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REVISTA DA BOITEMPO

33 2Q SEMESTRE, 2019
Copyright it> Boitempo. 20 19
Margem Esquerda - revista da Boitempo n. 33
Editores
/vona Jinkings e Artur Renzo
Assistência editorial
Carolina Mercês
Editor de imagens
Gabriel Zimbardi
Editor de poesia
Sumário
Flávio Wolf de Aguiar
Preparação
Lucas Torrisi
Apresentação .......... ................. ... ........................................................... 9
Revisão
Thaisa Burani ARTUR RENZO E IVANAJINKINGS

Capa ENTREVISTA
Artur Renzo e Natasha Weissenborn
Judith Butler .................. ..... ... ................... ... .... ....... .... ........... .... ... ... ..... 1 1
Imagens da capa e miolo
CARLA RODRIGUES. MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES E YARA FRATESCHI J
Carlos Motta
Projeto gráfico e diagramação DOSSIÊ: MARXISMO E LUTAS LGBT ·
Antonio Kehl Apresentação ... ........... ...... ....... ..... ............ ... .. .. ............. .. ......... ...... ..... .23
Anúncios LUCAS BULGARELU
Heleni Andrade
Marxismo e sexualidade no Brasil: recompondo um histórico ............... 25
Produção
RENAN QUINALHA
Livia Campos
Impressão e acabamento A luta pela diversidade sexual e de gênero diante do Estado
Rettec capitalista: o que a atual crise política tem a nos ensinar? ....................... 32
RAFAEL DIAS TO/TIO
ISSN 1678-7684
Tracisfeminismo e construção r~ cionária ... .. ... ... ......... ............. .. ...... 3 8
número 33: outubro de 20 19 AMANDA PALHA

Évedada a reprodução de qualquer parte


Gênero e sexualidade: ascensão conseNadora e fantasias
desta revista sem a expressa autorização da editora. masculinas de poder no Brasil .......... ......................................... .......... .45
ISADORA UNS FRANÇA
BOITEMPO
ARTIGOS
Jinkings Editores Associados Ltda.
Rua Pereira Leite. 373 - Sumarezinho Justiça para comunidades lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras ......... 53
CEP 05442-000 São Paulo - SP
ANGELA DAVIS
Tel.: ( 11) 3875-7250 /3872-7285
editor@boitempoeditorial.com.br O inesperado: o Brasil nos quatro romances de Plínio Salgado .............. 65
www.boitempoeditorial. com.br \ www.blogdaboitempo.com.br
FLÁVIO WOLF DE AGUIAR
www.facebook.com/boitempo \ www.twitter.com/editoraboitempo
www.youtube.com/tvboitempo O centenário da Internacional Comunista .... ..... .................................... 80
MARCOS DEL ROIO

América Latina em convulsão histórica ................................................. 84


OSVALDO COGGIOLA
Marx: "O método da economia política" como crítica ontológica ... .... .... 99
MAR/O DUAYER

HOMENAGENS
Chico de Oliveira: a chispa da imaginação .. .......... .. ... .......... .. .. ........ .... 115
ANDRÉ S/NGER REVISTA DA BOITEMPO
33 211. SEMESTR E , 2019
lmmanuel Wallerstein: um pensador do longo século XXI ........... .. ..... 1 19
CARLOS EDUARDO MARTINS
Nicolas Tertulian: a filosofia contra a corrente .... .. .. .. .......... ... .. ............. 122 Comitê de redação deste número
RONALDO VIELMI FORTES Alysson Leandro Mascaro • Artur Renzo • Flávio Wolf de Aguiar • Ivana Jinkings
• Lucas Bulgarelli • Maria Lygia Quartim de Moraes • Pedro Davoglio
DOCUMENTO
A crítica gay .. ..... ..... .... .... ...... ........... ........ .. .. ............ ....... ... .... ..... .. ...... 125
Conselho editorial
MAR/O MIEU
Afrânio Mendes Catani • Antonio Carlos Mazzeo • Boaventura de Sousa Santos •
Contribuições de Mario Mieli para uma crítica LGBT + do capita,lismo ..... 127 Emir Sader • Gilberto Bercovici • Heloísa Fernandes • João Alexandre Peschanski
LUIZ /SMAEL PEREIRA • José Paulo Netto • Luiz Bernardo Pericás • Luiz Felipe Osório • Maria Orlanda
Pinassi • Michael Lõwy • Paulo Arantes • Paulo Barsotti • Ricardo Antunes •
CLÁSSICO Roberto Schwarz • Slavoj Zizek
Apresentação: Clara Zetkin e o legado de Rosa Luxemburgo ...... ... ..... 131
Em memória
MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES
Carlos Nelson Coutinho • Emília Viotti da Costa • Francisco de Oliveira • István
A luta de Rosa Luxem burgo contra o s traidores alemães Mészáros • Jacob Gorender • Leandro Konder • Miguel Urbano Rodrigues
do socialismo internacional ........ ........ ... ... .......... .... ... .. ....... ......... ..... ... 133
CLARA ZETKIN
Conselho de colaboradores
RESENHAS Alexandre Linares • Angélica Lovatto • Antonino Infranca • Antô nio Ozaí da Silva
Bonapartismo brasileiro ............ .... .. .. ........ ........... .. ...... ........ .... .... .... .. . 145 • Antonio Rago • Caio Antunes • Camilo Caldas • Caruobert Costa Neto • Carla
Ferreira • Carlos Eduardo Martins • Carlos Serrano Ferreira • Clarisse Castilhos •
LUCIANO CAVINI MARTORANO Claudia Mazzei Nogueira • Edilson Graciolli • Fabio Mascaro Querido • Fernando
O Livro Ili de O capital e a atualidade do pensamento de Marx Coltro Antunes • Fernando Marcelino • Gaudêncio Frigotto • Geraldo Augusto Pinto
• Gilberto Maringoni • Henrique Amorim • Isabella Marcatti • Isleide Fontenelle
em tempos sombrios ... ..... .. .... .......... ............................... ..... .... ......... 148
• Jair Pinhe iro • Jesus Ranieri • João dos Reis Silva Jr. • João Sette Whitaker •
VITOR SARTORI Jonathan Erkert • Jorge Grespan • José Luís Fiori • Kim Wilheim Doria • Liliana
Segnini • Lincoln Secco • Luciano Vasapollo • Lúcio Flávio Almeida • Luiz Ismael
NOTA DE LEITURA
• Marcelo Ridenti • Marco Aurélio Santana • Maria Lúcia Barroco • Mario Duayer
A ditadura do grande capital ......... .. ....... ....... .... .. ......................... .. ..... . 153 • Mathias Luce • Maurício Gonçalves • Milton Pinheiro • Nélio Schneider • Ou1ia
RODRIGO CASTELO Arantes • Paula Marcelino • Paulo Denisar Fraga • Plínio de Arruda Sampaio Jr. •
Roberto Leher • Rodrigo Castelo • Ronaldo Gaspar • Rosane Borges • Ruy Braga
POESIA • Sergio Romagnolo • Silvio Luiz de Almeida • Sofia Manzano • Victor Hugo
Klagsbrunn • Virgínia Fontes • Wolfgang Leo Maar
À bandeira rubra ... ....................... ..... .... ..... .... ...... .. ...... .................... .. 155
POR PIER PAOLO PASOLINI

SOBRE AS IMAGENS
Carlos Motta e o reaparecimento da imagem ........... ...... ...... .... ..... ..... 157
GABRIEL ZIMBARDI
contato: margemesquerda@boitempoeditorial.com.br
Colaboradores desta edição

ANDRÉ SJNGER é professor associado do Departamento de Ciência Política da USP. Foi se-
cretário de redação da Folha de S.Paulo e de impre nsa da Presidência da República
(primeiro mandato de Lula). É autor de O tu/ismo em crise (Cia. das Letras, 2018) e
co-organizador de As contradições do tu/ismo (Boitempo, 2016), entre outros .
.AMANDA PALHA é militante do PCB e participou da fundação do Coletivo LGBT Comunista.
Atua há seis anos em associações filiadas à Antra e atualmente na Amotrans. Coordena
a Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular da Assembleia
o
Legislativa de Pernambuco.
ANGELA Y. DAVIS é filósofa e professora emérita da Universidade da Califórnia. Ícone da luta
por direitos civis e próxima ao grupo Panteras Negras, integrou o Partido Comunista
dos Estados Unidos, tendo sido candidata a vice-presidente em 1980 e 1984. É autora
de vasta obra, incluindo Mulheres, raça e classe (2016), Mulheres, cultura e política o
(2017), A liberdade é uma luta constante (2018) e Uma autobiografia (2019), todos
publicados pela Boitempo.
ARTUR RENZO é diretor de conteúdo da Boitempo, onde edita o Blog da Boitempo, a TV <(

Boitempo e a revista Margem Esquerda. Formado em filosofia pela FFLCH-USP e em f-

comunicação social, traduziu, entre outros, A loucura da razão econômica (Boitempo,


2018), de David Harvey.
CARLOS MoTTA nasceu em Bogotá, em 1978. É artista multidisciplinar, e seu trabalho faz o
parte de coleções permanentes como a do MET e do MoMA, ambos em Nova York,
onde reside. Em 2019, foi nomeado professor associado de prática interdisciplinar no
Departamento de Belas Artes da Pratt University.
CARLOS EDUARDO MARTINS é professor associado do Instituto d e Relações Internacionais e
a:
Defesa da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-
-Hegemonia. Colunista do Blog da Boitempo, é autor, entre outros, de Globalização, o
dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011). o
CARLA RODRIGUES é filósofa, feminista, professora no Departamento de Filosofia da UFRJ, <(

pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e bolsista da Faperj, pes- a:


quisando a filosofia política de Judith Butler. o
CJARA ZETKJN (1857-1933), intelectual e militante marxista alemã, foi uma das vozes pioneiras
da emancipação feminina, tendo promovido a criação do Dia Internacional da Mulher <(
Trabalhadora. Inicialmente uma integrante ativa do Partido Social-Democrata Alemão
(SPD), com o qual rompeu em 1917, fundou a Liga Spartakus, ao lado de Rosa Lu-
xemburgo, de quem foi amiga e interlocutora, e posteriormente, o Partido Comunista o
Alemão (KPD), que representou no Reischstag até o fim da vida. u

M ARGEM ES QUER DA 33 7
FA1i1 MAS Alt 1JER11 · pr fcssor d D partarnent d S 1 1 gla la ni amp aul r d
0

Michael Lowy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 201 .


F1..Av10 WOLF DEAGUIAR é poeta, escritor e corresponde nte em Berlim ele vária mídias brasi-
le iras, inclusive cio Blog da Boitempo. É autor, de ntre outros livros, cio ro mance Anita,
ga nhador cio Prêmio Jabuti ele melhor romance em 2000.
GAllRIEL Z1MllARDI é produtor do programa da Galeria Vermelho, onde já produ ziu mais de
duzentas exposições e eventos. Em 2016, lá implementou a Sala Antonio, um cinema
voltado à produção de borda entre o cinema e as artes visuais.
IsADORA L1Ns FRANÇA é professora do Departamento de Antropologia e colaboradora do
Núcleo ele Estudos de Gênero Pagu da Unicamp. É autora de Consumindo lugares, Apresentação
consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de
São Paulo (Eduerj , 2012).
LUCIANO CAVINI MARToRANo é pós-doutor em teoria das instituições políticas pela Johann
Wolfgang Goethe Universitãt. Atualmente atua como professor de ciência política na Com a ascensão vertiginosa do bolsonarismo, as temáticas de gênero e
Unifal-MG.
LucAs BmGARELLI é doutorando em antropologia social pela USP e um dos autores da co-
sexualidade foram alçadas a um lugar central na cena pública brasileira. Se
letânea O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018), é verdade que esse fenômeno se deu com sinal invertido - como reação
organizada por Esther Solano. conservadora às conquistas dos movimentos LGBT e feministas nas últimas
Luiz IsMAEL PEREIRA é professor adjunto do Departamento de Direito da UFV. Doutor em décadas -, também é verdade que a resposta que se impõe a uma esquerda
direito político e econômico pelo Mackenzie, é líder do Grupo de Pesquisa Direito e comprometida com a luta de classes não deve contornar ou adiar tais ques-
Políticas na América Latina e autor de Adorno e o direito (Ideias e Letras, 2018).
tões, entendendo-as como restritas ao jogo da polarização em um contexto
MARcos DEL Rrno é professor titular de ciências políticas da FFC-Unesp, em Marília. Presidente
do Instituto Astrojildo Pereira e da International Gramsci Society- Brasil (2017-2019), de guerra cultural. Com esta edição, a Margem Esquerda se insere nesse de-
é autor, entre outros, de Os prismas de Gramsci (Boitempo, 2019). bate com reflexões que buscam enfrentar as articulações teóricas e políticas
o
MARIA LYGIA QuARTIM DE MoRAES é professora do Departamento de Sociologia do IFCH e entre marxismo e lutas LGBT para além da querela da "cortina de fumaça".
pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, ambos da Unicamp. Na entrevista que abre a edição, a filósofa estadunidense Judith Butler
MARio DuAYER é professor titular aposentado da UFF. Coordenou o projeto de tradução dos retraça sua trajetória intelectual e política a partir das indagações formula-
Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 (Boitempo, 2011), de Karl Marx.
o das por Carla Rodrigues , Maria Lygia Quartim de Moraes e Yara Frateschi.
MAR10 M1w (1952-1983), ativista marxista italiano, foi um dos fundadores do Fronte Unita-
rio Omosessuale Rivoluzionario Italiano (Fuori!) e membro do coletivo teatral Nostra Localizando no "intenso sentimento de precariedade induzido pelas forças
Signora dei Fiori. Graduado em filosofia pela Università Statale di Milano, escreveu econômicas e financeiras" a origem da onda de acirramento da xenofobia, da
<(
Elementi di critica omosessuale (Einaudi, 1977), entre outros. LGBTfobia, do antifeminismo e do racismo que vivemos, Butler não hesita em
1- OSVALDO CoGGIOLA é professor titular de história contemporânea na FFLCH-USP e autor de dar nome aos bois: "estamos testemunhando uma nova forma de fascismo,
setenta livros em diversas línguas, entre eles Do moderno ao contemporâneo (2019) na qual nem sempre se ensaia um rompimento explícito com a democracia".
e Breve história dos países árabes e islâmicos (2018), ambos pela Livraria da Física.
P1ER PAOLO PASOLINI (1922-1975) foi um cineasta, escritor, poeta e crítico italiano. Dirigiu
O dossiê de capa organizado por Lucas Bulgarelli, doutorando em antro-
o
Teorema, Saló e O evangelho segundo são Mateus, entre outros. pologia social pela USP, traz textos de Renan Quinalha, Rafael Dias Toitio,
RENAN Q u1NALHA é professor de direito da Unifesp e coorganizou as obras Ditadura e Amanda Palha e Isadora Lins França, que, a partir de perspectivas diversas,
homossexualidades.- repressão, resistência e a busca da verdade (EdUFSCar, 2014) e compõem um panorama crítico da história e do presente da relação entre
História do movimento LGBT no Brasil (Alameda, 2018). marxismo e lutas LGBT no Brasil, evidenciando ao mesmo tempo o potencial o
" RAFAEL D1As Tomo é doutor em ciências sociais pela Unicamp.
o político da aproximação entre os dois campos.
RODRIGO CASTELO é professor da Escola de Serviço Social da Unirio e autor do livro O social- u,
o -liberalismo (Expressão Popular, 2013).
Em diálogo com o dossiê, abre a seção de artigos a intervenção certeira de
<(
RONALDO V1ELMI FORTES é professor adjunto da Faculdade de Serviço Social da UFJF e coor- Angela Davis, que insiste na impo1tância do reconhecimento de um elo direto <(

1-

" denador, junto com José Paulo Netto, da coleção Biblioteca Lukács, da Boitempo. entre as lutas históricas dos negros por direitos civis e as lutas contemporâneas
V1TOR SARTORI é professor de introdução ao direito e direito do trabalho na Faculdade de z
o das comunidades LGBT. Sem deixar de problematizar o caráter formalista
Direito da UFMG, editor da revista Veronotio e autor de Lukács e a crítica ontológica desses direitos na sociedade burguesa, a filósofa destaca a importância de
"'
<( ao direito (Cortez, 2010). se superar uma política pautada unicamente pelo igualitarismo abstrato, e
Y ARA FRATESCHI é professora livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp e
pesquisadora do CNPq.
alerta para as armadilhas das soluções punitivistas para as opressões estru-
o turais de uma sociedade capitalista heteronormativa, atravessada por cisões "
u de classe, gênero e raça.

8 M ARGEM E SQUERDA 33
M ARGE M E SQUERDA 33 9
ENTREVISTA
Num a ab rdag m f rtil , Flávi WI lf d Aguiar s gu a pista s u
m stre Anto nio Candido d sbrava a prod ução literá ria d Plíni algado,
fundador da Ação Integralista Brasileira, mostrando sua tônica ao mesmo
tempo ultraconservadora e antiliberal. O historiador marxista Osvaldo Cog-
giola dirige um olhar atento à tensa conjuntura da América Latina e oferece
um balanço das experiências políticas da esquerda no continente.
No ano do centenário de fundação da Internacional Comunista - um
desdobramento da Revolução Russa, idealizada por Lênin como instrumento Judith Butleri
necessário de difusão da revolução socialista internacional -, Marcos Dei Roio
analisa o legado da IC, formalmente dissolvida em 1943, mas viva na luta
dos partidos comunistas que persistiram na reivindicação da emancipação
dos trabalhadores e dos povos. Fechando a seção, Mario Duayer discute a
chamada questão do método em Marx, cujo debate se baseia em grande
medida no famoso texto intitulado "O método da economia política". Nesse ·
artigo, Duayer demonstra que é um equívoco sugerir que Marx estabelece
ali as linhas gerais de seu método, e também que, com exceção da análise
de Lukács, as interpretações mais influentes não dão conta da orientação
ontológica do texto marxiano. -
Para o clássico deste número, Maria Lygia Quartim de Moraes recupera Judith Butler é uma filósofa estadunidense nascida em 1956, cuja tra- I
u
V>

um comovente e afiado texto de Clara Zetkin sobre sua amiga, camarada e jetória pode ser descrita como uma "criadora de problemas". Referindo- w
r
<
interlocutora Rosa Luxemburgo, escrito meses após seu assassinato - que em -se a uma experiência de infância, ela explica o título de Problemas de a::
u...
2019 também completa cem anos . Ecoando o tema de capa, a edição traz gênero.feminismo e subversão da identidade, publicado há quase trinta <
a::
ainda um importante documento do marxista italiano Mario Mieli, um dos anos nos Estados Unidos, e que desde então reverbera nas interlocuções <(

primeiros a arriscar extrair as consequências teóricas de uma aproximação >-


propostas pela autora. "Criar problemas era, no discurso da minha infân-
entre luta de classes e movimento gay. Intitulado "A crítica gay", o texto tem V>

cia, algo que nunca se deveria fazer, exatamente para não estar metida w
tradução e comentário de por Luiz Ismael Pereira. <(
a::
Luciano Martorano resenha a interpretação de Franscisco Farias sobre a em problemas. A rebeldia e sua repressão pareciam ser apreendidas o
L
dominação burguesa no Brasil entre 1930 e 1964, a partir do conceito de bo- nos mesmos termos, fenômeno que me deu o primeiro discernimento w
o
napartismo, enquanto Vitor Sartori se debruça sobre a descoberta do conceito crítico acerca da artimanha sutil do poder: a lei dominante ameaçava com :,:
marxiano de "modo de representação capitalista" por Jorge Grespan em seu problemas, ameaçava até mesmo nos fazer estar metida em problemas, r
a::
novo livro. A nota de leitura de Roberto Castelo destaca a atualidade de um para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são <(
::,
clássico de Octavio Ianni que acaba de ganhar nova edição. inevitáveis, e nossa tarefa é descobrir a melhor maneira de tê-los. "2 o
O poema "À bandeira rubra", selecionado e traduzido pelo editor da se- Quando a pequena Judith começou a criar problemas na escola, ~
l')
o ção, Flávio Wolf de Aguiar, é do cineasta, poeta e escritor italiano Pier Paolo >-
desafiando a autoridade da professora e sendo apontada como uma -'
·< Pasolini. Já as imagens, escolhidas e apresentadas pelo editor de arte deste <(
aluna de mau comportamento, foi punida. O castigo eram conversas a::
u, número, Gabriel Zimbardi, são do colombiano Carlos Motta. <(

< Com as palavras de André Singer, Carlos Eduardo Martins e Ronaldo Vielmi de aconselhamento com o rabino da comunidade judaica onde vivia. '.L

Fortes prestamos tributo a três homens essenciais que nos deixaram neste Surgiram ali as primeiras pistas do seu interesse por filosofia, com V>
w
z semestre: Francisco de Oliveira, o Chico, Immanuel Wallerstein e Nicolas ::,
l')

Tertulian. Outras perdas importantes merecem registro: do jornalista Paulo a::


o
Henrique Amorim, da socióloga Lívia Cotrim, do poeta e ensaísta cubano 1
Tradução do inglês por Maria Lygia Quartim de Moraes, com revisão de Artur Renzo. o
a:
Roberto Retamar e do pesquisador e professor da Unicamp Reginaldo Moraes. 2 Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of ldentity (2. ed., Nova York, Rout- <
a:: -'
o.
A eles dedicamos esta edição. ledge, 1999), p. xxviii, grifo da autora [ed. bras.: Problemas de gênero: feminismo e subversão da a::
<(

identidade, trad. Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003]. u


<( Artur Renzo e Ivana jinkings

33
j U D I T H 8 UT LER 11
10 M ARGEM E SQUERDA
in laga ~ obr a ti a xi t n iali ta, a xpuls d pin za la sina- P r muito tempo classificada como uma filósofa pós-estruturalista,
goga na Holanda e a influência da filosofia alemã na ideologia nazi ta . na entrevista ela também atualiza suas próprias definições, declarando-
Daí em diante, a adolescente d e catorze anos, interessada p elo Black -se hoje uma pensadora muito mais próxima da Escola de Frankfurt
Power e por outros movimentos que eclodiam à época, começou a le r do que do pós-estruturalismo, o que pode ser percebido como resultado
autoras feministas e foi estudar literatura e filosofia , até chegar a suas de uma aproximação entre esses dois campos teóricos, ao menos no
pesquisas sobre Hegel com Seyla Benhabib na Universidade de Yale, que diz respeito ao pensamento feminista. Suas interlocuções mais re-
que também conjugavam seu interesse pela metapsicologia de Freud centes circulam entre pensadores judeus e palestinos - Hannah Arendt,
e pelo pensamento marxista. Esse começo turbulento - de trouble - Emannuel Lévinas, Walter Benjamin, Edward Said - , são decisivas para
terminou por marcar com problemas a recepção de Problemas de as formulações do livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do
gênero, cuja publicação também se deu no seio da epidemia de aids. sionisma4 e também fundamentais para o desenvolvimento do tema de
Não obstante ela atribuir ao livro um caráter de trabalho experimental, seu próximo trabalho, TbeForceo/Non-Violence: AnEthico-PoliticalBind
a verdade é que ele marcou época. (A força da não violência: um vínculo ético-político), com lançamento
Os quase trinta anos que nos separam da publicação do livro fize~ previsto para 2020. Nesta entrevista, ela antecipa que no livro propõe
ram de Butler uma filósofa em trânsito. Como teórica multidisciplinar, repensar o que estamos acostumados a conceber como não violência,
faz a filosofia conversar com a antropologia, a teoria psicanalítica, a visto que esse conceito não pode ser confundido com a ideia de fraqueza.
ciência política, a sociologia. Ao transitar entre regiões, ela mobiliza As mulheres e as feministas são de novo - como foram em Problemas
as filosofias francesa e alemã em proporções quase iguais, transitan- de gênero - motor do debate, para o qual ela toma como paradigma -
I
do entre pós-estruturlismo e materialismo. No intercâmbio temático, o movimento Ni Una Menos, da Argentina, onde ela esteve há pouco u
~

w
ela conversa tanto com o feminismo francês de Simone de Beauvoir tempo, e as paralisações promovidas pelas mulheres em diferentes paí- 1-
<
a::
quanto com os teóricos da chamada Escola de Frankfurt, passando ses do mundo, além da necessidade de enfrentamento do feminicídio. u...
<(
por Marx, Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, alguns A filósofa esteve duas vezes no Brasil, a primeira delas em 2015, onde a::
<(

dos nomes que comparecem nesta entrevista como interlocutores que cumpriu agenda acadêmica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) >--
influenciaram seu perêurso filosófico. e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e ainda participou de se- ~
w
O contexto político estadunidense - do 11 de Setembro à eleição de minário sobre teoria queer em São Paulo. Dois anos depois, em 2017, <(
a::
o
Donald Trump - a impulsionou para um diálogo mais intenso com a voltou como organizadora do seminário "Os fins da democracia", rea- í:
obra de sua companheira, Wendy Brown, cuja crítica aos processos de lizado no Sesc São Paulo em parceria com duas universidades, Berkley w
o
desdemocratização está presente nos trabalhos mais recentes de Butler, e Universidade de São Paulo (USP), mesmo momento do lançamento L
l-
notadamente Corpos em aliança e a política das ruas\ e aproximam de Caminhos divergentes, com conferência realizada na Cátedra Edward a::
<(
::,
seu discurso filosófico de problemas contemporâneos brasileiros. É Said, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No intervalo que o
do que ela trata, por exemplo, quando diz que estamos vendo uma separou as duas visitas de Butler ao país, as forças de extrema-direita <(

nova forma de fascismo, no qual nem sempre há uma quebra explí- cresceram, e a sua figura quase franzina se transformou num dos \.'.)
>-
_J

cita com a democracia, e que, em alguns casos, funciona dentro de maiores símbolos de tudo que precisava ser combatido no pensamento <(
<(
a::
1-
sua estrutura. Nesse ponto, Estados Unidos e Brasil estariam muito de esquerda. Enquanto dentro do auditório um grupo de intelectuais <(

í:
próximos, experimentando formas de precariedade induzidas pelas discutia os fins da democracia, lá fora o que se podia constatar era o
forças financeiras e econômicas que estão intensificando a xenofo- fenômeno mesmo que Butler menciona nesta entrevista: a democracia ~
w
::,
> bia, a homofobia, o antifeminismo, o racismo e uma série de reações sendo corroída por dentro das próprias instituições que a sustentam. \.'.)

a::
a::
violentas aos movimentos sociais . o
o
c:r'.
1-
<(
..J
z 3
Idem, Corpos em aliança e a política das ruas (trad. Fernanda Siqueira Miguens, Rio de Janeiro, 4
Idem, Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (trad. Rogério Bettoni, São Paulo, a::
<(
LLJ Civilização Brasileira, 20 18). Boitempo, 20 17). u

12 M ARG EM E SQUER DA 33 j U DI TH BUTLE 1 R 13


Butl r nv r I m Margem Esquerda via -1nall 1 -. •prn 1 ·n 1. , ncorajada por meus professores, fui para Heidelberg com uma
p rguntas formulada p la professoras Carla R drigL1•s, la niv r- 1 1 a da Fulbright, onde me concentrei nos cursos do idealismo alemão
idad e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Funda , 1' Amparo à na metapsicologia de Freud. Também cursei uma disciplina na Escola
Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), Maria Lygia Quartim 1. Moraes, de Teologia sobre as origens do antissemitismo no Novo Testamento -
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Unifesp, e Yara um tema controverso.
Frateschi, da Unicamp, cada uma a seu modo leitora e estudiosa da obra Q uando retornei para a Universidade de Yale, estudei filosofia marxista,
de Butler e de seus desdobramentos na filosofia e na teoria feminista. fenomenologia e também Hegel. Foi então que percebi que alguns aspectos
do trabalho de Hegel eram utilizados pelo criticismo literário e pela psi-
canálise, e pensei que seria bom retornar para a filosofia para ver a inter-
-relação entre desejo e reconhecimento. O que mais me interessava é que
Margem Esquerda- Você poderia contar-nos um pouco sobre sua famz1ia
essas formas de reconhecimento poderiam permitir certos tipos de desejos,
e formação inicial? Seu interesse pela filosofia começou cedo, no contex-
e que esse desejo, o desejo de ser (Spinoza) e o desejo de ser reconhecido
to de sua experiência escolar hebraica. Cursou depois filosofia em Yale,
(Hegel) levantavam questões ao mesmo tempo existenciais e sociopolíticas.
defendendo seu doutorado em 1984- trabalho posteriormente publicado
com o título Subjecs of Desire [Sujeitos do desejo?. Você poderia nos falar ME - Seu livro seguinte, Problemas de gênero, teve uma enorme reper-
mais sobre seu percurso e os motivos que a levaram a enfrentar o tema cussão mundial. Você comentou que foi a indignação com o descaso do
da influência de Hegel na filosofia francesa do século XX? governo com a epidemia do vírus HIV naquele ano o que a estimulou a
escrever a obra. Hoje, quase trinta anos depois, o livro se firmou como -I
Judith Butler - Na verdade, fui obrigada a estudar filosofia com o rabino u
como uma espécie de "punição" por ter me comportado mal nas aulas do uma obra de referência internacional. Quais são seus pontos fortes e V,
w

curso regular da escola hebraica. Eu era barulhenta, fazia interrupções e fracos numa leitura atual? 1-
<(
a::
lL
às vezes matava aula. Acredito que também interpelava JB - O livro investigava várias formas de teoria, especialmente francesas , <(
a::
o professor de uma maneira que não era considerada e tentava criar um espaço dentro do feminismo para perspectivas que <(
A estrutura >-
aceitável. De qualquer modo, fui enviada ao rabino, que foram desde então chamadas queer. Eu não esperava ser tão amplamente
inicial para todo
no começo estava muito bravo. Então ele perguntou o lida, e certamente deveria ter escrito de uma maneira mais acessível. Nas
meu pensamento
filosófico foi a
que me interessava, e mencionei a ética existencial, a aulas dos estudos sobre mulher, supunha-se sempre que as mulheres
filosofia judaica.
excomunhão de Spinoza da Sinagoga na Holanda e se eram mães ou no caminho de o serem, e que a heterossexualidade era
a filosofia alemã tinha influenciado a ideologia nazista. frequentemente o suporte do desejo. Assim, apesar de o livro ter a in- w
o
Eu vinha, com certeza, estudando por conta própria tenção de ser uma crítica à heteronormatividade no feminismo, ele foi :,:
l-
desde os catorze anos, mas não lembro exatamente por que escolhi esses publicado ao mesmo tempo que Epistemologyofthe Closet(Epistemologia a::
<(

tópicos. A estrutura inicial para todo meu pensamento filosófico foi a filoso- do armário), de Eve Sedgwick, e das publicações de Teresa de Lauretis, :::,

fia judaica, assim como minhas formas iniciais de pensar a filosofia , apesar
a
Michael Warner e David Halperin, que juntas formaram uma nova forma <(

de que, de alguma maneira, Kierkegaard foi adicionado a essa mistura. de investigação: a teoria queer. Foi um momento importante, mas nos \'.)
>-
_J

