33 2Q SEMESTRE, 2019
Copyright it> Boitempo. 20 19
Margem Esquerda - revista da Boitempo n. 33
Editores
/vona Jinkings e Artur Renzo
Assistência editorial
Carolina Mercês
Editor de imagens
Gabriel Zimbardi
Editor de poesia
Sumário
Flávio Wolf de Aguiar
Preparação
Lucas Torrisi
Apresentação .......... ................. ... ........................................................... 9
Revisão
Thaisa Burani ARTUR RENZO E IVANAJINKINGS
Capa ENTREVISTA
Artur Renzo e Natasha Weissenborn
Judith Butler .................. ..... ... ................... ... .... ....... .... ........... .... ... ... ..... 1 1
Imagens da capa e miolo
CARLA RODRIGUES. MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES E YARA FRATESCHI J
Carlos Motta
Projeto gráfico e diagramação DOSSIÊ: MARXISMO E LUTAS LGBT ·
Antonio Kehl Apresentação ... ........... ...... ....... ..... ............ ... .. .. ............. .. ......... ...... ..... .23
Anúncios LUCAS BULGARELU
Heleni Andrade
Marxismo e sexualidade no Brasil: recompondo um histórico ............... 25
Produção
RENAN QUINALHA
Livia Campos
Impressão e acabamento A luta pela diversidade sexual e de gênero diante do Estado
Rettec capitalista: o que a atual crise política tem a nos ensinar? ....................... 32
RAFAEL DIAS TO/TIO
ISSN 1678-7684
Tracisfeminismo e construção r~ cionária ... .. ... ... ......... ............. .. ...... 3 8
número 33: outubro de 20 19 AMANDA PALHA
HOMENAGENS
Chico de Oliveira: a chispa da imaginação .. .......... .. ... .......... .. .. ........ .... 115
ANDRÉ S/NGER REVISTA DA BOITEMPO
33 211. SEMESTR E , 2019
lmmanuel Wallerstein: um pensador do longo século XXI ........... .. ..... 1 19
CARLOS EDUARDO MARTINS
Nicolas Tertulian: a filosofia contra a corrente .... .. .. .. .......... ... .. ............. 122 Comitê de redação deste número
RONALDO VIELMI FORTES Alysson Leandro Mascaro • Artur Renzo • Flávio Wolf de Aguiar • Ivana Jinkings
• Lucas Bulgarelli • Maria Lygia Quartim de Moraes • Pedro Davoglio
DOCUMENTO
A crítica gay .. ..... ..... .... .... ...... ........... ........ .. .. ............ ....... ... .... ..... .. ...... 125
Conselho editorial
MAR/O MIEU
Afrânio Mendes Catani • Antonio Carlos Mazzeo • Boaventura de Sousa Santos •
Contribuições de Mario Mieli para uma crítica LGBT + do capita,lismo ..... 127 Emir Sader • Gilberto Bercovici • Heloísa Fernandes • João Alexandre Peschanski
LUIZ /SMAEL PEREIRA • José Paulo Netto • Luiz Bernardo Pericás • Luiz Felipe Osório • Maria Orlanda
Pinassi • Michael Lõwy • Paulo Arantes • Paulo Barsotti • Ricardo Antunes •
CLÁSSICO Roberto Schwarz • Slavoj Zizek
Apresentação: Clara Zetkin e o legado de Rosa Luxemburgo ...... ... ..... 131
Em memória
MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES
Carlos Nelson Coutinho • Emília Viotti da Costa • Francisco de Oliveira • István
A luta de Rosa Luxem burgo contra o s traidores alemães Mészáros • Jacob Gorender • Leandro Konder • Miguel Urbano Rodrigues
do socialismo internacional ........ ........ ... ... .......... .... ... .. ....... ......... ..... ... 133
CLARA ZETKIN
Conselho de colaboradores
RESENHAS Alexandre Linares • Angélica Lovatto • Antonino Infranca • Antô nio Ozaí da Silva
Bonapartismo brasileiro ............ .... .. .. ........ ........... .. ...... ........ .... .... .... .. . 145 • Antonio Rago • Caio Antunes • Camilo Caldas • Caruobert Costa Neto • Carla
Ferreira • Carlos Eduardo Martins • Carlos Serrano Ferreira • Clarisse Castilhos •
LUCIANO CAVINI MARTORANO Claudia Mazzei Nogueira • Edilson Graciolli • Fabio Mascaro Querido • Fernando
O Livro Ili de O capital e a atualidade do pensamento de Marx Coltro Antunes • Fernando Marcelino • Gaudêncio Frigotto • Geraldo Augusto Pinto
• Gilberto Maringoni • Henrique Amorim • Isabella Marcatti • Isleide Fontenelle
em tempos sombrios ... ..... .. .... .......... ............................... ..... .... ......... 148
• Jair Pinhe iro • Jesus Ranieri • João dos Reis Silva Jr. • João Sette Whitaker •
VITOR SARTORI Jonathan Erkert • Jorge Grespan • José Luís Fiori • Kim Wilheim Doria • Liliana
Segnini • Lincoln Secco • Luciano Vasapollo • Lúcio Flávio Almeida • Luiz Ismael
NOTA DE LEITURA
• Marcelo Ridenti • Marco Aurélio Santana • Maria Lúcia Barroco • Mario Duayer
A ditadura do grande capital ......... .. ....... ....... .... .. ......................... .. ..... . 153 • Mathias Luce • Maurício Gonçalves • Milton Pinheiro • Nélio Schneider • Ou1ia
RODRIGO CASTELO Arantes • Paula Marcelino • Paulo Denisar Fraga • Plínio de Arruda Sampaio Jr. •
Roberto Leher • Rodrigo Castelo • Ronaldo Gaspar • Rosane Borges • Ruy Braga
POESIA • Sergio Romagnolo • Silvio Luiz de Almeida • Sofia Manzano • Victor Hugo
Klagsbrunn • Virgínia Fontes • Wolfgang Leo Maar
À bandeira rubra ... ....................... ..... .... ..... .... ...... .. ...... .................... .. 155
POR PIER PAOLO PASOLINI
SOBRE AS IMAGENS
Carlos Motta e o reaparecimento da imagem ........... ...... ...... .... ..... ..... 157
GABRIEL ZIMBARDI
contato: margemesquerda@boitempoeditorial.com.br
Colaboradores desta edição
ANDRÉ SJNGER é professor associado do Departamento de Ciência Política da USP. Foi se-
cretário de redação da Folha de S.Paulo e de impre nsa da Presidência da República
(primeiro mandato de Lula). É autor de O tu/ismo em crise (Cia. das Letras, 2018) e
co-organizador de As contradições do tu/ismo (Boitempo, 2016), entre outros .
.AMANDA PALHA é militante do PCB e participou da fundação do Coletivo LGBT Comunista.
Atua há seis anos em associações filiadas à Antra e atualmente na Amotrans. Coordena
a Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular da Assembleia
o
Legislativa de Pernambuco.
ANGELA Y. DAVIS é filósofa e professora emérita da Universidade da Califórnia. Ícone da luta
por direitos civis e próxima ao grupo Panteras Negras, integrou o Partido Comunista
dos Estados Unidos, tendo sido candidata a vice-presidente em 1980 e 1984. É autora
de vasta obra, incluindo Mulheres, raça e classe (2016), Mulheres, cultura e política o
(2017), A liberdade é uma luta constante (2018) e Uma autobiografia (2019), todos
publicados pela Boitempo.
ARTUR RENZO é diretor de conteúdo da Boitempo, onde edita o Blog da Boitempo, a TV <(
M ARGEM ES QUER DA 33 7
FA1i1 MAS Alt 1JER11 · pr fcssor d D partarnent d S 1 1 gla la ni amp aul r d
0
1-
" denador, junto com José Paulo Netto, da coleção Biblioteca Lukács, da Boitempo. entre as lutas históricas dos negros por direitos civis e as lutas contemporâneas
V1TOR SARTORI é professor de introdução ao direito e direito do trabalho na Faculdade de z
o das comunidades LGBT. Sem deixar de problematizar o caráter formalista
Direito da UFMG, editor da revista Veronotio e autor de Lukács e a crítica ontológica desses direitos na sociedade burguesa, a filósofa destaca a importância de
"'
<( ao direito (Cortez, 2010). se superar uma política pautada unicamente pelo igualitarismo abstrato, e
Y ARA FRATESCHI é professora livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp e
pesquisadora do CNPq.
alerta para as armadilhas das soluções punitivistas para as opressões estru-
o turais de uma sociedade capitalista heteronormativa, atravessada por cisões "
u de classe, gênero e raça.
8 M ARGEM E SQUERDA 33
M ARGE M E SQUERDA 33 9
ENTREVISTA
Num a ab rdag m f rtil , Flávi WI lf d Aguiar s gu a pista s u
m stre Anto nio Candido d sbrava a prod ução literá ria d Plíni algado,
fundador da Ação Integralista Brasileira, mostrando sua tônica ao mesmo
tempo ultraconservadora e antiliberal. O historiador marxista Osvaldo Cog-
giola dirige um olhar atento à tensa conjuntura da América Latina e oferece
um balanço das experiências políticas da esquerda no continente.
No ano do centenário de fundação da Internacional Comunista - um
desdobramento da Revolução Russa, idealizada por Lênin como instrumento Judith Butleri
necessário de difusão da revolução socialista internacional -, Marcos Dei Roio
analisa o legado da IC, formalmente dissolvida em 1943, mas viva na luta
dos partidos comunistas que persistiram na reivindicação da emancipação
dos trabalhadores e dos povos. Fechando a seção, Mario Duayer discute a
chamada questão do método em Marx, cujo debate se baseia em grande
medida no famoso texto intitulado "O método da economia política". Nesse ·
artigo, Duayer demonstra que é um equívoco sugerir que Marx estabelece
ali as linhas gerais de seu método, e também que, com exceção da análise
de Lukács, as interpretações mais influentes não dão conta da orientação
ontológica do texto marxiano. -
Para o clássico deste número, Maria Lygia Quartim de Moraes recupera Judith Butler é uma filósofa estadunidense nascida em 1956, cuja tra- I
u
V>
um comovente e afiado texto de Clara Zetkin sobre sua amiga, camarada e jetória pode ser descrita como uma "criadora de problemas". Referindo- w
r
<
interlocutora Rosa Luxemburgo, escrito meses após seu assassinato - que em -se a uma experiência de infância, ela explica o título de Problemas de a::
u...
2019 também completa cem anos . Ecoando o tema de capa, a edição traz gênero.feminismo e subversão da identidade, publicado há quase trinta <
a::
ainda um importante documento do marxista italiano Mario Mieli, um dos anos nos Estados Unidos, e que desde então reverbera nas interlocuções <(
cia, algo que nunca se deveria fazer, exatamente para não estar metida w
tradução e comentário de por Luiz Ismael Pereira. <(
a::
Luciano Martorano resenha a interpretação de Franscisco Farias sobre a em problemas. A rebeldia e sua repressão pareciam ser apreendidas o
L
dominação burguesa no Brasil entre 1930 e 1964, a partir do conceito de bo- nos mesmos termos, fenômeno que me deu o primeiro discernimento w
o
napartismo, enquanto Vitor Sartori se debruça sobre a descoberta do conceito crítico acerca da artimanha sutil do poder: a lei dominante ameaçava com :,:
marxiano de "modo de representação capitalista" por Jorge Grespan em seu problemas, ameaçava até mesmo nos fazer estar metida em problemas, r
a::
novo livro. A nota de leitura de Roberto Castelo destaca a atualidade de um para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são <(
::,
clássico de Octavio Ianni que acaba de ganhar nova edição. inevitáveis, e nossa tarefa é descobrir a melhor maneira de tê-los. "2 o
O poema "À bandeira rubra", selecionado e traduzido pelo editor da se- Quando a pequena Judith começou a criar problemas na escola, ~
l')
o ção, Flávio Wolf de Aguiar, é do cineasta, poeta e escritor italiano Pier Paolo >-
desafiando a autoridade da professora e sendo apontada como uma -'
·< Pasolini. Já as imagens, escolhidas e apresentadas pelo editor de arte deste <(
aluna de mau comportamento, foi punida. O castigo eram conversas a::
u, número, Gabriel Zimbardi, são do colombiano Carlos Motta. <(
< Com as palavras de André Singer, Carlos Eduardo Martins e Ronaldo Vielmi de aconselhamento com o rabino da comunidade judaica onde vivia. '.L
Fortes prestamos tributo a três homens essenciais que nos deixaram neste Surgiram ali as primeiras pistas do seu interesse por filosofia, com V>
w
z semestre: Francisco de Oliveira, o Chico, Immanuel Wallerstein e Nicolas ::,
l')
33
j U D I T H 8 UT LER 11
10 M ARGEM E SQUERDA
in laga ~ obr a ti a xi t n iali ta, a xpuls d pin za la sina- P r muito tempo classificada como uma filósofa pós-estruturalista,
goga na Holanda e a influência da filosofia alemã na ideologia nazi ta . na entrevista ela também atualiza suas próprias definições, declarando-
Daí em diante, a adolescente d e catorze anos, interessada p elo Black -se hoje uma pensadora muito mais próxima da Escola de Frankfurt
Power e por outros movimentos que eclodiam à época, começou a le r do que do pós-estruturalismo, o que pode ser percebido como resultado
autoras feministas e foi estudar literatura e filosofia , até chegar a suas de uma aproximação entre esses dois campos teóricos, ao menos no
pesquisas sobre Hegel com Seyla Benhabib na Universidade de Yale, que diz respeito ao pensamento feminista. Suas interlocuções mais re-
que também conjugavam seu interesse pela metapsicologia de Freud centes circulam entre pensadores judeus e palestinos - Hannah Arendt,
e pelo pensamento marxista. Esse começo turbulento - de trouble - Emannuel Lévinas, Walter Benjamin, Edward Said - , são decisivas para
terminou por marcar com problemas a recepção de Problemas de as formulações do livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do
gênero, cuja publicação também se deu no seio da epidemia de aids. sionisma4 e também fundamentais para o desenvolvimento do tema de
Não obstante ela atribuir ao livro um caráter de trabalho experimental, seu próximo trabalho, TbeForceo/Non-Violence: AnEthico-PoliticalBind
a verdade é que ele marcou época. (A força da não violência: um vínculo ético-político), com lançamento
Os quase trinta anos que nos separam da publicação do livro fize~ previsto para 2020. Nesta entrevista, ela antecipa que no livro propõe
ram de Butler uma filósofa em trânsito. Como teórica multidisciplinar, repensar o que estamos acostumados a conceber como não violência,
faz a filosofia conversar com a antropologia, a teoria psicanalítica, a visto que esse conceito não pode ser confundido com a ideia de fraqueza.
ciência política, a sociologia. Ao transitar entre regiões, ela mobiliza As mulheres e as feministas são de novo - como foram em Problemas
as filosofias francesa e alemã em proporções quase iguais, transitan- de gênero - motor do debate, para o qual ela toma como paradigma -
I
do entre pós-estruturlismo e materialismo. No intercâmbio temático, o movimento Ni Una Menos, da Argentina, onde ela esteve há pouco u
~
w
ela conversa tanto com o feminismo francês de Simone de Beauvoir tempo, e as paralisações promovidas pelas mulheres em diferentes paí- 1-
<
a::
quanto com os teóricos da chamada Escola de Frankfurt, passando ses do mundo, além da necessidade de enfrentamento do feminicídio. u...
<(
por Marx, Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, alguns A filósofa esteve duas vezes no Brasil, a primeira delas em 2015, onde a::
<(
dos nomes que comparecem nesta entrevista como interlocutores que cumpriu agenda acadêmica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) >--
influenciaram seu perêurso filosófico. e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e ainda participou de se- ~
w
O contexto político estadunidense - do 11 de Setembro à eleição de minário sobre teoria queer em São Paulo. Dois anos depois, em 2017, <(
a::
o
Donald Trump - a impulsionou para um diálogo mais intenso com a voltou como organizadora do seminário "Os fins da democracia", rea- í:
obra de sua companheira, Wendy Brown, cuja crítica aos processos de lizado no Sesc São Paulo em parceria com duas universidades, Berkley w
o
desdemocratização está presente nos trabalhos mais recentes de Butler, e Universidade de São Paulo (USP), mesmo momento do lançamento L
l-
notadamente Corpos em aliança e a política das ruas\ e aproximam de Caminhos divergentes, com conferência realizada na Cátedra Edward a::
<(
::,
seu discurso filosófico de problemas contemporâneos brasileiros. É Said, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No intervalo que o
do que ela trata, por exemplo, quando diz que estamos vendo uma separou as duas visitas de Butler ao país, as forças de extrema-direita <(
nova forma de fascismo, no qual nem sempre há uma quebra explí- cresceram, e a sua figura quase franzina se transformou num dos \.'.)
>-
_J
cita com a democracia, e que, em alguns casos, funciona dentro de maiores símbolos de tudo que precisava ser combatido no pensamento <(
<(
a::
1-
sua estrutura. Nesse ponto, Estados Unidos e Brasil estariam muito de esquerda. Enquanto dentro do auditório um grupo de intelectuais <(
í:
próximos, experimentando formas de precariedade induzidas pelas discutia os fins da democracia, lá fora o que se podia constatar era o
forças financeiras e econômicas que estão intensificando a xenofo- fenômeno mesmo que Butler menciona nesta entrevista: a democracia ~
w
::,
> bia, a homofobia, o antifeminismo, o racismo e uma série de reações sendo corroída por dentro das próprias instituições que a sustentam. \.'.)
a::
a::
violentas aos movimentos sociais . o
o
c:r'.
1-
<(
..J
z 3
Idem, Corpos em aliança e a política das ruas (trad. Fernanda Siqueira Miguens, Rio de Janeiro, 4
Idem, Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (trad. Rogério Bettoni, São Paulo, a::
<(
LLJ Civilização Brasileira, 20 18). Boitempo, 20 17). u
curso regular da escola hebraica. Eu era barulhenta, fazia interrupções e fracos numa leitura atual? 1-
<(
a::
lL
às vezes matava aula. Acredito que também interpelava JB - O livro investigava várias formas de teoria, especialmente francesas , <(
a::
o professor de uma maneira que não era considerada e tentava criar um espaço dentro do feminismo para perspectivas que <(
A estrutura >-
aceitável. De qualquer modo, fui enviada ao rabino, que foram desde então chamadas queer. Eu não esperava ser tão amplamente
inicial para todo
no começo estava muito bravo. Então ele perguntou o lida, e certamente deveria ter escrito de uma maneira mais acessível. Nas
meu pensamento
filosófico foi a
que me interessava, e mencionei a ética existencial, a aulas dos estudos sobre mulher, supunha-se sempre que as mulheres
filosofia judaica.
excomunhão de Spinoza da Sinagoga na Holanda e se eram mães ou no caminho de o serem, e que a heterossexualidade era
a filosofia alemã tinha influenciado a ideologia nazista. frequentemente o suporte do desejo. Assim, apesar de o livro ter a in- w
o
Eu vinha, com certeza, estudando por conta própria tenção de ser uma crítica à heteronormatividade no feminismo, ele foi :,:
l-
desde os catorze anos, mas não lembro exatamente por que escolhi esses publicado ao mesmo tempo que Epistemologyofthe Closet(Epistemologia a::
<(
tópicos. A estrutura inicial para todo meu pensamento filosófico foi a filoso- do armário), de Eve Sedgwick, e das publicações de Teresa de Lauretis, :::,
fia judaica, assim como minhas formas iniciais de pensar a filosofia , apesar
a
Michael Warner e David Halperin, que juntas formaram uma nova forma <(
de que, de alguma maneira, Kierkegaard foi adicionado a essa mistura. de investigação: a teoria queer. Foi um momento importante, mas nos \'.)
>-
_J
<(
Houve também o período, em torno de 1970, em que estava lendo anos subsequentes a teoria queer se distinguiu do feminismo . <(
1- livros e interessada no movimento do Black Power. Quando entrei na Houve muitas críticas ao meu trabalho e ao trabalho do primeiro grupo a'.
<(
universidade, estudei filosofia, mas, ao mesmo tempo, também literatura, anglo-americano de teóricos queer. éramos principalmente brancos e não nos L
deslocando-me de um campo a outro, apesar de meus trabalhos para os engajávamos suficientemente com raça e racismo. Não perguntávamos sobre V,
w
> :::,
seminários de literatura não serem aceitos para filosofia. Estudei Hegel as perspectivas queer do Sul global, e alguns não levavam em consideração \'.)
a::
a::
com Sheyla Benhabib (um pouco mais velha do que eu) na Universidade os devastadores processos econômicos, deixando isso a cargo de outros o
o
1- campos do saber. Alguns dos teóricos do pensamento queerpensavam que a:::
z 5
Idem, Subjects of Desire: Hegelian Refiections on Twentieth-Century France (Nova York, Columbia nós éramos muito literários ou filosóficos, e queriam ver as ciências sociais <(
-'
a'.
L.U University Press, 1999). mais plenamente engajadas. Quando os movimentos trans e de travestis se u
<(
É somente fora "uma teórica feminista antes de ser uma teórica queer
u,
<(
global assumida atualmente pela teoria. Os vários autores denominados
dos Estados ou uma teórica gay ou lésbica ". E acrescenta: "Meus o"'
Unidos que sou da Escola de Frankfurt permanecem importantíssimos, e, dado que fomos L
compromissos com o feminismo são provavelmente os todos parcialmente treinados nessa Escola, debatemos sobre as ligações u,
considerada o
mais originais. Problemas de gênero foi uma crítica entre teoria crítica e feminismo. Benjamin e Arendt são agora centrais
fundadora da :!:
à heterossexualidade compulsória no feminismo, e para meu pensamento. Penso que uma parte demasiadamente grande do t-
teoria queer. Isso "'
as feministas eram as minhas interlocutoras. No mo- feminismo e da teoria queerpartia de pressupostos brancos, nem sempre
<(
:::,
tende a apagar
mento em que escrevi o livro não havia estudos gays sabendo como assinalar essa realidade e se contrapor a ela. Nos Estados
a
a genealogia do <(
movimento.
e lésbicos tal qual eu os compreendo"6 . Qual é o valor Unidos, alguns dos mais importantes trabalhos do feminismo queer of \.'.)
