Verdes são
as linhas
do futuro
A Revista do Expresso
Os designers e as marcas portuguesas
estão na vanguarda de uma nova forma de
EDIÇÃO 2601 criar. A sustentabilidade será matéria-prima de
2/SETEMBRO/2022 uma indústria em transformação, que também
se cose no digital. Por Patrícia Barnabé
E
OS AUMENTOS DAS TAXAS DE JURO DO BCE, QUE APERTARÃO EM SETEMBRO E MESES SEGUINTES
grupos ligados ao Novo Banco. E tivemos o drama da da retirada de cena de Passos Coelho. Amparado pelo
mentirosa prosperidade de João Rendeiro e do Banco presidente e pelo errático líder do PSD Rui Rio, Costa
Privado. Este filme, como todos sabemos e sabem os sobreviveu às crises da covid e conseguiu, mediante
nossos impostos, ainda não terminou e todos os dias um esforço colossal de propaganda, com o apoio da
surgem notícias de novas malfeitorias com dinheiros esquerda da ‘geringonça’, convencer os portugueses
públicos. Tal como nos outros casos, ninguém foi de que a crise da covid tinha sido um dos trunfos. E
punido, exceto os mensageiros menores. Ou os de que a ministra da Saúde era um génio político e
maiores com o público opróbrio. A repugnância geral organizador do caos. Não foi, não era. Morreu gente a
dos cidadãos honestos foi a pena aplicada. mais, escusadamente, as vacinas salvadoras vieram
Ao mesmo tempo, passava nos ecrãs nacionais o da Europa, o almirante impôs lógica e logística
screvo isto uns dias antes da publicação, considerem filme picaresco dos truques de José Sócrates e amigos no processo de vacinação, que o SNS copiou, e os
esse atraso entre o escrito e o lido. Acaba hoje a para esconder o dinheiro que gastava e que não era doentes não-covid foram ignorados e postos de
minha viagem de um mês pela Ásia e apanho o avião dele a não ser por meios duvidosos ou claramente lado com pinças. Enquanto o Governo anunciava
de volta na madrugada de amanhã. Como sempre, ilícitos. Tal como o filme do Novo Banco, este não tem jogos de futebol internacionais (um “prémio para os
tentei não ligar importância durante estes dias, depois fim à vista, perdido num emaranhado de truques trabalhadores da Saúde”) durante o confinamento e
dos horrores e das proibições covidescas, às notícias judiciais, adiamentos, sentenças exculpatórias e textos autorizava festas futebolísticas que iriam aumentar
emanadas de Portugal. Há uma razão válida. Cavar autodesculpatórios do presunto implicado, como se diz e rebentar com as urgências e, de um modo geral,
uma saudável distância entre o meu país e os lugares em Espanha. E já que falamos em Espanha, ninguém entupir o entupido sistema.
onde estou, que terão os seus problemas, mas onde não hesitou em fechar a cadeado uns bons anos o corrupto Tudo aguentou, e aguentámos. A crise é agora mais
se acorda todos os dias com uma inundação do quarto cunhado do rei. Em Portugal, seria impossível, uma funda e mais grave, à inflação galopante juntam-se
e da mente por más notícias e catástrofes várias que teia de nebulosidades seria tecida pelas aranhas do os aumentos das taxas de juro do BCE, que apertarão
quase se anulam umas às outras. Portugal não é mais poder instituído ou institucional. Não se trata apenas em setembro e meses seguintes, a crise da energia e o
do que uma enxurrada de más notícias, nos últimos da ineficiência e lentidão da justiça que parecem desfile de más notícias da guerra da Ucrânia. Também
meses. E nos últimos anos. preocupar todos, mas não o suficiente para a reformar, sem fim à vista. A economia americana está booming,
Tivemos primeiro a crise da dívida soberana e as dores trata-se de uma teia de cumplicidades políticas e dizem os peritos, a europeia em princípio de recessão
da austeridade, as constantes humilhações externas pessoais que impede toda a regra e toda a ordem e que para durar anos. Draghi, que foi a Kiev dizer “vamos
de um país que nem cresce economicamente com reina sem censura ou travão nos destinos coletivos. reconstruir tudo”, não sobreviveu em Itália e caiu dias
consistência (não por bochechos turísticos) nem Portugal é um exemplo de crony capitalism. Um país depois. Vamos, quem?
converge com a Europa, que vive de expedientes de “amigos”, famílias amigas e “gajos porreiros”, O Governo está fraco e confuso, sem norte e sem
políticos de pedincha e de pacotes (“envelopes”, terminologia que serve para tudo, e sobretudo para poder disfarçar as incompetências e insuficiências.
diz uma deputada europeia do PS) europeus ou esconder a corrupção moral que grassa ao nível local, A crise ainda mal começou. Costa vai desejar não ter
admoestações antes de resgates e empréstimos. regional e autárquico, e ao nível nacional. Não é só o tido maioria absoluta, porque ficou sem aliados e sem
Internamente, o discurso político durante a famoso Terreiro do Paço que prevarica, prevaricam parceiros. E os portugueses, cansados de viverem
austeridade foi por vezes tanto ou mais agressivo quase todos com maior ou menor préstimo. O atual assim, mal, em catástrofe permanente, inundados
do que o discurso externo, uma estratégia errada do ministro das Finanças, potestade local elevada de más notícias, vão ficar muito mal dispostos. O
Governo de Passos Coelho a que o esperto António a nacional, é disto o claro exemplo com as suas conselho a dar aos jovens é só um, fujam de Portugal,
Costa, mestre da propaganda, chamaria “erros de contratações, nomeações e afirmações, fingindo uma como fazem os refugiados afegãos. Portugal é um país
comunicação”. Com Passos, pelo menos não se inocência enternecedora. Deveria ter sido corrido ideal para os reformados ricos e um lugar aterrador
mascarava a dureza da verdade com o manto diáfano depois de perder as eleições, mas, Costa sendo Costa, para os reformados pobres. O resto é paisagem. b
da mentira, ou por escolha ou por incompetência. foi promovido. E logo a ministro das Finanças e
As medidas da troika eram necessárias para garantir no meio da maior crise económica e financeira da
a nossa sobrevivência europeia, e a certeza de que Europa, que se fará sentir este inverno e nos invernos
podíamos continuar a pedir emprestado. que se seguirão.
A seguir à austeridade, tivemos a catástrofe e resgates Como é isto possível? É possível porque a sucessão de
dos bancos, os tais que apregoavam solidez durante casos e más notícias gera uma espécie de imunidade
o subprime e que mais não eram do que operações de grupo, os portugueses habituaram-se a considerar
financeiras controladas ou por bandidos titulados, normal o que seria sempre anormal.
caso do BPN e do BES, ou por comissários políticos A seguir aos escândalos de Sócrates, estivemos
/ CLARA
que concediam empréstimos aos amigos com uma entretidos com uma breve respiração à tona da água,
almoçarada e um aperto de mão, esquecidas as para tomar fôlego. A Europa adoçou as medidas
regras da compliance ou da fidúcia. Casos do BCP e
da CGD, antes de os atuais gestores varrerem a casa e
punitivas, Draghi salvou o euro, e Costa pôde cavalgar
uma prosperidade momentânea, enquanto se
FERREIRA
procederem à limpeza das contas. Entretanto, tivemos imprimia dinheiro e o BCE comprava dívida soberana. ALVES
o colapso de um banco com dinheiro do Estado, A nossa dívida pública foi aumentando, para
o Banif, mais comissários políticos com os nomes variar, a privada também. E lá íamos vivendo.
do costume, tivemos a quase falência do Montepio António Costa, no início, passou por
acolitado a presumíveis operações de beneficência, grande estadista e conciliador-mor do
mas não de eficiência, e a sequência alucinante de reino, enquanto a direita se afundava em
escândalos ligados ao grupo de Ricardo Salgado e aos quezílias e crises de chefia e direção, órfã
E 3
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2601 | 2/SETEMBRO/2022
30
Tereza Arriaga
7 | Calendários escolares
Para os alunos portugueses
e muitos dos seus colegas
europeus, setembro é
sinónimo de regresso
às aulas. Contudo, apesar
22 | Moda sustentável
Este é o ano de recuperação
da indústria da moda. Se
o digital e o sustentável são
as grandes bandeiras do
sector, o país avança graças
49 | Maria Antónia Siza
Após uma vida curta, deixou
uma obra surpreendente
52 | Miguel Esteves Cardoso
A edição completa
73 | Geórgia
Da Tiblíssi vibrante às zonas
rurais, uma nova geração
abraça e renova as tradições
seculares do país
Neta do primeiro
do número de dias letivos ao trabalho de designers de “Escrítica Pop” 78 | Receita
Presidente da pouco variar, os calendários e marcas que se cosem com Por João Rodrigues
República, viveu com são todos diferentes as linhas verdes do futuro 54 | Homossexualidade
Uma exposição sobre 40 79 | Restaurantes
o peso de uma calúnia na Europa
anos de descriminalização Por Fortunato da Câmara
36 | Brasil independente
que inventou contra 10 | Os Cadernos e os Dias O “grito do Ipiranga”
si própria. Mas deixou Notícias, pensamento, transformou-se em símbolo 56 | Livros “O Abismo 80 | Vinhos
Vertiginoso”, de Carlo Rovelli Por João Paulo Martins
a verdade escrita vedação electrificada da separação, mas a
na Torre do Tombo Por Gonçalo M. Tavares autonomia territorial já vinha 60 | Cinema 81 | Recomendações
de trás. A história completa “A Rapariga Selvagem”, De “Boa Cama Boa Mesa”
14 | Passeio Público não se conta num quadro
26 Minutos com de Olivia Newman
82 | Design
Sara Matos: 42 | Carlos Lopes 62 | Televisão Por Guta Moura Guedes
“Sair da zona de conforto Grande entrevista ao “Sandman”, de Neil Gaiman
prepara-nos para tudo” economista guineense, 83 | Moda
FICHA antigo braço-direito do
e David S. Goyer, na Netflix
Por Gabriela Pinheiro
TÉCNICA 16 | Planetário secretário-geral das Nações 64 | Música “Will of the
Notas de um génio do tango Unidas Kofi Annan e coautor People”, dos Muse 84 | Tecnologia
Diretor Por João Pacheco Por Hugo Séneca
João Vieira Pereira do livro “Mudança Estrutural
em África”. “Se queríamos 68 | Teatro & Dança
Diretor-Adjunto
uma ilustração da hipocrisia “O Diário de Anne Frank”, 85 | Automóveis
Miguel Cadete Por Rui Cardoso
mcadete@impresa.pt relativa a África, a pandemia no Teatro da Trindade
Diretor de Arte forneceu-a”, diz 87 | Passatempos
Marco Grieco 70 | Exposições “Debaixo
da Pele”, de Miguel Telles Por Marcos Cruz
Editor da Gama, no Museu Berardo
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores CRÓNICAS
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 12 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
Luís Guerra 18 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia | 59 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente
72 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 86 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro
lguerra@blitz.impresa.pt
E 4
LIBERTE-SE DA ROTINA
E AGARRE A LIBERDADE.
SORTEIO
COM O EXPRESSO HABILITE-SE A GANHAR UMA YAMAHA XSR 125
E O EQUIPAMENTO NECESSÁRIO PARA SE FAZER À ESTRADA
De 29 de julho a 02 de setembro, ao comprar o seu jornal Expresso vai poder ganhar uma moto
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YAMAHA XSR 125 e um conjunto YAMAHA composto por um blusão, umas calças, t-shirt e luvas
COMO CONCORRER
Câmara Municipal de Oeiras, de 05.07.2022. “Prémio não convertível em dinheiro”
• Os participantes terão de guardar a revista do Expresso com o INSIRA ESTE CÓDIGO E HABILITE-SE
A GANHAR UMA YAMAHA XSR125. VÁ A
CODIGO.EXPRESSO.PT. O CÓDIGO DEVE SER
REBATIDO DURANTE ESTA SEMANA
Fazer
contas
ao tempo
de estudar
PARA OS ALUNOS PORTUGUESES E MUITOS DOS SEUS COLEGAS EUROPEUS,
SETEMBRO É SINÓNIMO DE REGRESSO ÀS AULAS. CONTUDO, APESAR DO NÚMERO DE DIAS
LETIVOS POUCO VARIAR, OS CALENDÁRIOS SÃO TODOS DIFERENTES NA EUROPA
TEXTO CLÁUDIA MONARCA ALMEIDA INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO
E 7
fisga
N
ovos livros, cadernos por estrear, Nesta lista, Portugal destaca-se no topo, dias letivos em Portugal se situa na média
canetas por testar. Por estes dias, mais empatado com Itália. Com entre 11 e 14 europeia”, afirma Estela Costa, professora
de um milhão de crianças e jovens semanas de férias, são os países onde o verão associada do Instituto de Educação da
matriculados em Portugal preparam-se para dos estudantes é mais longo. Seguem-se Universidade de Lisboa.
o regresso às aulas que inevitavelmente chega Bulgária, Letónia e Malta, com 13 semanas. “De todo o modo, o padrão de férias ao longo
com todos os outonos. Este ano, o despacho Já no extremo oposto surgem Alemanha, do ano letivo é semelhante nos diferentes
publicado pelo Governo marca o início do ano Dinamarca e Países Baixos (seis a sete países”, acrescenta a investigadora. De acordo
letivo entre 13 e 16 de setembro para o pré- semanas). França tem oito semanas de pausa, com a Eurydice, há quatro pausas principais
escolar, ensino básico e secundário. Este é o enquanto Áustria, Bélgica, Eslováquia, Irlanda, nas escolas da UE: outono; Natal/Ano Novo;
mês de arranque em quase todos os países da Luxemburgo e Chéquia param durante nove. inverno/Carnaval e primavera/Páscoa. A
União Europeu, estando as exceções sobretudo “As diferenças na duração das férias de sua duração e momento em que são gozados
a norte. Dinamarca, Finlândia, Suécia e Malta verão entre os países da UE estão associadas varia de país para país, sendo a de Natal a
já têm as escolas em funcionamento desde a questões diversas, de natureza cultural mais uniforme (quase todos os países param
o passado mês de agosto, com o mesmo a e social, entre outras, que ganham em ser durante duas semanas).
acontecer também em algumas regiões da equacionadas à luz das idiossincrasias de cada Portugal faz parte do grupo de 11 países
Alemanha e Países Baixos. contexto. A questão da duração não creio que que atualmente não tem férias de outono
Os países que começam as aulas a meio de seja um problema, até porque o número de (que noutros países varia entre dois dias e
setembro estão sobretudo no sul: Espanha, três semanas em outubro ou novembro).
Grécia, Itália, Chipre e Portugal são os países A “distribuição das pausas letivas ao
da União Europeia onde o arranque é mais longo do ano”, explica Estela Costa, “torna
tardio. A diferença das datas não é contudo OS PAÍSES QUE COMEÇAM mais harmoniosa esta tensão que sempre
sinónimo de menos dias de estudo. Segundo AS AULAS A MEIO DE existe entre trabalho escolar e momentos
um relatório da Eurydice (rede europeia de SETEMBRO ESTÃO SOBRETUDO de descanso, quer para alunos quer para
informações sobre sistemas e políticas de professores, concorrendo para o seu bem-
educação), no ano passado, a maioria dos anos NO SUL: ESPANHA, GRÉCIA, estar e motivação, o que não pode ser
letivos variou entre 170 e 190 dias de escola. ITÁLIA, CHIPRE E PORTUGAL descurado”.
No básico, o ano mais curto era previsto num
SÃO OS PAÍSES DA UNIÃO
país insular mediterrânico — Malta, com 165 TRADICIONAIS TRIMESTRES
dias —, enquanto pouco a norte, em Itália, ou EUROPEIA ONDE O ARRANQUE VS. INOVADORES SEMESTRES
muito a norte, na Dinamarca, se verificavam É MAIS TARDIO. A DIFERENÇA Por toda a Europa, também a forma como
os anos letivos mais longos (200). Quase certo as decisões sobre o ano letivo são tomadas
DAS DATAS NÃO É, CONTUDO,
é que o número de dias de escola seja igual no pode variar. Em muitos países, o calendário
ensino secundário e no básico, regra que se SINÓNIMO DE MENOS seguido resulta de orientações emitidas pelos
aplica à maioria dos países. DIAS DE ESTUDO respetivos Ministérios da Educação. Noutros,
o calendário é decidido regionalmente
PORTUGAL ORIGINAL (Alemanha, Áustria, Espanha, Itália e Países
Portugal é um dos países que fogem a esta Baixos) ou até a nível municipal (Suécia).
regra seguida nos restantes Estados-membros. Há ainda casos em que a decisão recai sobre
Embora todos os alunos terminem as aulas as próprias escolas, desde que cumpram as
em junho, o último dia é determinado pelo regras estabelecidas (Irlanda e Lituânia).
ano frequentado pela criança ou jovem. Os Neste contexto, o ano letivo português
estudantes com exames são quem termina as organiza-se tradicionalmente em três
aulas mais cedo (7 de junho), mas ao seu ano trimestres. No entanto, há três anos que
acrescentam-se as semanas destas avaliações esta deixou de ser a única opção em cima da
nacionais. Em oposição, pré-escolar e 1º ciclo mesa para as escolas. A organização em dois
são quem terminam mais tarde (30 de junho). semestres começou a ser testada com sete
Os restantes terminam a meio caminho: 14 de agrupamentos de escolas num projeto-piloto
junho foi o escolhido para os anos intermédios, que decorreu durante o ano letivo 2018/2019.
isentos de exames. A nível da UE, junho é Em 2019/2020, a experiência foi aberta a
efetivamente o mês mais comum para o final outras escolas e no ano passado abrangia já
das aulas (18 países). Mais cedo, apenas Malta quase 330 mil estudantes.
prevê encerrar o ano em maio. Posteriormente, “Em Portugal, a opção pelos dois semestres
em julho, terminam os outros oito países. tem vindo a ganhar popularidade com as
Estas variações resultam também em experiências desenvolvidas por agrupamentos
diferenças na duração das férias de verão. de escolas que participaram no projeto-piloto
E 8
DURAÇÃO DAS FÉRIAS DE VERÃO EM PAÍSES DA UE
NO ANO LETIVO 2022-2023**
E 9
fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO
POR
GONÇALO
M. TAVARES
Notícias,
pensamento,
vedação
electrificada 3. Heidegger afundou-se/elevou-se/alojou-se cada
No fundo, aqueles que se aborrecem são os alvos vez mais ali.
das aldrabices. Ele dizia que a sua obra filosófica fazia parte das
1. O aborrecimento é o terreno privilegiado para os montanhas e que o seu trabalho e a paisagem eram
Uma notícia: “Doze pessoas são detidas em Itália pés do aldrabão. o mesmo, eram aquilo que o rodeava, aquilo que,
após enganarem cerca de 700 pessoas com nação Agustina Bessa-Luís — falando precisamente dos estando sempre à sua volta, não o deixava cair.
fictícia.” inúmeros contos do vigário — diz que tudo é uma Há um famoso texto de Heidegger em que ele
Prometiam impostos mais baixos e outras questão erótica, de sedução, e que nada remete rodeia, com o pensamento (e pensar enquanto
facilidades. para ingenuidades do enganado. se caminha é uma forma física de rodear um
Diz a notícia que essa nação inventada, uma “Estranha-se muitas vezes que os mais vulgares, problema ou uma ideia), a palavra ‘habitar’,
ilha que não existia num oceano que apesar de os mais ingénuos processos de logro ainda mostrando a sua relação etimológica com a
tudo existe, era designada por Estado Teocrático encontrem vítimas; mas pense-se que não palavra ‘hábitos’. Habitar, lembra Heidegger, seria
Antárctico de San Giorgio — e, segundo os são apenas vítimas, são verdadeiras paixões introduzir hábitos no espaço, gestos e movimentos
falsificadores, tinha “soberania e privilégios momentâneas sob a influência dum sedutor.” que ficariam, poderia dizer-se, como fantasmas
autónomos ‘em virtude do Tratado da Antártida Agustina conclui: “O vigarista é um sedutor, um a pairar num espaço aparentemente vazio;
de 1959’”. prestidigitador dos sentimentos imobilizados.” fantasmas que se tornariam concretos aquando da
Os falsificadores tratavam de todos os Um apaixonado dificilmente cai numa vigarice. entrada do corpo a habitar esse espaço.
procedimentos “para dar nacionalidade a quem Ser seduzido por uma ilha não é, em definitivo, Ver a habitação de Heidegger seria assim, em
a solicitasse, em troca de entre 200 e 1000 euros”. uma das piores quedas. parte, ver os seus hábitos — pelo menos, os
Diz a notícia ainda que, além de terem inventado fantasmas destes.
“uma página na internet sobre o Estado, Desde cedo, desde a pessoa que nos informa com
tinham também lançado a publicação de um 4. gentileza, mas também com prudência, ou desde os
‘Diário Oficial do Estado’ e a criação de várias As notícias e o pensamento; os acontecimentos cartazes que vão aparecendo ao longo do percurso,
instituições (chefe de Estado, Governo, Tribunal exteriores ininterruptos e muitas vezes fúteis, e é evidente que a cabana de Heidegger está bem
de Justiça, Supremo Tribunal, Delegações o pensamento que se recolhe para uma gruta, alerta e repete que nos devemos manter afastados.
Territoriais...).” encolhendo, por vezes terrivelmente, os ombros Os familiares do filósofo ainda são os
Duas pessoas compraram pequenos terrenos enquanto o mundo, ou parte dele, arde. proprietários da cabana, que, segundo parece,
nesta nação antárctica. Floresta negra, Todtnauberg, Alemanha. Agosto. quase sempre está de janelas fechadas, não
Montanha e floresta. habitada. Como pareceu estar também desta vez.
Aproximo-me da cabana de Heidegger, um Uma vedação, que anuncia ser electrificada,
2. “espaço para pensar”, como quase sempre foi parece impedir uma maior aproximação a um
Um mapa real onde se acrescentam ilhas nos largos designado este lugar mítico de um dos filósofos dos espaços de pensamento mais perturbantes da
espaços vazios do oceano. Os inventores de ilhas. malditos do século XX. Com 6x7 metros, a Europa. Mas, claro, há vários caminhos possíveis
Como o metro quadrado da realidade está cabana foi construída pelo próprio filósofo e foi na Floresta Negra.
todo ocupado, então que se inventem metros aí, desde 1922, que ele escreveu vários dos seus Proteger o espaço do pensamento com uma vedação
quadrados ficcionais. E que se vendam. textos essenciais. Depois da queda do nazismo, electrificada, eis uma hipótese: se te aproximas
Comprar uma boa ficção é por vezes bem mais demais, corres perigo, podes até morrer — uma
compensador do que comprar coisas concretas, ameaça, sim, sem dúvida, e talvez uma metáfora.
coisas em que se pode tocar.
E, além disso, muita da economia aparentemente COMPRAR UMA ILHA QUE NÃO EXISTE
real vive hoje de detalhados processos ficcionais. É UMA VARIAÇÃO, VISUAL 5.
Comprar uma ilha que não existe é uma variação, “De manhã, eu tinha o olhar tão perdido e a
visual e imaginariamente mais rica, do acto E IMAGINARIAMENTE MAIS RICA, postura tão morta que aqueles que encontrei
de comprar certas acções de certas empresas DO ACTO DE COMPRAR CERTAS talvez não me vissem.” Arthur Rimbaud
muitíssimo virtuais. Inventar ilhas é, pelo ACÇÕES DE CERTAS EMPRESAS Por vezes assim, Agosto. b
menos, lúdico — uma boa oposição, portanto, em
relação à seriedade absoluta e chata das grandes MUITÍSSIMO VIRTUAIS. INVENTAR Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
armadilhas económicas. ILHAS É, PELO MENOS, LÚDICO com a antiga ortografia
E 10
fisga
O MITO LÓGICO
contactar a UNITA, e eles meteram-me na parte com a gota quando se alimentava apenas com
de trás de uma carrinha de caixa aberta com caça. Ele e os seus homens. Nunca vi isso em
uns miúdos de 14 anos de AK-47 a caminho do filmes. Acabei por sair do Huambo numa fuga
Huambo. Uns 400 quilómetros depois tinha o rocambolesca que meteu avionetas e assalto a
POR brigadeiro Chassanha e os seus dois guarda- uma torre de controlo. Mas saí. Sem entrevista a
LUÍS costas à minha espera. Talvez seja o momento de Savimbi.
PEDRO esclarecer que Chassanha (“Está ficar quente”, Fui-o vendo nas peças de TV de fato e a coxear nas
NUNES em umbundo, disse-me) era branco, tinha um comitivas da UNITA. Deixámos de falar da UNITA
bigode à Charles Bronson, daqueles que descaem e da política angolana e eu arrumei o Chassanha
O guerrilheiro
nos cantos da boca, e uma manha para conseguir na minha mente. Há dias, numa conversa
andar, pois tinha umas balas dentro do corpo. daquelas que dão voltas que chegam a Benguela,
Não, Chassanha não era “português” que “tinha alguém me diz que havia um antigo brigadeiro
que foi
ingressado na UNITA”. Era um angolano que se general da UNITA que criava rosas para venda.
recusara a servir no Exército português. Uma Que giro. Um branco, vê lá tu. Oi? O temível e
coisa ficou logo ali patente naqueles minutos temido Chassanha tornou-se floricultor? Um dos
criar flores
iniciais: o brigadeiro Chassanha (e os seus dois mais cruéis líderes do movimento de Savimbi
guarda-costas sempre em posição de prontidão) dedicara-se a criar beleza que serve apenas para
ia ser o nosso babysitter nos próximos dias e não enternecer a alma, apiedar a vista, regozijar com o
estava nada satisfeito com a missão. Olhei para seu odor? Bastou googlar “Chassanha” e “flores”.
UM TEMIDO BRIGADEIRO o fotojornalista Luís Vasconcelos, que estava O ex-número três da guerrilha da UNITA António
GENERAL DA UNITA DESAFIOU comigo, e trocámos aquele olhar: azar dele. Urbano Chassanha despiu a farda em 1992 e agora,
AS CONVENÇÕES: LARGOU A AK-47 Não foram os melhores dias. Essencialmente radicado no Lobito, trocou o passado militar pelo
porque o brigadeiro deixava-nos à porta de um ramo da floricultura. Em 2000 escreveu o livro
E DEDICOU-SE ÀS ROSAS hotel em que éramos os únicos hóspedes com um “Angola — Onde os Guerreiros Não Dormem”.
dos seus guarda-costas, que não abria a boca, e Mas porquê as flores? “Tive um mestre que dizia
A guerra não passa por todos os homens da ficávamos um dia à espera no alpendre. Mas nas que quem conhece o sofrimento aprecia melhor a
mesma maneira, embora os filmes americanos quase duas semanas que durou esta encenação felicidade. Criar vida, meter a semente e esperar
atuais nos queiram convencer de que (éramos reféns e não sabíamos), Chassanha foi que ela cresça é algo que dá muito gozo.” Adaptar-
inevitavelmente se regressará “avariado” e a contando algumas aventuras de como tinha se à vida civil não foi difícil depois de tantos anos
necessitar de apoio. Um amigo de Luanda, na sobrevivido semanas escondido no mato com no mato como guerrilheiro? “A guerra não nos
brincadeira, dizia-me que em Angola ninguém centenas de homens para alimentar. A guerra cria muitas opções. A paz cria todas as opções
tinha tempo ou dinheiro para TSPT (Transtorno com os portugueses era passado distante. Falava possíveis e imaginárias. Não foi nada difícil.”
de Stresse Pós-Traumático) da guerra. Acabava desta recente contra os seus irmãos angolanos. Estava confirmado. A última entrevista é de 2019.
a guerra e ficava tudo feliz. Ainda hoje em As dores de que se lembrava eram a gota, sim, Fiquei satisfeito. Não por um guerrilheiro, que sei
Portugal questiono-me sobre a brutalidade que dores de gota, por passar semanas a comer carne ter sido tudo menos um santo, ter descoberto a sua
foi abandonar à sua sorte milhares e milhares e nada mais do que carne, escondido das tropas redenção terrena nas flores, mas pela realidade ser
de homens que estavam a combater em África, governamentais, dos cubanos e o que mais. tão mais subtil que a ficção. Já tinha escrito este
em cenários brutais como Angola, mas acima Ficou-me essa, inesperada e por isso marcada na final em muitos finais de crónica, não tinha? b
de tudo Guiné. Um dia disseram-lhes que tinha memória: a lenda de guerra Chassanha sofria era lpnunesxxx@gmail.com
acabado, foram trazidos para um país em festa
e ninguém lhes perguntou nada e ninguém
queria nada com eles e ninguém lhes perguntou
se precisavam de ajuda. Até havia um gozo às
tatuagens toscas “Guiné Amor de Mãe 73” —
quando estas representações na pele seriam
um grito de desespero de miúdos na maior das
aflições. A Guiné foi o Vietname vezes dez. E
os homens voltaram estragados, e muitos deles
começaram aí um ciclo de álcool e violência
doméstica. Em Angola e Moçambique, as guerras
recomeçaram. Na Guiné deu-se início a um ciclo
de purgas e golpes. Cá também não havia TSPT
coisa nenhuma. Lembro-me de um tipo na minha
rua, no Alentejo, de longas barbas e cabelos sujos,
aspeto andrajoso, a deambular pela rua, a gritar
contra o Spínola e a destruir regulamente a casa
da mãe. “Foi a guerra.” E encolhia-se os ombros.
Conheci Chassanha, brigadeiro da UNITA, em
1992, quando fui ao Huambo após me ter sido
prometida uma entrevista a Jonas Savimbi. As
primeiras eleições democráticas em Angola
tinham degenerado em carnificina em Luanda,
GETTY IMAGES
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PASSEIO PÚBLICO
26 MINUTOS COM
SARA MATOS
“SAIR DA ZONA DE CONFORTO
PREPARA-NOS PARA TUDO”
DEPOIS DE SE ESTREAR NA APRESENTAÇÃO DE UM GRANDE FORMATO, JÁ TEM REGRESSO MARCADO À REPRESENTAÇÃO.
