulnerdvel. Pode nio estar se sentindo muito bem, nem muito feliz; ndo é nenhuma vergonha, nem causa de mau humor. Nao é preciso nenhum pani- co ou depressio por isso, embora, convenhamos, fique tudo mais dificil quando estamos doentes. Muitas vezes, circunstancias externas, como, por exemplo, uma mulher que resolve pegar no pé, fazem comfy que um homem encontre dificuldade para escapar aos humores. Mas ainda é responsabilidade dele saber © que se ‘passa dentro de si, para no sucumbir aos seus efeitos. Um homem que tenha essa autoconhecimento, omega por desenvolver a forca do ego. Um homem é virtualmente indefeso perante seu humor porque ainda € uma ctianga face & mulher interior. Nao quer conhe- cimento psicolégico; 0 que quer é que tomem conta dele. E preciso ser forte para agir contra os humores, ¢ isso pressupde um ser que esti se libertando da in- fantilidade, isto €, de sua fixagio materna. Precisamos agora mencionar outro termo: entu- siasmo. Existe uma diferenca sutil, porém importante, entre humores ¢ entusiasmo. A palavra entusiasmo € bela, pois em grego significa estar “pleno de Deus”, um dos vocabulos mais sublimes. Se alguém esta pleno 61 de Deus, uma grande criatividade vai fluir dentro do seu ser, ¢ haverd estabilidade. Se alguém est preenchido pela anima, também poderd ter criatividade, mas pro- vavelmente antes do anoitecer ela jé se terd desvaneci do. E preciso ser muito sabio para diferenciar se se esté preenchido pela anima ou por Deus. A maior parte dos homens nao sabe fazé-lo. Nao basta simplesmente olhar pata uma pessoa para saber se ela est4 nas nuvens ilegf- tima € destrutivimente ou se o seu riso brota e vem de Deus — algo, portanto, muito belo. Dizemos que essa pessoa estd de bom humor. Se tivermos certeza de que ela esté genuinamente feliz, entio estamos diante de algo nobre. O riso € positivo e criativo, a nao ser que seja produto de humores. Quando 0 tiso brota no homem — e soa como felicidade — é seu estado inte- rior que vai dar a conotacdo desse riso. Se naquele instante 0 individuo estiver possuido por sua anima (portanto seduzido pela donzela), estaremos frente a um problema. E possfvel sentir-se essa sedugio no individuo se ele estiver nervoso, tenso, e mostrar marcas de ansieda- de. E sinal certo de seducio; e nesse caso ele vai pagar caro, € no s6 ele como todas as outras pessoas que estiverem & sua volta, antes dessa sedugdo acabar. Por outro lado, se nfo for assim, se — ao contrério — houver harmonia e a pessoa estiver 4 vontade, entio provavelmente ser uma felicidade genuina a que estard fluindo através dela. Seja feliz com ela: nfo a inveje. Geralmente qualquer humor passa logo, num ho- mem inteligente; se a mulher nao o cutucar prematu- ramente, o homem acabaré por livrar-se do ataque. Em algum ponto, ele reencontraré seu bom senso ¢ dira: 62 “Muito bem, talvez fosse melhor pensarmos um pouco sobre isto”. Mas s6 se sua esposa nfo lhe tiver dito cinco minutos antes: “Bem, nao seria melhor se pensés- semos um pouco sobre isto?” Ai, claro, ele nfo vai conseguir. Se « mulher ficar alfinetando, é duplamente difi- cil para um homem sair de seu humor, porque isso 0 exacerba. Ele jd est4 numa espécie de sofrimento; pre- cisa nao de estiletadas mas de ajuda, ¢ ajuda feminina. Provavelmente ele no Ihe agradecer4, mas por dentro estard grato. Quando uma mulher tem de se haver com um homem ‘“‘humorado”, geralmente faz bobagem. Ela pée para fora 0 seu animus, que € sempre muito critico, e dispara: “Agora, ouga bem, isso tudo é uma grande bobagem, vamos parando jé, nao precisamos mais de panos quentes!” Isso é como jogar gasolina no fogo. Vai haver um confronto animus-anima e tudo estaré perdido. Os dois estéo nas mios da deusa Maya, um na esquerda, outro na direita, e poderao desistir de qualquer enten- dimento, pelo menos por algumas horas. Hi, no entanto, um ponto de genialidade que @ mulher pode trazer a tona, se for capaz e se realmente quiser: € ela tornar-se mais feminina do que 0 humor que 0 est atacando, Ai ela poderd tirélo desse estado ‘Mas é muito, muito dificil para uma mulher fazer isso, porque sua reagio automitica é deixar sair.a espada do animus ¢ comecar a desferit golpes. Se, a0 invés, ela souber usar de paciéncia para com ele, ¢ deixar de ser to critica, se representar para o homem a verdadeira virtude feminina, assim que ele recuperar sua sanidade 63 © suficiente para compreender tais sutilezas, sairé de seus humores, Uma esposa poder ajudar muito se agit dessa maneira. Para isso precisard de uma feminilidade ama~ durecida, forte o suficiente para enfrentar a feminili- dade espiria que 0 homem esté criando naquele ins- tante, Uma coise é certa, ele projetard tudo nelae estard convencido de que se casou com uma bruxa; e, mais, que seu mau hum6r é culpa dela. Talvez até ela esteja sendo ranheta, mas as contas ele terd de acertar com a mulher interior, nfo com sua esposa. Faz parte da natureza da anima e do animus, na sua forma primitiva (onde a maioria de nés se encon- tra), viver de projegées. Assim, quando um homem passa pelos humores, quase