<(
Houve também o período, em torno de 1970, em que estava lendo anos subsequentes a teoria queer se distinguiu do feminismo . <(

1- livros e interessada no movimento do Black Power. Quando entrei na Houve muitas críticas ao meu trabalho e ao trabalho do primeiro grupo a'.
<(

universidade, estudei filosofia, mas, ao mesmo tempo, também literatura, anglo-americano de teóricos queer. éramos principalmente brancos e não nos L
deslocando-me de um campo a outro, apesar de meus trabalhos para os engajávamos suficientemente com raça e racismo. Não perguntávamos sobre V,
w
> :::,
seminários de literatura não serem aceitos para filosofia. Estudei Hegel as perspectivas queer do Sul global, e alguns não levavam em consideração \'.)

a::
a::
com Sheyla Benhabib (um pouco mais velha do que eu) na Universidade os devastadores processos econômicos, deixando isso a cargo de outros o
o
1- campos do saber. Alguns dos teóricos do pensamento queerpensavam que a:::
z 5
Idem, Subjects of Desire: Hegelian Refiections on Twentieth-Century France (Nova York, Columbia nós éramos muito literários ou filosóficos, e queriam ver as ciências sociais <(
-'
a'.
L.U University Press, 1999). mais plenamente engajadas. Quando os movimentos trans e de travestis se u
<(

14 M ARGEM E SQU ERDA 33


j U D I T H B uTL E R 15
f ,tal ram, a t ria queer f i um imp rtant aliado. n vim •nt ,1 1 l 'S d t r m firmado como uma. Mas é somente fora dos Estados Uni-
queers ofcolo.,.., os queers por justiça econômica e o engajam nt d( s qu u considerada fundadora da teoria queer. Isso tende a apagar a
p líticas de migração são agora os lugares em que o movimento 1,,1 'n "ai gia do movimento. Agora a teoria queer alia-se com as lutas trans
d tinido, com a valorização das alianças sobre as identidades. • 1ambém com os movimentos feministas contra a violência, com a luta
1 ' l direitos dos deficientes e com todos que lutam pelos corpos não
ME - Em 2019, completam-se setenta anos da publicação de O segundo n rmativos. O surgimento de coletivos e escritos queer of color trouxe
sexo, de Simone de Beauvoir. Sua teoria da performatividade de gêne- I' rmulações interseccionais e antirracistas para o movimento e também
ro tem sido associada, frequentemente, ao livro de Beauvoir, ou usada na maneira de contar a história do racismo. Agora temos também o "queer
para taxá-lo como "ultrapassado ". Ao mesmo tempo, consolidou-se uma d colonial" que agregou muitas vozes para o campo de estudo e para o
crítica a Problemas de gênero, como um livro que teria sido escrito sem movimento, inclusive muitas acadêmicas ativistas no Brasil.
uma compreensão da importância da obra de Beauvoir, ou, nas críticas
mais agudas, sem uma leitura correta dela. Como você entende o legado ME - Com muito atraso, o livro Debates feministas 7, originalmente de 1995,
de Beauvoir em seu pensamento? Em que sentido se poderia afirmar que foi recentemente publicado no Brasil. Como você avalia hoje aquele debate?
ela contribuiu para estabelecer as perturbações [trouble] no conceito de Afinal de contas, a teoria crítica e o pós-estruturalismo
gênero? E qual a relevância das ideias de Beauvoir hoje? são mesmo irreconciliáveis, ou é possível a reconci- Curiosamente,
liação em algum termo? Embora muito importante e eu trabalho hoje
JB - Simone de Beauvoir é sempre relevante. Foi ela que tornou claro
produtivo teoricamente, suscita desconforto a ausência em dia mais
que a biologia não é o destino, que nossas vidas não são totalmente
de teóricas negras naquele debate. Como isso se deu centrada na -I
determinadas antecipadamente pelo sexo com que somos designados .
na época? De maneira mais geral, como você avalia teoria crítica do u
As pessoas que discordam da minha (breve) leitura de seu trabalho de- que no pós-
V,
u,
o andamento da conversa entre teóricas e ativistas t-
sejam manter a categoria "mulher" no centro das análises. Elas tendem -estruturalismo.
<(

negras e brancas nos Estados Unidos? No Brasil, ainda "'


LL
a discordar das incríveis contribuições teóricas de Monique Wittig e do
engatinhamos nesse aspecto. <(

fato de que o gênero pode exceder, e excede, o binário. "'


<(

JB - Curiosamente, eu trabalho hoje em dia mais centrada na teoria críti- >--


ME - Em uma entrevista de 1994, você afirma ser ca do que no pós-estruturalismo. Mas minha tarefa é questionar a forma V,

É somente fora "uma teórica feminista antes de ser uma teórica queer
u,
<(
global assumida atualmente pela teoria. Os vários autores denominados
dos Estados ou uma teórica gay ou lésbica ". E acrescenta: "Meus o"'
Unidos que sou da Escola de Frankfurt permanecem importantíssimos, e, dado que fomos L
compromissos com o feminismo são provavelmente os todos parcialmente treinados nessa Escola, debatemos sobre as ligações u,
considerada o
mais originais. Problemas de gênero foi uma crítica entre teoria crítica e feminismo. Benjamin e Arendt são agora centrais
fundadora da :!:
à heterossexualidade compulsória no feminismo, e para meu pensamento. Penso que uma parte demasiadamente grande do t-
teoria queer. Isso "'
as feministas eram as minhas interlocutoras. No mo- feminismo e da teoria queerpartia de pressupostos brancos, nem sempre
<(
:::,
tende a apagar
mento em que escrevi o livro não havia estudos gays sabendo como assinalar essa realidade e se contrapor a ela. Nos Estados
a
a genealogia do <(

movimento.
e lésbicos tal qual eu os compreendo"6 . Qual é o valor Unidos, alguns dos mais importantes trabalhos do feminismo queer of \.'.)
>-
do termo queer hoje, e quais são as consequências de colour veio de Jasbir Puar, mas também de Fred Moten e David Eng, _J

<(
se ter construído uma "teoria queer "? Tavia N'gongo, Nadia Ellis, Sara Ahmed, Juana Rodríguez. Esses todos
1-
JB - Como mencionei antes, eu não construí a teoria. Outros definiram os são importantes escritores que mudaram o perfil do campo, e isso foi
termos e os patamares dos debates. Fui chamada de teórica queer muito incrivelmente importante. A lista global seria muito mais longa! V,
u,
:::,
> ME - No prefácio à segunda edição de Subjects of Desire, você escreveu: \.'.)

"'o
a: * Queer of calor designa uma vertente intelectual e política que busca trazer uma abordagem "Em certo sentido, todo o meu trabalho orbita em torno de um conjunto o
cr:::
1- não branca à teoria e à prática do movimento queer. (N. E.) <(
-'
7
z 6 Judith Butler, "Gender as Performance", entrevista conduzida por Lynne Segai e Peter Osborne, Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell e Nancy Fraser, Debates feministas: um inter- "'
<(

Radical Phi/osophy n. 67, verão 1994, p. 32. câml:iio ftlosóftco (trad. Fernanda Veríssimo, São Paulo, Editora Unesp, 2018). u

16 M A RGEM E SQUERDA 33 j U D I T H BUT L ER 17


d p erguntas hegelianas: 'qual é a relação entre desejo e rec nh im nto .18 - Sup nho que isso seja pós-hegeliano. É Foucault quem me ajuda a
e a que se deve que a constituição do sujeito suponha uma relação radical 1 car a questão se os termos do reconhecimento estariam limitados a um
e constitutiva com a alteridade?"' 8 . Até que ponto as suas formulações a mpo específico e, assim sendo, se existiriam limites histórico-políticos
pós-hegelianas, a partir de O clamor de Antígona ou ainda em Relatar a daquilo que é passível de ser reconhecido [recognizability] que podemos
si mesmo, nos permitem a.firmar que há no seu pen- expor-criticamente como os limites do pensável. Isso é importante na
samento uma superação de Hegel 9 ? lescrição das condições daquelas vidas que não são nem reconhecíveis
Não acredito que
como vidas a serem preservadas e lamentadas. É difícil assinalar a perda
os termos do JB - Digamos que Hegel continua projetando uma de uma vida que nunca contou como vida.
reconhecimento sombra sobre o meu trabalho, embora, se toma-
estejam do isoladamente ele não constitui um parâmetro ME - Se a pergunta é por que algumas vidas são mais preservadas e ou-
separados dos suficiente para o que faço atualmente. A ideia de tras, descartadas, a resposta pode deixar de lado o poder econômico? Em
campos da "negação determinada" é importante para Hegel e seus escritos mais recentes11 esse tema se acentua, e é como se o debate
política e da para Marx; a ideia de que a definição de uma coisa sobre precariedade se deslocasse em direção ao debate sobre a precariza-
economia. As
é definida pelo que exclui e nega. Derrida também ção da vida a partir das políticas neoliberais de desmonte do Estado de
duas esferas se
parte dessa ideia, levando-a para uma outra direção. bem-estar social. Ao mesmo tempo, parece-nos que o
condicionam
Suponho também que compartilho do pressuposto trabalho de sua companheira, Wendy Brown, ganha
mutuamente. Meu trabalho
de que aquilo que somos enquanto sujeitos depen- mais influência na sua escrita, de modo que a crítica recente sobre
de fundamentalmente das relações sociais que nos à democracia liberal toma um rumo muito próximo a não violência -I
formam e daquelas nas quais estamos engajados. Lá onde os termos aoqueelapropõe12 .Empaísescomo0Brasil, emquea é um esforço u
V,

do reconhecimen.t o estão ausentes ou foram suprimidos, é nesse nível democracia liberal sequer chega ou chegou a ser uma para articular
w
>-
<(
em que temos de lutar para produzir os termos do reconhecimento que realidade para uma grande maioria da população, um imaginário "'
LL
tornam uma vida vivível. Mas não acredito que os termos do reconhe- que instrumentos seriam necessários para desenvolver antineoliberal. <(

cimento estejam separados dos campos da política e da economia. As uma crítica ao desmonte neoliberal? "'
<(

>-
duas esferas se condicionam mutuamente.
JB - Claro que eu aprendi muito com Wendy Brown e sua análise do V,
w

ME- Seguindo por essa mesma linha, gostaríamos de tomar o tema do luto e neoliberalismo, especialmente do processo de financeiriza ção e de como <(
a:
o
da despossessão, que, embora estejam presentes desde o início da obra, vão-se a precarização foi intensificada: o trabalho torna-se temporário; serviços L
consolidando, sobretudo a partir de Precarious Life [Vida precária] e Quadros públicos básicos, como habitação e saúde, são "terceirizados"; e popula- w
o
de guerra 10 . Neste segundo livro, parece haver uma questão pós-hegeliana ções são frequentemente abandonadas por formas de neoliberalismo que :;::

fundamental, que é pensar não mais apenas no reconhecimento, mas tam- somente incentivam o autoempreendedorismo individual. Meu trabalho >-
"'
<(

bém no que fornece as próprias condições para que haja reconhecimento. recente sobre a não violência é um esforço para articular um imaginário :,

A pergunta é se é possível tomar a perda como fundamento negativo com o antineoliberal - um imaginário no qual as relações sociais e as obrigações o
<(

qual se pode reconstituir uma ideia de vida em comum? de cada um para com o outro sejam mais importantes do que a auto- l'.)
>-
maximização individual e do que as políticas de despossessão levadas a _J

<( cabo pelas forças conjuntas do Estado e da economia. ~

>-
8
Judith Butler, Subjects of desire, cit. "'
<(

L
9
Idem, Antigone's Claim (Nova York, Columbia University Press, 2002) [ed. bras.: O clamor ME - Caminhos divergentes é um livro em que você performatiza o en-
de Antígona, trad. André Cechinel, Florianópolis, Editora da UFSC, 2014]; Giving an Account of contro entre pensadores judeus (Arendt, Lévinas, Benjamin) e palestinos
V,
w
::,
> Oneself (Nova York, Fordham University Press, 2003) [ed. bras.: Relatar a si mesmo , trad. Rogério l'.)

Bettoni, Belo Horizonte, Autêntica, 201 S]. 11 o"'


a: 10
Idem, Precarious Ufe: The Powers of Mouming and Violence (Nova York, Verso, 2004); Frames Idem, Notes Toward a Performative Theory of Assembly (Cambridge, Harvard University Press, o
2015) [ed. bras.: Corpos em aliança e a política das ruas, cit.). a:'.
>- of War: When Is Ufe Grievable? (Nova York, Verso, 2009) [ed. bras .: Quadros de guerra: quando 12 ..,
<(

z a vida é passível de luto?, trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha, Rio de Janeiro, Ver Wendy Brown, ':A.merican Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Demo- a:
<(
UJ Civilização Brasileira, 2015]. cratization" , Po/itica/ Theory , v. 34, n. 6, dez. 2006 , p. 690-714. u

18 M ARG EM E SQUERDA 33 J U DITH B UTLER 19


'aid) para ap ontar a p ossibilidade de binacionalldad, •1111· 1 Israel e 11 1-Jrasil, ele tem sido muito bem recebido por setores feministas que en-
Palestina, ou, dito de outro modo, para Jazer a crítica à utol ~n ia co- lu11d m que, n um país profundamente marcado pela pobreza e com uma
l nial de Israel sobre a Palestina e, com isso, Jazer a crítica aos modos l,IJ, ,neta neoliberal avançando, a luta feminista não pode absolutamente
violentos de formação do Estado-nação. Para 2020, está anunciado o /ir 'Scindir de uma orientação de classe e deve assumir-se anticapitalista.
lançamento de seu livro The Force of Non-Violence. Até que ponto a não ,'o m você se posiciona a respeito do projeto desse manifesto e das mobili-
violência tem a força de vencer a violência intrínseca ao Estado-nação? 'l:t l · ~es políticas em torno dele? Você concorda com a ênfase que as autoras
·onferem, na esteira do feminismo marxista, ao marcador social de classe?
JB - Essa pergunta parte do pressuposto de que a não violência é um
Isso acarreta algum prejuízo para a compreensão de outras formas de
instrumento fraco . Mas estou interessada em repensar as ideias de fraco
s11jeição, como o racismo e a LGBTQIA+fobia?
e forte. Não acredito que a não violência emerja de uma região calma
da alma. A greve revolucionária é uma sucessão de atos não violentos JB - Não há de forma alguma prejuízo. Classe é muito importante. Mas
e coloca a questão: como impedir a reprodução de um regime violento 1 mos de perguntar o que historicamente aconteceu com o conceito de
e explorador? Se estivéssemos nesses números e redefiníssemos a tática 'lasse quando a própria noção de trabalho mudou. Por que, por exemplo,
para nosso tempo, veríamos uma nova versão de força, uma que já foi termo "precariado" parece substituir o de "proletariado"? Em parte, a
moldada pelo Ni Una Menos e pelas centenas de milhares de mulheres natureza temporária do trabalho, a destruição dos sindicatos e a radical
e seus aliados que foram para a rua como parte da greve feminista. despossessão das vidas por meio da mudança climática e a perda do
stado de bem-estar social têm de ser enfrentados como uma formação
ME- Logo que Trump foi eleito, você refletiu sobre como a intelectua~idade contemporânea que reflete a nova ordem econômica do neoliberalismo. -
progressista havia sido pega de surpresa pela dimensão desse avanço da di- Se chamarmos todas as formas contemporâneas de despossessão de I
u
reita13. Como você avalia essa questão hoje, passados dois anos do governo "opressão de classe", estaremos usando uma velha linguagem que falha
V,
w
>-
dele, e levando em consideração a eleição de outras.figuras parecidas em em se opor à violência da acumulação do capital durante nosso tempo.
<(

"
u...
outros países do mundo, inclusive no Brasil? Como definir esse fenômeno?
O livro mencionado é certamente muito importante, mas ele algumas <(

JB - Acredito que estamos testemunhando uma nova forma de fascismo, vezes soa como um evangelho buscando sustentar a reputação da velha "
<(

>-
na qual nem sempre se ensaia um rompimento explícito com a democracia tradição do feminismo marxista em vez de uma teoria crítica que com- V,
w
e que às vezes funciona dentro de suas estruturas. O problema agora não preende a violência não somente da exploração do trabalho das mu- <(

é tanto um homem extremamente carismático, ou mesmo a redenção da lheres, como também da acelerada desaparição da própria ideia de um "o
í:
nação (embora isso certamente opere no Brasil). O trabalho estável. Tal como o movimento Occupy, é essencial chamar a w
intenso sentimento de precariedade induzido pelas atenção para como a riqueza é agora apropriada e acumulada por uma o
Estamos
testemunhando
forças econômicas e financeiras levou à xenofobia, pequena porcentagem de pessoas, ao mesmo tempo que muitos outros -
>-

uma nova forma


à homofobia, ao antifeminismo e à intensificação do estão expostos à pobreza e despossessão. Assim, essa radical e obscena "::,
<(

de fascismo, na racismo, uma sequência de reações de ódio contra desigualdade tem de ser denunciada em todos os aspectos do movimen- a
qual nem sempre os movimentos sociais que buscam maior igualdade to feminista , assim como o feminicídio, a violência contra os migrantes, <(

(.'.)

se ensaia um e liberdade para os que estão nas margens, inclusive a homofobia e a transfobia. Temos de achar uma maneira de articular >-
_J

rompimento na prisão - o lugar último da privação de direitos. todas essas dimensões do movimento e renovar nossa teoria social para <(

<(
explícito com a impedir a devastação do presente, inclusive das florestas tropicais e dos "
<(

democracia.
ME - No último dia 8 de março foi publicado em lugares de promessa para uma nova aliança.
í:

diversos países o manifesto Feminismo para os 99%14 . V,


w
::,
(.'.)
>
"
o
13Ver Judith Butler, "Quem são os eleitores de Trump?" , trad. Artur Renzo, 8/og da Boitempo, o
a'.
11 nov. 2016 , disponível online , acesso em 5 set. 2019. <(
J

z 14Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, Feminismo para os 99%: um manifesto (trad . "
<(

LU Heci Regina Candiani , São Paulo, Boitempo, 20 19). u

20 M ARGEM E SQUERDA 33 j U D I T H BU T LE R 21
DOSSIÊ: MARXISMO E LUTAS LGBT

Apresentação

LUCAS BULGARELLI

A articulação entre o marxismo e as lutas LGBT passou por im-


portantes transformações e rearranjos nos últimos tempos. Os atritos
entre os dois campos teóricos e de ação política foram substituídos, em
diversas experiências no Brasil e no exterior, por alianças estratégicas
e mesmo por formas mais sistêmicas de organização política. O arranjo
mais recente, no Brasil de 2019, é radicalmente variado, englobando
posições diversas, a depender de quem o enuncia.
Nas militâncias de esquerda, há uma compreensão de fundo sobre
a complexidade dessª articulação, tanto em função de um certo afasta-
mento entre as lutas LGBT e o marxismo no passado quanto também das
consequências dessa dinâmica até hoje. A distinção presente na prática
política de militantes e partidos de esquerda entre as "pautas econômicas"
e as "pautas identitárias" indica um cenário em que tais lutas ainda se
apresentam cindidas ou sobrepostas em determinados contextos.
Essa realidade, nos tempos atuais, convive com outra bastante
distinta, em que grupos e indivíduos de extrema-direita promovem a a:

ideia de que o marxismo e as lutas LGBT participariam de uma mesma <(

operação, que teria pretensamente se instalado em escolas, museus, l'.)

jornais, peças de teatro e feiras de livros. Nesta versão, os contras-


:::,
tes são substituídos por uma forçosa homogeneidade entre os dois co
campos de luta, fusão que ocorreria graças à influência daquilo que
é identificado por ideólogos da extrema-direita como uma ideologia
marxista cultural supostamente atribuída a Antonio Gramsci. <(

É partindo desse contexto que este dossiê da revista Margem Esquerda u


:::,
escrutina importantes aspectos da relação entre as lutas baseadas nos
..J

A P R E S E N T A Ç Ã 0
nflito de classe e aquelas baseadas nos conflitos obr n "r a
xualiclade. O ensaio de abertura, escrito por Renan Quinalha, r com-
põe um histórico dessa relação no Brasil. Analisando as primeiras for-
mulações marxistas sobre a sexualidade, o autor discorre sobre o per-
curso da relação entre as lutas marxistas e homossexuais no século XX.
Assim, identifica a influência de correntes, lideranças e contextos que
foram determinantes para a constituição e reconfiguração de ambos Marxismo e sexuálidade
os campos políticos no Brasil da virada do século.
Rafael Dias Toitio aprofunda o debate sobre as escolhas tomadas no Brasil: recompondo
pelo movimento LGBT brasileiro desde a redemocratização, enfati-
zando a dimensão institucional da ação política do movimento nas
um histórico
últimas décadas. Os processos mais recentes de negociação e barga-
nha promovidos por setores do movimento são analisados a partir da RENAN QUINALHA
crítica à natureza capitalista do Estado, sua dinâmica de acumulação
e sua formatação neoliberal.
A emergência do transfeminismo e a agenda política apresenta-
da por essa corrente, na qual atuam travestis e pessoas trans, são Os ~e~~tes sobre diversidade sexual guardam uma relação algo
analisados por Amanda Palha. Ao abordar a relação que o sexo e o contr~ditona com a tradição marxista. De um lado, parte expressiva do
gênero passam a estabelecer nas articulações transfeministas com ~arxis1:10 deu pouca atenção à sexualidade, desqualificando-a como
o parentesco, o trabalho, a reprodução e o corpo, a autora evidencia o dimensa_o menor da vida social, ou como uma agenda secundária. Por
caráter socialmente construído da antinomia natureza (sexo) e cultura outro, nao f~ra~ ~oucas as agremiações socialistas e comunistas que
(gênero), apontando a necessidade da absorção desses acúmulos para dera1;1 _contnbuiçoes fundamentais para as lutas dos homossexuais
nos ultimos 150 anos.
o feminismo e para o socialismo, bem como para a teoria marxista e
para a práxis revolucionária. Marx n~o abordou diretamente o tema. Engels, por sua vez, apetias
Os avanços das lutas LGBT na arena dos direitos e na disputa de o tan~encio_u ao tratar da relação desigual entre os sexos no âmbito da
1
1- valores e consciências frente à sociedade passaram a conviver mais ~amíha/ patnar~al - A despeito de não estar no horizonte dos autores,
co
recentemente com a proliferação de uma agenda conservadora e de e possivel ganmpar referências esparsas a práticas homossexuais de
(.'.)
_J
um rç!pertório talhado para a produção de pânicos morais, objeto da oponentes nas cartas trocadas entre ambos na década de 1860. Em
V,
análise de lsadora Lins França. A autora recupera a gênese da difusão algui:nas dessas correspondências, há comentários jocosos e _ hoje <(
<(
>- da expressão "ideologia de gênero" e seu percurso até desembarcar c~nsiderados - homofóbicos quando os fundadores do marxismo I
:::)

no Brasil, propondo uma análise sobre a mobilização do sexo, do discut~m su~s dif~re~ças políticas em relação a Johann Baptist von
gênero e da sexualidade pelo governo Bolsonaro dentro e fora das Schweitzer, hder sindical da social-democracia alemã ligado a Ferdi- <(

z
o
fronteiras nacionais. nand Lassalle. No mesmo sentido, Engels vale-se de um tom irônico
:E

As abordagens adotadas em cada ensaio proporcionam um pano- par~ desq~alificar como obscena e antinatural uma obra que Marx lhe ::J
X
rama crítico da história e do presente do marxismo e das lutas LGBT, havia e~viado de autoria de Karl Heinrich Ulrichs, jurista e precursor a
"'
<(
do movimento homossexual, especialmente nas campanhas por um
I: evidenciando ao mesmo tempo a potencialidade constitutiva da apro-
ximação entre os dois campos. O exercício proposto por este dossiê z
<(
é oferecer material analítico que apresente caminhos para a transfor-
V,
z
V,

o
mação de uma luta mutuamente constituída através da superação da 1
Friedrich Engels, A origem do família, do Estado e do propriedade privada (trad. Nélio Schneide~
_

o exploração de classe e da opressão contra pessoas LGBT. Sao Paulo, B01tempo, 2019). '
a::

M ARXISMO
24 M ARGEM E SQU ERD A 33 SEXUALIDAD E NO BR ASIL 25
traLam nt i ntífi da xualidad p la d rlmin:tl iz:1 ':I ltt s - t r fund amente mobilizações, como as de 1968. Na América Latina, a
2 prim ira organização política homossexual de que se tem registro é a
d mia no parágrafo 175 do Código Penal alemã •
No entanto, apesar de evidenciar que ~s pais do ma~xi m r ~ro- Nu tro Mundo, formada em 1967 na Argentina por trabalhadores e sin-
luziam uma visão comum de época, sena metodologicamente ina- licalistas liderados pelo quadro do Partido Comunista Héctor Anabitarte.
de quado inferir, a partir somente de passagens pontuais e ~i~persas, No entanto, as convergências e afinidades eletivas entre marxismos
posições políticas ou teorizações mais consistentes - positivas ou homossexualidades destacadas acima são apenas parte da história,
negativas - de Marx ou de Engels sobre a questão. pois houve também duros embates e afastamentos. Não faltaram mo-
Mais equivocado ainda seria condenar o marxismo, enquant~ uma mentos de reprodução da homofobia por parte das esquerdas.
linhagem de pensamento e de ação, como indelevelmente contaminado Depois da Revolução Russa avançar os debates sobre gênero e
por uma perspectiva homofóbica de seus fundadores, como se foss_e sexualidade, houve um retrocesso com Stálin. Em 1934, a homossexua-
um vício de origem incontornável. Ao contrário disso, um olhar mais lidade voltou a ser criminalizada. A influência do stalinismo espraiou
atento revela como essa tradição foi atravessada e ressignificada pelas seu moralismo por meio de partidos vinculados à Terceira Internacional
reivindicações de homossexuais em diferentes contextos e países. em boa parte do Ocidente. O mesmo ocorria em relação às variações
Na virada do século XIX para o XX, a social-democracia alemã dos regimes chinês e cubano, que ganhavam cada vez mais espaço
foi essencial na campanha pela revogação da já mencionada lei an- em diversos lugares do mundo, com destaque na América Latina.
tissodomia com o médico e membro do Partido Social-Democrata Essa linha do movimento comunista internacional aportou no Brasil
da Alemanha (SPD) Magnus Hirschfeld ou mesmo com o histórico reforçando a homofobia, em uma heterodoxa combinação com a ideo-
discurso do dirigente August Bebel no Reichstag a favor dessa refor- logia católica da colonização europeia e o velho machismo cultural
ma legal3 . Pouco tempo depois, com a Revolução Russa de outubro latino-americano. Tais fatores conjugados colaboraram para decantar
de 1917, os bolcheviques editaram o Código Penal soviético, em 1922, nas esquerdas uma representação das homossexualidades como
descriminalizando o sexo consentido entre homens adultos . "desvio pequeno-burguês", manifestação da "decadência burguesa.",
Já após a Segunda Guerra Mundial, fundaram-se grupos hom~filos formas de ócio contra a ética do trabalho, comportamento contrário
em diferentes lugares do mundo, como o Cultuur en Ontspannmgs- à "moral revolucionária" ou ainda mero "desbunde".
centrum (COC), criado em 1946 na Holanda, com forte ligação com A tarefa da revolução social, assim, não passava pela revolução
a esquerda4. Na década de 1950, nos Estados Unidos, ~ criado o sexual. Forjar uma sociedade socialista, e o novo homem, demandava
Mattachine Society, graças à atuação do militante do Partido Comu- o combate à moral burguesa com seu hedonismo e individualismo
1-
c:o nista Harry Hay5. característicos. Para isso, era preciso cultivar subjetividades capazes
lJ
....J
o freudo-marxismo, de Wilhelm Reich a Herbert Marcuse, passan- de controlar as paixões, devotas ao projeto político, aderentes a
<(
do por Erich Fromm e outros, foi uma vertente teórica qu~ produ~iu uma rigidez normativa e com os objetivos pessoais subsumidos ao
<(
... análises libertárias sobre a emancipação sexual, a ponto de influenciar propósitos da revolução. Reforçavam-se, portanto, um " ethos d
::,
-'
masculinidade revolucionária"6, a sexualidade heteronormativa <
uniões monogâmicas. z
o 2 Hubert Kennedy, "johann Baptist von Schweitzer: The Queer Marx Loved to Hate", em G_ert O Partido Comunista Brasileiro (PCB), que hegemonizou p r d ·-
I: Hekma, Harry Oosterhuis e James Steakley (org.), Gay Men and the Sexual History of the Poht,cal ::,
V> cadas o campo das esquerdas, não fugiu à regra e contribuiu para
Le~ (Nova York, Harrington Park, 1995). alimentar essa visão homofóbica. Já no contexto da ditadura ivil-milita r o
J John Lauritsen, "Sobre a homossexualidade e o código penal", trad. Guilherme Nogueira,
de 1964, os grupos que apostaram na resistência armada r pr du zlam,
Nova Cultura, 28 out.2016, disponível online, acesso em 4 set.2019. z
em algum grau, os mesmos valores morais conservador
• Gert Hekma, Harry Oosterhuis e James Steakley, "Leftist Sexual Politics and Homosexuality",
JoumalofHomosexua/ity,v.29,n.2-3, 1995,p. l-40. z
V>
6
V\
s Doug lreland, "Sexual Liberation, Human Freedom" ,Jacobin, 28 out.2013, disponível online, James Green, "Quem é o macho que quer me matar?", Revisto Anistio Polftico e Justiço de
o Transição , Brasília, Ministério da justiça, n. 8, 2012, p. 86. o:::
o acesso em 4 set. 20 19.