SE “ÍDOLOS” PROVOU A SUA VERSATILIDADE, A NOVELA “SEGREDO” PROMETE FIXÁ-LA COMO NOME MAIOR NA FICÇÃO NACIONAL
ENTREVISTA CATARINA da zona de conforto prepara-nos para entendido como arte, como cultura. a situações que nunca aconteceriam
BRITES SOARES tudo. Enquanto atriz, que também faz novelas — na vida real, do cabelo demasiado
Está para breve o novo projeto que outro formato nem sempre bem visto —, arrumadinho, entre outras. Essas
tem em mãos, “Segredo”. Que desafio Foi difícil distanciar-se da ligação do como vê a crítica? debilidades sentem-se e estão em vários
preconiza a novela na qual representa duas programa a outros apresentadores e criar O feedback das pessoas que me setores, no argumento, vestuário, etc.
gémeas, que e que coprotagoniza? uma linha própria? abordam e falam do meu trabalho — Geri-las depende de cada um.
As expectativas são sempre as mesmas O que me foi posto em cima da mesa nomeadamente no “Ídolos” — é muito
quando inicio um novo projeto, dar o foi ser eu. Claro que nos questionamos, bom. Valorizam-no porque põe em A que se refere?
melhor e entregar-me totalmente. Mas mas entendo que quando marcamos evidência o talento alheio, incluindo de Quando uma novela não está a preencher
é óbvio que depois da maternidade tudo pela autenticidade e entrega é pouco jovens. E eu posso falar do meu trabalho, o meu lado artístico vou à procura de
mudou, hoje já me é mais fácil relativizar. provável que não resulte. a que me entrego a 100%. Seria vago outras áreas da representação, como o
Acho que até já aprendi a dormir menos falar sobre o resto quando o feedback teatro. Compete a cada ator procurar
horas e a trabalhar mais. Confirmei que É cada vez mais comum que os mundos que tenho é exatamente o contrário. E colmatar o que lhe falta. As novelas
depois de sermos mães somos mesmo se fundam, atores são apresentadores e neste caso, foi um programa que até foi são pensadas para os telespectadores,
supermulheres. vice-versa. Vem da representação. A seu bastante visto e aplaudido, e que teve um para a pessoa que está em casa e no
ver, porquê uma atriz num programa de resultado muito positivo. que quer ver. E a verdade é que até hoje
Recentemente, viveu outro repto com televisão? não se parou de fazer novelas porque
“Ídolos”, na SIC. Que balanço faz desta Fiz várias vezes essa pergunta: porquê Também são comuns as críticas ao há audiência. Há fragilidades em todas
estreia como apresentadora de um eu? E a resposta foi sempre a mesma: entretenimento, incluindo dos próprios as áreas, seja no teatro ou no cinema.
programa líder de audiências, que voltou porque sou eu. atores, por se sentirem descartáveis, Compete-nos a nós, atores, quando as
após sete anos? pela superficialidade dos conteúdos e sentimos, sugerir e procurar soluções em
É impossível extrair todos os Revê-se nesse papel de apresentadora? pela efemeridade. Hoje protagoniza uma vez de criticar e rejeitar.
ensinamentos assim que se termina Gostaria de o repetir? novela, amanhã ninguém a vai buscar.
um projeto, mas desde logo fica essa O resultado foi muito bom. Nunca Como se gere isso? Fez várias novelas. Nota mudanças,
sensação boa de sentir que se tive a achei que me pudesse divertir tanto, Obviamente que já aconteceu sentir e refiro-me por exemplo se temas
coragem de fazer certas coisas — neste e sem dúvida que é gratificante ver os que há cenas mais fracas. Refiro-me estruturantes são abrangidos, ou seja, se
caso, de apresentar — sou capaz de fazer participantes enfrentarem um palco, o entretenimento reflete a realidade e a
outras. Se fui capaz de estar em palco, sem tempo para muitos ensaios e sem pensa?
diante de um teleponto, suscetível ao experiência. Seria saltar um bocadinho “ÀS VEZES O MAIS Neste momento, trabalho das 8 às 8 e
improviso, conseguirei responder a outros fora de pé se dissesse que não gostaria tenho um filho. É-me difícil responder a
reptos fora da minha zona de conforto. de repetir algo semelhante porque foi IMPORTANTE NÃO É A esta pergunta porque não tenho tempo
Sinto-me mais preparada para arriscar espetacular, mas é só nisso que penso: EXPOSIÇÃO, MAS O para ver muita coisa e ter uma opinião
depois de “Ídolos”, incluindo neste papel que foi uma experiência. TRABALHO E AS BASES. formada.
que agora represento, que acabam por
ser dois personagens porque interpreto O mundo do entretenimento é por vezes NESSE SENTIDO, Abraçou o desafio dos “Ídolos” quando
duas gémeas. Essa é a grande vitória: sair desconsiderado e excluído do que é SEMPRE ME VALORIZEI” tinha acabado de ser mãe. Foi duro
E 14
PASSEIO PÚBLICO
mulher se sente muitas vezes prejudicada teatro em 2023. É algo que faço questão.
por estar grávida ou por ser mãe, incluindo Lógico que tudo depende do meu filho.
ao nível profissional. Como é na sua área? Agora já não sou só eu. b
E 15
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR
JOÃO
PACHECO
VENEZA
Tudo começa
NUNO SACRAMENTO
uns descomplicados salmonetes grelhados a ir até ao quarto de hotel do músico, estrela argentina, embora de raspão.
ou sobre uns mais evoluídos ovos mexidos decidiu contornar o problema, Depois, quando Carlos Gardel se
com mioleira de borrego. A pré-história da chegando lá através da escada de preparava para partir numa tournée
evolução do cérebro humano está também incêndio, pelo exterior do prédio. pela América do Sul, o miúdo do
ligada à linguagem e à nossa capacidade Carlos Gardel gostou da ousadia. bandoneón foi convidado pela estrela
de contar histórias. Daí o desafio lançado E terá ficado impressionado com do tango para seguir viagem com o
a dezenas de autores de ficção, incluindo o que ouviu quando o rapaz tocou grupo de músicos. Tendo em conta
Salman Rushdie e Maria Stepanova, bandoneón, uma espécie de pequeno a idade do rapaz, a decisão coube ao
que criaram histórias sobre os objetos acordeão. O instrumento fora pai. Ficou decidido que Astor não
escolhidos para esta exposição. O narrador inventado na Alemanha em meados podia ir. E ainda bem, porque essa
de audiolivros George Guidall leu-as e do século anterior, ali por volta de tournée terminou logo no início. O
O amuleto
foram gravados vídeos para a ocasião. 1850. Tinha nascido para servir os avião onde viajava Carlos Gardel
egípcio, em forma
Noutro ponto do palácio veneziano, há uma sala com vídeos de coração, está propósitos religiosos da música sacra, chocou contra outro avião em junho
de especialistas. São dezenas de neurolinguistas, filósofos, em exposição no substituindo o piano ou o órgão, que de 1935, num aeroporto na Colômbia.
psicólogos e neurocientistas, incluindo António Damásio. palácio Ca’ Corner seriam opções muito maiores e mais Entre os mortos estava Gardel e todos
Vão falando à vez, como se completassem as declarações della Regina, caras. Só que através de um daqueles os músicos que o acompanhavam.
uns dos outros. Uma filósofa explica-nos que o cérebro é em Veneza atalhos saborosos da Humanidade, Aos 16 anos, Astor Piazzolla
anarquista. E sim, podemos aceitar que tudo começa com o dito instrumento foi parar às mãos regressou à Argentina. Tornou-se
uma ideia. Mas como? Quando? Porquê? de marinheiros. E por essa via viajou músico profissional e compositor,
E 16
FLASHES PALMERA — PARIS
nacional.
Mais tarde, a consagração nacional
e internacional acabou por chegar,
com músicas como ‘Adiós Nonino’, PHOTO
‘Milonga del Angel’ ou ‘Libertango’. MATON
SWANSEA
E hoje Piazzolla é ele próprio um
símbolo da cultura argentina, que Mais do que uma exposição, o que
está aqui a acontecer é uma ocu-
abraçou o chamado novo tango
pação. Chama-se “On Your Face x
daquele rapaz que subira pela escada
Glynn Vivian: Queer Reflections”.
de incêndio nova-iorquina em E até 18 de setembro, acontece
1935. Se fosse vivo, este génio do na Glynn Vivian Art Gallery em
tango teria feito 101 anos na passada Swansea, no Reino Unido. O ponto
primavera. Agora, a 22 de setembro de partida é a coleção heteronor-
às 21h30, a música de Piazzolla mativa desta galeria pública. E a
poderá ser ouvida ao vivo no ocupação é consentida, claro.
Conservatório de Música de Coimbra.
A interpretação é do quinteto
PONTA DELGADA
português Quintetango (na imagem),
com André Madeira na guitarra, Vai nascer na ilha de São Miguel
o 1º Festival Internacional de Sa-
BARBARA B CRANE TRUST
E 17
C A RTA S A B E RTA S
A
HOUVE UM DIA, AQUI HÁ POUCO TEMPO, EM QUE ANTÓNIO COSTA RESOLVEU PÔR
O SNS NA ORDEM. DEPOIS DE MUITO DEBATE, DECIDIU CHAMAR PAULO MACEDO
s conversas, os debates, as fui para a Direção-Geral dos Impostos e acabei por demonstrar
discussões, as conjeturas, os que o que ganhei a mais em remuneração foi altamente
algoritmos tinham sido muitos, recompensador para o Estado; na CGD penso estar a fazer o
imensos. Havia quem concordasse mesmo. Eu tenho propostas de emprego com muito mais alta
com o chefe do Executivo e quem remuneração, mas o serviço público, desde que remunerado
se escandalizasse com o recurso com dignidade, atrai-me.
a um ministro de Passos Coelho. — Bem, isso arranja-se. Tem mais condições?
Claro que Costa sublinhava que — Terei de ter uma palavra a dizer em todas as decisões e
ele era o presidente da Comissão em todas as políticas respeitantes à Saúde, sejam no sector
Executiva da Caixa Geral de privado, no público ou no social, pois todas elas impactam no
Depósitos, que não era menos SNS e nos acordos que este tem de obrigatoriamente fazer com
importante do que o SNS. O que foi esses sectores. Repare que a ADSE e outros subsistemas, como
ele dizer! Saltou Pedro Nuno Santos e exclamou: “O camarada a ADM, sendo públicos, não são do SNS.
põe ao mesmo nível um serviço essencial às pessoas, que — Mas, Paulo, permita-me o tratamento, vai fazer acordos e
provém aos pobres, e uma instituição financeira que se rege PPP com o SNS?
pelas leis do mercado neoliberal?” Costa, com o sorriso de gato — Claro! Tudo se gere com acordos com outros sectores; com
de Cheshire, respondeu-lhe que a CGD era essencial para ele e os quadros, com os trabalhadores indiferenciados, com os
que lhe constava que, tendo em vista a cilindrada dos carros e sindicatos e até com o Governo.
as declarações ao Tribunal Constitucional, devia ainda ser mais — Bem, já vi que percebe imenso disto e penso que, apesar do
essencial a Pedro Nuno. Alguns presentes (todos do núcleo sarilho que vou arranjar com o Pedro Nuno, podemos avançar.
duro do PS, mais de 50, talvez) riram-se e o debate continuou. — Espere, António! Ainda me falta uma condição: é que, se
Mesmo que a Caixa fosse muito importante, o SNS tinha um por acaso me opuser terminantemente a uma medida, ela terá
aspeto peculiar: era uma obra do PS que não podia ir parar a de ser alterada, de modo que nem o seu Governo nem o seu
um homem que, embora independente, fora de um Governo ministério possa enviar para a opinião pública nada que eu não
do PSD. “Tá bem!”, exclamou Costa. “Vamos lá resolver tenha sabido ou com que não tenha concordado!
isto!” Passou-se à votação e, com umas abstenções, a ideia foi — Ó Paulo, mas isso é dar-lhe o cargo de ministro da Saúde!
aprovada, já sem Pedro Nuno na sala, pois tinha de ir inaugurar — Lá nomes e cargos é consigo. Eu ponho condições...
a requalificação de uma carruagem do Metro. Poucos dias — Mas eu tenho de substituir a Marta Temido por alguém
depois, Paulo Macedo foi chamado a São Bento e, com o seu próximo do meu partido e do meu Governo, não acha?
melhor formalismo, cumprimentou o primeiro-ministro. — Esse, António, é um problema seu e não meu. Mas se quer
— Sabe por que o chamo? — indagou Costa. um ministro para gerir o SNS não precisa de CEO. Se quer um
— Terá algo a ver com as taxas de juro, a inflação, a CEO, não precisa de ministro. É a vida! b
industrialização do país —tentou Macedo.
— Nada disso! É uma coisa totalmente diferente, um novo
desafio!
— Não me diga que é aquela coisa do CEO da Saúde... Já li o
meu nome nos jornais associado a isso, mas pensava que eram
fake news.
— Não são! Tivemos grandes discussões, e o seu nome surgiu
como o mais adequado à função. Aceita?
— Bem, senhor primeiro-ministro, eu sou um servidor público.
Fui diretor dos Impostos e ministro da Saúde e agora sou
presidente-executivo da CGD. Nunca ninguém me viu recusar / COMENDADOR
um lugar onde possa servir melhor o meu país. Mas, como
compreende, tenho de colocar algumas condições.
MARQUES
— Como quais? DE CORREIA
— Desde logo a remuneração. Tem de ser ao nível dos CEO e
nunca menos, pelo contrário, do que aquilo que aufiro na CGD.
— Quer dizer, mais do que o Sérgio Figueiredo?
— Ó senhor primeiro-ministro, já tive esta discussão quando
E 18
NÃO
BASTA
PARECER
É PRECISO
S U S T E N TÁV E L
ECOLÓGICO
R E S P O N S ÁV E L
5 MANUAIS | GRÁTIS COM O EXPRESSO
7 DE OUTUBRO 14 DE OUTUBRO
TEXTO
PATRÍCIA BARNABÉ
JORNALISTA DE MODA
E 22
A sustentável
leveza da moda
portuguesa
E 23
D
epois da febre dos fatos de treino e do loungewear,
que reinaram durante os vários confinamentos,
voltamos lentamente a gostar do nosso guarda-
-roupa, e as nossas compras voltam a eleger peças
com personalidade. Pelo menos é o que nos diz o
relatório McKinsey “The State of Fashion 2022”,
lançado para os grandes pensadores da indústria
por esta consultora de gestão e pelo site Business of
Fashion, o mesmo que afirma que a grande apos-
ta de crescimento das marcas de moda mundiais
estará concentrada no digital e na sustentabilida-
são alguns exemplos nacionais que nos provam que
melhor é sempre mais.
E 24
MANUEL LASTIRI
DIVERSIDADE A aposta
na sustentabilidade
não retira identidade
às marcas nacionais.
Na Behén (em cima, à esq.)
e na Buzina (em cima),
os criadores nacionais
mostram o seu traço, bem
diferente das propostas da
+351 e da Kozii (em baixo)
FOTOS D.R.
E 25
FOTOS D.R.
na São Paulo Fashion Week (SPFW): “É uma sema- essencial”, retifica Leonor Ferreira Lopes, que dirige
na de moda de que queria muito fazer parte desde o marketing e a comunicação da marca. Pedro Palha
sempre. É muito bom quando a arte está de mãos completa: “Fazemos sempre o exercício: é mesmo
dadas com a moda, e a SPFW é um exemplo disso, essencial ou supérfluo? Se for, não avançamos. Têm
exímia na forma como permite que os criativos se- de ser peças em que, aos 18 como aos 90, todos pos-
jam representados. Tem sido precursora em ques- sam sentir-se confortáveis, porque defendemos um
tões de representatividade, inclusão e digitalização. guarda-roupa para a vida. Seria um grande orgulho
Vamos aprender muito.” se continuasse a ser usado pelas próximas gerações.”
O facto de não serem peças de tendência tam-
BÁSICOS, ORGÂNICOS E INTEMPORAIS bém significa que “tudo pode ser utilizado sem-
“Independência significa podermos viver livres das pre e em todo o lado”, e os stocks são mais fáceis de
restrições da indústria ou da mentalidade de um in- gerir: “Não produzimos mais do que o que preten-
vestidor, mas, mais importante, livres das demandas demos vender.” Assim como fazem o lançamento
frenéticas estabelecidas pela agenda da alta moda”, de novas cores em preorder no site. “É o mais perto
lemos no site da ISTO. E foi com este espírito que que temos do feito à medida.” Da mesma forma, a
deixar de lado país com uma indústria têxtil muito forte, a maioria
vai para exportação e nós portugueses só vestíamos
fábricas no Norte onde são produzidas as suas cole-
ções: “Queremos trazer as pessoas à fábrica e mos-
E 26
TRANSPARÊNCIA
A ISTO lançou
querem essa transparência”, acrescenta Pedro Pa- casa tradicional portuguesa. É que o espaço tornou- o conceito de
lha, visivelmente orgulhoso. Recentemente lança- -se pequeno demais para as encomendas. factourism, ou seja,
ram jeans pretas e brancas e só encontraram um Começou a investigar sobre produção ética e tra- visitas turísticas
fornecedor, italiano, “mas é o mais verde do mundo, balho com comunidades e foi para a Índia durante às fábricas no Norte
e já colocamos na etiqueta de onde vem a ganga”. uns meses, para a aldeia Bagru, na região de Jaipur, onde são produzidas
No próximo ano sai uma coleção de activewear: trabalhar com artesãos que fazem block print, a im- as suas coleções.
t-shirts para fazer desporto, calções e meias, “que te- pressão de tecido com blocos de madeira gravada Já tem mais
rão de ter algumas fibras mais artificiais, mas mistu- que funcionam como carimbos. Sabendo que o tin- de 250 inscrições
radas com lã de merino, que tem propriedades mais gimento é o que mais polui na indústria têxtil, para a
elásticas e é muito usada nas marcas de montanhis- jovem designer foi importante ver como funcionam
mo e em tecidos técnicos. Estamos a testar”. Sem- certos processos e trabalhar com uma empresa de
pre apostaram no online e em lojas próprias — a úl- fair trade a “desenvolver projetos e a perceber pro-
tima foi inaugurada durante a pandemia —, tiveram blemas na produção com as comunidades”. Propôs
uma loja pop up em Shoreditch, Londres, e este ano a reutilização de têxteis como tema de mestrado e
planeiam ir a Paris, ao Marais, “para que pessoas de dedicou-se a ela.
outros mercados possam tocar”.
A má notícia é que, até ao final deste ano, vai de-
Muita desta paixão vem da sua avó materna, que
tinha uma lavandaria em França que depois reabriu Joana Duarte
saparecer a roupa feminina da ISTO, é um mercado
muito mais complexo e competitivo: “Para fazer-
no regresso a Portugal, por isso conhece os tecidos
de cor e truques muito antigos. Numa das visitas de percebeu que
mos, temos de fazer bem, e não conseguimos pensar
verdadeiramente na coleção de mulher nem temos
Joana Duarte à sua Santarém natal, a avó levou-a a
uma feira e ela encontrou “a colcha mais linda que já podia reutilizar
capacidade financeira para mais produtos. Temos de
fazer escolhas refletidas”, confessa Pedro Palha, que
tinha visto”, o que a fez recordar-se dos saris, “que
na Índia passam de geração em geração, como aqui têxteis, mas não
resume os vários lemas que formam a palavra ISTO:
a independência, “está ligada à coleção permanen-
fazemos com os enxovais”. Assim, e com a ajuda da
avó, começou a meter o nariz nas arcas das vizinhas, se revia apenas
te o conceito de básicos e clássicos que não seguem
tendências”; a superqualidade, ou seja, “trabalhar
nos mercados e nos leilões.
“Percebi que podia reutilizar têxteis, mas o que no upcycling
cada produto até à perfeição”; a transparência, “a
partilha dos nossos fornecedores em todos os pro-
me interessava mais não era só o upcycling e fa-
zê-lo com os tecidos portugueses, mas trabalhar dos tecidos
dutos”; e é orgânica, “todos os nossos materiais são
sustentáveis”. “Repare, a qualidade é um caminho
diretamente com as comunidades. Assim, avan-
cei para um projeto meu, porque ninguém o esta- portugueses.
para a sustentabilidade em si.” va a fazer e eu já tinha o conhecimento e as técni-
cas. De negócios não, mas de bordados percebia eu Queria
CELEBRAR O BORDADO PORTUGUÊS
Joana Duarte estudou moda, mas foi quando estava
e toda a minha família.” Behén significa ‘irmã’ em
hindi e é uma marca “muito ligada ao universo fe- trabalhar
no mestrado na Universidade de Kingston, em Lon- minino: quase tudo gira à volta das avós, das mães,
dres, que se questionou: “De que forma é que os de-
signers contribuem para a solução de um problema
dos bordados e dos enxovais, das costureiras. E foi
em conversa com muitas mulheres que eu cheguei
diretamente
atual?”, recorda a própria, ao telefone, já que não
pôde receber o Expresso no seu pequeno ateliê-lo-
até aqui”. Ao mesmo tempo, ao olhar para as irmãs
mais novas, que pouco se interessam por enxovais e
com as
ja no Poço dos Negros, em Lisboa, que parecia uma técnicas tradicionais antigas do bordado e do têxtil, comunidades
E 27
percebeu que estava na sua mão procurá-los pelo
país fora, recuperar o seu encanto e trazê-los para
os holofotes cool da moda. SIMPLICIDADE
Estreou-se na ModaLisboa, em março de 2020. A +351 começou
Aí vimos desfilar camisas feitas a partir de lençóis em 2015 com básicos
bordados antigos, casacos feitos de colchas, calças intemporais em
feitas de antigas toalhas de mesa ou belos detalhes algodão 100%
feitos por bordadeiras tradicionais — numa forma de orgânico. Mas
a coleção tem vindo
passar mensagens importantes, como na sua última
a diversificar-se
coleção, que dedicou à liberdade, “mesmo quando
Liberdade, em Portugal, não era nome de mulher”.
A grande magia da Behén é cada peça ser absoluta-
mente única, feita e bordada à mão. “São feitas por
um ser humano, e um bordado nunca é igual ao ou-
tro”, sublinha Joana Duarte. Num mundo cheio de
gente, “a exclusividade é muito procurada, cada vez
mais”, mas, como trabalha com artesãos, tudo pode
ser personalizado: “Cada peça que desfila na Moda-
Lisboa o cliente pode adaptar ao seu gosto pessoal.
Trabalho com muitos artistas, e é muito importan-
te, também para eles, este lado, este simbolismo.”
Hoje está na Behén (com peças à venda em site
próprio, na 100% Silk, em Toronto, e na Simonett,
em Miami) o trabalho de bordadeiras de Viana do
Castelo, de Arraiolos, da Madeira, de diferentes ilhas
dos Açores e de artesãos que trabalham técnicas es-
pecíficas, como o tear de São Jorge, por exemplo.
Continua a receber enxovais. Às vezes deixa-se ficar
à conversa com as histórias que trazem e guarda os
exemplares com desenhos incomuns como arqui-
vo ou ponto de partida de pesquisa. As peças anti-
gas são maioritariamente em algodão, linho ou lã.
“É muito interessante ver as coisas evoluírem, mas
ainda há muito green washing, porque as marcas di-
zem que trabalham com determinado artesão, mas
copiam o seu bordado à máquina, e quem não sabe...
É um problema constante, as pessoas ainda não dis-
tinguem o que é realmente bem feito”, comenta.
No ano passado, Joana Duarte abriu o já men-
cionado estúdio no coração de Lisboa, que teve de
fechar, e recebeu o primeiro prémio de Empreen-
dedorismo Feminino AWE, dado pela embaixada
americana em Portugal. Agora procura um novo es-
JOÃO HASSELBERG
paço para trabalhar com a sua equipa mínima, onde
a mãe “é ‘assistente’ a tempo inteiro” e a avó “faz
umas perninhas”, ri-se. Este ano foi nomeada para
os Globos de Ouro — que serão entregues a 2 de ou-
tubro, na SIC — na área da moda, ao lado de consa-
grados como Alexandra Moura, e já vestiu músicos
conhecidos, como o rapper madrileno C. Tangana e
o cantor soul norte-americano Leon Bridges. da sua loja na Rua da Boavista, em Lisboa, está uma escritórios foi um sonho, identificava-me com tudo
Agora anda de volta do guarda-roupa de “Casa t-shirt que pintou para o pai, em criança, com tintas o que ele fazia. Pedi tanto um estágio que mo de-
Portuguesa”, de Pedro Penim, um espetáculo que para roupa oferecidas pela mãe: “É um símbolo de ram”, ri-se, falando da admiração por Oskar Met-
questiona os cânones da família patriarcal portu- onde venho”, diz, sentada no sofá junto à entrada. A savaht, designer de moda, ativista ambiental e co-
guesa e abre a nova temporada do Teatro Nacional sua família viu-a crescer junto ao mar e sempre ado- nhecido ‘guardião’ da Amazónia. Esteve um ano na
D. Maria II, a 22 de setembro: “O objetivo é dar ‘pal- rou arte, desde pequena que teve a sorte de visitar os área criativa da Osklen — “passava-me tudo pelas
co’ a estes artesãos e mostrar que é possível integrar grandes museus em capitais como Londres ou Paris. mãos”, recorda —, foi a sua grande escola, e ao fim
estas técnicas e saberes antigos no design contem- “Às vezes penso que devia ter ido para Pintura, mas do dia “pegava na prancha que tinha na casa de um
porâneo. É uma questão de saber trabalhar com as estou muito contente por ter chegado aqui, é uma amigo e ia surfar”.
pessoas, ter alguma paciência e acreditar no seu po- grande liberdade, é isso que toda a gente procura.” Os seus colegas de mestrado começaram a criar
tencial.” A Behén trabalha em projetos específicos de Estudou Design na capital e Design de Moda no as suas próprias marcas, que vendiam em feiras, e
divulgação de talentos locais. A moda acaba por ser Rio de Janeiro, onde percebeu que gostava de fazer ela pensou seguir o mesmo caminho, “mas em Por-
“30% do meu trabalho, porque o impacto social é a roupa “mais gráfica, em diferentes texturas e ma- tugal temos uma indústria têxtil espetacular”. Vol-
parte fundamental. Estas técnicas estão a perder-se, teriais e tingimentos”, diz. Fez especializações em tou, já com o nome +351 na cabeça. “Andava a pen-
assim talvez consigamos salvar algumas”. Design de Moda e Vestuário em Londres e em São sar há meses: já viajei pelo mundo todo, mas adoro
Paulo e estagiou em França a desenhar a coleção da viver em Portugal, sinto-me mesmo em casa, não o
CASUAL WEAR ORGÂNICO Billabong Europa. Mas o seu olho sempre esteve na trocava por nenhum outro país.” Assim, escolheu
Ana Penha e Costa e a sua marca nasceram em Lis- visionária marca sustentável brasileira Osklen, onde o indicativo português como imagem de marca e
boa e de uma grande paixão pelo surf, de que, na al- a vida urbana e a ligação à natureza se cruzam. “O acrescentou-lhe “Designed in Lisbon”: “Transmi-
tura, era treinadora profissional. Por cima do balcão Oskar era o meu ídolo. Por isso, conhecer os seus te esse orgulho em ser portuguesa. Temos este país
E 28
lindíssimo, e foi preciso os estrangeiros chegarem
para o começarmos a reconhecer.” Juntou-lhe o Cecília Silva roupa com os antigos diretores do famoso festival
de Idanha-a-Nova, que tinham uma loja no Bairro
amor profundo à natureza, a “ver a luz a nascer, a
ser a primeira surfista a chegar à praia e a apanhar desenha Alto, em Lisboa. “Deram-me contactos, e eu meti-
-me num avião e fui para a Índia.” Foi “perceber o
ondas perfeitas ou a assistir ao pôr do sol”, e a fór-
mula da sua marca estava criada. a roupa e os que queria fazer e como podia fazê-lo”. Contacto
puxa contacto, uma experiência leva a outra, Cecília
A +351 começou em 2015 com uma mão-cheia
de básicos intemporais em algodão 100% orgânico. padrões das viajou pelos mercados do país, “a comprar materiais
e a escolher um sítio lindo para ficar a trabalhar”.
“Depois brinco com as texturas, com os tingimen-
tos, as cores”, descreve. As suas montras são ver- suas coleções, Fixou-se em Hampi. “Foi das aventuras mais bonitas
da minha vida.” Era o ano 2000 e a sustentabilidade
dadeiros arcos-íris. Começou por ser uma marca
feminina, hoje é unissexo: “As mulheres são mais cuja imagem ainda não estava na moda.
Começou a repetir a aventura noutros países. A
indecisas, os homens quando gostam de uma peça
compram uma em cada cor. E as mulheres passa- de marca é cada ano, a mesma lógica: “Três meses para fazer
investigação e recolher materiais e escolher um sí-
ram a usar as roupas dos homens.” A t-shirt básica
é a best-seller, “é superconfortável, as pessoas ado- a estampagem tio bonito para morar.” Assim foi na Tailândia, no
México, de onde trouxe as pedrarias, na Costa Rica
ram o corte e regressam à loja, mesmo os estrangei-
ros”. Enquanto conversamos entram vários, de todo de tecido à e na Guatemala, de onde trouxe os bordados maias,
ou no Brasil, de onde trouxe sementes dos índios
o mundo, os mesmos que depois vestem a sua roupa
nas campanhas: “Não usamos modelos, mas pessoas base do block Pataxó. E foi diversificando as coleções, que depois
vendia em pequenas lojas em festivais pela Europa
reais. A marca é muito genuína, por isso chamamos
amigos e conhecidos.” Para a mais recente campa-
nha abordou um rapaz que estava à porta desta sua
printing, fora, “no meu Opel Corsa. Foi espetacular!” Mas, na-
turalmente, passados uns anos foi mãe e sentiu “que
precisava de estabilidade e de criar um negócio mais
loja e ele aceitou. ao qual junta consistente”. Ainda fez um mestrado em Marketing
Ana Penha e Costa acompanha todo o proces-
so, está em cima do design, da produção e da esco-
lha minuciosa de materiais e tons para as diferentes
agora o batik. e um curso de Modelagem em Barcelona, e a Kozii
nasceu em 2014, com esta herança de mundo e um
conhecimento técnico aperfeiçoado.
estações. No início da marca, uma fábrica no Norte
deixou-a ir para lá três meses, para perceber todo o
“Quis inovar Cecília Silva desenha a roupa e os padrões das
suas coleções, cuja imagem de marca é a estampa-
processo: “É importante estar perto do produto que
se desenha e vê-lo tornar-se realidade a partir de
um pouco gem de tecido à base do antiquíssimo block printing,
ao qual junta agora o batik, que segue o mesmo pro-
um pedaço de tecido, ver como a malha funciona, o
tingimento e acabamento, é o que torna a peça es-
dentro do cesso mas com uma base em cera. “Quis inovar um
pouco dentro do ‘artesanato’. Já pensei em fazer
pecial. Às vezes, é só uma costura diferente ou um
tingimento mais gasto, mais vintage, e quando não
‘artesanato’” prints digitais, porque há coisas que não consigo fa-
zer, mas terá sempre de ser em tecidos feitos à mão
consegues mesmo aquela cor tens de abraçar a mu- ou em tear. É muito fácil sair do caminho do feito
dança.” Começou por fazer as suas peças com ma- à mão e da tradição da impressão e da tecelagem”,
lhas em stock, por isso escolhia pouco, a princípio, sublinha. E este é o caminho que sempre quis, o do
mas já estava a ser sustentável. Os algodões que usa natural e do orgânico. Também utiliza a técnica ín-
são todos orgânicos, em diferentes gramagens, tex- digo de tingimento — “nem se consegue aquele azul
turas e acabamentos, “consoante é suposto ser mais de uma maneira artificial” —, a mud resist, que segue
quente ou mais fresco”. Só os fatos de banho de ho- processos idênticos mas para os tons de castanho, e
mem é que têm poliamida, porque “o algodão não o ikat, onde “o fio é tingido para quando é tecido em
seca com facilidade”. tear criar um padrão específico”.