>-
do termo queer hoje, e quais são as consequências de colour veio de Jasbir Puar, mas também de Fred Moten e David Eng, _J
<(
se ter construído uma "teoria queer "? Tavia N'gongo, Nadia Ellis, Sara Ahmed, Juana Rodríguez. Esses todos
1-
JB - Como mencionei antes, eu não construí a teoria. Outros definiram os são importantes escritores que mudaram o perfil do campo, e isso foi
termos e os patamares dos debates. Fui chamada de teórica queer muito incrivelmente importante. A lista global seria muito mais longa! V,
u,
:::,
> ME - No prefácio à segunda edição de Subjects of Desire, você escreveu: \.'.)
"'o
a: * Queer of calor designa uma vertente intelectual e política que busca trazer uma abordagem "Em certo sentido, todo o meu trabalho orbita em torno de um conjunto o
cr:::
1- não branca à teoria e à prática do movimento queer. (N. E.) <(
-'
7
z 6 Judith Butler, "Gender as Performance", entrevista conduzida por Lynne Segai e Peter Osborne, Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell e Nancy Fraser, Debates feministas: um inter- "'
<(
Radical Phi/osophy n. 67, verão 1994, p. 32. câml:iio ftlosóftco (trad. Fernanda Veríssimo, São Paulo, Editora Unesp, 2018). u
do reconhecimen.t o estão ausentes ou foram suprimidos, é nesse nível democracia liberal sequer chega ou chegou a ser uma para articular
w
>-
<(
em que temos de lutar para produzir os termos do reconhecimento que realidade para uma grande maioria da população, um imaginário "'
LL
tornam uma vida vivível. Mas não acredito que os termos do reconhe- que instrumentos seriam necessários para desenvolver antineoliberal. <(
cimento estejam separados dos campos da política e da economia. As uma crítica ao desmonte neoliberal? "'
<(
>-
duas esferas se condicionam mutuamente.
JB - Claro que eu aprendi muito com Wendy Brown e sua análise do V,
w
ME- Seguindo por essa mesma linha, gostaríamos de tomar o tema do luto e neoliberalismo, especialmente do processo de financeiriza ção e de como <(
a:
o
da despossessão, que, embora estejam presentes desde o início da obra, vão-se a precarização foi intensificada: o trabalho torna-se temporário; serviços L
consolidando, sobretudo a partir de Precarious Life [Vida precária] e Quadros públicos básicos, como habitação e saúde, são "terceirizados"; e popula- w
o
de guerra 10 . Neste segundo livro, parece haver uma questão pós-hegeliana ções são frequentemente abandonadas por formas de neoliberalismo que :;::
fundamental, que é pensar não mais apenas no reconhecimento, mas tam- somente incentivam o autoempreendedorismo individual. Meu trabalho >-
"'
<(
bém no que fornece as próprias condições para que haja reconhecimento. recente sobre a não violência é um esforço para articular um imaginário :,
A pergunta é se é possível tomar a perda como fundamento negativo com o antineoliberal - um imaginário no qual as relações sociais e as obrigações o
<(
qual se pode reconstituir uma ideia de vida em comum? de cada um para com o outro sejam mais importantes do que a auto- l'.)
>-
maximização individual e do que as políticas de despossessão levadas a _J
>-
8
Judith Butler, Subjects of desire, cit. "'
<(
L
9
Idem, Antigone's Claim (Nova York, Columbia University Press, 2002) [ed. bras.: O clamor ME - Caminhos divergentes é um livro em que você performatiza o en-
de Antígona, trad. André Cechinel, Florianópolis, Editora da UFSC, 2014]; Giving an Account of contro entre pensadores judeus (Arendt, Lévinas, Benjamin) e palestinos
V,
w
::,
> Oneself (Nova York, Fordham University Press, 2003) [ed. bras.: Relatar a si mesmo , trad. Rogério l'.)
z a vida é passível de luto?, trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha, Rio de Janeiro, Ver Wendy Brown, ':A.merican Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Demo- a:
<(
UJ Civilização Brasileira, 2015]. cratization" , Po/itica/ Theory , v. 34, n. 6, dez. 2006 , p. 690-714. u
"
u...
outros países do mundo, inclusive no Brasil? Como definir esse fenômeno?
O livro mencionado é certamente muito importante, mas ele algumas <(
JB - Acredito que estamos testemunhando uma nova forma de fascismo, vezes soa como um evangelho buscando sustentar a reputação da velha "
<(
>-
na qual nem sempre se ensaia um rompimento explícito com a democracia tradição do feminismo marxista em vez de uma teoria crítica que com- V,
w
e que às vezes funciona dentro de suas estruturas. O problema agora não preende a violência não somente da exploração do trabalho das mu- <(
é tanto um homem extremamente carismático, ou mesmo a redenção da lheres, como também da acelerada desaparição da própria ideia de um "o
í:
nação (embora isso certamente opere no Brasil). O trabalho estável. Tal como o movimento Occupy, é essencial chamar a w
intenso sentimento de precariedade induzido pelas atenção para como a riqueza é agora apropriada e acumulada por uma o
Estamos
testemunhando
forças econômicas e financeiras levou à xenofobia, pequena porcentagem de pessoas, ao mesmo tempo que muitos outros -
>-
de fascismo, na racismo, uma sequência de reações de ódio contra desigualdade tem de ser denunciada em todos os aspectos do movimen- a
qual nem sempre os movimentos sociais que buscam maior igualdade to feminista , assim como o feminicídio, a violência contra os migrantes, <(
(.'.)
se ensaia um e liberdade para os que estão nas margens, inclusive a homofobia e a transfobia. Temos de achar uma maneira de articular >-
_J
rompimento na prisão - o lugar último da privação de direitos. todas essas dimensões do movimento e renovar nossa teoria social para <(
<(
explícito com a impedir a devastação do presente, inclusive das florestas tropicais e dos "
<(
democracia.
ME - No último dia 8 de março foi publicado em lugares de promessa para uma nova aliança.
í:
z 14Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, Feminismo para os 99%: um manifesto (trad . "
<(
20 M ARGEM E SQUERDA 33 j U D I T H BU T LE R 21
DOSSIÊ: MARXISMO E LUTAS LGBT
Apresentação
LUCAS BULGARELLI
A P R E S E N T A Ç Ã 0
nflito de classe e aquelas baseadas nos conflitos obr n "r a
xualiclade. O ensaio de abertura, escrito por Renan Quinalha, r com-
põe um histórico dessa relação no Brasil. Analisando as primeiras for-
mulações marxistas sobre a sexualidade, o autor discorre sobre o per-
curso da relação entre as lutas marxistas e homossexuais no século XX.
Assim, identifica a influência de correntes, lideranças e contextos que
foram determinantes para a constituição e reconfiguração de ambos Marxismo e sexuálidade
os campos políticos no Brasil da virada do século.
Rafael Dias Toitio aprofunda o debate sobre as escolhas tomadas no Brasil: recompondo
pelo movimento LGBT brasileiro desde a redemocratização, enfati-
zando a dimensão institucional da ação política do movimento nas
um histórico
últimas décadas. Os processos mais recentes de negociação e barga-
nha promovidos por setores do movimento são analisados a partir da RENAN QUINALHA
crítica à natureza capitalista do Estado, sua dinâmica de acumulação
e sua formatação neoliberal.
A emergência do transfeminismo e a agenda política apresenta-
da por essa corrente, na qual atuam travestis e pessoas trans, são Os ~e~~tes sobre diversidade sexual guardam uma relação algo
analisados por Amanda Palha. Ao abordar a relação que o sexo e o contr~ditona com a tradição marxista. De um lado, parte expressiva do
gênero passam a estabelecer nas articulações transfeministas com ~arxis1:10 deu pouca atenção à sexualidade, desqualificando-a como
o parentesco, o trabalho, a reprodução e o corpo, a autora evidencia o dimensa_o menor da vida social, ou como uma agenda secundária. Por
caráter socialmente construído da antinomia natureza (sexo) e cultura outro, nao f~ra~ ~oucas as agremiações socialistas e comunistas que
(gênero), apontando a necessidade da absorção desses acúmulos para dera1;1 _contnbuiçoes fundamentais para as lutas dos homossexuais
nos ultimos 150 anos.
o feminismo e para o socialismo, bem como para a teoria marxista e
para a práxis revolucionária. Marx n~o abordou diretamente o tema. Engels, por sua vez, apetias
Os avanços das lutas LGBT na arena dos direitos e na disputa de o tan~encio_u ao tratar da relação desigual entre os sexos no âmbito da
1
1- valores e consciências frente à sociedade passaram a conviver mais ~amíha/ patnar~al - A despeito de não estar no horizonte dos autores,
co
recentemente com a proliferação de uma agenda conservadora e de e possivel ganmpar referências esparsas a práticas homossexuais de
(.'.)
_J
um rç!pertório talhado para a produção de pânicos morais, objeto da oponentes nas cartas trocadas entre ambos na década de 1860. Em
V,
análise de lsadora Lins França. A autora recupera a gênese da difusão algui:nas dessas correspondências, há comentários jocosos e _ hoje <(
<(
>- da expressão "ideologia de gênero" e seu percurso até desembarcar c~nsiderados - homofóbicos quando os fundadores do marxismo I
:::)
no Brasil, propondo uma análise sobre a mobilização do sexo, do discut~m su~s dif~re~ças políticas em relação a Johann Baptist von
gênero e da sexualidade pelo governo Bolsonaro dentro e fora das Schweitzer, hder sindical da social-democracia alemã ligado a Ferdi- <(
z
o
fronteiras nacionais. nand Lassalle. No mesmo sentido, Engels vale-se de um tom irônico
:E
As abordagens adotadas em cada ensaio proporcionam um pano- par~ desq~alificar como obscena e antinatural uma obra que Marx lhe ::J
X
rama crítico da história e do presente do marxismo e das lutas LGBT, havia e~viado de autoria de Karl Heinrich Ulrichs, jurista e precursor a
"'
<(
do movimento homossexual, especialmente nas campanhas por um
I: evidenciando ao mesmo tempo a potencialidade constitutiva da apro-
ximação entre os dois campos. O exercício proposto por este dossiê z
<(
é oferecer material analítico que apresente caminhos para a transfor-
V,
z
V,
o
mação de uma luta mutuamente constituída através da superação da 1
Friedrich Engels, A origem do família, do Estado e do propriedade privada (trad. Nélio Schneide~
_
o exploração de classe e da opressão contra pessoas LGBT. Sao Paulo, B01tempo, 2019). '
a::
M ARXISMO
24 M ARGEM E SQU ERD A 33 SEXUALIDAD E NO BR ASIL 25
traLam nt i ntífi da xualidad p la d rlmin:tl iz:1 ':I ltt s - t r fund amente mobilizações, como as de 1968. Na América Latina, a
2 prim ira organização política homossexual de que se tem registro é a
d mia no parágrafo 175 do Código Penal alemã •
No entanto, apesar de evidenciar que ~s pais do ma~xi m r ~ro- Nu tro Mundo, formada em 1967 na Argentina por trabalhadores e sin-
luziam uma visão comum de época, sena metodologicamente ina- licalistas liderados pelo quadro do Partido Comunista Héctor Anabitarte.
de quado inferir, a partir somente de passagens pontuais e ~i~persas, No entanto, as convergências e afinidades eletivas entre marxismos
posições políticas ou teorizações mais consistentes - positivas ou homossexualidades destacadas acima são apenas parte da história,
negativas - de Marx ou de Engels sobre a questão. pois houve também duros embates e afastamentos. Não faltaram mo-
Mais equivocado ainda seria condenar o marxismo, enquant~ uma mentos de reprodução da homofobia por parte das esquerdas.
linhagem de pensamento e de ação, como indelevelmente contaminado Depois da Revolução Russa avançar os debates sobre gênero e
por uma perspectiva homofóbica de seus fundadores, como se foss_e sexualidade, houve um retrocesso com Stálin. Em 1934, a homossexua-
um vício de origem incontornável. Ao contrário disso, um olhar mais lidade voltou a ser criminalizada. A influência do stalinismo espraiou
atento revela como essa tradição foi atravessada e ressignificada pelas seu moralismo por meio de partidos vinculados à Terceira Internacional
reivindicações de homossexuais em diferentes contextos e países. em boa parte do Ocidente. O mesmo ocorria em relação às variações
Na virada do século XIX para o XX, a social-democracia alemã dos regimes chinês e cubano, que ganhavam cada vez mais espaço
foi essencial na campanha pela revogação da já mencionada lei an- em diversos lugares do mundo, com destaque na América Latina.
tissodomia com o médico e membro do Partido Social-Democrata Essa linha do movimento comunista internacional aportou no Brasil
da Alemanha (SPD) Magnus Hirschfeld ou mesmo com o histórico reforçando a homofobia, em uma heterodoxa combinação com a ideo-
discurso do dirigente August Bebel no Reichstag a favor dessa refor- logia católica da colonização europeia e o velho machismo cultural
ma legal3 . Pouco tempo depois, com a Revolução Russa de outubro latino-americano. Tais fatores conjugados colaboraram para decantar
de 1917, os bolcheviques editaram o Código Penal soviético, em 1922, nas esquerdas uma representação das homossexualidades como
descriminalizando o sexo consentido entre homens adultos . "desvio pequeno-burguês", manifestação da "decadência burguesa.",
Já após a Segunda Guerra Mundial, fundaram-se grupos hom~filos formas de ócio contra a ética do trabalho, comportamento contrário
em diferentes lugares do mundo, como o Cultuur en Ontspannmgs- à "moral revolucionária" ou ainda mero "desbunde".
centrum (COC), criado em 1946 na Holanda, com forte ligação com A tarefa da revolução social, assim, não passava pela revolução
a esquerda4. Na década de 1950, nos Estados Unidos, ~ criado o sexual. Forjar uma sociedade socialista, e o novo homem, demandava
Mattachine Society, graças à atuação do militante do Partido Comu- o combate à moral burguesa com seu hedonismo e individualismo
1-
c:o nista Harry Hay5. característicos. Para isso, era preciso cultivar subjetividades capazes
lJ
....J
o freudo-marxismo, de Wilhelm Reich a Herbert Marcuse, passan- de controlar as paixões, devotas ao projeto político, aderentes a
<(
do por Erich Fromm e outros, foi uma vertente teórica qu~ produ~iu uma rigidez normativa e com os objetivos pessoais subsumidos ao
<(
... análises libertárias sobre a emancipação sexual, a ponto de influenciar propósitos da revolução. Reforçavam-se, portanto, um " ethos d
::,
-'
masculinidade revolucionária"6, a sexualidade heteronormativa <
uniões monogâmicas. z
o 2 Hubert Kennedy, "johann Baptist von Schweitzer: The Queer Marx Loved to Hate", em G_ert O Partido Comunista Brasileiro (PCB), que hegemonizou p r d ·-
I: Hekma, Harry Oosterhuis e James Steakley (org.), Gay Men and the Sexual History of the Poht,cal ::,
V> cadas o campo das esquerdas, não fugiu à regra e contribuiu para
Le~ (Nova York, Harrington Park, 1995). alimentar essa visão homofóbica. Já no contexto da ditadura ivil-milita r o
J John Lauritsen, "Sobre a homossexualidade e o código penal", trad. Guilherme Nogueira,
de 1964, os grupos que apostaram na resistência armada r pr du zlam,
Nova Cultura, 28 out.2016, disponível online, acesso em 4 set.2019. z
em algum grau, os mesmos valores morais conservador
• Gert Hekma, Harry Oosterhuis e James Steakley, "Leftist Sexual Politics and Homosexuality",
JoumalofHomosexua/ity,v.29,n.2-3, 1995,p. l-40. z
V>
6
V\
s Doug lreland, "Sexual Liberation, Human Freedom" ,Jacobin, 28 out.2013, disponível online, James Green, "Quem é o macho que quer me matar?", Revisto Anistio Polftico e Justiço de
o Transição , Brasília, Ministério da justiça, n. 8, 2012, p. 86. o:::
o acesso em 4 set. 20 19.
E SQUERDA 33
M ARX ISMO E SEXUALIDADE N O BR A SIL 29
8 M ARG EM
m vim nto" 11 • Essa dificuldade de diálogo, em sua palavras, ln •d ia r n relata ter de batido longamente com Trevisan, amb s li 1' ra n-
a omunicação parte a parte, pois "nem os ativistas gay e I bi as, do alas opostas do grupo, a respeito do relacionamento entr a
n m os defensores das esquerdas no debate tinham uma linguagem mo~imento homossexual. Ao fazer um balanço de sua atuação n
ou uma perspectiva mais universal para conversar sobre o tema" 12 . penado, Green lançou um questionamento à posição de Trevisan. Afi-
Um terceiro momento a se destacar é o I Encontro Brasileiro de nal, p_or que "gastar_ t:mpo c_r~ticando a única organização de esquerda
Grupos Homossexuais Organizados, ocorrido em abril de 1980. Apre- que tmha uma pos1çao positiva em relação à homossexualidade em
sença de forças partidárias reforçou o encontro, mas também despertou vez de focar suas críticas nos grupos que não tinham posição ou' que
apreensão em alguns diante da possibilidade de o incipiente movi- eram homofóbicos?" 14 .
mento homossexual ser instrumentalizado por outros atores políticos. :"1ªs o grup~ já estava irremediavelmente fraturado entre a posição
O encontro, contudo, funcionou como o estopim que colocou às mais autonomista e a concepção de que o movimento deveria aliar-se
claras as diferenças que já cindiam o grupo Somos. Diversas questões, a outros ~tores sociais sensíveis às demandas dos homossexuais. Em
de ordem política e pessoal, compuseram o quadro dessa rivalidade 17 de maio de 1980, em uma reunião geral do grupo, consumou-se
dentro do grupo que, por ser o mais antigo e estruturado, foi sintomá- um racha que marcou a história do movimento LGBT brasileiro.
tico das diferenças que atravessavam, em algum grau, todos os demais Nes_tas breves linhas, seria impossível desenvolver uma análise
grupos. O pivô central da crise foi uma suposta e crescente influência exaustiva dessa relação tão complexa entre marxismo e sexual 1'd a d e.
N . .
da Facção Homossexual da Convergência _Socialista. osso mtu1to, ~ntes, ~oi apenas demonstrar como O marxismo pode
Organizada em 1979, a Facção chegou a contar, em 1981, com mais ~ de:'e ser_multo mais colorido e diverso do que normalmente se
de duas dezenas de ativistas para discutir a opressão a homossexuais tmagma. _So assim será possível construirmos respostas e caminhos
sob uma perspectiva marxista. Como o primeiro coletivo homossexual ?ara as ciladas postas pelo capitalismo contemporâneo para a efetiva
de um partido da esquerda, chegou a promover debates internos, igualdade da população LGBT.
grupos de estudos e publicações 13 .
A atuação disciplinada de alguns poucos militantes trotskistas,
formados sob uma lógica bolchevique, acabou dando ao grupo um
destaque maior do que ele efetivamente tinha dentro do Somos. Era
bastante clara a dificuldade de convencer pessoas a se integrarem,
1- de forma orgânica, a um padrão de militância que exigia duros sa-
co
l?
crifícios pessoais e profissionais em uma organização revolucionária,
-' sobretudo porque não se sabia qual seria o alcance da liberalização
<(
política em curso. Mesmo com tamanha limitação, sua mera existência
1-
::, era instrumentalizada para alimentar uma hostilidade à esquerda no I
movimento homossexual.
o z
I:
::,
X 11
James Green, ";A,baixo a repressão, mais amor e mais tesão': uma memória sobre a ditadura
"'
<( e o movimento de gays e lésbicas de São Paulo na época da abertura" , Acervo, v. 27, n. 1, a
:t: abr. 2014, p. 68.
12 z
Idem, "O grupo Somos, a esquerda e a resistência à ditadura", em James Green e Renan
V\ Quinalha (org.), Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (São
V\
Carlos, EdUFSCAR, 2014), p. 191 . z
o
i• Ja
13
Hiro Okita, Homossexualismo: da opressão à libertação (São Paulo, Proposta Editorial, 1981 ). mes G reen, "'Ab .
,..._ a1xo a repressão, mais amor e mais tesão'", cit., p. 66.
ex:
Q -M A R G E M E SQUERDA 33 M A R XIS M O
S E X UAL IDA D E N O BR AS IL 31
líti a LGBT, desenvolvidas a partir do governo Lula, que Bol onar
n _guiu aumentar sua base eleitoral: "O 'kit gay' foi uma catapulta
n·t mmha carreira política"\ reconheceu ele em 2017. "Kit gay" era
urna referência leviana e irresponsável a um material didático voltado
1 'tra trabalhar a questão do preconceito e da discriminação contra
L BT na escola pública. Bolsonaro deu início à construção de um
A luta pela diversidade "pânico moral" em torno do kit e das reivindicações do movimento até
q ue, em junho de 2011, a Bancada Evangélica aliou-se ao deputado
sexual e de gênero diante
chantageou o governo Dilma Rousseff, que cancelou o projeto e a
do Estado capitalista listribuição do material para as escolas.