26 M A RG E M E SQUERDA 33 M ARXISMO S EXUA L IDADE N O B RASIL 27


H rb rt Dani 1, guerrilh iro e homos xual, r fl tiu rit I a m nt N Brasil, destaca-se a corrente Convergência Socialista (CS).
obre o assunto: "o sexo não era uma preocupação política, a hávamos. Fundada em 1978, a CS foi a primeira organização da esquerda socia-
l! ta brasileira (e talvez latino-americana) a assumir a defesa pública
Militantes, tínhamos outros problemas a abordar". Com mais ironia,
escreveu sobre a idealização da classe operária pela esquerda: "onde d homossexuais com um espaço de auto-organização. Foi nesse
vocês já ouviram falar de um operário bicha? Naquela~ fantasias q~e m smo ano que surgiu o pioneiro Somos - Grupo de Afirmação da
inventamos, a classe operária não sofria 'desvios' sexuais. Porque nao Identidade Homossexual. O fato de terem sido fundados no mesmo
tinha sexualidade nenhuma. Era uma classe higiênica. Historicamente ano não é mera coincidência. No contexto de liberalização do regime
autoritário, o destino de ambas as organizações se cruzaria de modo
saudável". E arrematava:
indelével e definitivo para traçar a história da relação entre marxismo
Desde que comecei a militar, senti que tinha uma opção a fazer: ou eu e sexualidade no país .
levaria uma vida sexual regular - e transtornada, secreta e absurda, isto Diversos foram seus encontros e desencontros 8 . Na Semana do
é, puramente "pequeno-burguesa", para não dizer "reacionária" - ou Movimento de Convergência Socialista, organizada pela revista Ver.sus
então faria a revolução. Eu queria fazer a revolução. Conclusão: deveria em abril de 1978, tensões já emergiram. Alguns homossexuais reivin-
7
"esquecer a minha sexualidade". dicaram um representante do recém-lançado Lampião da Esquina na
Essas ideias foram reproduzidas por agrupamentos diversos, sta- mesa. João Silvério Trevisan publicou uma crítica ao modo como foi
linistas maoístas ou castristas. Tais organizações estavam todas na · pautada a discussão das "minorias" nesse encontro aberto9 • Mas vale
ilegalidade: seus membros viviam na clandestinidade e eram perse~ui- ressaltar que uma moção de homossexuais conclamando o apoio
dos, presos arbitrariamente e torturados, além de centenas t:rem sido da nova organização foi ali apresentada, demonstrando que alguma
assassinados ou desaparecidos. Nesse contexto, é compreensivel que a abertura havia naquele espaço.
sobrevivência tivesse precedência sobre temas de diversidade sexual. Algo semelhante se repetiu no debate na Semana das Minorias da
De qualquer modo, feita essa ressalva de contexto, fato é que Universidade de São Paulo (USP), ocorrido em fevereiro de 1979 e
mesmo durante o período da abertura, quando a repressão estatal organizado pelo coletivo Vento Novo para debater os "novos movi-
arrefeceu, os primeiros passos do movimento homossexual se deram mentos sociais" e as "minorias". O encontro dedicado ao tema das
com fundada desconfiança nas esquerdas marxistas. homossexualidades durou mais de três horas e contou com uns tre-
Para os recortes deste texto, destaca-se como setores do movimento zentos participantes.
trotskista colaboraram para novas leituras sobre a sexualidade dentro Trevisan reconheceu que "setores da esquerda tradicional podem
l-
a) do marxismo. Cada vez mais distanciados do regime soviético por conta ter sofrido um avanço considerável na compreensão da realidade
l.'.)
da "degeneração burocrática" operada pelo stalinismo e também_críti- brasileira", ponderando que "os grupos discriminados avançaram poli-
...J
ticamente: apossaram-se do seu espaço e provocaram uma rediscussão <
cos às apostas guerrilheiras e foquistas que ganhavam força na decada
do fechado conceito de revolução"1º.
I
< de 1960 os trotskistas se engajaram em uma tentativa de renovação do
1-
:)
marx:is~o que abriu margem para encampar as lutas homossexuais. Segundo James Green, "naquela noite, a discussão ficou polarizada <
Alguns segmentos da Quarta Internacional, como o grupo lide~ado numa caricatura do que seria o debate que, posteriormente, racharia o z
o por Nahuel Moreno, começaram a incorporar em suas agendas, amda
:e
V> que timidamente, as reivindicações por liberdade _sexual. Certa~ente
(Y
X a emergência de um movimento homossexual mais robusto na virada 8
Para uma análise aprofundada dessas afinidades e tensões, ver Renan Honório Quinalha,
""< dos anos 1960 para os 1970 foi fundamental para que trotskistas no- Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira ( I 964- 1988) (tese de z
l: tassem a importância e a conveniência de abraçarem essas bandeiras. doutorado em Relações Internacionais, São Paulo, IRI-USP, 2017), cap. 5. ' <
9
João Silvério Trevisan, "Estão querendo convergir. Para onde?", Lampião da Esquina, n. 2, z
V> jun. 1978, p. 9.
\/1 1 Herbert Daniel , Passagem para o próximo sonho: um possível romance autobiográfico (Rio de 10
o Idem, "Quem tem medo das 'minorias'?", Lampião da Esquina, n. 1O, mar. 1979, p . 1O. o::
o Janeiro, Codecri, 1982), p. 96-7.

E SQUERDA 33
M ARX ISMO E SEXUALIDADE N O BR A SIL 29
8 M ARG EM
m vim nto" 11 • Essa dificuldade de diálogo, em sua palavras, ln •d ia r n relata ter de batido longamente com Trevisan, amb s li 1' ra n-
a omunicação parte a parte, pois "nem os ativistas gay e I bi as, do alas opostas do grupo, a respeito do relacionamento entr a
n m os defensores das esquerdas no debate tinham uma linguagem mo~imento homossexual. Ao fazer um balanço de sua atuação n
ou uma perspectiva mais universal para conversar sobre o tema" 12 . penado, Green lançou um questionamento à posição de Trevisan. Afi-
Um terceiro momento a se destacar é o I Encontro Brasileiro de nal, p_or que "gastar_ t:mpo c_r~ticando a única organização de esquerda
Grupos Homossexuais Organizados, ocorrido em abril de 1980. Apre- que tmha uma pos1çao positiva em relação à homossexualidade em
sença de forças partidárias reforçou o encontro, mas também despertou vez de focar suas críticas nos grupos que não tinham posição ou' que
apreensão em alguns diante da possibilidade de o incipiente movi- eram homofóbicos?" 14 .
mento homossexual ser instrumentalizado por outros atores políticos. :"1ªs o grup~ já estava irremediavelmente fraturado entre a posição
O encontro, contudo, funcionou como o estopim que colocou às mais autonomista e a concepção de que o movimento deveria aliar-se
claras as diferenças que já cindiam o grupo Somos. Diversas questões, a outros ~tores sociais sensíveis às demandas dos homossexuais. Em
de ordem política e pessoal, compuseram o quadro dessa rivalidade 17 de maio de 1980, em uma reunião geral do grupo, consumou-se
dentro do grupo que, por ser o mais antigo e estruturado, foi sintomá- um racha que marcou a história do movimento LGBT brasileiro.
tico das diferenças que atravessavam, em algum grau, todos os demais Nes_tas breves linhas, seria impossível desenvolver uma análise
grupos. O pivô central da crise foi uma suposta e crescente influência exaustiva dessa relação tão complexa entre marxismo e sexual 1'd a d e.
N . .
da Facção Homossexual da Convergência _Socialista. osso mtu1to, ~ntes, ~oi apenas demonstrar como O marxismo pode
Organizada em 1979, a Facção chegou a contar, em 1981, com mais ~ de:'e ser_multo mais colorido e diverso do que normalmente se
de duas dezenas de ativistas para discutir a opressão a homossexuais tmagma. _So assim será possível construirmos respostas e caminhos
sob uma perspectiva marxista. Como o primeiro coletivo homossexual ?ara as ciladas postas pelo capitalismo contemporâneo para a efetiva
de um partido da esquerda, chegou a promover debates internos, igualdade da população LGBT.
grupos de estudos e publicações 13 .
A atuação disciplinada de alguns poucos militantes trotskistas,
formados sob uma lógica bolchevique, acabou dando ao grupo um
destaque maior do que ele efetivamente tinha dentro do Somos. Era
bastante clara a dificuldade de convencer pessoas a se integrarem,
1- de forma orgânica, a um padrão de militância que exigia duros sa-
co
l?
crifícios pessoais e profissionais em uma organização revolucionária,
-' sobretudo porque não se sabia qual seria o alcance da liberalização
<(
política em curso. Mesmo com tamanha limitação, sua mera existência
1-
::, era instrumentalizada para alimentar uma hostilidade à esquerda no I

movimento homossexual.
o z
I:

::,
X 11
James Green, ";A,baixo a repressão, mais amor e mais tesão': uma memória sobre a ditadura
"'
<( e o movimento de gays e lésbicas de São Paulo na época da abertura" , Acervo, v. 27, n. 1, a
:t: abr. 2014, p. 68.
12 z
Idem, "O grupo Somos, a esquerda e a resistência à ditadura", em James Green e Renan
V\ Quinalha (org.), Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (São
V\
Carlos, EdUFSCAR, 2014), p. 191 . z
o
i• Ja
13
Hiro Okita, Homossexualismo: da opressão à libertação (São Paulo, Proposta Editorial, 1981 ). mes G reen, "'Ab .
,..._ a1xo a repressão, mais amor e mais tesão'", cit., p. 66.
ex:

Q -M A R G E M E SQUERDA 33 M A R XIS M O
S E X UAL IDA D E N O BR AS IL 31
líti a LGBT, desenvolvidas a partir do governo Lula, que Bol onar
n _guiu aumentar sua base eleitoral: "O 'kit gay' foi uma catapulta
n·t mmha carreira política"\ reconheceu ele em 2017. "Kit gay" era
urna referência leviana e irresponsável a um material didático voltado
1 'tra trabalhar a questão do preconceito e da discriminação contra
L BT na escola pública. Bolsonaro deu início à construção de um
A luta pela diversidade "pânico moral" em torno do kit e das reivindicações do movimento até
q ue, em junho de 2011, a Bancada Evangélica aliou-se ao deputado
sexual e de gênero diante
chantageou o governo Dilma Rousseff, que cancelou o projeto e a
do Estado capitalista listribuição do material para as escolas.
Essa militância e os reiterados discursos homofóbicos do deputado
o que a atual crise política
foram fundamentais para lhe dar visibilidade e para aumentar sua base
tem a nos ensinar? de apoio popular em torno de um projeto autoritário-conservador. E
agora, como presidente, essa mesma postura continua a contribuir
RAFAEL DIAS TOIT/0 para a reprodução dessa base que, mesmo que relativamente peque-
na, t~m-se mostrado bastante fiel e coesa. Por outro lado, é preciso
A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 rom- considerar que as principais pautas do presidente Bolsonaro não se
peu, definitivamente, a relação do movimento LGBT com o Executivo. traduzem necessariamente em prioridade do governo batizado com
Essa relação, iniciada de forma tímida no governo Fernando Henrique seu nome. Quando candidato, tornou-se o principal representante
Cardoso e que conheceu o seu auge no governo Luís Inácio Lula da contrário ao conjunto dos movimentos e das ideias progressistas e de
Silva, estava enfraquecida desde o governo Dilma Rousseff, que em esquerda. Porém, a candidatura só ganhou chances reais de vencer as
grande medida procurou distanciar-se da pauta diante da ofensiva con- eleições quando assumiu a agenda do capital financeiro. E o início do
servadora organizada no Congresso Nacional pela Bancada Evangélica. governo Bolsonaro deixou evidente seu compromisso com essa agenda
Contudo, em alguns momentos, como em 2013 e em 2014, o governo (neoliberal) ao priorizar a aprovação da reforma da Previdência além
e a própria presidenta não hesitaram em defender publicamente as da promoção de privatizações, da retirada de direitos trabalhista~ e da
1-
co bandeiras e reivindicações LGBT, e mesmo o governo Michel Temer, ofensiva contra o sindicalismo. o
l.? que tinha na referida bancada uma das principais bases de apoio, Esse contexto traz uma série de desafios para a luta pela diversidade
...J
>-
não deixou de reconhecer e mesmo atender algumas pautas pontuais sexual e de gênero, sendo importante aprofundar a reflexão sobre as
<(
>- do movimento - em um contexto em que era imprescindível dar um formas de construir análises de conjuntura que informarão os cami- o
:::>
verniz democrático a um governo sem legitimidade. No governo Bol- nhos trilhados por ela. Cabe apontar que a grande maioria dos estudos 1-
sonaro, esse processo de recuos e avanços nas conquistas esgarçou-se brasileiros sobre a relação entre movimento LGBT, governo e Estado
o radicalmente, de tal modo que o próprio Executivo tornou-se agora o co~stituíram-se em um quadro teórico e metodológico que separava
l:
principal inimigo da luta pela diversidade sexual e de gênero. radicalmente cultura política de economia política, enfatizando apenas <(

X E não poderia ser diferente. Jair Bolsonaro encontrou na militân- a primeira e desconsiderando, quando não negando , a segunda. Con-
a: o
<( cia contra as políticas e os direitos LGBT a principal forma de obter tudo, a atual conjuntura, de bloqueio da pauta da diversidade sexual e
L de gênero no Executivo e no Legislativo e de ofensiva conservadora (o
visibilidade política nos anos que antecederam a 2018. Antes, era
considerado um deputado do "baixo clero" do Congresso Nacional, que enfraquece a forma de relação com o Estado pautada na "política
<(
V>
V>
conhecido por defender a ditadura militar e fazer apologia à violência
o e à violação de direitos fundamentais . Mas foi no enfrentamento às 1
Marcelo Godoy, "Um fantasma ronda o Planalto" , O Estado de S. Paulo, 2 abr. 2017, disponível <(
o online, acesso em 4 set. 2019. ex::

32 M ARG EM E SQUERDA 33
LUTA PELA DIVERSIDADE SEXUAL E D E GÊNERO DIANTE DO E STADO CAP I TALISTA
3
d id ntidad "), par riar paço me mo int ,11 dl Ili la 1· 1 ara a 11111 ,1 rn elida provisória criminalizando a homofobia, quando, após a
pr posição de outras perspectivas. Nesse sentido, m I as " na eco- 1.1 11 'aliza ão política de 2013, a presidenta passou a defender a impor-
nomia política marxista, gostaria de pontuar algumas qu stõ s sobre 1, 11 ' ia d uma lei específica? Seria para manter a governabilidade? Mas
o Estado que podem contribuir para a compreensão dos reveses da ria mantida em nome de quê e dos interesses de quais forças
luta pela diversidade sexual e de gênero no atual contexto. 1 e>líti as? A resposta a essas perguntas não se sustenta sem uma análise
No Brasil, o movimento (então) homossexual surgiu no fim dos i lu linâmica das classes sociais e dos conflitos por redistribuição que
anos 1970, muito marcado pela prática de auto-organização e por um ,11rav ssavam o governo, ou então cairíamos em uma análise idealista
debate crítico ao Estado repressor. Mas, sobretudo após o surgimento 1:i p lítica em que as formas de governabilidade teriam uma existência
da aids, ele acabou seguindo os passos da maioria dos outros movi- 1 1· 1 ria, supostamente fora dos conflitos entre grupos sociais concretos.
mentos sociais surgidos no mesmo período, voltando-se para o Estado vernabilidade sugere a formação de um arranjo cambiante de forças
e passando a disputar a construção de políticas sociais e de direitos 1 líticas, cujos conflitos e contradições se expressam, dentre outros
civis. Disputar a institucionalidade estatal tornou possível promover •I"mentos, no conteúdo das políticas econômicas e sociais. Desde o
ações e investidas contra questões e contradições sociais de forma lní io do Estado capitalista, a construção dessas políticas esteve intima-
ampla e disseminada - ainda que limitada - em âmbito local e nacional, m nte ligada à disputa pelos recursos socialmente produzidos e pela
uma vez que os aparelhos e funcionários do Estado estão amplamente f' rma de distribuí-los entre as diversas classes sociais e suas frações.
difundidos pelo país, e as regulamentações formais podem estabelecer Hoje, é esperado de um governo uma estratégia de desenvolvimento
certos limites à reprodução das diferentes desigualdades sociais. q ue faça crescer a economia e que seja capaz de garantir os recursos
Nessa disputa pelo Estado, o movimento muito pouco atentou n cessários ao funcionamento do Estado e à construção das políticas
para o fato de que esse Estado é capitalista, o que traz implicações ·conôrnicas e sociais. Contudo, com o restabelecimento da democra-
à sua atuação. Entre outros elementos, objetivamente isso significa ia formal no Brasil, uma diversidade de grupos e classes subalternos
que o funcionamento do Estado depende da acumulação capitalista. anhou espaço na ação estatal, tornando a disputa pelos recursos
Dessa maneira, um governo deve ter uma estratégia de desenvolvi- (materiais e simbólicos) ainda mais acirrada . O projeto neoliberal-
mento econômico, sustentada por uma determinada correlação de -conservador que atualmente orienta o governo Bolsonaro tem como
forças sociais, capaz de garantir a reprodução dos recursos materiais prioridade liberar ou mesmo transferir recursos públicos para o capital
e simbólicos a serem (desigualmente) distribuídos a um conjunto de financeiro. E isso drena a capacidade do Estado de desenvolver políti-
f--- classes e grupos sociais 2 • Diante disso, as políticas sociais se tornam as públicas, sendo uma ameaça tanto para o crescimento econômico o
co
t'.)
reféns do sucesso das políticas econômicas, ainda que as políticas quanto para uma diversidade de conquistas ligadas aos movimentos
t--
--' (sociais) redistributivas possam interferir em algum momento para o sociais e populares e que adquiriram algum espaço na institucionalidade
<(
crescimento econômico. Assim, se as questões da diversidade sexual política nas últimas décadas. o
t--
::,
e de gênero podem roubar de tempos em tempos a "cena" política, a Na perspectiva do movimento LGBT, a necessidade de disputar as f---
tendência, contudo, é de as pautas econômicas se sobressaírem - o orientações e ações do Estado reside no fato de que este, como um
que se evidencia particularmente em um período de crise. "aparelho especial" de poder, é capaz de interferir e regular a forma
o <(

I: Nessa perspectiva, é preciso questionar por que, mesmo em momen- de reprodução das relações de sexualidade e de gênero. Vale lembrar
tos de "estabilidade", o governo Dilma Rousseff se manteve distante das que o movimento LGBT conseguiu atuar não só sobre o Executivo, o o
X
"' pautas LGBT. Por que ele cedeu à chantagem da Bancada Evangélica Legislativo e o Judiciário, mas conseguiu incidir também em outros se-
<(

I: e cancelou a distribuição do kit do projeto Escola Sem Homofobia, tores, como escolas e universidades públicas, polícia e Exército, sistema
que era uma reivindicação do movimento? Ou por que não baixou de saúde, sistema de assistência social etc. 3. Contudo, a relação com
<(

2 3 Rafael Dias Toitio, Cores e contradições: a luta pela diversidade sexual e de gênero sob o neoli-
o Bob jessop, "Estratégias de acumulação, formas estatais e projetos hegemônicos", trad . Gilson <(

o Rodrigues de Almeida, Ideias, Campinas, ano 14, v. 1, n. 2, 2007, p. 1O1-35 . beralismo brasileiro (tese de doutorado em Ciências Sociais, Campinas, IFCH-Unicamp, 2016). a::

34 M ARGEM E SQUERDA 33 LUTA PELA DI V ERSIDADE SEXUA L E DE GÊNERO DIANTE DO ES TA D O CAPITALISTA 35


E tado não é uma simples relação entre agent ·statals • a nt -T rra, dis e-me, incomodado,"Não é cortina de fumaça!", ref rind -s
do movimento. Se a ação e a orientação estatais s d nv lv m de à forma p ela qual parte da esquerda classificava discursos e ações
acordo com uma determinada correlação de forças entr classes e 1 governo (e do presidente) Bolsonaro contra a pauta LGBT e que
grupos, voltar-se para o Estado é voltar-se para essa dinâmica. Como s rviriam, portanto, somente para esconder a truculência das reformas
resumiu Nicos Poulantzas: "o Estado interfere com sua ação e conse- desmontes neoliberais. "Não é cortina de fumaça, pois isso afeta
quências em todas as relações de poder a fim de lhes consignar uma diretamente nossas vidas! ", completou. De fato, essa fala faz coro com
pertinência de classe e inseri-las na trama dos poderes de classe"4 . a suspeita - a cada dia confirmada - de que os constantes discursos
Embora essa constatação possa ser lida de outras maneiras, com ela do representante político Jair Bolsonaro, que promovem a abjeção
é possível afirmar que, ao implementar um conjunto de medidas das expressões e vivências não heterossexistas, legitimam e incitam a
político-econômicas, o Estado acaba de fato atribuindo "significân- violência e os crimes LGBTfóbicos. Não foi à toa que houve um au-
cia" de classe aos demais movimentos e lutas sociais, uma vez que mento dos registros desses e de outros crimes de intolerância durante
as relações de classe têm centralidade na definição da "estratégia de as eleições. Ao mesmo tempo, o governo Bolsonaro está operando um
acumulação" e no desenvolvimento econômico e, com isso, na divisão desmonte das políticas, dos espaços de participação voltados para a
dos financiamentos e recursos públicos que priorizam determinadas população LGBT e de toda uma cultura institucional que se constituiu
classes e grupos em detrimentos de outros. com base em uma perspectiva histórica e científica da sexualidade e
Ao mesmo tempo, não se pode mais desconsiderar o fato de que, do gênero - e não mais pautada no positivismo ou no cristianismo,
embora o movimento LGBT não tenha se constituído em torno de uma responsáveis pela legitimação do heterossexismo.
questão de classe, ele não deixa de ser uma forma de organização das Assim, admitir que exista a tendência de as pautas e os interesses
classes trabalhadoras. No Brasil, esse movimento sempre foi construído de classe ganharem maior centralidade na "cena" política não significa
por trabalhadores e trabalhadoras. Ainda que algumas das principais menosprezar retrocessos de outros movimentos e reivindicações. No
lideranças pertencessem às "camadas médias", não deixavam de ser caso discutido, não o implica não só porque as derrotas da luta pela
trabalhadoras nem pertenciam à classe média tradicional. Quando o diversidade sexual e de gênero representam o fortalecimento da direi-
movimento mais cresceu em número de organizações, no fim dos 1990 ta reacionária, mas também porque a própria esquerda marxista tem
e começo dos anos 2000, como reflexo do aumento do financiamento mudado de posicionamento político e não mais silenciado sobre essa
público para as pautas da diversidade sexual e de gênero, muitos e luta. Ao mesmo tempo, a fração do movimento LGBT que se coloca a
1- muitas militantes passaram a trabalhar com as ações governamentais tarefa de disputar a ação estatal e os direitos civis precisa compreender o
co que essa disputa se dá na trama de um Estado atravessado pelos con-
l'.)
que envolviam a sociedade civil. Porém, hoje, a constituição do projeto
-' neoliberal-conservador tende a afetar o conjunto do movimento não flitos de classe. Se, no atual contexto de aliança entre neoliberalismo
<(
apenas porque ele é radicalmente avesso à pauta da diversidade, mas, e conservadorismo autoritário, lutar contra apenas um dos aspectos o
,- do projeto político do governo é um erro tático, este momento pode
:::,
também, porque tal projeto é a favor de retirar recursos das políticas 1-
sociais como um todo, além de continuar o desmonte dos direitos tra- ser único para essa fração se apropriar mais das disputas em torno
balhistas e sociais e o barateamento da força de trabalho, o que afeta, das questões de classe e de redistribuição econômica, afastando-se
o de diferentes formas, os sujeitos concretos que constroem o movimento. da alienação colocada pela hegemonia da "política de identidade". E
<(

I:
Reconhecer essas questões não implica, entretanto, validar leituras este momento pode também propiciar o aprofundamento da relação o
economicistas da realidade, tampouco decretar a prioridade da luta e ntre a luta das classes trabalhadoras e a luta pela diversidade sexual
de classes perante as outras lutas. Recentemente, o companheiro e de gênero, de modo a construir uma nova cultura política que po-
Alessandro Santos Mariano, liderança do Coletivo Nacional LGBT Sem- tencialize a articulação prática e teórica entre elas.