Desenhou uma pequena e colorida linha de car- Planeia uma linha de casa nesta técnica e no in-
teiras e porta-moedas made in Portugal, que é um verno vai introduzir a bombazina: “Não se consegue
grande sucesso, e uma pequena linha de joalharia, tudo tudo orgânico, tens de confiar no teu fornece-
arte que estudou no ArCo: “Sempre gostei de joalha- dor, porque um carimbo qualquer de sustentabilida-
ria e conheci um rapaz que tem uma ‘fábrica’ de fa- de também se pode fazer em computador. É acre-
mília e não resisti”, conta. Desenhou peças em prata ditar e é um desafio.” Para o verão de 2023, a Kozii
banhada a ouro inspiradas no mar, com um tubarão loja, desta vez na Ericeira, onde costuma ir surfar. terá roupa em fibra feita a partir de caules de rosas e
como “forte símbolo”, que também se têm esgotado. Na praia dos Coxos, é dentro de água que encontra cada uma das suas estampagens é sempre diferen-
Recentemente fez uma parceria com a portuguesa os amigos: “A +351 sou eu.” te, “a tinta não sai da mesma maneira duas vezes, é
Sanjo que foi outro sucesso: “Foi a primeira marca tudo muito natural e são peças únicas. E estas téc-
de sneakers que apareceu em Portugal e tem fábri- MODA NATURAL E ORGÂNICA COM MUNDO nicas milenares estão quase a desaparecer”. Cecí-
ca própria. É sempre muito divertido trabalhar com Cecília Silva é filha do mundo e de pais diplomatas, lia Silva diz reencontrar-se com a antropologia em
criativos de outras marcas, por isso vamos ter várias por isso a sua natureza nómada nunca a abandonou. todo o lado, na maneira como escolhe fazer as coisas.
parcerias.” Nesta loja também vende outras marcas Sempre gostou de procurar tecidos e mandar fazer Nunca quis ter uma marca sustentável propria-
sustentáveis, algumas delas portuguesas, como os peças que não encontrava nas lojas e recorda-se de mente dita. “As pessoas que compram na Kozii é
cosméticos Bam & Boo, Biocol ou Superba. quando os pais viveram em Moçambique. “Passei que começaram a dizer-me que a roupa é sustentá-
Ana quer crescer mais no online, mas neste mo- parte do tempo lá à procura de capulanas e a fazer vel. Na verdade, não sei fazer de outra maneira.” Por
mento o negócio da +351 vem das duas lojas físi- peças nas costureiras, para mim e para as minhas enquanto, é nas duas lojas de Tavira, Lagos e Castro
cas na capital e dos espaços multimarca onde está amigas.” Depois de ter estado na Bélgica e em dife- Marim, assim como online, que as peças podem ser
representada (The Feeting Room, Be We, Loja de rentes cidades dos Estados Unidos, estudou Antro- encontradas, mas Cecília não fecha a porta a outras
Cá, Caju Comporta ou Feito de Portugal). Também pologia Cultural e Artística em Vancouver, mas foi no possibilidades. Uma loja na capital? “Talvez, mas
está na Alemanha (Zalando) e nos Estados Unidos Festival Boom que encontrou a sua mundividência. não queremos crescer muito. Viemos para aqui para
(Le’Semer). Agora vai estar presente num showroom “Identifiquei-me muito com aquela cultura, via- viver uma slow living e fazer uma slow fashion. Se as-
em Barcelona que trabalha com marcas de nicho do java imenso e queria continuar a viajar, mas man- sim não for, deixa de fazer sentido.” b
mundo inteiro, mas o seu sonho é chegar ao Japão. tendo-me em Portugal”, diz ao telefone a partir de
Em aberto está a possibilidade de abrir mais uma Tavira, onde mora. Surgiu então a ideia de fazer e@expresso.impresa.pt
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A carta que Tereza
tinha de escrever
E 30
FOTOGRAFIAS CEDIDAS PELA FAMÍLIA
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N
ada a distinguia de um frequentador típico do Ar-
quivo Nacional da Torre do Tombo. É verdade que
já tinha 88 anos, era baixinha e não tinha um visual
que desse especialmente nas vistas. Podia ser facil-
mente confundida com uma investigadora à pro-
cura de informação para uma tese sobre o Estado
Novo ou a resistência antifascista. Mas Tereza tinha
o ar decidido de quem ia numa missão. E a desta
mulher era a de mudar a história dela.
Na mão levava uma carta dirigida a Maria Perei-
ra, a então diretora da instituição onde estão guar-
dados documentos históricos e os ficheiros da po-
lícia política do regime salazarista. E fazia um pe-
dido algo incomum: queria juntar uma declaração
escrita ao seu próprio processo da PIDE, o 352/GT.
Três páginas manuscritas em papel de carta de boa
qualidade numa caligrafia irrepreensível. Começa-
va assim: “Por ser para mim de extrema importân-
cia porque sempre sofri de um facto que posso de-
finir de calúnia forjada contra mim própria e ainda
mais por não querer morrer sem repor a verdade,
que julgo agora legitimar (…), solicito que se digne
juntar ao processo a minha declaração.”
Passados quase 20 anos deste singular episódio,
nem Maria Pereira nem os funcionários da Torre do
Tombo que ainda ali trabalham se lembram da his-
tória da mulher que inventou uma calúnia contra si
própria por um bem maior. E que não podia morrer
sem repor a verdade. Quem era afinal esta mulher?
Tereza Arriaga era professora, pintora e lutou
contra o Estado Novo e o regime salazarista. Nasceu
em 1915, quase no fim do primeiro mandato do pri-
meiro Presidente da República eleito, Manuel Ar-
riaga, seu avô. O pai, Roque Arriaga, era filho e se-
cretário pessoal do mais alto magistrado da nação.
GUARDIÃO Jorge Arriaga
Ficou órfã de mãe aos três anos, depois de Maria
Oliveira é o herdeiro do
Isabel, que também pintava, ter sido vitimada pela
espólio dos pais que está
pneumónica. Foi criada por uma governanta que se guardado no rés do chão
encarregou de uma prole de quatro crianças. “É a de uma vivenda em Paço
única artista que nasceu no Palácio de Belém”, or- de Arcos. As obras de
gulha-se o filho, Jorge Arriaga Oliveira, que exer- Jorge de Oliveira e Tereza
ce medicina e é o guardião do espólio artístico dos Arriaga são um tesouro
pais guardado no rés do chão e nas várias divisões por descobrir e estudar
de uma vivenda com vista para o Tejo em Caxias.
Tereza é autora de “Vidreiros da Marinha Gran-
de”, um importante quadro do movimento neor-
realista português que está atualmente exposto no
Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira e cidade-oficina do vidro situada em pleno pinhal de
que talvez seja a sua obra mais conhecida. Foi pin- Leiria, onde reside entre 1944 e 1945”.
tado no início dos anos 50 e serviu de prova de es- Tereza ensina desenho técnico e industrial a
tudo (trabalho final) do curso superior de pintura. jovens rapazes, mas usa dinheiro do próprio bol-
A obra esteve mais de 40 anos exposta no átrio da so para comprar papel almaço, carvão e aguarelas
Escola Superior de Belas Artes, em Lisboa. que distribui aos alunos para que desenhem livre e
Apesar de vir de um meio privilegiado, ou talvez artisticamente. “Fez isso com autorização do dono
por isso mesmo, Tereza tomou a opção rara para a da fábrica. Foi das primeiras pessoas a pôr em prá-
época (em especial para uma mulher) de estudar tica o conceito do ensino pela arte”, nota Raquel
Belas Artes. Já no fim da adolescência, frequentou Henriques da Silva, professora, historiadora e espe-
o ateliê de pintura de Raquel Roque Gameiro e, de- cialista em arte contemporânea que lhe atribui um
pois, um curso noturno na Sociedade Nacional de lugar “muito importante” na história do neorrea-
Belas-Artes, onde era a única rapariga. Inscreveu- lismo em Portugal: “É uma figura muito importante
-se na ESBAL, onde foi aluna do Curso Superior de que ainda está por estudar. Não tem obra exposta
Pintura até ao terceiro ano. Nessa altura, decidiu em museus porque a partir de determinada altura
suspender a formação académica e artística para optou pelo ensino e pela maternidade e a pintura
ir trabalhar. Uma decisão que lhe mudaria a vida. deixou de ser o centro da sua vida.”
Segundo Luísa Duarte Santos, que dedicou uma Os alunos trabalhavam na fábrica e a jovem pro-
parte da sua tese de doutoramento sobre o movi- fessora começa a desenhá-los em papel de embru-
mento neorrealista a Tereza Arriaga, a ainda estu- lho e noutros materiais baratos enquanto os obser-
dante não podia dar aulas de arte porque não tinha va no local de trabalho. Faz esboços e estudos que
TEXTO concluído o curso e “vai então lecionar Desenho usará mais tarde na sua obra sobre os “meninos
RUI GUSTAVO para a Escola Industrial de Marinha Grande, uma operários” e que também estão expostos no Museu
E 32
NUNO BOTELHO
do Neo-Realismo. “Nesta série retrata sobretudo os mas de uma grande entrega depois de vencer a des-
gestos e os rostos cansados e enrugados pela desi- confiança inicial. Ficámos muito amigas.”
dratação das crianças que trabalhavam nas fábri- Em 1946, Tereza Arriaga expõe os desenhos dos
cas de vidro”, explica Luísa Duarte Santos. “Ela fez “moços que parecem homens que nunca foram
esses desenhos guiada pela emoção e pelo facto de meninos” pela primeira vez no Ateneu Comercial
naquela altura ser comunista”, acrescenta Raquel do Porto, na 1ª Exposição da Primavera. E um mês
Henriques da Silva. depois, na I Exposição Geral de Artes Plásticas, na
É nesta altura que também conhece Jorge de Sociedade Nacional de Belas-Artes. “Zé Clara”, um
Oliveira (1924-2012), um jovem artista 11 anos mais desses retratos, impressiona o pintor e escritor Má-
novo com quem viria a casar-se mais tarde e que rio Dionísio que lhe tece largos elogios e fica com
atingiria uma notoriedade artística que Tereza nun- a obra até que muita insistência e alguns anos de-
ca teve. “A minha mãe roubou-o a Leiria contra a pois volta à posse da pintora que nunca gostou de
vontade do meu avô que queria que o filho tomasse se separar dos seus trabalhos.
conta do negócio de venda de materiais de cons- No regresso a Lisboa, Tereza envolve-se na luta
trução da família e não concordava nem aprovava política mais ativa. Participa na fundação do Mo-
aquela união”, conta Jorge Arriaga Oliveira, na vi- vimento de Unidade Democrática (MUD), torna-se
venda de Caxias desenhada pelo pai, onde centenas simpatizante do PCP e cai na mira da PIDE. “Nunca
de obras do casal de artistas aguardam para serem foi militante, era rebelde demais para isso”, garan-
catalogadas, estudadas e, acima de tudo, vistas. te Luísa Duarte Santos. “Deixou de ser comunista
“Eles nunca gostaram de vender”, espanta-se no final dos anos 40, com o Mário Soares”, explica
ainda hoje Luísa Duarte, que conheceu o casal e tor- Jorge Arriaga Oliveira.
nou-se amiga de casa em 2000. “Eram muito unidos. É dirigente da Associação Feminina Portuguesa
Ele mais simpático e expansivo, ela mais reservada, para a Paz e uma das organizadoras da Exposição
E 33
MÃE O casamento com o
pintor Jorge de Oliveira e a
maternidade levaram Tereza
Arriaga a dedicar-se à carreira
de professora e a pôr a pintura
em segundo plano. Ainda
assim, é autora de um dos
mais importantes quadros da
história do neorrealismo e tem
obras expostas no Museu do
Chiado e no Museu do
Neo-Realismo
E 34
os francos necessários para o seu regresso. Pagou a na casa de Caxias. Obras de muita qualidade. Pare-
dívida depois de penhorar uma joia”. cíamos crianças numa loja de brinquedos.”
A história não convence Catela que mantém a Para este professor, “a obra de Jorge de Olivei-
jovem professora presa durante quatro meses à es- ra era mais profissional. Mais constante, de grande
pera que quebrasse e que confessasse a ligação ao qualidade. A de Tereza, mais amadora mas tam-
PCP e à resistência antifascista. Não aconteceu. Te- bém de muita qualidade”. O estilo evoluíra para
reza é libertada mas fica em liberdade condicional um abstracionismo geométrico. O responsável do
durante dois duros anos em que tem grande difi- museu leva emprestadas diversas obras de Jorge de
culdade para arranjar emprego como professora Oliveira e três quadros de Tereza que serão mostra-
por causa do ferrete de “pessoa desafeta ao Esta- dos ao público na exposição que o museu organi-
do Novo”. Finalmente, já no fim da década de 40, zou para o pintor, entretanto falecido. Atualmen-
a PIDE arquiva o caso. “Não foi possível apurar-se te, estão guardados no armazém desta instituição.
mais qualquer prova da responsabilidade. Propo- “Ele estava quase cego, parecia mais velho. Já
nho que o processo seja arquivado”, admite um andava nos 80 anos quando os conheci”, conta
relutante Catela. Luísa Duarte Santos. “Quando morreu, eu estava lá
Livre, Tereza volta à escola de Belas Artes, for- em casa. Foi um dia muito triste. Ela era mais ve-
ma-se e pinta finalmente a que será a sua obra mais lha mas tinha acabado de se inscrever num curso
conhecida “Os Vidreiros da Marinha Grande”, tra- de informática. Guiava um carrito, um Renault ou
balho final do curso feito a partir dos esboços que algo assim, e ia para todo o lado com ele.” Incluin-
tinha feito quando era professora daqueles miú- do a Torre do Tombo. “Disse-me que ia lá e o que ia
dos. “É uma obra muito boa não só pela qualidade fazer, que não podia ficar para a história como uma
mas também pela originalidade porque por regra ladra e eu disse-lhe que achava muito bem”, sorri
a temática neorrealista foca-se mais na agricul- ainda hoje Jorge Oliveira filho.
tura. Os vidreiros não são propriamente um tema A verdade que Tereza quis repor não ocupa mais
comum no neorrealismo”, explica Raquel Henri- de uma página escrita à mão. Explica que foi “acu-
ques da Silva. sada de pertencer ao Partido Comunista Português”
Por lei, o quadro pertence à ESBAL, que o guar- e obrigada a responder “a duas perguntas”: “O des-
dou “sem grandes condições”, garante Luísa Duar- tino que teve o saldo positivo de novecentos e cin-
te Santos. Só viu a luz da rua mais de 50 anos de- quenta e seis escudos e vinte e cinco cêntimos” e
pois já no século XXI para fazer parte da exposição “o nome da pessoa a quem entregou”. Como era
“Arte Pelo Povo, Para o Povo e Pelo Povo”, onde óbvio para ela, “a estas perguntas não era possível
ainda se mantém, no museu de Vila Franca de Xira. responder com verdade para não denunciar o nome
“Por mim, ficaria lá para sempre”, diz Jorge Arria- e destino” do dinheiro. Por isso, “levada na insis-
ga Oliveira, que nem a considera a obra-prima da tência das perguntas” e “por sugestão acabou por
mãe. “Tem outros quadros com mais valor artísti- admitir a hipótese de ter ficado com o dinheiro e se
co”. Três deles — “Movimento”, “Movimento II” e com ele ficou certamente o gastou em seu proveito”.
“Movimento III” — estão emprestados ao Museu Ou seja, para não denunciar ninguém, admitiu
Nacional do Chiado que já os expôs numa mostra ter ficado com o dinheiro que gastou na viagem a
dos quadros de Jorge de Oliveira. Paris. Mas a verdade é que “foi criada por suges-
que na altura fazia uma resistência eficaz contra o Já depois da prisão, Jorge e Tereza são pais e o tão” da própria “rubrica Grupo Feminino no jornal
regime de Salazar. pintor vai trabalhar para a Guérin onde é diretor ‘Avante!’ para publicação de todas as dádivas con-
Um mês depois, Tereza era interrogada por ou- criativo. Continuam a pintar muito e a não ven- seguidas em dinheiro para auxílio às famílias dos
tra celebridade da PIDE, o então inspetor-chefe der nada. “Tenho orgulho de nunca ter pertencido presos políticos, e nessa rubrica podem ler-se as
José Catela, que chegaria a número dois da polí- a grupos”, diz o pintor no documentário “Matéria verbas entregues pela declarante, muitas vezes do
cia política e era considerado o “verdadeiro cére- de Pintura” realizado pela neta, Iria Arriaga. O ca- próprio bolso, ou com contributo doutras pessoas,
bro” desta força repressiva. Acaba por confessar sal de artistas passa a ser um casal comum, dedica- como sucedeu neste caso”. Com esta declaração,
que “pensava que tinha dado o dinheiro ao Torga”, do ao filho, que percorre o país nas férias. Primeiro esperava a quase nonagenária que foi de Caxias à
mas admitiu ter ficado com 956,24 escudos “em num Volkswagen carocha e depois numa carrinha Torre do Tombo ao volante do próprio carro, “con-
proveito próprio”, depois de deduzidas as despe- “pão de forma” cujo interior em freixo americano tribuir para que possa fazer-se história da repres-
sas no lucro total de 1275 escudos. Usou o dinheiro foi desenhado por Tereza Arriaga, que documenta são no período do autodenominado Estado Novo”.
dos presos políticos “para ir a Paris ver exposições as férias em fotos que ainda estão nos álbuns de fa- O Expresso perguntou ao PCP se era possível
e museus” e para se “distrair”. Nega sempre qual- mília na vivenda de Caxias. identificar os beneficiários da campanha. “Não é
quer ligação aos comunistas e assume que ficou “A minha mãe era a melhor amiga dela”, conta possível identificar os números em que os apoios re-
com dinheiro que não lhe pertencia. Manuel Faria, pianista dos Trovante. “E queria mui- feridos terão sido publicados, já que, por razões que
Maria Lamas, jornalista e escritora e amiga da to ter uma aguarela que ela tivesse pintado. Fui fa- facilmente se compreendem, resultantes da repres-
família, é ouvida no âmbito do processo aberto pela lar com a Tereza e escolhemos uma. Como ela não são à atividade do PCP aplicada pelo regime fascista,
PIDE porque foi visitada por Tereza quando estava gostava de vender os quadros que pintava, propus não eram utilizados os nomes das pessoas de quem
em Paris. Declara que “mantém com essa senhora uma troca e compus uma música para ela: ‘Noites provinham os valores, mas pseudónimos ou outras
as melhores relações de amizade” e conta que “co- Acordadas’, que vai sair no meu álbum a solo “Out designações que não permitissem a sua identifica-
laboram ambas na revista ‘Modas e Bordados’ e no of Office”. Dei-lhe a partitura. O disco será publi- ção”, respondeu o partido que diz não ter qualquer
clube Nacional das Mulheres Portuguesas”. Já na cado em breve e Tereza foi talvez a primeira pessoa “informação” sobre o papel de Tereza Arriaga no PCP.
altura era ativista e feminista e portanto uma ini- a ouvir a música.” A história é agora contada como uma curiosida-
miga do regime. Garante que “não teve nada a ver Os quadros acumulam-se na casa de Oeiras até de por Raquel Henriques da Silva nas visitas guia-
com a viagem que Tereza fez a Paris” e muito menos que o nome de Jorge de Oliveira reaparece no mapa das que fazia à exposição onde estão os vidreiros
a “incumbiu de qualquer missão”. Pelo que sabe, artístico português. Primeiro, pela mão de Luísa adolescentes imortalizados pela pintora que perdeu
a amiga “foi a Paris estudar arte e pintura e pas- Duarte Santos que organiza uma exposição com a a última batalha da vida: “Escreveu mais do que
sou três semanas a visitar exposições e museus”. obra do pintor e da mulher no Museu do Neo-Rea- uma carta à ESBAL a pedir que lhe devolvessem o
E ainda por cima, “soube pela mãe que Tereza não lismo. Depois por Pedro Lapa, então diretor do Mu- quadro, mas disseram-lhe que não.” b
tinha dinheiro para voltar e pediu a um funcioná- seu do Chiado que ainda hoje se lembra da surpresa
rio da Casa de Portugal em Paris que emprestasse que sentiu na altura: “Tinham centenas de quadros rgustavo@expresso.impresa.pt
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200 anos da
independência
do Brasil
O “grito do Ipiranga” transformou-se em símbolo da
separação entre o Brasil e Portugal. Mas a autonomia territorial
já vinha de trás. A história completa não se conta num quadro
TEXTO
LOURENÇO PEREIRA COUTINHO
HISTORIADOR
E 36
D. PEDRO “A Proclamação da
Independência”, óleo sobre tela de
Francisco Renato Moreaux, 1844,
acervo do Museu Imperial do Brasil
E 37
7 de setembro de 1822, o príncipe D. Pedro, re- ponto de partida para um olhar fugaz pelo Brasil
A
gente do reino do Brasil, declarou nas margens do contemporâneo e seus complexos desafios.
rio Ipiranga a independência deste imenso territó-
rio sul-americano. A declaração não foi tanto con- COLÓNIA, REINO E IMPÉRIO
tra Portugal mas, sobretudo, contra as cortes cons- Em tão-somente sete anos o Brasil passou de coló-
tituintes que, em Lisboa, preparavam-se para votar nia a reino, e de reino a império, num percurso ful-
a primeira Constituição portuguesa. gurante que, apesar das aspirações de autonomia das
O chamado “grito do Ipiranga” constituiu-se diferentes parcelas do seu imenso território, logrou
desde logo como o momento simbólico em que o manter a unidade. Isto só foi possível graças a todos
Brasil se separou de Portugal. No entanto, o terri- os passos anteriores. Para começar, o Brasil tornou-
tório de há muito que era quase autónomo. Tal tor- -se um Estado diretamente tutelado por um gover-
nara-se uma inevitabilidade cerca de 14 anos antes nador-geral logo em 1548, numa fase precoce da sua
quando, por “sugestão” do embaixador britânico, colonização. A medida marcou o fim do tempo da
o príncipe regente D. João decretou a abertura dos divisão por capitanias e contribuiu para a unidade
portos brasileiros ao comércio internacional (28 de um território ainda costeiro mas já de dimensão
de janeiro de 1808). Este foi o momento em que a significativa, se bem que longe da imensidão poste-
ainda colónia deixou de precisar de Portugal como rior. Também porque a Coroa portuguesa soube ler
intermediário do seu comércio com a Europa. De- a evolução económica e demográfica do território, o
pois de mais de um século a depender quase ex- que motivou o marquês de Pombal a ordenar a trans-
clusivamente do Brasil, aquele constituiu um sério ferência da capital de Salvador da Bahia para o Rio
revés para Portugal, com repercussões profundas de Janeiro (1763).
nas décadas seguintes. Sem o Brasil, Portugal ficou Pode afirmar-se que sem o vice-reino não te-
obrigado a reinventar-se. ria havido reino, sem este não haveria império, e
Paradoxalmente, em 1822 o Brasil aspirava à sem império não haveria Brasil tal como o conhece-
independência não porque fosse uma colónia mas, mos. Este processo teve um inquestionável contri-
precisamente, para não voltar a sê-lo. Em 1815, o buto português. Num tempo em que alguns procu-
território tinha sido elevado a reino, ficando com ram sublinhar os aspetos negativos — que os houve
um estatuto equiparado ao de Portugal. No entan- — da História portuguesa, importa lembrar o muito
to, as partes que compunham o novo Reino Unido de positivo que foi feito em oito séculos. Neste as-
de Portugal, Brasil e Algarves partilhavam o mes- peto, a unidade territorial do Brasil foi, claramente,
mo soberano — D. João VI — mas não os mesmos uma realidade para a qual Portugal deu um contri-
interesses. Na América do Sul, o Brasil assumia-se buto decisivo, mesmo que o tenha feito recorrendo,
como a capital da monarquia, com vocação impe- por vezes, a métodos que, vistos hoje, afiguram-se
rial e aspirações a tornar-se um estado tão relevan- reprováveis.
te quanto os Estados Unidos da América; pelo con- Por outro lado, o Brasil foi crucial para a manu-
trário, na Europa, Portugal estava sob tutela política tenção da independência portuguesa. Assim, a opção
e militar britânica e não podia aspirar a mais que atlântica e a neutralidade no espaço europeu dese-
manter-se formalmente independente. nhadas a partir do início do reinado de D. João V só
De certa forma, o “grito do Ipiranga” não signi- foram possíveis com o apoio da Grã-Bretanha. Esta
ficou pois a independência de uma colónia, mas sim apoiou Portugal por questões estratégicas mas, tam-
a secessão de um reino. Uma separação que, subli- bém, pelo muito que lucrou com o comércio brasi-
nhe-se, mais que rejeitar a monarquia dos Bragança, leiro. Primeiro de forma indireta, com a distribuição
pretendia libertar-se do controlo das cortes vintis- para a Europa dos bens brasileiros desalfandegados
tas. No referente ao Brasil, estas pretendiam revogar no porto de Lisboa; depois já diretamente, após a
o tratado de navegação e comércio com a Grã-Bre- abertura dos portos brasileiros ao comércio inter-
tanha — assinado em 1810 e que possibilitava a apli- nacional. Nesta perspetiva, não é descabido susten-
cação de taxas preferenciais aos produtos britânicos tar-se que, sem o Brasil, o reino de Portugal dificil-
— e colocar os governos provinciais brasileiros sob mente teria permanecido independente na Europa
a dependência das cortes de Lisboa. Caso este pro- do antigo regime. O preço a pagar foi alto — a de-
jeto fosse avante, o Brasil ter-se-ia previsivelmente pendência da Grã-Bretanha —, mas as alternativas
fragmentado em estados independentes, a exemplo eram quase nulas.
dos territórios da América espanhola. No entretanto, o Brasil não foi imune a aspirações
Esta é pois uma narrativa breve dos passos que, autonómicas, sobretudo das regiões mais a norte,
há 200 anos, conduziram ao “grito do Ipiranga”, centro político e económico do território até ao iní-
cio do ciclo do Ouro, que recentrou o foco do inte-
resse português nas latitudes mais a sul (finais do
foi, claramente, uma realidade Janeiro que ocorreu um movimento no então centro
económico do território, a região de Minas Gerais
para a qual Portugal deu um (Inconfidência Mineira, 1789). Poucos anos depois, a
instalação do príncipe regente e da sua corte no Rio
E 38
E 39
o protagonismo do Brasil passou de transitório a per- Não sendo uma personalidade impositiva, procu-
manente. Esta ideia foi reforçada com a já referida rava adiar as decisões até ao limite, isto enquanto
criação, em 1815, do Reino Unido de Portugal, Brasil e tentava descortinar uma solução moderada no meio
Algarves. Após a morte de D. Maria I (1816), o regen- de ânimos cada vez mais extremados. A decisão de
te D. João foi, inclusive, o primeiro monarca portu- nomear o príncipe real D. Pedro como regente do
guês a ser aclamado rei fora do território de Portugal. Brasil aquando do seu regresso a Portugal prova esta
Desde a sua chegada ao Brasil que o príncipe re- afirmação. Intuindo que ficaria condicionado pelas
gente D. João (D. João VI desde 1816) abraçou o pro- cortes mal chegasse a Lisboa, optou por deixar o seu
jeto de expansão do território para a banda oriental herdeiro no Brasil, com mãos livres para defender a
do Rio da Prata, no atual Uruguai. Esta foi anexada autonomia do território.
em 1821, sendo então nomeada como região Cis- De resto, a autonomia brasileira, idealizada como
platina. Este interesse descurou o desenvolvimento parte integrante de uma confederação que uniria dois
das regiões do nordeste. Foi neste enquadramento reinos com órgãos legislativos e executivos próprios,
que se deu a revolta pernambucana de 1817. Os seus era defendida por José Bonifácio de Andrada e Sil-
mentores proclamaram a república e, inspirados pe- va, um liberal-conservador, mais tarde identificado
los sucessos das revoluções americana e francesa, a como um dos patriarcas da independência e, tam-
igualdade de direitos e tolerância religiosa. A custo, bém, por António Carlos Andrada e Silva, que o fez
os regimentos fieis à Coroa portuguesa conseguiram nas constituintes em Lisboa.
dominar a situação, mas o acontecimento deixou Mas que sentido faria um Reino Unido separado
raízes em Pernambuco e noutros pontos importan- por um oceano e sem laços comerciais ou políticos
tes do nordeste. comuns? Tanto brasileiros quanto portugueses não
A insatisfação com o protagonismo do Rio de Ja- deixaram de fazer esta pergunta. Aliás, a maioria dos
neiro não foi contudo um exclusivo das regiões brasi- deputados brasileiros eleitos às cortes constituintes
leiras. Em Portugal, a situação era crítica. Desde 1808 eram, em grande parte, partidários da independên-
que o reino, formalmente entregue a uma regência e, cia. Do lado português, muitos também a defendiam.
depois, a uma junta governativa, era, na prática, um Realisticamente, Manuel Fernandes Tomás, um dos
protetorado britânico. A insatisfação acentuou-se elementos preponderantes do vintismo, considerava
após 1815, com a notícia da derrota de Napoleão e da mesmo que a economia brasileira tinha passado ir-
criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. reversivelmente para mãos inglesas. Assim, se o ter-
Apesar dos pedidos insistentes dos portugueses, D. ritório optasse por seguir o seu caminho, que “pas-
João VI não revelava qualquer interesse em regressar sasse o sr. Brasil muito bem”.
a Lisboa. Assim, o pronunciamento militar ocorrido No começo de outono de 1821, a relação das cor-
na cidade do Porto em agosto de 1820, ponto de parti- tes com o príncipe D. Pedro passou um ponto sem
da para o movimento “vintista”, pretendeu de início retorno. Então, as cortes votaram o regresso de D.
fazer o rei regressar à metrópole e reverter os tratados Pedro a Portugal, nomeando uma junta governati-
comerciais com a Grã-Bretanha, atos que tinham re- va para o seu lugar. Alarmadas, as elites brasileiras
duzido Portugal à insignificância económica. pró-independência promoveram então um abai-
O processo vintista, que de início pretendia a xo-assinado para que D. Pedro ficasse no território. governo seria em Portugal. Assim, a abdicação do rei
“regeneração da pátria”, evoluiu contudo para um Esta iniciativa recolheu cerca de 8000 assinaturas. seria automática no caso deste sair de Portugal me-
caminho liberal, que visava retirar o protagonismo Entregue em finais de 1821, a petição foi respondi- tropolitano, aplicando-se igual disposição ao herdei-
político ao rei e entregá-lo aos cidadãos. Seriam os da pelo regente do Brasil a 9 de janeiro de 1822. Na ro do trono (artº 125). Para reforçar a ideia, as cons-
representantes destes, reunidos em cortes soberanas, altura, D. Pedro declarou que se era “para o bem de tituintes tornaram a situação de D. Pedro insusten-
que deveriam tomar as principais decisões políticas, todos e felicidade geral da nação” estaria pronto a tável, isto ao estabelecer que “a delegação do poder
incluindo a redação de uma Constituição e, também, permanecer, afirmando então: “Eu fico no Brasil!” executivo” no Brasil não poderia integrar “príncipes
a regulação do enquadramento do Brasil na monar- Poucos dias depois, o príncipe nomeou José Bonifá- ou infantes” (artº 129).
quia portuguesa. cio de Andrada e Silva como ministro do reino e dos O príncipe D. Pedro não deixou estas disposições
Como seria de prever, o movimento vintista foi negócios estrangeiros do Brasil. Desvalorizado face sem resposta. A 3 de junho de 1822 convocou uma
recebido no Brasil com apreensão. Não por ser libe- ao 7 de setembro, o dia do “fico” foi tão importante constituinte brasileira, vincando que não reconhe-
ral — parte da elite brasileira também o era — mas quanto o do “Ipiranga”. A partir de então, o processo cia autoridade à constituinte portuguesa. Indo mais
sim por pretender o regresso da família real e a en- de independência brasileira assentou definitivamen- além, declarou que os regimentos vindos de Portugal
trega do processo político às cortes. Em consequên- te na ideia de um Estado uno enquadrado por uma com o intuito de impedir as aspirações independen-
cia, ocorreram rebeliões nas guarnições de Belém e monarquia. O Brasil continuaria a ser um reino ou, tistas brasileiras seriam considerados inimigos (1 de
Salvador. Pressionado, D. João VI foi obrigado a re- quem saberia, poderia até tomar a forma de império. agosto de 1822). As relações entre o herdeiro do trono
gressar a Portugal em abril de 1821. Entretanto, em Portugal, as cortes constituintes do Reino Unido e as cortes soberanas da monarquia
Durante décadas, tanto a historiografia portugue- vintistas continuaram a discutir a nova arquitetura portuguesa estavam irreversivelmente quebradas.
sa como, sobretudo, brasileira tenderam a menorizar da monarquia portuguesa. Os constituintes confir- Numa derradeira tentativa de sujeitar D. Pedro, as
D. João VI. Apesar das suas indecisões e tibieza, o rei maram que esta manteria a estrutura de um Reino cortes expediram um despacho para o Rio de Janeiro
não era, porém, destituído de sagacidade política. Unido (artº 20), mas asseguraram que a sede do seu a revogar a convocação da constituinte brasileira. No
mesmo correio, seguiu um outro despacho a intimá-
-lo a embarcar imediatamente rumo a Lisboa. Estas
E 40
sistema presidencial, em que o Presidente detém o
poder executivo, a eleição reveste-se de um carác-
ter ainda mais decisivo.