Essa militância e os reiterados discursos homofóbicos do deputado
o que a atual crise política
foram fundamentais para lhe dar visibilidade e para aumentar sua base
tem a nos ensinar? de apoio popular em torno de um projeto autoritário-conservador. E
agora, como presidente, essa mesma postura continua a contribuir
RAFAEL DIAS TOIT/0 para a reprodução dessa base que, mesmo que relativamente peque-
na, t~m-se mostrado bastante fiel e coesa. Por outro lado, é preciso
A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 rom- considerar que as principais pautas do presidente Bolsonaro não se
peu, definitivamente, a relação do movimento LGBT com o Executivo. traduzem necessariamente em prioridade do governo batizado com
Essa relação, iniciada de forma tímida no governo Fernando Henrique seu nome. Quando candidato, tornou-se o principal representante
Cardoso e que conheceu o seu auge no governo Luís Inácio Lula da contrário ao conjunto dos movimentos e das ideias progressistas e de
Silva, estava enfraquecida desde o governo Dilma Rousseff, que em esquerda. Porém, a candidatura só ganhou chances reais de vencer as
grande medida procurou distanciar-se da pauta diante da ofensiva con- eleições quando assumiu a agenda do capital financeiro. E o início do
servadora organizada no Congresso Nacional pela Bancada Evangélica. governo Bolsonaro deixou evidente seu compromisso com essa agenda
Contudo, em alguns momentos, como em 2013 e em 2014, o governo (neoliberal) ao priorizar a aprovação da reforma da Previdência além
e a própria presidenta não hesitaram em defender publicamente as da promoção de privatizações, da retirada de direitos trabalhista~ e da
1-
co bandeiras e reivindicações LGBT, e mesmo o governo Michel Temer, ofensiva contra o sindicalismo. o
l.? que tinha na referida bancada uma das principais bases de apoio, Esse contexto traz uma série de desafios para a luta pela diversidade
...J
>-
não deixou de reconhecer e mesmo atender algumas pautas pontuais sexual e de gênero, sendo importante aprofundar a reflexão sobre as
<(
>- do movimento - em um contexto em que era imprescindível dar um formas de construir análises de conjuntura que informarão os cami- o
:::>
verniz democrático a um governo sem legitimidade. No governo Bol- nhos trilhados por ela. Cabe apontar que a grande maioria dos estudos 1-
sonaro, esse processo de recuos e avanços nas conquistas esgarçou-se brasileiros sobre a relação entre movimento LGBT, governo e Estado
o radicalmente, de tal modo que o próprio Executivo tornou-se agora o co~stituíram-se em um quadro teórico e metodológico que separava
l:
principal inimigo da luta pela diversidade sexual e de gênero. radicalmente cultura política de economia política, enfatizando apenas <(
X E não poderia ser diferente. Jair Bolsonaro encontrou na militân- a primeira e desconsiderando, quando não negando , a segunda. Con-
a: o
<( cia contra as políticas e os direitos LGBT a principal forma de obter tudo, a atual conjuntura, de bloqueio da pauta da diversidade sexual e
L de gênero no Executivo e no Legislativo e de ofensiva conservadora (o
visibilidade política nos anos que antecederam a 2018. Antes, era
considerado um deputado do "baixo clero" do Congresso Nacional, que enfraquece a forma de relação com o Estado pautada na "política
<(
V>
V>
conhecido por defender a ditadura militar e fazer apologia à violência
o e à violação de direitos fundamentais . Mas foi no enfrentamento às 1
Marcelo Godoy, "Um fantasma ronda o Planalto" , O Estado de S. Paulo, 2 abr. 2017, disponível <(
o online, acesso em 4 set. 2019. ex::
32 M ARG EM E SQUERDA 33
LUTA PELA DIVERSIDADE SEXUAL E D E GÊNERO DIANTE DO E STADO CAP I TALISTA
3
d id ntidad "), par riar paço me mo int ,11 dl Ili la 1· 1 ara a 11111 ,1 rn elida provisória criminalizando a homofobia, quando, após a
pr posição de outras perspectivas. Nesse sentido, m I as " na eco- 1.1 11 'aliza ão política de 2013, a presidenta passou a defender a impor-
nomia política marxista, gostaria de pontuar algumas qu stõ s sobre 1, 11 ' ia d uma lei específica? Seria para manter a governabilidade? Mas
o Estado que podem contribuir para a compreensão dos reveses da ria mantida em nome de quê e dos interesses de quais forças
luta pela diversidade sexual e de gênero no atual contexto. 1 e>líti as? A resposta a essas perguntas não se sustenta sem uma análise
No Brasil, o movimento (então) homossexual surgiu no fim dos i lu linâmica das classes sociais e dos conflitos por redistribuição que
anos 1970, muito marcado pela prática de auto-organização e por um ,11rav ssavam o governo, ou então cairíamos em uma análise idealista
debate crítico ao Estado repressor. Mas, sobretudo após o surgimento 1:i p lítica em que as formas de governabilidade teriam uma existência
da aids, ele acabou seguindo os passos da maioria dos outros movi- 1 1· 1 ria, supostamente fora dos conflitos entre grupos sociais concretos.
mentos sociais surgidos no mesmo período, voltando-se para o Estado vernabilidade sugere a formação de um arranjo cambiante de forças
e passando a disputar a construção de políticas sociais e de direitos 1 líticas, cujos conflitos e contradições se expressam, dentre outros
civis. Disputar a institucionalidade estatal tornou possível promover •I"mentos, no conteúdo das políticas econômicas e sociais. Desde o
ações e investidas contra questões e contradições sociais de forma lní io do Estado capitalista, a construção dessas políticas esteve intima-
ampla e disseminada - ainda que limitada - em âmbito local e nacional, m nte ligada à disputa pelos recursos socialmente produzidos e pela
uma vez que os aparelhos e funcionários do Estado estão amplamente f' rma de distribuí-los entre as diversas classes sociais e suas frações.
difundidos pelo país, e as regulamentações formais podem estabelecer Hoje, é esperado de um governo uma estratégia de desenvolvimento
certos limites à reprodução das diferentes desigualdades sociais. q ue faça crescer a economia e que seja capaz de garantir os recursos
Nessa disputa pelo Estado, o movimento muito pouco atentou n cessários ao funcionamento do Estado e à construção das políticas
para o fato de que esse Estado é capitalista, o que traz implicações ·conôrnicas e sociais. Contudo, com o restabelecimento da democra-
à sua atuação. Entre outros elementos, objetivamente isso significa ia formal no Brasil, uma diversidade de grupos e classes subalternos
que o funcionamento do Estado depende da acumulação capitalista. anhou espaço na ação estatal, tornando a disputa pelos recursos
Dessa maneira, um governo deve ter uma estratégia de desenvolvi- (materiais e simbólicos) ainda mais acirrada . O projeto neoliberal-
mento econômico, sustentada por uma determinada correlação de -conservador que atualmente orienta o governo Bolsonaro tem como
forças sociais, capaz de garantir a reprodução dos recursos materiais prioridade liberar ou mesmo transferir recursos públicos para o capital
e simbólicos a serem (desigualmente) distribuídos a um conjunto de financeiro. E isso drena a capacidade do Estado de desenvolver políti-
f--- classes e grupos sociais 2 • Diante disso, as políticas sociais se tornam as públicas, sendo uma ameaça tanto para o crescimento econômico o
co
t'.)
reféns do sucesso das políticas econômicas, ainda que as políticas quanto para uma diversidade de conquistas ligadas aos movimentos
t--
--' (sociais) redistributivas possam interferir em algum momento para o sociais e populares e que adquiriram algum espaço na institucionalidade
<(
crescimento econômico. Assim, se as questões da diversidade sexual política nas últimas décadas. o
t--
::,
e de gênero podem roubar de tempos em tempos a "cena" política, a Na perspectiva do movimento LGBT, a necessidade de disputar as f---
tendência, contudo, é de as pautas econômicas se sobressaírem - o orientações e ações do Estado reside no fato de que este, como um
que se evidencia particularmente em um período de crise. "aparelho especial" de poder, é capaz de interferir e regular a forma
o <(
I: Nessa perspectiva, é preciso questionar por que, mesmo em momen- de reprodução das relações de sexualidade e de gênero. Vale lembrar
tos de "estabilidade", o governo Dilma Rousseff se manteve distante das que o movimento LGBT conseguiu atuar não só sobre o Executivo, o o
X
"' pautas LGBT. Por que ele cedeu à chantagem da Bancada Evangélica Legislativo e o Judiciário, mas conseguiu incidir também em outros se-
<(
I: e cancelou a distribuição do kit do projeto Escola Sem Homofobia, tores, como escolas e universidades públicas, polícia e Exército, sistema
que era uma reivindicação do movimento? Ou por que não baixou de saúde, sistema de assistência social etc. 3. Contudo, a relação com
<(
2 3 Rafael Dias Toitio, Cores e contradições: a luta pela diversidade sexual e de gênero sob o neoli-
o Bob jessop, "Estratégias de acumulação, formas estatais e projetos hegemônicos", trad . Gilson <(
o Rodrigues de Almeida, Ideias, Campinas, ano 14, v. 1, n. 2, 2007, p. 1O1-35 . beralismo brasileiro (tese de doutorado em Ciências Sociais, Campinas, IFCH-Unicamp, 2016). a::
I:
Reconhecer essas questões não implica, entretanto, validar leituras este momento pode também propiciar o aprofundamento da relação o
economicistas da realidade, tampouco decretar a prioridade da luta e ntre a luta das classes trabalhadoras e a luta pela diversidade sexual
de classes perante as outras lutas. Recentemente, o companheiro e de gênero, de modo a construir uma nova cultura política que po-
Alessandro Santos Mariano, liderança do Coletivo Nacional LGBT Sem- tencialize a articulação prática e teórica entre elas.
<(
o
o 4
Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo (Rio de Janeiro, Graal, 1980), p. 50. oc
36 MARGEM E SQUERDA 33 LUTA PELA DIVERSIDADE S E XUAL E DE GÊNERO DIANTE DO E STA DO CAPI T AL I STA 37
1 r ap resentar uma unidade teórica bem delimitada. Ao contrário: a
' ntribuições transfeministas são, nesse sentido, bastante diversas. O
l u confere ao transfe minis mo uma unidade enquanto corrente é a
a ão de sujeitos políticos que compartilham a identidade transexual,
travesti ou transgênera 2 e o referencial feminista. Identidade ocupa,
n sa discussão, papel fundamental, e merece destacada atenção.
Transfeminismo e São frequentes, dentro ~ fora do marxismo atual, as críticas às
hamadas "políticas de identidade" ou ao identitarismo de movimen-
construção revolucionária tos políticos. Surge também, na vulgarização dessa discussão, uma
falsa polêmica apoiada numa também falsa oposição entre "identi-
AMANDA PALHA dade" e "classe", que ofusca um conjunto de questões promissoras a
serem desenvolvidas na teoria e na prática anticapitalistas . É verdade
que a ação política que toma a identidade como meio e fim esbarra
no caráter eminentemente conservador que essa perspectiva traz: a
defesa da manutenção de uma identidade, como fim político, implica
a defesa da conservação das relações sociais que a produzem, bem
Pretendo, neste ensaio, trazer provocações e reflexões iniciais sobre como das fronteiras , materiais e simbólicas, que constituem sua di-
a pertinência de um olhar mais cuidadoso sobre as contribuições que ferenciação. É notório o quanto isso sabota qualquer perspectiva de
o transfeminismo pode trazer para a ação política marxista. Vale notar transformação sistêmica.
que isso não implica, para mim, considerar essa uma contribuição de Isso não é, no entanto, inerente à identidade, mas fruto do lugar
mão única: certamente, há muito o que o marxismo pode acrescer à dado a ela nesse tipo de ação. Outra maneira de lidar com a identida-
ação política transfeminista; esse movimento, no entanto, é tanto mais de é perceber e explorar sua potência para descrever e particularizar
frequentemente abordado e compreendido nos círculos de afinidade conjuntos específicos de relações e práticas sociais, das quais derivam
marxista quanto também mais confortável à arrogância intelectual que valores distintos e perspectivas potenciais específicas de compreen-
vem se mostrando tão frequente entre nós, principalmente quando o são de dimensões da realidade social. Tratar identidade dessa forma 3
1- assunto é as assim referidas "pautas identitárias". Proponho, portanto, inscreve as possibilidades de (1) desvelar o seu caráter histórico e
C(}
I_?
que abramos espaço ao desconforto, se necessário, a fim de navegar socialmente determinado, atravessando o véu da naturalização, e (2)
-' por controversas mas importantes águas. convertê-la em instrumento potente de ações políticas anticapitalistas.
V,
<(
É mais importante do que apenas isso, no entanto. Prescindir de
>-
:, Transfeminismo, identidade e política incorporar, na ação política marxista, essa perspectiva sobre as identi-
Por "transfeminismo" entendamos uma corrente específica do femi- dades (outras que a de classe), implica assumir dois riscos caros: deixar I
nismo contemporâneo, resultado da absorção das discussões feministas de alcançar compreensões mais ricas sobre dimensões específica do
o
l: por parte do movimento político de pessoas transexuais, travestis e
V,
a...
transgêneros1, que se constitui no contexto e no escopo da valorização
2
das identidades raciais e de gênero não hegemônicas (não brancas, Considerando que não caberia, neste trabalho, delongar-me na diferenciação desses três
conceitos, utilizarei a partir daqui o termo "pessoas trans" como termo genérico referindo-me
não heterossexuais, não cisgêneras) na ação e no pensar políticos o
ao grupo.
da esquerda. Conforma-se como corrente política, no entanto, não 3 z
Forma que Walter Mignolo, autor argentino não marxista, chama de "identidade em polí-
V, tica". Ver Walter D. Mignolo, "Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado
V,
I
mas Scielo e Google Acadêmico não retornem nenhum resultado em ocupam lugar central, essa é uma perda significativa que compromete
o .
português6 . Teriam o juízo de reprovação de Lênin e sua referência de seriamente a capacidade de uma abordagem crítica anticapitalista sobre <(
autoridade sido motivos suficientes para que virtualmente ninguém, o gênero alcançar suas pretendidas últimas consequências. e...
X
o::
<(
A contribuição, portanto, da organização de prostitutas não está na
<(
X
da mercadoria como mediadora da satisfação das necessidades, se- Com efeito, a noção de que relacionar sexo e gênero significa rela-
"'< <
r: dimentam e parametrizam, inclusive, a efetivação social das noções cionar um elemento natural a um social, com o segundo sendo produto
o
modernas de indivíduo. ou decorrência do primeiro, é frequentemente objeto de discussões z
V,
<
V,
9
o 8 Judith Butler, "O parentesco é sempre tido como heterossexual?" , trad. Valter Arcanjo da Ver José Paulo Netto, Capitalismo e reif,cação (São Paulo, Instituto Caio Prado Jr., 2015),
Cl Ponte, Cadernos Pagu , n. 21, 2003, p. 219-60. p. 74, referindo-se ao conceito de fetichismo em Marx. <(
o
1
Clarissa Pains, "'Menino veste azul e menina veste rosa', diz Damares Alves em vídeo",
O Globo , 3 jan .2019, disponível online , acesso em 2 ago.2019.
Brasil, em 2017, animados por medos e fantasias a respeito de uma .111 1 hado a políticas neoliberais, ainda que pouco afeitos ao discurso
uposta "ideologia de gênero", da qual a filósofa estadunidense seria til r li ta, não se importaram muito com essa estratégia, tolerada na
a principal expoente 2 • lll ' lida da sua utilidade para o aprofundamento dessas políticas no
Esse terreno das ansiedades, dos medos e das fantasias, contudo, l~ra il. Contudo, essa é apenas uma parte da história. A outra parte
não costuma ser o mais propício ao diálogo de ideias. É, porém, parte 1· ':-ii 1
. na articulação global de forças religiosas e políticas para conter
importante do modo como gênero e sexualidade operam na nossa so- > tímido avanço em termos de direitos sexuais e reprodutivos que
ciedade. A noção de "pânico moral" do sociólogo Stanley Cohen3 pode marcou o início deste século.
ser muito útil para entendermos como Jake news tão além do razoável, A falácia da disseminação de uma suposta "ideologia de gênero"
como a da distribuição de "mamadeiras de piroca"4 em escolas públicas, l ' m sido dispositivo integrante das escaladas conservadoras na Amé-
tiveram papel decisivo nas eleições que levaram a extrema-direita à ri a Latina e em outros países, como já têm abordado autores como
Presidência no Brasil. Cohen afirma que, de tempos em tempos, uma Mara Viveros Vigoya e Alejandro Rondón6 . Ela nasce em retaliação
condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge como ameaça a reconhecimento internacional de direitos relativos a gênero e a
a valores sociais. Armam-se barricadas morais e instaura-se um "caça às diversidade sexual e à atuação bem-sucedida de feministas e ativistas
bruxas". Tais pânicos podem ser passageiros, mas suas consequências LGBTI com vistas à construção de políticas públicas para a garantia de
infelizes são mais duradouras. Jeffrey Weeks e Gayle Rubin 5 destacaram direitos, para a redução das desigualdades e para o combate à violência
a peculiar centralidade que a sexualidade tem no surgimento desses contra mulheres e pessoas LGBTI. Incorporado na agenda política em
pânicos e o efeito de estreitamento do horizonte das políticas sexuais diversos países nas últimas décadas, o termo "gênero" passou a figurar
que eles tiveram em diversos momentos históricos, como no da Guerra em uma variedade de documentos e políticas públicas destinados à
Fria e no da emergência da epidemia de HIV/ aids. redução das desigualdades. Há, atualmente, uma reação clara a esses
Assim, a sexualidade - nas suas articulações com gênero - pode avanços, por mais parciais que tenham sido.
frequentemente estar no centro de ansiedades coletivas, sendo aqueles A noção de "ideologia de gênero" está relacionada a um novo ativis-
identificados como dissidentes sexuais os bodes expiatórios preferen- mo conservador, particularmente a partir da atuação da Igreja Católica
ciais. Ainda, quando se trata de medos e fantasias, os bodes expiatórios na defesa do que considera o papel "natural" de homens e mulheres
1- associam-se e multiplicam-se: comunistas, terroristas, estrangeiros, fe- na família e na reprodução . No limite, ela foi construída como denún- u,
co z
\.J
ministas, ativistas LGBTI... aparentemente, todos podem ser acusados cia de um suposto plano internacional levado a cabo por feministas
_, de participar de uma grande concertação destinada a corromper nossa e ativistas LGBTI para pôr fim à família e à diferença entre os sexos,
a:
V,
<(
sociedade nos seus valores mais caros. corrompendo particularmente as crianças. A estratégia levada a cabo LL
1-
::, Tudo isso nos auxilia a compreender como forças conservadoras e em publicações, discursos e redes sociais por atores religiosos com
de extrema-direita mobilizaram gênero e sexualidade como linguagem apoio de grupos conservadores mobilizou ansiedades e medos diante
daquilo que era desenhado como uma ameaça à própria sociedade z
o
:E como um todo a partir de sua categoria mais vulnerável: as crianças. _,
1
Moacyr Lopes Junior, "Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no No Brasil, a suposta "ideologia de gênero" circula entre ativistas,
X Brasil", Folho de S.Poulo, 9 set. 2017, disponível online, acesso em 2 ago. 2019.
a:
3
grupos e políticos católicos e evangélicos como um significante
<( Stanley Cohen, Fo/k Devils ond Moral Ponics (2. ed. , Londres, Routledge, 2002).
L 4
capaz de aglutinar posturas conservadoras em relação a gênero e a a:
Uma das insólitas foke news denunciava a distribuição nas escolas infantis de uma mamadeira o
sexualidade. Os primeiros anos desta década marcam a sua aparição
cujo bico tinha o formato de um pênis, e a associava aos governos do Partido dos Trabalhadores. o
5
Jeffrey Weeks, Sex, Politics ond Society: the Regulotion of Sexuolity since 1800 (4. ed., Nova
6
o York, Routledge, 2014); Gayle Rubin, Políticos do sexo (trad. Jamille Pinheiro Dias, São Paulo, Mara Viveros Vigoya e Manuel Alejandro Rodríguez Rondón, "Hacer y deshacer la ideología
o Ubu, 2017). de género", Sexuo/idod, Solud y Sociedod, n. 27, 2017, p. 118-27.
f- privatização, punitivismo e encarceramento. à violência e à guerra, expressos nos discursos, nas políticas, na estética u,
C(l
l.'.)
Presenciamos já no início do governo Bolsonaro o desmonte de es- z
_J
truturas administrativas voltadas para a promoção de políticas públicas 9 <(
Diante da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de criminalizar a homofobia,
para mulheres e pessoas LGBTI, em meio a um discurso assistencia- Bolsonaro declarou: "Com todo respeito, mas decisão do Supremo é completamente equivocada.
o:
lista e à defesa de uma visão bastante restrita sobre o que se define Além de estar legislando, está aprofundando a luta de classes"; ver Pedro Rafael Vilela, "Bolsonaro
LL
como família, cuja proteção o Estado deve promover. Tal política de critica decisão do STF de criminalizar a homofobia", Agência Brasil, 14 jun.2019, disponível online,
destruição se faz acompanhar de declarações governamentais de evi- acesso em 2 ago. 2019. Em que pese o legítimo debate sobre o fortalecimento do desigual e
violento sistema de justiça criminal em relação à equiparação da homofobia ao crime de racismo, z
o
:;: a declaração de Bolsonaro não foi feita nessa linha, expressando apenas seu não reconhecimento
_J
de LGBTI como sujeitos de direitos.
X
7
o: Ver Regina Facchini e Julian Rodrigues, "'Ideologia de gênero', atores e direitos em disputa: 'º Em 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, a ministra declarou-se contrária a
<( <(
uma análise sobre o processo de aprovação do Plano Nacional de Educação (2013-201 S)", em discursos pela igualdade de gênero. Ver "Damares diz que governo ensinará meninos a dar flores
L o:
Alice Lopes et ai., Os gêneros da escola e o (im)possível silenciamento da diferença no currículo e abrir porta para mulheres", O Estado de S. Paulo, 8 mar. 2019, disponível online, acesso em
(Recife, Editora da UFPE, 2018), p. 87-126. 6 set. 2019. o
8 11 o
Sérgio Carrara, lsadora Lins França e Júlio Assis Simões, "Conhecimento e práticas científicas Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e seu Comitê Gênero e Sexualidade, "Nota de repúdio <(
o na esfera pública: antropologia, gênero e sexualidade", Revista de Antropologia da USP , São Paulo, da ABA aos novos ataques do governo Bolsonaro aos direitos humanos e a questões de gênero e
o V. 61 , n. 1, 20 18, p. 71-82 .
sexualidade na ONU", ABA, São Paulo, 28 jun. 2019, disponível online, acesso 2 ago. 2019.
50 MARGEM E SQUERDA 33
G N E R O S E XUA LID ADE
51
ARTIGOS
* Este texto foi feito a partir de uma transcrição da fala de encerramento de Angela Davis na
Midwest Bisexual Lesbian Gay Transgender Ally College Conference (MBLGTACC), realizada
na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign no dia 24 de fevereiro de 2008, e integra
o livro O significado da liberdade, de Angela Davis (São Paulo, Boitempo, no prelo). A tradução z
é de Artur Renzo. (N . E.).
r,eoconservadorismo que se alimenta de supremacia branca, do radicais - e com mobilização política nesse sentido. Não quero pa-
p1triarcado, da xenofobia, da islamofobia e do heterossexismo? Pro- recer estar subestimando o poder do voto, especialmente visto que
>- CJ
v3.velmente não. Mas uma coisa é certa: se as lutas do passado não as estratégias legislativas tem se mostrado fundamentais na busca
a: z
<( wessem ocorrido, se as pessoas não tivessem erguido a voz, cometido por justiça para comunidades LGBT. No entanto, mesmo precisando <(
54 f"ARGEM E SQUE RD A 33 JU S T IÇA PARA COMUN ID ADES LÉ SBICAS, GAYS , B I SSEXUA I S E TRANSGÊNER AS
55
desesperadamente dos remédios e das proteções qu p ssa m r ga- problemas continuarão a se proliferar, e seguirão sendo reproduzido
rantidos pela lei, não podemos depender apenas da lei m solução p lo sistema carcerário. A prisão é um dos principais aparatos ins-
para o problema da homofobia. titucionais de generificação, ela estimula e depende da homofobia.