sempre diz que é sua mu- Iher que 0 esté infernizando. Se a mulher interior esté num acesso de violéncia, o homem se relacionaré com a mulher exterior no mesmo processo, quer ela concor- de com isso ou nao. Por outro lado, se ele tem um bom relacionamento com a interior, também se daré bem com a exterior ‘A mulher controla bem melhor seus humores € pode usé-los; ela os experimenta e escolhe qual deles usar. Pode até mudé-los no meio do caminho, se ne- cessdrio for. O homem jé nao tem tanto controle; de fato, quase néo tem nenhum. Muitas mulheres sao donas dos seus sentimentos como muitos poucos homens podem set, ¢ muito problema surge porque elas presu- mem que eles tenham 0 mesmo tipo de controle que elas. O fato € que eles nao 0 tém e as mulheres pre- cisam entender isto, darlhes um tempo ou ajudé-los um pouguinho. 64 ‘As mulheres que tém de lidar com essa exética criatura chamada de ‘‘o macho da espécie”, devem ser mansas quando ele passa pelos humores, porque ele fica quase impotente diante deles. © homem precisa de ajuda, e se hi uma regra que precisa ser entendida no casamento € a de que, quando ele estiver se tornando presa dos humores, a esposa deverd abster-se de qual- quer julgamento ou critica, naquele momento, se posst- vel. Mais tarde, quando ele tiver cafdo em si, os dois po- derio conversar juntos sobre o que os atrapalhou tanto. Esperar todo esse tempo é duro para uma mulher, claro, mas se ela se lembrar de que o tal humor é basicamente problema dele ¢ nao culpa sua, poderé ento encontrar sabedoria para esperar pelo momento mais aproptiado, para descobrir 0 que causou os problemas. Realisticamente falando, um homem nio pode es- perar estar para sempre livre dos humores, mas poderé Iembrar-se — mesmo quando possuido por eles — de que esté sendo subjugado. Um homem jé estar sendo parcialmente lticido se ao menos puder dizer a si pré- prio que esté sofrendo um ataque de anima. Se ele puder dizer & sua esposa: “‘Estou de mau humor, néo é sua culpa, me dé um tempo”, ele estard fazendo a ela um grande favor e jé este gesto comecaré a liberté-lo. ‘A batalha jé estard meio ganha assim que ele reconhe- cer que os humores 0 estéo possuindo. Parsifal e Blanche Fleur so exemplos de que este assunto esté sendo resolvido acertadamente. Ela é 0 padrio da beleza e da inspiragao para ele, nada dé erra- do para o casal. Este € 0 relacionamento tipo anima ideal. Assim, se voc quiser aprender como se dar bem com esta refinada virtude interior feminina, € bom 65 estudar o relacionamento de Parsifal e Blanche Fleur. Ela é sua Dama e daqui para a frente, no mito, ele far tudo por ela JA velho, Goethe chegou a incrivel observacio de que a meta do homem € servir & mulher porque af ela o serviré, Referia-se 4 mulher interior, @ musa, que é a portadora da beleza, da inspiracio, da delicadeza, de todo o Jado feminino da vida. E bonito, um servir a0 outro. + Ultimamente tenho lido artigos arrojados sobre 0 feminismo que muito me aborrecem, porque a mulher esté exigindo sair do papel feminino tradicional, que € 0 de servir ao homem. Ela estd saindo da sua escra- vidio. Em alguns aspectos, isso se faz necessério; em outros, pode ser quase fatal. Um deve servi a0 outro Este € 0 ideal. Nao podemos prosseguir sem isto. Nao se pode viver sem a disponibilidade, sem 0 amor, sem a nutri¢éo e a forga do outro. Parsifal entende isso ¢ mantém o relacionamento adequado com Blanche Fleur. E devotado a ela, deita-se com ela cabeca com cabesa, pé com pé, mas nio a seduz endo se deixa seduzir. E fortalecido por ela, devotado a ela. Serve-a, Estd sempre por perto. Nao hé proibigao contra a proximidade com o feminino interiot — quan- to mais préximo, melhor. Mas é inecessétio ter sempre presente: nada de seduclo, ou o Graal estard perdido Parsifal vence esse ponto. Nossa histéria continua. Deixamos nosso heréi no castelo de Blanche Fleur depois que ele a libertou. ‘Ainda se sente ferido de culpa pelo que causou A sua mie, Lembremos que ele partiu precipitadamente e ela morreu de tristeza. E interessante notar que, a cada vez que 0 jovem dé um passo adiante, ou que algo importante Ihe acon- tece, ele se preocupa com a mae. Um menino precisa tornar-se forte antes de poder olhar com um minimo de objetividade para sua mie, para seus pais, para a fam{- lia, até mesmo para simplesmente mandar-lhe meros cartées postais, por educacéo. Se um garoto se despir ‘um pouco de sua fixagdo materna, haverd jé uma possi- bilidade incipiente de vir a relacionar-se bem com @ mie. Mas primeiro precisa adquirir alguma forca, tor- nar-se um homem independente. ‘Assim que Parsifal adquire um pouco da forga 67 de Gournamond e de Blanche Fleur, volta a pensar em sua mae; mas, como veremos, é basicamente seu envol- vimento com ela que causa todos os problemas. Este € © maior obstéculo que existe na psicologia masculina, € 0s homens, em geral, nao 0 admitem, o que mostra como esse aspecto os atinge fundo. Depois, a medida que cada homem cresce, adquire naturalmente a possi- bilidade de ter um melhor relacionamento com seu pré- prio conjunto-mae/“A cada