<(
o
o 4
Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo (Rio de Janeiro, Graal, 1980), p. 50. oc

36 MARGEM E SQUERDA 33 LUTA PELA DIVERSIDADE S E XUAL E DE GÊNERO DIANTE DO E STA DO CAPI T AL I STA 37
1 r ap resentar uma unidade teórica bem delimitada. Ao contrário: a
' ntribuições transfeministas são, nesse sentido, bastante diversas. O
l u confere ao transfe minis mo uma unidade enquanto corrente é a
a ão de sujeitos políticos que compartilham a identidade transexual,
travesti ou transgênera 2 e o referencial feminista. Identidade ocupa,
n sa discussão, papel fundamental, e merece destacada atenção.
Transfeminismo e São frequentes, dentro ~ fora do marxismo atual, as críticas às
hamadas "políticas de identidade" ou ao identitarismo de movimen-
construção revolucionária tos políticos. Surge também, na vulgarização dessa discussão, uma
falsa polêmica apoiada numa também falsa oposição entre "identi-
AMANDA PALHA dade" e "classe", que ofusca um conjunto de questões promissoras a
serem desenvolvidas na teoria e na prática anticapitalistas . É verdade
que a ação política que toma a identidade como meio e fim esbarra
no caráter eminentemente conservador que essa perspectiva traz: a
defesa da manutenção de uma identidade, como fim político, implica
a defesa da conservação das relações sociais que a produzem, bem
Pretendo, neste ensaio, trazer provocações e reflexões iniciais sobre como das fronteiras , materiais e simbólicas, que constituem sua di-
a pertinência de um olhar mais cuidadoso sobre as contribuições que ferenciação. É notório o quanto isso sabota qualquer perspectiva de
o transfeminismo pode trazer para a ação política marxista. Vale notar transformação sistêmica.
que isso não implica, para mim, considerar essa uma contribuição de Isso não é, no entanto, inerente à identidade, mas fruto do lugar
mão única: certamente, há muito o que o marxismo pode acrescer à dado a ela nesse tipo de ação. Outra maneira de lidar com a identida-
ação política transfeminista; esse movimento, no entanto, é tanto mais de é perceber e explorar sua potência para descrever e particularizar
frequentemente abordado e compreendido nos círculos de afinidade conjuntos específicos de relações e práticas sociais, das quais derivam
marxista quanto também mais confortável à arrogância intelectual que valores distintos e perspectivas potenciais específicas de compreen-
vem se mostrando tão frequente entre nós, principalmente quando o são de dimensões da realidade social. Tratar identidade dessa forma 3
1- assunto é as assim referidas "pautas identitárias". Proponho, portanto, inscreve as possibilidades de (1) desvelar o seu caráter histórico e
C(}

I_?
que abramos espaço ao desconforto, se necessário, a fim de navegar socialmente determinado, atravessando o véu da naturalização, e (2)
-' por controversas mas importantes águas. convertê-la em instrumento potente de ações políticas anticapitalistas.
V,

<(
É mais importante do que apenas isso, no entanto. Prescindir de
>-
:, Transfeminismo, identidade e política incorporar, na ação política marxista, essa perspectiva sobre as identi-
Por "transfeminismo" entendamos uma corrente específica do femi- dades (outras que a de classe), implica assumir dois riscos caros: deixar I
nismo contemporâneo, resultado da absorção das discussões feministas de alcançar compreensões mais ricas sobre dimensões específica do
o
l: por parte do movimento político de pessoas transexuais, travestis e
V,
a...
transgêneros1, que se constitui no contexto e no escopo da valorização
2
das identidades raciais e de gênero não hegemônicas (não brancas, Considerando que não caberia, neste trabalho, delongar-me na diferenciação desses três
conceitos, utilizarei a partir daqui o termo "pessoas trans" como termo genérico referindo-me
não heterossexuais, não cisgêneras) na ação e no pensar políticos o
ao grupo.
da esquerda. Conforma-se como corrente política, no entanto, não 3 z
Forma que Walter Mignolo, autor argentino não marxista, chama de "identidade em polí-
V, tica". Ver Walter D. Mignolo, "Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado
V,

de identidade em política", Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, r:


o
o 1 Ver os trabalhos de Jaqueline Gomes Jesus e Hailey "Kaas" Alves. n. 34, 2008, p. 287-324. <(

38 M ARGEM E SQUERDA 33 T RANSFEM I N I SMO E CONS TRU ÇÃO REV O L UC I ONÁR IA 39


pr prio capitali mo cont mporâneo e deixar d r nh '· ·r s limit na pr du ção teórica marxista brasileira, tenha se dedicado a tal inves-
que algumas identidades podem impor às análises qu faz m 1i a ão com mais afinco? Defendo que não, não só.
Cabe aqui um exemplo que me é caro. ompreendendo a dualidade complementar entre os lugares da
s posa e da puta como dois polos representativos do papel da mu-
O Pelourinho e as putas que faltavam lh r na organização capitalista e "apenas mediações diferentes para
O texto "Lênin e o movimento feminino", de Clara Zetkin, publicado ' l. afirmação do mesmo poder patriarcal que brota da propriedade
originalmente em 1920, é de amplo conhecimento entre marxistas. privada" 7 , a ausência da puta na discussão política torna as perspec-
Publicado em português pela primeira vez em 19564, ele traz trechos tivas da esposa referência única, implicando compreensões viciadas
comentados de cartas entre Lênin e Zetkin, em que os dois discutem nas variações de relações sociais que apenas esta representa, ou seja,
questões relativas aos movimentos de mulheres na Alemanha e no num grupo limitado (e identitariamente circunscrito) de experiências
mundo. Na correspondência, Lênin traça um breve comentário sobre com o trabalho, o gênero, o sexo, o corpo e o desejo.
a questão da organização de prostitutas: Tanto assim é que são dominantes, ainda, entre feministas marxistas,
Foi-me dito que uma comunista muito qualificada publica em Ham- posições políticas que recusam uma abordagem trabalhista sobre a
burgo um jornal para as prostitutas e tenta organizar essas mulheres questão da prostituição, frequentemente com o argumento irracional
para a luta revolucionária. [... ] São vítimas, antes de tudo , do maldito de que seria inadmissível, para marxistas, tratar corpo e sexo como
sistema da propriedade, depois do maldito moralismo hipócrita. [... ] não mercadorias. Para o silêncio sobre Der Pranger, opera um limite que
se trata de considerar as prostitutas como, por assim dizer, um setor é identitário, que se coloca quase incólume devido à ausência, na
especial da frente revolucionária e de publicar para elas um jornal es- discussão, de mulheres cujas relações sociais (e de trabalho) não
pecial. Será que não existem, talvez, na Alemanha, operárias industriais põem nenhuma dificuldade- mas, na verdade, a necessidade - para a
para organizar, para educar com um jornal , para arrastar à luta? Eis aí compreensão do ato e da satisfação sexuais nas suas formas mercantis,
um desvio mórbido.5 e cuja relação com essas mercadorias é a de produção.
Não se trata de discutir se a organização de caráter trabalhista de
A informação que destaquei refere-se a Ketty Guttmann, militante do prostitutas seria ou não por si só revolucionária. Nada, aliás, isolada-
Partido Comunista Alemão e cofundadora da Associação das Prostitutas mente o é. Trata-se de compreender do que abrimos mão quando na-
Legais de Hamburgo e Altona, organização de caráter trabalhista que turalizamos a ausência política da perspectiva da prostituta, nos termos
1- mantinha o jornal Der Pranger (alemão para "O Pelourinho"), escrito da dualidade anteriormente proposta, e recusamos aprofundamento
Cl'.l
C)
por e para prostitutas e de orientação política explicitamente comunista. na forma mercadoria da satisfação sexual e na forma trabalho do ato
__J É de se ponderar que tal associação e publicação tragam contribuições que a produz. Para uma teoria e uma prática críticas que se colocam
<(
importantes para a questão da prostituição no movimento comunista - em oposição a um sistema social que tem a mercadoria como célula-
t-
::,
é uma experiência digna, ao mínimo, de estudo mais cuidadoso. -tronco, que se desenvolve no sentido da mercantilização absoluta
Surpreende, então, que pesquisas pelo nome do jornal nas platafor- de todos os elementos da vida e em que o trabalho e suas relações
<(

I
mas Scielo e Google Acadêmico não retornem nenhum resultado em ocupam lugar central, essa é uma perda significativa que compromete
o .
português6 . Teriam o juízo de reprovação de Lênin e sua referência de seriamente a capacidade de uma abordagem crítica anticapitalista sobre <(

autoridade sido motivos suficientes para que virtualmente ninguém, o gênero alcançar suas pretendidas últimas consequências. e...
X
o::
<(
A contribuição, portanto, da organização de prostitutas não está na
<(

L mera "representatividade". Antes, reside nas questões, nos problemas


o
4
Clara Zetkin, "Lênin e o movimento feminino", em Vladímir llitch Lênin , O socialismo e a e nas discussões que a ação política sobre suas demandas, produzidas z
V,
emancipação da mulher (Rio de Janeiro, Vitória, 1956. <(
V, 5
Idem , cit. , grifos meus. :;:
o
o 6
Última pesquisa realizada em 18 de agosto de 2019. 7
Ver Sérgio Lessa, Abaixo a família monogâmica! (São Paulo, Instituto Lukács, 20 12), p. 8.

40 M ARGE M E SQUERDA 33 T RANSFEMINISMO E CONSTRUÇÃO REVOLUC I ONÁRIA 41


p r um conjunto p cífico e próprio de rela s > ·l:l ls, in p " ao tamb m b ssas determinações e parte desse movime nto
todo da luta, e das quais não pode prescindir. hi tórico qu as relações de parentesco se reconfiguraram em uma
É similar o que ocorre com as ações políticas transt mini tas - nova organização reprodutiva, nuclearizada na associação mínima
menos pelo que trazem de novo e mais pelo que impõem como necessária à garantia da reprodução biológica e da asseguração da
pressuposto e como relevante à discussão. hereditariedade: entre um corpo produtor de sêmen e um corpo capaz
de engravidar, associação que conhecemos na forma do par homem/
A ação política transfeminista mulher e que se consolida como a célula menor de garantia da re-
Como qualquer movimento popular que se organize a partir das produção social. Mais: porque a reprodução social não se restringe à
suas próprias demandas sociais mais imediatas, os movimentos de reprodução biológica, compreendendo um amplo leque de necessida-
pessoas trans têm como objeto primeiro a vulnerabilidade e a preca- des, trabalhos e atividades, termina, portanto, também parametrizada
rização das condições de vida da maior parte dessa população. Ainda e formalizada nos termos dessa associação. A divisão generificada do
que grande parte delas seja compartilhada com o movimento feminista trabalho implica, inclusive, a consolidação do gênero como caráter
mais amplo, seus problemas guardam também relação estreita com a indispensável da mercadoria força de trabalho e característica, por-
questão da ilegitimidade de suas relações com corpo, sexo e gênero, tanto, (1) criada pelos trabalhos que produzem esta mercadoria, e (2)
fazendo da busca pelo reconhecimento - pela legitimação dessas inscrita na dimensão do fetiche .
relações - ponto nodal de suas ações. Ela generaliza-se, assim, como um sistema simbólico que atravessa e
Apresenta-se aqui um problema delicado, similar ao abordado por participa da formalização de toda e qualquer relação dessa sociedade,
Butler sobre a questão da união civil homossexual8 : a busca do trânsito naturalizando a divisão generificada da espécie com base na referida
da ilegitimidade para a legitimidade só pode ser feita nos termos e regras divisão do trabalho como pressuposto no pensamento dos sujeitos
do sistema no qual ela se insere, de forma que seu pressuposto é o desse tempo. Dessa naturalização, cabe aqui destacar duas implicações.
"aceite", e mesmo a reiteração, das relações estruturantes desse sistema. A polarização homem/mulher, constituída pelqs relações sociais
Mais sério se apresenta o problema ao considerarmos que o siste- derivadas da divisão do trabalho produtivo/ reprodutivo, é interpretada
ma de gênero não é mero "apêndice residual" do modo de produção pela ciência capitalista (dimensão ideal) no conceito dicotômico de
capitalista, mas participa de sua gênese - e dizê-lo não implica negar "sexo", como forma de sistematizar, catalogar e explicar diferenças
a determinação da classe e das relações de trabalho, mas avançar na naturais entre os corpos.
1- compreensão de seu conteúdo, suas expressões e decorrências. Na forma de "fato natural", as variações biológicas da espécie, dico-
co tomizadas na noção de "sexo", passam a ser tratadas como produtoras
C)
_J Corpo, gênero e sexo das relações de gênero.
V,
O desenvolvimento do caráter privado da propriedade e da acu- Eis uma inversão de determinações, que, consonante com o idea-
<
1- mulação de riquezas, elementos próprios da constituição capitalista, lismo próprio da ideologia da sociedade burguesa, oculta as determi-
:>
... coordenou o deslocamento também para os âmbitos privado e in- nações e as mediações históricas e materiais do sistema de gênero, I
dividual de todas as atividades relacionadas à reprodução biológica "subsumindo-as numa conclusividade substantiva e autônoma" 9•
o e social. A generalização da garantia privada e individual tanto da <(

sobrevivência quanto do acúmulo de riquezas, junto à generalização Social e social Cl...

X
da mercadoria como mediadora da satisfação das necessidades, se- Com efeito, a noção de que relacionar sexo e gênero significa rela-
"'< <
r: dimentam e parametrizam, inclusive, a efetivação social das noções cionar um elemento natural a um social, com o segundo sendo produto
o
modernas de indivíduo. ou decorrência do primeiro, é frequentemente objeto de discussões z
V,
<
V,
9
o 8 Judith Butler, "O parentesco é sempre tido como heterossexual?" , trad. Valter Arcanjo da Ver José Paulo Netto, Capitalismo e reif,cação (São Paulo, Instituto Caio Prado Jr., 2015),
Cl Ponte, Cadernos Pagu , n. 21, 2003, p. 219-60. p. 74, referindo-se ao conceito de fetichismo em Marx. <(

42 M A RGEM E SQ U ERDA 33 T RA N S F E MIN ISMO E CO NS TRUÇÃO RE VO LU C I O N Ã RI A 43


t ri as f mi nistas, ja por ad são ou crítica. anh:,, n
ação cotidiana dos movimentos políticos (que, com dit r anizam-
-se a partir das suas demandas mais concretas e imediatas) f ministas,
caráter secundário, uma vez que aparece diante das necessidades ime-
diatas como uma discussão teórica de pouca aplicabilidade prática na
reivindicação de direitos e combate a violências. Essa mesma noção,
no entanto, impõe a impossibilidade de superar o interdito do fetiche Gênero e sexualidade
e alcançar a compreensão das determinações sociais e econômicas do
sistema capitalista de gênero. ascensão conservadora
É nesse ponto que a ação transfeminista guarda imensa potência. e fantasias masculinas
Ainda que na dimensão mais imediata sua busca pela legitimação im- de poder no Brasil
plique a afirmação do sistema de gênero, a ilegitimidade combatida
apoia-se justamente no caráter social-social da relação sexo-gênero.
ISADORA UNS FRANÇA
Combater a ilegitimidade do gênero reivindicado por pessoas trans
implica pôr sob os holofotes o que o fetiche encobre. Para os movi-
mentos sociais de pessoas trans, o caráter socialmente determinado
do sexo, bem como a natureza da sua relação com o gênero, ocupa
papel central. Gênero e sexualidade podem ser entendidos como categorias de
A ação política transfeminista, independente de intencionalidade, produção da diferença. Isso significa que apontam para a riqueza da
impõe aos movimentos feministas e socialistas dispostos à aproximação liversidade de corpos, desejos, prazeres e condutas - e para a relativa
a retomada e o dçstaque de uma chave teórica imprescindível para abertura à transformação que caracteriza nossas subjetividades, iden-
a construção de qualquer estratégia revolucionária que se pretenda tidades e experiências, das mais íntimas às mais públicas. Por outro
anticapitalista e que esteja disposta a tratar o gênero com a seriedade lado, apontam também para hierarquias e desigualdades, numa luta
que merece. constante entre o alargamento e o estreitamento de vidas e corpos
possíveis. Dizem não só de prazer, mas também de violência.
Além disso, apontam para campos de relações de poder sempre u-
1-
co
em disputa, para a regulação social e para os limites da norma que z
C)
..J pressupõe coerência entre sexo, corpo, gênero e desejo. "Menino a:
veste azul, menina veste rosa", como afirmou a ministra da Mulher,
Família e Direitos Humanos Damares Alves 1 , numa tradução infantil
da norma pela qual os sexos masculino e feminino são vistos como
opostos e complementares: correspondem a determinada configura- z
o
I:
ção física, suscitam determinados comportamentos e disposições e _J

dão ensejo a desejos e práticas sexuais em direção ao sexo "oposto".


X
"' Como toda norma, porém, essa também se explicita pelos seus limites.
<(

I: A diversidade de corpos, relações e sujeitos que habita nosso coti- a:

diano constantemente a desafia e expõe seu próprio caráter cultural. o


o
V\
V\

o
1
Clarissa Pains, "'Menino veste azul e menina veste rosa', diz Damares Alves em vídeo",
O Globo , 3 jan .2019, disponível online , acesso em 2 ago.2019.

4'1 M ARG EM E SQU ERDA 33 GÊ NERO SEXUA L IDADE 45


uv spaço para diálogo, eventualm nt Judith 13url ' r p d ria pnr:1 li putar o poder no Brasil, em meio a uma grave crise políti a
onversar nesses termos com aqueles que a atacaram m ua vi ita ao · · ' n mica. Também nos ajuda a compreender por que aquel
A

Brasil, em 2017, animados por medos e fantasias a respeito de uma .111 1 hado a políticas neoliberais, ainda que pouco afeitos ao discurso
uposta "ideologia de gênero", da qual a filósofa estadunidense seria til r li ta, não se importaram muito com essa estratégia, tolerada na
a principal expoente 2 • lll ' lida da sua utilidade para o aprofundamento dessas políticas no
Esse terreno das ansiedades, dos medos e das fantasias, contudo, l~ra il. Contudo, essa é apenas uma parte da história. A outra parte
não costuma ser o mais propício ao diálogo de ideias. É, porém, parte 1· ':-ii 1
. na articulação global de forças religiosas e políticas para conter
importante do modo como gênero e sexualidade operam na nossa so- > tímido avanço em termos de direitos sexuais e reprodutivos que
ciedade. A noção de "pânico moral" do sociólogo Stanley Cohen3 pode marcou o início deste século.
ser muito útil para entendermos como Jake news tão além do razoável, A falácia da disseminação de uma suposta "ideologia de gênero"
como a da distribuição de "mamadeiras de piroca"4 em escolas públicas, l ' m sido dispositivo integrante das escaladas conservadoras na Amé-
tiveram papel decisivo nas eleições que levaram a extrema-direita à ri a Latina e em outros países, como já têm abordado autores como
Presidência no Brasil. Cohen afirma que, de tempos em tempos, uma Mara Viveros Vigoya e Alejandro Rondón6 . Ela nasce em retaliação
condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge como ameaça a reconhecimento internacional de direitos relativos a gênero e a
a valores sociais. Armam-se barricadas morais e instaura-se um "caça às diversidade sexual e à atuação bem-sucedida de feministas e ativistas
bruxas". Tais pânicos podem ser passageiros, mas suas consequências LGBTI com vistas à construção de políticas públicas para a garantia de
infelizes são mais duradouras. Jeffrey Weeks e Gayle Rubin 5 destacaram direitos, para a redução das desigualdades e para o combate à violência
a peculiar centralidade que a sexualidade tem no surgimento desses contra mulheres e pessoas LGBTI. Incorporado na agenda política em
pânicos e o efeito de estreitamento do horizonte das políticas sexuais diversos países nas últimas décadas, o termo "gênero" passou a figurar
que eles tiveram em diversos momentos históricos, como no da Guerra em uma variedade de documentos e políticas públicas destinados à
Fria e no da emergência da epidemia de HIV/ aids. redução das desigualdades. Há, atualmente, uma reação clara a esses
Assim, a sexualidade - nas suas articulações com gênero - pode avanços, por mais parciais que tenham sido.
frequentemente estar no centro de ansiedades coletivas, sendo aqueles A noção de "ideologia de gênero" está relacionada a um novo ativis-
identificados como dissidentes sexuais os bodes expiatórios preferen- mo conservador, particularmente a partir da atuação da Igreja Católica
ciais. Ainda, quando se trata de medos e fantasias, os bodes expiatórios na defesa do que considera o papel "natural" de homens e mulheres
1- associam-se e multiplicam-se: comunistas, terroristas, estrangeiros, fe- na família e na reprodução . No limite, ela foi construída como denún- u,

co z
\.J
ministas, ativistas LGBTI... aparentemente, todos podem ser acusados cia de um suposto plano internacional levado a cabo por feministas
_, de participar de uma grande concertação destinada a corromper nossa e ativistas LGBTI para pôr fim à família e à diferença entre os sexos,
a:
V,

<(
sociedade nos seus valores mais caros. corrompendo particularmente as crianças. A estratégia levada a cabo LL
1-
::, Tudo isso nos auxilia a compreender como forças conservadoras e em publicações, discursos e redes sociais por atores religiosos com
de extrema-direita mobilizaram gênero e sexualidade como linguagem apoio de grupos conservadores mobilizou ansiedades e medos diante
daquilo que era desenhado como uma ameaça à própria sociedade z
o
:E como um todo a partir de sua categoria mais vulnerável: as crianças. _,
1
Moacyr Lopes Junior, "Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no No Brasil, a suposta "ideologia de gênero" circula entre ativistas,
X Brasil", Folho de S.Poulo, 9 set. 2017, disponível online, acesso em 2 ago. 2019.
a:
3
grupos e políticos católicos e evangélicos como um significante
<( Stanley Cohen, Fo/k Devils ond Moral Ponics (2. ed. , Londres, Routledge, 2002).
L 4
capaz de aglutinar posturas conservadoras em relação a gênero e a a:
Uma das insólitas foke news denunciava a distribuição nas escolas infantis de uma mamadeira o
sexualidade. Os primeiros anos desta década marcam a sua aparição
cujo bico tinha o formato de um pênis, e a associava aos governos do Partido dos Trabalhadores. o
5
Jeffrey Weeks, Sex, Politics ond Society: the Regulotion of Sexuolity since 1800 (4. ed., Nova
6
o York, Routledge, 2014); Gayle Rubin, Políticos do sexo (trad. Jamille Pinheiro Dias, São Paulo, Mara Viveros Vigoya e Manuel Alejandro Rodríguez Rondón, "Hacer y deshacer la ideología
o Ubu, 2017). de género", Sexuo/idod, Solud y Sociedod, n. 27, 2017, p. 118-27.

46 M ARG EM E SQU ERD A 33 GÊNERO SEXUAL I D·A D E 47


no d bate público nacional na articulação contra as dlr 'tri z 'S r !a- 1. nt peso simbólico que postulam o não reconhecimento de LGBTI
cionadas a gênero e sexualidade nos planos de edu a n s us mo sujeitos de direitos 9 e atacam a defesa da igualdade de gênero 1º
diferentes níveis. A exigência era a supressão das categorias gênero justamente no campo das propostas voltadas para o enfrentamento da
e orientação sexual, e, com elas, de políticas voltadas ao tema nas violência contra mulheres e LGBTI e para a promoção dos direitos e
escolas de todo o Brasil. Nesse momento, o combate contra a supos- a utonomia dessas populações.
ta "ideologia de gênero" foi capaz de criar uma aliança ampla entre No plano internacional, aos poucos o Brasil desloca-se de uma
políticos (religiosos ou não) de diversos partidos, padres, pastores e posição historicamente consolidada de consonância com as diretrizes
outros atores numa ação exitosa que acabou pela supressão dessas internacionais amplamente aceitas sobre a redução da desigualdade de
categorias7 • Acusados de serem "ideológicos", os estudos sobre gê- gênero e do reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos. Em
nero e sexualidade desenvolvidos por décadas no campo científico nota recente, a Associação Brasileira de Antropologia manifestou-se
foram desautorizados como se fossem opinião e não conhecimento contra as posições do Ministério de Relações Exteriores, que instruiu
consolidado a partir de pesquisas empíricas e rigor metodológico e o corpo diplomático brasileiro a evitar a palavra "gênero" e a solicitar
conceitua!, como argumentamos 8 • que, em discussões em fóruns multilaterais, reiterem que "o entendi-
Apesar de nos referirmos a ansiedades, fantasias, medos e pânicos mento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo
em relação a gênero e sexualidade, tratamos, portanto, de efeitos muito biológico: feminino ou masculino". Afirmação que, diga-se, ;ão faz
materiais em termos de políticas públicas. Ao mesmo tempo, esses qualquer sentido do ponto de vista dos estudos de gênero e sexua-
sentimentos e emoções não são exatamente espontâneos, mas ligados lidade. Ainda, a nota também destaca que o governo Bolsonaro se
às iniciativas de atores sociais e políticos bem definidos. Uma leitura absteve em votação de resolução no Conselho Econômico e Social da
do nosso processo político recente encontra gênero e sexualidade no Organização das Nações Unidas (ONU) com vistas a garantir a "saúde
centro de estratégias discursivas conservadoras que foram fundamentais sexual e reprodutiva" de pessoas afetadas por crises humanitárias 11 .
para o resultado das eleições presidenciais de 2018 e para a chegada Em uma dimensão profundamente relacional, ao passo em que
da extrema-direita ao poder. Ao ocupar esse espaço, as pautas con- o governo Bolsonaro constrói a "Nação", para dentro e para fora de
servadoras seguem tendo importante papel no governo, mobilizando suas fronteiras, em contraposição ao reconhecimento de mulheres e
sua base social. Junto com elas, caminha uma agenda neoliberal de de LGBTI como sujeitos de direito, a própria figura do presidente, por
redução dos direitos dos trabalhadores, ataque à previdência social, oposição, traduz-se numa masculinidade relacionada ao autoritarismo, <(

f- privatização, punitivismo e encarceramento. à violência e à guerra, expressos nos discursos, nas políticas, na estética u,
C(l

l.'.)
Presenciamos já no início do governo Bolsonaro o desmonte de es- z
_J
truturas administrativas voltadas para a promoção de políticas públicas 9 <(
Diante da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de criminalizar a homofobia,
para mulheres e pessoas LGBTI, em meio a um discurso assistencia- Bolsonaro declarou: "Com todo respeito, mas decisão do Supremo é completamente equivocada.
o:

lista e à defesa de uma visão bastante restrita sobre o que se define Além de estar legislando, está aprofundando a luta de classes"; ver Pedro Rafael Vilela, "Bolsonaro
LL

como família, cuja proteção o Estado deve promover. Tal política de critica decisão do STF de criminalizar a homofobia", Agência Brasil, 14 jun.2019, disponível online,
destruição se faz acompanhar de declarações governamentais de evi- acesso em 2 ago. 2019. Em que pese o legítimo debate sobre o fortalecimento do desigual e
violento sistema de justiça criminal em relação à equiparação da homofobia ao crime de racismo, z
o
:;: a declaração de Bolsonaro não foi feita nessa linha, expressando apenas seu não reconhecimento
_J
de LGBTI como sujeitos de direitos.
X
7
o: Ver Regina Facchini e Julian Rodrigues, "'Ideologia de gênero', atores e direitos em disputa: 'º Em 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, a ministra declarou-se contrária a
<( <(
uma análise sobre o processo de aprovação do Plano Nacional de Educação (2013-201 S)", em discursos pela igualdade de gênero. Ver "Damares diz que governo ensinará meninos a dar flores
L o:
Alice Lopes et ai., Os gêneros da escola e o (im)possível silenciamento da diferença no currículo e abrir porta para mulheres", O Estado de S. Paulo, 8 mar. 2019, disponível online, acesso em
(Recife, Editora da UFPE, 2018), p. 87-126. 6 set. 2019. o
8 11 o
Sérgio Carrara, lsadora Lins França e Júlio Assis Simões, "Conhecimento e práticas científicas Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e seu Comitê Gênero e Sexualidade, "Nota de repúdio <(
o na esfera pública: antropologia, gênero e sexualidade", Revista de Antropologia da USP , São Paulo, da ABA aos novos ataques do governo Bolsonaro aos direitos humanos e a questões de gênero e
o V. 61 , n. 1, 20 18, p. 71-82 .
sexualidade na ONU", ABA, São Paulo, 28 jun. 2019, disponível online, acesso 2 ago. 2019.