Em Oxnard, na Califórnia, pouco menos de duas semanas atrás, Sei que o nome de Martin Luther King foi evocado em diversas
um menino de quinze anos de idade chamado Lawrence King foi ocasiões durante esta conferência. Este é o Mês da História Negra*;
assassinado por um colega de sala depois de ter se assumido publi- preocupa-me que nossa memória histórica popular tenha se tornado
camente em seu colégio. Ele havia sofrido bullying por parte de um tão superficial a ponto de o nome de Martin Luther King passar a
grupo de meninos depois de ter começado a usar salto alto e batom ocupar o lugar de uma história muito mais complicada do que o seu
na escola. O menino que o matou tinha apenas catorze anos de idade. sonho. A popularização de Martin Luther King contribuiu ainda mais
Aparentemente, ele entrou no laboratório de informática da escola, para a amnésia histórica deste país.
onde Lawrence King estava estudando, e lhe deu um tiro na cabeça. Um dos conselheiros de maior confiança de Martin Luther King, o
Essa tragédia tem tantas dimensões além da morte horrenda e homem que o introduziu ao conceito ghandiano de resistância não
desnecessária de um jovem menino. Segundo o New York Times, ele violenta, o homem que foi um dos grandes organizadores da Marcha
estava vivendo em um abrigo coletivo para crianças adotivas abusadas. sobre Washington de 1963, foi Bayard Rustin, um homem negro que
O menino de catorze anos que o matou será julgado como adulto - era abertamente gay antes do surgimento do movimento de libertação
como se ele possuísse a capacidade de agência individual para decidir gay. Bayard Rustin também havia sido membro do Partido Comunista.
por conta própria que pessoas homossexuais e transgêneras são tão Rustin foi atacado pelo senador Strom Thurmond como sendo um
repulsivas que não merecem viver. De onde será que ele tirou essa "comunista homossexual que fugiu do serviço militar". Embora dr. King
ideia? A atribuição de culpa absoluta ao indivíduo nesse caso segue fosse consistente e principiado em seu apoio a Bayard Rustin, outros
a mesma lógica que permitiu que o governo dos Estados Unidos e líderes, incluindo Roy Wilkins, então diretor da NAACP, se recusaram
suas forças militares deslocassem a responsabilidade pelas horrendas a permitir que Rustin fosse creditado pela suas contribuições para a
torturas sexuais realizadas em Abu Graib a um pequeno número de organização daquela que permanece a manifestação histórica mais
indivíduos, a "umas minoria de maçãs podres". famosa de Washington. Foi naquela marcha que o dr. King proferiu
No caso de Lawrence King, o assassino será julgado por crime de seu discurso "I Have a Dream" [Eu tenho um sonho] .
ódio e, se for condenado, será sentenciado de 52 anos de prisão a Dois anos depois, em março de 1965, dr. King publicou um artigo
prisão perpétua*. Esse menino será o bode expiatório de uma socie- no New York Times intitulado "Civil Right n. 1: The Right to Vote"
dade heteronormativa e de um governo profundamente homofóbico, [Direito civil n . 1: O direito ao voto]. No dia seguinte, o presidente
e essa homofobia continuará. Lyndon Johnson realizou um pronunciamento sobre o projeto de lei
Além disso, se dependermos do sistema prisional para resolver o dos direitos de voto [ Voting Rights Bill], que foi depois aprovado no dia
problema da homofobia, estamo-nos amparando em um sistema que 6 de agosto**. Esse deve ter sido um dos momentos aos quais Hillary
é cúmplice no processo que tornou a homofobia algo socialmente Clinton se referia quando disse que foi necessário um presidente para
aceitável. Se dependermos da instituição prisional como modo primário realizar os ideais do dr. King.
de abordar os problemas sociais que levam as pessoas à prisão, esses >
o
* Nos Estados Unidos, desde os anos 1970, celebra-se, ao longo de todo o mês de outubro,
o * Após uma série de atrasos e um julgamento anulado, os promotores retiraram a acusação de o Block History Month. (N. T.)
<
crime de ódio para reabrir o processo contra Brandon Mclnerney. Tendo se confessado culpado ** Martin Luther KingJr., "Civil Right n. 1: The Right to Vote", The New York Times, 14 mar. 1965.
de assassinato em segundo grau, homicídio voluntário e uso de uma arma de fogo, o jovem foi Realizado no dia 15 de março, o discurso de Johnson ao congresso sobre o direito ao voto foi
sentenciado no dia 19 de dezembro de 20 11a 21 anos de prisão, a serem cumpridos inicialmente transmitido ao vivo em rede televisiva nacional. A transcrição completa está disponível em Public ..,
em um centro de detenção juvenil, e, subsequentemente, em uma prisão, após completar seus Popers of the Presidents of the United States: Lyndon B. johnson , 1965, v. 1, entrada 107 (Wash- L
dezoito anos de idade. (N. T.) ington , D.C., Government Printing Office , 1966), p. 281 -7. (N . E.)
M ARGEM E SQU ERD A 33 J USTIÇA PARA COMUNIDADES L ÉSB I CAS , GAYS , B I SSEXUA I S E TRAN SG tNrRII ',
Em primeiro lugar, o movime nto por direito 1v1s ta muit ai m Com a exceção dos estados de Maine e de Vermont, o pr idiá-
de um único líder. Milhares e milhares de pessoas anônima apren- rios nos Estados Unidos não têm direito ao voto. Em muitos estad
deram a imaginar um mundo radicalmente transformado. King deu X-condenados também não podem votar. A negação do direito a
uma expressão às aspirações delas, e pessoas como Bayard Rustin voto para condenados é um dos principais motivos de Bush ter saído
ajudaram a traduzir essas aspirações na forma de um movimento. Essa vitorioso nas eleições de 2000 .
é a história que é apagada pela redução do movimento por direitos Não quero subestimar a importância dos direitos civis, dos direitos
civis a um único nome: Martin Luther King. da cidadania, mas neste país os direitos da cidadania são elaborados
Talvez Clinton estivesse implicitamente fazendo uma comparação de maneira muito estreita e formalista. Nos Estados Unidos, os direitos
entre Obama e o dr. King - obviamente ele ouviu com muita atenção tendem a ser separados do acesso aos recursos que precisaríamos para
os discursos de King-, e entre ela e Johnson*. gozar de tais direitos. O direito de ser livre de discriminação no local
Por que nenhum partido gastou muito tempo discutindo o estado de trabalho-que ainda não está garantido a comunidades LGBT-foi
atual dos direitos civis? Algum dos dois insistirá na inclusão de pes- desvinculado do próprio direito a um emprego. Elimina-se a discrimi-
soas transgêneras? nação de moradia, mas não se garante o direito a moradia a um preço
Há um elo direto entre as lutas históricas por direitos civis para acessível. Há atendimento à saúde, mas não o direito à saúde pública
pessoas de ascendência africana neste país e as lutas contemporâneas gratuita. Há educação, mas não o direito à educação pública gratuita.
por direitos civis para comunidades LG BT. Isso significa que preci- Quatro décadas atrás, desenvolveu-se um debate entre Martin Luther
samos erguer a voz contra os esforços dos evangélicos negros que King e Malcolm X em torno das questões de direitos civis e direitos hu-
se recusam a reconhecer as conexões entre as lutas históricas por manos. Surgiu uma bizarra situação legal durante a luta por direitos civis:
direitos civis para pessoas negras e as lutas atuais pelos direitos civis ativistas desse movimento foram assassinados, mas os estados do Sul
das comunidades LGBT. se recusaram a abrir processos por seus assassinatos. O único caminho
Se levarmos a sério os direitos civis, não podemos sustentar que o para garantir os processos: lei federal de direitos civis.
movimento em sua defesa se encerrou e que estaríamos hoje numa era Quarenta anos atrás, Malcolm defendeu que expandíssemos nossa
pós-direitos civis ou pós-racial. Muitíssimas pessoas são privadas do perspectiva dos direitos civis pará a dos direitos humanos. Contundo,
exercício de seus direitos civis e exiladas às margens da esfera políti- ainda não desenvolvemos um discurso que nos permita identificar e
ca. Comunidades LGBT não gozam das plenas proteções dos direitos construir movimentos contra as extensas violações de direitos humanos
civis. São negadas a comunidades de imigrantes, especialmente de cometidas neste país. Assim, a tortura não constitui uma violação de
imigrantes não documentados, as proteções dos direitos civis. Milhões direitos humanos; o assassinato de Lawrence King não configura uma
de detentos e ex-detentos têm seus direitos civis negados. violação de direitos humanos.
Agora, gostaria de me debruçar brevemente sobre duas das mais
* A autora refere-se, aqui, à troca de farpas ocorrida no mês anterior entre os então senadores salientes questões de direitos civis que vêm mobilizando comuni-
Hillary Clinton e Barack Obama, no contexto da disputa no interior do Partido Democrata pela dades LGBT e seus aliados. A primeira é a questão da igualdade de
nomeação para a candidatura presidencial para as eleições de 2008. No dia 7 de janeiro, Clinton casamento, e a segunda é a questão da igualdade no serviço militar.
>
afirmou: "Eu apontaria para o fato de que o sonho do dr. King começou a ser realizado quando o Ao refletirmos sobre o argumento formal a respeito de igualdade <
presidente [Lyndon B.] Johnson aprovou o Civil Rights Act de 1964, quando foi capaz de garantir
aprovação no Congresso para algo que o presidente Kennedy tinha a esperança de fazer, que
de gênero e de sexo no serviço militar, devemo-nos perguntar por o
o presidente anterior não havia nem tentado, mas foi necessário um presidente para que fosse q ue estamos inclinados a nos apoiar na lógica abstrata - igualdade
o feito", e acrescentou: "aquele sonho se tornou uma realidade, o poder daquele sonho tornou-se entendida como acesso igual, acesso igual de pessoas de cor ao serviço <
real nas vidas das pessoas porque tínhamos um presidente que disse 'nós vamos fazer isso ', e, de militar, acesso igual de mulheres ao combate, acesso igual de gays e
fato, o fez". Para muitos, ficou mais do que evidente a comparação com seu principal adversário lésbicas ao Exército.
t- no processo das primárias, deflagrado oficialmente poucos dias antes. Ver Patrick Healy e Jeff
a: Zelenyjan, "Clinton and Obama Spar Over Remark About Dr. King", The New York Times, 13 jan. Embora eu jamais sugenna que essas lutas em torno de igual- z
<( 2008 . (N. T) dade formal não tenham sua importância, é igualmente importante <(
58 M ARGEM E SQU E RDA 33 J US TIÇA PARA CO MUN I DADES LÉSBICA S, GAYS, BISSE XUAIS E TRAN SGÊNERA S
considerar aquilo a que os grupos sub-repr s nta I s cJ ' mandam 4. Acreditamos e m m bilização não violenta de base que empodera indiví-
acesso. Eu pensaria que tais demandas "democráticas" tamb m t riam duos e constrói um movimento social que cria transformações duradouras .
de considerar o caráter profundamente antidemocrático da instituição.
Assim, eles repudiaram publicamente a performance feita por
~elhor seria o direito igual de recusa do serviço militar - para ho-
um homem branco gay durante a última Derby em uma boate local.
mens brancos, mulheres brancas, mulheres e homens de cor, e gays
Esse homem, Chuck Knipp, se montou com um blackface e roupas
e lésbicas de todos os contextos raciais e étnicos.
de mulher para retratar uma mãe negra assistida pelo Estado chamada
Os debates em torno do casamento gay requerem uma abordagem
mais complexa. As estruturas de heteronormatividade e as diversas Shirley Q . Liquor, com dezenove filhos, cujos nomes eram marcas de
violências que essas estruturas e discursos implicam não desaparecem licor de malte e doenças venéreas*. Aparentemente, os apoiadores da
necessariamente quando a sexualidade dos participantes é outra . Não Fairness foram criticados por algumas pessoas por não serem "gays"
estou sugerindo que não devamos reivindicar o direito de que gays e o suficiente. Afinal, era tudo brincadeira.
lésbicas possam incorrer nessa prática, mas também precisamos refletir Se Don Imus, Michael Richards e Kelly Tilghman são publicamente
sobre a própria instituição. Trata-se de uma instituição econômica: criticados por conta de seus comentários racistas, então não deveria
ela diz respeito à propriedade, não às relações humanas, tampouco haver uma resistência ainda mais veemente a esse tipo de humor ra-
relações íntimas. cista quando ele busca passar-se por cultura popular gay?
O que significa reivindicar o direito igual ao casamento sem re- Há muito mais a ser dito, mas pensei em concluir compartilhan-
conhecer o papel que o casamento desempenhou na reprodução do com vocês um poema intitulado "Where do you go to become a
de desigualdades de raça e gênero? Sob condições de democracia non-citizen?", que foi bastante popular em círculos queer de cor na
burguesa, o casamento sempre foi uma instituição machista, racista e década de 1980 na região da Baía de São Francisco. Foi escrito por
heterossexista que diz respeito principalmente à acumulação e distri- Pat Parker, uma poeta negra, feminista e lésbica que faleceu em 1989,
buição de propriedade. e integra sua antologia Movement in Black.
Pessoas escravizadas não podiam casar, e quando surgiam con- Visto que muitos de vocês não eram nascidos quando ela escreveu
figurações familiares que não correspondiam ao padrão da família esse poema, é provável que não captem as referências históricas. Mas
nuclear, implementavam-se ideologias racistas complexas a fim de isso não significa que ela e sua abordagem feminista interseccional
consolidar ainda mais as hierarquias raciais. Vivemos com essas ideo- transversal não deveria fazer parte da memória histó;ica de vocês. '
logias hoje . Durante a campanha de George Bush pelo casamento, No poema de Pat Parker, há ressonâncias arrepiantes com o período
profundos problemas estruturais ligados ao racismo foram atribuídos contemporâneo. Te nho em mente sua questão "para onde se vai para
à ausência paterna. Como se tudo que as mães solteiras precisassem ser um não cidadão?" - uma indagação que hoje ecoa em solidarie-
seria casar, e assim transcenderiam as condições de pobreza em que se dade com pessoas desprovidas de documentação . Tenho em mente
encontram. E elas precisam se casar com um homem, mesmo que suas referências à Taft College e a Carmel, que hoje evocam os Seis
esse homem esteja desempregado. de Jena e as Quatro de Nova Jersey. Se Pat ainda estivesse viva, ela
Mesmo no interior de comunidades LGBT descobrimos a influência procuraria garantir que todos compreendessem as conexões entre o
de venenosas ideologias racistas. Pego um exemplo do trabalho reali- ataque racista aos Seis de Jena, o ataque racista/ heterossexista às jo- >
zado pelo Fairness Campaign na cidade de Louisville, em Kentucky. A vens lésbicas negras que tentaram se defender no bairro de Greenwich <
organização descreve seus valores fundamentais da seguinte maneira: Village em Nova York e o assassinato homofóbico de Lawrence King. o
o 1. Acreditamos que pessoas gays, lésbicas, bissexuais e transgêneras têm <
l:>
direito a respeito, dignidade e igualdade plenos. * Ao lado da welfare queen, a black we/fare mother, a mãe negra assistida pelo Estado, é um
2. Acreditamos que desmantelar o racismo é central em nosso trabalho. conhecido estigma de raça, gênero e classe que se refere às donas de casa negras contempladas
l-
por políticas de assistencial ismo social nos Estados Unidos. O conceito foi destrinchado e teorizado l:>
a:: 3. Acreditamos que todas as questões de opressão estão ligadas e só
por Patrícia Hill Collins, em Pensamento feminista negro (trad. Jamille Pinheiro Dias, São Paulo, z
<( podem ser abordadas através do trabalho em coalizões. Boitempo, 2019), como uma "imagem de controle" que recai sobre as mulheres negras. (N. T.) <(
Yet it won 't keep the pigs from hurting you or me Mas isto não nos protege das pancadas de um policial. o
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
o
1 wanna resign; 1 want out <(
Please lead me to the place * A poesia de Pat Parker tem uma dicção muito original, ao mesmo tempo desabusada e rigorosa.
Show me the smilingface Refere-se com frequência a acontecimentos históricos precisos e contextualizados, como se pode
l-
l'm skeptical - full of doubt ler no original. Traduzi-los ao pé da letra exigiria um calhamaço de notas de pé de página que l')
o::
destruiriam a magia poética do original. Por isso preferi recorrer a uma interpretação baseada no z
1 wanna resign; 1 want out.
aspecto conotativo e simbólico destas referências. (F. A.) <(
Mulher, negra, feminista, marxista, inte- Plínio Salgado foi o principal líder da Ação Integralista Brasileira
lectual, ativista e comunista. No início (AIB), expressão organizada do movimento de extrema-direita que
dos anos 1970, Angela Davis era tudo empolgou parte da juventude e da intelectualidade durante a década
que o estab/ishment estadunidense mais de 1930. Foi jornalista, era considerado um orador brilhante e , além
temia. Com firmeza, enfrentou uma dura de publicar dezenas de livros políticos e religiosos, foi também escri-
e insidiosa perseguição: chegou a ser
incluída na lista das pessoas mais pro-
tor literário de sucesso. Publicou quatro romances e alguns livros de
curadas pelo FBI. Aos 28 anos, escreveu poemas, contos e crônicas. A fama do político, no entanto, sufocou,
esta poderosa autobiografia para narrar ao longo do tempo, o renome do escritor. Estigmatizado o autor como
sua vida desde a infância até o ingresso de "extrema-direita" e como "fascista", a obra literária mergulhou num
na carreira universitária e o engajamento injustificado ostracismo de público e crítica (com raras exceções).
contra as opressões de raça, gênero e Entretanto, deve-se assinalar que seu livro Vida de Jesus, publicado
classe. Mais que um relato da juventude
t radução: Heci Regina Candiani
em 1942, alcançou até hoje mais de vinte reedições ou reimpressões
de um ícone da história contemporâ- ::::,
prefácio : Raquel Barreto
orelha: Anielle Franco nea, este livro entrelaça lutas sociais e l.?
quarta ca pa: Zezé Motta trajetória individual para provocar uma ' Este ensaio foi escrito há mais de vinte anos, para uma edição especial de uma revista acadêmica <(
384 p ág inas reflexão sobre o caráter estruturalmen- do Canadá. Deste original em português, traduziu-se uma versão para o francês. A edição focava
te violento do sistema carcerário, do escritores de extrema-direita que caíram no ostracismo devido a suas preferências ideológicas. o
machismo e do racismo, em libelo pelo Entretanto, submetido ao parecerista da publicação, recebi uma negativa seca, redigida pela
direito à dignidade e à emancipação. diretoria do departamento competente, dizendo que eu falava pouco do texto e demais da bio- >
grafia do autor. Agradeci à atenção, e disse estar positivamente surpreso por constatar que Plínio
Salgado era uma figura tão conhecida nos meios acadêmicos do Canadá a ponto de dispensar
apresentações. u.
DISPONÍVEL EM BROCHURA, CAPA DURA E E-BOOK!
o I NE S P ER A D O 65
e, se não é um best-seller, tem lugar de destaqu na s ' · •s 1, R:.,li ião militar - o "Si t ma", mo então se dizia - já dava os primeiros ina is
em algumas das maiores livrarias do país. d isolamento e de dificuldades para conter as oposições. O alcan
Plínio Salgado nasceu em 22 de janeiro de 1895, na cidad de São político destas cresceria até a queda, ou melhor, o esfacelamento da
Bento do Sapucaí, estado de São Paulo, na região brasileira hoje co- "Ditadura", dez anos mais tarde, em 1985, com sua substituição por
nhecida como "Sudeste", então simplesmente "Sul". Molireu na cidade um governo civil, ainda que eleito indiretamente.
de São Paulo, em 8 de dezembro de 1975, depois de ter sido deputado Nas décadas de 1920 e 1930, ao mesmo tempo em que se firmava
federal de 1963 a 1974, primeiro pelo estado do Paraná, e depois por o direito da arte à experimentação, todo o campo da cultura passou
seu estado natal. Quando nasceu, o Brasil abolira a escravidão havia por um grande processo de politização. O Brasil, antes frequentemen-
menos de sete anos e era uma república havia menos de seis. Era te definido como um país pitoresco e pobre, ainda que afortunado,
um país predominantemente agroexportador, sobretudo de café; mais passou muitas vezes a ser apresentado como um país atrasado e sub-
de 70% da população habitava regiões rurais. A integração do território desenvolvido. E os romances de Plínio Salgado também participaram
nacional, sob a hegemonia do governo central, no Rio de Janeiro, era dessa redefinição do perfil nacional.
ainda débil. No extremo sul do Brasil, rebeldes federalistas contestavam Pelo lado materno, Plínio Salgado descendia de Pero Dias, um
o governo central, numa sangrenta revolta que, em três anos (1893- dos fundadores da cidade de São Paulo, no século XVI. O ambiente
-1895), provocou mais de 10 mil mortes, mil pela degola de prisionei- familiar era católico, nacionalista, letrado e conservador. Seu pai era
ros, de parte a parte. Os rebeldes chegaram a constituir um governo farmacêutico e atuava como chefe político da cidade; admirava o Ma-
provisório na cidade de Nossa Senhora do Desterro, capital do estado rechal de Ferro. A mãe era professora, e deu aulas na Escola Normal
de Santa Catarina. Reconquistada pelas tropas legalistas em meio a da cidade, o que na época era uma distinção.
uma sangrenta repressão, com execuções por fuzilamento ou na forca, A morte prematura do pai forçou-o a trabalhar a partir dos dezoito
na fortaleza de Anhatomirim, ela foi rebatizada em seguida cidade anos. Foi professor, agrimensor e jornalista e desenvolveu atividac;les
de Florianópolis, em homenagem a Floriano Peixoto, o "Marechal de de liderança nas iniciativas culturais em sua cidade natal. Em 1918,
Ferro". Nos sertões do Norte, massas de camponeses empobrecidos, casou-se com dona Maria Amália Pereira. Pouco depois nasceu uma
de ex-escravos expulsos das terras dos senhores, de bandoleiros em filha do casal, mas em seguida dona Maria Amália morreu, quando a
busca de refúgio, reuniam-se sob a liderança religiosa do beato Antônio menina ainda não completara um mês. Plínio Salgado afundou numa
Conselheiro no arraial de Canudos, rebatizado como Belo Monte, em profunda crise existencial. Melhorou através do mergulho na religião
terras do estado da Bahia. Revoltados, esses camponeses, depois de católica - fato que seria marcante tanto em sua vida política como
uma tenaz resistência, foram praticamente exterminados por forças na de escritor.
do Exército nacional e de milícias estaduais, em 1897. Na década de 1920, Salgado mudou-se para a capital do estado,
Em 1975, quando Plínio Salgado morreu, a maioria da população onde desenvolveu principalmente atividades literárias. A cidade era o
brasileira (cerca de 70%) vivia em regiões urbanas. Embora extensas palco privilegiado das atividades dos grupos de vanguarda no Brasil, .:
regiões fossem ainda relativamente pouco habitadas, o Brasil era um ao mesmo tempo que cresciam as atividades industriais e os bairros <(
país industrializado, sobretudo no Sudeste e no Sul. Seus mais distantes operários, com a imigração europeia, sobretudo italiana, que trouxe :::,
rincões já eram atingidos por redes nacionais de televisão e de rádio. os movimentos anarquistas. <.:)
Um governo autoritário - como o do "Marechal de Ferro" - de forte Plínio Salgado via as propostas da vanguarda artística com algu- <l'.
base nos quartéis, mas com apoio expressivo entre civis de direita, ma desconfiança, assinalando que em nações cujos povos que eram
o entre eles Plínio Salgado - dominava o país desde o golpe militar frágeis do ponto de vista cultural - e este seria o caso do Brasil, país o
<.:)
de 1964, que derrubara o presidente eleito João Goulart e promovera ainda em formação - os princípios da arte moderna poderiam ser
>
violentas perseguições contra militantes de esquerda, opositores libe- mais danosos do que benéficos. Entretanto, isso não impediu que em
.: rais, estudantes, operários, camponeses, intelectuais, artistas e jornais seu primeiro romance, O estrangeiro, publicado em 1926, adotasse
<l'. dissidentes. Deve-se dizer que, no ano de 1975, o cerne do regime um estilo marcado por "vanguardismos": uma prosa fragmentária, LL
formação escolar costumava ser frágil - e para acompanhar ambos com os regimes liderados por Hitler e Mussolini. Setores do regime
numa viagem ao exterior. Plínio aceitou a oportunidade valiosa para varguista aproximavam-se claramente desses regimes de direita. Em :::,
um intelectual carente de maiores recursos, e assim conheceu parte nome do combate ao comunismo, Salgado aproximou-se mais e mais
do Oriente Médio e da Europa. O fato mais importante da viagem, de Vargas. Não poucas vezes militantes integralistas e comunistas tro- <{
segundo ele próprio, foi o mês que passou na Itália, vendo de perto caram tiros ou se envolveram em pancadarias nas ruas, com mortos
o e feridos. Em 1935, o levante armado organizado pelos comunistas a o
partir de Natal, no Rio Grande do Norte, e no Rio de Janeiro, aproximou
2 >
Plínio Salgado escreveu quatro romances: O estrangeiro (São Paulo, Helios, 1926), O esperado de vez Salgado de Vargas: assim, ele atingiu o ápice de sua influência.