ponto de crescimento, no mito, Parsifal volta e refaz esse relacionamento com a mie. Parsifal viaja o dia todo depois de deixar Blanche Fleur, ¢ a0 entardecer fica sem abrigo. Esté longe de tudo, no meio dos bosques. Cruza com alguém que lhe diz no haver nenhuma habitagio num raio de cingiien- ta quilémetros, Ao crepiisculo, entretanto, encontra dois homens num barco. Um rema, ¢ 0 outro esté pescando. Este tltimo convida Parsifal para passat a noite em stua casa, dé-the indicagées de como chegar ld e continua pescando Seguindo as instrugdes, 0 rapaz vé-se diante de um fosso com uma ponte levadiga. Ao atravessévla, vé que ela comesa a se levantar, chegando a bater nas patas traseiras do cavalo, e rapidamente se fecha atris dele. Parsifal se vé ento num grande castelo. Cruzando © trio, vé quatro pagens que se aproximam; levam sua montaria, despem-no, dio-lhe banho ¢ vestem-no com ricas roupas vermelhas, Depois, dois deles levam- no A presenga do pescador que vira no barco; € claro que este pescador € o Fisher King. Este se desculpa por estar ferido e, assim, incapacitado de se levantar para ‘cumprimenté-lo como deve. Toda a corte estd presente 68 — 400 cavaleiros com suas damas, Ha uma lareira no centro do grande salo, que faz face para os quatro pontos cardeais. Sabe-se que 0 simbolismo do niimero quatro sig- nifica a presenca da integralidade ou totalidade. Este é © Castelo do Graal. Se nfo tivéssemos sabido disso por outras formas, poderfamos deduzir que era ele, pelos muitos simbolos de totalidade af presentes — os 4 jo- vvens, 0s 400 cavaleiros e damas, os 4 lados do fogo. ‘Assim, o Fisher King, gemendo em permanente agonia, dé boas-vindas a Parsifal. Uma ceriménia se inicia com uma procissio, durante a qual um jovem carrega uma espada que verte sangue sem parar e uma jovem traz consigo a pétena que foi usada na Ultima Ceia, Ha também outras curiosidades nesta procissio, mas nao vém ao caso. E servido um grande banquete, a0 qual o Fisher King preside de seu trono, pois nem levantar-se pode. O Graal € passado de mio em mio, e sem que haja necessidade de palavras, vai dando a cada um dos con- videdos 0 alimento desejado. Sé € preciso desejar, si- Ienciosamente, para que 0 Graal produza a comida ou a bebida desejadas. Uma bandeja de prata faz a mesma coisa. No decorrer da noite, Parsifal pasmase com os acontecimentos que presencia, A sobrinha do rei traz uma espada e a dé a0 tio, que por sua vez cinge-a em Parsifal. Este fica sem palavras diante do presente. Pode-se imaginar este inexperiente rapaz do cam- po, num castelo onde tais estranhas solenes cerimé- nnias transcorrem, especialmente a magia do Graal. Parsifal nao articula palavra. 9 Gournamond Ihe dissera que, quando um verda- deiro cavaleiro chegasse 20 Castelo do Graal — se tivesse a sorte de encontré-lo — deveria formular uma pergunta muito importante: “A quem o Graal serve?” ‘Mas ao mesmo tempo, vern-lhe a lembranga o conselho de sua mie: “Nao faca perguntas”. E ele se abstém de fazé-la, Fascinado com tudo que vé, limita-se a obser- var, embasbacado. A noite passayo Fisher King é carregado em litei- ra para seus aposentos, retiram-se todos os cavaleiros e héspedes; dois pagens levam Parsifal para 0 quarto, despem-no € 0 colocam na cama, Na manba seguinte, ao despertar, o rapaz no vé vivalma. Bate 4s portas sem resposta, vai até 0 pétio e ali encontra seu cavalo selado e pronto. Grita, mas 86 0 que ouve € 0 eco de sua prdpria voz. Ninguém a vista, Monta e dirige-se & ponte levadica, que outra vez se levanta e fecha rapidamente, atingindo de novo as patas traseiras do animal. O Castelo do Graal desapa- rece. Nada, além da floresta. Vamos fazer uma pausa e analisar onde estamos. O Castelo do Graal € 0 local da mais preciosa femini- lidade, e o Graal a sintese de tudo que é feminino, é © seu mais puro simbolo, a quintesséncia da expresso feminina, E aquilo que os cavaleiros buscam por toda a vida, porque é o que dé ao homem tudo o que deseja, antes mesmo que ele peca. E a perfeita felicidade, 0 proprio éxtase. O mais tocante dessa parte do mito é que ela nos diz que um jovem pode topar com o Castelo do Graal, em alguma fase de sua adolescéncia, sem merecé-lo ou mesmo sem pedir que isso aconteca. Acho que todo 70 menino, em sua puberdade, passa pelo menos um dia nesse castelo e experimenta essa perfeicio. As primeiras duas frases de um livro que li recen- temente dizem: “Todos nés, num determinado momen- to, temos a viséo de nossa existéncia como sendo especial, muito preciosa, ¢ intransferivel. Essa trans- formacéo se dé quase sempre durante a adolescéncia””. Af esté. ‘Comumente homem reprime isto, mas, se puder recordar-se dessa sensacio, descobriré que em algum lugar houve um momento em que tropecou no Castelo do Graal. Geralmente a visio aparece por volta dos 15 ou 16 anos. Hé aquela manha ou aquele dia perfeito; acorda-se no meio da noite e vai-se caminhar & luz do Iuar. Néo se trata de um namoro, ainda que freqiiente- mente essa experiéncia seja associada com o primeiro amor. E uma experiéncia tinica, que pode aparecer entre tantas