48 M A R· G E M E SQU E RDA 33 GÊN ERO SEXUA LID ADE ,,i.9


na estrutura institucional do governo. Estamo aqui n:1
si ão de mensagens envolvendo a operação Lava Jato e o então juiz
domínios do gênero e da sexualidade, mas na sua inter.,"'-'>-ª''"' m na- 17
rgio Moro . Por força do contexto político, o jornalista encontrou-
ção, classe social e raça: trata-se da produção de uma fantasia nacional
imediatamente interpelado pela portaria 666, embora o presidente
de masculinidade que opera no seu cerne como branca e colonizadora nha se apressado a separar as coisas:
e que tem efeitos muito reais na criação e manutenção de "mundos da
morte" 12 também para as populações indígena, pobre, negra e imigrante. Ele [Glenn Greenwald] não se encaixa na portaria, até porque ele é ca-
No campo das políticas migratórias, as disposições autoritárias do go- sado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro,
verno reverberam em políticas securitárias e de fechamento de fronteiras, malandro, para evitar um problema desse, casa com outro malandro e
como já sinalizou a retirada do Brasil do Pacto Global de Migrações da adota criança no Brasil. Esse é o problema que nós temos. Ele não vai
ONU 13 • Um sinal ainda mais grave é a publicação da portaria 666/2019, embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não
editada pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro, que dispõe sobre o "im- vai pegar lá fora, não.
pedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa Não cabem aqui especulações sobre a publicação da portaria e a
perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos situação do jornalista. O que vale sublinhar é a invalidação e o me-
dispostos na Constituição Federal"14 , à revelia da perspectiva assumida nosprezo do casamento entre dois homens, sendo um deles nascido
pela Nova Lei de Migração, de 2017 15 . Para imigran~es e refugiados no em outro país, e da adoção de duas crianças pelo casal: incapaz do
Brasil, sobretudo para aqueles vindos de países de Africa e da América reconhecimento de uma relação amorosa e familiar envolvendo um
Latina e Caribe, a portaria significa o aumento da fragilidade a que já casal do mesmo sexo, resta a acusação.
se encontram rotineiramente submetidos em nosso país. Essas posições Esse é mais um aspecto da intrincada trama pela qual gênero e
podem ser mais uma vez interpretadas como "fantasias masculinas de sexualidade emergem simbolicamente na ascensão de um governo
poder"16 que se revelam na posse do território e na violência exercida de extrema-direita no Brasil. Este texto traz uma breve leitura desse
sobre "inimigos", "estrangeiros perigosos", feministas e LGBTI. processo, indicando, ao mesmo tempo, seus efeitos muito materiais,
Pois o acaso quis, em meio a essa conjuntura, que um jornalista particularmente para mulheres e LGBTI, que já se apresentam na
estadunidense gay condensasse em sua figura alguns dos "perigos à forma de desmonte das redes de proteção e dos direitos e de posi-
Nação", atuando como fonte de desgaste ao governo, através da ex- ções internacionais conservadoras. Há, por fim, um último efeito que
é preciso enfatizar: o estreitamento dos horizontes de liberdade na
l- nossa sociedade significa também a fragilização de mulheres, LGBTI,
a'.) 12
A expressão é de Achille Mbembe em Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,
l.'.) pobres, negros, indígenas, imigrantes e outros sujeitos que, quando z
_J política da morte (trad. Renata Santini, São Paulo, n-1 edições, 2018).
13
não simplesmente expostos à violência ou impedidos de ter acesso a
Reuters, "Brasil deixa Pacto Global de Migração da ONU", Folha de S.Paulo , 8 jan . 2019,
<(
... disponível online, acesso 2 ago. 2019. melhores condições de vida, sofrem diretamente a própria violência a:
u.
::, 14
A referida portaria, de 25 de julho de 2019, pode ser acessada no Diário Oficial de 26 jul.20 1_9,
do Estado. Fortalecer os espaços de solidariedade e de luta para que
disponível online, acesso em 5 set. 2019. O Comitê de Migrações e Deslocamentos daAssooa- essas vidas possam vicejar, perdurar e transformar esse mundo é, no
o ção Brasileira de Antropologia publicou uma nota sobre a portaria nesse mesmo dia, disponível Brasil de hoje, uma tarefa urgente. z
I: online, acesso em 2 ago.2019.
V>
15
A Lei n. 13445, de 24 de maio de 2017, tende a considerar o imigrante como sujeito de direi- _J
X
a: tos, colocando em desuso o "Estatuto do Estrangeiro", vigente desde a ditadura e que recusava
<(
direitos aos imigrantes no Brasil. Disponível online, acesso em 2 ago. 2019.
L
16 a:
Tomo de empréstimo aformulação de Anne McClintock em referência às ideias de Edward Said.
A autora argumenta que gênero é "dinâmica constitutiva do poder imperial e do anti-imperial", o
V,
lamentando que Said não tenha explorado sistematicamente essa dimensão sugerida por seu 17 o
V> Glenn Greenwald , Betsy Reed e Leandro Demori, "Como e por que o lntercept está
o trabalho. Anne McClintock, Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial (trad.
publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sergio Moro", The lntercept Brasil, 9 jun. 2019,
a Plínio Dentzen, Campinas, Editora da Unicamp, 201 O), p. 35-6. disponível online, acesso 2 ago.2019.

50 MARGEM E SQUERDA 33
G N E R O S E XUA LID ADE
51
ARTIGOS

Justiça para comunidades lésbicas,


gays, bissexuais e transgêneras
ANGELA DAVIS

Agradeço aos organizadores da Midwest Bisexual Lesbian Gay


Transgender Ally College Conference por me convidarem a proferir
esta fala de encerramento*. Cheguei ontem a tempo de me encontrar
com alguns dos organizadores da conferência - Oliver, o orador con-
vidado; Sara Clemons, que me apresentou; e Treva. Nos elevadores,
esbarrei com conhecidos, da Grinnell College, por exemplo. Também
estive no show das Las Krudas, e era claramente a pessoa mais velha lá.
Sei que o tema da conferência deste ano é "Votando por mudança:
liberdade e justiça para todos" . Dado o debate em curso no contexto
da atual campanha eleitoral a respeito do significado da mudança
ao final de oito anos de gestão Bush, esse é um tema bastante ade-
quado. Mas temo que os últimos sete anos e meio nos deixaram tão
desnorteados que até mesmo mudanças imperceptíveis parecem ter
enormes consequências. Não nos subestimemos. Ouvi muitos comen-
tários acerca da inteligência dos candidatos de ambos os partidos. Não
que eles não sejam inteligentes, mas, sem querer desmerecer esses >
indivíduos, a bem da verdade, em comparação com George W. Bush, <
quase qualquer um pareceria "muito inteligente". o

* Este texto foi feito a partir de uma transcrição da fala de encerramento de Angela Davis na
Midwest Bisexual Lesbian Gay Transgender Ally College Conference (MBLGTACC), realizada
na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign no dia 24 de fevereiro de 2008, e integra
o livro O significado da liberdade, de Angela Davis (São Paulo, Boitempo, no prelo). A tradução z
é de Artur Renzo. (N . E.).

JUSTIÇA PA R A COMUN I DAD E S LÉS B ICAS , GAYS , B IS SEXUAIS E T RANSG ÊNER AS 53


Ao no d pararmo diante de todos o probl mas 1u ' ass Iam d sobedi ~ n ia ivil, batalhado e exercido sua influência para remoldar
rto sas vidas e o mundo, da assim chamada guerra ao t rr r ' div r- as relações humanas, nosso mundo seria muito mais empobrecido
8as manifestações de racismo, tanto as sutis quanto as viol ntas, até material e espiritualmente, e nós certamente não seríamos capazes de
c>S ataques a comunidades lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras, seguir em frente hoje. Movimentos estudantis, movimentos por direitos
1>assando por investidas contra nossos direitos a educação e pela ne- civis, movimentos antiguerra, movimentos de mulheres, movimentos
~ação de atendimento de saúde para números cada vez maiores de de gays e lésbicas, movimentos de solidariedade com as lutas de li-
1>essoas - reconhecemos todas essas questões -, precisamos de espe- bertação nacional na África, na Ásia, no Oriente Médio, na América
rança, precisamos de imaginação, precisamos de comunidades de luta, Latina: todos esses movimentos contribuíram de forma imensurável
1>recisamos perceber que a mudança é de fato possível. para fazer de nosso mundo um lugar mais justo.
Como sabemos que a mudança é possível? Ela é possível porque, Por mais desanimadoras que possam parecer nossas circunstâncias
1,or mais horrendas que as coisas possam parecer hoje, estamos vi- contemporâneas, reconheçamos que as coisas poderiam ser muito
,.;endo em um mundo moldado pela transformação. Por mais difíceis piores do que são. E mais: se não fosse por todas as lutas de massa
ctue sejam as condições para as pessoas de cor neste país, elas certa- do passado, é possível que sequer tivéssemos a força de imaginação
p1ente seriam piores se as pessoas comuns não tivessem aprendido a para apreender que nossa ação coletiva pode de fato produzir trans-
se identificar com comunidades de luta, se não tivessem aprendido formações radicais. E vejo a geração de vocês erguendo uma nova
a imaginar um mundo diferente e melhor. bandeira e nos movendo adiante.
Por mais difíceis que sejam as condições para jovens lésbicas, gays, Estamos vivendo em um mundo que não precisava ter chegado
J;issexuais e transgêneras - e às vezes a identificação sexual ou de a este ponto. A guerra no Iraque não precisava ter ocorrido. George
gênero de alguém pode ser uma questão de vida ou morte -, ainda Bush não precisava ter sido eleito - ele não foi eleito! Como seria o
assim, ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos, corajosos defen- mundo hoje, quais seriam as perspectivas de democracia se ex-presos
sores dos direitos LGBT nos conduziram na direção de um mundo tivessem o direito ao voto nas eleições de 2000?
n1elhor. O ponto é que as pessoas se mobilizaram coletivamente e O voto é um importante direito civil. Mas temo que se nossa energia
em massa pela mudança, e o mundo em que vivemos hoje, por mais política progressista estiver tão estreitamente concentrada nas eleições,
çue diversos problemas persistam, é resultado daqueles movimentos. podemos acabar esquecendo que há outras formas coletivas de interven-
Penso no meu próprio passado como ativista, no meu envolvimento ção política. Então, embora precisemos, absolutamente, acelerar nosso
c0m comunidades de jovens que verdadeiramente acreditavam que envolvimento no processo eleitoral - e podemos, de fato , votar para
era possível acabar com a guerra e com o racismo, e às vezes me mudar-, votar para mudar é só o começo. A participação nas eleições
i:ergunto se nós que lutamos tão obstinadamente pela paz, pela justi- em todos os níveis precisa ser complementada por um envolvimento
ça e por mundos melhores poderíamos de alguma forma ter previsto contínuo em movimentos sociais, e com um enfoque não apenas em
que quatro décadas depois estaríamos enfrentando uma máquina de questões especificamente LGBT, mas também em ativismo antirracista e
guerra ainda mais implacável. Será que tínhamos condições de prever antimachista, em direitos dos imigrantes, em ativismo antiguerra, pelos
a globalização da pobreza e do racismo que experienciamos hoje? direitos dos prisioneiros, contra a privatização, por direitos trabalhistas, >
5'=rá que era possível ter antevisto a transmutação da retórica e das por justiça ambiental etc. e também aprendendo como reconhecer e
yiolências do anticomunismo em uma guerra global travada sob o formular as profundas conexões entre todas essas questões. o
i:retexto de vencer o terrorismo? Portanto, a palavra de ordem "votar para mudar" precisa ser com-
o Será que tínhamos como prever o surgimento de um violento plementada com a defesa da necessidade de mudança - mudanças <(

r,eoconservadorismo que se alimenta de supremacia branca, do radicais - e com mobilização política nesse sentido. Não quero pa-
p1triarcado, da xenofobia, da islamofobia e do heterossexismo? Pro- recer estar subestimando o poder do voto, especialmente visto que
>- CJ
v3.velmente não. Mas uma coisa é certa: se as lutas do passado não as estratégias legislativas tem se mostrado fundamentais na busca
a: z
<( wessem ocorrido, se as pessoas não tivessem erguido a voz, cometido por justiça para comunidades LGBT. No entanto, mesmo precisando <(

54 f"ARGEM E SQUE RD A 33 JU S T IÇA PARA COMUN ID ADES LÉ SBICAS, GAYS , B I SSEXUA I S E TRANSGÊNER AS
55
desesperadamente dos remédios e das proteções qu p ssa m r ga- problemas continuarão a se proliferar, e seguirão sendo reproduzido
rantidos pela lei, não podemos depender apenas da lei m solução p lo sistema carcerário. A prisão é um dos principais aparatos ins-
para o problema da homofobia. titucionais de generificação, ela estimula e depende da homofobia.
Em Oxnard, na Califórnia, pouco menos de duas semanas atrás, Sei que o nome de Martin Luther King foi evocado em diversas
um menino de quinze anos de idade chamado Lawrence King foi ocasiões durante esta conferência. Este é o Mês da História Negra*;
assassinado por um colega de sala depois de ter se assumido publi- preocupa-me que nossa memória histórica popular tenha se tornado
camente em seu colégio. Ele havia sofrido bullying por parte de um tão superficial a ponto de o nome de Martin Luther King passar a
grupo de meninos depois de ter começado a usar salto alto e batom ocupar o lugar de uma história muito mais complicada do que o seu
na escola. O menino que o matou tinha apenas catorze anos de idade. sonho. A popularização de Martin Luther King contribuiu ainda mais
Aparentemente, ele entrou no laboratório de informática da escola, para a amnésia histórica deste país.
onde Lawrence King estava estudando, e lhe deu um tiro na cabeça. Um dos conselheiros de maior confiança de Martin Luther King, o
Essa tragédia tem tantas dimensões além da morte horrenda e homem que o introduziu ao conceito ghandiano de resistância não
desnecessária de um jovem menino. Segundo o New York Times, ele violenta, o homem que foi um dos grandes organizadores da Marcha
estava vivendo em um abrigo coletivo para crianças adotivas abusadas. sobre Washington de 1963, foi Bayard Rustin, um homem negro que
O menino de catorze anos que o matou será julgado como adulto - era abertamente gay antes do surgimento do movimento de libertação
como se ele possuísse a capacidade de agência individual para decidir gay. Bayard Rustin também havia sido membro do Partido Comunista.
por conta própria que pessoas homossexuais e transgêneras são tão Rustin foi atacado pelo senador Strom Thurmond como sendo um
repulsivas que não merecem viver. De onde será que ele tirou essa "comunista homossexual que fugiu do serviço militar". Embora dr. King
ideia? A atribuição de culpa absoluta ao indivíduo nesse caso segue fosse consistente e principiado em seu apoio a Bayard Rustin, outros
a mesma lógica que permitiu que o governo dos Estados Unidos e líderes, incluindo Roy Wilkins, então diretor da NAACP, se recusaram
suas forças militares deslocassem a responsabilidade pelas horrendas a permitir que Rustin fosse creditado pela suas contribuições para a
torturas sexuais realizadas em Abu Graib a um pequeno número de organização daquela que permanece a manifestação histórica mais
indivíduos, a "umas minoria de maçãs podres". famosa de Washington. Foi naquela marcha que o dr. King proferiu
No caso de Lawrence King, o assassino será julgado por crime de seu discurso "I Have a Dream" [Eu tenho um sonho] .
ódio e, se for condenado, será sentenciado de 52 anos de prisão a Dois anos depois, em março de 1965, dr. King publicou um artigo
prisão perpétua*. Esse menino será o bode expiatório de uma socie- no New York Times intitulado "Civil Right n. 1: The Right to Vote"
dade heteronormativa e de um governo profundamente homofóbico, [Direito civil n . 1: O direito ao voto]. No dia seguinte, o presidente
e essa homofobia continuará. Lyndon Johnson realizou um pronunciamento sobre o projeto de lei
Além disso, se dependermos do sistema prisional para resolver o dos direitos de voto [ Voting Rights Bill], que foi depois aprovado no dia
problema da homofobia, estamo-nos amparando em um sistema que 6 de agosto**. Esse deve ter sido um dos momentos aos quais Hillary
é cúmplice no processo que tornou a homofobia algo socialmente Clinton se referia quando disse que foi necessário um presidente para
aceitável. Se dependermos da instituição prisional como modo primário realizar os ideais do dr. King.
de abordar os problemas sociais que levam as pessoas à prisão, esses >

o
* Nos Estados Unidos, desde os anos 1970, celebra-se, ao longo de todo o mês de outubro,
o * Após uma série de atrasos e um julgamento anulado, os promotores retiraram a acusação de o Block History Month. (N. T.)
<
crime de ódio para reabrir o processo contra Brandon Mclnerney. Tendo se confessado culpado ** Martin Luther KingJr., "Civil Right n. 1: The Right to Vote", The New York Times, 14 mar. 1965.
de assassinato em segundo grau, homicídio voluntário e uso de uma arma de fogo, o jovem foi Realizado no dia 15 de março, o discurso de Johnson ao congresso sobre o direito ao voto foi
sentenciado no dia 19 de dezembro de 20 11a 21 anos de prisão, a serem cumpridos inicialmente transmitido ao vivo em rede televisiva nacional. A transcrição completa está disponível em Public ..,
em um centro de detenção juvenil, e, subsequentemente, em uma prisão, após completar seus Popers of the Presidents of the United States: Lyndon B. johnson , 1965, v. 1, entrada 107 (Wash- L
dezoito anos de idade. (N. T.) ington , D.C., Government Printing Office , 1966), p. 281 -7. (N . E.)

M ARGEM E SQU ERD A 33 J USTIÇA PARA COMUNIDADES L ÉSB I CAS , GAYS , B I SSEXUA I S E TRAN SG tNrRII ',
Em primeiro lugar, o movime nto por direito 1v1s ta muit ai m Com a exceção dos estados de Maine e de Vermont, o pr idiá-
de um único líder. Milhares e milhares de pessoas anônima apren- rios nos Estados Unidos não têm direito ao voto. Em muitos estad
deram a imaginar um mundo radicalmente transformado. King deu X-condenados também não podem votar. A negação do direito a
uma expressão às aspirações delas, e pessoas como Bayard Rustin voto para condenados é um dos principais motivos de Bush ter saído
ajudaram a traduzir essas aspirações na forma de um movimento. Essa vitorioso nas eleições de 2000 .
é a história que é apagada pela redução do movimento por direitos Não quero subestimar a importância dos direitos civis, dos direitos
civis a um único nome: Martin Luther King. da cidadania, mas neste país os direitos da cidadania são elaborados
Talvez Clinton estivesse implicitamente fazendo uma comparação de maneira muito estreita e formalista. Nos Estados Unidos, os direitos
entre Obama e o dr. King - obviamente ele ouviu com muita atenção tendem a ser separados do acesso aos recursos que precisaríamos para
os discursos de King-, e entre ela e Johnson*. gozar de tais direitos. O direito de ser livre de discriminação no local
Por que nenhum partido gastou muito tempo discutindo o estado de trabalho-que ainda não está garantido a comunidades LGBT-foi
atual dos direitos civis? Algum dos dois insistirá na inclusão de pes- desvinculado do próprio direito a um emprego. Elimina-se a discrimi-
soas transgêneras? nação de moradia, mas não se garante o direito a moradia a um preço
Há um elo direto entre as lutas históricas por direitos civis para acessível. Há atendimento à saúde, mas não o direito à saúde pública
pessoas de ascendência africana neste país e as lutas contemporâneas gratuita. Há educação, mas não o direito à educação pública gratuita.
por direitos civis para comunidades LG BT. Isso significa que preci- Quatro décadas atrás, desenvolveu-se um debate entre Martin Luther
samos erguer a voz contra os esforços dos evangélicos negros que King e Malcolm X em torno das questões de direitos civis e direitos hu-
se recusam a reconhecer as conexões entre as lutas históricas por manos. Surgiu uma bizarra situação legal durante a luta por direitos civis:
direitos civis para pessoas negras e as lutas atuais pelos direitos civis ativistas desse movimento foram assassinados, mas os estados do Sul
das comunidades LGBT. se recusaram a abrir processos por seus assassinatos. O único caminho
Se levarmos a sério os direitos civis, não podemos sustentar que o para garantir os processos: lei federal de direitos civis.
movimento em sua defesa se encerrou e que estaríamos hoje numa era Quarenta anos atrás, Malcolm defendeu que expandíssemos nossa
pós-direitos civis ou pós-racial. Muitíssimas pessoas são privadas do perspectiva dos direitos civis pará a dos direitos humanos. Contundo,
exercício de seus direitos civis e exiladas às margens da esfera políti- ainda não desenvolvemos um discurso que nos permita identificar e
ca. Comunidades LGBT não gozam das plenas proteções dos direitos construir movimentos contra as extensas violações de direitos humanos
civis. São negadas a comunidades de imigrantes, especialmente de cometidas neste país. Assim, a tortura não constitui uma violação de
imigrantes não documentados, as proteções dos direitos civis. Milhões direitos humanos; o assassinato de Lawrence King não configura uma
de detentos e ex-detentos têm seus direitos civis negados. violação de direitos humanos.
Agora, gostaria de me debruçar brevemente sobre duas das mais
* A autora refere-se, aqui, à troca de farpas ocorrida no mês anterior entre os então senadores salientes questões de direitos civis que vêm mobilizando comuni-
Hillary Clinton e Barack Obama, no contexto da disputa no interior do Partido Democrata pela dades LGBT e seus aliados. A primeira é a questão da igualdade de
nomeação para a candidatura presidencial para as eleições de 2008. No dia 7 de janeiro, Clinton casamento, e a segunda é a questão da igualdade no serviço militar.
>
afirmou: "Eu apontaria para o fato de que o sonho do dr. King começou a ser realizado quando o Ao refletirmos sobre o argumento formal a respeito de igualdade <
presidente [Lyndon B.] Johnson aprovou o Civil Rights Act de 1964, quando foi capaz de garantir
aprovação no Congresso para algo que o presidente Kennedy tinha a esperança de fazer, que
de gênero e de sexo no serviço militar, devemo-nos perguntar por o
o presidente anterior não havia nem tentado, mas foi necessário um presidente para que fosse q ue estamos inclinados a nos apoiar na lógica abstrata - igualdade
o feito", e acrescentou: "aquele sonho se tornou uma realidade, o poder daquele sonho tornou-se entendida como acesso igual, acesso igual de pessoas de cor ao serviço <
real nas vidas das pessoas porque tínhamos um presidente que disse 'nós vamos fazer isso ', e, de militar, acesso igual de mulheres ao combate, acesso igual de gays e
fato, o fez". Para muitos, ficou mais do que evidente a comparação com seu principal adversário lésbicas ao Exército.
t- no processo das primárias, deflagrado oficialmente poucos dias antes. Ver Patrick Healy e Jeff
a: Zelenyjan, "Clinton and Obama Spar Over Remark About Dr. King", The New York Times, 13 jan. Embora eu jamais sugenna que essas lutas em torno de igual- z
<( 2008 . (N. T) dade formal não tenham sua importância, é igualmente importante <(

58 M ARGEM E SQU E RDA 33 J US TIÇA PARA CO MUN I DADES LÉSBICA S, GAYS, BISSE XUAIS E TRAN SGÊNERA S
considerar aquilo a que os grupos sub-repr s nta I s cJ ' mandam 4. Acreditamos e m m bilização não violenta de base que empodera indiví-
acesso. Eu pensaria que tais demandas "democráticas" tamb m t riam duos e constrói um movimento social que cria transformações duradouras .
de considerar o caráter profundamente antidemocrático da instituição.
Assim, eles repudiaram publicamente a performance feita por
~elhor seria o direito igual de recusa do serviço militar - para ho-
um homem branco gay durante a última Derby em uma boate local.
mens brancos, mulheres brancas, mulheres e homens de cor, e gays
Esse homem, Chuck Knipp, se montou com um blackface e roupas
e lésbicas de todos os contextos raciais e étnicos.
de mulher para retratar uma mãe negra assistida pelo Estado chamada
Os debates em torno do casamento gay requerem uma abordagem
mais complexa. As estruturas de heteronormatividade e as diversas Shirley Q . Liquor, com dezenove filhos, cujos nomes eram marcas de
violências que essas estruturas e discursos implicam não desaparecem licor de malte e doenças venéreas*. Aparentemente, os apoiadores da
necessariamente quando a sexualidade dos participantes é outra . Não Fairness foram criticados por algumas pessoas por não serem "gays"
estou sugerindo que não devamos reivindicar o direito de que gays e o suficiente. Afinal, era tudo brincadeira.
lésbicas possam incorrer nessa prática, mas também precisamos refletir Se Don Imus, Michael Richards e Kelly Tilghman são publicamente
sobre a própria instituição. Trata-se de uma instituição econômica: criticados por conta de seus comentários racistas, então não deveria
ela diz respeito à propriedade, não às relações humanas, tampouco haver uma resistência ainda mais veemente a esse tipo de humor ra-
relações íntimas. cista quando ele busca passar-se por cultura popular gay?
O que significa reivindicar o direito igual ao casamento sem re- Há muito mais a ser dito, mas pensei em concluir compartilhan-
conhecer o papel que o casamento desempenhou na reprodução do com vocês um poema intitulado "Where do you go to become a
de desigualdades de raça e gênero? Sob condições de democracia non-citizen?", que foi bastante popular em círculos queer de cor na
burguesa, o casamento sempre foi uma instituição machista, racista e década de 1980 na região da Baía de São Francisco. Foi escrito por
heterossexista que diz respeito principalmente à acumulação e distri- Pat Parker, uma poeta negra, feminista e lésbica que faleceu em 1989,
buição de propriedade. e integra sua antologia Movement in Black.
Pessoas escravizadas não podiam casar, e quando surgiam con- Visto que muitos de vocês não eram nascidos quando ela escreveu
figurações familiares que não correspondiam ao padrão da família esse poema, é provável que não captem as referências históricas. Mas
nuclear, implementavam-se ideologias racistas complexas a fim de isso não significa que ela e sua abordagem feminista interseccional
consolidar ainda mais as hierarquias raciais. Vivemos com essas ideo- transversal não deveria fazer parte da memória histó;ica de vocês. '
logias hoje . Durante a campanha de George Bush pelo casamento, No poema de Pat Parker, há ressonâncias arrepiantes com o período
profundos problemas estruturais ligados ao racismo foram atribuídos contemporâneo. Te nho em mente sua questão "para onde se vai para
à ausência paterna. Como se tudo que as mães solteiras precisassem ser um não cidadão?" - uma indagação que hoje ecoa em solidarie-
seria casar, e assim transcenderiam as condições de pobreza em que se dade com pessoas desprovidas de documentação . Tenho em mente
encontram. E elas precisam se casar com um homem, mesmo que suas referências à Taft College e a Carmel, que hoje evocam os Seis
esse homem esteja desempregado. de Jena e as Quatro de Nova Jersey. Se Pat ainda estivesse viva, ela
Mesmo no interior de comunidades LGBT descobrimos a influência procuraria garantir que todos compreendessem as conexões entre o
de venenosas ideologias racistas. Pego um exemplo do trabalho reali- ataque racista aos Seis de Jena, o ataque racista/ heterossexista às jo- >
zado pelo Fairness Campaign na cidade de Louisville, em Kentucky. A vens lésbicas negras que tentaram se defender no bairro de Greenwich <
organização descreve seus valores fundamentais da seguinte maneira: Village em Nova York e o assassinato homofóbico de Lawrence King. o
o 1. Acreditamos que pessoas gays, lésbicas, bissexuais e transgêneras têm <
l:>
direito a respeito, dignidade e igualdade plenos. * Ao lado da welfare queen, a black we/fare mother, a mãe negra assistida pelo Estado, é um
2. Acreditamos que desmantelar o racismo é central em nosso trabalho. conhecido estigma de raça, gênero e classe que se refere às donas de casa negras contempladas
l-
por políticas de assistencial ismo social nos Estados Unidos. O conceito foi destrinchado e teorizado l:>
a:: 3. Acreditamos que todas as questões de opressão estão ligadas e só
por Patrícia Hill Collins, em Pensamento feminista negro (trad. Jamille Pinheiro Dias, São Paulo, z
<( podem ser abordadas através do trabalho em coalizões. Boitempo, 2019), como uma "imagem de controle" que recai sobre as mulheres negras. (N. T.) <(

60 M ARG E M E S Q U E R D A 33 J USTIÇA PARA COM UN I D ADES LÉ S B I C A S, G AY S, BIS S EXUA IS E TR A N SGÊ NE RAS


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Where do you go to become a non-citizen? Pra onde você vai pra largar sua condição?
Pat Parker Pa t Parker (tradução de Flávio Wolf de Aguiar"')
1 want to resign; 1 want out. /J'u quero cair fora . Eu quero me mandar.
1 want to march to the nearest place Ir pr'algum outro lugar é o que eu queria,
Give my letter to a smilingface Trocar palavra com alguém que me sorria
1 want to resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
President Ford vetoed a jobs bili O presidente Ford meteu o trabalho num imbróglio
Sent to him from capital hill Vetando a lei pró-emprego que lhe enviara o Capitólio.
White we sit by being super coo! E nós ficamos numa calmaria e num silêncio dos diabos
He gets a $60,000 swimming pool Enquanto ele deifruta de uma piscina pra nababos.
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
$68,000 to Queen Elizabeth to not grow cotton. Deram uma grana pra rainha Elisabeth não plantar algodão
Yet there's no uproar that this jive is rotten Em sua terra no Mississipi, e não se ouve qualquer reclamação.
$14,000 to Ford Motors to not plant wheat Mais grana podre foi pra Ford Motors não plantar trigo
1 guess the government don 't want wheat a!! over the seats. Como se plantar e colher fosse coisa de inimigo.
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
Tbe CIA Commission was in session for 26 weeks long A CP/ da CIA ficou 26 semanas em reunião geral
Said the boys didn 't do too much wrong Pra dizer que a turma da espia não fez nada de ilegal
Tbey gave out acid - a test- so they te!! E ela mandou ver ácido num teste - é o que se alardeia
Yet, ifyou and 1 used it - we 'd be in jail Mas se fosse você ou eu, nos levariam pra cadeia.
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
And from Taft College - a small group offools E na Faculdade Taft, uma gentinha bem pirada
Chased a!! the Black students out of the school. Enxotou da escola quem considerava uma negrada.
And good citizens worried about property safe Enquanto os bons cidadãos em verdadeira esbórnia
Chased away Black teenagers from picturesque Carmel. Expulsavam os negrinhos de um bairro chique da Califórnia
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora . Eu quero me mandar.
Tbe little league after using a!! excuses up A liga desportiva depois de muita volta em desatino
Says a 1Oyear old girl must use a boys supportive cup Diz que a menina deve usar em campo o traje de um menino
An Jnternational Women 's Congress in Mexico to make plans No México mulheres reunidas num Congresso Internacional
Elected for their president- a white liberal man- Elegem como seu presidente um homem branco - muito liberàf ..
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
Tbe A.PA.finally said a!! gays aren 't ill Ser gay não é doença, diz a Associação Americana de Psicoibgta
Yet ain 't no refunds on their psychiatry bills Mas não se ressarce quem precise o apoio de uma terapia. >
A federal judge says MCC is valid- a reality A lei é para todos, anuncia um juiz federal, <(

Yet it won 't keep the pigs from hurting you or me Mas isto não nos protege das pancadas de um policial. o
1 wanna resign; 1 want out. Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.
o
1 wanna resign; 1 want out <(

Please lead me to the place * A poesia de Pat Parker tem uma dicção muito original, ao mesmo tempo desabusada e rigorosa.
Show me the smilingface Refere-se com frequência a acontecimentos históricos precisos e contextualizados, como se pode
l-
l'm skeptical - full of doubt ler no original. Traduzi-los ao pé da letra exigiria um calhamaço de notas de pé de página que l')
o::
destruiriam a magia poética do original. Por isso preferi recorrer a uma interpretação baseada no z
1 wanna resign; 1 want out.
aspecto conotativo e simbólico destas referências. (F. A.) <(

2 M ARGEM E S Q U E R D A 33 JU S T I Ç A PARA C OMUNIDADES LÉ S B ICA S, G A YS , BI S SE X U A I S E T RA NSGÊNER AS


63
Eu quero cair f ora, me mandar daqui.
Por fa vor, me leva pra outro lugar,
Me mostra a face que sorri
As dúvidas me afogam, preciso de ar
Eu quero cair fora. Eu quero me mandar.