1- (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1931 ), O cavaleiro de Itararé (São Paulo, Unitas, 1933) e
Plínio constituiu o movimento misturando aspectos de milícias para-
A voz do oeste (Rio de Janeiro, José Olympio, 1934). Pude ter acesso a eles graças à generosidade
<{ do professor Antonio Candido, que me emprestou os volumes. militares com aspectos de ordem religiosa. Os adeptos usavam camisas u..
68 M A R G EM E S QU ERDA 33 o I NESPERAD O 69
v rdes, tinham a letra grega sigma por súnbolo, faziam s:iu ln ' ~ m ' mai um pequ n ru I de defensores conseguiram r i tir ar " u ·
a mão direita erguida e espalmada, como no fasci m . ua sa udação ornando do Exército e nviasse reforços para a defesa. Embora na
era um grito em língua tupi: anauê, um grito de cumprim nto e de e acusado formalmente de participação nessa tentativa fraca ada
guerra. Dois integralistas comuns deviam erguer os braços e gritar golpe, Plínio Salgado foi preso em 1939 e deportado para Portugal,
anauêuma vez. Os dirigentes, divididos em provinciais e arquiprovin- nde permaneceu até a queda de Vargas, em 1945. Ainda que volta
ciais, num arremedo de ordem jesuítica, tinham direito a dois anauês. a ter influência posteriormente, chegando a ser candidato à Presidên ia
O dirigente supremo, isto é, o próprio Plínio Salgado, tinha direito da República em 1955, sua golden age terminara. Depois da volta do
a três, e Deus, a quatro, mas só o dirigente supremo podia saudar a xílio, sua atividade política revestiu-se mais e mais de um catolicismo
divindade em público. conservador. Algo de seus princípios integralistas sobreviveu no regime
Havia algo de sinistro em tudo isso, mas também, por vezes, de imposto pelos militares a partir de 1964, que ele, como já disse, apoiou,
cômico e patético. Um dos jovens adeptos do integralismo contou, tornando-se um dos grandes defensores da censura à imprensa e aos
certa vez, ao professor Antonio Candido (que por sua vez repassou- meios intelectuais, para "disciplinar" a nação.
-me a história algo anedótica) como resolveu, pelo senso do ridículo, Foi no período de sua ascensão política, e como parte dela, que
abandonar o movimento. Estava viajando de automóvel pelo interior Plínio Salgado escreveu e publicou seus quatro romances: O estran-
brasileiro, no caminho da província de Goiás,.com mais dois militantes, geiro (1926), O esperado (escrito em 1930, em Paris, e publicado
um arquidirigente, e o chofer. Ao passarem por um ribeirão, o líder em 1931), O cavaleiro de Itararé (1933) e A voz do oeste 0934), ro-
perguntou ao chofer qual era o nome da corrente. O chofer declarou mance histórico e, de longe, o pior de todos. Os outros três alternam
o nome (que ele não lembrava mais) e acrescentou que aquele pe- momentos de fragilidade na construção com momentos de excelente
queno ribeirão era um dos formadores do grande rio Araguaia que, prosa - alguns brilhantes - , sobretudo se os virmos como uma com-
com o Tocantins, vai desaguar praticamente na foz do Amazonas. O posição da mistura fragmentária de pontos de vista, característica dos
arquilíder fez parar o carro, fez os mais jovens formarem em linha estilos modernistas, com uma crônica da vida paulista, paulistana e
junto à margem - "num calor de rachar", disse o depoente - e grita- brasileira, num estilo bem tradicional cuj~ origem remonta às velhas
rem o anauê, de mão erguida, declarando: "Integralistas, saudemos crônicas medievais portuguesas. O estilo de Plínio apresenta também
este pequeno ribeirão que vai formar o grande Araguaia, que é um sinais de leituras naturalistas, como a de Eça de Queirós, e de certo
dos rios da unidade nacional! ". Segundo o depoente, para ele aquilo gosto por atmosferas melodramáticas e românticas, como as dos ro-
foi demais. Na volta, ele deixou o movimento. Entretanto, os outros mances de Camilo Castelo Branco.
integralistas passaram a persegui-lo como traidor. Numa ocasião, Com esses ingredientes, Plínio Salgado conseguiu traçar retratos
chegaram a trocar tiros com ele. Em outra, conseguiram sequestrá-lo muito vívidos e críticos da sociedade brasileira, sobretudo a de São
e o espancaram brutalmente pela "traição", num fato que alcançou Paulo, e dos processos de transformação por que o país, o estado
grande repercussão política em São Paulo. e a cidade passavam: as levas recentes de imigrantes davam novos a::
Com esses métodos, Plínio Salgado organizou um verdadeiro estado perfis ao velho Brasil de raiz lusitana e ao mundo rural caboclo, e,
paralelo, pronto para tomar o Estado brasileiro: depois da aproximação, nas cidades, a industrialização mudava a paisagem física e humana. :::,
o choque com Vargas foi inevitável. Este veio em 1938, no ano seguinte A busca febril de novidades cosmopolitas e de um estilo de vida so-
àquele em que Vargas deu o golpe de estado fundador do Estado Novo, fisticado pelas classes ricas e emergentes se contrapunha à crescente "
<(
que Plínio, em princípio apoiou, extinguindo formalmente a AIB como pauperização dos bairros periféricos. Tudo isso Plínio Salgado pintou
o movimento político em fins de 1937. Em 1938, Vargas deu sinal verde com cores muito expressivas. o
l'.)
para que os integralistas começassem a ser perseguidos e neutralizados Se teve seu forte na pintura dos quadros sociais e na psicologia da.s
>
f-
em diversos pontos do país. Em maio daquele ano, um grupo de inte- relações humanas nesse quadro de transformações, Plínio Salgado en-
a:: gralistas atacou estações de rádio e o próprio palácio presidencial no controu seu Waterloo literário no desenho de protagonistas consistentes
<( Rio de Janeiro. Mas estavam tão desorganizados que Vargas, a família e, sobretudo, no desfecho de seus enredos. Tinha ele um afã político u..
72 M A R G EM E S Q UE R DA 33 o INE S PER AD O 7
que ele desenvolveu depois, na Ação Integrali ta r:t sil •ira , p rmit mico brasileiro, d grande sucesso na época, o gaúcho Aparício
A
supor que ele se convenceu de que o "Esperado" ri a l me mo, T relly, se autonomeou o "Barão de Itararé", passando a assinar suas
Plínio Salgado. bras sempre irônicas e satíricas com esse pseudônimo. Hoje ele é
No prefácio desse romance, Plínio já anunciava o próximo, Oca- mais conhecido por seu apelido do que por seu nome de batismo.
valeiro de Itararé: É inevitável, portanto, que se pense em Vargas como o malfada-
Pertence [este romance] à série de cromcas da vida brasileira con- do cavaleiro a que o terceiro romance se referia. Acresce-se a isso
temporânea, que começaram com O estrangeiro, que se desdobraram ainda o fato de que Plínio, no prefácio, dizia que o romance era um
diante do panorama mais complexo de O esperado, e que continuarão chamado aos jovens e aos militares do país para que cumprissem o
[sic], possivelmente no terceiro marco de nossa marcha , que será O dever de salvar a pátria. E ele terminava com dizeres mais de orador
cavaleiro de Itararé.7 do que de escritor:
Publicado em 1933, este terceiro romance tinha por motivo de seu Porque, se a juve ntude, civil e militar, não assume um papel decisivo;
título uma lenda do sul do estado de São Paulo, da região montanhosa se continuamos a assistir, de braços cruzados, à confusão dos espíritos,
de Itararé, segundo a qual em certas noites a morte passa a cavalo ao jogo das intrigas, ao desencadear das ambições dos mil grupos que
pelos campos, semeando destruição. Embora planejado antes, não se desarticulam a opinião nacional, então nada mais resta a tentar pela sal-
pode deixar de associar o romance e seu título à decepção de Plínio vação do Brasil. 8
com Vargas. No prefácio, diz ele que o romance foi escrito "em horas O quarto e último romance, A voz do oeste, publicado em 1934,
amargas de desilusão". Em 1932, houvera um levante militar em São apresenta-se como um "romance-poema da época das Bandeiras". E,
Paulo contra o governo de Vargas, provocado por uma mistura da no prefácio, diz o autor: "A história que vai ser narrada, nos sucessivos
decepção com o novo regime, que não implementara rapidamente capítulos deste livro, é a história da alma brasileira, no alvorecer dos
as reformas que anunciara, com um esforço restaurador das velhas primeiros impulsos da Nação". O romance enaltece "a mitologia do
oligarquias agrárias de São Paulo, que viam seu poder esvaziado e a selvagem americano", porque ela explica "a colaboração misteriosa
quem desagradava a nova política trabalhista, esboçada por Lindolfo da Terra nos grandes dramas brasileiros que os séculos sepultaram"9 ,
Collor. O levante foi sufocado em poucos meses de luta. Plínio Salgado o que mistura retórica romântica com determinismo de raiz positi-
manteve-se distante dos rebeldes de 1932, mas não escondia sua vista. O romance narra as aventuras de uma bandeira que, a partir
insatisfação com o regime de Vargas e sua demora em promover as de São Paulo, mergulha no sertão americano até o sopé dos Andes,
esperadas reformas que, para ele , deveriam ter um caráter doutrinário animada pelo propósito secreto de encontrar El-Rei Dom Sebastião,
exemplar, no sentido da salvação e do reerguimento nacionais . o monarca português desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no
"Itararé" tornou-se um signo de identificação do novo regime e de norte da África, em 1578. O rei, por misteriosos caminhos e razões,
sua política de compromissos com a velha ordem. Quando as tropas estaria prisioneiro em algum lugar da Cordilheira dos Andes, próximo "'
comandadas por Vargas tomaram o rumo do norte, para ocupar o Rio às minas de Potosí, na hoje Bolívia.
de Janeiro, que então era a capital da República, esperava-se que a A ideia geral é expor que desde o tempo das antigas "raças" que
::,
grande batalha entre os rebeldes e os legalistas se daria no Passo de habitavam a região da futura nação brasileira, ela já estava predes-
Itararé, na divisa entre os estados do Paraná e de São Paulo, uma região tinada a ter destino grandioso. Como se vê, o romance se afasta da <(
pobre e abandonada. Entretanto, cientes de sua posição fragilizada, visão regular do nazismo, da determinação do destino dos povos pela
o os generais do Comando das Forças Armadas depuseram o presiden- superioridade ou inferioridade racial, fazendo o elogio de uma raça o
" te Washington Luís e entregaram o poder a Vargas. "Itararé" ficou na e de uma cultura que, na escala dos hitleristas, não teria qualquer
,- história brasileira como "a batalha que não houve". Um célebre escritor >
"' 7
8 O cavaleiro de Itararé, cit., p. 6.
<( O esperado, cit. , p. 5. 9
A voz do oeste , cit. p. 7. u..
para o aforismo ou para a reflexão abstrata. Entretanto, essa inovação que, tentando sobreviver entre a metrópole inovadora e o sertão tra- :::,
não esconde a concepção melodramática do enredo. O estrangeiro do dicional, testemunha os novos processos sociais e políticos que ao \;)
título é um imigrante russo, Ivan. É um refugiado político, que teve seu mesmo tempo arrastam e dividem a nação. Merecem atenção especial, <(
grande amor negado na terra pátria. Consegue entrar no Brasil, cujo por exemplo, os capítulos XXV ("O êxodo") e XXIX ("Péo! Péo!"). No
o
governo fazia uma cuidadosa triagem ideológica entre os imigrantes, primeiro, o autor relata a situação premente dos caboclos desalojados o
\;)
em meio a um grupo de imigrantes italianos. impiedosamente de suas terras pelas disputas políticas entre líderes de
,_ partidos opostos e forçados a marchar para o oeste. Nesse processo, >
a::
desbravam novas terras, que depois serão novamente ocupadas por
10
<( Ibidem, p. 270. políticos e proprietários das cidades, num processo doloroso e sem .....
78 M ARGEM E S Q U E R D A 33
rganizativas da Internacional, que deveriam também ser assumida
por cada partido, e serviu de forte estímulo para que fossem fundados
partidos comunistas em várias partes do mundo. . .
A derrota da revolução socialista internacional pode ser 1dent1ficada
já em março de 1921. A economia política implantada na Rússia sovié-
tica isolada internacionalmente - que ficou conhecida como Nova
O centenário da Internacional Comunista Política Econômica (NEP) - , visava a dar início à transição socialista
a partir de um patamar baixíssimo de desenvolvimento das forças
MARCOS DEL R0/0 produtivas, que exigia sólida aliança com o campesinato, e, assim, a
uma forma particular de capitalismo monopolista de Estad?. O com-
plemento equivalente dessa política foi a fórmula da frente única, que
significava a luta pela unidade da classe operária, cindida pela gue~r~,
pela revolução e pela fundação da IC, e a unidade da classe operana
com o campesinato.
A fórmula política da frente única esteve sempre em disputa sobre
o seu significado, se deveria ou não incluir as direções dos partidos
No mês de março deste ano de 2019, ocorreu centenário da fun-
reformistas ou só as suas bases. Era evidente como as particularida-
dação da Internacional Comunista (IC), também conhecida como
des nacionais incidiam sobre o entendimento dos comunistas sobre
Terceira Internacional. Desde o colapso da Segunda Internacional, ou
essa questão e faziam surgir as divergências. As diferentes leituras
Internacional Socialista, em agosto de 1914, quando a maior parte dos
da frente única prevaleceram em momentos distintos até meados de
partidos vinculados a esse organismo decidiu-se pelo apoio à políti-
1929, quando o grupo formado em torno de Stálin na União Soviética
ca de guerra de seus governos, evidenciou-se a capitulação política
assumiu a direção do Estado e também da Internacional Comunista.
ideológica frente ao nacionalismo burguês.
Desde esse momento ocorreu uma guinada política de grandes di-
Desde o início de 1915, Lênin defendia a necessidade da fundação
mensões tanto na União Soviética como na IC. A leitura do grupo de
de uma nova organização internacional que enfrentasse a política de
Stálin era que a luta de classes se agravava na União Soviética, assim
guerra imperialista propondo a revolução socialista internacional,
como nos principais países imperialista. Ainda que isso não fosse falso,
bandeira deixada cair pela Internacional Socialista. Foi apenas em
a realidade era que a correlação de forças era muito desfavorável ao
1919, todavia, que Lênin conseguiu respaldo político suficiente para
movimento operário revolucionário. Na União Soviética, a política de o
essa empreitada. De fato, a vitória dos bolcheviques na Rússia e a
industrialização acelerada e de coletivização da terra criou sérios transtor-
difusão da situação revolucionária para outros países da Europa (e o
nos econômicos e sociais que vieram a ser determinantes para o futuro
mesmo da zona colonial) foi elemento decisivo para o sucesso da o::'.
da transição socialista. Nos países imperialistas, ainda que a expressão
iniciativa, mesmo considerando que os partidos fundadores fossem
"frente única" não tenha sido abandonada, a importância maior foi
todos de países surgidos da desintegração do Império russo e da
Europa centro-oriental. dada à política chamada de classe contra classe, ou seja, de confronto
aberto contra a burguesia. Como se entendeu que a social-democracia o
Pode-se dizer que, no momento da fundação, ar volução socia-
dificultava a prática dessa orientação política, os partidos dessa linha
o lista internacional alcançava o seu ápice, com o p d r dos conselhos
foram vistos como o inimigo principal naquele estágio da luta.
'--' operários no poder na Rússia e na Hungria m ntinuada efer- o
A gravíssima crise capitalista de 1929 a 1933 não contribuiu para
vescência na Alemanha e na Itália. Com as for a r a i nárias russas, u
l- organizar ou conscientizar a classe operária para a luta, pelo contrário. a:
junto com as aliadas tropas imperialistas, já m r u , m julho de
a: O resultado foi, antes, o fortalecimento de movimentos semelhantes ao <(
1920, realizou-se o II Congresso da IC. E s n r 'SS d c;finiu questões
<(
fascismo por toda parte e que culminou com a implantação do regime
A população se revoltou também contra sua condição de lacaio da gem em favor de Alberto Fernández na eleição para presidente [.. .) era
"Junta de Supervisão Fiscal" imposta por Barack Obama, e continuada evidente que o governo macrista tinha permanecido em pé, em meio a o
por Donald Trump, para garantir o pagamento de uma dívida pública um gigantesco colapso econômico, como uma soma zero entre ·as forças
monumental, mediante um programa de ajuste que varreria todos, os antagônicas da cena nacional e internacional - por um lado, o ódio das
direitos e conquistas sociais de uma população reduzida ao status de massas contra a política capitalista que descarrega a crise nas suas costas
e, de outro, o [Fundo Monetário Internacional) FMI e seus lacaios nativos. o
cidadã de segunda classe no Estado ao qual se subordina (os Estados
O fato de o colapso do governo ser descrito pelos comentaristas como u
Unidos), agravada pelas consequências do furacão Maria, em 2017,
que obrigou ao êxodo centenas de milhares de porto-riquenhos, em "catastrófico" se destaca ainda mais porque, afinal, ele simplesmente o
o um país cuja infraestrutura sempre esteve largada ao Deus-dará. perdeu para um rival [o kirchnerismo) que já comprovou, em funções o
A conjuntura continental, portanto, não se r du z à ascensão da de governo e de "oposição legislativa", que defende o mesmo regime
extrema-direita e à ofensiva neoliberal. Esta ap iou no fato de os social e o mesmo regime político do partido no poder. No paralelogramo <(
tações, com apenas 19,25% para o restante do mundo). As economias vez em quando, fica doida: 'Mas, presidente Lula, e a crise americana?!'
o
latino-americanas continuavam também muito dependentes da venda Perguntem para o Bush. A crise é dele, não é minha". Ou: "Eu estou
de matérias-primas (mais de 60% das suas exportações) . muito confiante de que a crise americana, se ela chegar aqui [. ..] lá ela <.:)
A América Latina conhecera um desempenho econômico convulsivo, é um tsunami, aqui ela vai chegar uma marolinha, que não dá nem
expresso em quedas e altas abruptas do seu crescimento, o que punha para esquiar"2 • Ora, contrariando a tese do "desacoplamento", a crise o
em evidência economias com baixo grau de autonomia (financeira, in- bateu com força na América Latina e no Brasil. No primeiro trimestre u
dustrial e comercial) e altamente dependentes das inflexões do mercado de 2009, o PIB da região caiu 3%, com destaque para a brutal queda
o
mundial. Durante o período de 2003 a 2007, a América Latina recebeu o
o
um volume recorde de investimentos estrangeiros diretos, superior a 2
<.:)
A primeira declaração integra um discurso feito pelo então presidente por ocasião da inaugu-
ração de prédios do campus da Ufersa, da assinatura de protocolo para implantação de refinaria
t- em Guamaré e da inauguração da Termoaçu , em Mossoró (RN), 19 set. 2008. Transcrição >
"
1
Política Obrera, "La aplastante derrota dei macrismo abre una crisis política", Partido de los disponível online no portal da Biblioteca da Presidência da República, acesso em 6 set. 2019 . A
<( Trabajadores, 12 ago. 201 9, disponível no site do Política Obrera, acesso em I O set. 20 19. segunda é atribuída a um discurso de Lula no ABC, em 4 out. 2008. (N. E.) o
mundial. A onda inflacionária alimentar acumulou uma alta de 83% Brasil, estimadas em US$ 25 bilhões. À medida que o sistema finan- \:)
em 36 meses e reduziu os estoques mundiais de alimentos ao seu ceiro se valeu dos recursos injetados pelo Estado para retomar a valo- o
menor nível em quase três décadas. A rápida expansão dos preços rização fictícia do capital, novas ondas especulativas começaram a se u
comprometeu as metas de erradicação da fome e da mi éria em vários formar nas bolsas de valores e muitas delas retornaram aos mesmos
o
países. Em 2007, a conta com a importação de alim ntos nos países patamares de supervalorização de antes de setembro de 2008. A valo- o
o subdesenvolvidos subiu 25%. Segundo Lula, a l vação mundial do rização do Ibovespa ao longo de 2009 foi de 76% (em dólar, de 130%).