O Brasil chega a estas eleições politicamente
polarizado. De um lado Jair Bolsonaro, o incum-
bente, um populista de pendor militarista, apoiado
por sectores ultraconservadores de grande influên-
cia, como as igrejas evangélicas. Durante quatro
anos, comprovou que é um homem errático e ab-
solutamente impreparado para o cargo. Do outro
lado, Lula da Silva, antigo sindicalista e depois Pre-
sidente que, gradualmente, moderou o seu discurso
e aproximou-se da social-democracia.
Porém, se Jair Bolsonaro está refém dos ultra-
conservadores, o antigo Presidente Lula não conse-
gue apagar o fantasma da “Lava Jato” e a perceção
de ter-se tornado um político igual a todos os ou-
tros. Além dos problemas com a Justiça, a que Bol-
sonaro está sempre a apontar o dedo, as posições
dos dois rivais apenas se aproximam na questão da
invasão da Ucrânia pela Rússia, embora por moti-
vos substancialmente diferentes.
Em março, Lula acusou Zelensky de querer pro-
tagonismo, de não ter feito tudo para evitar a guer-
ra, e de não estar a fazer tudo para encontrar uma
solução negociada. Lula não deixa de reconhecer
CORAÇÃO A relíquia
de D. Pedro IV culpas a Putin mas reparte-as, também, pelos Esta-
(D. Pedro I do Brasil) dos Unidos e União Europeia. Por sua vez, Bolsona-
atravessou o ro, que se encontrou com Putin já depois da inva-
Atlântico para o são, é um admirador do estilo musculado do auto-
bicentenário da crata do Kremlin. Os dois Presidentes reafirmaram
RUI DUARTE SILVA
E 41
Entrevista
Carlos Lopes
Se queríamos
uma ilustração
da hipocrisia
relativa a África,
a pandemia
forneceu-a”
É a partir da Amazónia que o antigo
braço-direito do secretário-geral das Nações
Unidas Kofi Annan fala ao Expresso sobre
um mundo em mudança. Uma longa conversa
em que o economista guineense, coautor
do livro “Mudança Estrutural em África”,
aponta o caminho para o desenvolvimento
sustentável daquele continente
E 42
E 43
FOTOGRAFIAS DAVIDE BELLUCCA
A comunicação sobre África passa da
A
ser completamente dependente das a chita, porque nós temos de andar
exportações de matérias-primas sem mais depressa do que o resto do mun- “Corrida para África” para a “África
transformação. E os fenómenos climá- do. Temos aqui uma espécie de fenó- em Ascensão”, depois enterra-se esta
ticos não mudam essa armadilha. Eles meno de rattrapage, um salto, que te- perceção e volta a anterior. Defende
até podem oferecer algumas oportu- mos de dar para permitir chegarmos que a perceção da fraqueza do conti-
nidades que estão descritas no livro, a um nível de estabilização da nossa nente e a falta de uma transformação
como a industrialização verde, e como estrutura económica correspondente estrutural mais aprofundada, combi-
fazer uma transformação agrícola mais ao nosso crescimento demográfico. nadas, empurram o continente para o
amiga do ambiente, mas não muda Não podemos fazê-lo ao mesmo rit- subdesenvolvimento. Como são feitas
nada de essencial. Não se permitiu aos mo de até aqui, temos de recuperar as escolhas do ponto de vista da União
países africanos fazerem as transfor- um espaço e temos de fazê-lo de uma Africana, dos governos individuais e
mações macroeconómicas necessárias forma consentânea com o crescimen- do seu ponto de vista?
para a sua transformação estrutural e a to demográfico. Tenho algumas dúvi- Temos aqui dimensões continentais
inflação mostra isso. Expõe os africa- das em relação à transformação agrí- que são comuns ao conjunto de África
nos mais do que os outros, porque têm cola africana, através do modelo da e que incluem a África do Norte — pa-
menos instrumentos à sua disposição, revolução verde. Foi muito defendi- radoxalmente os organismos tratam-
cadeira de Introdução ao Pensamento, nomeadamente em matéria de políti- do pelo meu grande mentor e mestre -na sempre como se fosse uma enti-
de Carlos Lopes, já completou um ano ca monetária. A questão dos alimentos Kofi Annan, ele esteve por trás da cri- dade diferente do resto da África sub-
na Universidade de Bissau. É o tipo de é mais uma vez uma demonstração de ação da AGRA (African Green Revo- sariana e eu acho que é uma herança
reconhecimento que o economista gui- que não demos atenção suficiente à lution Agency), e eu sei que há mui- de interpretação colonial ligada à ideia
neense “esperaria vir a ter mais tarde” transformação agrícola que permitiria tas críticas em relação à forma como da África negra e da África branca. Es-
considerando-o “uma indicação do aumentar o rendimento por hectare a AGRA e as ideias da revolução verde tas questões continentais, como a de-
apetite dos jovens africanos” por co- em África e, sobretudo, poder fazê- têm sido aplicadas até aqui. Podemos pendência de matérias-primas, o facto
nhecimento. alto-comissário da União -lo com uma pegada de carbono me- olhar para o rendimento por hectare de haver uma industrialização pouco
Africana (UA) para as relações com a nos significativa do que a dos grandes de uma forma absoluta, precisamos desenvolvida que se mede através de
União Europeia (UE), foi braço-direito produtores do mundo. Temos a maior de produzir mais quilos de qualquer valor acrescentado manufatureiro, e
do secretário-geral das Nações Unidas reserva de terras aráveis não utilizadas, coisa e, nesse sentido, podemos fa- outras, são características que temos de
Kofi Annan e secretário-executivo da temos uma utilização muito baixa da zê-lo com muitos fertilizantes, com conseguir discutir de uma forma con-
Comissão Económica das Nações Uni- irrigação, etc. No essencial, não temos a destruição do solo e do ecossistema tinental e, por isso, a zona de comércio
das para África. É professor da Escola de mudar os prognósticos. económico que protege as populações livre do continente é um ponto fulcral
de Governação Pública Nelson Mande- mais vulneráveis. Ou podemos fazê- para poder discutir as questões eco-
la da Universidade da Cidade do Cabo, Qual é a sua opinião sobre a Revolu- -lo tendo em conta as dimensões de nómicas com mais peso e mais capa-
África do Sul, onde vive, conselheiro ção Verde defendida por Kofi Annan? equidade e a proteção de uma deter- cidade. Depois há muitas característi-
de instituições, Presidentes e Gover- Penso na exigência de velocidade das minada cultura económica. Sabemos cas nacionais que não podem senão ser
nos e autor de extensa obra. O livro medidas tendo em conta o crescimen- que a grande fragilidade dos países do resolvidas em dimensões nacionais ou
que escreveu há dois anos com o zim- to da população em África e a rapidez Sahel e do Corno de África tem mui- sub-regionais. Mencionei uma, o facto
babuense George Kararach “Mudança com que uma disrupção do mercado to a ver com a falta de adaptação dos de a zona do Sahel ter o problema da
Estrutural em África” é lançado ago- alimentar global afeta as populações pastoralistas ao modernismo econó- integração dos pastoralistas, e não é um
ra em tradução portuguesa. Trata das africanas. Estou errada? mico, que acabam por ser margina- problema só da Mauritânia ou do Mali,
obsessões reflexivas fundamentais de Não, não está errada, aliás não é por lizados e ficam à mercê dos grupos do Níger ou do Chade, é um problema
uma das vozes globais com mais vitali- acaso que o meu símbolo fetiche é jiadistas. desses países todos e não adianta fazer
dade na criação de pensamento sobre o
continente do futuro: África, perceções
deturpadas, novas narrativas e desen-
volvimento no século XXI.
E 46
o contrário: gostaria muito que não populações para as mudanças climá- espera. O que isto nos ensinou foi que muito fortes com a África oriental. Há
houvesse disrupção económica, mas ticas, mais do que todos os relatórios os africanos precisam de resolver os uma proliferação de atores que estão a
que houvesse disrupções políticas no juntos. Por exemplo, neste momento seus problemas de forma estrutural. utilizar África como proxy, que se dão
sentido de o sistema político ser mais estou na Amazónia e neste arquipé- Os africanos pediram que se montas- conta de que África é o futuro por ra-
flexível e menos turbulento e tenso. lago a dieta alimentar é baseada em se a capacidade de fabricar as vacinas zões demográficas, por uma questão
camarão de rio, do Amazonas. Des- e que se suspendessem os direitos de de mercado, e, por isso, todos se estão
Em que ponto está a promessa de fi- de que aqui cheguei há uma semana é propriedade intelectual relacionados a posicionar. Nesse posicionamento há
nanciamento climático, a ser entregue um problema sério conseguir arranjar com a investigação que produziu as uma indústria de informação e inteli-
pelas economias desenvolvidas às suas camarão. As pessoas interrogam-se vacinas, tudo isto foi recusado até ago- gência militar que faz com que toda a
congéneres em desenvolvimento no onde foi ele parar e ele está a respon- ra. Quando as fábricas estiverem mon- gente saiba um pouco da história, mas
período de 2020-2025? der às mudanças climáticas refugian- tadas acaba o acesso global dos africa- ninguém quer contá-la ao parceiro
Nós temos a agenda das Nações Unidas do-se onde pode sobreviver. Quando nos às patentes. Se nós precisássemos para não beneficiar o seu inimigo. No
2030, estamos em 2022, faltam oito estive na Europa, havia temperatu- de uma ilustração da hipocrisia a pan- meio disto há Estados muito frágeis do
anos. Quando foi lançada, em 2016, ras em vários lugares superiores a 40 demia ofereceu-a. ponto de vista militar e da governação.
provocou nas instituições financei- graus, criando problemas sérios de A doutrina da ONU da manutenção de
ras internacionais capitaneadas pelo incêndios, seca, etc. São fenómenos a O mercado interno africano seria por paz está ultrapassada e não produz re-
Banco Mundial um documento com que África já está acostumada porque si uma forma de viabilização de gran- sultados. Os casos mais evidentes são
o título ‘Dos biliões aos triliões’. Era quando se fala da necessidade de re- des projetos de investimento, como na as intervenções no Sudão, na Líbia e
uma espécie de declaração que dizia duzir a temperatura média do plane- área dos recursos energéticos? na República Democrática do Congo
que, para aplicar essa agenda, preci- ta em 1,5% é uma média. Em África Existem dois projetos de gasoduto e eu (RDC), onde existe uma força desde
sávamos de aumentar o nível de apoio já temos um aumento de temperatura acho que os dois têm futuro. O projeto a independência em 1963, uma coisa
e de acesso financeiro de capital aos médio superior a quatro graus centí- transariano em que o gás sai da Argélia absurda!
países mais vulneráveis. O que acon- grados. As cheias no rio Zambeze, em e da Nigéria passando a parte da Nigé-
teceu foi exatamente o contrário. Ago- Moçambique, costumavam acontecer ria através do Sara, e o projeto marro- A revolta da população em Goma,
ra sabemos pela OCDE que houve um a cada dez anos, depois passou para quino de fazer uma conexão costeira, RDC, está a responder a esse absurdo.
decréscimo, em termos relativos, da cinco, no ano passado houve dois ci- Marrocos não tem gás, mas precisa de A população vai começar a atacar as
ajuda ao desenvolvimento desde essa clos de cheias. Eu já não vejo muita re- gás, potenciando a conexão com a Ni- forças da ONU. Todas as forças jiadis-
altura. Diz-se que tal instituição está sistência no abraçar da questão climá- géria através dos fosfatos, porque são tas estão a alimentar-se destas contra-
ao nível recorde de desembolsos de tica, vejo resistência nas políticas. Por dois grandes produtores de fosfatos. dições, do facto de não haver transfor-
projetos ou de ajuda, mas esquecem- outro lado, daí estar dividido, eu tenho Vai ser uma questão de velocidade, mação económica suficiente para que
-se dois pormenores: contabiliza-se consciência de que não só em relação ambos têm capacidade de aliviar a Eu- as pessoas tenham algo a perder. O que
em dólares mas no valor de custo do à questão climática, mas em relação a ropa, ambos têm gasodutos em direção se tem a perder numa aldeia remota
ano em que se prometeu, em 2016. E todas as questões, e dou o exemplo da à Europa. Mas o fundamental é poder do Sahel? Nada! As pessoas viviam da
o segundo aspeto é que os países mais taxação das grandes multinacionais utilizar o gás africano, como os poten- pastorícia, que não tem futuro.
vulneráveis estão quase todos em Áfri- das tecnologias, há uma elite que está ciais usos do hidrogénio e das energias
ca, onde a população aumentou consi- à frente de todas as propostas e essa renováveis africanas para a eletrifica- Inscreve-se nisso a visita do Presi-
deravelmente. Esse aumento provocou elite descolou da realidade. Pensam ção e industrialização de África. Para dente francês Macron, do secretário
mais consumo interno, este aumentou que quando proclamam um deter- isso precisamos de uma transformação de Estado norte-americano Blinken e
o PIB e, portanto, em termos relativos minado objetivo que o problema está da noção de risco porque a África tem do chefe da diplomacia russa Lavrov
quer o PIB quer o PIB per capita di- equacionado e que depois o trabalho sempre um preço de risco muito ele- a África?
minuíram consideravelmente. Temos é para os outros fazerem. Acabamos vado que não corresponde à realidade. O protagonismo dos africanos a nível
menos ajuda ao desenvolvimento do por ter uma desconfiança global que Não é concebível que o continente que internacional continua tímido, mas
que tínhamos antes das promessas. acompanha as proclamações globais: até à pandemia mais crescia não tenha está mais forte do que há dez anos.
As promessas só fizeram foi diminuir as pessoas não acreditam porque se um único país fora da categoria de lixo Basta ver as proclamações dos Pre-
a ajuda. Isto viu-se durante a pande- promete e não acontece. do ponto de vista das notações. É in- sidentes africanos e as decisões da
mia, está a ver-se agora com a infla- concebível que um país como a Ucrâ- UA, para se dar conta de que há um
ção, e nos acessos dos países africanos O que se aprendeu com a pandemia e nia, com os problemas que está a viver, protagonismo novo, os africanos ba-
aos alimentos, pode ver-se no finan- a Covax? Vão produzir-se vacinas em tenha melhor classificação de notação tem mais com a mão na mesa. Estan-
ciamento climático. Há várias pro- África? do que países que estão a crescer 3% e do a caminho, como estamos, de um
messas de financiamento climático Os africanos foram muito claros no de- 4% ao ano em África. mundo mais polarizado, todos os vo-
que não foram cumpridas e as pessoas bate da Covax, dispuseram-se desde o tos contam. É preciso ir para África ver
podem interrogar-se, porque acham início a comprar vacinas. Foi montado Cooperação para a paz e seguran- quantos votos se mobilizam nas ins-
que todas as semanas há uma inicia- um dispositivo para as licitações co- ça com a UE já teve melhores dias, há tâncias internacionais como o Conse-
tiva qualquer de apoio aos países afri- muns dos países africanos com as far- terrorismo no Sahel, mercenários em lho de Segurança das Nações Unidas.
canos. A resposta é simples, é sempre macêuticas, mas ficaram no fim da fila. Cabo Delgado... Aponta a marginali- No fundo é isso que faz o Macron, o
o mesmo dinheiro reciclado. As farmacêuticas não queriam vender- zação económica das zonas em confli- Blinken, o Lavrov, a caça ao voto. Os
-lhes, mesmo depois dos pagamentos to, como combater isto? dirigentes africanos mais corajosos
Não serão as temperaturas inéditas, feitos. As vacinas só foram entregues a Há uma luta de influências em África. batem o pé com mais força. Os países
acima de 40 graus neste verão na Eu- seguir às entregas a outros países que Para mim, ela não se limita ao Oci- mais fracos e pequenos ficam felizes de
ropa, eficazes a despertar consciên- compraram mais do que precisavam. dente e à Rússia, tem muitos prota- ter o reconhecimento internacional e
cias no mundo rico? A quem cabe a Quiseram evitar que os africanos en- gonistas, como a China, os países que fingem que estão do lado de quem for
ação climática? trassem na fila das compras! Nesta hi- querem ter um protagonismo político para tirar vantagens de curto prazo. É
Tenho um pensamento dividido. Por pocrisia entra também a China que baseado no islão, incluindo os países um jogo cínico. b
um lado, temos os fenómenos climá- disse que enviaria mil milhões de va- do Golfo e a Turquia. A Índia, país que
ticos extremos que estão a alertar as cinas para África, e ainda estamos à tem tradicionalmente laços comerciais cperes@expresso.impresa.pt
E 47
EM SETEMBRO
VEJA MAIS
O desejo
do desenho
Maria Antónia Siza morreu com apenas 32 anos.
Desenhava como quem respira. Deixou uma
obra surpreendente, ainda pouco conhecida e
quase nada estudada. Meio século depois,
Serralves abre as portas para o mundo de Tótó
TEXTO VALDEMAR CRUZ
E 49
O
silêncio, a ausência, a inatividade,
podiam durar semanas. Meses,
até. De repente, a partir de um
nada aparente, começava a
desenhar. Intensamente. Sem rede.
Sem programa. Sem fronteiras.
Acontecia-lhe o desejo do desenho.
As folhas em branco ficavam
prenhes de sedução, ironia,
sarcasmo, humor, revolta, erotismo,
alegria. Sempre com uma profunda
noção de feminilidade. Segurava
a pena fina, abria o frasco de tinta
nanquim e partia. Viajava por
mundos outros. Criava universos
paralelos. Oníricos. Por vezes
violentos. Os corpos amontoavam-
se. As formas distorciam-se. Os
desenhos sucediam-se. Havia uma
voragem feita urgência de desenhar.
De preferência à noite. Aquela mão,
aqueles olhos, aqueles sentidos
despertos tornavam-se imparáveis.
Desenhava com a segurança de
quem parecia treinar o tempo todo.
Apesar daqueles intervalos de
vazio. Desenhava até a exaustão. de novo na Árvore e depois no Mais tarde, Álvaro Siza resolve doar Bernardo Pinto de Almeida — autor
Dez, vinte, trinta desenhos num Círculo de Belas Artes, em Madrid. a Serralves 100 desenhos e é com do texto do catálogo na segunda
serão. A tentativa e erro eram o Uma sufocante discrição, um base nesse corpo que se estrutura mostra, em 2002 —, teve “a ousadia
próprio desenho. Nasciam de um luto quase eterno, tornava as a mostra agora anunciada. Ao de figurar o desejo feminino, uma
traço só. Se um não lhe agradava, circunstâncias de vida de Maria longo de alguns meses, Philippe coisa que em Portugal não se fazia,
amarrotava-o, atirava-o para o chão Antónia uma espécie de interdito, Vergne, diretor do Museu, visitou já que imperava uma arte muito
sem qualquer angústia existencial. até pelo drama contido na sua os arquivos de Álvaro Siza para casta, muito escondida, como
De quando em vez, Álvaro Siza morte, na cama, às 6h30 horas da proceder a uma seleção. Fê-lo reflexo de um traço cultural do
recuperava alguns. Um ou outro, manhã de 11 de janeiro de 1973, deliciado, como diz ao Expresso, fascismo português”.
recolhido por amigos e depois nos braços do marido, Álvaro Siza. com um verdadeiro sentido de Choupina adota a biografia de
passado a ferro para ser alisado, Com a indispensável colaboração do descoberta de um trabalho com vida como fio condutor de uma
estará na exposição “Maria Antónia arquiteto, incansável dinamizador o qual não estava familiarizado. exposição organizada em oito
Leite Siza, 50 Anos Depois”, da divulgação do seu legado, Acentua, porém, “a sensação de sequências na qual estão incluídos
com inauguração agendada para o Expresso, na edição de 7 de estar a explorar um mundo muito 120 desenhos, dado 20 folhas terem
quinta-feira, dia 8, no Museu de novembro de 2015, contava pela íntimo. Quase como se estivesse a verso e reverso. Há ainda uma série
Arte Contemporânea de Serralves, primeira vez a intensa história de ultrapassar os limites da linha de de 20 linogravuras praticamente
onde permanecerá até fevereiro do vida de uma mulher rara cuja obra confidencialidade”. inéditas para a maioria do público,
próximo ano. acabava em parte de ser doada à Já para António Choupina, mais uma placa gravada em linóleo.
Tótó, como durante algum tempo Fundação Gulbenkian. O esboço comissário da exposição, o Do total de três óleos cuja existência
assinou e como era nomeada pelos de biografia surgia como tema de universo de Tótó tornou-se-lhe é conhecida, um deles, o seu
mais próximos, revelava uma capa da Revista E num trabalho cada vez mais próximo, até por primeiro trabalho a ser vendido,
prodigiosa capacidade inventiva. intitulado “Os Mistérios de Maria ter organizado outras mostras em 1959 durante a VIII Exposição
Não obstante uma existência tão Antónia”. com a presença de trabalhos desta Magna da Escola de Belas Artes
fugaz como um corpo celeste, mulher nascida a 25 de maio de do Porto (ESBAP), tem paradeiro
deixou centenas de desenhos, 1940, no Porto, num palacete já incerto. Os outros dois estão na
linóleos, um ou outro quadro a óleo. inexistente situado da Avenida da Gulbenkian. Desses, ver-se-á em
Em vida expôs uma única vez, na Boavista. Nos últimos meses tentou Serralves “Modelo”, retrato de
cooperativa Árvore, no Porto, em MARIA ANTÓNIA LEITE SIZA, penetrar tão fundo quanto possível Maria, uma para muitos lendária
1970. Só 32 anos depois a sua obra 50 ANOS DEPOIS nos caminhos percorridos e nas modelo nu da ESBAP, apresentada
volta a ter visibilidade pública, com Serralves, Porto, 8 de setembro a vivências de alguém que, como no cavalete da artista.
uma segunda mostra de desenhos, fevereiro de 2023 frisa o historiador e crítico de arte Ao olhar para trás, Philippe
E 50
daquelas revoadas de desenhos
magníficos. A grande admiração
era da minha parte.” Maria Antónia
define uma espécie de quadro
formal e conceptual do desenho
extremamente original na arte
portuguesa e, desse ponto de vista,
como frisa Pinto de Almeida, “como
artista nunca é a mulher de Siza.
Pelo contrário”.
Se Philippe Vergne evoca o “poder
da intimidade para romper
convenções”, Bernardo destaca
um desenho “muito culto, quase
erudito, a jogar entre várias
possibilidade do próprio desenho
e a estabelecer uma relação
remota, no entanto sensível, com o
surrealismo”.
Próximo do final da exposição há
como que um cenário de pausa. Em
fundo ouve-se o disco “Time Out”,
do Dave Brubeck Quartet, uma das
paixões absolutas de Tótó. Como o
cinema. Como as viagens. Como os
Maria Antónia Siza desenhava Vergne recorda sobretudo o de formação cultural. Aos 17 amigos. Como a alegria pela vida.
com a segurança de quem quão relevantes e intemporais anos visita Paris e pouco depois A terminar aparecem os últimos
parecia treinar o tempo todo. são todos aqueles trabalhos, nos inscreve-se no curso de pintura trabalhos, nos quais impera o
Apesar dos intervalos quais deteta “um sentido de da ESBAP, onde tem como mestres vermelho sanguíneo. É assim, diz
de vazio, até a exaustão: rebelião”. Presente naqueles corpos Júlio Resende, Augusto Gomes e Choupina, nos desenhos, também
dez, vinte, trinta desenhos obesos, escanzelados, torcidos. Guilherme Camarinha. Desiste do nos bordados, nas pinturas. São
num serão. Até retratou,
Nas metamorfoses. Na ironia das curso após o terceiro ano, não sem tons fortes, ligados ao grotesco, ao
com humor, o marido — como
suas “Madames”. No humor. Nos antes começar a namorar com o visceral. É uma opção que, prossegue
em baixo se pode ver
ajuntamentos ou na multiplicação então professor assistente Álvaro o curador e também arquiteto, “terá
do feminino, com a mulher no Siza, oito anos mais velho. Casam- uma importância maior no final da
centro, mesmo antes de uma noção se na Capela da Boa Nova em vida, porque os problemas cardíacos,
de feminismo. E, subversão maior, novembro de 1961. associados a febres e tremor nas
a sequência das camas. A cama Siza recorda-a ainda como uma mãos”, debilitam-na. Já não tem
conjugal, sensual e até erótica. A mulher com grande autonomia a mesma segurança. Abandona a
cama solitária. A cama como espaço e independência. Numa altura linha fina e entra no traço espesso.
onírico. em que predominava o abstrato, Surgem as metamorfoses. Há um
É essa imensidão contida numa a sua opção pelo figurativo “era desdobramento de figuras. Vários
vida breve que Choupina pretende considerada fora de tempo”. E eus dentro de um mesmo eu. O
espelhar através do percurso sofreu com isso. O arquiteto assume inanimado transfigura-se em corpo
expositivo. Abre com uma espécie ao Expresso que se houve influência humano. Ao mesmo tempo impõe-
de introdução à artista interessada no desenho, foi mais dela nele. “Não se uma atração pela sensualidade.
numa grande diversidade de digo que tenha sido uma influência E também a capacidade de sonhar.
materiais, desde o desenho à direta, mas indireta, pelo contacto, Uma disponibilidade para o onírico,
pintura, com passagem pela pelo encantamento, pelo aparecer que, acentua Choupina, “de alguma
gravura, o bordado ou a fotografia forma atravessa toda a exposição.
resultante de viagens com os Até porque sem sonho não existe
amigos. humanidade”.