outras, mas basicamente é tinica. Lembro-me de um rapaz que me contou que aos 15 anos acordara, numa certa manba de verdo, e pulara a janela para olhar © sol nascente. Depois voltara pelo mesmo caminho, dormira de novo, acordara e descera para o café da manhi como se nada houvesse acontecido. Estivera no Castelo do Graal por duas horas, de manhé ‘Algumas pessoas sio suficientemente sébias, cora- josas e honestas, para recordar esses fatos. Poetas falam sobre tais manhas da sua adolescéncia, quando desco- brem a beleza e 0 éxtase de um mundo dourado. O Castelo do Graal nao existe fisicamente, é uma realidade interna, uma experiéncia da alma, Fica melhor descrito como nivel de consciéncia. Um garoto acorda 71 com algo novo dentro de si, um poder, uma percepcio, uma forga, uma visio: é 0 Castelo do Graal. E incapaz de descrevé-lo, & incapaz de permanecer nele, mas, a partir dessa experiéncia, ele néo seré mais 0 mesmo. Fregiientemente cagoam de um adolescente por causa dessa experiéncia, 0 que ndo se deve fazer jamais, pois trata-se de algo sagrado para o menino. Nada jamais aconteceré de to belo, to importante ou tio construtivo outra-vez para ele, pois, uma ver saido do Castelo do Graal, ele passa a se sentir infeliz, a nfo poder pensar em mais nada, pois nada ha que possa substitu-lo. Mesmo que consiga suprimir de sua cons- cigncia a meméria do castelo, sua falta vai torturar 0 seu inconsciente. Hi um velho provérbio da Idade Média que diz ser possfvel a uma pessoa alcancar © mundo perfeito, ou sentir 0 esplendor de Deus, por duas vezes na vida: a primeira, na adolescéncia; a segunda, por volta dos, 45, 50 anos. Parsifal voltaré anos depois ao castelo e af formularé a pergunta certa. Da primeira vez, s6 topou com o castelo e ainda nao sabia como agir. Nenhum menino o sabe, quando ele Ihe surge pela primeira vez. Nao pode com ele, mas o vé, E uma experiéncia quase que fatal e que, em alguns casos, poderd destruf-lo. Mas é mais freqiiente que isto o lance numa busca obsessi- va e selvagem. E a motivacio consciente ou inconscien- te que tomard grande parte do resto de sua vida, pois no Castelo do Graal ele conheceu a felicidade perfeita, conheceu a plenitude, a satisfacéo absoluta, a beleza ¢ a alegria que s6 ali poderd sentir. Quando perde tudo isso, a0 fim de sua primeira experiéncia, sai A procura do Graal perdido, como um animal rastreando incessan- 72 temente sem parada ou descanso, na finsia de reencon- trar a beleza apenas vislumbrada. Sua fome espiritual forga-o a escalar 0 que for escalével, a tudo tentar na busca incessante pelo castelo perdido, porque sé 0 Graal traz a satisfacio completa, traz a plenitude. Se alguém jd teve alguma vez isso tudo, como viver uma vida comum? Parsifal no péde permanecer no castelo porque falhou ao nao formular a pergunta que Gournamond Ihe ditara. Sua fixago materna interditou-lhe o castelo, conjunto-mae de um homem nio Ihe permite ficar no Castelo do Graal quando o encontra pela primeira vez. Mais tarde, porém, ao libertar-se do dominio dela, fard a pergunta e poderé ficar no castelo. Se a experiéncia for muito forte para o menino, quase poderé incapacité-lo. Os jovens que perambulam por af parecendo néo ter motivacéo alguma, sem qual- quer idéia sobre para onde caminham na vida, s40 por vezes os que ficaram meio cegos pela experiéncia que tiveram no castelo. ‘A maior parte dos homens, entretanto, acha isto tio dificil, tio doido, tao incompreensfvel, que imedia- tamente reprime @ idéia dizendo: “Nao me lembro nada disso”. Mas 0 Castelo do Graal € como todas as coisas que sio reprimidas no inconsciente. Longe de nos livrar- mos delas, descobrimos que esto em toda parte, atrés de todas as rvores, de todas as portas, olhando-nos por detrés de todas as pessoas que encontramos. Muito do comportamento juvenil caracterizado como de “galinho garnizé”, € um desvio da experiéncia do Castelo do Graal, Machuca tanto que nao se pode suportar. O jovem tenta, com esse comportamento, pet- B suadir-se de que é forte o bastante para escapar a dor que estd sentindo. ‘A finsia pelo reencontro do Graal se reflete em tudo; € aterrador enfrenté-la dentro de nés. © homem que tiver coragem suficiente vai compreender 0 qué estou falando, Esta ansia deve ser saciada. O individuo sabe que tem de conseguir algo, mas néo sabe 0 qué. B a inquietacao de sébado a noite que um jovem sente. Tem de alcangaralguma coisa, seno explodiré. As técnicas de propaganda jogam com essa ansia do homem. Nao estou Id muito certo sobre o grau de consciéncia desses profissionais, mas o que sei € que sabem manipular isso. Pode-se vender praticamente tudo, ao apelar disfargadamente para o Graal. ‘A espantosa voracidade do homem pelas drogas, de todo tipo tem parte de suas raizes nessa busca. As drogas parecem ser a f6rmula mégica — e fécil — para a sensacfo do éxtase do Graal. Na verdade, as drogas, produzem uma sensagio de éxtase, mas de maneira erra- da, a meu ver. A maneira certa, posto nfo ser necessa- riamente demorada, implica um longo caminho. Néo hf atalhos. A busca do Graal é uma experiéncia