O inesperado: o Brasil nos quatro


romances de Plínio Salgado 1

FLÁVIO WOLF DE AGUIAR

Em memória de Antonio Candido, que me convenceu da


importância de se analisar os romances de Plínio Salgado.

Nihil humani a me a/ienum puto.


Máxima preferida de Karl Marx, citando,
no álbum de poesia de sua filha Jenny,
uma frase de Terêncio.

Mulher, negra, feminista, marxista, inte- Plínio Salgado foi o principal líder da Ação Integralista Brasileira
lectual, ativista e comunista. No início (AIB), expressão organizada do movimento de extrema-direita que
dos anos 1970, Angela Davis era tudo empolgou parte da juventude e da intelectualidade durante a década
que o estab/ishment estadunidense mais de 1930. Foi jornalista, era considerado um orador brilhante e , além
temia. Com firmeza, enfrentou uma dura de publicar dezenas de livros políticos e religiosos, foi também escri-
e insidiosa perseguição: chegou a ser
incluída na lista das pessoas mais pro-
tor literário de sucesso. Publicou quatro romances e alguns livros de
curadas pelo FBI. Aos 28 anos, escreveu poemas, contos e crônicas. A fama do político, no entanto, sufocou,
esta poderosa autobiografia para narrar ao longo do tempo, o renome do escritor. Estigmatizado o autor como
sua vida desde a infância até o ingresso de "extrema-direita" e como "fascista", a obra literária mergulhou num
na carreira universitária e o engajamento injustificado ostracismo de público e crítica (com raras exceções).
contra as opressões de raça, gênero e Entretanto, deve-se assinalar que seu livro Vida de Jesus, publicado
classe. Mais que um relato da juventude
t radução: Heci Regina Candiani
em 1942, alcançou até hoje mais de vinte reedições ou reimpressões
de um ícone da história contemporâ- ::::,
prefácio : Raquel Barreto
orelha: Anielle Franco nea, este livro entrelaça lutas sociais e l.?

quarta ca pa: Zezé Motta trajetória individual para provocar uma ' Este ensaio foi escrito há mais de vinte anos, para uma edição especial de uma revista acadêmica <(
384 p ág inas reflexão sobre o caráter estruturalmen- do Canadá. Deste original em português, traduziu-se uma versão para o francês. A edição focava
te violento do sistema carcerário, do escritores de extrema-direita que caíram no ostracismo devido a suas preferências ideológicas. o
machismo e do racismo, em libelo pelo Entretanto, submetido ao parecerista da publicação, recebi uma negativa seca, redigida pela
direito à dignidade e à emancipação. diretoria do departamento competente, dizendo que eu falava pouco do texto e demais da bio- >
grafia do autor. Agradeci à atenção, e disse estar positivamente surpreso por constatar que Plínio
Salgado era uma figura tão conhecida nos meios acadêmicos do Canadá a ponto de dispensar
apresentações. u.
DISPONÍVEL EM BROCHURA, CAPA DURA E E-BOOK!
o I NE S P ER A D O 65
e, se não é um best-seller, tem lugar de destaqu na s ' · •s 1, R:.,li ião militar - o "Si t ma", mo então se dizia - já dava os primeiros ina is
em algumas das maiores livrarias do país. d isolamento e de dificuldades para conter as oposições. O alcan
Plínio Salgado nasceu em 22 de janeiro de 1895, na cidad de São político destas cresceria até a queda, ou melhor, o esfacelamento da
Bento do Sapucaí, estado de São Paulo, na região brasileira hoje co- "Ditadura", dez anos mais tarde, em 1985, com sua substituição por
nhecida como "Sudeste", então simplesmente "Sul". Molireu na cidade um governo civil, ainda que eleito indiretamente.
de São Paulo, em 8 de dezembro de 1975, depois de ter sido deputado Nas décadas de 1920 e 1930, ao mesmo tempo em que se firmava
federal de 1963 a 1974, primeiro pelo estado do Paraná, e depois por o direito da arte à experimentação, todo o campo da cultura passou
seu estado natal. Quando nasceu, o Brasil abolira a escravidão havia por um grande processo de politização. O Brasil, antes frequentemen-
menos de sete anos e era uma república havia menos de seis. Era te definido como um país pitoresco e pobre, ainda que afortunado,
um país predominantemente agroexportador, sobretudo de café; mais passou muitas vezes a ser apresentado como um país atrasado e sub-
de 70% da população habitava regiões rurais. A integração do território desenvolvido. E os romances de Plínio Salgado também participaram
nacional, sob a hegemonia do governo central, no Rio de Janeiro, era dessa redefinição do perfil nacional.
ainda débil. No extremo sul do Brasil, rebeldes federalistas contestavam Pelo lado materno, Plínio Salgado descendia de Pero Dias, um
o governo central, numa sangrenta revolta que, em três anos (1893- dos fundadores da cidade de São Paulo, no século XVI. O ambiente
-1895), provocou mais de 10 mil mortes, mil pela degola de prisionei- familiar era católico, nacionalista, letrado e conservador. Seu pai era
ros, de parte a parte. Os rebeldes chegaram a constituir um governo farmacêutico e atuava como chefe político da cidade; admirava o Ma-
provisório na cidade de Nossa Senhora do Desterro, capital do estado rechal de Ferro. A mãe era professora, e deu aulas na Escola Normal
de Santa Catarina. Reconquistada pelas tropas legalistas em meio a da cidade, o que na época era uma distinção.
uma sangrenta repressão, com execuções por fuzilamento ou na forca, A morte prematura do pai forçou-o a trabalhar a partir dos dezoito
na fortaleza de Anhatomirim, ela foi rebatizada em seguida cidade anos. Foi professor, agrimensor e jornalista e desenvolveu atividac;les
de Florianópolis, em homenagem a Floriano Peixoto, o "Marechal de de liderança nas iniciativas culturais em sua cidade natal. Em 1918,
Ferro". Nos sertões do Norte, massas de camponeses empobrecidos, casou-se com dona Maria Amália Pereira. Pouco depois nasceu uma
de ex-escravos expulsos das terras dos senhores, de bandoleiros em filha do casal, mas em seguida dona Maria Amália morreu, quando a
busca de refúgio, reuniam-se sob a liderança religiosa do beato Antônio menina ainda não completara um mês. Plínio Salgado afundou numa
Conselheiro no arraial de Canudos, rebatizado como Belo Monte, em profunda crise existencial. Melhorou através do mergulho na religião
terras do estado da Bahia. Revoltados, esses camponeses, depois de católica - fato que seria marcante tanto em sua vida política como
uma tenaz resistência, foram praticamente exterminados por forças na de escritor.
do Exército nacional e de milícias estaduais, em 1897. Na década de 1920, Salgado mudou-se para a capital do estado,
Em 1975, quando Plínio Salgado morreu, a maioria da população onde desenvolveu principalmente atividades literárias. A cidade era o
brasileira (cerca de 70%) vivia em regiões urbanas. Embora extensas palco privilegiado das atividades dos grupos de vanguarda no Brasil, .:

regiões fossem ainda relativamente pouco habitadas, o Brasil era um ao mesmo tempo que cresciam as atividades industriais e os bairros <(

país industrializado, sobretudo no Sudeste e no Sul. Seus mais distantes operários, com a imigração europeia, sobretudo italiana, que trouxe :::,
rincões já eram atingidos por redes nacionais de televisão e de rádio. os movimentos anarquistas. <.:)

Um governo autoritário - como o do "Marechal de Ferro" - de forte Plínio Salgado via as propostas da vanguarda artística com algu- <l'.
base nos quartéis, mas com apoio expressivo entre civis de direita, ma desconfiança, assinalando que em nações cujos povos que eram
o entre eles Plínio Salgado - dominava o país desde o golpe militar frágeis do ponto de vista cultural - e este seria o caso do Brasil, país o
<.:)
de 1964, que derrubara o presidente eleito João Goulart e promovera ainda em formação - os princípios da arte moderna poderiam ser
>
violentas perseguições contra militantes de esquerda, opositores libe- mais danosos do que benéficos. Entretanto, isso não impediu que em
.: rais, estudantes, operários, camponeses, intelectuais, artistas e jornais seu primeiro romance, O estrangeiro, publicado em 1926, adotasse
<l'. dissidentes. Deve-se dizer que, no ano de 1975, o cerne do regime um estilo marcado por "vanguardismos": uma prosa fragmentária, LL

66 M ARG EM E SQU E RDA 33 o I NESP E RAD O 67


o rga nizad a e m instantâneos descontínuos, com v·tria · •s Ira mãtica a on lida , . d r gime fascista, e onde teve um encontro pessoal
de ponto de vista. O romance foi um sucesso: em m n s d um mês o m Benito Mus olini. Quando chegou de volta ao Brasil, em 4 de
a primeira edição se esgotou 2 • outubro - um dia, portanto, depois da eclosão do movimento armado
Ao mesmo tempo, Plínio desenvolvia intensa atividade como jor- liderado por Vargas -, estava convencido de que, se o fascismo não
nalista, o que o levou ao terreno da política. Desenvolveu aí também era para ser copiado ao pé da letra no Brasil, nosso país precisava de
reflexões sobre o sentido da arte e da literatura, vendo-as como ve- algo muito parecido.
tores da construção da sociedade nacional e de valores nacionalistas. Desde o começo de sua carreira política, Plínio Salgado fora crítico
Junto com Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Cândido Mota Filho em relação aos postulados comunistas, mas também em relação aos·
e outros, organizou e liderou uma das correntes literárias da época, princípios liberais. Via no liberalismo uma das fontes da corrupção e
propondo a "Revolução da Anta", que deveria revalorizar a cultura da inércia das elites brasileiras, que abandonavam os mais pobres ao
indígena no panorama brasileiro. Sua dedicação foi tal que se pôs a /aissez-faire de sua própria sorte. Ao mesmo tempo, esse paradoxal
estudar a língua tupi. liberalismo oligárquico das elites favorecia a divisão nacional através
Quando, em 1930, Vargas chegou ao poder à testa do movimento dos acordos entre os dirigentes regionais, impedindo, na visão dele, a
armado que, diz-se até hoje, inaugurou o "Brasil moderno", Plínio verdadeira integração do país. Veio de reflexões desse tipo - e também
Salgado era já escritor de renome, jornalista reconhecido e deputado do pensamento de que contra a fragmentação da pessoa humana,
estadual pelo Partido Republicano Paulista. Nessa condição apoiou a promovida para ele tanto pelo liberalismo quanto pelo comunismo,
candidatura de Júlio Prestes, político paulista e presidente da provín- era necessário promover a visão do "homem integral" -, a adoção do
cia, à presidência da República, contra a de Vargas. Prestes venceu as nome "Ação Integralista Brasileira" para o movimento que fundaria
eleições no corrupto sistema eleitoral da República Velha, em que as pouco tempo depois, em 1932, e que o levaria ao ponto culminante
denúncias de fraude na contagem de votos eram constantes. Dessa de sua carreira política - e também à sua queda, logo em seguida. O
vez, no entanto, as denúncias catalisaram o descontentamento popu- objetivo do movimento seria promover a redenção da pátria, através
lar, as inquietações entre muitos militares e as divisões no seio das da construção de um "Estado integral", que cataHsasse o espírito da
próprias elites dirigentes. Em 3 de outubro, rebeldes sob o comando nação e organizasse a representação das classes, como no ideal de
de Vargas, atacavam, às cinco da tarde, o quartel general do Exército Mussolini para a Itália.
em Porto Alegre. Começava a derrubada do governo do presidente O movimento integralista cresceu rapidamente no Brasil, em parte
Washington Luís e o fim da República Velha. devido a sua aliança com movimentos católicos conservadores e com
Enquanto os rebeldes conspiravam, Plínio Salgado estava no movimentos monarquistas. A ascensão de Hitler na Alemanha deu novo
exterior, numa viagem que, em parte, decidiria o seu destino. Em impulso ao movimento. Mas, assinalam historiadores, o integralismo
abril de 1930, seu amigo e correligionário Sousa Aranha convidou-o brasileiro tinha, na prática, mais afinidade com o salazarismo português
a ser o preceptor de seu filho - coisa comum na época, em que a e com o franquismo espanhol, graças ao forte traço católico, do que a:

formação escolar costumava ser frágil - e para acompanhar ambos com os regimes liderados por Hitler e Mussolini. Setores do regime
numa viagem ao exterior. Plínio aceitou a oportunidade valiosa para varguista aproximavam-se claramente desses regimes de direita. Em :::,

um intelectual carente de maiores recursos, e assim conheceu parte nome do combate ao comunismo, Salgado aproximou-se mais e mais
do Oriente Médio e da Europa. O fato mais importante da viagem, de Vargas. Não poucas vezes militantes integralistas e comunistas tro- <{

segundo ele próprio, foi o mês que passou na Itália, vendo de perto caram tiros ou se envolveram em pancadarias nas ruas, com mortos
o e feridos. Em 1935, o levante armado organizado pelos comunistas a o
partir de Natal, no Rio Grande do Norte, e no Rio de Janeiro, aproximou
2 >
Plínio Salgado escreveu quatro romances: O estrangeiro (São Paulo, Helios, 1926), O esperado de vez Salgado de Vargas: assim, ele atingiu o ápice de sua influência.
1- (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1931 ), O cavaleiro de Itararé (São Paulo, Unitas, 1933) e
Plínio constituiu o movimento misturando aspectos de milícias para-
A voz do oeste (Rio de Janeiro, José Olympio, 1934). Pude ter acesso a eles graças à generosidade
<{ do professor Antonio Candido, que me emprestou os volumes. militares com aspectos de ordem religiosa. Os adeptos usavam camisas u..

68 M A R G EM E S QU ERDA 33 o I NESPERAD O 69
v rdes, tinham a letra grega sigma por súnbolo, faziam s:iu ln ' ~ m ' mai um pequ n ru I de defensores conseguiram r i tir ar " u ·
a mão direita erguida e espalmada, como no fasci m . ua sa udação ornando do Exército e nviasse reforços para a defesa. Embora na
era um grito em língua tupi: anauê, um grito de cumprim nto e de e acusado formalmente de participação nessa tentativa fraca ada
guerra. Dois integralistas comuns deviam erguer os braços e gritar golpe, Plínio Salgado foi preso em 1939 e deportado para Portugal,
anauêuma vez. Os dirigentes, divididos em provinciais e arquiprovin- nde permaneceu até a queda de Vargas, em 1945. Ainda que volta
ciais, num arremedo de ordem jesuítica, tinham direito a dois anauês. a ter influência posteriormente, chegando a ser candidato à Presidên ia
O dirigente supremo, isto é, o próprio Plínio Salgado, tinha direito da República em 1955, sua golden age terminara. Depois da volta do
a três, e Deus, a quatro, mas só o dirigente supremo podia saudar a xílio, sua atividade política revestiu-se mais e mais de um catolicismo
divindade em público. conservador. Algo de seus princípios integralistas sobreviveu no regime
Havia algo de sinistro em tudo isso, mas também, por vezes, de imposto pelos militares a partir de 1964, que ele, como já disse, apoiou,
cômico e patético. Um dos jovens adeptos do integralismo contou, tornando-se um dos grandes defensores da censura à imprensa e aos
certa vez, ao professor Antonio Candido (que por sua vez repassou- meios intelectuais, para "disciplinar" a nação.
-me a história algo anedótica) como resolveu, pelo senso do ridículo, Foi no período de sua ascensão política, e como parte dela, que
abandonar o movimento. Estava viajando de automóvel pelo interior Plínio Salgado escreveu e publicou seus quatro romances: O estran-
brasileiro, no caminho da província de Goiás,.com mais dois militantes, geiro (1926), O esperado (escrito em 1930, em Paris, e publicado
um arquidirigente, e o chofer. Ao passarem por um ribeirão, o líder em 1931), O cavaleiro de Itararé (1933) e A voz do oeste 0934), ro-
perguntou ao chofer qual era o nome da corrente. O chofer declarou mance histórico e, de longe, o pior de todos. Os outros três alternam
o nome (que ele não lembrava mais) e acrescentou que aquele pe- momentos de fragilidade na construção com momentos de excelente
queno ribeirão era um dos formadores do grande rio Araguaia que, prosa - alguns brilhantes - , sobretudo se os virmos como uma com-
com o Tocantins, vai desaguar praticamente na foz do Amazonas. O posição da mistura fragmentária de pontos de vista, característica dos
arquilíder fez parar o carro, fez os mais jovens formarem em linha estilos modernistas, com uma crônica da vida paulista, paulistana e
junto à margem - "num calor de rachar", disse o depoente - e grita- brasileira, num estilo bem tradicional cuj~ origem remonta às velhas
rem o anauê, de mão erguida, declarando: "Integralistas, saudemos crônicas medievais portuguesas. O estilo de Plínio apresenta também
este pequeno ribeirão que vai formar o grande Araguaia, que é um sinais de leituras naturalistas, como a de Eça de Queirós, e de certo
dos rios da unidade nacional! ". Segundo o depoente, para ele aquilo gosto por atmosferas melodramáticas e românticas, como as dos ro-
foi demais. Na volta, ele deixou o movimento. Entretanto, os outros mances de Camilo Castelo Branco.
integralistas passaram a persegui-lo como traidor. Numa ocasião, Com esses ingredientes, Plínio Salgado conseguiu traçar retratos
chegaram a trocar tiros com ele. Em outra, conseguiram sequestrá-lo muito vívidos e críticos da sociedade brasileira, sobretudo a de São
e o espancaram brutalmente pela "traição", num fato que alcançou Paulo, e dos processos de transformação por que o país, o estado
grande repercussão política em São Paulo. e a cidade passavam: as levas recentes de imigrantes davam novos a::

Com esses métodos, Plínio Salgado organizou um verdadeiro estado perfis ao velho Brasil de raiz lusitana e ao mundo rural caboclo, e,
paralelo, pronto para tomar o Estado brasileiro: depois da aproximação, nas cidades, a industrialização mudava a paisagem física e humana. :::,
o choque com Vargas foi inevitável. Este veio em 1938, no ano seguinte A busca febril de novidades cosmopolitas e de um estilo de vida so-
àquele em que Vargas deu o golpe de estado fundador do Estado Novo, fisticado pelas classes ricas e emergentes se contrapunha à crescente "
<(
que Plínio, em princípio apoiou, extinguindo formalmente a AIB como pauperização dos bairros periféricos. Tudo isso Plínio Salgado pintou
o movimento político em fins de 1937. Em 1938, Vargas deu sinal verde com cores muito expressivas. o
l'.)
para que os integralistas começassem a ser perseguidos e neutralizados Se teve seu forte na pintura dos quadros sociais e na psicologia da.s
>
f-
em diversos pontos do país. Em maio daquele ano, um grupo de inte- relações humanas nesse quadro de transformações, Plínio Salgado en-
a:: gralistas atacou estações de rádio e o próprio palácio presidencial no controu seu Waterloo literário no desenho de protagonistas consistentes
<( Rio de Janeiro. Mas estavam tão desorganizados que Vargas, a família e, sobretudo, no desfecho de seus enredos. Tinha ele um afã político u..

70 M ARGEM E SQUERDA 33 o I NESPERADO 71


de desenhar quadros não apenas expressivos, mas m 1 •lar "s para Pa am, através d st livro , os Inquietos, os Inadaptados.
a sociedade nacional em transformação. Seus persona ,, s , ' nquanto e
Passam vítimas opressores.
se mantinham numa visão exterior de seus movimento num mundo Chocam-se direções contrárias do Pensamento.
social conturbado, exprimiam de modo convincente as alterações É o drama do nosso Espírito. Onde não há culpados. Onde tudo é in-
em processo na paisagem social. Mas quando vistos de modo isolado, compreensão.
nas profundezas de suas almas, começavam a resvalar para estereótipos
que deveriam encarnar ideias abstratas sobre o ser humano. Como Depois, afirma categoricamente:
resultado, na medida em que os enredos avançavam, as opções, as Este romance não defende nenhuma tese. 4
escolhas, os atos dos personagens começavam a assumir certo tom arti-
Respeitando o autor quanto à sinceridade de seus propósitos, pode-
ficial. Plínio Salgado jamais conseguiu dar, por exemplo, um desenlace
-se dizer que essa afirmação não é verdadeira. O romance defende não
convincente para os enredos amorosos em que seus personagens se
uma, mas duas teses: a de que os homens têm um destino pré-traçado
envo!viam; um tom moralista de melodrama ou folhetim antigo, que
em seus caracteres e a de que estes são o resultado do meio em que
no seculo XX se tornara um ranço passadista, terminava por recobrir
vivem e da cultura que trazem do berço. Ambas dão ao pensamento
as situações a que chegavam. Somava-se a isso o desejo evidente por
de Plínio um ressaiba positivista, comum no naturalismo brasileiro e
traçar painéis completos da sociedade nacional. Há uma abundância
português. Além dessas duas, o romance, pelo título, deixa antever a
de personagens nos romances de Plínio Salgado: neles há pelo menos
tese de que somente o advento de um líder providencial pode tirar
uma vintena de protagonistas, dezenas de coadjuvantes e centenas,
a nação de seus impasses, que transparecem, nas páginas finais da
senão milhares, de figurantes. O que poderia ser um impulso para
narrativa, num grande confronto entre forças políticas antagônicas,
a análise social segundo o modelo de Balzac, transformava-se numa
mais a polícia, no centro de São Paulo, em meio a uma tempestade.
espécie de ópera grandiloquente que tendia ao exagero e à demasia.
No conflito desesperado que se segue, em meio a raios e trovões,
Algo dessas tendências se espelhava nos prefácios que sempre
aparece no firmamento uma forma fantasmagórica, enquanto múltiplas
acompanhavam os romances, e nas classificações com que o autor
vozes na multidão clamam: "É ele, é ele" 5.
procurava enquadrá-los. O estrangeiro, por exemplo, era apresentado
Esse "Esperado" era um tema presente na sociedade brasileira de
como uma "crônica da vida paulista" e no prefácio se lê:
então. Paulo Prado, um dos intelectuais mais expressivos daquele mo-
Este livro procura fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez anos. mento, termina seu Retrato do Brasi/6, de 1928, falando sobre esse líder
Vida rural , vida provinciana e vida na grande urbe. que deveria libertar o país do marasmo melancólico a que o condenaram
Ciclo ascendente dos colonos (os Mondolfis); ciclo descendente das raças as "três raças tristes" de sua formação: os portugueses expatriados, os
antigas (os Pantojos). negros escravizados e os índios exilados em sua própria terra, depois
Marcha do caboclo para o sertão e novo bandeirismo (Zé Candinho); da colonização. O tópos do "Salvador da Pátria" foi e é recorrente na
deslocamento do imigrante nas suas pegadas e novo período agrícola política brasileira. Suas origens remontam ao velho sebastianismo luso. ""
(Humberto): [. . .) [etc.P Quem seria esse "Esperado"? A visão do romance em seu contexto
imediato, escrito em 1930 e publicado em 1931, permite supor que, :::,
Desse modo o autor vai esboçando cada um de seus personagens
para Plínio, a chegada de Vargas ao proscênio da política brasileira l:)
ou grupos de personagens como tipos vetoriais da nova paisagem
apontava o advento do líder providencial. Mas o tipo de liderança <(
nacional em debuxo .
o O segundo romance, O esperado, é o de subtítulo mais lacônico: o
<.'.)
apresenta-se como um "romance", simplesmente. Mas, na abertura 4
Ibidem, p. 5. >
diz o autor: '
5 O esperado, cit. , p. 378.
"" 6 Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (org. Carlos Augusto Calil, São
<( 3 O estrangeiro, cit. , p. 7. u..
Paulo, Cia. das Letras, 2012). (N. E.)

72 M A R G EM E S Q UE R DA 33 o INE S PER AD O 7
que ele desenvolveu depois, na Ação Integrali ta r:t sil •ira , p rmit mico brasileiro, d grande sucesso na época, o gaúcho Aparício
A

supor que ele se convenceu de que o "Esperado" ri a l me mo, T relly, se autonomeou o "Barão de Itararé", passando a assinar suas
Plínio Salgado. bras sempre irônicas e satíricas com esse pseudônimo. Hoje ele é
No prefácio desse romance, Plínio já anunciava o próximo, Oca- mais conhecido por seu apelido do que por seu nome de batismo.
valeiro de Itararé: É inevitável, portanto, que se pense em Vargas como o malfada-
Pertence [este romance] à série de cromcas da vida brasileira con- do cavaleiro a que o terceiro romance se referia. Acresce-se a isso
temporânea, que começaram com O estrangeiro, que se desdobraram ainda o fato de que Plínio, no prefácio, dizia que o romance era um
diante do panorama mais complexo de O esperado, e que continuarão chamado aos jovens e aos militares do país para que cumprissem o
[sic], possivelmente no terceiro marco de nossa marcha , que será O dever de salvar a pátria. E ele terminava com dizeres mais de orador
cavaleiro de Itararé.7 do que de escritor:

Publicado em 1933, este terceiro romance tinha por motivo de seu Porque, se a juve ntude, civil e militar, não assume um papel decisivo;
título uma lenda do sul do estado de São Paulo, da região montanhosa se continuamos a assistir, de braços cruzados, à confusão dos espíritos,
de Itararé, segundo a qual em certas noites a morte passa a cavalo ao jogo das intrigas, ao desencadear das ambições dos mil grupos que
pelos campos, semeando destruição. Embora planejado antes, não se desarticulam a opinião nacional, então nada mais resta a tentar pela sal-
pode deixar de associar o romance e seu título à decepção de Plínio vação do Brasil. 8
com Vargas. No prefácio, diz ele que o romance foi escrito "em horas O quarto e último romance, A voz do oeste, publicado em 1934,
amargas de desilusão". Em 1932, houvera um levante militar em São apresenta-se como um "romance-poema da época das Bandeiras". E,
Paulo contra o governo de Vargas, provocado por uma mistura da no prefácio, diz o autor: "A história que vai ser narrada, nos sucessivos
decepção com o novo regime, que não implementara rapidamente capítulos deste livro, é a história da alma brasileira, no alvorecer dos
as reformas que anunciara, com um esforço restaurador das velhas primeiros impulsos da Nação". O romance enaltece "a mitologia do
oligarquias agrárias de São Paulo, que viam seu poder esvaziado e a selvagem americano", porque ela explica "a colaboração misteriosa
quem desagradava a nova política trabalhista, esboçada por Lindolfo da Terra nos grandes dramas brasileiros que os séculos sepultaram"9 ,
Collor. O levante foi sufocado em poucos meses de luta. Plínio Salgado o que mistura retórica romântica com determinismo de raiz positi-
manteve-se distante dos rebeldes de 1932, mas não escondia sua vista. O romance narra as aventuras de uma bandeira que, a partir
insatisfação com o regime de Vargas e sua demora em promover as de São Paulo, mergulha no sertão americano até o sopé dos Andes,
esperadas reformas que, para ele , deveriam ter um caráter doutrinário animada pelo propósito secreto de encontrar El-Rei Dom Sebastião,
exemplar, no sentido da salvação e do reerguimento nacionais . o monarca português desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no
"Itararé" tornou-se um signo de identificação do novo regime e de norte da África, em 1578. O rei, por misteriosos caminhos e razões,
sua política de compromissos com a velha ordem. Quando as tropas estaria prisioneiro em algum lugar da Cordilheira dos Andes, próximo "'
comandadas por Vargas tomaram o rumo do norte, para ocupar o Rio às minas de Potosí, na hoje Bolívia.
de Janeiro, que então era a capital da República, esperava-se que a A ideia geral é expor que desde o tempo das antigas "raças" que
::,
grande batalha entre os rebeldes e os legalistas se daria no Passo de habitavam a região da futura nação brasileira, ela já estava predes-
Itararé, na divisa entre os estados do Paraná e de São Paulo, uma região tinada a ter destino grandioso. Como se vê, o romance se afasta da <(
pobre e abandonada. Entretanto, cientes de sua posição fragilizada, visão regular do nazismo, da determinação do destino dos povos pela
o os generais do Comando das Forças Armadas depuseram o presiden- superioridade ou inferioridade racial, fazendo o elogio de uma raça o
" te Washington Luís e entregaram o poder a Vargas. "Itararé" ficou na e de uma cultura que, na escala dos hitleristas, não teria qualquer
,- história brasileira como "a batalha que não houve". Um célebre escritor >

"' 7
8 O cavaleiro de Itararé, cit., p. 6.
<( O esperado, cit. , p. 5. 9
A voz do oeste , cit. p. 7. u..