Maria Antónia faleceu há meio
Ao longo de alguns O sonho e o sentido de liberdade,
século. A recuperação da sua meses, Philippe sobretudo de espírito, face à
memória confere-lhe uma presença ausência de liberdade política,
avassaladora, através de uma obra Vergne visitou marcam em definitivo a existência
a carecer de ser mais estudada
e melhor descoberta. Como diz
os arquivos de Álvaro de uma mulher bonita, bem
disposta, humorada, nada presa
Choupina, “a obra não tem ainda Siza para proceder às convenções do seu tempo, para
a devida projeção. Os motivos são quem a vida longe de ter sido um
inseparáveis da sua fulgurante breve
a uma seleção. mar de tristezas, foi também um
vida”. Sentiu-se “a espaço de festa, de maternidade,
Mais nova de quatro irmãs, a quem de partilha. 50 anos depois da sua
se juntaram depois dois irmãos, ultrapassar os limites morte, a exposição assume-se como
Tótó cresce no conforto de uma
família da burguesia portuense,
da linha de um ato de celebração e de memória
da totalidade de um ser único na
com acesso a diferentes processos confidencialidade” sua individualidade artística. b
E 51
E
“
Quando publicou
“Escrítica Pop”, em
1981, faltavam alguns
anos para Miguel
Esteves Cardoso se
tornar no primeiro
director do jornal
“O Independente”
Como se fossem
Marley, depois Talking Heads e Joy
Division), mas porque, segundo a
teoria da curva em U, a década come-
çou bem, acabou bem, mas bateu no
fundo por volta de 1975, atolada em
memórias
abominações como a complexidade,
a grandiosidade, a megalomania, a
“execução técnica”, o “Stockhausen
para jovens”. O rock tornara-se um
fenómeno de estúdio, e acabaria em
desgraçado solipsismo caso não se
desencadeasse um movimento das
ruas. Esse movimento foi o punk.
À imagem do capitalismo, que o Miguel Esteves Cardoso na casa dos vinte, entre Portugal
gerou, o rock precisa de crises para
continuar vivo. Também por esse e Inglaterra, leitor do “New Musical Express”, colaborador de
motivo, “Escrítica Pop” aproxima-
-se do rock como se investigasse a
“O Jornal” e do “Se7e” e a entender a música pop como descartável
sociologia das gerações ou as teorias TEXTO PEDRO MEXIA
da História, discutindo assuntos
como o conceito de “década” ou a
ideia de “progresso”. Veja-se esta
passagem sobre a suposta diferença
E 52
MEC viveu em Manchester, cidade decisiva do
pós-punk, acaso geográfico que empresta ao
livro a vivacidade de uma educação sentimental
que Crosby, Stills e Nash. Tal como é & the Bunnymen se alimentam de
justificável fazer pouco dos Yes ou dos “um lirismo rude mas enorme”; que
Boney M. Isso não impede, contudo, Elvis Costello é sarcástico mas nunca
que esta discografia comentada arris- sorridente; que os Orange Juice
que asserções duvidosas e classifica- eram os Velvet Underground “sem a
ções contestáveis. Podemos lamentar escuridão”; que os A Certain Ratio se
que Nick Drake seja quase esquecido dirigem a “intelectuais bailarinos”;
no livro, Tom Waits menosprezado, que ouvir Cabaret Voltaire é como
os Television subavaliados, Patti “aprender a nadar no lado mais
Smith idem, os Cure e os Depeche fundo da piscina”; que os Durutti Co-
Mode destratados (Dylan, numa lumn lembram quadros de Constable,
década infausta, é tido como um e assim por diante, o que está Miguel
“has-been”, embora “Blood on the Esteves Cardoso a fazer? Faz crítica,
Tracks” merecesse outra conside- claro, tal como a defendeu, “diverti-
ração). E podemos não entender o da”, “bombástica”, “fingidora”, mas
que têm de especial os Specials, aos também compõe verbetes, versos,
quais são dedicados vários textos. Em epitáfios.
contrapartida, MEC respondeu, há E se o tom ligeiro, mesmo quando
40 anos, a uma pergunta que todos já exaltado, se adequa à “música ligeira”
fizemos desde então, “até quando se da qual os textos se ocupam, tudo
pode gostar dos U2”, inclinando-se se modifica quando chegamos aos
para a resposta “se calhar nunca”. Joy Division. Porque as canções dos
Sendo a “escrítica” uma “crítica” Joy Division, que Esteves Cardoso
enquanto “escrita”, MEC recorre literalmente trouxe para Portugal
a diversos estratagemas linguísti- (umas bobinas vindas de Manchester
cos e jornalístico-literários, mais num saco de Sapataria Lisbonense)
inusitados à época do que agora, de são canções sem artifícios, assus-
questionários a “notas do revisor”, tadoras, de “uma tristeza obscena
de pastiches cifrados a reportagens e sem remédio”, como se fossem
desconchavadas, escrevendo a certa “experiências pessoais que tenhamos
altura uma série de colunas como se realmente tido e (...) nos acompa-
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
E 53
O poder e a
resistência
à repressão
A exposição “Adeus Pátria e Família”
celebra os primeiros 40 anos da
descriminalização da homossexualidade
em Portugal, reconhecendo o caminho
de resistência até à conquista de direitos
TEXTO CRISTINA MARGATO
E
diferente do modelo católico, pa-
triarcal, com o poder concentrado
na figura masculina, que a ditadu-
ra impôs, e uma existência que se
afirme fora dos ditames da hetero-
normatividade exige um esforço que
está para lá das leis. Uma mudança
de mentalidades, para a qual a
exposição “Adeus Pátria e Família”
m 1926, e num discurso que es- quer contribuir ao traçar o percur-
tabelecia o “conforto das grandes so que nos trouxe aqui. “Revelar,
certezas”, Salazar afirmou a indiscu- nomear e dar visibilidade” a esta
tibilidade de “Deus” e “da virtude”, longa batalha contra um modelo
da “família e da sua moral”, “da único e opressor é um dos objetivos
autoridade e do seu prestígio”. De das curadoras, Rita Rato, diretora do
uma só vez, num texto com pouco Museu do Aljube, e Joana Alves, do Foi em 1926 que o ditador destes “doentes” em locais como o
mais de 50 palavras, o ditador lançou departamento da comunicação. Três lançou a semente da trindade Albergue da Mitra, em Lisboa, ou a
a semente da trindade “Deus, Pátria verbos que pretendem facilitar a re- “Deus, Pátria e Família” num Quinta do Pisão, em Cascais.
e Família” que definiria o seu longo flexão e promover a discussão na so- discurso enxuto de 50 palavras Em confronto, do outro lado desta
regime. Quase 100 anos depois desse ciedade e nas suas pequenas esferas, “estrada”, está a poesia, o desejo
discurso, proferido em Braga, a 28 como a pessoal, a familiar ou a pro- de liberdade. Estão as palavras a
de maio de 1926, Portugal tem uma fissional. Na exposição que pode ser positiva, ao oferecer a mais avançada desafiar a moral vigente, arriscan-
das legislações mais avançadas do vista no Museu do Aljube, o desenho proteção, em matéria legislativa. Este do os seus autores a perseguição, o
mundo em matéria de igualdade e de Ricardo Carvalho recorre a um caminho, feito de avanços e recuos, isolamento, a prisão e a própria vida.
de não descriminação com base na único dispositivo para suporte dos sistematizado pela exposição, mos- Como lembra Raquel Afonso, num
orientação sexual e na afirmação documentos apresentados de forma tra-nos a constituição desse aparelho texto do folheto que acompanha a
de género. Mas destes 100 anos, cronológica e linear, a um tecido repressivo, não apenas o de Estado, exposição, “em Portugal, o Estado
apenas 40 — muitos menos do que de cortinado que significa a tensão mas também da própria ciência. vem acentuar a visão da homosse-
os da democracia — foram, de facto, entre a ocultação e a visibilidade dos Logo depois de exibir “A Lição de xualidade e aprofunda a sua repres-
vividos sem descriminalização da que fogem à heteronormatividade, Salazar”, a exposição recorda o facto são, nomeadamente a nível legal; no
homossexualidade; e apenas quatro dos que querem escolher correspon- de Egas Moniz, Nobel da Medicina, entanto, e citando Foucault, ‘onde
com consagração legal de autodeter- der ao que são. ter considerado a homossexuali- há poder há resistência’, levando
minação de género. A batalha contra A viagem que “Adeus Pátria e Famí- dade uma doença, “tratável como homossexuais e lésbicas a engen-
a repressão tem sido longa e difícil, e lia” nos propõe começa nesse texto qualquer outra”, “um vício contra drarem estratégias para sobreviver
não está acabada, mesmo em demo- fundador da máquina de repressão a natureza”, incluindo e destacan- e resistir”. Judith Teixeira, António
cracia, porque a experiência da vida do regime fascista, “A Lição de Sala- do passagens de “A Vida Sexual Botto e Raul Leal são poetas que
quotidiana nem sempre respeita as zar”, e termina num mapa mundial, — Pathologia”. Lembra ainda a veem os seus livros apreendidos e
regras estabelecidas na legislação. no qual Portugal se destaca pela consequente institucionalização queimados pelo Governo Civil de
E 54
“Mão na mão, (MDM), que reclama a constituição
de um sindicato.
dois escudos e “Adeus Pátria e Família” inclui
reportagens que acompanham a
meio; mão naquilo, noite travesti, no rescaldo da festa
15 escudos; de Abril, nas quais é explorado o
lado festivo desta vontade mas-
aquilo na mão, culina de vestir trajes femininos
30 escudos; como “prática habitual do teatro”.
No texto, notam-se “as pinças” na
aquilo naquilo, forma como o assunto é tratado.
Numa “parede” de cortinado Antó-
50 escudos; aquilo nio Variações, a sua música e a sua
atrás daquilo, diferença, expressa em entrevistas,
ganha espaço. Assinala-se o asso-
100 escudos; ciativismo LGBTI, com “origem na
e com a língua dinâmica em torno do combate ao
VIH/sida”, o lançamento de revistas
naquilo, e edições sobre o tema, e a mudança
no Código Penal que descriminaliza
150 escudos a homossexualidade. Recorda-se o
de multa, preso nascimento do “Orgulho Gay” cujas
marchas chegam a Portugal, com
e fotografado” enorme atraso, no final dos anos 90.
PORTARIA DA CÂMARA Para a história fica também o terrível
MUNICIPAL DE LISBOA, 1953 assassínio cometido, no Porto, por
um grupo de jovens, de Gisberta,
mulher trans.
contraem-se, mas não desistem, No virar da primeira década deste
como prova o lançamento pelos século inicia-se um processo de
Estúdios Cor, editora dirigida por mudança que passa pela aprovação
Natália Correia, da obra “As Novas da lei que permite o casamento entre
Cartas Portuguesas”, que resultou pessoas do mesmo sexo, e pela lei
num processo contra as três autoras, da identidade de género, no ano se-
que só não teve pior desfecho por ter guinte. Segue-se a lei da adoção por
terminado depois do 25 de Abril. casais do mesmo sexo e a da procria-
A Revolução permite novas liberda- ção medicamente assistida, em 2016.
des, mas não acaba com a discrimi- Dois anos depois, a lei de autodeter-
nação da homossexualidade. Perante minação de género. A exposição dá
o movimento de alguns grupos, os conta destas conquistas e sistemati-
capitães de Abril apressam-se a za-as através de uma cronologia, na
esclarecer as massas; e o general qual são colocados alguns momentos
Galvão de Melo vai à RTP, apenas que ficam por aprofundar ou mesmo
um mês depois da festa, dar conta mencionar no resto da exposição —
do “mau uso da liberdade”. Num como é o caso da primeira decisão
Lisboa, num ato de repressão que multas a aplicar a “atos atentató- discurso televisivo que o artigo de judicial (em Tribunal de Família)
tende a agravar-se nos anos seguin- rios à moral e bons costumes”, que, jornal, incluído nesta exposição, não que atribui a guarda parental a
tes. É destacado o caso de Virgínia segundo a mesma, eram cada vez cita na totalidade, o militar diz que um pai homossexual. Há ainda
Quaresma, que por ser homossexual mais recorrentes em logradouros o 25 de Abril não foi feito para as um glossário que esclarece alguns
fica sob vigilância, tal como Mário públicos, jardins e áreas florestais: prostitutas e homossexuais. O jornal termos, e um espaço que elenca um
Cesariny, o de Luzia Maria Martins, “Mão na mão, dois escudos e meio; opta por reticências providenciais e conjunto de performances e obras
encenadora e dramaturga, levada mão naquilo, 15 escudos; aquilo na os textos que conduzem a exposição de arte que refletem ou evidenciam
a tribunal por ler em público uma mão, 30 escudos; aquilo naquilo, 50 também não enquadram o comu- a prevalência de tensões que só uma
carta de Helene Weigel. Mas tam- escudos; aquilo atrás daquilo, 100 nicado feito em nome dos capitães mudança de mentalidades pode mo-
bém o de Júlio de Melo Fogaça, diri- escudos; e com a língua naquilo, 150 de Abril. Na origem da reação estão derar. Além da exposição, o Museu
gente do Partido Comunista Portu- escudos de multa, preso e fotografa- manifestações de homossexuais e do Aljube prevê ainda a realização
guês, julgado por homossexualidade do”, provando que até a palavra que prostitutas, no sentido de participa- de encontros e debates, a anunciar
e suspenso do PCP “por não estarem deveria estar no lugar de “aquilo” é rem na construção da democracia, na sua página da internet, e seria
esclarecidos aspetos da sua con- impronunciável. expressas em letra de forma, através interessante que pudesse seguir para
duta”, ou o de Valentim de Barros, Sendo uma exposição documen- do manifesto “Liberdade para as Mi- itinerância. b
bailarino, deportado pela Alemanha, tal, a opção passa por mostrar os norias Sexuais”, do Movimento de cmargato@expresso.impresa.pt
preso pela PIDE, internado e sujeito relatórios da censura que eliminam Ação Homossexual Revolucionária,
a tratamentos por choques elétricos qualquer possibilidade de fornecer publicado a 13 de maio de 1974, no
após um diagnóstico de “psicopatia informação de natureza sexual ou “Diário de Lisboa” (incluído apenas
homossexual e pederastia passi- de contar qualquer história que se na cronologia da exposição), ou
va”. Do lado oposto, é exibida uma desvie da moral da ditadura. As também do Manifesto das Prostitu- ADEUS PÁTRIA E FAMÍLIA
Portaria da Câmara Municipal de artes sofrem, tal como os artistas; tas de Lisboa discutido pelo Movi- Museu do Aljube, Lisboa,
Lisboa, de 1953, a definir o preço das e o teatro, o cinema ou a literatura mento Democrático das Mulheres até 29 de janeiro de 2023
E 55
Imagem espacial captada com
o novo telescópio James
Webb. Carlo Rovelli é o ‘pai’ da
teoria da gravidade quântica
Li
em laços, que procura conciliar
as duas teorias basilares da
física moderna: a mecânica
vros
quântica e a relatividade geral
Tudo interage
com tudo
Físico teórico respeitado, Carlo Rovelli torna acessível a qualquer leigo o mistério maior
da ciência do último século: a bizarra, fascinante e contraintuitiva mecânica quântica
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA
E 56
A
do mundo para procurar outra mais
18 de abril de 1947, a marinha
britânica fez explodir 6700
respeitáveis e com explicações mais
exaustivas.
“A solidez da eficaz, voltando de seguida a pôr
toneladas de dinamite Como não podia deixar de ser, visão clássica tudo em causa e a subverter tudo de
na ilha alemã de Helgoland, no o célebre apólogo do gato de novo”.
Mar do Norte, destruindo assim Schrödinger é devidamente evocado, do mundo Depois de discutir outras abordagens
material bélico abandonado pelo
exército nazi no fim da II Guerra
com uma nuance curiosa: na versão
de Rovelli, o dispositivo no interior
constitui apenas à mecânica quântica, nomeadamente
a que vê na onda Ȍ de Schrödinger
Mundial. “Foi provavelmente a da caixa não liberta um veneno, a nossa miopia. não uma função probabilística
maior explosão levada a cabo com mas antes um soporífero — ou seja, mas uma entidade real, abrindo a
explosivos convencionais”, lembra o estado quântico do animal não
As certezas porta para a existência de múltiplos
Carlo Rovelli, acrescentando logo é simultaneamente vivo e morto; da física clássica mundos paralelos, Rovelli concentra-
de seguida: “Quase como se a é simultaneamente acordado ou se na perspetiva que lhe parece
Humanidade tentasse anular o rasgo adormecido (“não gosto de brincar não passam de mais interessante e plausível: a
na realidade ali aberto” cerca de 22
anos antes.
com a morte de um gato”). O grande
mérito do autor está nas imagens
probabilidades. interpretação “relacional”. Segundo
esta, não há objetos isolados no
É justamente esse “rasgo na que escolhe para ilustrar o que A imagem universo, uma vez que todos
realidade” o tema central do livro. pretende dizer, e na precisão, aliada atuam constantemente uns sobre
Nas primeiras páginas, Rovelli a um discreto lirismo, do modo
do mundo nítida os outros. E a consequência desta
regressa ao verão de 1925, quando como descreve essas imagens. Eis e sólida da “manifestação mútua das coisas”
um jovem cientista germânico, de 23 um exemplo: “A teoria dos quanta é que o mundo se estrutura como
anos, chamado Werner Heisenberg, compreende a mecânica clássica velha física uma “densa rede de interações”.
decidiu passar alguns dias de
“inquieta solidão” em Helgoland, a
e a nossa visão do mundo habitual
como aproximações. Compreende-
é uma ilusão” Em suma, tudo interage com tudo
e cada coisa só existe, só assume
desolada ilha de altas falésias e quase as como um homem que vê bem CARLO ROVELLI propriedades definidas, no momento
sem árvores, exposta aos ventos do pode compreender a experiência FÍSICO da interação.
Atlântico. Foi ali que numa certa de um míope que não vê a água a A perspetiva relacional não procura
madrugada, por volta das três da ferver numa panela ao lume. Mas, exorcizar a indeterminação quântica,
manhã, após uma maratona de na escala das moléculas, a distinta antes a abraça e a leva às últimas
cálculos, teve uma ideia genial, ponta de uma faca de aço é flutuante consequências. Aceita que o mundo
uma intuição espantosa que deu e imprecisa como a margem de se fragmente em inumeráveis pontos
início àquela que é “talvez a maior um oceano tempestuoso que de vista, sem uma visão global única,
revolução científica de todos os forma ondas numa praia de areia assente num “jogo de perspetiva,
tempos”: a mecânica quântica. Uma branca.” E logo remata: “A solidez como dois espelhos que só existem no
teoria que até agora nunca falhou as da visão clássica do mundo constitui reflexo um do outro”. Rovelli atira-
suas previsões, que tem sido aplicada apenas a nossa miopia. As certezas nos de cabeça para este verdadeiro
nos mais variados campos do saber, da física clássica não passam de “abismo do que não sabemos”,
dos semicondutores ao estudo da probabilidades. A imagem do mundo lugar “magnético” e “vertiginoso”,
formação das galáxias, mas que nítida e sólida da velha física é uma explicando de caminho efeitos que
permanece, em muitos aspetos, ilusão.” parecem de uma natureza quase
SPACE TELESCOPE SCIENCE INSTITUT
um verdadeiro mistério. Mesmo Esta última frase tem óbvias mágica, como o “emaranhamento”,
para quem, como Carlo Rovelli, lhe implicações existenciais. Como uma espécie de “dança a três que
dedicou toda a sua carreira de físico viver numa realidade cuja solidez tece as relações do mundo”.
teórico, empenhado em conciliá-la se revela subitamente ilusória? O Apesar da sua formação estritamente
com a outra grande teoria da Física universo quântico é muito mais científica, Rovelli analisa também,
do século XX: a relatividade geral, de rarefeito e ténue do que o descrito com bastante detalhe, o impacto
Albert Einstein. pela física clássica. É um mundo da teoria quântica no campo da
De forma muito clara, sem “de trama fina, como uma renda de filosofia, e espanta-se com as
abusar das equações, mas nunca Burano”. E difícil de discernir, ou ideias precursoras de Nagarjuna,
prescindindo do rigor, Rovelli conceber, porque na nossa vida do um filósofo indiano do século II,
resume exemplarmente o impacto dia a dia tudo continua a obedecer que já falava da interdependência
da proposta de Heisenberg, à velha ordem newtoniana, de entre todas as coisas e da realidade
baseada apenas em quantidades objetos sólidos e contínuos, porque enquanto “ténue e frágil véu, além
“observáveis”, quer no seu lado da os apreendemos numa escala do qual... não há nada”.
barricada, onde se destacavam Niels macroscópica — o que nos impede de Ciente da dificuldade de tornar
Bohr e Max Born, quer no campo constatar a granularidade essencial acessível às massas uma teoria tão
de Schrödinger, que sugeriu uma de todas as coisas, e as sobreposições complexa, o físico italiano procura,
mecânica ondulatória, na tentativa e interferências quânticas, só ainda assim, “instilar o seu mel
vã de eliminar a descontinuidade observáveis numa escala subatómica. destilado, dulcíssimo e um pouco
implícita na teoria dos quanta. Para Isto exige, é claro, um esforço inebriante nas malhas de toda a
o leitor leigo, que provavelmente contraintuitivo de imaginação, mas cultura contemporânea”. Este livro é
já nem se recorda das três leis de corroborado pelos resultados de sem dúvida um passo brilhante nessa
Newton aprendidas no secundário, quase um século de experiências direção. E, chegado às páginas finais,
tudo é explicado da forma mais laboratoriais. Faz aliás parte da QQQQ o leitor não deixará de concordar
simples possível, sendo que as própria natureza do pensamento O ABISMO VERTIGINOSO com Rovelli, quando afirma:
numerosas notas de rodapé científico seguir um movimento Carlo Rovelli “Há uma sensação de vertigem,
complementam o que fica por vezes de “voltar sempre a pôr em causa Objectiva, 2022, trad. de Silvana liberdade, alegria e leveza na visão
apenas esboçado no texto principal, todas as coisas e recomeçar, de não Cobucci, 199 págs., €17,45 do mundo que as descobertas sobre
além de sugerirem várias fontes ter medo de subverter uma ordem Ciência os quanta nos oferecem”. b
E 57
E ainda...
Um modo de ser elevado
O
s poemas de “Ervas”, que Há muito que o estilo alusivo de os trezentos sobreviventes de um
“enviam em proximidade JMFJ é “transcendental” no sentido outrora florescente planeta distante, à Arturo Pérez-Reverte
e distância” para 20 filmes de Schrader: um movimento de míngua de água. Dotado de uma inteli- ASA, 2022,
de Yasujiro Ozu, suscitam de despojamento que tende para gência superior, desenvolve uma série 624 págs., €22,90
imediato duas observações. A o “inefável e o invisível”. E em de patentes inovadoras destinadas a
primeira, de âmbito mais restrito, “Ervas” estabelece-se um curioso fazer dinheiro para poder construir uma Neste romance pre-
tem a ver com livros anteriores diálogo não apenas com os filmes, nave de resgate. Contudo, não estava miado, o escritor
de João Miguel Fernandes Jorge mas com os “cadernos” de Ozu, preparado para a Terra: “Como era ób- aborda pela primeira vez a guerra
que partiam da obra de Carl textos minimais, quase de agenda. vio, tinha conhecimento da existência civil espanhola, começando na noite
Dreyer (“A Palavra”, 2007) e A esses fragmentos seguem-se dos grandes oceanos e dos lagos e rios, de 24 para 25 de julho de 1938.
Robert Bresson (“Pickpocket”, entradas do diário do poeta, entre sabia-o desde que era menino, todavia,
2009), os outros mestres de um as quais anotações sobre a língua a imagem real dessa imensidão de
“estilo transcendental no cinema” japonesa ou sobre os portugueses água num único lago era de cortar o Top Livros Semana 32
De 8/8 a 14/8
teorizado há meio século por Paul no Japão. É nessas entradas que se fôlego.” A estranheza e, sobretudo, a Ficção
Schrader. Uma segunda observação, explicita uma afinidade poética beleza do mundo natural deixaram- Semana
anterior
de ordem geral, é que toda a poesia com Ozu quando se fala da -no estupefacto. Em pouco tempo,
Isto Acaba Aqui
de Fernandes Jorge parece existir “ilusão da imagem”, “que é ainda tornara-se um milionário, graças às 1 1
Colleen Hoover
“em proximidade e distância” com um modo de ser elevado”, mas invenções, e começou a desenvolver
A Raridade das Coisas Banais
um objecto, seja esse objecto uma também “um resquício, um ponto os planos de construção da nave. Con- 2 2 Pedro Chagas Freitas
obra de arte, a geografia portuguesa, médio entre o engano e o nada” ta com a ajuda de Nathan Bryce, um Amor Cruel
a História ou a autobiografia. [o cineasta mandou escrever químico que foi o primeiro a desconfiar 3 - Colleen Hoover
“Transcendental” e com inúmeros “nada” no seu túmulo]; ou quando da sua natureza extraterrestre. A sua A Breve Vida das Flores
4 -
“envios”, esta estética adequa-se se evoca a questão das gerações estrutura física é frágil apesar do treino Velerie Perrin
na perfeição a um realizador tão como “um juntar elementos, um a que fora submetido antes da viagem A Hipótese do Amor
5 5
austero e indirecto como o autor estabelecer elos de luz e sombras”, estelar, e um dia sofre um acidente Ali Hazelwood
de “Viagem a Tóquio” (um elogio “uma forma de deixar o desenho que o debilita. Mais tarde é preso pelas As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
é devido à extrema elegância desta fílmico trabalhar por si mesmo”. autoridades que querem saber quem
edição, com desenhos de Rui Será talvez conveniente, nestes realmente ele é. O clima de guerra fria Não ficção
Vasconcelos e desenho gráfico de poemas, detectar os “envios” para e desastre nuclear que podem levar à Semana
anterior
Rita Azevedo Gomes). Se os poemas entrever o “transcendental”, mas destruição da Terra, está bem patente
usam motivos japoneses genéricos o extraordinário é que isso não seja nestas páginas. Newton queria impedir Torne-se um Decifrador
1 3 de Pessoas
(o saqué, o budismo e o quietismo, indispensável. / PEDRO MEXIA que o mesmo desastre que liquidara Alexandre Monteiro
uma dialéctica das estações) ou o seu planeta se repetisse. Começa a Hábitos Atómicos
imagens, situações e tonalidades Pedro Mexia escreve de acordo sentir-se humano, e esse é o seu maior 2 5 James Clear
reconhecíveis dos filmes (comboios, com a antiga ortografia drama. O que é um humano, quando Uma Mente Tranquila
3 -
crianças, chaminés altas, um friso até aí vira os humanos como antropoi- Shoukei Matsumoto
de amigos, filhas casadoiras, pais des meio enlouquecidos a caminho Anspira(Te)
QQQQ
4 - Sofia Castro Fernandes
que envelhecem, a derrota na do abismo? Preso e analisado durante
guerra, a transitoriedade, a solidão ERVAS meses, acaba por sucumbir vítima dos Seja um Super-Humano
5 4 Manuel Pinto Coelho
estóica e melancólica), algumas exames físicos, quando está prestes a
João Miguel As categorias consideradas para a elaboração deste top
frases tanto podem ser citações Fernandes Jorge ser libertado. E envia uma mensagem foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
dos guiões como frases “à Ozu”, Cinemateca para casa: “Como sabem, estava a Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
sejam ou não dele (“temos de lhe Portuguesa — Museu trabalhar num projeto de exploração Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
encontrar alguém” “morrer virá a do Cinema, 2022, espacial. Decidi que o projeto era de- pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
seu tempo”, “a vida desilude-nos 168 págs., €14 masiado ambicioso. Vou abandoná-lo.” é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
muito”, “porquê mudar”?). Poesia / JOSÉ GUARDADO MOREIRA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.
E 58
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE
Um ‘prodigioso’
adido cultural
Quando Eduardo Mendoza veio a Lisboa
lançar “A Cidade dos Prodígios”
O
convite a autores estrangeiros para virem a Portugal promover os
seus livros começou a ser prática de muitas editoras já no presente
século, ainda que nos anos 90 o fenómeno já acontecesse com
alguma regularidade. Nos anos 80, período que correspondeu à minha
passagem pela Dom Quixote, a prática era residual: se não me engano,
convidámos apenas John le Carré e os autores espanhóis Eduardo Mendoza e
Soledad Puértolas.
A vinda de Eduardo Mendoza revestiu-se de um episódio caricato que
vale a pena recordar. Lançávamos então “A Cidade dos Prodígios”, livro que
ficaria como um marco na literatura espanhola, mas ninguém sabia por cá
quem era o autor e as nossas expectativas de venda eram, portanto, escassas.
Escrevemos-lhe, mesmo assim, convidando-o para vir a Lisboa, mas
informando-o de que estávamos
ainda à procura de um qualquer
apoio, nomeadamente da A CORTE DO NORTE
embaixada de Espanha — feitas as
contas, viagem e estada pesavam
demasiado no orçamento do livro.
Mendoza, um gentleman (já nessa
JOÃO BOTELHO
altura), compreendeu e aceitou.
Certo dia, desci a Avenida
da Liberdade e dirigi-me à
embaixada de Espanha, já então
sediada no fundo da Rua do
Salitre. Aí chegado, pedi para
falar com o adido cultural,
sem saber se havia adido
2VÀOPHVVmRKLVWyULDV
cultural, como se chamava
e se recebia sem marcação.
Depois de muitas perguntas
JOAN TOMÁS
e de muitas explicações,
informaram-me de que falaria
RFLQHPDp
comigo, se eu tivesse paciência
O escritor catalão Eduardo Mendoza para aguardar o momento
propício. Esperei umas duas
horas até ser finalmente atendido. Depois de explicar que era um dos
responsáveis das publicações Dom Quixote (o que deu lugar ao primeiro
DPDQHLUDGHDVÀOPDU
equívoco, porque, ouvindo o nome Dom Quixote, o senhor pensou que se
tratava de uma editora espanhola), anunciei que iríamos publicar em breve
a tradução portuguesa de “A Cidade dos Prodígios” (primeiro esgar do
meu interlocutor), que gostaríamos de trazer a Portugal Eduardo Mendoza
(segundo esgar) e que a minha presença ali tinha a ver com a solicitação de
um apoio à embaixada de Espanha na deslocação do autor.
Para meu espanto, o tal adido cultural não sabia quem era Eduardo
Mendoza e tive de ser eu a falar-lhe do romance e do enorme sucesso que
estava a ter em Espanha. Mas depressa compreendi que estava a falar para a
parede. Agradeci o tempo tomado e regressei a casa.