peri- gosa, como dissemos e pode levar a uma psicose, se vivida em excesso ou mesmo fora de hora. A ponte levadica pode se fechar muito cedo, como se fosse uma armadilha de que nao se pode mais escapar. E terrivel observar-se os homens — ¢ isso é ver- dadeiro para quase todos eles — quando pensam que algo vai Ihes preencher a ansia pelo Graal. Pagam o prego que for, nao importando quio alto ele possa ser. ‘Mesmo que soubesse que iria morrer no dia seguinte, © individuo faria qualquer coisa para conseguir a ple- 74 nitude que o Graal Ihe confere. uma atitude irracio- nal, que praticamente nao conhece fronteiras, ¢ muito das motivagdes de final de adolescéncia — a temerida- de, as loucas cortidas de carros a 160 km/h nas estra- das, ou as drogas que destroem vidas jovens — € con- seqiiéncia da ansiedade inconsciente da busca do Graal. Um jovem quase sempre interpreta mal este fmpe- to de vida que sente dentro de si, e 0 traduz por humores, 0 que é, parcialmente, um mecanismo de defesa; mas este 6 0 que faz é criar problemas. O jovem vai precisar resolver a questéo dos humores antes de prosseguir com a busca, Muitos meninos ficam parados nesse conflito e no mudam nunca, e sua busca se desvia para uma sucessfo estéril de humores. No futuro, eles se transformam-em velhos neurasténicos. ¥ quase um consenso universal, entre filésofos € poetas do mundo ocidental, o conceito de que a vida € trdgica. Tragédia é um bom termo para designar 0 que estamos observando; o homem, na sua busca pelo Graal, € 0 proprio homem trdgico. A palavra tragédia ppassou a significar a busca daquilo que nao se pode alcangar ou ter. Este é 0 homem ocidental, e isto tam- bém se aplica ao Castelo do Graal. La pela metade de nossas vidas encontramo-nos sempre famintos de algo que nao podemos ter. Eis a dimensfo trégica da vida. Pergunte-se a um pai de familia como ele vai indo; podendo dar uma resposta franca, ele diré com certeza a mesma coisa que um conhecido me disse, muito sin- ceramente, quando perguntado por mim: “Bem, Ro- bert, vai-se levando...” Acontece que a meia-idade & justamente a época entre as duas idas a0 Castelo do Graal, é 0 tempo em que ele est atuante, cumprindo 5 seus deveres, pagando as hipotecas, mantendo o-estudo dos filhos e seu proprio emprego. Mas € também uma &poca de insatisfasao, pois dentro dele esté presente a Ansia pelo. Castelo do Graal. Tentemos agora um paralelo com a vida de uma menina. Ela nunca sai do Castelo do Graal. Um ponto que precisa ficar compreendido € que as mulheres t8m naturalmente a nogao da beleza, de que sao integradas ao meio; elas esto sempre A vontade, em qualquer parte do universo, € isso n@o acontece com 0 homem. Nao acho que ele seja mais criativo que a mulher, s6 que a criatividade dele se manifesta mais diretamente. A evi- déncia ¢ a presteza da criatividade masculina aparecem tanto porque ele sai do Castelo do Graal. A mulher descobre aquilo que sempre foi; o homem faz ou cria ‘ou pensa que assim acontece. Dizem que Einstein afirmou: “Hoje em dia usu- fruo daquela solidéo que me era to dolorosa na juven- tude”. O isolamento, esse sentimento opressivo no homem, é a ferida que ficou de sua experiéncia com 0 Graal. Ter visto algo tio belo e depois perdélo € quase insuport4vel. Muitos homens tentam fazer com que uma mulher de carne e osso preencha essa solidio; tentam transfor- mé-la no Greal, Nao dé certo, por que ela no pode ser aquilo que nao é. E pedir que uma coisa externa venha preencher uma necessidade interna O atual fascinio pelas religides orientais a propria busca do Graal. Os orientais nao se violentam, como fizeram 08 ocidentais; no entram ou sem da experién- cia do Graal de forma tio violenta. Filésofos orientais, a0 observarem 0 ocidente, dizem: “Mas o que seré que 76 significa tamanha agressividade e voracidade no seu povo?”” Por essa razio, suas filosofias ¢ pontos de vista so muito atraentes para nés neste instante. Mas, na minha anélise, nfo nos sio apropriados, por no terem nada a ver com a nossa situagao atual, Os ocidentais no podem simplesmente deixar “que assim seja””', como fazem os orientais. Somos por demais fragmenta. dos para chegar a isso por um caminho tio diteto, O mito do Graal nos € melhor porque para nés ele tem suas rafzes na psicologia ocidental. Tudo isso é uma simplificagio muito grande, claro. Teoricamente, um homem pode visitar o castelo a qual- quer tempo, nio precisa ir Id s6 duas vezes. Existem muitos instantes na vida de um individuo em que ele pode ter as sensagdes caracteristicas do Graal. Isso 0 mantém em movimento. Se alguém fosse fazer uma lista de coisas, lugares ‘ou circunstncias em que tivesse tido tais sensagdes, ficaria surpreso. Quase sempre sd0 pequenas coisas — aquela manha, quando saboreou com gosto uma torra- da; ou aquele sAbado, quando virou a esquina ¢ se de- parou com nuvens de formas tio peculiares; ou o dia em que um desconhecido na rua o cumprimentou, Quase nunca é um fato marcante ou importante, mas 6 aquela coisa que, por um étimo, coloca-o novamente em contato com o Graal, ‘A ponte levadica é uma aluséo