\:)
preço dos alimentos era uma "inflação boa", qu nv cava os países
t-
a produzir mais e atender à demanda por alim nt ontrariando os
alertas de organismos como a Organizaçã das Na s Unidas para 3
"Lula diz que alta dos alimentos é 'inflação boa"', BBC News Brasil, 11 abr. 2008, disponível "'
<( Alimentação e Agricultura (FAO). Dizia L 1la: online na seção da BBC News Brasil no portal UOL, acesso em I Oset. 2019 . o
etanol da América Central em troca da autorização para inversões norte- para afirmarem seu poder de tutela sobre Honduras, legalizando o
o
-americanas na indústria de biocombustíveis no país. Era um índice golpe institucional que derrubou o governo de Zelaya, inaugurando
de que os projetos unificadores latino-americanos haviam entrado em uma modalidade que se repetiria em breve no Paraguai e, sobretudo,
crise. O processo econômico operava em favor da desintegração de no Brasil. Barack Obama confirmou o secretário de Estado de Geor-
América Latina. O Brasil reduziu o consumo e o preço do gás bolivia- ge W. Bush para a América Latina (Thomas Shannon), que anunciou o
no. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul), guarda-chuva para que daria uma nova oportunidade de reaproximação com os Estados u
programas de gastos em infraestrutura favorecendo as empreiteiras Unidos à Venezuela de Chávez. O Brasil buscava construir relações
brasileiras, pôs o Brasil no limiar da ruptura diplomática com Equador com a Venezuela e os demais países da região, visando a fazer avan- o
o çar parcerias que permitissem integrar a infraestrutura da região e seu o
devido às violações trabalhistas e ambientais da Odebrecht no país -
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) parque produtivo, e assegurar o papel cada vez mais central exercido <(
f-
respaldou financeiramente a obra com um empréstimo de US$ 243 pelas grandes empresas brasileiras, sobretudo Petrobrás, Vale do Rio >
0:: milhões, que o Equador foi obrigado a quitar. Evo Morales nacionalizou Doce e as grandes empreiteiras. A reunião continental de Trinidad
o consórcio petroleiro Chaco, do qual fazia parte a empresa argentina e Tobago, além de alguma aproximação dos Estados Unidos com o
<( acordo estratégico para a exploração do mercado mundial e da renda seu impacto negativo sobre a taxa de lucro das companhias petroleiras o
públicas financiadas pelo Estado. A abertura da economia brasileira, golpe institucional e de uma intervenção político-militar. o
em especial à China, foi benéfica para o agronegócio, mas também A base dos abalos sociais e políticos da América Latina é a persis- u
criou uma concorrência ruinosa para setores inteiros da burguesia tência da crise econômica internacional. As contradições do capital
industrial, mineradora e siderúrgica. A desvalorização que sofreu a são mais fortes que os esquemas políticos . Depois de 2007 e 2008, as o
o B3 foi a base para enormes negócios dos bancos e dos fundos de economias regionais experimentaram um breve ciclo de crescimento o
'-' investimento internacionais, na busca de uma redistribuição dos pa- determinado por uma combinação de circunstâncias: o auge da deman-
,_ trimônios e capitais no país. As dívidas pública e privada superaram da de matérias primas pela China e a migração de capitais dos países >
a:: o PIB do país. Por cima de divergências internas, a classe capitalista centrais, determinada pela injeção de liquidez destinada a salvar o
<( em seu conjunto reivindicou um ajuste econômico brutal contra os capital metropolitano em vias de falência . A captação de capitais pela o
dustrialização do continente e no agravamento de sua dependência e seu acesso muito mais favorável a infraestrutura, tecnologia e fontes
de seu desenvolvimento desigual. o
de financiamento. Entre os beneficiários do acordo estão os monopó-
Nesse quadro aconteceu o acordo de livre-comércio entre o Mer- lios com operações em ambos os blocos, aproveitando-se da ampla
cosul e a União Europeia, anunciado como um "avanço histórico". A liberalização do comércio intraempresas, o que lhes permitirá ampliar
celebração do acordo por diferentes frações burguesas no Brasil e na a concorrência por trabalhadores, deslocando a produção para onde o
Argentina tem sua base material na presença maciça de monopólios existam menores salários e menos direitos trabalhistas, estes em vias u
alemães, franceses, espanhóis e italianos nas economias do Mercosul, de destruição nos países latino-americanos.
e seu entrelaçamento com uma boa parte da burguesia local, em uma O limitado nacionalismo fiscal latino-americano, que evitou na- o
o relação de subordinação. A assimetria é evidente: a UE é o maior o
cionalizar os recursos naturais e foi incapaz de avançar na via de um
investidor no Mercosul, com uma carteira de€ 381 bilhões, enquanto desenvolvimento econômico independente, não aproveitou uma situa- <(
f-
a carteira de investimentos do Mercosul na UE é de€ 52 bilhões. Na ção internacional relativamente favorável (o boom das commodities) >
"' burguesia tupiniquim há a expectativa de maior associação ou me- para atualizar a infraestrutura produtiva, acumulando fracassos n<!s
lhores condições para a venda ao capital estrangeiro do controle de iniciativas de integração financeira, energética e política - Banco do o
seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação Carchedi parece defender interpretação idêntica. Citando a passa-
>-
mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples, gem de Marx de que seria necessário "dar início à viagem de retorno
<(
do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não ::,
vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totali- o
teria de dar início à viagem de retorno até que .finalmente chegasse de dade de muitas determinações e relações"5, ele sublinha que
o
o
6 ::,
Guglielmo Carchedi, Behind the Crisis: Marx's Dialectics of Value and Knowledge (Leiden Brill
2011), p. 46. . . . , , 10 o
o José Paulo Netto, Introdução ao estudo do método de Marx (São Paulo, Expressão Popular,
7
<.:)
Idem. 2011), p. 19.
8 11 o
Duncan Foley, Understanding Capital: Marx's Economic Theory (Cambridge, Harvard University Ibidem, p. 42.
.... Press, 1986), p. 4. 12
Ibidem, p. 43. a::
9
"' Deepankar Basu, "The Structure and Content of Das l<Dpital" , UMass Amherst Economics 13
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54.
<(
Working Papers, Amherst, Universidade de Massachusetts, 2017, working paper n.2017-12, p. 6. 14
José Paulo Netto, Introdução ao estudo do método de Marx, cit., p. 43. L
i 02 M A R G E M E S Q U ERD A 33
MA R X : "o M ÉT o D o DA E e o No MI A p o LI TI e A " e o Mo e RI TI e A o N To L ó G I e A 103
de Marx, um conjunto de regras para orientar a p ' S I ilst1" '\ 1 f cha
assim a análise: provocada por tal ambiguidade. Quartim interpreta de outra f rma,
notando, é claro, que não é bem isso o que Marx pretende sustentar.
O conhecimento teórico é [. .. ] para Marx, o conhecimento do concreto, Reafirma, com Marx, que, embora a população seja "o fundamento
que constitui a realidade, mas que não se oferece imediatamente ao pen- o sujeito do ato social de produção", ela é uma abstração, se ignoro
samento: deve ser reproduzido por este e só "a viagem de modo inverso" suas determinações e, portanto, alcanço somente uma "representação
permite esta reprodução. L..] o concreto a que chega o pensamento pelo caótica do todo" 19 . Com relação ao fato de que, no texto marxiano,
método que Marx considera "cientificamente exato" (o "concreto pensado") "representação venha associada ao caos[...] e assimilada a uma abstra-
é um produto do pensamento que realiza "a viagem de modo inverso". ção", Quartim enfatiza algo impo1tante para compreender o argumento
Marx não hesita em qualificar este método como aquele "que consiste de Marx, e que em geral não é realçado:
em elevar-se do abstrato ao concreto", "único modo pelo qual 'o cérebro
Todo substantivo comum é um universal e [.. .] o resultado necessariamente
pensante' se apropria do mundo ".16
abstrato de uma generalização operada na e pela prática da comunicação
A conclusão equivocada que se pode depreender de sua análise social. Transpostos da linguagem corrente para o discurso teórico, os
resulta, a nosso ver, de sua omissão da passagem, essencial no texto substantivos [. ..] mantêm um núcleo semântico básico sobre o qual incide
comentado, em que Marx afirma que os "sistemas econômicos, que se o esforço do conhecimento científico. Tanto na economia política como
elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessida- na biologia, por população se entende uma coletividade composta de
de, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado indivíduos vivendo numa área determinada. É evidente que neste nível
17
mundial" . Por sistemas econômicos, claro, Marx quer dizer teorias de generalidade, a noção não designa um conhecimento, mas um objeto a
econômicas, que, portanto, fizeram a "viagem de retorno". Ora, se, ser conhecido, o qual, sem embargo, é suscetível de ser progressivamente
para ele, a ciência econômica fez a "viagem inversa", Marx não poderia determinado com precisão.20
considerar exclusivamente seu esse "método cientificamente correto".
Na verdade, ao falar de "representação caótica do todo", Marx
Quartim de Moraes também analisa em detalhe "O método da
refere-se à forma mais imediata de consideração de um país do ponto
economia política" e, ao contrário dos autores analisados anterior-
de vista político-econômico, ou seja, com "sua população, sua divisão
mente, não parece considerar que Marx expõe ali aquilo que seria o
18 em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos de produ-
seu método . Entretanto, apesar das interessantes contribuições que
ção, a importação e a exportação, a produção e o consumo anuais,
apresenta para o esclarecimento das posições de Marx, a meu ver sua
análise mostra-se inconclusiva. os preços das mercadorias etc." 21 . Por conseguinte, ao contrário do
que se depreende do texto de Quartim, nesse caso a população não
Sua exposição começa destacando o caráter aparentemente parado-
é apenas um universal abstrato como qualquer substantivo comum,
xal da afirmação inicial de Marx de que o ponto de partida correto é
uma vez que é especificada com aquelas determinações. Ademais, é
o real e o concreto, o pressuposto efetivo, para em seguida sustentar
importante frisar que, apesar de abstrata, trata-se ainda assim de um
que, sendo mais rigoroso, isso se mostra falso. Em lugar de paradoxal, o:
tipo de conhecimento, uma representação que, por mais caótica que
diria que tal ambiguidade poderia ser vista como expediente retórico
seja, consiste em uma inteligibilidade - pré-teórica, pré-científica - do >-
para despertar a atenção do leitor, tirando partido da perplexidade
mundo, pressuposto da prática social dos sujeitos. Paradoxalmente,
Quartim parece concordar com isso, pois, ao fazer uma crítica à in- :,
15
Ibidem, p. 41-2. terpretação de Althusser do texto marxiano - que aqui não vem ao o
o
16
Ibidem, p. 44-5. caso - , reclama que:
17
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54, grifos nossos. o
f- 18
19
João Quartim de Moraes, ';As abstrações, entre a ideologia e a ciência", Crítica Marxista, n. 44, Ibidem, p. 44. a:
0:
2017, p . 43-56. Sem a devida permissão do autor, daqui em diante o chamaremos somente 20
Idem.
"Quartim" ao longo do texto, pois é como o teórico marxista é amplamente conhecido. 21
Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 54.
104 M A R G E M E SQUERDA 33
M ARX : "o MÉ T o D o DA EC o No MI A p o L í TI C A" e o Mo C R í TI C A o N To Ló G ICA 105
[Althu e r) também deveria explicar que ant s d s ·rvlr · m matéria -
vida cotidiana"25 . E, a prática intencional atua sobre estruturas pr -
-prima da produção teórica, as intuições e repres nta s onstituem xistentes, reproduzindo-as ou transformando-as, segue-se que algum
26
o acervo léxico de cada idioma, que resulta da prática social. [.. .] Elas tipo de conhecimento das estruturas é condição da prática . Dito de
cristalizam o pensamento social acumulado em cada momento histórico outra forma, pode-se concluir que noss!ls apreensões da realidade
e proporcionam ao conhecimento o acervo de ideias que constituem os não são o resultado do que "captamos na percepção sensorial, mas
materiais sobre os quais opera o trabalho da teoria. 22 são resultados das teorias [e/ ou representações] em termos das quais
27
nossa apreensão das coisas é organizada" .
_Apesar de esclarecedora, creio que a passagem merece reparo, Nesse sentido, pode-se afirmar que Marx, ao dizer que sempre se
p01s, tal como Marx sugere na passagem em questão, mas também em inicia pela população, refere-se não a um mero substantivo, mas a uma
outros momentos 23 , parece ser mais adequado inverter a proposição representação da população que, na ausência de uma ciência econô-
de Quartim e afirmar que as intuições e representações constituem mica, era condição necessária para os agentes na vida econômica real.
o acervo de figurações do mundo, pressuposto necessário da prática Não há dúvida de que é isso que Marx tem em mente quando nota que
social e, nessa condição, são de fato o material a partir do qual se
se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica
constroem as teorias. Essa inversão não só é mais correta cronológica
do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria anali-
e conceitualmente, pois o acervo léxico não existe apartado e "antes"
ticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado
da apreensão conceituai da realidade 24 , mas também explicita uma
[chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que
obviedade, a saber, que a realidade social, sendo produto da prática
intencional dos sujeitos, sempre tem de ser figurada, concebida por tivesse chegado às determinações mais simples.
[... ] [a] primeira via [o caminho de ida] foi a que tomou historicamente a
eles de alguma forma .
economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., come-
Em uma formulação alternativa da mesma ideia, do truísmo de que
çam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos
qualquer atividade humana tem por pressuposto necessário a existência
Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes,
de estruturas sociais, Bhaskar conclui que a sociedade proporciona
abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc. , que
meios, regras e recursos para tudo o que fazemos. Significa dizer, a . d , . 2s
sociedade, com suas estruturas, é condição necessária para qualquer desco b rem por me10 a ana 11se.
atividade teleológica. Disso se infere que nós não criamos a socieda- A economia, portanto, em sua fase de formação , inicia com a
de, que sempre preexiste a nossas ações. O que fazemos com nossa representação da população dos agentes reais da produção so~ial.
prática é reproduzir e/ ou transformar as estruturas sociais - materiais Quartim é mais enfático ao sublinhar que, para os economistas
e espirituais - que são condição de nossa prática cotidiana. Nas pa- do século XVII, "não havia outro modo [.. .] de avançar na análise
lavras do autor: "[o] mundo social é reproduzido ou transformado na econômica" 29, de forma que Marx não teria razão para qualificar de
falso tal caminho. Coisa que Marx, para ele, tacitamente admite na
"'
22 João Quartim de Moraes, ''As abstrações entre a ideologia e a ciência" , cit., p. 79-80. sequência do argumento:
23 >-
Ver adiante, a passagem em que ele critica a economia vulgar no capítulo intitulado ''A fórmu la Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abs-
trinitária".
traídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, ::,
24
Como defende Lukács: "Já vimos como o pôr teleológico ~onscientemente realizado provoca
um distanciamento no espelhamento da realidade e como, com esse distanciamento, nasce a o
relação sujeito-objeto no sentido próprio do termo. Esses dois momentos implicam simultanea-
o 25 Roy Bhaskar, Recloiming Reolity (Londres, Verso, 1989). o
mente o surgimento da compreensão conceptual dos fenômenos da realidade e sua expressão
adequada através da linguagem. [ ... ] Com efeito, palavra e conceito, linguagem e pensamento 26 Ibidem, p. 3-4.
c?nceptual são elementos _vinculados do complexo que se chama ser social, o que significa que 27 Ibidem, p. 60-1 . "'
... so podem ser compreendidos na sua verdadeira essência relacionados com a análise ontológica
2a Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 54.
"' dele e reconhecendo as funções reais que eles exercem dentro deste complexo", Gyõrgy Lukács,
29 João Quartim de Moraes, ''As abstrações entre a ideologia e a ciência", cit. , p. 45.
<( Poro uma ontologia do ser social, v. 2 (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 84-5.
II Q M ARGEM ES Q U ERDA 33
M ARX: "0 MÉTODO DA E CONO M IA P OL ÍT I C A " CO M O C R ÍTI CA ONTOLÓGI C A 11)
Como se pode constatar, para Marx a economia I u r u ·su , f nna apagada toda conexão interna, a base natural e livre de toda dúvida d
de pensamento socialmente válida, objetiva para sas r ' la de sua superficial pomposidade. 42
produção, cujo conteúdo procura investigar. O que signifi a qu con-
Nessa passagem Marx adverte que a economia vulgar parte da r -
siste em uma totalização, uma figuração, uma ontologia científica da
presentação dos agentes cativos das relações da economia capitalista ,
sociedade capitalista. Parte da representação, como todas as teorias,
em lugar de progressivamente dela se diferenciar, faz precisamente o
dela se distancia e diferencia, mas no processo hipostasia essa forma
oposto: mantém a ontologia (figuração/ totalização) gerada e necessitada
de vida e, portanto, é a-histórica. Mas certamente se pergunta por sua
imediatamente por tais relações e as sistematiza mediante o aparato
estrutura e sua dinâmica - num tempo lógico, sem história, ou seja,
científico; feito isso, retorna aos agentes como forma de pensamento
sem mudanças substantivas41 . Parte da totalidade acabada, plenamente
mais eficaz na prática imediata43 • Com a chancela da ciência.
desenvolvida, ignora seu caráter histórico, procede analiticamente, e
Como indicado na apresentação, procurei mostrar, primeiro, que
produz uma síntese ricamente articulada. Sem história.
as usuais interpretações de "O método da economia política" con-
Avaliação totalmente distinta faz Marx do que denomina de
trariam diretamente o texto de Marx. Aliás, como o próprio título
economia vulgar, precursora da tradição neoclássica. No capítulo
da seção indica, pois trata do método da economia política, e não
48 do Livro III de O capital, intitulado "A fórmula trinitária", assim
do método da crítica da economia política. Em segundo lugar, que
a analisa:
toda ciência totaliza . Totaliza (sintetiza) a economia vulgar, totaliza
A economia vulgar nada mais faz [. ..] do que traduzir, sistematizar e a economia política e totaliza a crítica da economia política, ou seja,
apologizar doutrinariamente as ideias dos agentes presos nas relações Marx. Tais totalizações constituem ontologias com força social 44 .
de produção burguesas. Não nos deve surpreender[. .. ] que a economia Oferecem aos sujeitos a imagem, referendada pelo prestígio da
vulgar sinta-se [. .. ] à vontade precisamente na forma de manifestação ciência, por meio da qual se situam em suas relações recíprocas e
estranhada das relações econômicas, nas quais elas aparecem, prima com o mundo natural.
facíe, como contradições perfeitas e absurdas - e toda a ciência seria Se toda ciência totaliza, significa o mundo para os sujeitos e, além
supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coinci- disso, provê um aparato científico para gerenciá-lo, administrá-lo,
dissem imediatamente - , e que essas relações lhe pareçam tanto mais ou seja, é eficaz na prática, então o embate teórico decisivo entre
evidentes quanto mais nelas se oculta sua conexão interna, mas que são sistemas teóricos se dá no plano ontológico - ontologias em disputa,
familiares para as ideias ordinárias. Por isso a economia vulgar não tem modos radicalmente distintos de conceber como é o mundo . Em
a mínima ideia de que a trindade da qual parte - terra-renda; capital- outras palavras, crítica de fato, crítica substantiva, é crítica ontológica.
-juros; trabalho-salário ou preço do trabalho - envolve três composições Se, como vimos em Marx, a economia política é forma de pensa-
prima facie impossíveis. [. .. ] mento válida e objetiva para a vida social sob o capital, se é ciência
Por isso, é também natural que a economia vulgar, que nada mais é do econômica a serviço da administração dessa sociedade, se expressa
que uma tradução didática, mais ou menos doutrinária, das ideias co- e reforça as noções ontológicas espontaneamente geradas, se com
tidianas dos agentes efetivos da produção, e que as organiza em certa seu prestígio não só eleva as ideias correntes à figuração exclusiva
ordem compreensível, encontre justamente nessa trindade em que está >-
<(
42
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro Ili: O processo de circulação do capital ::,
112 M ARG EM E SQUERDA 33 M ARX : "0 MÉTODO DA ECONOMIA POLÍTICA" COMO CRÍTICA ONTOLÓGICA 11 3
d a socie dade, mas também fornece as técnica ptm, r 'I r 1zi-la, HOMENAGENS
e ntão a crítica da economia política, como crítica u bstanli va, cria
inteligibilidade da estrutura e d a dinâmica da sociedad regida
pelo capital radicalmente distinta, em primeiro lugar restituindo-
-lhe a historicidade e, e m consequê ncia, abrindo à prática humana
a possibilidade d e sua transformação. Co ntribui, e nfim, para criar
o utra ontologia , em que a humanidade não está condenada à infinita Chico de Oliveira: a chispa da imaginação
reprodu ção do mesmo ou a ser mera espectadora d a história co mo
absoluta contingência.
ANDRÉ S/NGER
contribu ições trazem diferentes perspectivas por Chico em 1972, segundo a qual, no Brasil, a "conversão de enor-
sobre como, a partir da formação social
mes contingentes populacionais em 'exército de reserva', adequado à
brasileira, podemos pensar em caminhos para z
uma transformação estrutural. reprodução do capital, era pe rtinente e necessária do ponto de vista
do modo de acumulação que se iniciava ou que se buscava reforçar" 2 • VI
suas próprias vidas. refere, a propósito, o caso de lstvan Mészáros, na Hungria de 1956
Falar da vida do filósofo romeno sem o circunscrever em dois o
- , não significava de modo algum uma dissidência, pelo contrário, u..
importantes contextos do século passado - a ascensão do fascismo tratava-se de viabilizar o desenvolvimento autêntico das bases filosó-
na Europa e o advento do socialismo no Leste Europeu - seria ne- ficas estabelecidas pelo pensamento de Marx.
gligenciar o enlaçamento orgânico entre sua produção teórica e a O encontro com a obra de Gyõrgy Lukács contribuiu desde cedo
postura reflexiva prática diante dos acontecimentos mais candentes com as lutas travadas pelo pensador romeno. Conforme o próprio
de sua vida. A obra de Nicolas Tertulian 0929-2019) é a expressão Tertulian declarou: "eu o encontrei porque o procurava"2 • Para Tertu-
z cabal de que a filosofia não deve se apartar da vida; no entanto, isso lian, as reflexões do filósofo magiar consistiam na retomada da gran- >
não significa afirmar que ela deva ser simples instrumentalização para de tradição do pensamento filosófico . Não se tratava da construção
questões práticas. O elemento decisivo sob o qual se unem os desafios ideológica pragmática característica do taticismo comunista oficial, o
<(
práticos e a reflexão filosófica de rigor é, para um marxista autêntico, o
z mas do pensamento filosófico de rigor erguido sobre os fundamentos
o critério da emancipação humana.