Sem qualquer apoio, trouxemos a Lisboa Eduardo Mendoza e foi um
êxito. Talvez como vingança, nunca consegui fixar o nome do adido. b
VHWHPEUR
Daisy Edgar-Jones e Taylor
John Smith protagonizam
Ci
o filme de Olivia Newman
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
Algures no fotogénico
S
e o ridículo matasse as suas testemunhas, cairíamos interpreta é Edgar-Jones, que parece ter acabado de sair de
“A Rapariga — fulminados — ao fim dos primeiros dez minutos uma sessão fotográfica).
desta adaptação de um best-seller de Delia Owens A atração pelo fotogénico contaminará — ao ponto de
Selvagem”, (“Lá, Onde o Vento Chora”). Eles são o suficiente para que os descredibilizar por completo — todos os elementos
adaptação do se entenda o ‘projeto de higienização estética’ de um filme de um filme que, a partir daí, circulará em montagem
que começa, num registo pitoresco, com uma sequência paralela entre o presente e o passado de Kya. Isto é: entre
best-seller “Lá, de vistosos planos de drone sobre um sapal e com uma voz as sessões do seu julgamento (que se limita a vincar a
off que vai louvando os seus mistérios. Quando ela se cala, sua má reputação junto da comunidade) e a recriação em
Onde o Vento somos informados por via de uma legenda de que estamos flashback da sua infância e juventude. O que por esse meio
Chora”, de Delia na Carolina do Norte de 1969, para seguir os passos de uma
parelha de polícias que encontram um cadáver no sapal.
se tece é uma história de coming of age, que arranca com a
mal-amanhada explicação da reclusão da rapariga, descrita
Owens, chegou Trata-se do de Chase Andrews: a jovem vedeta da equipa então como a vítima de um pai alcoólico que — à força de
de futebol americano da cidade imaginária de Barkley espancamentos — obrigará a sua mulher e as demais filhas
esta semana Cove, que, como cedo perceberemos, é também um a fugir de casa (por que motivo nenhuma delas levou Kya
aos cinemas reputado playboy. Essa descoberta macabra levará os
habitantes da cidade (um coro de vozes maledicentes)
consigo é coisa que não se esclarece).
Depois de também o pai ‘desaparecer em combate’,
TEXTO VASCO a urdir no vazio uma tese criminal: a de que Chase terá a protagonista ver-se-á forçada a sobreviver sozinha,
BAPTISTA MARQUES sido assassinado pela freak da paróquia. O seu nome é Kya concluindo depressa que a escola é terreno perigoso: ela
Clark: uma rapariga de 25 anos que, desde há muito, vive é humilhada pelos colegas quando por lá se aventura,
em reclusão numa pequena casa situada no sapal — razão na única sequência em que se mostra de pés descalços e
pela qual os seus vizinhos desdenhosamente a batizaram cara suja. Sobre o seu quotidiano, o filme pouco nos diz:
como “the marsh girl”. Não será preciso esperar muito apenas que ela vende mexilhões numa loja local, quando
para que, apoiando-se num frouxo indício (a presença, nas não está numa cabana que, excetuando alguns sinais de
roupas do morto, de fibras de tecido pertencentes a um desarrumação, poderia passar por um alojamento turístico
cachecol de Kya), as autoridades a acusem pelo homicídio localizado na Comporta.
de Chase. De facto, a única coisa que prende a atenção da câmara é
É aí que a vemos pela primeira vez, esperando travar a educação sentimental de Kyra, que — vivendo embora
contacto, se não com a contraparte feminina de “O Menino no meio do nada — lá arranja modo de tropeçar em dois
Q Selvagem” de Truffaut, pelo menos com uma criatura que rapazes tão fotogénicos quanto ela. É pretexto quanto
A RAPARIGA SELVAGEM comportasse no corpo algumas marcas visíveis do seu baste para que a realização fabrique um sem-número de
De Olivia Newman isolamento. Em vez disso, o que nos sai na rifa, à laia de aprumadas cenas românticas (ora com o bosque, ora com o
Com Daisy Edgar-Jones, Taylor John eremita, é uma rapariga impecavelmente vestida que, a rio em fundo), que só confirmam o que já sabíamos: que “A
Smith, Harris Dickinson (EUA) julgar pelo seu domínio do verbo, poderia bem frequentar Rapariga Selvagem” é uma ficção escapista para senhoras
Drama M/12 um curso de teoria da literatura na universidade (quem a deprimidas, que, de selvagem, tem somente o adjetivo. b
E 60
E ainda...
OS OSSOS DA SAUDADE
QQ QQQ De Marcos Pimentel
A BESTA MONTADO — O BOSQUE O ponto de partida são as experiên-
De Baltasar Kormákur DO LINCE IBÉRICO PARADISE HIGHWAY cias de pessoas em lugares da luso-
Com Idris Elba, Sharlto Copley, De Joaquín Gutiérrez Acha — PERSEGUIDAS fonia — como o Brasil, Portugal, An-
Leah Jeffries (EUA) (Espanha/Portugal) De Anna Gutto
gola, Moçambique ou Cabo Verde
Drama/Ação M/14 Documentário M/6 Juliette Binoche interpreta uma —, que têm em comum sentimentos
camionista, obrigada a fugir à lei para de falta e distância. Este documen-
ESTREIA Este “A Besta” tem uma voca- É uma produção documental sobre a salvar o irmão, Dennis (Frank Grillo), tário é uma “viagem pelos territórios
ção de série-B à moda antiga que lhe Natureza com um fôlego que permite das mãos de um perigoso gangue. da memória, da representação e do
dá uma nota de simpatia e o distingue equipará-la à ‘primeira divisão’ do géne- Mas as autoridades estão atentas e pertencimento”. Nos cinemas.
das estreias deste verão. São águas ro. Anunciou-se um orçamento de 4 mi- o FBI — Morgan Freeman é o agente
passadas, é verdade, mas há aqui um lhões de euros e não custa acreditar que Gerick — está no seu encalce. Sally
lastro daquilo que Mark Robson ou Phil sim, a avaliar pelos parceiros elencados transporta uma adolescente. Em sala.
Karlson outrora ofereceram ao cinema no investimento e pelos resultados visí-
americano low budget dos anos 40 e veis. Parceria entre Espanha e Portugal
50, histórias geralmente desempoei- (Ukbar Filmes pela parte lusa) e envol-
radas e que iam direto ao assunto que vendo o financiamento dos institutos de
tratavam sem pretensão. No caso do apoio ao cinema e as televisões, é uma
islandês Baltasar Kormákur, cada vez realização de um cineasta madrileno que
mais decidido a dar rumo à carreira nos se apaixonou por observar a Natureza
States, ele que tem uma predileção através das lentes de uma câmara. O
por histórias de sobrevivência com filme trata do montado, um tipo de ha- CADA UM NA SUA CASA
personagens em risco de vida, nem é bitat único no Mundo e típico da Ibéria, De Michèle Laroque
tanto assim, “A Besta” é um ‘falso filme moldado pela convivência milenar entre E.T. — O EXTRA-TERRESTRE Michèle Laroque (no papel de
barato’ que nos chega com a chancela o homem e o meio ambiente, um bosque De Steven Spielberg Catherine), Stéphane De Groodt
da Universal, nunca Robson ou Karlson de azinheiras e sobreiros onde coabitam A história é conhecida — há um (Yann), Alice de Lencquesaing
tiveram CGI à altura (algo que nem grandes rebanhos de ovinos, manadas de extraterrestre perdido e um miúdo (Anna) e Olivier Rosemberg (Tho-
sequer existia naquele tempo...) para touros bravos, a exploração da cortiça e de apenas 10 anos que o ajuda a mas) são os protagonistas desta
animar a besta do título — no caso, um uma infinidade de aves, insetos, répteis, encontrar o seu caminho —, mas o comédia familiar francesa. A vinda
leão enraivecido pela morte da sua pro- mamíferos... E, claro, a pequena vedeta filme de ficção científica e aventura de Anna e do namorado Thomas
le às mãos de caçadores furtivos e que do documentário, o lince ibérico, que os de 1982 nunca foi visto assim. É a para casa da sua mãe, Catherine, vai
desata a estripar tudo o que de forma cuidados humanos salvaram da extinção. primeira vez que a longa-metragem, complicar a situação familiar. A coa-
humana lhe aparece à frente na savana E há as atividades de caça e os rituais de vencedora de quatro Óscares, é bitação não será fácil e alguém terá
sul-africana. Idris Elba, ator que é rosto acasalamento, os cuidados com as crias exibida em IMAX. Em exibição. de ceder. Ou então não. Em cartaz.
recorrente de filmes de super-heróis, e os estabelecimentos hierárquicos de
veste aqui a pele do Dr. Nate Samuels, uma multiplicidade de animais ao longo
que está de visita à África do Sul para das quatro estações do ano que o filme ESTRELAS DA SEMANA
sarar feridas. A mulher de Nate, originá- paulatinamente percorre, em que as Jorge Vasco
Francisco
ria daquele país, morreu de cancro após plantas mudam de estado e de cor e o Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
a separação deles, com o médico via- montado se revivifica. Tudo isso a câma-
jam as duas filhas adolescentes do casal ra documenta, num trabalho de minúcia A Besta QQ
com quem ele espera poder recon- e devoção. Saliente-se que houve o cui- Bullet Train: Comboio Bala Q QQQ
ciliar-se. Aguarda-os Nathan, tio das dado de garantir uma versão do filme em Cada Um na Sua Casa b
miúdas, que ganha a vida nos safaris e português, na voz de Joana Seixas. Ali se
protege uma reserva natural não aberta volta a encontrar a tendência narrativa Crepúsculo Q QQQ
a turistas. Aqui jogará “A Besta” os seus que praticamente se tornou obrigatória O Joelho de Ahed QQQQ QQ
trunfos, com Nate a proteger as duas nos documentários sobre a Natureza, na Libertad QQQ
filhas do leão que tem o diabo no corpo, vontade de explicar os comportamentos
Men Q Q
à medida que Kormákur vai assustando dos bichos: a quase antropomorfização
a audiência com momentos de terror de dos instintos, dos gestos, dos modos Montado — O Bosque do Lince Ibérico QQQ QQ
qualidade variável. Entretanto, perce- de agir. Assim se busca a aproximação Nope QQ QQQ QQQQ
be-se que o argumento podia ter ganho dos espectadores ao mundo animal,
Paradise Highway — Perseguidas QQ
outra consistência. Há mesmo lá para ao mesmo tempo que se introduz uma
o fim um ‘momento Marvel’ totalmen- âncora emocional no relato, uma vírgula A Rapariga Selvagem QQQ Q
te escusado. Mas passa-se por cima ficcional que transforme um conjunto de Tad o Explorador e a Tábua de Esmeralda QQ
desse passo em falso: “A Besta” é eficaz observações numa história. Atente-se, Tralala QQQ
quanto baste, defende em hora e meia todavia, que o texto de Carlos de Hita
um espírito B-movie sem espinhas nem e Cláudia Clemente evita armadilhas The Vigil — O Despertar do Mal Q
gordura. / FRANCISCO FERREIRA sentimentais. / JORGE LEITÃO RAMOS DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO
E 61
E se os sonhos de
Após 32 anos, a novela gráfica de Neil Gaiman foi finalmente adaptada para
“Sandman” introduz-nos ao universo da icónica banda desenhada — com
TEXTO CATARINA BRITES SOARES
M
Coordenação João Miguel Salvador orfeu, o Deus dos Sonhos, desapareceu
jmsalvador@expresso.impresa.pt e a sua ausência por quase um século
de cativeiro mudou o mundo — o da
SANDMAN imaginação e o da realidade, já que é ele quem dá
De Neil Gaiman e David S. Goyer forma aos medos e fantasias. Em 2022, o herói,
Com Tom Sturridge, Boyd interpretado por Tom Sturridge, regressa ao Reino
O britânico Tom Sturridge Holbrook, Patton Oswalt,
dos Sonhos e vai ter de provar que não morreram.
interpreta Morfeu, o Deus dos Vivienne Acheampong
“Sandman”, das séries mais aguardadas deste
Sonhos, desaparecido durante Netflix, em streaming
quase um século (Temporada 1) ano, é o mais recente sucesso da Netflix. Tem
sido um êxito pelo mundo fora, incluindo em
Portugal, onde estreou este mês — e se mantém
em primeiro lugar à data de fecho desta edição.
Esteve dias a fio no topo das 10 melhores com
a primeira temporada, feito que, segundo os
entendidos, é raro. Na semana de estreia na
plataforma foi vista por milhões de espectadores.
A produção televisiva inspira-se na banda
desenhada escrita pelo britânico Neil Gaiman,
que funde mitologia moderna e fantasia obscura,
ficção, drama e lendas ao longo de 75 capítulos,
publicados entre 1989 e 1996. The Sandman, ou
o Deus dos Sonhos (são vários os nomes pelos
quais é apelidado), é um dos membros de uma
família numerosa de seres imortais com reinos
próprios. Endless personifica os vários fenómenos
humanos e inclui Sonho, Morte, Desejo, Destino,
Delírio, Desespero e Destruição.
Gwendoline Christie (Lucifer), Jenna Coleman
(Johanna Constantine), Boyd Holbrook
(Corinthian), Vivienne Acheampong (Lucienne)
e Mark Hamill (voz de Merv Pumpkinhead)
são parte do elenco que dá forma à história
que Gaiman criou nos anos 80 e que tardou
mais de três décadas em assumir outro
formato. “Durante mais de 30 anos,
o meu papel no que respeita às
E 62
saparecessem?
televisão.
humanos, criaturas fantásticas e deuses
adaptações de ‘Sandman’ foi o de impedir que assumem papéis principais, ao contrário do que
as más se concretizassem. Felizmente, consegui. sucede na banda desenhada. “Foi incrivelmente
Chegámos a 2020 e ‘Sandman’ era a única do libertador ter a oportunidade de olhar para
grupo de bandas desenhadas célebres que ainda ‘Sandman’ a partir de uma perspetiva atual e
não tinha sido adaptada. Era uma das joias da questionar: ‘Se começasse a história hoje, ainda
coroa. Foi a primeira vez que uma adaptação seria assim?’”
me interessou. Atingimos um nível que não Ao que afirma Gaiman, Heinberg acrescenta que
existia quando comecei”, explica em declarações o autor deixou claro que queria que a adaptação
disponibilizadas pela Netflix ao Expresso. fosse tão inclusiva quanto possível. “A banda
Formatos longos, efeitos especiais e orçamentos desenhada já foi rompedora nos anos 80/90 no
que tornem real o ideal foram os argumentos que respeita à representação da mulher, raça,
que convenceram Gaiman. “Estamos num sexualidade e género. Na altura, Neil já pensava
momento que nos permite adaptar ‘Sandman’ de em todas estas questões, mas sabíamos que ao
uma maneira que nunca poderíamos imaginar recriar ‘Sandman’ em 2022 esse mundo teria de
há 15 anos ou mesmo 10.” A Gaiman, também ser ainda mais vasto e obrigaria a alterações.”
produtor executivo, juntaram-se os guionistas Além de características e relevância de cada
David S. Goyer (de “Fundação”, na Apple TV+) personagem, as mudanças incluíram partes da
e Allan Heinberg (de “The Catch”, na Disney+), história. “Acho que conseguimos jogar com as
que transformaram a banda desenhada na série expectativas dos fãs. Não é previsível e quem leu
televisiva. “A grande questão era do que abdicar a banda desenhada não saberá sempre o que o
e manter a essência da história?”, recorda espera”, promete Heinberg.
Gaiman. “Aceitei a aventura com a garantia de
que o que estávamos a fazer seria ‘Sandman’. ESTÃO TODOS LÁ... ATÉ SHAKESPEARE
E é.” “‘Sandman’ é peculiar”, continua Goyer. “Todos os personagens estão lá”, sossega
“É uma amálgama de géneros. É ficção, uma Goyer. “Creio que todos os fãs — sei que estão
história de terror, um drama moderno, fantasia. preocupados se estamos a fazer algo que vale
Adaptações anteriores tentaram reduzi-la a um a pena ver — ficarão mais tranquilos quando
género, quando, na verdade, é tantos”, insiste. assistirem ao primeiro episódio”, sublinha
“Nós procurámos ser extremamente fiéis à banda Gaiman. Tom Sturridge, que interpreta Morfeu
desenhada”, realça Heinberg na documentação e até à participação nos castings desconhecia
sobre a série. o universo, também sucumbiu ao mundo
Apesar de rigorosa, a equipa foi sensível aos fantástico. “A par do resto, ‘Sandman’ fascinou-
tempos e às diferenças que afastam a narrativa me como obra de literatura. O que me alimentava
original da atual. John Constantine, por exemplo, durante as audições não era tanto ser Morfeu,
é Johanna Constantine na série e um dos vários mas a euforia de poder fazer parte deste mundo.
casos em que mulheres e atores não brancos Tornei-me um fã obcecado.”
O ator britânico foi o escolhido entre 200.
“Querem saber o que fiz quando soube? Foquei-
me no que iria sonhar nessa noite porque queria
encontrar Morfeu.” Nos sonhos e fora deles, é esse
encontro com os personagens que fazem parte da
história que motiva o ator, sublinha. “O que me
fascina em ‘Sandman’ é o grupo extraordinário
de humanos, criaturas fantásticas e deuses que
o protagonizam. Shakespeare e Christopher
Marlowe, Robespierre e Marco Polo; Cain, Abel
e Lucifer... Estão todos lá”, diz. “Depois há os
Durante mais de 30 anos, espaços. O Reino dos Sonhos é Nárnia, a Terra
Neil Gaiman impediu Média e Hogwarts num só, mas ainda mais
complexo e obscuro, aterrorizador e mágico.” O
que as más adaptações repto da série é lançado pela música que a abre:
“Mr. Sandman, bring me a dream”. Afinal de
de “Sandman” contas, é isso que todos procuramos — a dormir
se concretizassem ou acordados. b
E 63
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt
Homens da luta
Depois de aventuras por realidades virtuais, os Muse voltam à terra para
lidar com emergências globais num disco em jeito de best of de novas canções
TEXTO MÁRIO RUI VIEIRA
N
ão sabemos precisar o momento em um pouco por todo o mundo, com espetáculos
que os Muse deram o salto, passando de grandiosos que cenicamente se inspiram nas
banda de culto daqueles que conseguiam letras apocalípticas das canções. Em termos
ver para lá das comparações com os Radiohead musicais, contudo, a banda não evoluiu como
a verdadeiros titãs do rock mundial. Terá sido desejaríamos, com uma fixação desmedida
algures depois de “Absolution”, de 2003, e pelos Queen a contagiar e, de certo modo, a
“Black Holes and Revelations”, de 2006, álbuns empalidecer as canções, roubando-lhes aquele
que lhes valeram êxitos como ‘Time Is Running rasgo de originalidade sentido particularmente
Out’, ‘Supermassive Black Hole’ ou ‘Starlight’ em “Origin of Symmetry”, o aguerrido segundo
e que podem ser encarados, de uma perspetiva álbum que, no longínquo ano de 2001, nos
QQQ sempre discutível, como pináculos criativos do oferecia momentos tão memoráveis quanto ‘New
WILL OF THE PEOPLE trio inglês. De lá para cá, Matt Bellamy, Chris Born’, ‘Plug in Baby’ ou uma estelar ‘Bliss’. “Will
Muse Wolstenholme e Dominic Howard habituaram-se of the People”, o nono longa-duração de estúdio,
Warner a encher grandes arenas e a encabeçar festivais parece querer trazer os Muse de volta à terra
E 64
alimentaria as teorias da conspiração que parecem
espremer a veia criativa de Bellamy, principal
letrista do grupo, o álbum chega, segundo o
próprio, como reação “à crescente incerteza e
instabilidade” que assolou o mundo nos últimos
anos. O músico explicou, numa entrevista à revista
britânica “The Big Issue”, que a editora lhes tinha
“encomendado” uma coletânea de sucessos e que
a resposta é este disco: uma “compilação de novas
melhores canções”. Entendemos o piscar de olho
provocador quer à editora quer àqueles fãs que já
começavam a colocá-los de parte e percebemos
o que o grupo quis fazer, indo buscar lições ao
passado para insuflar nova vida à sua música, mas
seria um exagero dizer que “Will of the People”
nos faz vibrar como os melhores momentos
da sua discografia. Resistindo à tentação de
gravar um álbum longo — com 37 minutos, é o
mais comedido de todos os que editaram até ao
momento —, passeiam-se entre os vários géneros
musicais que foram abordando, à sua maneira, ao
longo do tempo: tanto se atiram à fúria metaleira
de ‘Kill or Be Killed’ como a uma ‘queeniana’
‘Liberation’, aos sintetizadores dançáveis de
‘Compliance’ e de uma fantasmagórica ‘You Make
Me Feel Like It’s Halloween’ ou à sensível balada ao
piano ‘Ghosts (How Can I Move On)’. E fazem-no
com a determinação e segurança de uma banda
que, para o bem e para o mal, passou as últimas
duas décadas a colocar as suas vontades acima das
expectativas dos outros.
“Uma pandemia, novas guerras na Europa,
protestos e motins em massa, uma tentativa
de insurreição, o enfraquecer da democracia
ocidental, o crescimento do autoritarismo, os
fogos e desastres naturais e a destabilização da
NICK FINCHER
E 65
QQQQQ QQQQ
CHEAT CODES SUN’S SIGNATURE
Danger Mouse & Black Thought Sun’s Signature
BMG 12’’ ou download Partisan Records
Ian Carter e
Nicola Kearey,
os membros
dos britânicos Danger Mouse. Black Thought. O Quando alguém se lembrou de
Stick In The primeiro nome pode remeter para chamar a Elizabeth Fraser “a voz de
Wheel o universo dos desenhos animados, deus”, poderemos ter, enfim, ficado
mas o segundo ostenta com orgu- a conhecer o género do poder su-
lho uma linhagem de resistência e premo mas isso nunca seria atenu-
E
m agosto de 2020, Nicola concretização do projeto de ou Ta-Nehisi Coates. Danger Mouse nietzschiana de 1882, em 1997, os
Kearey e Ian Carter (os Stick residência artística apresentado é Brian Burton, produtor que despon- Cocteau Twins imobilizaram-se
In The Wheel) publicaram à EFDSS em 2019 no qual tou há quase 20 anos, quando, sem para sempre e “a voz de deus” ca-
um vídeo no YouTube no qual se propunham examinar as pedir licença a ninguém, causou furor lou-se. Não de forma realmente to-
se deixavam ver espiolhando noções de cultura, tradição, na internet ao colar os a cappellas do tal mas apenas os de muita fé terão
prateleiras e gavetas dos arquivos recolha, contaminação e “Black Album”, de Jay-Z, a batidas da reparado nas meteóricas aparições
da Cecil Sharp House, sede da fragmentação daquela música, sua autoria criadas a partir de samples — à boleia dos Massive Attack,
English Folk Dance and Song partilhando-a com quem não do “White Album”, dos Beatles, num Peter Gabriel, Sam Lee, Oneohtrix
Society (EFDSS). Algures pelo tinha relação próxima com ela. disco ilegal a que deu o apropriado Point Never, duas ou três bandas
meio, perante um daqueles A saber, Nabihah Iqbal (música, título “The Grey Album”. A ousadia sonoras, um ou dois singles quase
“instantâneos de uma época” radialista e advogada de origem criativa serviu-lhe de passaporte para confidenciais e outro realmente
— “As Close As Can Be”, de paquistanesa); Olugbenga trabalhar com Beck, Gorillaz, Red Hot confidencial (e inédito: ‘All Flowers
Peta Webb e Ken Hall —, Nicola Adelekan (baixista nigeriano dos Chili Peppers, Black Keys ou Norah in Time Bend Towards the Sun’, com
recorda-se de como, ao escutá- Metronomy e Africa Express); Jones. Nada mau para um artista com Jeff Buckley) — que, em 2012, pas-
lo pela primeira vez, se deu e Jon1st (DJ, turntablist). O que nome infantil. Black Thought, por sua sariam pelo palco do London Melt-
verdadeiramente conta de que — após a estreia integralmente vez, é Tarik Trotter, a principal voz dos down Festival. Com o companheiro
“se tratava de pessoas que tinham acústica de “From Here” (2015) The Roots, emérita fundação hip-hop e co-conspirador Damon Reece
vivido uma vida ali presente nas e uma mão cheia de mixtapes e americana que também é banda resi- (Massive Attack, Spiritualized, Echo
suas vozes e isso fez-me pensar field recordings — já nos anteriores dente no talk show de Jimmy Fallon e & the Bunnymen, Lupine Howl) aí
que seria capaz de encontrar e ótimos “Hold Fast” (2020) e o tipo de artista a quem a expressão “o apresentaria quatro quintos do que,
uma via para lidar com este tipo “Tonebeds for Poetry” (2021) se rapper favorito do teu rapper favorito” três anos antes, ao “The Guardian”,
de música e torná-la relevante desenhava, em “Perspectives assenta como uma luva: já debitou havia revelado “poder vir a ser um
para mim”. Exatamente a mesma On Tradition” emerge rimas ao lado de Common, Mos Def, álbum”, embora a precisar ainda de
Nicola Kearey que, há quatro clarissimamente: a ‘Milkmaid’, Talib Kweli, Raekwon, Freddie Gibbs “ser muito polido”. Demorou só uma
anos, por altura da publicação de contemporânea da “Tess of the ou, entre tantos outros, Eminem. Nada década a limar as arestas, à exceção
“Follow Them True”, confessara d’Urbervilles”, de Thomas Hardy, mau para um homem negro de Filadé- da faixa de abertura, “Underwa-
“I hate folk music” e que, não se incomoda nada com a lfia que viu os pais serem assassinados ter” que, desde a publicação como
agora, à “Tradfolk”, reforça esse vizinhança dos corais do Quénia antes de completar o liceu e por um single, em 2000, precisou de 22
ponto de vista: “Não mudei de e da Nigéria eletronicamente bocado se viu obrigado a vender droga anos para alcançar a configuração
opinião. Na verdade, tê-la-ei até evaporados, na realidade, parentes nas ruas para sobreviver. Juntos, Dan- ideal. Não é exatamente um álbum
endurecido. Penso que muito do muito próximos do que resulta do ger Mouse e Black Thought criaram mas algo entre um miniálbum e
cânone da música tradicional frenético robustecimento rítmico — finalmente — um disco enorme, sem um EP robustecido (5 faixas num
inglesa dos recoletores vitorianos de ‘Let No Man Steal Your Thyme’. truques, ao contrário do que sugere o total de 30 minutos), intitulado, tal
é extremamente problemático. O Como já se suspeitava. / JOÃO título, ou espalhafato comercial, em como o duo Fraser-Reece, “Sun’s
que me interessa nesse passado LISBOA que às imaginativas, psicadélicas e Signature”. Damon fala de Ber-
e nas pessoas que o habitaram é cinemáticas batidas correspondem nard Herrmann e John Barry como
encara-lo como um contínuo até rimas afiadas e inteligentes que falam estimulantes estéticos, Elizabeth
ao presente, compreender por que da experiência do homem negro na prefere resguardar-se das possíveis
motivos sobreviveu tanto tempo América contemporânea. O rapper diz influências de outros músicos mas
e aquilo que, enquanto humanos, quem é: “I’m like Thelonious at the un- gostaria de “conduzir-nos numa
nos faz ver acerca de nós mesmos.” derground piano.” E é mesmo. Armado viagem como a de ‘Forever Chan-
E, para um melhor entendimento, até aos dentes com uma eloquência ges’, dos Love”. Pensem numa ‘Song
nada como submeter a tradição invulgar, Thought, bem servido por To The Siren’ ampliada e mobilada
a uma incursão guerrilheira de QQQQ Mouse, assina um álbum sem mácula de vibrafones, dulcimeres, Moogs,
desavergonhada “apropriação PERSPECTIVES ON TRADITION que até conta com versos inéditos do mellotrons, címbalos, e celestas por
cultural”: o que, no tal vídeo, Stick In The Wheel malogrado MF Doom. Tudo certo. / RUI Alison Goldfrapp, paisagista sonora
ocupava Nicola e Ian era a From Here Records MIGUEL ABREU de “Felt Mountain”. É por aí. / J.L.
E 66
E ainda...
RITA CARMO
QQQQ
DOMENICO SCARLATTI: STABAT
MATER & OTHER WORKS FESTA DO “AVANTE!”
Le Caravansérail, Bertrand Cuiller Quinta da Atalaia, Seixal, até domingo
Harmonia Mundi festadoavante.pcp.pt
Com um cartaz eclético, a Festa do
O maestro e cravista francês Ber- “Avante!” arranca hoje na Quinta
trand Cuiller tem assinado progra- da Atalaia com o fado de Jonas, as
mas dedicados a Purcell, Locke, Byrd, eletrónicas dos Lefty e um con-
Haendel, Couperin, Rameau e Bach certo sinfónico de celebração do
e a sua carreira inscreve-se em agru- centenário do nascimento de José
pamentos de música antiga como Saramago. Amanhã será a vez de
Les Arts Florissants, Le Concert subirem ao palco artistas como Mão
Spirituel e ainda Les Basses Réunis, Morta, Carmen Souza, Fogo Fogo,
de Bruno Cocset, o violoncelista Júlio Resende ou Pongo; no domin-
que participa aqui nesta gravação go atuam, entre outros, Carminho
onde se congregam peças diversas (na foto), Dino D’Santiago, Paulo
do notável património musical de Bragança e Marta Ren.
Domenico Scarlatti (1685-1757).
Cuiller, um dos discípulos de William
Christie, dirige aqui Le Caravansérail,
o agrupamento que fundou em
2015, surgindo como protagonista
de obras de Scarlatti como o “Stabat
Mater”, uma página de música sacra
escrita em Roma, celebrada pela
riqueza do tecido vocal em que PAULO DE CARVALHO
brilham os solistas Emmanuelle de Teatro Tivoli, Lisboa, hoje, 21h
Ministério do Turismo,
Ministério das Relações Exteriores
Negri (soprano) e Paul-Antoine Bé- Acompanhado pelo seu septeto, e Governo de Minas Gerais
apresentam
nos-Dijan (contratenor). Na grava- Paulo de Carvalho celebra “60 Anos
ção, foram ainda incluídas cantatas de Cantigas” em Lisboa (hoje), Porto
profanas nomeadamente ‘Pur nel (Coliseu, dia 9) e Leiria (Teatro José
sonno almen tal’ora’, um excerto da
ópera “Amor d'un Ombra e Gelosia
Lúcio da Silva, dia 17). Ao palco leva-
rá as canções mais marcantes de turnê
d'un Aura” e um trio de sonatas (K.