a natureza do Cas- telo do Graal. Nao existe na realidade fisica, é s6 uma realidade intima, uma visdo. £ poesia, é uma experién- 1. B como o Maktub itabe, que quer dizer: “estave escrito”, (N.T.) 7 cia mfstica, néo um lugar especifico. E preciso conhecer € entender esses pontos, se se esté em busca do Castelo, A primeira coisa enganosa é esperar encontrar a felici- dade dessa experiéncia em algo que seja externo, ou que esteja em algum lugar. Nao é possivel, porque o Graal nao é um lugar. Quantos homens fizeram nfo sei quantas peregti- nagdes a lugares determinados onde 0 Castelo do Graal Ihes surgiu na javentude! Quantos homens voltam aos locais de infancia, pensando que tém algo a ver com o Graal! O Castelo € uma sensago que aparece num deter- minado estado de consciéncia. E imagem poética, visio mistica, nfo existe no que se chama comumente de “realidade”. O fato de a ponte levadica ter batido nas patas traseiras do cavalo é um lembrete pequeno porém elo- lente de que entrar e sai do castelo é petigoso. Muitos jovens tém sido derrubados a entrada ou 4 safda dele. Nao é incomum que um jovem fique desestruturado nesse momento, E preciso ser suave € paciente com alguém que esteja atravessando essa experiéncia. Nao faca zombaria; seria insuportével. Teoticamente deveria ser possivel para um homem. permanecer no Castelo do Graal, na primeira vez que © penetrasse. Os monges beneditinos verificaram essa possibilidade, em tempos de monastério. Pegavam me- ninos bem pequenos, bebés ainda, e os criavam no Castelo do Graal sem nunca deixé-los, psicologicamente falando, sair. Pessoalmente, eu nunca conheci alguém que tenha sido criado assim, e nao acho que isso seja 78 possivel para as pessoas nos dias de hoje, mas talvez tenha dado certo, em outros tempos. E importante, ao darmos andamento a nossa histé- ria, observarmos os elementos femininos para vermos como agem, e depois, em comparagio, os elementos masculinos. Hé quem interprete 0 mito todo como sen- do uma guerra entre a violencia masculina e o elemento redentor feminino, mas ambos sfo conduzidos a um equilibrio no final do mito, na forma do Rei do Greal. E dito que a espada que verte sangue sem parar € a que Caim usou para matar Abel, a mesma, ainda, que abriu o lado direito de Cristo na cruz. Portanto, é a espada que tem causado os grandes males de todas as épocas, e € por isso que ela sangra constantemente. Parsifal oscila entre um masculino empunhar de espada e uma Ansia feminina de achar o Graal. Essas duas tendéncias se entrecruzam com freqiiéncia, No Castelo, a espada que verte sangue e o Graal sao guar- dados juntos. Isso representa a unificagio da agressivi- dade masculina, com a alma do homem, que procura sempre por amor e unido, A nio ser que estas duas caracteristicas possam ser equilibradas, provocam gran- des conflitos interiores. ‘A espada € redimida quando desembainhada du- rante a crucifixdo, para cumprir um propésito sagrado. Isto € 0 que acontece com 0 machismo, que s6 € redi mido pelo sofrimento. Uma mulher € quase sempre condenada a ficar em silenciosa agonia, torcendo as mios nervosamente, ao assistir seu homem partir para uma situacdo perigosa, Mas é bom mesmo que se abste- nha de qualquer ago, porque isto pode set a redengio dele, Se ele for inteligente, nfo vai se demorar muito 19 naquela situagio, nem ela the causard muito sofrimento (acontece que os homens nio se distinguem pela inteli- géncia neste ponto). Portanto, a espada que sangra & a espada redimida pelo sofrimento. Este é um conceito desconhecido no Oriente. Fi- I6sofos orientais véem nosso simbolismo e dizem: “Para que tanta sanguinoléncia?” Na medida em que uma cultura — como acontece com a ocidental— assume sua vocagio conquistadora, vai ter sempre de se haver com espadas sangrentas. Essa tendéncia dominadora, expansionista, tipicamente ariana, de nossa cultura nasce do nosso fracasso no Castelo do Graal Existe um caminho legitimo para lé chegar. Hé paralelos muito interessantes entre Cristo eo Fisher King. As duas histérias sfo parecidas em muitos pon- 10s, com a importante diferenga de que o grande sébio, Cristo, empreende a busca de modo certo, se bem que, ainda assim, tenha tido de galgar todos os estégios. Quando, com 12 anos, foi a0 templo e censurou seus pais, estava entrando pela primeira vez no Castelo do Graal, por assim dizer. Tocou algo muito grandioso — sua prépria masculinidade, sua propria fora — ¢ nfo se machucou gravemente porque entendeu. Mais tarde teve de voltar e entao integrou-se totalmente nele, E 0 protétipo ideal para seguirmos. Todavia, gosto especialmente do mito do Graal do século XII porque esté num nivel menos alto, mais préximo de nds; é mais humano, por isso vejo-me melhor nele. 80 Vil Voltemos 20 mito. Parsifal deixou 0 castelo do Graal com a ponte levadiga batendolhe nos cascos do cavalo. No caminho encontra uma jovem muito triste, com 0 namorado morto nos bracos. Havia sido morto por outro cavaleiro (0 da donzela da tenda, de quem falamos antes), que, enfurecido ao saber que Parsifal estivera com sua namorada, atacou o