<(
~
A carga histórica do século XX sempre pesou sob as costas do 1 z
Nicolas Tertulian, Pourquoi Lukacs? (Paris, Éditions de la Maison des Sciences de L'.Homme,
o filósofo romeno. Oriundo de uma família judaica burguesa, já em seu 2016). o
I período de entrada na adolescência, Tertulian testemunhou as ações 2
Idem, cit., p. 8. o::
a:
l:
A C R T I C A G A Y 125
124 M A R G E M E SQ UE RDA 33
que a repressão (que é funcional para a perpetua 1, 1>mínio do
capital sobre a espécie) força à latência, ou - se ma nlí stam - à
marginalização. Para rejeitar o trabalho alienado de uma v z por todas,
é indispensável liberar o Eros que normalmente é sublimado e que,
portanto, apoia o modo de produção cancerígeno atual.
Escrevi Elementi di critica omosessuale [Elementos de crítica ho-
mossexual]* para fins informativos, tentando esclarecer o dito acima Contribuições de Mario Mieli para
e demonstrar que a questão homossexual não diz respeito apenas a
um número limitado de seres humanos, bichas e lésbicas, mas diz
uma crítica LGBT+ do capitalismo
respeito a todos e , como é importante, a uma cada vez maior extensão
do movimento gay, a fim de envolver todos, e, todos juntos, trans- LUIZ ISMAEL PEREIRA
formarmo-nos num sentido gay e revolucionário. É hora de desfrutar
plenamente da nossa paixão homossexual, para que a vida ressurja.
1
O relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia aponta o assassinato de 420 pessoas a:
LGBT + em 2018; Bruna G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira apontam que,
no mesmo ano, ocorreram 163 assassinatos de pessoas trans no país; a ONG Transgender a...
Europe catalogou 2. 1 15 mortes de pessoas trans no período de 2008 a 2016. Embora sejam
números altos, é importante lembrar que há uma grande subnotificação quando a violência é
o praticada contra pessoa LGBT. Ver Grupo Gay da Bahia, Mortes violentos de LGBT + no Brasil:
relatório 2018 (Salvador, GGB, 2018, disponível online, acesso em 8 ago. 2019), p. 1; Bruna <(
z G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira (org.), Dossiê: assassinatos e violência contra
travestis e transsexuois no Brasil em 2018, ANTRA/IBET, 2019, disponível online, acesso em 8
:,: ago . 2019) , p. 15; Transgender Europe, TMM IDAHOT 2016 Update (Berlim, TGEU, 2016,
disponível online, acesso em 8 ago. 2019).
2
u Em 20 19, a revolta de Stonewall completa cinquenta anos, quando a luta contra a repressão a N
126 M A R G E M E SQU E RDA 33 C ONTRIBU I ÇÕES D E M ARIO M IEL I PARA UMA CRÍTICA LGBT+ DO CAP IT ALISMO 127
no E tado burgu As. Foram importantes no pro ss r •v lu i ná ri da r pr du ção da o iabilidade capitalista para compre nder como as
construção da modernidade. Foram por tais direito qu , as r"voluçõe r lações sexuais implicam uma diferenciação na construção da tessitura
burguesas lutaram desde o século XVII, como tentativa d superação da sociabilidade capitalista. Para além de um diagnóstico, apresenta
do padrão de privilégios característicos da formação social feudal. uma tese sem a qual seria impossível a rejeição do trabalho alienado
Mas tais conquistas colocaram de lado a populaçãó LG BT+ em vários do capitalismo, propondo, no texto ora traduzido: "é indispensável
locais do mundo ocidental. Criaram-se subcidadãos e subcidadãs a liberar o Eros que normalmente é sublimado e que, portanto, apoia o
quem não era permitido o acesso às mesmas conquistas adquiridas atual modo de produção cancerígeno"4 . E, indo mais além: "na verdade,
pela população heterossexual. Portanto, a conquista pelo reconhe- para a criação do comunismo, é conditio sine qua non, entre outras,
cimento da condição de sujeito de direito foi bem mais retardatária a completa desinibição das tendências homoeróticas, que somente
para aqueles e aquelas que viviam e vivem, diariamente, a violação livres podem garantir a realização de uma comunicação totalizante
de seus corpos, vidas e subjetividades. entre seres humanos, independentemente de seu gênero"5 .
Durante o século XX, no momento de construção de uma polí- Nesse contexto teórico, Maria Mieli se apropria das discussões mar-
tica que identifica o diferente, o Outro, ou, para Theodor Adorno, xianas sobre a forma mercadoria e os meios pelos quais ela determina
o sujeito negativo, como significativo para a reprodução da própria as relações entre sujeitos. Após esse movimento, caminha mais a fundo,
subjetividade, os movimentos sociais organizados passam a rei- compreendendo como essas relações de produção e reprodução do
vindicar aqueles direitos. No Brasil, o movimento LGBT+ passou capital também sofrem interferência da questão da sexualidade. Em
a se organizar há cerca de quatro décadas, ainda com os grandes Althusser, essas contradições se interpenetram e acabam sendo fun-
problemas que o patriarcado impõe, como a exclusão de mulheres damentais para serem compreendidas na totalidade: "Há sempre uma
lésbicas, ou mesmo as questões raciais fundamentais para enten- contradição principal e contradições secundárias, mas elas trocam de
der a periferia do capitalismo. A comunidade passou a lutar pelas papel na estrutura articulada dominante, a qual permanece estável"6 .
promessas não cumpridas da modernidade, como a recolocação no Inclusive, para Maria Mieli, um movimento realmente revolucioná-
mercado de trabalho e os direitos provenientes da legislação civil, rio necessitaria libertar a esquerda dos valores masculinos, machistas,
como o casamento e a consequente partilha igualitária de bens no heterossexuais e anti-homossexuais capitalistas, bem como libertar a
divórcio ou no falecimento de cônjuge, entre outros . Portanto, lutou transexualidade tão aspirada pelo desejo, sem o que apenas mantería-
por sua absorção como parte da forma jurídica própria do Estado mos o apoio à norma pública e privada do sistema capitalista7 . <(
burguês, na expressão de Marx. Essa percepção não é unicamente de Mario Mieli. Em outros cam- a::
Maria Mieli 0952-1983), militante e intelectual italiano, já nos anos pos identitários, pesquisadores e pesquisadoras marxistas também
1970 deu um passo mais largo para compreender os elementos fun- pensaram ou permitiram a abertura teórica para reflexões a respeito
a::
damentais de uma ciência que faça a intersecção entre dois pontos de como as relações de gênero, raça e etnia são fundamentais para
cruciais: a questão LGBT+ e a luta de classes. Tendo se aproximado do compreender a atuação da forma mercadoria, em especial quando se a...
marxismo, reconheceu que o economicismo não dava toda a resposta utiliza da forma política estatal e da forma jurídica, um tripé garanti-
necessária para entender o papel da divisão sexual do trabalho. Deveria dor da reprodução do capital. Para citar alguns exemplos: Roswhita
o
1-
haver mais, algo não visto, algo sob o "véu de Maia" que deveria forçar Scholz, Angela Davis, Frantz Fanon, Louis Althusser, Joachim Hirsch
<(
2
a pessoa que o investigasse a descer um degrau para compreender e Silvio Almeida .
plenamente as relações sociais que excluíam as pessoas LGBT+.
No mesmo movimento anunciado por Marx no fim do capítulo 4
do Livro I de O capital 3, Maria Mieli vai às relações de produção e 4
Ver, neste volume, Mario Mieli, '/\ crítica gay", p. 126.
u 5
N
Mario Mieli, Elementi de critico omosessuole (Milão, Universale Economica, 2018), p. 8.
o 3
Ver Karl Marx, O capital: crítico do economia político, Livro 1: O processo de produção do capital
6
LouisAlthusser, Por Marx (trad . Maria Leonor F. R. Loureiro, Campinas, Unicamp, 2015), p. 169.
o (trad. Rubens Enoerle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 250. 7
Ver Mario Mieli, EJementi de critico omosessuole , p. 168, 238-9 . -'
128 M A R G E M E SQUERDA 33 C ONTRIBUIÇÕES DE M ARIO M IELI PARA UMA CRÍTICA LGBT+ DO CAPITA L ISMO 129
Trata-se d e reconhecer a existê ncia d uma s •ri • 1 , anta ni _
CLÁSSICO
mos sociais anteriores ao capitalismo, mas qu r • nfi urados
po~ essa sociabilidade e ganham importante papel na pr dução do
ma1s-valor. Joachim Hirsch, na construção de uma leitura materialista
do Estado, leva em consideração a existência de tais formas sociais
pré-capitalistas de dominação, como o patriarcado, a LGBTfobia
a relação . com a natureza, ou mesmo expressões culturais e reli~
giosas, comentando: Apresentação: Clara Zetkin
Essas não resultam meramente das relações capitalistas de classe, e não e o legado de Rosa Luxemburgo
desapareceriam de modo algum com elas. [... ] Ao contrário, a relação com
a natureza, de gênero, a opressão sexual e a racista estão inseparavelmente
MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES
unidas com a relação de capital, e não poderiam existir sem ela. No entan-
to, o decisivo é que o modo de socialização capitalista, enquanto relação
de reprodução material, é determinante, na medida em que impregna as
estruturas e as instituições sociais - as formas sociais determinadas por
ele -, nas quais todos esses antagonismos sociais ganham expressão e
ligam-se uns aos outros.8
Alguns meses depois do brutal assassinato de Rosa de Luxemburgo
Ess~ apropriação e reconfiguração de formas sociais pelo capital pelas milícias anticomunistas que operavam na falida República de
lhes da uma nova lógica, levando à necessária compreensão da cor- Weimar, em janeiro de 1919, sua amiga Clara Zetkin registrou para <(
relação entre questões de classe e questões identitárias. a história a vergonhosa capitulação da social-democracia alemã ao
. O ree~~ontro com as ideias de Mario Mieli, um intelectual que militarismo imperialista e lembrou o preço que Rosa pagara por seu o
viveu ?oht1camente suas conclusões marxistas sobre as relações de pacifismo e por sua dedicação radical à causa dos oprimidos. L
sexu_a hdade no capitalismo, permite que aprofundemos as pautas do O texto em questão foi elaborado por Clara como prefácio à segun-
movimento para a tomada de atitude mais coerente no momento de da edição da Brochura de Junius1 • Escrito por Rosa na prisão, quando o
aprofundamento da crise do capital: construir um revolucionamento a Primeira Guerra Mundial já iniciara seu banho de sangue, o panfleto
da sociedade, do Estado e dos meios de produção num sentido gay- é um eloquente e dramático balanço dos descaminhos e das conse-
-lésbico-trans ... ou morte. quências da traição da social-democracia europeia (especialmente da f-
:,
<(
u 1
Brochura de Junius é o nome popular pelo qual ficou conhecido o texto 'ti. crise da social-
o 8
-democracia", escrito por Rosa Luxemburgo em 191 6 e assinado "Junius", em referência ao
Joachim Hirsch, Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista
o de Estado (trad . Luciano Cav,ni Martorano, Rio de Janeiro, Revan, 201 O), p. 39-40. pseudônimo de um escritor inglês anônimo do século XVIII que, em suas cartas para o jornal <(
chega aos leitores de língua portuguesa a incontor- qual O mundo burguês colocava sem esc~pul~s ~eu pode~ ao s_erv~ço
N
nável biografia de Paul Frõlich sobre a revolucioná- do militarismo, ao qual a emergência do 1mpenaltsmo ha~ia atnbu~do
ria polonesa-alemã. as novas tarefas da dominação do mundo e ao que se havia confendo <
a:
"A vida e a obra d e Rosa se caracterizam pela extraordinária uni-
dade entre pensamento e ação, teoria e prática, conhecimento <
científico e compromisso com a luta dos oprimidos. A grande * Escrito em maio de 19 19 como prefácio à segunda edição de A crise da social-democrac~a
virtude da biografia d e Frõli ch é a d e conseguir dar conta dessa ( 1916), de Rosa Luxemburgo, mais conhecido como Brochura de Junius. Traduzido do frances
unidade e restituir, assim, a grandeza humana, política e int elec-
u
por Fabio Mascaro Querido. (N . E.)
tradução: Erica Ziegler e Nélio Schneider tual desta inesquecível figura do social ismo revolucionário do
prólogo: Diana Assunção século 20." - Michael Lõwy
posfác io: Isabel Loureiro
D E R o s A L U X E M 8 U R G O 133
orelha: Michael Lõwy A L U T A
a maior importância para a sobrevivência do capitalism ; a ·apitulação contra o "petit lieutenant' Forstern-Zabern; a propósito do julgam n-
desonrosa da social-democracia alemã (ou, antes, d s u lirigentes) to do tribunal de guerra de Erfurt, que, deixando de lado qualquer
diante do militarismo e do imperialismo. sentimento humano, condenou os proletários a anos de prisão por
De fato, naquele momento, as grandes massas proletárias ferviam causa de ninharias; a propósito das terríveis brutalidades das quais foi
do desejo de se engajar na luta contra o militarismo e o imperialismo. vítima um grande número de soldados, que saíram da obscuridade dos
A consciência de classe ainda não compreendia o inimigo mortal, mas quartéis para serem revelados num processo subsequente contra Rosa
sua sensibilidade de classe, sempre sadia, o farejava e o pressentia. Luxemburgo (se nossas lembranças são exatas, foram citadas como
Como sob um projetor, o militarismo em sua essência histórica lhes testemunhas mais de 30 mil vítimas de tais brutalidades).
aparecia no horizonte, cruelmente realçado pela condenação de Rosa Mas, nessa época, o rápido avanço da cretinização e do abur-
Luxemburgo e pelo que havia levado a essa condenação: a convicção guesamento parlamentares da social-democracia, bem como o seu
da corajosa militante de que os proletários não devem obedecer à medo inabalável das ações de massa, já a tinham conduzido ao início
ordem de pegar em armas contra seus irmãos de outras nacionalida- da capitulação diante do militarismo e do imperialismo. Foi com a
des. O efeito contundente e estimulante das palavras incriminadas foi cumplicidade tanto ativa quanto passiva do grupo parlamentar social-
ainda reforçado pelo discurso que fez no tribunal de Frankfurt um -democrata - e, portanto, de toda a social-democracia - que a mons-
documento clássico de defesa política em que, em vez de se ent;egar truosa fraude do "dom jubilar para o pacífico imperador Guilherme II"
às chicanas jurídicas sobre a sua "culpa", sua punição e sua senten- pôde triunfar, e que o governo pôde preparar sem problemas a guerra
ça, Rosa Luxemburgo destacou o combate pelo ideal cientificamente "preventiva" do imperialismo em 1914, graças ao projeto de lei sobre a
estabelecido do socialismo internacional. Uma onda de entusiasmo defesa, que concedia um aumento requerido dos efetivos militares ao
despertou as massas proletárias, que estavam dispostas a lutar. Se a di- orçamento militar, na casa de bilhões, e ao primeiro crédito de guerra
reção da social-democracia tivesse sido uni pouco mais sagaz, poderia para a expedição de pilhagem, pelo capital alemão, de Bagdá e de
ter aproveitado esse estado de espírito, ampliando-o de modo a travar outros "lugares ao sol" através dos Balcãs. O grupo parlamentar havia
uma batalha de grande estilo contra o militarismo e o imperialismo, acalmado os partidos burgueses "de oposição" aprovando o projeto de
dirigindo-lhes um duro golpe . lei sobre a defesa e, ao fazê-lo, admitia que esse projeto fosse sepa-
O bureau dirigente da social-democracia revelava nitidamente rado do projeto de lei de cobertura. O grupo havia dado sua benção
uma vez mais, que a sua convicção não se baseava sobre a base so-' ao orçamento militar e ao imposto sobre o crescimento das fortunas
lidamente estabelecida dos princípios marxistas, sobre essa elevada apenas porque se tratavam de impostos sobre a propriedade. Havia
plataforma que proporciona uma visão ampliada sobre as coisas e o corrido atrás do elusivo fantasma de uma "política financeira reorien-
desenvolvimento delas, o que permitiria determinar de maneira pre- tada", mas desistira de se opor à armadura de ferro do imperialismo.
cisa o conhecimento, a vontade, a ação. O bureau elaborou também As posições do grupo parlamentar haviam decidido a atitude de
a própria confissão de deficiência, mostrando que lhe faltava, pura e todo o partido, com exceção de pequenos círculos que adotaram uma
simplesmente, tudo aquilo que define uma direção política. Renundou atitude crítica e ativa. A social-democracia não tinha se preparado para z
à sua evidente, manifesta e necessária tarefa: canalizar em uma ação repelir, por meio das ações de massas, o terceiro assalto do imperialis-
de massas unificada e potente contra o militarismo e o imperialismo mo, sedento de poder. Assim, de um lado, ela deu ao imperialismo e ao f-
o todas as manifestações imponentes que se desencadearam na luta militarismo a certeza da vitória e a garantia de que não deveriam temer
u contra o julgamento na Câmara Criminal de Frankfurt. O bureau di- uma revolta das massas proletárias capaz de frustrar seus planos e, de N
retor do partido recuou ainda mais em relação ao glorioso juramento outro, criou uma situação sombria e paralisante nas próprias massas,
da social-democracia ao reprimir um movimento que havia crescido provocando a desmobilização enquanto uma ameaça estava à vista. a:
sem qualquer ajuda sua. E tudo isso em uma atmosfera de violenta Enfim, a social-democracia permitiu o desenvolvimento de um clima
agitação não apenas em relação ao a.ffaire Luxemburgo, mas também de vertigem de guerra que, no verão de 1914, minou toda resistência
u a propósito do triunfo da autoridade militar no e candaloso processo política e moral da classe operária contra a guerra criminosa. Não nos u
a humanidade. A prisão era muito menos uma expiação pelos "delitos" torno da minoria do grupo parlamentar e de Kautsky, que fazia de tudo
N
do passado do que um obstáculo para a combatente do momento para arrancar os proletários alemães de sua influência. Reuni-~os _c~m
presente. Isso porque, desde o dia da mobilização, Rosa Luxemburgo base num reconhecimento claro e nitidamente definido dos pnncipios <(
saiu em luta contra o imperialismo e seus crimes monstruosos. do socialismo internacional, levá-los a se opor ao imperialismo como a:
Assim que se soube que o grupo parlamentar social-democrata ha- militantes conscientes da luta de classes, aumentar a intensidade da <(
via votado os créditos de guerra, Rosa, acompanhada de alguns raros luta de classe proletária de acordo com o grau de evolução histórica:
estes eram os objetivos da apaixonada ação de Rosa. u
amigos, levantou a bandeira da rebelião contra a traição à Internacional
aniquila todas as civilizações e, depois de saqueá-las, transforma po- de um pensamento socialista puro e forte. Ali, a convicção íntima
o N
pulações inteiras em escravas do capitalismo europeu. O imperialismo e ardente nos exige os critérios mais elevados e mais rigorosos em
u
internacional prepara aos poucos a conflagração mundial no Egito, na nossa ação como socialistas; ali, com uma força profética, Rosa volta
Líbia, no Marrocos, no sul e no sudeste da África, na Ásia menor, na seus olhos para as perspectivas prodigiosas e deslumbrantes de futuro
Arábia, na Pérsia [Irã] e na China, nas ilhas do Pacífico, assim como que são abertas pelo socialismo. A próxima grande hora da viragem
nos Balcãs. Gestado tardiamente, mas dotado de um alucinado espírito histórica encontrará no proletariado um grande povo, formado pelo
triunfo do socialismo nos altos e baixos das vitórias e das derrotas de u
u empreendedor, o capitalismo alemão foi o responsável por, ao provocar
D E R o s A L UX E M B U R G O 14 1
140 M A R G E M E SQUERDA 33 A L U T A
ua luta revolucionárias, por meio de uma aut ·r 11 ·u ln pia ável. Partindo dessa p er p tiva, Rosa Luxemburgo analisou na época
O fim da brochura se une ao começo e o laço s f h· : "la onsidera um instrumento de luta já experimentado pela classe trabalhadora: a
que a guerra abriria o caminho para a revolução mundial. Nessa luta greve de massas, da qual foi a primeira a reconhecer a importância
gigantesca, a vitória e a derrota teriam consequências semelhantes histórica e a qual chamava de "a força clássica do movimento do pro-
tanto para os grupos imperialistas combatentes quanto, ao mesmo letariado em períodos de efervescência revolucionária". O presente
tempo, para o proletariado dos países envolvidos, ambas levando deu nova e crescente importância à brochura que escrevera sobre o
inevitavelmente ao colapso da ordem e da civilização capitalistas e assunto e que preparou o caminho para uma estimativa exata desse
ao seu julgamento diante do tribunal da revolução mundial. Rosa meio de luta· ela deveria hoje ser lida e compreendida por milhões de
Luxemburgo escreveu isso entre março e abril de 1915. Muito antes pessoas, qu~ se tornariam milhões de militantes prontos p~ra a ação.
de o proletariado russo, dirigido pelos bolcheviques determinados A Brochura de Junius é uma joia particularmente brilhante em
a ir até o fim, lançar o assalto da revolução social, muito antes de a meio ao rico legado que Rosa Luxemburgo deixou ao proletariado da
menor ruga anunciar a aproximação de um dilúvio revolucionário Alemanha e do mundo inteiro, para a teoria e para a práxis de sua luta
na Alemanha e na monarquia de Habsburgo. O que sabemos desde libertadora; uma joia cujo brilho e influência lembram dolorosamente
então, o que a própria Rosa Luxemburgo pode ter sabido em parte, 0
quanto essa perda sofrida é enorme e irreparável. Tudo o que pode
confirma vividamente a acuidade e a precisão com que enxergou as ser dito a seu respeito é como uma lista árida de nomes de plantas ao
linhas do desenvolvimento histórico na Brochura de Junius. lado de um jardim de flores de florescência, ricas em cores e fragrân-
Precisamente por essa razão, um ou outro leitor pode se perguntar, cias. É como se Rosa Luxemburgo, pressentindo seu fim prematuro,
lamentando ou reprovando, por que a autora não indicou a possibili- reunisse ali O melhor das forças de seu ser genial: o espírito científico
dade de uma revolução na Rússia, por que não se pronunciou sobre e penetrante da teórica, a paixão intrépida e ardente da ~~itante con-
os métodos e os meios de luta do proletariado no período de desen- victa e audaz, a riqueza interior e o brilhante poder criativo de uma
volvimento revolucionário que se iniciava. É bem verdade que, já em mulher perpetuamente em luta e dotada de uma sensibilidade a~ística.