90, 144, 213) do compositor napoli-
um percurso que arrancou com Os
Sheiks e se afirmou com clássicos POR setembro
2022
tano, o eminente cravista, organista
e compositor fecundo que foi tutor
como ‘E Depois do Adeus’, ‘Nini dos
Meus 15 Anos’ ou ‘Os Meninos de TU 6 porto
casa da música
GAL
da infanta portuguesa Maria Bárbara Huambo’.
7
lisboa
de Bragança. Scarlatti dirigiu a Ca- jardim da
torre de belém
pela Real em Lisboa, permanecendo
8
em Portugal de 1720 até 1729. Autor lisboa
celebração
ç centro cultural
de 555 sonatas, a vastíssima obra de do bicentenário
de belém
nas originalíssimas sonatas de Scar- neoclássica. A primeira parte é da SECRETARIA ESPECIAL DA MINISTÉRIO DO
CULTURA TURISMO
latti. / ANA ROCHA cantautora londrina A. A. Williams.
Anne Frank
é interpretada
por Beatriz
Frazão
JOÃO GOMES
Continuar
que já tinha escrito. Durante a maneira como são vistas as relações
estadia no abrigo recebem a ajuda entre as pessoas. São relações de
de empregados de Otto Frank, cujo coabitação e de sobrevivência, e as
auxílio e amizade estão para lá de condições são propícias à instalação
toda a descrição; só os factos podem de um ambiente tenso ou mesmo
E 68
MUSEU DO ORIENTE
SETEMBRO
www.foriente.pt
E ainda...
ATÉ 23 OUTUBRO
ANIMAL FARM
BRUNO SIMÃO
EXPOSIÇÃO DE CHOU CHING-HUI
ATÉ 2 OUTUBRO
EXPOSIÇÕES
HISTÓRIAS DE UM IMPÉRIO
TUNA
gem com forte carga simbólica que RIUM#8 apresenta sessões abertas
não há muito tempo foi isso mesmo: ao público de residências artísticas, OFICINA | 24 SETEMBRO
quando a Cornucópia, de Luís Miguel concertos e espetáculos de teatro PÉS E PEGADAS
Cintra, que ali estava instalada, fechou e de dança. “O Gato Malhado e a PARA CRIANÇAS [3-5 ANOS]
portas (2016), tudo foi posto à venda. Andorinha Sinhá”, do Teatro do Noro-
“Viemos todos escolher pecinhas este, é uma das propostas (Auditório VISITA CONTADA | 25 SETEMBRO
que iriam ficar esquecidas”, lembra Municipal António Silva, Agualva- EM CONVERSA COM…
Paula. Agora, o Teatro é um depósi- -Cacém, dia 18, na foto). CAQUESSEITÃO –
to efémero onde objetos e pessoas
ocupam temporariamente o espaço,
AQUAMANIL
PARA CRIANÇAS [M/6 ANOS]
sem grande distinção entre os dois. As
pessoas vão andar de um lado para o
outro, assim como as coisas. Essa foi
WORKSHOP | 14 SETEMBRO
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E 70
E ainda...
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U
AQUELA AREIA QUE ESCORRE ENTRE DUAS CAMPÂNULAS DE VIDRO ATRAVÉS DE UM
ORIFÍCIO ESTREITO, LEVADA PELA FORÇA DA GRAVIDADE, É A IMAGEM-SÍMBOLO DO TEMPO
m poeta chamou a este objecto, Agostinho. Aquela areia que escorre entre duas campânulas de vidro
a ampulheta, “espião do tempo” através de um orifício estreito, levada pela força da gravidade, é a
e “ministro do pensamento”. imagem-símbolo do tempo, não apenas do tempo que passa mas do
Ao longo dos anos, sem ter bem tempo que falta, que se esvai sem remédio, ou do tempo que foge sem
noção disso, fui acumulando desaparecer, que continua depois de nós, assim alguém dê a volta e
umas quantas ampulhetas, reinicie o processo. Há como que uma depuração da problemática do
vulgares ou sofisticadas. Não é tempo neste engenhoso objecto, com os seus “claustros” e “dunas”, na
uma colecção, mas talvez seja uma expressão sugestiva de Jünger, mecanismo que traz consolo e tristeza,
obsessão. Tenho dificuldade com que lembra a erosão da matéria, que antecipa a aceleração do fim, que
noções demasiado abstractas, e a exibe o pó ao qual voltaremos.
ampulheta, a sua presença numa Dantes, talvez fosse o desenho da ampulheta que me agradava, tanto
mesa ou estante, permite que me quanto a sua simbologia, é um dos mais elegantes objectos jamais
relacione de alguma maneira com a mais abstracta de todas, o tempo. inventados; mas, na meia-idade, o tempo deixou de ser uma categoria
Um tempo que, neste caso, não é o da natureza, nem o dos relógios, um estética, passou a ter a deselegância dos factos, sobretudo quando as
tempo a meio caminho entre o facto e a ideia. pessoas nos morrem e nem compreendemos ao certo o que aconteceu.
Ernst Jünger, no seu admirável tratado sobre as ampulhetas (“Das Durante séculos, as ampulhetas serviram de medida a pregadores,
Sanduhrbuch”, 1954), distingue três espécies de relógios: os cósmicos, causídicos, médicos, marinheiros, e de emblema aos letrados. A mim
como os relógios de sol (na verdade, de sombra); os telúricos ou não me servem de nada, nunca as utilizo, quase nem lhes toco. Posso
elementares, como as ampulhetas, as clepsidras (o “roubador de tratá-las como se fossem decorativas, mas sei que um símbolo não é um
água”) e os feéricos relógios de fogo; e os relógios mecânicos, já sem ornamento. É por isso que deixo sempre as ampulhetas encostadas aos
correspondência com a natureza. Quanto mais “naturais” são esses livros, seus aliados. b
relógios, mais próximos estão de um tempo entendido como cíclico, pedromexia@gmail.com
onde o que importa é um determinado conjunto de tarefas a executar, e Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
mais distantes de um tempo “progressivo”, onde o tempo em si mesmo,
ou antes, a medida do tempo, conta mais do que aquilo que com ele
fazemos.
A ampulheta é com toda a probabilidade uma invenção medieval, mas
enquanto imagem ficou imortalizada na arte renascentista, geralmente
com função alegórica, como em duas famosas gravuras de Albrecht
Dürer, ambas de 1514. Uma representa São Jerónimo, tradutor da
Bíblia e padroeiro dos tradutores, a trabalhar, tendo perto de si uma
ampulheta, emblema da contemplação e da erudição, de um tempo
lento mas vivo, semelhante ao seu contrário, o tempo do ócio. A outra
gravura, “Melancolia”, mostra uma outra dimensão da ampulheta, a
angústia do tempo que passa e traz consigo a morte, como no feroz
adágio vulnerant omnes, ultima necat, “todas [as horas] ferem, a última
/ PEDRO
mata”. MEXIA
Numa fórmula famosa, Santo Agostinho disse que sabia o que
era o tempo quando não lhe perguntavam, mas não quando lhe
perguntavam. Para mim, a ampulheta é como a não resposta de
E 72
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”
Cultura líquida
Da Tiblíssi vibrante – onde vários mundos e
FOTOGRAFIAS D.R.
E 73
“G
aumarjos!” repete Jaba Dzimistarishvi-
li cumprindo a tradição de brindar pri-
meiro à paz, depois ao motivo que nos
leva ao fresco subterrâneo do Museu do Vinho, num
dia quente de passeio pelo centro de uma Tiblíssi
primaveril. Eleito o melhor sommelier da Geórgia
nos últimos dois anos, representa a nova geração
que abraça a história milenar de um dos maiores
símbolos do país. Jaba trabalha com produtores de
cinco das nove regiões vínicas demarcadas e com
várias das 500 castas identificadas no território,
perto de 40 utilizadas atualmente para produzir
vinho. É incapaz de escolher uma favorita ou pre-
cisar quando o néctar começou a ser produzido na
família. Não admira.
As talhas com resíduos de vinho, datadas de há
8 mil anos, encontradas a sul de Tiblíssi, fazem da
Geórgia o berço mundial do vinho e a cultura víni-
ca é transversal a todas as gerações, épocas e terri-
tórios. Para a grande maioria dos georgianos, é tão
natural bebê-lo como produzi-lo. Mesmo em plena
cidade, viver num apartamento não é impedimen-
to. Depois, compete-se naquilo que é um verdadei-
ro “desporto nacional”: de copo na mão, entre vizi-
nhos, amigos e conhecidos, discute-se quem pro-
duz o melhor néctar, explica Ketevan Akhobadze,
guia turística também com formação de sommelier,
que mostra a força milenar do vinho no país: “Uma
pessoa podia ser muito pobre, mas a maior vergo-
nha era não ter vinha.”
Elevada em 2013, pela UNESCO, a Património
Cultural Intangível da Humanidade, a técnica sin-
gular de produção de vinho segue preceitos ances-
trais. É no kvevri ou qvevri, ânfora ou talha de bar-
ro, que decorre o processo tradicional: as uvas são
metidas inteiras num recipiente, posteriormente
tapado com uma tampa de madeira, pedra ou vidro
selada com argila ou terra, e enterrado no subsolo
ou deixado no chão, num local fresco e ao abrigo
da luz, como uma cave. Além de fermentar, tam-
bém estagia, já que apenas pelo menos nove meses
depois é aberto e o líquido engarrafado. A técni-
ca confere ao vinho georgiano aromas singulares
e bastante corpo. Antes de chegarem à ânfora, as
uvas podem passar pelo satsnakheli, um recipien-
te esculpido num grande tronco de árvore, onde
são pisadas a pé, tal como acontece em Portugal.
Dá origem a brancos, tintos, rosés e âmbar — uma
coloração específica deste método de produção, di-
ferente dos orange wines, que também se fazem — e
vintages, aqui conhecidos como rtveli.
ESTAGIAR NA ARRECADAÇÃO
O legado celebra-se no Museu do Vinho, instala-
do desde o início de 2020 num edifício secular da
capital e ponto de partida perfeito para o périplo
de descoberta. Artefactos com milhares de anos
convivem com modernas masterclasses conduzi-
das por Jaba Dzimistarishvili e com uma cave onde
resistem vinhos com 120 anos. No espaço mostra-
-se “como fazemos vinho há 8 mil anos, ao mesmo
tempo que damos nova vida a um edifício histó-
rico do século XV, com subterrâneos que se suce- Cada refeição é um banquete de pratos tradicionais.
dem, revelando séculos de arquitetura tradicional
e que estiveram submersos nos últimos 50 anos”, A cozinha georgiana é rica, elaborada com ingredientes
explica a jovem Rusudan Tchumbadze, diretora do
Museu, que regressou à Geórgia há quatro anos,
frescos e intensa em sabores. Talvez por isso a generalidade
depois de cinco a trabalhar na Austrália. Consigo dos vinhos não tem aromas muito pronunciados
E 74
trouxe novas ideias, fruto do trabalho também
como produtora de cinema. Na Netflix, conta na ENTRE A EUROPA E A ÁSIA
série “The Traider”, premiada no Festival de Cine-
ma de Sundance, em 2018, como no país era o vi- COMO CHEGAR produção de vinho em talha. Antes de Tiblíssi, até ao
nho não a batata que servia como moeda de troca A Geórgia faz fronteira a norte com a Rússia, a sul com séc. V, era aqui a capital da Geórgia.
para quase tudo. Essa visão cinematográfica está a Turquia, o Azerbaijão e a Arménia e a oeste com o
Uplistsikhe
bem patente no espaço, onde a história convive Mar Negro. Entre a Europa e a Ásia, não se identifica
Importante ponto de passagem da Rota da Seda, esta
com a arte. O tão enraizado supra — o banquete nem como Europa, nem como Ásia, mas sim com o
cidade esculpida em grutas, sobre o rio Mtkvari é uma
Cáucaso. As temperaturas são semelhantes às de
—, outra das tradições georgianas, revela-se numa das mais antigas ‘urbanizações’ do país, habitada há
Portugal, com primavera e outono amenos, e verões
instalação artística que retrata o festim. Uma mesa mais de 2 mil anos. Fica a cerca de 10 quilómetros de
moderadamente quentes, mas o inverno — e as zonas
bem posta, com flores no lugar da comida, cálices Gori, cidade natal de Estaline.
montanhosas — revela-se mais rigoroso. A capital é
tradicionais e sobretudo a vontade de aproveitar a Tiblíssi, onde fica o principal aeroporto internacional. Kvishkheti
vida entre muitos brindes que na Geórgia obede- O lari, que corresponde a cerca de €0,35, é a moeda Artistas de vários quadrantes procuram esta
cem a ritual próprio. oficial. Diariamente, a Turkish Airlines voa entre Lisboa encantadora vila para se inspirarem e respirar o ar
e Tiblíssi via Istambul, com preços a partir de €455. puro, em especial na primavera. Entre montanhas
VINHO POLÍTICO verdejantes, neste local cruzam-se três ventos que
No número 6 da Rua Tiblíssi, em Martvili, oeste da O QUE VISITAR tornam ar especial, explica o casal proprietário do
Geórgia, os visitantes de nacionalidade russa não Acolhedor, orgulhoso da sua história e tradições, o fabuloso Mtserlebi Resort (Mtserlebi st. 1, Kvishkheti).
são bem-vindos, e o aviso está explícito logo à en- povo georgiano vai fazê-lo sentir em casa. De pequena
Martvili Canyon
trada. Também as garrafas desta pequena produ- dimensão, muito diverso de região para região, basta
Na região de Mingrélia fica um dos mais belos
ção familiar, onde os rótulos relembram que 20% andar poucos quilómetros para nos depararmos com
monumentos naturais. Com vegetação densa e várias
dinâmicas zonas urbanas, montanha, parques naturais
do território da Geórgia está ocupado pela Rússia quedas de água, sempre que o rio está de feição pode
para explorar ou praias banhadas pelo mar negro. Misto
(desde 2008, as regiões de Abecásia e a Ossétia do também percorrê-lo de canoa.
de influências culturais, resultado de uma história
Sul foram ocupadas depois do que ficou conhe- marcada por sucessivas invasões, por parte de diferentes Okatse Canyon
cido como guerra russo-georgiana), não deixam povos, a mescla está por todo o lado e expressa-se na Impróprio para quem tem vertigens, este passeio que se
margem para dúvidas. Aqui vive outro exemplo arquitetura, na religião e até na gastronomia riquíssima. estende entre natureza e passadiços elevados tem as
da forma como as novas gerações abraçam as se- Apesar da fronteira com a Rússia, o país é seguro e a Montanhas do Cáucaso, cobertas de neve, como cenário.
culares tradições da produção de vinho, confe- população afável e acolhedora. Com pouco mais de 3
Sairme
rindo abordagens contemporâneas. A proprieda- milhões e 700 mil habitantes, recebe turistas oriundos
Com água proveniente de mais de 1000 metros
de familiar dos Oda Wines, onde se pode provar, das mais diversas regiões — chegaram a 9 milhões
de profundidade, esta é uma zona de cura termal.
almoçar, jantar e visitar a vinha e a adega, é di- em 2019 —, com destaque para a Rússia, Europa de
Montanhosa, húmida e muito verde, é adequada a
rigida por uma jovem enóloga com visão inter- Leste e Médio Oriente que procuram a diversidade de
diversas patologias: pode fazer tratamentos específicos,
nacional. O sangue novo é responsável por ou- paisagens, o turismo de natureza, as estâncias termais
passeios pela montanha, banhos de sal, envolvimentos
abundantes ou as balneares, na costa do Mar Morto.
tra experiência recente, a de provar vinho numa em lama do Mar Morto e descidas de zip line.
As montanhas do Cáucaso são um dos pontos mais
gruta. Pode fazê-lo na frescura da Tetra Cave, em
procurados para escalada e também consideradas um
Tskaltubo, a cerca de 250 quilómetros de Tiblíssi. ONDE COMER:
dos mais belos locais do país.
Depois de seguir as pisadas do avô, de quem her- Restaurante Z10
dou a propriedade rural, Nino Meris embarcou na Tiblíssi Na sala, decorada com objetos antigos e instrumentos
viagem que tem conduzido uma geração de jo- Comece a viagem pela zona antiga, Abanotubani, da musicais ou no agradável pátio exterior, abraça a
vens georgianos, à medida que o mundo se inte- vibrante Tiblíssi onde não pode perder os Banhos de gastronomia típica e as novas tendências, num espaço
Enxofre, aproveitando, de dia ou de noite, a existência elegante mas relaxado, à imagem de uma Tiblíssi
ressa cada vez mais pelos seus vinhos. Começou
de nascentes de água sulfurosa. Foram uma das razões cosmopolita.
a produzir sob o método tradicional e acabou por
para aqui se ter instalado a capital do país, no século Zurab Zhvania st. 10, Tiblíssi
abrir o Nino Meris Wine Selection, em Tiblíssi, V. Visite a Igreja Santa Virgem Metekhi, o Castelo de
onde serve de montra a outros pequenos produto- Narikala e o miradouro sobre a urbe, que se alcançam a Restaurante Ethnographer
res. Caquécia e Imerícia são as suas regiões favori- partir de um teleférico. Localizada na zona antiga fica Música e danças tradicionais, importante património
tas. “Ambas são capazes de mostrar a diversidade também a Mesquita Jumah, uma das raras no mundo da Geórgia, acontecem diariamente à hora de jantar,
da Geórgia. Enquanto os vinhos de Caquécia são onde muçulmanos das etnias sunita e xiita rezam juntos. conjugando-se com gastronomia e vinhos tradicionais.
intensos, com taninos pronunciados e comple- Passeie pelo Jardim Botânico de Tiblíssi e atravesse Beliashvili st. 105, Tiblíssi
xos, os de Imerícia revelam-se leves, frescos, fru- a Ponte da Paz, contemporânea, símbolo da transição Restaurante Kera
tados, com acidez média e pouco álcool”, detalha. do passado da Geórgia e um futuro mais próspero. Contemporâneo e aberto ao rio, tem vários espaços
Na Caquécia, no leste da Geórgia, a curta distân- Próxima fica a cosmopolita Avenida Rustaveli cujo ao ar livre, resguardados por tendas, onde pode fazer
cia da capital, vivem as maiores casas produtoras nome presta homenagem ao poeta georgiano Shota a refeição. Mas na sala principal, envidraçada, junto à
e crescem mais de metade das vinhas do país sen- Rustaveli. Nesta ampla artéria vivem o Museu Nacional lareira, centro da antiga casa de família, o acolhimento
Georgiano, o Museu de Belas Artes e o Museu de e a cozinha local sabem ainda melhor.
do, por isso, uma das melhores regiões para visitar
Arte Moderna lado a lado com mansões Art Nouveau Sanapiro st. 3, Mtsqueta
e provar. Aqui dominam as castas brancas Rkat-
e outros espaços culturais, como galerias de arte,
siteli, Mtsvane Kakhuri, Khikhvi, Kisi e Kakhuri cinemas, teatro e ópera. O Palácio Presidencial, a sede
Mitsvivani, e a tinta Saperavi; a região de Imerícia, CUIDADOS A TER
do Banco Nacional da Geórgia e a Catedral Sameba
do lado oposto do país e sob influência do Mar Ne- A Geórgia é um país seguro e acolhedor. Recomenda-
também se encontram nas proximidades. Descubra
gro, é outra das imperdíveis, onde predominam as se, no entanto, que as deslocações fora da capital,
o trabalho de artistas locais e as velharias do tempo
Tiblíssi, sejam acompanhadas por um guia já que, com
variedades brancas Tsolikouri, Tsitska e Krakhuna. da União Soviética no mercado Dry Bridge, ao ar livre,
três alfabetos próprios, e onde boa parte da população
Da extensa variedade, as uvas mais usadas no todos os dias da semana.
fala russo, não é ainda comum, fora da capital,
país são a Rkatsiteli, casta de vinhos encorpa-
Mtsqueta encontrar quem fale inglês.
dos, e Mtsvane, para vinhos minerais de guar- A curta distância de Tiblíssi fica um local sagrado que A Guestgeorgia (Tel. 00 995 591 817 161;
da, ambas brancas, a par da tinta Saperavi, fru- marca o início do cristianismo na Geórgia. Suba a e-mail: guestgeorgia.ge@gmail.com) conduz viagens
ta que dá origem a vinhos profundos e persis- montanha até ao local de culto de Mtsqueta e desça desenhadas à medida do cliente pelo país, seja para
tentes, a mais comum e favorita na Geórgia. até à vila onde o Mosteiro Jvari, com 1400 anos, e percorrer a natureza, a gastronomia, os vinhos ou a história.
O conhecimento sobre a variedade, os métodos e os seus monges, permanecem guardiões de vários As deslocações para os territórios ocupados de Abecásia
as diversas abordagens à tradição não fica completo tesouros históricos e das técnicas ancestrais de e a Ossétia do Sul são totalmente desaconselhadas. / A.F.
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É na região de Alta Suanécia
que fica o Martvili, um dos
mais belos monumentos
naturais. Com vegetação
densa e várias quedas de
água, sempre que o rio está
de feição pode também
percorrê-lo de canoa
sem uma passagem pelas regiões de Cártlia, abun- Na cozinha da família, recebe-nos com sabores pepino e queijo. Conforme a região, assim varia
dante nas variedades brancas Chinuri e Goruli Mts- genuínos, colocando delicadamente a carne en- a receita e o tipo de queijo, presença constante
vane, e tintas Tavkveri e Shavkapito; Racha-Lechu- cimada por uma folha de nogueira, a assar na la- nas mesas georgianas. Para finalizar a refeição
mi, onde são mais comuns a casta branca Rachuli reira acesa, no mesmos recipientes de barro onde é normalmente servida fruta fresca ou seca —
Tetra e as tintas Alexandrouli, Mujuretuli, Dzel- massa se transformará em pão de milho, o Mcha- como os dióspiros ou o churchkhela — elaborado
shavi, Usakhelouri e Orbeluri Odzhaleshi, e onde di. A toda a volta da habitação há horta e vinha e com sumo de uva, nozes e farinha que se deixa
nasciam os tintos favoritos de Estaline, natural da mesmo ao lado o local onde repousam os vários secar até ficar com a forma de um enchido doce.
Geórgia. Em Guria destaca-se a casta branca Sak- qvevis, já vazios, pois o vinho que aí estagiou du- Cada refeição é um banquete de pratos tradicio-
miela e a Chkhaveri, utilizada para rosé; e em Alta rante vários meses foi entretanto engarrafado, o nais. A cozinha georgiana é rica, elaborada com
Suanécia domina a variedade tinta Odzhaleshi. que acontece habitualmente entre março e abril. ingredientes frescos e intensa em sabores, e tal-
As mais emblemáticas regiões produtoras podem A mesa enche-se até não caber nem mais uma vez por essa razão a generalidade dos vinhos não
ser percorridas através da Wine Route, desenhada travessa. Num misto de sabores mediterrânicos tem aromas muito pronunciados. Durante o re-
pelo Turismo da Geórgia e que traça o roteiro por e do médio oriente, chega primeiro khachapuri — pasto, capaz de se prolongar por várias horas ou
165 produtores, entre casas familiares e châteaux o mais famoso prato do país, uma espécie de pão mesmo unir o almoço ao jantar, é o Tamada que
de maior dimensão, onde se desvendam os segre- baixo recheado com queijo, cuja receita varia de tem a palavra — e a tarefa de brindar com regu-
dos da produção, se assiste às dinâmicas e se com- região para região, podendo levar diferentes ti- laridade. É “eleito” como mestre de cerimóni-
preende o território e a relação natural deste povo pos de queijo, ovo ou ervas aromáticas; os khin- as a pessoa mais bem falante, mais velha e/ou
com o vinho. kali — bolinhos de farinha recheados com dife- com maior sabedoria do grupo. A seu cargo tem
rentes tipos de carne, cogumelos ou batata; dolma a tarefa de ir levantando o copo durante a supra.
VIAGENS ENOGASTRONÓMICAS — um rolo de folha de videira recheado com arroz Cada brinde, dos muitos que se sucedem, segun-
Aos 90 anos, ainda cabe a Guguli, antiga professo- e carne picada; lobio — um guisado de feijão com do uma ordem determinada, é um pequeno poe-
ra primária, a preparação da parte do almoço ela- especiarias; kharcho — entre um guisado e uma ma, e se o segundo celebra o anfitrião ou motivo
borada ao calor da lareira. Estamos em Baghdati sopa de carne temperada com especiarias, frutos que está na base do encontro, o primeiro dirige-
(Rua Rustaveli, 3) na adega familiar e tradicio- secos e ameixa azeda; badrijani — beringela re- -se sempre à paz. “Que a vitória seja nossa!”, tra-
nal Gaioz Sopromadze, onde nos recebem na casa cheada com pasta de nozes; elarji — polenta com duz o celebrado “Gaurmajos!”. b
de família. Apologista de beber muita água, que queijo; e mtsvadi — a versão georgiana de chur-
considera um dos segredos da sua longevidade, rasco, elaborado com diferentes tipos de carne. O “Boa Cama Boa Mesa” viajou a convite
“com o vinho é preciso ter mais cuidado”, avisa. Há sempre pelo menos uma salada de tomate, da Embaixada da Geórgia em Lisboa
E 76
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)
PRODUTOS
& PRODUTORES
Cooperativa
Integral Minga
Na Loja da Cooperativa Integral Minga,
situada no Largo da Estação, em Mon-
temor-o-Novo, o que chega das hortas
locais todas as manhãs convida a conhecer
uma paisagem alimentar produtiva que se
estende para lá do montado. Dos quintais,
hortas familiares e pomares tradicionais, em
redor, acolhe-se a diversidade de hortícolas
de cada estação. Cultivam-se alimentos
com dedicação e boas práticas agrícolas,
em que se respeita o solo, o uso eficiente
da água e os ciclos naturais. Neste cabaz
de abundância estão também presentes
leguminosas, aromáticas, ovos caseiros
e alguns frutos. Partilham-se dióspiros
sumarentos no outono, figos Pingo de Mel
e muitas variedades de tomate no verão,
com diferentes tons de vermelho e amarelo,
aromas frescos e frutados. O trabalho de
pesquisa e o contacto direto com quem
produz permitem ter, atualmente, uma
oferta diversificada do melhor que se faz
na região, como enchidos de porco-preto,
queijos tradicionais, carne do montado,
pão de fermentação natural, mel multiflo-
ral, pólen e melada de bolota, cogumelos,
TIAGO MIRANDA
INGREDIENTES graus Celsius, com um peso no No interior, colocar o requeijão, PROJECTO MATÉRIA
1 requeijão / 1 molho pequeno de tomilho centro (pode ser grão de bico seco) os figos por cima, depois tomilho É um projeto sem fins lucrativos,
/ 2 figos / Mel q.b. / Massa folhada de forma a criar rebordos, até que ripado e mel. Levar toda esta tarte desenvolvido pelo chefe João Rodrigues,
que pretende promover os produtores
Cortar os figos em quartos. esteja folhado dos lados. ao forno, até que fique com uma
nacionais com boas práticas agrícolas e
Desfazer o requeijão com um Retirar com cuidado o grão de bico cor dourada na massa e nos figos. produção animal em respeito pela natureza
garfo. e pincelar os rebordos com uma Retirar e voltar a pôr mel por cima. e meio ambiente, enquanto elementos
Cortar a massa folhada em gema batida com um pouco de Pode-se fazer mais do que um fundamentais da cultura portuguesa.
retângulos, levar ao forno, a 180 água. retângulo de uma vez só. b Ler mais em projectomateria.pt
E 78
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA
F
cativo. A doçaria fala por si com o “Mil-
ignorância culinária”. Isto
eriae Augusti, eram os dias de re- também já não é uma cidade vazia em -folhas de avelã do Piemonte” (€10) de há 60 anos...
pouso que marcavam o final dos agosto. A marcação de mesa foi inevitá- camadas folhadas bem estaladiças, com Chegado à Pousada de
intensos meses de junho e julho, vel no Rocco. Abriu no inverno, mas res- um creme de caramelo de permeio in- Lagos foi proposto ao
de grande atividade agrícola ao nível de pira-se novidade num lugar que mesmo tenso demais, a roubar um pouco a cena autor “pescada cozida
colheitas e armazenamento de manti- estando dentro de um hotel em pleno às avelãs de categoria. Um pouco de ser- com batatas”, pelo que
mentos. Para compensar os servos ro- Chiado, tem entrada e vida próprias. viço de sala no excelente “Tiramisu clás- partiu em busca de cozinha
manos, o imperador Otaviano Augusto Três ambientes de cartas diferenciadas, sico” (€12) construído in loco, camada a algarvia. Depois de várias
tentativas, lá surgiu, diz:
marca no calendário um feriado a 1 de com a nossa opção a incidir no ristoran- camada, de creme de mascarpone e na-
“Uma tasca onde nos
agosto. O início das “férias de Augus- te, de linha clássica italiana. tas (sem gemas) aromatizado com vinho abriram umas amêijoas que
to”, data com a designação popular de No couvert “Mortadela com trufa, Marsala, biscoitos dedo de dama embe- podiam ter sido maravilho-
‘Ferragosto’. Surgiu em 18 a.C. e existiu focaccia fatte in casa, pão massa-mãe, bidos em café e Marsala, e por fim, bom sas se...” houvesse limões!
quase 2000 anos, até a igreja católica o azeite Rocco” (€4/pax) com a delica- cacau em pó a polvilhar o conjunto. O autor conclui que no
ter fixado a 15 de agosto, em 1950. O lado deza trufada da mortadela, de corte ma- O Rocco faz jus às porcelanas finas Algarve se come bem é nas
pagão, das primordiais corridas de cava- quinal finíssimo, e a belíssima focaccia: e talheres requintados, num ambiente casas particulares, e conta:
“Encontrámos um algarvio,
los no Império Romano, as praias e pi- alta, favada e fofa, em destaque. Formal estilo italo-veneziano (só indo…) que
já velho, que nos falou com
queniques que os italianos não dispen- e sem falhas, o “Vitello tonnato” (€20) é candidato aos Restaurant & Bar De- saudade da boa comida
sam, misturado com uma data religiosa. com fatias rosadas de vitela a preenche- sign Awards 2022. Cozinha de produto algarvia e das receitas
A evasão em vários sentidos e direções. rem o prato, o molho de atum sedoso a e técnica segura, justificada nos preços deliciosas que os mouros
“Tudo ia mal para mim naquele dar o contraste mar e terra, com o apon- pedidos — ao invés de outros com pseu- levaram com eles.” Quem
verão e, quando chegou o feriado de tamento de alcaparras frescas de quali- doluxo e ingredientes banais — embora gosta de dizer que antes é
agosto, dei comigo em Roma sem ami- dade. A subtileza de um belo superclás- a conta inclua uma sugestão de 5% de que era bom, que olhe para
gos, sem mulheres, sem parentes, sozi- sico. Delicado e fiel ao nome o “Creme gratificação, não avisada ao cliente. Ao o presente. As décadas
seguintes foram a era das
nho.” Alberto Moravia começava assim de sapateira” (€16) podia estar mais cre- regressar à rua quase esperamos cami-
cataplanas com natas para
em 1954 um dos seus contos dedica- moso, mas não era ‘só’ creme de cama- nhar até à Praça de São Marcos, mas é o alemães e ingleses, se deli-
dos ao Ferragosto. Tudo muda, e Lisboa rão guarnecido de lasquinhas do grande Chiado que nos aguarda, pois é Lisboa ciarem com o Allgarve.