primeiro cavaleiro que encontrou. Portanto, esta morte fora culpa de Pat- sifal, e a triste donzela Ihe diz isso sem rodeios. Pergunta-lhe ela por onde tem andado, ao que ele responde que estivera no castelo local. A jovem diz-lhe no existir nenhum castelo num raio de mais de cin- giienta quilémetros. Aténito, ele descreve onde estivera ¢ ela exclama: “Ah, entio vocé esteve no Castelo do Graal!” ‘A seguir, muito brava, repreende-o veementemen- te por nfo ter feito, como devia, a pergunta. Por causa 81 de sua omissio, nem o castelo se livrou do encantamen- to, nem o Fisher King foi curado de suas feridas. Tudo culpa dele! E por essa culpa, e demais erros, o que iré acontecer? Cavaleiros continuario a ser assassinados, donzelas a ser humilhadas, as terras permanecerio esté- reis, o Fisher King seguird softendo, haverd muitos ér- faos. Tudo, tudo, por culpa de Parsifal, que no cumpriu © dever, nio fez a pergunta que lhe cabia Afinal, a jovem pergunta a Parsifal quem é cle (até este ponto seu nome nfo fora mencionado no mito). Sé agora ele deixa escapar que se chama Parsifal.. Até ir ao castelo, jamais tivera a menor idéia de quem era; nao tinha qualquer sentido da prépria individuali- dade. $6 apés ter estado 1é é que vem a saber quem é Parsifal prossegue sua jornada e no tempo devido encontra a jovem da tenda. Ela esté desesperada porque seu namorado a vem maltratando desde que Parsifal irrompeu em sua tenda, A moca pede-lhe que saia, pois, se seu cavaleiro 0 encontrar ali certamente o matard Também censura-o por no ter formulado, no Castelo, a importantissima pergunta. O cavaleiro realmente apa- rece, mas Parsifal o vence em duelo e o manda, cativo, para a corte do rei Arthur (haveré uma fila interminé- vel de cavaleiros vencidos sendo mandados para Id Talvez seja importante nfo acabar com as neuroses até gue tenhamos vencido o suficiente dentro de nés mes- mos). A donzela chorosa avisa entio Parsifal de que a espada que Ihe foi dada no Castelo do Graal partir-se-é nna primeira vez em que for usada em combate, pois néo é confidvel. Diz também que sé poderé ser soldada pelo mesmo armeiro que a forjou; mas que, uma vez solda- da, jamais se tornaré a quebrar. 82 Esta é a experiéncia normal de um menino, pois a masculinidade que ele pela primeira vez manifesta vem de seu pai. Nao funciona, porque ele tenta agir da mesma forma que seu pai agiria, Nao dé certo porque seu ato € uma mera imitagdo, Faz-se necessério outro pai — um pai espiritual, um padrinho — para conser- téla, Ai adquire a propria masculinidade forte e viril, € que se manterd assim por toda a sua vida. ‘Agora que tantos cavaleiros vencidos acabaram se apresentando a Arthur, a corte esté convulsionada por causa deste herdi, que, entretanto, nao fora reconhecido ‘como tal antes. Querem todos que Parsifal retorne para ser devidamente homenageado. Nao sabem de seu pa- radeiro, e o préprio Arthur parte em sua procura, ju- rando nio dormir duas noites seguidas numa mesma ‘cama, enquanto nfo encontrar esse herdi magnifico, 0 ‘maior cavaleiro que jamais existiu. Parsifal esté acam- pado no muito longe da corte de Arthur, mas 0 rei niio sabe disso. Em seguida, algo de muito curioso acontece, um dos fatos mais intrigantes de todo 0 mito. Um faledo ataca trés gansos em pleno ar, ferindo um deles; trés, gotas de sangue da ave ferida caem na neve. Quando Parsifal vé o sangue, lembra-se imediatamente de Blan- che Fleur, de quem hé muito nfo se recordava. Parsifal esté sempre se esquecendo de alguém; entra numa tangente € se esquece. Quantos nfo sGo os adolescentes que voltam para casa e, num inesperado lampejo de honestidade, dizem: “Ab! me esqueci! Fiquei ligado noutra coisa, e me esqueci Trés gotas de sangue na neve e Parsifal cai num transe de amor. Recordando-se da querida Blanche 83 Fleur, sentase, e, alheio a tudo, queda-se a olhar fixa- mente para as trés gotas de sangue na neve. E assim que é encontrado por dois dos homens de Arthur, que © reconhecem, e 0 tentam convencer a acompanhé-los até a corte. Presa ainda desse estranho transe de amor, € movido por sua extraordindria forga de cavaleiro, arranca os dois de suas montarias, Nesse movimento, um deles tem um brago quebrado. Coincidentemente, este € 0 camareifo real que insultara a donzela que no tira por seis anos € ainda atirara Parsifal contra a la- reira. Este jurara vinganca, lembram-se? De repente a lenda comeca a fazer sentido. A donzela jé foi vingada! Um terceiro cavaleiro, Sir Gawain, aparece e per- gunta a Parsifal, gentil e humildemente, se ele o acom- panharia a corte. Com isso o jovem concorda. Outra versio desta curiosa parte da histéria diz que 0 sol saiu e derreteu a neve, 0 suficiente para que duas das trés gotas de sangue se diluissem, com 0 que Parsifal é libertado do transe, volta a sie pode entao dirigir-se A corte de Arthur. ‘Temos em nossas mos um aspecto estranho da mitologia: Blanche Fleur, neve, més gotas de sangue, Parsifal saindo de repente de seu transe. Se 0 sol no tivesse derretido a neve, ele teria ficado imobilizado para sempre Nuimeros, na mitologia ¢ nos