/4 MARGEM E SQ UERD A 33 o INE SPERAD O 75


valor. Do fascismo, ele retém a componente gr n li sa , O romance se divide em duas partes bem caracterizadas. Na
diloquente, que, aliás, torna desagradável a sua 1 itura, ntido primeira, Ivan vai para o interior, para as fazendas de café, onde
de determinação histórica, de grandeza da pátria. Mas chama em sua assiste à decadência das famílias tradicionais, constata a miséria dos
defesa o velho misticismo sebastianista nascido da crise portuguesa camponeses (caboclos) brasileiros, abandonados pelos governos, e a
nos fins do século XVI. prosperidade dos recém-chegados. Na segunda, ele vem para a cidade
Esse misticismo fora lembrado por vários intelectuais - entre eles grande, a metrópole, São Paulo, onde abre uma fábrica e enriquece.
Euclides da Cunha, em Os sertões, de 1902, para explicar as revoltas Vive então como industrial de sucesso numa cidade cosmopolita, que
camponesas brasileiras, incluindo a de Canudos. A voz do oeste reúne perdeu o contato com as antigas raízes culturais do país e da região.
esse misticismo de raiz lusa e uma visão dos povos indígenas como Reconhece, apesar de ser bem aceito na sociedade, que, distante
motivados por um sentido místico de integração numa civilização do seu país de origem, levando o peso daquele amor insatisfeito,
maior e superior: a brasileira, que Plínio identificava como matriz da incapaz de desenvolver novas raízes, será sempre um estrangeiro,
"quarta humanidade". Mas o todo não convence: Plínio não consegue um apátrida. Para complicar sua situação psicológica, a consolidação
criar personagens históricos convincentes, seus índios parecem mais dos sovietes em sua pátria, depois da revolução de 1917, traz para
figurantes de alguma ópera burlesca, e o romance termina literalmente o Brasil levas de imigrantes que rejeitam o comunismo. Ivan sonha
abandonando seus personagens à própria sorte, em troca da visão com a possibilidade de encontrar, entre esses imigrantes, sua amada
grandiosa de uma miragem: nas encostas das montanhas alcantila- Ana descendente de uma família aristocrática .
das resplandece uma cidade descrita como "colossal e imponente". O final é patético. Ivan pensa reconhecer entre alguns refugiados
Essa cidade é ao mesmo tempo do passado e do futuro, pois, diz o que vêm pedir emprego em sua fábrica a sua adorada Ana. É Noite
narrador, "para o espírito não existe o tempo". E o autor aproveita a de Ano Bom, e haverá uma grande festa na fábrica. Planeja então
oportunidade para se despedir de seus personagens: "Que importa, de envenenar todos, colocando uma droga poderosa na cerveja que
agora em diante, o destino de Martinho e de D. Gonçalo? Que mais é servida. Fecha-se com a jovem - que na verdade não é Ana - no
interessa El-Rey, o Encoberto? Ou o descobrimento de Violante? Ou terraço, onde ambos morrem. A conclusão que se tira é que a falta
o encontro da virgem tupi e das cavernas de ouro?"1º. de uma pátria enlouquece o homem, e que essa condição ameaça
A voz do oeste dá a impressão de ter sido um romance que, depois a sociedade brasileira, arriscada de se distanciar de suas raízes tra-
de começado, tornou-se um problema para o autor, premido cada vez dicionais sem se consolidar com um espírito de "união nacional". O
mais pela cena política complexa em que ele e o Brasil mergulhavam. romance reserva ainda uma surpresa: os capítulos finais revelam que é
E ele, então, terminou-o às pressas, podando a vida dos personagens. um dos personagens, Juvêncio, um mestre-escola nacionalista, que
Os romances anteriores reservam melhores páginas ao leitor. está escrevendo a narrativa, enquanto marcha para o sertão em busca
De todos, o mais inovador do ponto de vista do estilo é O es- das raízes da pátria.
trangeiro. É escrito numa sucessão de fragmentos, que apreendem O esperado contém algumas das melhores páginas de Plínio no a::
momentos, situações, estados de espírito. Vez por outra escorregam sentido social. O protagonista é o personagem Edmundo Milhomens <(

para o aforismo ou para a reflexão abstrata. Entretanto, essa inovação que, tentando sobreviver entre a metrópole inovadora e o sertão tra- :::,
não esconde a concepção melodramática do enredo. O estrangeiro do dicional, testemunha os novos processos sociais e políticos que ao \;)
título é um imigrante russo, Ivan. É um refugiado político, que teve seu mesmo tempo arrastam e dividem a nação. Merecem atenção especial, <(
grande amor negado na terra pátria. Consegue entrar no Brasil, cujo por exemplo, os capítulos XXV ("O êxodo") e XXIX ("Péo! Péo!"). No
o
governo fazia uma cuidadosa triagem ideológica entre os imigrantes, primeiro, o autor relata a situação premente dos caboclos desalojados o
\;)
em meio a um grupo de imigrantes italianos. impiedosamente de suas terras pelas disputas políticas entre líderes de
,_ partidos opostos e forçados a marchar para o oeste. Nesse processo, >

a::
desbravam novas terras, que depois serão novamente ocupadas por
10
<( Ibidem, p. 270. políticos e proprietários das cidades, num processo doloroso e sem .....

76 M ARGEM E SQU ERD A 33 o I NESPERADO 77


fim. E que foi o processo de ocupação das terra d ' St J Paul . No capítulos de O esperado em que a questão social avulta - a colegas
segundo, através do jogo entre os personagens, Plíni p du as meus, professores de letras, pedindo-lhes que identificassem o autor.
teorias sobre o trato policial dos prisioneiros políticos. Um elos poli- Responderam-me todos os consultados que deveria ser um autor dos
ciais acha melhor convencer os jovens revolucionários da inutilidade anos 1920 ou 1930, de esquerda. A surpresa, ao tomarem conhecimento
de suas ideias através da persuasão, enquanto o outro entende que o de quem se tratava, confirma o fato de que, se Plínio não conseguiu
melhor é mesmo abalar-lhes o moral pela pancadaria. ser O esperado na política brasileira, ele é ainda hoje um escritor sur-
Esse romance revela a tendência do autor para complicar seus en- preendente, inesperado. Não precisamos - não devemos - concordar
redos pela multiplicação dos personagens. E termina com uma visão com seus preconceitos e com seu conservadorismo reacionário. Mas,
fantástica, de uma batalha, no escuro, entre forças políticas antagônicas, na esteira da citação de Marx/Terêncio que nos serviu de epígrafe, não
no centro de São Paulo. Só a chegada do Grande Líder, o Esperado, podemos - não devemos - ignorá-lo. Sobretudo num momeqto em que
poderá salvar essa sociedade ameaçada de desagregação. sua religiosidade conservadora, transposta para o século XXI, faz parte
Finalmente, O cavaleiro de Itararé faz uma crônica muito interes- dos impulsos que inspiram tantos brasileiros, ainda que sem o talento
sante do mundo das classes dirigentes de São Paulo, do começo do literário que ele manifestou nas melhores passagens de sua escrita.
século XX até o começo da década de 1930. Tem de tudo: troca de
bebês, revelações de identidade, conspirações, comédia e tragédia
social, melodrama e drama amoroso. Dois dos protagonistas (pois
são vários) são Urbano e Teodorico, as crianças trocadas. O primeiro, QOO~
filho de uma família rica, cresce entre pobres - e adquire um caráter /JACOBINBRASIL
exemplar. O segundo, filho da família pobre, cresce entre os ricos,
e carece de melhores qualidades morais. Ao final , depois de voltas
e reviravoltas, Urbano impede que Teodorico e seu irmão Pedrinho
(que era filho da família que criara Urbano, sendo, na verdade, irmão "O surgimento da revista Jacobin
de Teodorico) se matem a tiros por causa da jovem Elisa, que ambos tem sido uma luz em tempos obscuros.
desejam. Mas Urbano, ferido, morre. O resultado é previsível: a jo- Cada edição traz debates vivos, profundos
vem se deixa conquistar pela memória do herói morto, não casando e análises de temas candentes, de uma
com nenhum dos pretendentes, o que na verdade apenas ratifica o perspectiva lúcida, oxigenada e rara
de ser vista na esquerda.
moralismo do autor.
Uma contribuição realmente
Esses enredos melodramáticos não impedem a percepção de que impressionante à sanidade - e à esperança".
Plínio traçou painéis muito interessantes das transformações por que
passava a sociedade brasileira. Dois aspectos ainda merecem comen- Noam Chomsky,
tários. Em O cavaleiro de Itararé há um personagem judeu, Gruber, um cara muito inteligente.
no primeiro plano. É um revolucionário e anarquista, mas sem caráter.
Age dessa forma menos por convicção do que por compulsão. Plínio Apoie-nos também.
esboça a tese de que os judeus, privados de uma pátria e destituídos
de uma nação, não podem ter caráter coletivo que dê consistência ao
o
Use o c~ om #GuilbotinaNeles
caráter individual. Pesa, portanto, em seu julgamento negativo sobre e ,r..epe 15% de desconto em
\:>
esse personagem, menos a questão racial e mais a cultural, embora to hs os produtos do site.
l-
também carregada de preconceito inaceitável.
a: O segundo aspecto é uma curiosidade de hoj . Fiz uma expe-
<( riência, apresentando páginas de Plínio Salgado - bretudo aqueles

78 M ARGEM E S Q U E R D A 33
rganizativas da Internacional, que deveriam também ser assumida
por cada partido, e serviu de forte estímulo para que fossem fundados
partidos comunistas em várias partes do mundo. . .
A derrota da revolução socialista internacional pode ser 1dent1ficada
já em março de 1921. A economia política implantada na Rússia sovié-
tica isolada internacionalmente - que ficou conhecida como Nova
O centenário da Internacional Comunista Política Econômica (NEP) - , visava a dar início à transição socialista
a partir de um patamar baixíssimo de desenvolvimento das forças
MARCOS DEL R0/0 produtivas, que exigia sólida aliança com o campesinato, e, assim, a
uma forma particular de capitalismo monopolista de Estad?. O com-
plemento equivalente dessa política foi a fórmula da frente única, que
significava a luta pela unidade da classe operária, cindida pela gue~r~,
pela revolução e pela fundação da IC, e a unidade da classe operana
com o campesinato.
A fórmula política da frente única esteve sempre em disputa sobre
o seu significado, se deveria ou não incluir as direções dos partidos
No mês de março deste ano de 2019, ocorreu centenário da fun-
reformistas ou só as suas bases. Era evidente como as particularida-
dação da Internacional Comunista (IC), também conhecida como
des nacionais incidiam sobre o entendimento dos comunistas sobre
Terceira Internacional. Desde o colapso da Segunda Internacional, ou
essa questão e faziam surgir as divergências. As diferentes leituras
Internacional Socialista, em agosto de 1914, quando a maior parte dos
da frente única prevaleceram em momentos distintos até meados de
partidos vinculados a esse organismo decidiu-se pelo apoio à políti-
1929, quando o grupo formado em torno de Stálin na União Soviética
ca de guerra de seus governos, evidenciou-se a capitulação política
assumiu a direção do Estado e também da Internacional Comunista.
ideológica frente ao nacionalismo burguês.
Desde esse momento ocorreu uma guinada política de grandes di-
Desde o início de 1915, Lênin defendia a necessidade da fundação
mensões tanto na União Soviética como na IC. A leitura do grupo de
de uma nova organização internacional que enfrentasse a política de
Stálin era que a luta de classes se agravava na União Soviética, assim
guerra imperialista propondo a revolução socialista internacional,
como nos principais países imperialista. Ainda que isso não fosse falso,
bandeira deixada cair pela Internacional Socialista. Foi apenas em
a realidade era que a correlação de forças era muito desfavorável ao
1919, todavia, que Lênin conseguiu respaldo político suficiente para
movimento operário revolucionário. Na União Soviética, a política de o
essa empreitada. De fato, a vitória dos bolcheviques na Rússia e a
industrialização acelerada e de coletivização da terra criou sérios transtor-
difusão da situação revolucionária para outros países da Europa (e o
nos econômicos e sociais que vieram a ser determinantes para o futuro
mesmo da zona colonial) foi elemento decisivo para o sucesso da o::'.
da transição socialista. Nos países imperialistas, ainda que a expressão
iniciativa, mesmo considerando que os partidos fundadores fossem
"frente única" não tenha sido abandonada, a importância maior foi
todos de países surgidos da desintegração do Império russo e da
Europa centro-oriental. dada à política chamada de classe contra classe, ou seja, de confronto
aberto contra a burguesia. Como se entendeu que a social-democracia o
Pode-se dizer que, no momento da fundação, ar volução socia-
dificultava a prática dessa orientação política, os partidos dessa linha
o lista internacional alcançava o seu ápice, com o p d r dos conselhos
foram vistos como o inimigo principal naquele estágio da luta.
'--' operários no poder na Rússia e na Hungria m ntinuada efer- o
A gravíssima crise capitalista de 1929 a 1933 não contribuiu para
vescência na Alemanha e na Itália. Com as for a r a i nárias russas, u
l- organizar ou conscientizar a classe operária para a luta, pelo contrário. a:
junto com as aliadas tropas imperialistas, já m r u , m julho de
a: O resultado foi, antes, o fortalecimento de movimentos semelhantes ao <(
1920, realizou-se o II Congresso da IC. E s n r 'SS d c;finiu questões
<(
fascismo por toda parte e que culminou com a implantação do regime

80 M ARGEM E SQUERDA 33 Q CENTENÁRIO DA IN TERNAC I ONAL COMUNIST A 81


nazi ta na Alemanha. Esse período mostra uma u ss· dos Estados nacionais, a independência dos Estados. Assim, a aliança
para a IC e em países decisivos, como na Alemanha na hina. se estende u aos setores da burguesia que se empenhassem na defesa
A resistência antifascista começou a ganhar corpo efetivamente no nacional. A política de frente nacional foi aplicada pelos comunistas
começo de 1934, na Áustria e na França, lugares onde a ascensão de até 1947, quando a IC não mais existia.
Hitler ao poder foi sentida com mais força . A frente única operária Se, para o período de 1929 a 1933, a avaliação histórica política da IC
aconteceu quase que de forma espontânea e exerceu uma pressão é de quase consenso negativo, a política de frente popular alimenta até
incontornável sobre as lideranças sindicais e partidárias para que hoje uma grande polêmica. Muitos interpretam que a política de frente
chegassem a um acordo de ação conjunta contra a ameaça fascista. A popular era já no início uma proposta de aliança com a burguesia. Isso
mobilização dos intelectuais tendeu a crescer muito e também contri- é verdade apenas para os países sob domínio imperialista, nos quais
buiu para que ocorresse a convergência dos antifascistas. a burguesia poderia colocar-se junto ao povo trabalhador e parcela
A IC e os partidos que a compunham se viram então pressionados da pequena burguesia na luta pela independência nacional. Ademais,
para uma mudança de linha política, mas as dificuldades não eram era uma política defensiva, de resistência ao fascismo internacional.
de pouca monta. Seria preciso que, na União Soviética, fosse refreada Naquela situação, era melhor, sem dúvida, uma democracia burgue-
a política implantada desde 1929, sem que o grupo dirigente con- sa do que uma ditadura fascista, ainda que ambas as formas políticas
duzido por Stálin se visse ameaçado pela oposição. Os partidos co- expressem o domínio do capital e da burguesia. Certo ou errado, tanto
munistas, por sua vez, teriam de superar a dificuldade de uma nova na França como na Espanha, os comunistas se fizeram defensores da
aproximação com os sociais-democratas, cujas relações encontravam- democracia burguesa, mas isso não significa exatamente uma aliança
-se envenenadas por muitos anos de conflito. com a burguesia, mas o entendimento que a democracia é o campo
A convergência ocorreu porque houve um deslocamento de alguns mais propício para o proletariado travar a luta de classes.
partidos reformistas para a esquerda e, pela IC, Togliatti e Dimitrov Esse período ofereceu possibilidade de novas formulações teóricas
conseguiram cumprir um papel de muito destaque, que seguia a (também polêmicas) , como as de democracia progressiva (Togliatti),
direção proposta por Thorez, do Partido Comunista Francês (PCF). democracia popular (Dimitrov, Lukács) e nova democracia (Mao) .
A ofensiva fascista e reacionária obrigou os comunistas e os sociais- O que os críticos não conseguem enxergar é que essas categorias se
-democratas a se aproximarem por meio de acordos para ação comum. referem a uma fase de disputa pela hegemonia e de fase inicial da
Na França, o acordo não só se aprofundou como incluiu a pequena transição socialista, algo análogo ao período da NEP na União Soviética.
burguesia democrática representada pelo Pa1tido Radical, de tal modo A política de frente nacional que foi exercida desde 1937 coincide,
a dar origem à Frente Popular, que era uma ampliação da frente única de fato, com a desintegração da IC, a qual foi formalmente dissolvida
dos anos 1920. em maio de 1943, no quadro do acordo que se configurava ente União o
A política de frente popular foi aprovada somente em julho de 1935, Soviética, Grã-Bretanha e França na luta contra as forças do fascismo.
o
quando por fim se realizou o VII Congresso do IC. A Fr nte Popular Mesmo dissolvida a IC , o movimento comunista continuou a cr:
na França chegou ao governo com apoio externo d omunistas e existir com forças em várias parte do mundo, com divisões sérias,
participação de socialistas e radicais. Na Espanha, a Fr nte Popular mas conseguindo vitórias importantes em defesa da classe operária
também venceu as eleições, mas a reação cat li a " fa i ta desen- e dos povos dominados pelo imperialismo. A crise avassaladora que
cadeou a guerra civil. No fim das contas, a p líli ~1 d ' fr nte popular atingiu o movimento comunista desde o fim dos anos 1980 exige um o
foi derrotada e teve de passar por uma alt ra :.i ' 1 'l 1 7: a frente conhecimento cientifico e crítico dessa história, a fim de que se possa
o popular se fez frente nacional. recompor a classe antagônica ao capital para que se faça partido. o
'-' Com a anexação da Áustria pela Alemanha ' ·0 111 > al:J u japonês u
à China naquele ano de 1937, perc b u-s' Ili • :1 qu 'Slé da sobre- a:

a: vivência das nações, dos povos pequ n s · ,rn o os ·hamava Lênin)


tava em jogo. A questão central pa sav:1 a s •r •111 :10 :i s )1 revivência

82 M ARG EM E S ·o U E R D A 3l Ü CENTEN Á R I O DA NTERNA C I O NAL C OMUNI S TA 8


precipitando sua qu eda mediante golpes institucionais sustentados
pelas Forças Armadas (Dilma Rousseff no Brasil, Lugo no Paraguai,
Zelaya em Honduras), por eleições (Kirchner na Argentina) ou pela
evolução à direita de regimes outrora considerados "de esquerda":
Lenin Moreno, sucessor de Rafael Correa, no Equador; o regime san-
dinista em Nicarágua, onde o governo de Daniel Ortega massacrou
América Latina em convulsão histórica mais de quinhentas pessoas em luta contra a reforma previdenciária;
o governo de Funes, da Frente Fara,bundo Martí de Libertação Na-
cional (FMLN), e seus sucessores em El Salvador etc. Na Venezuela,
OSVALDO COGG/OLA
porém, entrou em crise a ofensiva associada aos Estados Unidos para
derrubar o governo chavista (Maduro), ele próprio transformado em
um regime bonapartista repressivo das manifestações independentes
dos trabalhadores. No México, o "progressismo" saiu eleitoralmente
vitorioso com Andrés Manuel López Obrador (AMLO), mas este se
encaminhou para um acordo com Trump, cujo resultado palpável
foi a militarização da fronteira com a Guatemala, rota obrigatória das
A crise econômica, social e política que percorre a América Latina,
dezenas de milhares de pessoas desesperadas que fogem da miséria
em maior ou menor grau, do Rio Grande até a Terra do Fogo, tem uma
e da decomposição social da América Central, que ostenta os maiores
natureza estrutural, ou seja, histórica. A queda do governo de "Ricky"
índices mundiais de homicídios, em direção dos Estados Unidos.
Roselló em Porto Rico, em inícios de agosto, resumiu as tendências
Nesse quadro de crise se inscreve a acachapante derrota da coalizão
principais da conjuntura latino~americana: aprofundamento das mo-
do ultraneoliberal Macri nas eleições primárias (PASO) na Argentina, a
bilizações populares, instabilidade crescente dos regimes políticos e
11 de agosto, por 47,6% versus 32,1%, uma diferença de 15,5%. Segundo
crise da dominação imperialista, especialmente norte-americana. Em-
nota do Política Obrera, tendência do Partido Obrero de Jorge Altamira:
bora "Estado Livre Associado" dos Estados Unidos, Porto Rico, antiga
colônia espanhola, é historicamente parte do Caribe latino-americano. Um procedimento eleitoral inócuo foi suficiente para revelar o completo
A queda de seu governo não esteve associada apenas à corrupção e vácuo político do governo de Cambiemos. Não foi nem necessário, para
ao reacionarismo "cultural" (homofobia, misoginia) de seu governador. isso, chegar à primeira rodada eleitoral. Dos quinze pontos de vanta-
<(

A população se revoltou também contra sua condição de lacaio da gem em favor de Alberto Fernández na eleição para presidente [.. .) era
"Junta de Supervisão Fiscal" imposta por Barack Obama, e continuada evidente que o governo macrista tinha permanecido em pé, em meio a o
por Donald Trump, para garantir o pagamento de uma dívida pública um gigantesco colapso econômico, como uma soma zero entre ·as forças
monumental, mediante um programa de ajuste que varreria todos, os antagônicas da cena nacional e internacional - por um lado, o ódio das
direitos e conquistas sociais de uma população reduzida ao status de massas contra a política capitalista que descarrega a crise nas suas costas
e, de outro, o [Fundo Monetário Internacional) FMI e seus lacaios nativos. o
cidadã de segunda classe no Estado ao qual se subordina (os Estados
O fato de o colapso do governo ser descrito pelos comentaristas como u
Unidos), agravada pelas consequências do furacão Maria, em 2017,
que obrigou ao êxodo centenas de milhares de porto-riquenhos, em "catastrófico" se destaca ainda mais porque, afinal, ele simplesmente o
o um país cuja infraestrutura sempre esteve largada ao Deus-dará. perdeu para um rival [o kirchnerismo) que já comprovou, em funções o
A conjuntura continental, portanto, não se r du z à ascensão da de governo e de "oposição legislativa", que defende o mesmo regime
extrema-direita e à ofensiva neoliberal. Esta ap iou no fato de os social e o mesmo regime político do partido no poder. No paralelogramo <(

,- de forças que manteve Macri na presidência como ficção, ocupavam o


regimes "progressistas", que dominaram nári p olítico latino-
V\
-americano na primeira década do ntrar m em crise, primeiro lugar os mesmos que o derrotaram em 11 de agosto. Mais do
<( o

84 M ARG EM E SQUERDA 3 AMÉ RICA L ATINA EM CO N V UL SÃO H IS T ÓR I CA


que um resultado e leitoral, o regime político regi tr u um t •rr •m t d 300 bilhões de dólares. Suas empresas lançaram-se a outros mercados,
magnitude, que expressa o nível da crise do sistema. 1 omprando importantes ativos. O Produto Interno Bruto (PIB) da região
Coloca-se inclusive a possibilidade de que Macri sequer complete cresceu numa média de 5% ao ano entre 2003 e 2008, com um incremento
seu mandato depois de ter acariciado a possibilidade de vencer num médio superior a 3% no produto per capita. Um fator alardeado foi a
segundo turno eleitoral. redução drástica das dívidas em dólares, mas isso ocultava a natureza
As vitórias político-eleitorais da direita, neoliberal ou neofascista, do processo econômico, embutida na valorização monetária propiciada
foram precárias e se produziram no quadro do vazio político deixado pela "estabilização". A dívida externa foi "zerada" quando as reservas
pelo "progressismo" em crise. As perspectivas políticas da esquerda internacionais do Brasil - o total de ~oeda estrangeira conversível, aceita
latino-americana se prendem, em primeiro lugar, ao balanço e às no mercado internacional - superaram o montante da dívida externa,
conclusões políticas desse fenômeno. A origem do processo está si- pública e privada, o que criou a ilusão da superação da dependência
tuada na crise econômica mundial iniciada em 2007-2008. Graças aos financeira. Mas o endividamento assumiu outras características em condi-
programas sociais focalizados, 40 milhões de pessoas haviam deixado ções de abertura à livre movimentação cambial de empresas estrangeiras e
a linha da pobreza absoluta na América Latina em cinco anos: o re- nacionais: ele não poderia ser aferido apenas pela dívida externa formal,
trocesso da pobreza foi especialmente importante no Brasil, onde os em títulos e contratos do governo e de empresas privadas. A dívida real,
programas sociais permitiram uma diminuição significativa da pobreza passível de ser saldada em moeda conversível, deveria ser avaliada em
absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória pouco alterada conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, a dívida
da concentração de renda. As condições de retrocesso da pobreza mobiliária federal, por ser viável a troca de títulos da dívida externa por
se encontravam, porém, vinculadas ao desempenho econômico da papéis da dívida pública. Um título público brasileiro, por exemplo, com
conjuntura. A constituição de uma faixa da população cuja sobrevi- vencimento em 2045, oferecia 7,5% de juros acima da inflação, enquanto
vência dependia de programas de ajuda social não incorporados à o mesmo título do Japão pagava somente 1o/o real.
estrutura constitucional do país se configurou como um paliativo de Os dados da conjuntura começaram a mudar drasticamente com a
base instável. Do ponto de vista comercial, continuava a dependência crise econômica mundial, que possuía mecanismos diretos de trans-
da região em relação aos Estados Unidos e à Europa. Mais de 65% missão para a América Latina, vinculados à contração da demanda
das exportações latino-americanas se dirigiam para essas duas regiões, mundial: o comércio externo e as matérias-primas. Os países da região
com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Alguns se viram afetados negativamente pelas baixas dos preços do petróleo ,
países estavam mais expostos: o México, com um comércio fortemente do cobre e da soja. O segundo mandato de Lula, iniciado em 2007, foi
dependente dos Estados Unidos (que absorvia 80,75% de suas expor- apanhado pela crise mundial, embora ele declarasse: "A imprensa, de <(

tações, com apenas 19,25% para o restante do mundo). As economias vez em quando, fica doida: 'Mas, presidente Lula, e a crise americana?!'
o
latino-americanas continuavam também muito dependentes da venda Perguntem para o Bush. A crise é dele, não é minha". Ou: "Eu estou
de matérias-primas (mais de 60% das suas exportações) . muito confiante de que a crise americana, se ela chegar aqui [. ..] lá ela <.:)

A América Latina conhecera um desempenho econômico convulsivo, é um tsunami, aqui ela vai chegar uma marolinha, que não dá nem
expresso em quedas e altas abruptas do seu crescimento, o que punha para esquiar"2 • Ora, contrariando a tese do "desacoplamento", a crise o
em evidência economias com baixo grau de autonomia (financeira, in- bateu com força na América Latina e no Brasil. No primeiro trimestre u
dustrial e comercial) e altamente dependentes das inflexões do mercado de 2009, o PIB da região caiu 3%, com destaque para a brutal queda
o
mundial. Durante o período de 2003 a 2007, a América Latina recebeu o
o
um volume recorde de investimentos estrangeiros diretos, superior a 2
<.:)
A primeira declaração integra um discurso feito pelo então presidente por ocasião da inaugu-
ração de prédios do campus da Ufersa, da assinatura de protocolo para implantação de refinaria
t- em Guamaré e da inauguração da Termoaçu , em Mossoró (RN), 19 set. 2008. Transcrição >

"
1
Política Obrera, "La aplastante derrota dei macrismo abre una crisis política", Partido de los disponível online no portal da Biblioteca da Presidência da República, acesso em 6 set. 2019 . A
<( Trabajadores, 12 ago. 201 9, disponível no site do Política Obrera, acesso em I O set. 20 19. segunda é atribuída a um discurso de Lula no ABC, em 4 out. 2008. (N. E.) o