crustáceo. Veio um caldo de sabor a sa- que ganha em ter lugares sofisticados
pateira com pedaços de carne a enrique- com esta qualidade transversal. Sabor
cerem uma porção generosa. Nos “Aran- e bom gosto constantes, sem sombra de
ROCCO cini al telefono” (€14) um trio de esferas Ferragosto. b
Hotel The Ivens de risoto com mozarela cremosa ‘flor de
Rua Ivens, 14 — Lisboa leite’, onde o queijo do recheio forma Desde 1976, a crítica gastronómica
Telefone: 210 543 168 um fio ‘telefónico’ ao fundir, segundo o do Expresso é feita a partir de visitas
Não encerra (reserva recomendada) imaginário romano (no corte com talhe- anónimas, sendo pagas pelo jornal
res, o fio, não se viu). Um belo molho de todas as refeições e deslocações
E 79
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS
GETTY IMAGES
Chegou o momento (deles)
E tudo se passa na adega
C
om a vindima a decorrer, a condução primeiras análises: se for branco vai fermen- poderoso conservante que se conhece desde
do processo deixou a vinha e passou tar para cuba ou para barrica nova? A decisão os tempos dos romanos: o anidrido sulfuroso,
para a adega. No fundo, após a chega- é muito onerosa (no caso das barricas) e por o “fantasma” do vinho que contém sulfitos
da das uvas à adega já nada importa nas cepas isso há que escolher bem as uvas. Na cuba ou e que surge nos contrarrótulos das garrafas.
e na vinha; agora é aqui que tudo se resolve e nas barricas é bom que se controle a tempe- Mas até chegar à garrafa muito ainda se exige
os enólogos pegam ao serviço. A primeira ta- ratura da fermentação — uma das grandes, ao enólogo: escolher lotes, decidir sobre que
refa é ter uma noção do estado sanitário das grandes inovações da enologia dos últimos tintos vão para o estágio em madeira (e de
uvas e para isso é preciso escolher: separar as 50 anos — para que os aromas não se per- que tipo, nova, usada, etc.) quanto tempo lá
podres, retirar as que estiverem totalmente cam. Espera-se que tudo corra bem mas, se ficam e depois fazer lotes, ensaiar até à exaus-
secas e mesmo muitas das que estiverem em a fermentação não arrancar ou parar a meio, tão combinações diferentes para se conseguir
passa. As secas não adiantam nada e as que é bom que se usem leveduras selecionadas qualidade, equilíbrio e expressão do local.
chegam em passa poderão fazer aumentar para o efeito. Para uns elas são um papão Este é um verdadeiro mantra que todos
em excesso o teor de álcool do vinho. Do esta- mas, para outros mais pragmáticos, são ape- procuram: a expressão do terroir. Consegui-lo
do sanitário podemos logo tirar algumas con- nas uma ferramenta para que tudo decorra é que não é fácil porque para isso é preciso fa-
clusões sobre o que esperar delas. Mas quem como é suposto. Acompanhar a fermentação zer a zonagem das vinhas e perceber que cas-
apenas observar os bagos pode ficar com uma e estar atento ao evoluir da mesma é algo que ta ou castas melhor representam e espelham
ideia errada (ou no mínimo incompleta) so- a moderna tecnologia permite; deixar tudo o que se esconde no solo. No final até pode-
bre a qualidade. ao Deus dará pode dar muito mau resultado. mos ter vinhos muito diferentes, ensaios de
É preciso analisar para se ter uma noção A ideia peregrina de que o vinho se faz tudo e mais alguma coisa, desde os brancos
dos teores de açúcar, do álcool provável e do por si é das maiores aberrações que nos têm feitos de uvas tintas até tintos do Douro com
pH e, em anos estranhos como este, os ba- tentado impingir nos tempos mais recen- 10% de álcool ou alentejanos com 17. As de-
gos até podem ter bom aspeto mas têm pou- tes. Com a liberdade toda, o mosto caminha rivações são isso mesmo mas, por favor, não
co sumo devido à seca extrema, logo, temos inexoravelmente para vinagre. Até pode não nos queiram fazer passar ensaios e maluqui-
diminuição da produção no horizonte. De- ser logo mas durará apenas alguns meses ces por “intervenção mínima” e expressões
pois há que fazer escolhas em função destas em garrafa, sobretudo se não se usar o mais do terroir. Já não há paciência... b
E 80
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
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E 81
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES
O mês do recomeço
O CCB inicia a 22 Há uma espécie de animação cosmopolita, um
de Setembro, terminando
a 27 de Outubro, uma série
regresso energizado de quem conseguiu fazer férias
de quatro conferências sobre A Helsinki Design Week
L
o tema “Políticas da Estética: vai de 8 a 18 de Setembro,
o Futuro do Sensível”. embro-me de ser miúda e de passar os um regresso energizado de quem conse-
um evento que se iniciou
últimos dias de Agosto e os primeirís- guiu fazer férias, um regresso estimulan- em 2005 e que tem vindo
simos dias de Setembro acompanha- te aos pontos de encontro públicos, mai- a marcar a agenda do design
da por um bloco de notas, daqueles bem oritariamente em centros urbanos. É um nórdico e não só.
pequenos, os que cabiam no bolso de trás mês extenso, que ultrapassa os seus de-
das calças e que víamos, eu via, pelo me- terminados 30 dias, que agora já não são
nos, nas mãos ágeis dos marceneiros ou suficientes para um mundo tão grande e
de quem me atendia nas drogarias. Sem- tão global, extravasando-se para Outubro
pre blocos de linhas, que a mim nunca me e mesmo Novembro. Os museus renovam
Quem não viu ainda assistiu a faculdade do desenho à mão li- as suas exposições e programação e alguns
e possa entretanto ir a Veneza vre. As linhas ajudavam-me a estruturar o eventos mais longos, como a Bienal de arte
até 27 de Novembro, a não gesto, o suficiente, e davam-me a liberdade ou de arquitectura de Veneza, deixam as
perder a 59ª Bienal de Arte que o papel quadriculado não tinha. Nes- portas abertas e a programação incólume Design China,
de Veneza, com a curadoria ses blocos rabiscava o que iria ser o próxi- para que as possamos visitar com mais em Pequim, de 21
de Cecilia Alemani mo ano, com detalhes minuciosos, que iam calma e com menos gente. É o mês em que a 23 de Setembro,
e com o tema “The Milk desde listas de desejos e decisões até figu- regressamos à troca de ideias e projectos, a China a marcar pontos
of Dreams”. no calendário
rinos de como me iria vestir para ir à esco- com uma visível sede de reencontro. É um
do design internacional,
la ou de esquissos de como iria organizar o mês de transição sinérgica, quer nos resul-
passo a passo.
espaço de estudo ou das várias encenações tados quer na determinação do início do
e produções que queria fazer. Sem querer, que vai acontecer. Muita da produção em
e sem saber, usava os princípios básicos do fábricas e em pequenos estúdios artesanais
design. Ao longo daquelas folhas, depois da é retomada, as ideias esquissadas durante
criação mental, ia passando para o papel, o calor podem finalmente começar a ser
de forma mais ou menos desenhada, co- concretizadas. A máquina espreguiça-se
O evento “Les Traversées dificada mas inteligível, todo um percur- e recomeça, passamos do desenho para a
du Marais” é um exemplo so, toda uma série de modelos e propostas, acção, que significa também, e no entanto,
de como uma zona inteira que, acreditava, me iriam levar até uma lis- saber ouvir e ver de novo. É tempo de pôr Design Forum
de uma cidade, neste caso Paris, ta de objectivos que tinha definido. Não o o pé na estrada. em Seattle, nos Estados
se organiza para a rentrée, fazia em Dezembro, para iniciar em Janei- Deixo-vos com ‘September Song’, de Unidos, de 12 a 14
com 47 eventos culturais ro — para mim o ano reiniciava-se em Se- Kurt Weill, na versão de Lou Reed, e com de Setembro,
gratuitos. De 2 a 4 de Setembro, tembro e esse era, e é, o meu mês favorito. o desejo de que este ainda seja um Setem- conferências, pensamento
espreite o programa. Setembro é hoje em dia marcado por bro assim. b e discussão teórica.
uma série de eventos de design, de arte, Nota — A secção Design interrompe a
de arquitectura, de música e de cultura sua publicação até Outubro.
em geral. É o mês da rentrée. O mundo dá
sinal desse recomeço em várias cidades e Guta Moura Guedes escreve de acordo
há uma espécie de animação cosmopolita, com a antiga ortografia
E 82
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO
Tubo de ensaio
Neste laboratório não há ciências exatas
S
e a moda dita novas tendências a Esta foi uma das mensagens que
cada temporada, estas refletem o os criadores quiseram transmitir
que se passa à nossa volta, os mo- este outono-inverno, temos carta
vimentos socioculturais em constante branca para combinar tecidos, pa-
mutação nesta aldeia global. A indús- drões, formatos e volumes, com os
tria da moda tem cada vez mais uma resultados mais improváveis, des-
voz e não é alheia às causas que nos de que para nós façam sentido e nos
movem a cada momento. É, portanto, favoreçam, ainda que estes sejam
um jogo saudável de influências. conceitos absolutamente subjetivos.
A moda também nos ajuda a en- Uma experiência que vale a pena fa-
contrar a nossa voz. Nas passerelles zer: escolher várias camadas, em es-
desfilam as sugestões dos designers, calas, tecidos e padrões diferentes,
que nos convidam a adaptá-las ao como um trench coat comprido em
nosso gosto e personalidade. O estilo xadrez, uma saia ultracurta em algo-
é isso mesmo: a capacidade de pegar dão, uma camisa em musselina com
em peças que marcam uma tendên- aplicações, um colete em malha com
cia, baralhar e voltar a dar. Claro que losangos, umas meias caneladas ace-
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E 83
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA
Assumir
o comando
Passados bem mais de dois anos sobre
o lançamento da PlayStation 5, a Sony
decidiu brindar os jogadores mais
intensivos com uma nova geração de
comandos, com a denominação Dual-
Sense Edge. Modularidade e personali-
zação compõem a trave mestra destes
comandos sem fios que se distinguem
por deixarem os utilizadores aumentar
ou diminuir as denominadas “zonas
mortas” que medeiam as diferentes
ações executadas por joysticks, botões
S
alcançar maior precisão a meio de
eguramente que o Galaxy Watch5 e o Galaxy Watch5 azares e descuidos dos mais radicais. A bateria também ações graduais, espaçadas ou que
apenas são menos frenéticas. O botão
Pro também dão as horas, mas para a Samsung o que saiu reforçada em 60% da capacidade face a modelos an-
fn promete acesso rápido a diferentes
os distingue dos outros relógios é o Sensor BioActi- teriores. Está apto a gravar e a partilhar trilhos de cami- perfis e configurações, bem como às
ve, que é o nome dado a um chip artilhado para produzir nhadas, bem como a indicar o caminho de volta. As no- salas de conversação suportadas pela
eletrocardiogramas (ECG) e ‘tirar’ a pressão arterial em vidades da Samsung no domínio dos acessórios contem- internet. Os novos comandos vão poder
permanência, ao mesmo tempo que apura níveis de oxi- plam ainda os auriculares Galaxy Buds2 Pro. usar três capas diferentes e os botões
génio do sangue ou deduz a carga de stresse do portador Os novos companheiros de ouvido reproduzem som podem ser configurados para assumi-
pelos vários dados fisiológicos obtidos junto ao pulso. É hi-fi de 24 bits, e pretendem fazer a transmissão de música rem várias funções. A personalização
com base na monitorização contínua que estas máquinas sem pausas, e o altifalante coaxial de duas vias. Dispõem dos DualSense Edge contempla ainda a
possibilidade de substituição dos vários
de pulso lançam recomendações para beber água após um de cancelamento de ruído exterior, e contam com o Auto
módulos, que podem ser comprados
treino bem transpirado ou fazem uma análise da composi- Switch para passar, sem delongas, de uma música ou de com diferentes cores e designs em
ção corporal para definirem treinos e objetivos à medida. um vídeo para uma chamada vinda do telemóvel em que avulso — assim que a Sony anunciar
A versão Pro tem ecrã de cristal de safira, armação estão emparelhados. Watch5: a partir de €299; Watch5 preços e datas de lançamento. Será que
de titânio e pulseira D-Buckle Sport Band para acautelar Pro: a partir de €469; Buds2 Pro: €239. b a PS5 ganha novos comandos no Natal?
E 84
AU TO M ÓVE IS
POR RUI CARDOSO
DO QUÉNIA A LEIRIA
É precisa alguma loucura para disputar
um rali africano (Quénia) — mesmo de
clássicos — a bordo de um R4. Mas foi
o que fizeram Pedro Matos Chaves/
Marco Barbosa e Pinto dos Santos/
Nuno Rodrigues da Silva. Os carros
eram de série, órgãos de segurança à
parte. E voltaram a Leiria em estado de
serem experimentados pelos
jornalistas.
Regresso ao futuro
O Renault 4 fez 60 anos em 2021 e o Renault 5, 50 este ano.
Um e outro estão aí para as curvas… ou para a eletrificação
O
s carros estão cada vez mais e de respeito: o ex-piloto de Fórmula Recentemente guiei uma destas duas
caros, tendência que se agra- 1 e campeão nacional de Ralis Pedro 4L acabadas de desalfandegar e ti-
vará com a eletrificação. Lon- Matos Chaves e Marco Barbosa. Com rar do barco num eucaliptal em Lei-
ge vão os tempos da democratização carros de 38 cavalos e passando em ria: que delícia! Já não estavam gran- ELÉTRICO
e dos carros para o povo. Em meados pistas infernais, conseguiram che- de coisa de suspensão nem de dire- Se há Porsches elétricos, porque não
dos anos 60, não era assim. De entre gar ao fim, o que não foi de somenos. ção mas como dizia um grande piloto haveria Renaults 5? Depois de uma
os modelos que se tornaram lendários português “não lhes podemos é mos- versão experimental lançada em 1974,
— do 2 CV ao Carocha ou ao Mercedes trar medo” e não faltaram habilidades estão em curso na fábrica da marca em
Matateu —, a Renault pode orgulhar- dignas do Poço da Morte das feiras da Flins (Paris) experiências de retrofit
-se de ter produzido pelo menos dois:
RENAULT 4 minha meninice... deste modelo. Mantêm a caixa de
o Renault 4 (entre nós a quatrelle) e Lançado em 1961. Utilizou sempre Se a 4L se tornou um carro de cul- velocidades original (ainda que se
o Renault 5, respetivamente em 1961 a famosa alavanca horizontal to que se chega a vender por mais de arranque obrigatoriamente em segunda)
e 1972. (dita de gaveta) da caixa de quatro €5000, que dizer do R5? Lançado em e têm autonomia citadina (à volta de
velocidades. Os últimos modelos, uma centena de quilómetros).
O R4 significava versatilidade, 1972, era verdadeiramente revolucio-
simplicidade e robustez. Tanto fazia como os fabricados na cidade nário: carroçaria arredondada com
portuguesa da Guarda, já tinham
de carro como de jipe, não tinha arre- para-choques integrado de plástico,
um motor de 1100 cm3
biques (os vidros eram de correr), mas duas portas, banco traseiro rebatível
(substituindo o de 845).
raramente dava problemas e se dava Potência 34 cv. e absoluto à vontade no campo ou na
eram simples de resolver. Foi o carro cidade. Na fábrica de Flins, nos arre-
dos Serviços Florestais, dos CTT, da RENAULT 5 dores de Paris, tive o prazer de guiar
EDP e de muitas outras entidades. Se um exemplar meticulosamente res-
atascasse na lama ou na areia, quatro Lançado em 1972. Ainda que a taurado para o cinquentenário des-
calmeirões bastavam para a levantar. versão inicial tivesse mudanças te modelo. Andava pouco, a direção
“de gaveta” e o mesmo motor da 4L,
Foi num carro destes que Pinto dos era pouco precisa, as portas pareciam
em 1974 ganhou um motor de 782
Santos, então engenheiro da Câma- de cartão, mas este R5 pesava 700 kg,
cm3 e 38 cv e alavanca vertical de COMPETIÇÃO
ra de Arganil, resolveu tentar fazer velocidades. Tinha duas portas mas ou seja, metade dos carros atuais e
em tempos aceitáveis alguns troços os consumos eram em conformida- Se a carreira desportiva do R4 se resume
banco traseiro rebatível e portão às aventuras de Pinto dos Santos/Nuno
do Rali de Portugal. Se bem o pen- traseiro vertical. Os para-choques de. Agora está em curso o retrofit des-
Rodrigues da Silva em ralis portugueses
sou, melhor o fez e chegou a disputar em plástico, integrados na te carros, isto é, a sua eletrificação.
e europeus (mais o Quénia com Matos
provas em Portugal e no estrangei- carroçaria, representaram a rutura Por um preço que pode passar os €10 Chaves/Marco Barbosa), o R5 teve
ro, navegado pelo campeão mundial definitiva com os cromados. Versão mil e uma via-sacra de homologações versões especiais, primeiro o R5 Alpine
do grupo N, Nuno Rodrigues da Sil- eletrificada (retrofit) — custo de podem adaptar-se aos novos tempos. e depois o R5 Maxi Turbo do Grupo 2
va. Em fevereiro deste ano, esta du- €10 mil e longo processo de Andam um pouco mais que a gasoli- que deu vitórias no Mundial de Ralis ao
pla foi ao Rali Safari de Clássicos no homologação. na, não têm grande autonomia, mas francês Jean Ragnoti, nomeadamente
Quénia, acompanhada por uma outra são uma graça… b na Córsega.
E 85
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO
O VERÃO AOS
NOSSOS PÉS
Uma paixão camiliana
O verão ainda não acabou e uma das
tendências que se vai mantendo é a
Não conseguia deixar de pensar no seu grande
das sandálias de madeira. As da Hush amor. O casamento era apenas funcional
N
Puppies são constituídas por solas
em madeira leves e uma palmilha unca o cheguei a conhecer, morreu cedo, esta história chegou-
semiortopédica, assegurando um me de relatos de várias fontes, todas muito credíveis e próximas.
caminhar confortável. E há para todos Nasceu numa vila no Trás-os-Montes profundo, filho de médios
os gostos, das cores neutras intemporais agricultores, à época, considerados gente abastada. Cresceu bonito, alto,
às apostas mais arrojadas. cedo com sucesso junto das raparigas da sua idade. Foi enviado para
hushpuppies.pt estudar para a capital de distrito, mas a vida ia muito para lá dos livros e
aproveitou para aprender a ser um bon vivant.
Ainda jovem, numa incursão ao sul conheceu-a. Linda, a mais
velha de uma fratria de uma família pobre. Já era, então, professora
primária e ajudava no sustento da mãe e dos irmãos. Apaixonaram-
O PODER se “violentamente”, mas no regresso ao norte foi chamado à razão, ou
NATURAL melhor, obrigado a encarar a realidade. Os pais explicaram-lhe, de uma
forma, à época, sem saída, que o seu futuro matrimonial passava por
DO CEDRO uma menina casadoura cujos pais eram também médios proprietários.
O estilista faleceu recentemente,
O objetivo não era criar um latifúndio nas terras transmontanas, mas a
mas a marca é eterna. De Issey
possibilidade do que, na altura, não se chamava economia de escala, antes
Miyake está agora disponível
juntamos isto tudo e ficamos mais ricos… Ainda conseguiu vir ao sul tentar
justificar-se. Claro que não foi aceite, mas não fugiu de explicar a situação.
o clássico perfume masculino
Pela história irão perceber como os tempos eram diferentes.
L’Eau D’Issey Pour Homme na
Depois de casar e para fugir ao ambiente claustrofóbico, aceitou um
nova interpretação Eau&Cèdre.
lugar de feitor numa herdade alentejana e instalou-se numa cidade.
Água e madeira encontram-se
Rapidamente tiveram dois filhos, mas a insatisfação era grande. Não
numa Eau de Toilette Intense
conseguia deixar de pensar no seu grande amor. O casamento era apenas
vegan (com 91% dos ingredientes
funcional. O trabalho ocupava-lhe a maior parte do tempo, com as
naturalmente derivados),
economias começou a comprar terra e, em pouco tempo, já era o que se
assinada por Marie Salamagne.
chamava, então, um agrário.
Isseymiyake.com
Mas não era, nunca foi, homem de se deixar ficar. Fez um plano e
levou-o para a frente. Alugou, sem ninguém saber, uma casa na cidade,
PARCERIA mobilou-a e partiu para a capital. Não sei se a sua paixão foi avisada
com antecedência, mas aceitaria sempre. Meteu-a no carro, não sei, se
ACELERADA pernoitaram no caminho, mas no dia seguinte estava instalada na sua nova
casa no Alentejo. Imaginem uma capital de distrito alentejana no fim dos
Só vão ser produzidas cinco unidades
anos 60. Os homens eram respeitadores das esposas, toda a transgressão se
do Mercedes-AMG GT3 EDITION 55 e,
passava em Espanha, longe dos olhares daquelas mulheres sentadas à porta
numa colaboração com a IWC, cada
de casa a controlarem os bons costumes.
um destes exemplares de coleção
Este assumiu, desde o início, a relação. Mas, à sua maneira, com
é entregue com um Pilot’s Watch
respeito pela sua família oficial. A sua paixão, não podia, em nenhum
Chronograph Edition “AMG”, também caso, sair de casa. Deixou de trabalhar, governava o lar e todos os
numa edição especial exclusiva de cinco abastecimentos eram feitos através de encomendas pelo telefone, para o
peças. O lançamento celebra o 55.º talho, para a mercearia, para a drogaria, assim como cigarros dele, uns
aniversário da marca de Affalterbach. Gitanes franceses, vindos de propósito de França. Tudo era deixado à
mercedes-amg.com porta, sem qualquer contacto visual. Uma espécie de Uber Eats ou Glovo,
com 50 anos de avanço. Durante mais de 20 anos.
Ele deixou a mulher e as filhas e foi viver com ela. Claro que a relação
parental, com uma das filhas deixou de existir, as mães e os pais, como
fazem ainda agora, usam os filhos para exprimirem a sua raiva. Ao fim de
semana saíam sempre, ou para Lisboa para visitarem a família dela, que
acabou por aceitar, ou viajando pelo país, que o dinheiro já não faltava.
Depois mais uma semana metida em casa. Para o verão um apartamento
no sul de Espanha e algumas viagens a países socialistas. Foi ficando cada
vez mais desiludido com o que via nos países de leste. Irritava-se por não o
deixarem discutir no partido os gulags e as prisões. Mas continuou, até ao
fim, a apoiar financeiramente as famílias dos presos políticos em Portugal
e a ser filiado no PCP. Os últimos tempos foram difíceis. Saúde muito
precária, mas sempre com a sua “princesa” ao lado, até ao fim. b
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ
6 4
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
7 4 8 1
5 7 1
6 3 1
2
1 4 8 5 9 6 3 7
4 2 1 3
2 7
4
1 2 9 3 8
6 3 5
Sudoku Difícil 6
6 2 1
7
1
9 6 5 8
4 5 9
9
1 8 7 6
7 2 10
2 3 9
8 11
8 4
Horizontais Verticais Soluções nº 2429
1. O James Webb procura vida no 1. Ganhou a corrida à lebre 2. O profeta HORIZONTAIS
Soluções espaço 2. Os ventos equatoriais que subiu ao céu num carro de fogo. 1. Caracalla 2. ébano;
Fácil Difícil que provocam chuva. Montanhas Desmoronar 3. Igual a ele é tudo o que aorta 3. lê; tr; índio
4. ictiologia 5. Berta; IL
2 5 7 1 3 6 9 8 4 4 6 2 5 9 8 3 1 7
marroquinas 3. O circadiano é é indiferente. A ponte mais rápida
6. adie; bitola 7. Tasso;
4 8 3 5 9 2 6 1 7 3 7 5 2 1 6 9 8 4
perturbado pela falta de sono. Toca 4. A cigana de um romance de Vítor
fusos 8. ortese; dona
9 6 1 8 7 4 5 2 3 8 9 1 7 3 4 6 2 5
1 2 8 6 4 3 7 9 5 5 3 4 8 2 1 7 6 9 4. Cidade de Apúlia. Nota 5. Parola Hugo 5. Levou à criação do Estado
9. ie; tive; td 10. Mozart;
7 3 6 9 2 5 8 4 1 6 2 7 3 4 9 8 5 1 de trás para a frente. Alimentam de Israel. Permite todas as esperanças
aro 11. sabão; elas
5 4 9 7 1 8 2 3 6 1 8 9 6 5 7 2 4 3 filhos dos outros 6. Tem uma pinta. 6. O cobalto para os químicos. Duas
8 7 4 2 5 1 3 6 9 7 5 8 4 6 3 1 9 2
Ícaro foi-o para sair do Labirinto da transportadora aérea nacional. VERTICAIS
7. Calendário com indicações úteis Abrem e fecham diálogos 7. O fémur 1. celibato
6 1 5 3 8 9 4 7 2 2 1 6 9 7 5 4 3 8
2. abecedários 3. rã;
3 9 2 4 6 7 1 5 8
8. Cordilheira ibérica. Urso francês é o maior. Era a AR. Escritor e filósofo
9 4 3 1 8 2 5 7 6
9. Brisa. Percorre o norte de Itália. espanhol do século passado 8. Grande tristeza 4. antítese; ab
Satélite de Júpiter 10. Para uma melhor cão de fila. Romanos 9. Grande fúria. 5. coroa; ostra 6. eito
explicação. O gás com que terroristas Está a ser dotada de inteligência 7. Laio; If 8. longitude
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2428 9. ardiloso; al 10. tia;
atacaram o metro de Tóquio em 1995 10. No meio de dois. Preside a um país
“Veva”, de Joana Leitão de Barros, para Maria lontra 11. cão, casados
11. Nas ruas têm faixas próprias sul-americano 11. São aves
Teresa do Amaral, de Aveiro; “Impressão Indelével”,
de Camilo Castelo Branco, para Carlos Sofia,
de Coimbra; “Três Dias em Fevereiro”, de Ricardo
Ferreira de Almeida, para Artur Silva, da Maia. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt
E 87
DEIXAR O MUNDO MELHOR
VASCO DE MELLO
“FOI O MEU
BISAVÔ QUE
INICIOU O
E 88
ANO LETIVO 2022/2023
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Gestão Hoteleira Gestão de Empresas
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ESTRANHO OFÍCIO
JOÃO FAZENDA
PORTUGAL ESTÁ COM
UM PROBLEMA DE SAÚDE
E
QUEM SE DEMITE ÀQUELA HORA É PORQUE TEM URGÊNCIA EM FAZÊ-LO, E ACABA POR SER
RECONFORTANTE SABER QUE AINDA HÁ QUEM CONSIGA SER ATENDIDO DE URGÊNCIA
m Janeiro, no debate com Jerónimo de ministra foi capaz de enfrentar dois duros anos da maior pandemia
Sousa, António Costa dizia não sentir dos últimos 100 anos com alguma desenvoltura. Mas alguns meses de
confiança para afirmar que a chamada confronto com o simples dia-a-dia do SNS português foram impossíveis
‘geringonça’ fosse “uma solução estável”, de suportar. Pandemias comemos nós ao pequeno-almoço. Encontrar
pelo que a “solução segura e certa” um modo de fazer o país funcionar sem sobressaltos é que é quase
seria uma maioria absoluta do PS. Oito impossível. E o certo é que a ministra ficou desamparada: durante a
meses depois, o Governo está de facto pandemia os portugueses isolaram-se em casa para proteger o SNS;
bastante estável, no sentido em que nos últimos tempos resolveram viver normalmente, o que em Portugal
costumamos ouvir dizer que um paciente só pode dar mau resultado. Quando a directora-geral da Saúde e o
com diagnóstico reservado se encontra Presidente da República pediram aos cidadãos que evitassem adoecer
estável. Marta Temido demitiu-se mas, sabiam do que estavam a falar. Se não houver doentes, o SNS funciona na
até ver, continua em funções — até perfeição. A demissão da ministra, sozinha, não resolve nada. Enquanto
porque, de acordo com os jornais, o primeiro-ministro quer que seja ela os enfermos não puserem a mão na consciência e não se demitirem
a levar ao Parlamento o diploma que regula a nova direcção do Serviço também, o problema persistirá. b
Nacional de Saúde (SNS). Ou seja, a ministra está em morte política, Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
mas ficará ligada à máquina do Estado durante mais umas semanas. Em
defesa de António Costa, é preciso admitir que só a estabilidade de uma
maioria absoluta permite que seja um ministro demissionário a tomar
decisões importantes para o futuro.
Paradoxalmente, a saída da ministra veio revelar que há alguns sinais
de que o estado da saúde é melhor do que parece. Quando a demissão
foi noticiada, à uma e meia da manhã de terça-feira, percebemos que,
apesar de tudo, nem tudo está mal no SNS. Quem se demite àquela
hora da madrugada é porque tem urgência em fazê-lo, e acaba por ser
reconfortante saber que ainda há quem consiga ser atendido de urgência
por causa de questões de saúde em Portugal.
Outro aspecto animador é o facto de, há cerca de um ano, Marta
Temido se ter tornado militante do PS. Enquanto independente,
a ministra permaneceu três anos no cargo. Depois de se tornar / RICARDO
militante, só aguentou um ano. O que significa que, ao contrário do que
maldosamente se diz, o cartão do PS não garante um emprego no Estado.
ARAÚJO
Menos tranquilizador é o que a demissão revela sobre Portugal. A PEREIRA
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