sonhos, sao freqiien- temente bastante elucidativos. Aqui temos trés gotas de sangue. Lembram-se de quantos quatro havia no Castelo do Graal? Eles nos diziam, na linguagem sim- bélica, que o castelo era um lugar de plenitude, um lugar com a conotacio de quaternidade. O ntimero quatro 84 parece representar a idéia da plenitude, da paz, da esta- bilidade e eternidade. O és, por outro lado, representa necessidade, imperfeigio, inquietude e esforgo. Creio ver um jogo entre a plenitude da experiéncia de Parsifal no Castelo do Graal e a falta dela, no seu relacionamento com Blanche Fleur. Acho que isso nos mostra que a expe- rigncia de Blanche Fleur sé é poderosa numa acep¢io parcial, enquanto que a do Graal tem uma conotacéo total, que abrange tudo Quando alguém se vé num insohivel dilema com © tr@s, quando o problema € triplo, é preciso aumenté-lo para quatro ou reduzi-lo para um, pois estas so as tini- cas possibilidades ou solugdes possfveis. Parsifal néo pode voltar a0 Castelo do Graal, nfo consegue passat do simbolismo do trés para o do quatro; portanto, a melhor coisa a fazer é reduzir 0 simbolo para o um. Sé assim poderd voltar a agi. ‘Algumas vezes, quando alguém se depara com um dilema insolivel, precisa reduzir um pouco sua cons- cigncia para poder retornar & aco. Se conseguir ir adian- te, ascender 20 préximo niimero, isso, claro, serd a me- Ihor solugéo. Caso contrério, precisaré regredir um pouco para poder libertar-se e voltar a agir. O dois é ruim porque fica-se preso na duslidade; um € 0 quatro so féceis de trabalhar. Assim, o dois © 0 trés. so dificeis, instaveis, incompletos, mas séo estdgios necessarios pelos quais devemos passar. Por- tanto, todo respeito para com eles; mas nfo € preciso demorar-se neles, simbolismo dos néimetos pode ser aplicado & doutrina crista da Trindade. £ um assunto espinhoso 85 no quero aprofundar-me muito nele, mas quer-me pa- recer que a visio trinitéria da natureza humana ou do Ente Supremo é incompleta. A idéia do trés de Deus requer a incluso do quatro para atingir a plenitude a estabilidade. Toda vez que se tiver um sistema trino haverd uma adversidade em algum ponto, pois algo teré sido posto de lado. E 0 que foi rejeitado reaparecerd, como 0 diabo, porque a cada vez que alguma parte do espftito, perteneente a totalidade, for exclufda, ela se voltaré contra nés. Jung faz muito uso desta idéia freqtientemente sugere que aquilo que fora excluido da Trindade Crista € 0 elemento escuto e feminino da vida. O elemento rejeitado vai voltar-se sempre contra nés, como uma praga, como uma espécie de deménio cténico'. Aparentemente, estamos numa era em que a cons- ciéncia do homem esté avangando da visio trinitéria para a quaternéria, Esta é uma forma profunda e plau- sivel de abordar o extremo caos que se apresenta no mundo de hoje. Ouvem-se atualmente muitos sonhos de pessoas que, nada sabendo sobre o simbolismo dos miimeros, pelo menos conscientemente, mesmo assim convertem o trés em quatro. Isto sugere que estamos passando por uma evolucao coletiva de consciéncia. Do preciso e ordenado sistema inteiramente masculino da realidade bésica, ou seja, a visio trinitéria de Deus, estamos caminhando na diregéo quaternéria, que inclui ‘0 elemento feminino, ¢ outros de incluso mais dificul- tosa, no caso de se insistir num sistema de perfeigio. 1, CiGnico: Relative aos deuses e deménios que habitam os subterrineos dda Terre. (NG 86 Parece ser propésito de Deus substituir agora a imagem de perfeigéo pela de plenitude, de totalidade. Perfeicio sugere algo puro, sem mancha, sem jaca, sem freas duvidosas. Jé a totalidade inclui até mesmo as trevas, e combina os elementos escuros com os elemen- tos de luz, todos eles juntos. Falando de forma genéri- ca, 0 trabalho da cristandade tem-se realizado na diego de sermos bons e perfeitos, nao na direcao da totalidade e plenitude. © movimento no sentido da totalidade € uma tarefa gigantesca, pois sempre nos envolve num paradoxo. Nao estou convencido de que a humanidade possa empreender tal tarefa neste momento, mas ela parece inexordvel; esté sendo empurrada para cima de nés. Jung sugere, muito apropriadamente, que o dogma catdlico de 1950 sobre a assun¢o da Virgem Maria em corpo e alma para o céu, € uma afitmacio dogmé- tica da quaternidade. Maria, em corpo, vive em majes- tade nos céus. Tomado ao pé da letra é um absurdo; ‘mas, visto psicologicamente, € muito importante porque € a incluséo de um elemento terrestre, feminino, na Trindade Celestial. Agora, ndo hé somente os trés aspectos masculinos de Deus; um quarto elemento, fe- minino, foi acrescentado. A feminilidade foi reconheci- da, tardiamente, como um elemento digno de reinar para sempre com Deus. Jung rejubilou-se com esse dog- ma. Mas, como veio, foi-se, ¢ tem andado meio esque- ido, dificilmente alguém se dé conta dele. No entanto, se se pudesse atentar para este extraordinério aconte- cimento da forma correta, haveria esperanga para a Tpteja. O feminino, 0 quarto elemento, & acrescido & Trindade; e se pudermos seguir esta direcio que nos 87

Você também pode gostar