1915, se começava a discernir cada vez mais nitidamente o colosso Todos os dons que a natureza lhe tinha generosamente proporcionado
da revolução que emergia do caos belicoso entre os povos . Todavia, ajudaram-na quando escreveu esse trabalho. , .
nenhum sinal indicava onde nem quando ela começaria sua marcha Mas ela só escreveu? Não, ela viveu nas profundezas da propria
triunfal. A Revolução Russa seria o tema de uma segunda brochura, alma. Em sua esmagadora crítica da traição social-democrata e na
para a qual Rosa Luxemburgo já havia delineado algumas diretrizes. estimulante perspectiva da renovação e da ascensão do prol~ta~i~do
A mão assassina do soldado civilizador nos privou desse projeto, no na Revolução; em suas palavras, marcadas por uma força incisiva;
qual seriam estudados e avaliados os meios e os métodos de luta da em suas frases que se precipitam impetuosamente em direção a seu
Revolução Russa. Obviamente não à maneira de Kautsky, em confor- objetivo; no encadeamento inflexível e no imen~o alcance de s:us
midade com um esquema rígido ao qual o desenvolvimento histórico pensamentos; em seus espirituosos sarcasmos; nas lffiagens e~pressiv~s z
efetivo deveria ter se adaptado como uma cama de Procusto. Não, que elaborava e em seu pathos simples e nobre; em tudo isso senti-
a concepção de Rosa Luxemburgo permanece fiel ao fluxo vivo e mos O sangue de Rosa Luxemburgo fluindo , sua inabalável v~nta?e
criativo desse desenvolvimento : "O momento histórico exige a cada falando, seu ser presente até a última fibra. A Brochura de ]uniu~ e a 1-
vez as forças correspondentes do movimento popular, criando novas expressão do próprio ser de uma grande personalidade, que se dedicou
o N
u [forças], improvisando meios de luta até então desconhecidos orde- inteiramente, sem reservas, a uma grande causa, à maior das causas.
' Assim, para além da morte, Rosa Luxemburgo ~os chama, e~a que
nando e enriquecendo o arsenal do povo, despreocupado de todas as
prescrições dos partidos". O que se trata de implementar na Revolução hoje, mais do que nunca, está à frente do proletariado, con~u~mdo-o a::
"não é , portanto, prescrições e receitas ridículas de natureza técnica, em seu caminho de Gólgota para a terra prometida do socialismo. <(
mas a palavra de ordem política, a formulação clara das tare fas e dos Do halo que envolve sua figura, porém, outra personalidade
se destaca. É preciso tirá-la da sombra na qual voluntariamente se u
u interesses políticos do proletariado".
D E R o s A LU XE M B U R GO 143
142 M A R G E M E SQU E RDA 33 A L U T A
RESENHAS
mant v , com uma di crição que ' sinal do va i r g ' nu ín ' da d -
dicação absoluta a serviço de um ideal. Essa p r nal i la d é Leo
Jogiches. Por mais de vinte anos, ele se ligou a Ro a Luxemburgo
em uma incomparável comunhão de ideias e de luta, fortalecida pela
força mais poderosa do mundo: a paixão ardente e devoradora que
esses dois seres dedicaram à Revolução. Poucas pessoas conhecem
Leo Jogiches e raros são os que o estimaram à altura de seu real Bonapartismo brasileiro
valor. Em geral, Leo aparecia apenas como organizador, aquele que
levava as ideias políticas de Rosa Luxemburgo da teoria para a prática, LUCIANO CAVINI MARTORANO
ainda que um organizador de primeiro plano, genial. No entanto, sua
atividade não se limitava a isso. Dono de uma cultura geral ampla e
Estado burguês e classes dominantes no Brasil ( 1930-1964).
profunda, com um domínio incomum do socialismo científico e um
Francisco Farias. Curitiba, Editora CRV, 2017. 170 p.
espírito de uma torção dialética, Leo Jogiches era o juiz incorruptível de
Rosa Luxemburgo e de seu trabalho, sua consciência teórica e prática
sempre vigilante: sabia como enxergar longe e abrir novos h orizontes,
enquanto Rosa, por sua vez, tinha o espírito mais penetrante e uma
o título da obra de Francisco Farias já revela o desafio proposto ~elo
maior capacidade de conceber os problemas. Jogiches era um daque- autor: analisar a relação entre o Estado e as classes dominantes no Brasil ao
les homens ainda muito raros hoje, os quais, dotados de uma grande longo de um período de mais de trinta anos. Isso e_m um tex~o de pouco
personalidade, podem admitir ao seu lado, numa relação leal e feliz mais de 150 páginas, das quais 23 são usadas, no capitulo 1, para_apresentar
o
de camaradagem, a presença de uma grande personalidade feminina, a teoria escolhida e as hipóteses de trabalho; as restantes 104 p~ginas, que
z
auxiliando o desenvolvimento e a transformação dela sem vê-la como antecedem a breve conclusão, são dedicadas a convencer o leito:: (a) da
<
obstáculo ou prejuízo a sua própria pessoa; um revolucionário flexível, incapacidade hegemónica isolada da burguesia industrial, do capital me~-
no sentido mais nobre da palavra, sem contradição entre as ideias e cantil e da propriedade fundiária ; e (b) da implementaç_ão pela burocra:_1a "
o
os atos. Muito do melhor de Leo está no trabalho e na vida de Rosa estatal de uma política de desenvolvimento de "caráter 1~dependente (nao 1-
Luxemburgo. Su a insistência apaixonada e incansável e suas críticas contemplação prioritária a nenhum dos interesses ~as fraçoes das classes _do~
minantes) , embora tal política faça concessões aos interesses opostos entre s1
construtivas também contribuíram para o fato de a Brochura dejunius
das frações dominantes" (p. 37). Conseguirá o auto~ dar c~nta_ desse ~esafio?
ter sido publicada tão rapidamente e de maneira tão magistral, do A resposta a essa pergunta começa a se esboçar ia no pnme1r~ capitulo, no
mesmo modo que, se ela pôde ser impressa e difundida apesar das qual Farias delimita seu objeto: "os conflitos de classes e as fraçoes de c_la~se~
extraordinárias dificuldades resultantes do estado de sítio, devemos dominantes pelo controle dos benefícios das políticas do Estado brasileiro z
isso à sua inabalável vontade. Os contrarrevolucionários sabiam o de 1930 a 1964 (p. 15), com base na "teoria" de Nicas Poulantzas_ sobre as
que estavam fazendo quando, algumas semanas após o assassinato de frações das classes dominantes e seus diferentes sist_emas de fracionamen- >
Rosa Luxemburgo, também assassinaram Leo Jogiches, durante uma to . o critério fundamental seria o atendimento aos interesses_de cla~ses e
dessas frações pela política estatal, já que a "análise do conteudo s_ocial do u
suposta "tentativa de fuga" da prisão de Moabit.
A Brochura de Junius é um ato político individual, que deve poder do Estado é a observação dos resultados co~~retos do , con1unto de
o o
suas políticas" (p. 64). Ou seja, não apenas uma pohttca específica, como a
u engendrar a ação revolucionária de massa. É a dinamite do espírito z
que explode a ordem burguesa. A sociedade socialista que surgirá política econômica. , .
Desse modo, é a compreensão aprofundada do aut?r sobre ~ analise
em seu lugar é o único monumento digno de Leo J ogiches e de Rosa poulantziar:ia_do objeto em foco que lhe perm~te organtzar_ o ~on1un~o da u
Luxemburgo. A Revolução, para a qual dedicaram suas vidas e pela obra de maneira sintética e clara, ainda que, no item 2 do pnme1ro capitulo, ::,
qual morreram, está em processo de erigir este monumento. ele não estabeleça uma distinção teórica rigorosa entre Estado e governo, -'
u
B ONAPAR T IS M O
8 R A S I L E I R O 145
144 M ARG E M E SQUERDA 33
h ga ndo a afirmar que o Estado seria o "governo sp ·l:i li z:1 1 " p. 20), ref rindo-se a Poula ntzas, r t ma a m sma expressão , afirmando que ess
alé m de adotar um procedimento não explicitado de um pr s nvol- autor nela distinguiria "d i ntid s": (a) "como fenômeno histórico-concre to
vendo um movimento inicial, um intermediário e um final, que implicaria, da França", e (b) "como traço constitutivo do Estado capitalista" (p. 109),
e m uma ponta, o governo, e, na outra, o Estado - procedimento que se além de diferenciá-lo do conceito de autonomia relativa. Já na conclusão,
repete no caso das frações dominantes - , afirmando que "as classes sociais Farias faz menção a um eventual "Estado bonapartício" e a um "Estado com
são as comunidades concretas" (p. 20), despertando no leitor a dúvida: não funcionamento bonapartista" (p. 150-2). Com isso, temos quatro elemen-
seriam, mais precisamente, um conceito abstrato que procuraria explicar um tos relacionados ao bonapartismo: uma política de Estado, um fenômeno
fenômeno concreto? histórico-concreto, um modo de funcionamento de Estado específico e, por
Nos capítulos sobre a burguesia industrial e a burguesia mercantil, Farias fim, um Estado bonapartista. Se isso está correto, qual seria afinal a relação
acrescenta dois novos itens: a análise sobre os conflitos regionais e sobre o entre esses elementos? Haveria a predominância de um sobre os demais?
conflito cultural - este apresentado de modo pouco desenvolvido - , consi- Como se daria a sua articulação interna? Qual o estatuto teórico de um Estado
derados elementos integrantes da luta pela hegemonia política. Embora se bonapartista? Ou, em termos mais gerais, pode-se falar da existência de um
atenha principalmente à hegemonia política - entendida aqui como "a ca- conceito próprio de bonapartismo na obra de Poulantzas?
pacidade de uma fração de fazer prevalecer os próprios interesses no bloco Essas e outras questões que suscitam a leitura do livro de Francisco Fa-
no poder" (p. 35) - , sublinhando que não há uma relação automática entre rias mostram a sua qualidade, revelando que ele conseguiu responder ao
os domínios econômico e político no curto prazo, mas "a médio e a longo desafio a que se propôs e demonstram que, quanto maior o aprofundamento
prazo, a tendência é haver a correspondência entre hegemonia política e teórico sobre a problemática escolhida, maiores serão os resultados obtidos
preponderância econômica" (p. 36). e mais sintética e clara poderá ser a sua apresentação. Portanto, trata-se de
Sem se perder no grande volume de argume ntos do extenso debate uma obra que contribui teórica e historicamente para a análise da história
bibliográfico consultado, envolvendo os autores mais importantes, nem nos recente do Brasil.
dados econômicos, tampouco nos principais acontecimentos políticos do pe-
ríodo em análise (Revolução de 1930, movimento constitucionalista de 1932,
a conjuntura de 1945 a 1947, a crise de 1954, até chegar ao golpe de 1964,
que marcaria o fim da crise de hegemonia política), Farias resume em sua
conclusão que as políticas "dos governos" assumiram a "forma de um pro-
grama nacional-desenvolvimentista", tendo como aspectos centrais a cen-
tralização política e o intervencionismo (p. 147). De fato, elas beneficiariam
a "classe do capital" em se u conjunto, mas sem privilegiar, isoladamente,
uma de suas frações. Nesse prolongado contexto de crise hegemônica por
parte das frações dominantes, seria a burocracia de Estado que "parece"
dominar a "classe proprietária" (p. 151), assumindo o discurso da soberania
nacional e do desenvolvimento econômico. Portanto, como o próprio autor Diferentes facetas de Màrx aparecem neste
reconhece, ele adota a conhecida tese do bonapartismo para explicar a volume que reúne perspectivas de amigos,
dominação política no Brasil no período em foco. familiares, companheiros de luta e herdeiros
Mas o que é, para Farias, o bonapartismo? Deixamos nesta resenha de do legado político e científico do fundador do
lado a análise sobre os argumentos do debate historiográfico brasileiro elen- socialismo científico. Um verdadeiro compêndio
para compreender como a imagem do homem
cados ao longo do texto até mesmo por razões de espaço, tais como a lei do
Karl Marx foi construída pela perspectiva de
desenvolvimento capitalista desigual, o colonialismo e o semicolonialismo,
<(
pessoas que não eram biógrafos de profissão,
r a burguesia interna, o coronelismo, o populismo e tc. Inicialmente, ele afir- mas que foram essenciais para dar continuidade
z ma que "convém aplicarmos o termo de 'política bonapartista"' , pois assim a seu legado.
se caracterizaria "a independência da política estatal, na qu al nenhum dos
interesses específicos encontram-se prioritariamente contemplados", e "o textos de: Clara Zetkin, David Riazanov, Eleanor
ziguezague da política, em que os interesses contemplados caem ora para Marx, Franziska Kugelmann, Friedrich Engels,
ex:: um lado, ora para outro, no interior do bloco no poder" (p. 37). Depois, apresentação: João Quartim de Moraes Friedrich Lessner, Henry Hyndman, Karl Kautsky,
orelha: Virgínia Fontes Luise Kautsky, Marian Comyn, Paul Lafargue e
336 páginas Vladímir Lênin.
146 M A R G E M E SQUERD A 33
práticos das relações, m suas r ' pr ntaçõe , traz uma inversão entre uj ito
e objeto. As forças produtiva do trabalho, no limite, aparecem como força
produtivas do capital; o decisivo parece ser a propriedade, e não o trabalho.
E isso não corresponde a uma simples ilusão; antes, tal inversão faz parte do
próprio modo de produção capitalista: há uma espécie de religião da vida
cotidiana, em que as figuras essenciais do processo de produção aparecem
como um mistério para os próprios agentes da produção.
O Livro 111 de O capital e a atualidade do E tal questão fica bastante clara no tratamento marxiano, presente no
Livro III de O capital, de figuras como preço de custo, ganho empresarial,
pensamento de Marx em tempos sombrios capital portador de juros, dentre outras. Os portadores práticos das relações
de produção - o burguês, por exemplo - operam por meio de tais cate-
VITOR SARTORI gorias, que são efetivas na realidade. Ao mesmo tempo, elas somente são
efetivas em sua superficialidade. Dependem da extração do mais-valor, mas
ocultam a própria existência deste. Na noção de preço de custo e de ganho
Marx e a crítica do modo de representação capitalista. empresarial, por exemplo, não há quaisquer referências à composição do
Jorge Grespan. São Paulo, Boitempo, 2019. 304 p. valor (capital constante, variável e mais-valor); desse modo, a atividade diu-
turna do empresário, ao mesmo tempo, é regida pela valorização do valor,
e sequer se refere a ela.
Marx e a crítica ao modo de reprodução capitalista é uma obra de fô- O modo pelo qual a questão se apresenta aos portadores práticos dessas
lego. É possível afirmar, de certo modo, que ela expressa a maturidade do relações sociais assim supõe. E isto tem impactos substanciais no campo da
pensamento de Jorge Grespan, autor que há muitos anos vem estudando a representação, para que se use o título do livro, no modo de representação
obra de Marx e, em especial, O capital. capitalista. Na superfície da sociedade capitalista, o lucro consistiria justamen-
No texto, é possível perceber a presença de diversas temáticas, como te na capacidade de se vender determinada mercadoria acima de seu preço
a relação Marx-Hegel, o fetichismo, a inversão sujeito-objeto, o estatuto de custo. Ou seja, aparentemente, o ganho empresarial adviria, não de uma
dos diferentes livros que compõem a obra magna de Marx. No entanto, parcela do mais-valor, produzido pela classe trabalhadora, mas da expertise .
note-se que tais temas estão presentes na exposição de Grespan tendo do empresário, de seu trabalho. De repente, tem-se o seguinte: o capitalista
como linha vermelha a relação entre apresentação (Darstellung) e repre- aparece como trabalhador, e a força de trabalho dos trabalhadores aparece
sentação ( Vorstellung). como custo. Trata-se de uma inversão, certamente. No entanto, de uma inver-
Com isso, tem-se duas consequências: primeiramente, trata-se de um texto são presente no modo pelo qual se opera real e efetivamente na sociedade
organizado e de redação clara; a obra tem um fio vermelho claro. Em segundo capitalista. Tanto a apresentação como a representação decorrem da própria
lugar, a crítica do autor - tal qual a de Marx - tem íntima relação com o modo conformação objetiva das relações práticas dos agentes da produção; ao
de exposição (Darstellungsweise) das categorias no próprio texto. Sobre este mesmo tempo, trazem consigo os pressupostos destas. A autonomização das
último ponto, pode-se dizer que tanto em O capital, quanto no livro que agora formas econômicas e do preço diante do valor é tratada nesse contexto, em
comentamos, traz-se, primeiramente, e em considerável grau de abstração, a que a distribuição da riqueza social não aparece por meio do trabalho, mas da
figura medular interna do modo de produção capitalista. Então, explicita-se propriedade privada. A questão é bastante importante - mesmo para aqueles o
como que na prática e na representação dos agentes da produção esta figura que não concordem completamente com as conclusões do autor sobre a com- 1-
se apresenta de modo invertido. O livro do autor brasileiro vai da análise das preensão da relação entre as formas jurídicas (como a titularidade, o contrato, "'
<{
formas do mais-valor, passa pelo estudo da apresentação das leis imanentes e, no limite, a própria concepção de justiça) e o funcionamento concreto da
I
do sistema capitalista e pelo modo como ela se relaciona com a representação economia capitalista. Os meandros dessas questões, como era de se esperar,
dos agentes da produção e, por fim, chega à representação do próprio capital. são tratados por Grespan com bastante cuidado e, sempre, com referência ao
z
Isso significa que Jorge Grespan, seguindo o texto marxiano, mostra como original ale~ão; o autor, inclusive, opera cotejando os diferentes rascunhos "'
o
que a apresentação das leis imanentes do capitalismo depende daquilo que de O capital e comparando-os no que toca ao trabalho editorial de Engels.
é essencial à constituição dessas leis mesmas. No entanto, o autor deixa claro Nesse ponto, o autor brasileiro, mesmo que não tenha a questão por cen-
a: que o modo pelo qual essas leis se apresentam à consciência do portadores tral, vem a se posicionar sobre a relação Marx-Engels, mostrando que parte >
o
\.?
llllhps~ orno ela pode contribuir para predispor os jovens a reproduzir variável das contradições advindas da crise da ditadura, Ianni destoava do
situações de opressão, em vez de transformá-las? Neste acla- clima da época.
NA EÍl~ÇAÇÃ8 mado estudo, a professora de linguagem da educação Nurit
Para Ianni, os mandos e desmandos da ditadura não eram somente uma "'
Peled-Elhanan apresenta uma detalhada exposição dos meca- o
nismos pelos quais os materiais escolares israelenses moldam operação autoritária dos militares. Em poucas palavras, a ditadura tinha uma o
um imaginário de marginalização dos palestinos. forma militar, mas o conteúdo era dado pelo grande capital. Seu objetivo era a::
GABRIEL ZIMBARDI
Com periodicidade semestral, a Margem
Esquerda traz ensa ios de fôlego sobre
os principais acontecimentos de nosso
tempo e a conjuntura sociopolítica no
Brasil e no mundo, além de estudos sobre
os clássicos do marxismo e entrevistas
aprofundadas que traçam a trajetória
intelectual, política e cultural de figuras
· A produção de Carlos Motta tem entre suas principais virtudes fazer apare-
de destaque da esquerda de hoje.
cer sujeitos e estórias suprimidos, na tentativa de estabelecer contranarrativas
que reconheçam relatos não hegemônicos da história. Motta é conhecido por
seu engajamento e ativismo queer e por suas posições sobre as políticas de
sexo e gênero como oportunidades de articular posições contra a injustiça
social e política. Da vasta produção do artista e professor colombiano radi-
MODALIDADES DE ASSINATURA cado em Nova York, o recorte estabelecido para este volume baseia-se em
dois conjuntos fundamentados em iconografias esquecidas por processos
pasteurizadores de relatos históricos. A coincidência entre os dois conjuntos
evidencia a plu ralidade sexual e de gênero de civilizações pretéritas.
O primeiro deles, Beloved Martina, que aparece nas capas e ao final desta
edição, ·reproduz em dez esculturas em arenito impressas em 3D estátuas
greco-romanas ele Hermafrodito, filho de Afrodite e de Hermes, deus dos
n
"hermafroditas" e cios afeminados. As esculturas denotam o fascínio histórico
duradouro pela figura intersexual e a maneira como os corpos intersexuais
têm sido sujeitados à objetificação do olhar dominante. O segundo, Hacia una
historiografia homoerótica, que figura no miolo do volume, retrata em uma
série de desenhos em grafite e aquarela um conjunto de a1tefatos homoeróticos
descobertos nas Amé1icas e produzidos por diversas etnias, como os tairona, da N
NUAL DER$ 60,00 POR R$ 54,00 BIANUAL DE R$120,00 POR R$102,00 Colômbia, e os moche, do Pem. Tais objetos não costumam figurar nas exposi-
edições, desconto de 15% em toda a 4 edições, desconto de 30% em toda ções dos museus de antropologia, permanecendo sob "um véu de moralismo"
ja virtual da Boitempo durante o ano a loja virtual da Boitempo durante os em seus ace1vos, como conta Motta. As coleções que detêm a propriedade de
e vigência da assinatura. dois anos de vigência da assinatura . ambos os acervos reinterpretados por Motta seguem o esquema ele opressão
análogo àquele dos eventos passados ao tratar seus tesouros como itens exóticos
ou à margem da normalidade. O gesto ele Motta reconfigura essas questões, "'
COMO ASSINAR? posicionando essas produções à luz da discussão contemporânea.
l?
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