86 .M A R G E M E SQUERDA 33 AMÉRICA L AT I N A EM CONVULSÃO HI STÓRI CA 87


A inflação sobre os alimentos é decorrente do fato de que as p essoa
do México (extremamente vinculado à economia d Esta I s nidos):
estão comendo mais. Ora, na medida em que mais gente começa a co-
9,31%. A recessão internacional começou no quarto trim str d 2008 .
mer carne, produtos de soja, trigo [. .. ] se a produção de alimentos não
Ainda em dezembro de 2008, a Comissão Econômica para a América
aumentar, obviamente que nós vamos ter inflação. Os sinais de inflação
Latina e o Caribe (Cepal) previa para 2009 um crescimento de 1,9%
nos alimentos, demonstrando que o povo está comendo mais, são uma
para a região, mas, em abril de 2009 estimou uma contração de -0,3%
boa provocação e ao mesmo tempo uma convocação ao mundo de que
(em junho elevou-a para -1 ,7%).
se precisa produzir mais alimentos sendo possível, para ele, combater a
Durante o quarto trimestre de 2008, México, Brasil, Argentina e
alta com um aumento equivalente na produção de alimentos. 3
Chile registraram quedas anualizadas do PIB de -10,3%, -13,6%, -8,3%,
e -1,2%, respectivamente. No primeiro trimestre de 2009, o México No entanto, os preços dos produtos primários despencaram, depois
registrou uma queda anualizada sem precedentes, de -21,5%. De de- de uma alta especulativa das commodities em 2008. Em fevereiro de
zembro de 2008 até fevereiro de 2009 o Brasil perdeu quase 800 mil 2009, os preços tinham caído em relação ao pico da alta, nas proporções
empregos. A emissão monetária gigantesca do Federal Reserve em que seguem: petróleo, 51%; alimentos, 18%; arroz, 50,6%; milho, 47,9%;
benefício dos bancos dos Estados Unidos foi a base da especulação trigo, 41,9%; metais, 49%; cobre, 37,9%. As quedas das remessas de imi-
nas bolsas de valores em 2009 e da especulação com a dívida pública grantes afetaram, sobretudo, México, Bolívia, Equador, além de quase
nos Estados Unidos e no exterior. A emissão de moeda e o crescimento toda América Central e o Caribe (estas últimas, além disso, sofreram
agudo dos déficits fiscal e comercial da maior potência do planeta com a acentuada queda de ingressos pelo turismo externo). As contas
não resolveram os problemas originais, e colocaram problemas no- nacionais latino-americanas se ressentiram de arrecadações menores.
vos: a perspectiva da quebra dos Estados e dos bancos centrais. Em As emissões de títulos de dívidas realizadas em 2009 foram dominadas
2009, o déficit fiscal dos Estados Unidos atingiu US$ 1,4 trilhão, 10% pelos países centrais: os Estados Unidos lançaram mais de 2 trilhões de
do PIB, seu maior montante percentual desde 1945. A dívida federal dólares, dentro de um total de 3 trilhões na OCDE, deixando pouco
em relação ao PIB ultrapassou 100% em 2012 (ela se situava abaixo espaço para os "emergentes". A dependência financeira da região era
de 40% em 1980 e abaixo de 60% em 2000). A Organização para a a sua grande vulnerabilidade, somada ao escasso desenvolvimento do
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) enfatizou em mercado interno e à crescente fuga de capitais, vinculada aos mecanis-
2009 que "a economia mundial está na mais profunda e sincronizada mos de "desalavancagem" e de "aversão ao risco", que provocam uma
recessão de nossas vidas, causada por uma crise financeira mundial fuga em direção aos ativos e a países "mais seguros". Nos anos 1990,
e aprofundada por um colapso do comércio mundial". considerou-se que a forte internacionalização do sistema financeiro era
A crise iniciada em 2007 e 2008 provocou uma forte onda espe- positiva para fugir das crises: agora se verificava o contrário.
culativa sobre os preços das matérias-primas (alimentos, petróleo, Não houve na América Latina (como nos Estados Unidos e na o
minerais), que fez acreditar que o crescimento dos "países emergen- Europa) colapso de instituições financeiras importantes. Mas houve
tes" -(da China em primeiro lugar) seria a grande saída para a crise consideráveis perdas em aplicações em derivativos no México e no \:)

mundial. A onda inflacionária alimentar acumulou uma alta de 83% Brasil, estimadas em US$ 25 bilhões. À medida que o sistema finan- \:)

em 36 meses e reduziu os estoques mundiais de alimentos ao seu ceiro se valeu dos recursos injetados pelo Estado para retomar a valo- o
menor nível em quase três décadas. A rápida expansão dos preços rização fictícia do capital, novas ondas especulativas começaram a se u
comprometeu as metas de erradicação da fome e da mi éria em vários formar nas bolsas de valores e muitas delas retornaram aos mesmos
o
países. Em 2007, a conta com a importação de alim ntos nos países patamares de supervalorização de antes de setembro de 2008. A valo- o
o subdesenvolvidos subiu 25%. Segundo Lula, a l vação mundial do rização do Ibovespa ao longo de 2009 foi de 76% (em dólar, de 130%).
\:)
preço dos alimentos era uma "inflação boa", qu nv cava os países
t-
a produzir mais e atender à demanda por alim nt ontrariando os
alertas de organismos como a Organizaçã das Na s Unidas para 3
"Lula diz que alta dos alimentos é 'inflação boa"', BBC News Brasil, 11 abr. 2008, disponível "'
<( Alimentação e Agricultura (FAO). Dizia L 1la: online na seção da BBC News Brasil no portal UOL, acesso em I Oset. 2019 . o

A MÉRICA L ATINA EM CONVU L SÃO HI STÓR I CA


88 ·M A R G E M E SQUERDA 33
O problema do "canal de contágio" da crise ra u b r llnu 1 , d iante Bridas, devido à n gativa daquele a aceitar os termos das nacionaliz -
de uma crise de natureza sistêmica e mundial, que nã p upava os ções bolivianas. No quadro capitalista, as bandeiras "integracioni ta "
países "bolivarianos" ou governados por "reformistas", cujas naciona- se transformavam em ficção política. A crise econômica repropôs os
lizações não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma problemas estruturais do desenvolvimento latino-americano.
etapa de transição nesse sentido, sob hegemonia do Estado. O capital Nessas condições, sob nova fachada (Obama) e velha direção (o
estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial, retornou sob a forma Pentágono), o governo norte-americano tentou uma nova ofensiva
de capital financeiro, usando as indenizações para a compra da dívida diplomática e militar na América Latina, num cenário mundial desgas-
pública. O governo de Lula pensou poder "navegar" a crise graças aos tado devido às suas intervenções no Iraque e no Afeganistão. Existia
recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros exportados em um labirinto de organizações militares dos Estados Unidos na América
2008, dos 24,5 bilhões produzidos) e de biodiesel, com destino princi- Latina, além de uma dúzia de bases aéreas não oficialmente existentes,
pal nos Estados Unidos. Os governos "progressistas" latino-americanos radares, centros de comando e outras posições militares, uma teia
batalharam, nos fóruns internacionais - especialmente na Organização de aranha desde Honduras e El Salvador, descendo até o Equador, o
Mundial do Comércio (OMC) - pela abertura dos mercados dos Estados Peru, a Bolívia e a Colômbia, fechando o polígono ao norte das ilhas
Unidos e da Europa (fortemente protegidos por barreiras tarifárias e de Curaçao, Porto Rico e Bahamas. Os Estados Unidos recriaram a
não tarifárias) às exportações primárias da América Latina. IV Frota Naval para a América Latina, com sede na Flórida, e com
A "periferia emergente" do capitalismo "global" enfrentava, em 2009, navios em atividade na América do Sul, Central e no Caribe, parte da
pagamentos externos por valor de US$ 8 trilhões, uma dívida contraída frota do Atlântico. Isso se deu em meio à ação da Colômbia contra
principalmente pelas multinacionais, superando em muitos casos as as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) no Equador,
reservas internacionais. Não era verdade que no ciclo econômico de e a proposta de Lula de criação de Conselho Regional de Defesa na
2002 a 2007 as nações dependentes se haviam transformado em cre- América do Sul. A América Latina entrava no cenário dos confrontos
doras no mercado mundial: com o aumento da dívida privada externa, políticos e bélicos intern,acionais. A ofensiva militar norte-americana
mantiveram-se como devedoras; os superávits comerciais foram a ga- se estendia do reforço das bases militares estabelecidas na Colômbia
rantia financeira do endividamento privado. Os governos da América e em outros países da América Central e do Caribe (76 bases militares
Latina afirmaram inicialmente que driblariam a crise com a "solidez" ianques na América Latina) à reativação da IV Frota; da formação de
das reservas dos bancos centrais. Mas a queda das bolsas regionais, a um bloco de governos de sustentação direta dos Estados Unidos no
saída de capitais e a desvalorização das moedas questionaram esses continente, composto por México, Colômbia, Peru e países da América
argumentos. O Brasil havia acordado com os Estados Unidos exportar Central e do Caribe, aos esforços diplomáticos dos Estados Unidos <(

etanol da América Central em troca da autorização para inversões norte- para afirmarem seu poder de tutela sobre Honduras, legalizando o
o
-americanas na indústria de biocombustíveis no país. Era um índice golpe institucional que derrubou o governo de Zelaya, inaugurando
de que os projetos unificadores latino-americanos haviam entrado em uma modalidade que se repetiria em breve no Paraguai e, sobretudo,
crise. O processo econômico operava em favor da desintegração de no Brasil. Barack Obama confirmou o secretário de Estado de Geor-
América Latina. O Brasil reduziu o consumo e o preço do gás bolivia- ge W. Bush para a América Latina (Thomas Shannon), que anunciou o
no. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul), guarda-chuva para que daria uma nova oportunidade de reaproximação com os Estados u
programas de gastos em infraestrutura favorecendo as empreiteiras Unidos à Venezuela de Chávez. O Brasil buscava construir relações
brasileiras, pôs o Brasil no limiar da ruptura diplomática com Equador com a Venezuela e os demais países da região, visando a fazer avan- o
o çar parcerias que permitissem integrar a infraestrutura da região e seu o
devido às violações trabalhistas e ambientais da Odebrecht no país -
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) parque produtivo, e assegurar o papel cada vez mais central exercido <(

f-
respaldou financeiramente a obra com um empréstimo de US$ 243 pelas grandes empresas brasileiras, sobretudo Petrobrás, Vale do Rio >
0:: milhões, que o Equador foi obrigado a quitar. Evo Morales nacionalizou Doce e as grandes empreiteiras. A reunião continental de Trinidad
o consórcio petroleiro Chaco, do qual fazia parte a empresa argentina e Tobago, além de alguma aproximação dos Estados Unidos com o

90 .M A R G E M E SQUERDA 33 A MÉR I CA L AT I NA EM CO N V UL SÃO HI S T Ó RI CA 91


h ávez, intermediada p ela diplomacia brasil ira, 1' i u alei 1 s hidrocarbone tos. No caso da Bolívia, em que pese as novas taxas
a iniciativa política d e reingresso de Cuba na Or ani , a os E ta- l!Yl [ stas às companhias estrangeiras, os monopólios ficaram com o
dos Americanos (OEA). Apresentado como o "fim da gu rra fria na lir ito de registrar como próprias uma grande parte das reservas de
América Latina", o apaziguamento entre os Estados Unidos e Cuba gtt e p etróleo, e ainda com a possibilidade de condicionar os futuros
a normalização de Cuba com a União Europeia (UE) serviriam para · ntratos. Nas nacionalizações realizadas por esses governos, inclusive
estabilizar politicamente a América Latina. 'm su as variantes "radicais" (Venezuela, Equador, Bolívia), os capita-
No Brasil, o centro da política governamental ficou determinado listas (externos e internos) receberam compensações até maiores do
pela remuneração extraordinária ao capital financeiro, que mante- valor em bolsa dos capitais "expropriados". O uso dos recursos fiscais
ve os fluxos de investimentos externos. Os cinco maiores bancos xtraordinários para compensar os capitais nacionalizados acabou
brasileiros - Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico inde-
Bradesco, ltaú e Santander - apresentaram em 2011 um lucro líqui- pendente. Os acordos da Venezuela com o Mercado Comum do Sul
do recorde de quase R$ 51 bilhões, quase · o total do montante do (Mercosul) serviram só para grandes operações financeiras, como a
corte orçamentário executado por Dilma Rousseff para seu segun- ompra da dívida pública argentina, mas não para abrir um processo
do ano de mandato. No meio da crise mundial, o crédito no país de industrialização independente.
passou de 38,4% do PIB (em dezembro de 2008) para 49,1% do Nesse processo, o Brasil se consolidou como uma lucrativa plata-
PIB (em dezembro de 2011). Isso não se referia apenas, nem prin- forma mundial de valorização fictícia de capital excedente (no que
cipalmente, à dívida das "famílias": referia-se, sobretudo, à dívida foi premiado pelas agências classificadoras de risco, antes de estas
do grande capital financeiro, uma cifra próxima de R$ 350 bilhões lhe baixarem o polegar), com uma transferência de 6,3% de seu PIB
(era de R$ 313 bilhões em setembro em 2009, com R$ 125 bilhões p ara os portadores de títulos da dívida pública. Paralelamente, a fase
dos bancos estrangeiros e R$ 188 bilhões dos bancos nacionais). O de crescimento baseada no incremento do comércio externo e inter-
pagamento da dívida passou a consumir percentagens crescentes do no tocou seu fim. Depois de um período de crescimento lento, que
orçamento federal. Lula, em que pese suas precárias condições de durou até 2003, o consumo anual das famílias brasileiras crescera, em
saúde, advogou pelo mundo os interesses da Vale, segunda maior média, 5,3% entre 2004 e 2010, chegando a 6,4% em 2010. Essas taxas
mineradora do mundo, controlada (com maioria acionária) pelo fundo caíram para 4,8% em 2011 e para 3,1% em 2012, desacelerando no-
de pensão do Banco do Brasil, Previ, controlado, por sua vez, pelo vamente em 2013; em 2014, o consumo privado cresceu apenas 0,9%
governo e pelo sindicato bancário - da Central Única dos Trabalha- (no período de 2011 a 2014, a taxa média fora de 3,1%, sensivelmente
dores (CUT). A Vale, maior empresa privada do Brasil, não usava seus inferior àquela da década precedente). A fraqueza política do segundo
lucros estratosféricos para aumentar ou mesmo manter patamares governo Dilma foi evidente desde seu início.
básicos de segurança, como demonstraram as catástrofes das barra- o
A dependência de vários países das receitas do petróleo e do gás le-
gens de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), que resultaram em vou à desvalorização de suas moedas. Países que registraram crescimento
desastres humanos e ambientais, os maiores do mundo derivados de de suas economias, como Brasil, Cazaquistão, Rússia, Nigéria e vários '-'
problemas de barragens. A crise mundial tocava o coração do capi- outros, padeceram da queda do preço e enfrentaram uma crise finan- o
tal industrial brasileiro (e do capital financeiro internacional que o ceira, com saída de capitais e desvalorização de suas moedas. Turquia, u
bancava) . A dívida da Odebrecht atingira R$ 62 bilhões para bancos África do Sul e México também passaram a ter dificuldades de pagar
e investidores que compraram suas debêntures: o débito provocou suas dívidas com a desvalorização monetária. A mudança nos preços o
o um prejuízo de R$ 1,58 bilhão ao grupo. o
internacionais, por outro lado, repercutiu pouco nos preços internos,
'-'
Na Venezuela, a nova associação com os monopólios internacionais sendo inócua para reativar o consumo final. Isso se deveu ao fato de que
<
f- do petróleo para a exploração do Vale do Orinoco não divergiu do a maior parte dos governos precisa dos impostos dos combustíveis para >
que as multinacionais negociaram com a Rússia ou com a Argélia: um fazer frente ao pagamento da dívida pública e ao resgate dos bancos. Mas V\

<( acordo estratégico para a exploração do mercado mundial e da renda seu impacto negativo sobre a taxa de lucro das companhias petroleiras o

92 M A R G EM E SQUE R DA 33 A M RICA L ATINA E M CO N V U LSÃO HISTÓRI C A


foi forte, devido ao aumento dos custos que acompa nh u I r ·viam nt trabalhadores, uma contrarreforma trabalhista e previdenciária e um
a elevação dos preços, pela distribuição da renda entr t d s tores ajuste do gasto social estimado em US$ 40 bilhões .
que intervêm na produção, pela incorporação de jazidas qu exigem A ascensão de Bolsonaro foi a saída de emergência ao fracasso
processos mais caros, ou pelo incremento dos investimentos. A queda do governo Temer e dos partidos de direita em impor uma mudança
mundial do preço do petróleo replicou a de todas as matérias-primas, governamental em seu favor, e expressou o avanço operacional das
dos minerais e dos alimentos. Essa guinada modificou o curso da crise Forças Armadas e a recuperação de seu protagonismo político. A emer-
econômica porque bateu em cheio na periferia. Na Venezuela, com o gência internacional da extrema direita, da qual Bolsonaro é a principal
preço do petróleo bruto mais baixo registrado historicamente, todas as expressão latino-americana, não é a simples repetição de episódios
conquistas sociais do "petrossocialismo" foram questionadas. A quebra fascistas do passado, pois possui especificidades que respondem à
das economias russa e venezuelana pareceu relacionar-se à estratégia natureza da atual crise mundial. As eleições norte-americanas de 2016
dos Estados Unidos. A estratégia saudita foi a de inundar o mercado de guindaram o republicano Donald Trump ao poder com um discurso
petróleo, aproveitando o crescimento da demanda da China para deixar xenofóbico , sexista e racista. O governo Bolsonaro-Heleno-Moro
permanentemente de fora do jogo o Irã, severamente prejudicado por identificou a "segurança pública" com a "segurança nacional", trans-
não ser capaz de competir em um mercado com um preço tão baixo. formando em doutrina militar a estratégia de militarização da "guerra
A dívida pública do Brasil superou, no início do quarto mandato contra o narcotráfico)) impulsionada pelos Estados Unidos. Bolsonaro,
do Partido dos Trabalhadores (PT), o equivalente a 60% do PIB; pior no entanto, desenvolveu um governo com capacidade de arbitragem
era a situação da dívida privada, situada perto de 100% do PIB . Em limitada e cerceada pela pressão do capital financeiro internacional.
que pesem os superávits primários que totalizaram, entre 2002 e O giro à direita no Brasil aconteceu em um continente sacudido por
2013, R$ 1,082 trilhão, a dívida interna pulou para quase R$ 3 trilhões convulsões econômicas e crises sociais e políticas. Milhares de centro-
(R$ 2,88 trilhões, ou US$ 1,2 trilhão). Nesse quadro, a entrada de -americanos marcharam em direção ao Norte, organizados sem o
capital especulativo para aproveitar a diferença das taxas de juros trabalho de nenhuma organização política, para escapar da miséria e
brasileiras com as dos mercados internacionais enfrentou uma rever- da morte em seus países. Na Costa Rica, uma greve geral prolongada
são de tendência . A fuga de capitais resultou em uma significativa e, na Nicarágua, uma rebelião popular enfrentaram a contrarreforma
desvalorização do real, da ordem de 30%. O temor da fuga de capitais previdenciária imposta pelo FMI, que Macri e Bolsonaro pretendem
exerceu pressão sobre a taxa de juros no Brasil, com impacto negativo impor em seus países. A enorme migração de venezuelanos foi o úl-
sobre o financiamento da indústria e do crédito ao consumo. O golpe timo capítulo de um regime de origem nacionalista transformado em
no Brasil, que derrubou o governo petista, se inscreveu em uma ba- governo de espoliação financeira, que usa a oposição conspirativa da
talha de alcance continental pela reconfiguração geral dos negócios direita para amarrar, arregimentar e reprimir toda tentativa de luta de
o
e da exploração dos recursos naturais da América Latina; uma dis- classes e cercear o ativismo político e social. A crise mundial deu fim
puta entre a burguesia nacional, o imperialismo norte-americano e a ao nacionalismo fiscal petroleiro, que beneficiou acima de tudo uma
China pela divisão dos recursos nacionais e pelos contratos das obras nova burguesia vinculada ao Estado, e colocou as alternativas de um <.;)

públicas financiadas pelo Estado. A abertura da economia brasileira, golpe institucional e de uma intervenção político-militar. o
em especial à China, foi benéfica para o agronegócio, mas também A base dos abalos sociais e políticos da América Latina é a persis- u
criou uma concorrência ruinosa para setores inteiros da burguesia tência da crise econômica internacional. As contradições do capital
industrial, mineradora e siderúrgica. A desvalorização que sofreu a são mais fortes que os esquemas políticos . Depois de 2007 e 2008, as o
o B3 foi a base para enormes negócios dos bancos e dos fundos de economias regionais experimentaram um breve ciclo de crescimento o
'-' investimento internacionais, na busca de uma redistribuição dos pa- determinado por uma combinação de circunstâncias: o auge da deman-
,_ trimônios e capitais no país. As dívidas pública e privada superaram da de matérias primas pela China e a migração de capitais dos países >
a:: o PIB do país. Por cima de divergências internas, a classe capitalista centrais, determinada pela injeção de liquidez destinada a salvar o
<( em seu conjunto reivindicou um ajuste econômico brutal contra os capital metropolitano em vias de falência . A captação de capitais pela o

94 M A R GE M E SQUER D A 33 AMÉR I C A L A TI NA EM CONV UL SÃO HIST Ó RI CA 95


América Latina teve um caráter parasitário, d val ri za ·:10 11 nan eira mpr as em ris o barateamento na compra de insumos e equi-
graças às maiores taxas de juros oferecidas pelo p aí s I rii ' ricos. p ame ntos, diante da crescente obsolescência do parque produtivo. O
Desde 2013, a curva econômica internacional voltou a l s r- houve acordo, que favorece os grupos do agronegócio, também anuncia uma
uma queda internacional de preços com forte impacto nos' países primarização ainda maior da economia. Do ponto de vista político,
latino-americanos. Desde finais de 2017, acentuou-se a saída de capi- representa uma rendição da diplomacia do Mercosul, especialmente do
tais, devido ao aumento das taxas de juros internacionais e à guerra Itamaraty, cujos técnicos passaram um quarto de século defendendo
econômica . A China mudou seu papel de amortecedor internacional uma linha de negociação que se evaporou.
da crise econômica mundial e enfrenta a possibilidade de severas A análise da estrutura tarifária dos blocos mostra que as tarifas em
crises financeiras. vigor no Mercosul para os produtos europeus são de cerca de 25%,
As perspectivas políticas da América Latina estão condicionadas ao passo que para os produtos do Mercosul na UE são de 5%. Isso vai
pelo desenvolvimento dessa crise. A guerra comercial entre Estados acabar. Em primeiro lugar, há o protesto da siderurgia brasileira, que
Unidos e China desativou em boa medida o motor da economia tem um parque de produção de mais de 50 milhões de toneladas de
mundial depois da crise asiática, anunciando novas crises financeiras aço bruto por ano e enfrenta uma ociosidade de 33%. O projeto de
e quedas das bolsas de valores, em cujo deslanche se encontram as integração capitalista entre os países do Mercosul, que nasceu como
empresas apresentadas como portadoras de uma nova revolução pro- uma unidade defensiva de alguns grupos econômicos locais e foi
dutiva que acabaria com as contradições capitalistas: o novo capital marcado por uma sucessão interminável de conflitos internos, dá um
sobrevalorizado nas bolsas é que pressiona por um incremento da salto no caminho da sua desintegração. Em sua condição de tentati-
taxa de mais-valor. O choque estratégico entre os Estados Unidos e va integracionista baseada nas duas maiores economias da América
a China possui a capacidade potencial de deflagrar uma guerra eco- do Sul, trata-se do abandono de qualquer possibilidade de inserção
nômica internacional de enormes proporções. Os planos chineses independente das nações sul-americanas na economia mundial sob
apontam a quebrar o monopólio norte-americano na produção de comando da classe capitalista. A liquidação da indústria pesada "na-
semicondutores e na inteligência artificial. A lógica da financeirização cional" e uma desnacionalização maior da economia estão na pauta,
não corresponde exclusivamente ao neoliberalismo dos anos 1990, que o Brasil de Bolsonaro pretende estender para um acordo de
que pegou esse bonde andando (o neoliberalismo foi uma resposta livre-comércio com os Estados Unidos. Se o acordo UE-Mercosul for
à crise econômica que se alastrava desde a década de 1970), mas ao ratificado pelos parlamentos, o que não deve acontecer sem tremores,
endividamento externo sem limites implementado pelas ditaduras haverá choques em todos os setores da atividade econômica, devido
militares como meio para uma "modernização" que resulta na desin- às enormes vantagens das empresas europeias sobre as locais, pelo <(

dustrialização do continente e no agravamento de sua dependência e seu acesso muito mais favorável a infraestrutura, tecnologia e fontes
de seu desenvolvimento desigual. o
de financiamento. Entre os beneficiários do acordo estão os monopó-
Nesse quadro aconteceu o acordo de livre-comércio entre o Mer- lios com operações em ambos os blocos, aproveitando-se da ampla
cosul e a União Europeia, anunciado como um "avanço histórico". A liberalização do comércio intraempresas, o que lhes permitirá ampliar
celebração do acordo por diferentes frações burguesas no Brasil e na a concorrência por trabalhadores, deslocando a produção para onde o
Argentina tem sua base material na presença maciça de monopólios existam menores salários e menos direitos trabalhistas, estes em vias u
alemães, franceses, espanhóis e italianos nas economias do Mercosul, de destruição nos países latino-americanos.
e seu entrelaçamento com uma boa parte da burguesia local, em uma O limitado nacionalismo fiscal latino-americano, que evitou na- o
o relação de subordinação. A assimetria é evidente: a UE é o maior o
cionalizar os recursos naturais e foi incapaz de avançar na via de um
investidor no Mercosul, com uma carteira de€ 381 bilhões, enquanto desenvolvimento econômico independente, não aproveitou uma situa- <(

f-
a carteira de investimentos do Mercosul na UE é de€ 52 bilhões. Na ção internacional relativamente favorável (o boom das commodities) >
"' burguesia tupiniquim há a expectativa de maior associação ou me- para atualizar a infraestrutura produtiva, acumulando fracassos n<!s
lhores condições para a venda ao capital estrangeiro do controle de iniciativas de integração financeira, energética e política - Banco do o

96 M ARGEM E SQUERDA 33 AMÉRICA L ATINA EM CONVULSÃO HISTÓRICA 9/


ul, Gasoduto do Sul, associação Petrobras-P V A, U1asul, Alian a
Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba). q u stá posto
na pauta histórica, devido ao aprofundamento da política neoliberal
e da pressão imperialista, é que as tarefas nacionais passem para as
mãos da classe operária organizada. As crises políticas e as mobiliza-
ções populares definem a agenda política: trata-se de uma transição
para uma fase em que as lutas por demandas imediatas irão colocar Marx: "O método da economia política"
cada vez mais a questão do poder político. A tarefa dos trabalhadores
é tornar politicamente independentes suas organizações e tornar-se como crítica ontológica
alternativa política sob a bandeira da unidade socialista da América
Latina, o que implica superar criticamente as experiências políticas da MAR/O DUAYER
esquerda latino-americana em seu conjunto, em especial as do passado
imediato. A luta pelos interesses comuns que unem os trabalhadores
latino-americanos, norte-americanos e europeus recoloca, junto a isso
e de modo complementar, a questão do internacionalismo proletário,
pondo novamente na pauta mundial a construção de seus instrumentos
políticos, exatamente no ano do centenário da fundação da Interna-
1. Introdução
cional Comunista, que foi sua expressão mais elevada até o presente. Este artigo discute a chamada questão do método em Marx. O
debate em torno das questões metodológicas na tradição marxista
baseia-se em grande parte no famoso texto intitulado "O método da
economia política", que aparece na "Introdução" dos Grundrisse1. Em-
bora inacabada e não publicada pelo autor, constitui a única obra em
que Marx trata de modo explícito das questões relativas ao método.
É natural, portanto, que ela seja referência obrigatória nas disputas
teóricas sobre o método de Marx.
Como O artigo consiste em uma contribuição crítica no interior da
tradição marxista, vale advertir, e não apenas por cortesia protocolar,
que outras dimensões da obra dos autores aqui mencion~dos não
O que pensava o autor de O capital sobre as estão em questão: os comentários críticos concentram-se unicamente
relações entre classe, gênero e raça ou sobre a nas interpretações de "O método da economia política". Cumpre
dominação colonial, por exemplo?
inclusive reconhecer o valor de suas obras na divulgação do texto
>-
A partir da análise de artigos de jornal, cadernos marxiano, além de servirem para ampliar e enriquecer importantes <(

etnológicos e de citações, livros canônicos e cartas, aspectos que dele se desdobram. . . :,


Marx nas margens demonstra que, no decorrer de A crítica desenvolvida no artigo procura mostrar, em pnmeiro lugar, o
sua trajetória intelectual, questões como o impacto que é um grave equívoco sugerir que Marx estabelece ali as linhas ~erais
europeu na Índia, na Indonésia e na China, as rela-
ções entre emancipação nacional e revolução (na
do seu método; em segundo, e mais relevante, que, com exceçao de o
Rússia e na Polônia), entre raça, classe e escravi-
dão (nos Estados Unidos) e entre nacionalismo, <(
tradução: Allan M. Hillani e Pedro Davoglio
prefácio: Guilherme Leite Gonçalves classe e movimento dos trabalhadores (na Irlanda) 1 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 - esboços da crítica da economia
orelha: Jones Manoel tornaram-se alvo do interesse e de estudos apro- política (trad . Nélio Schneider, São Paulo , Boitempo, 2011 ), p. 54-61.
416 páginas
fundados do pensador alemão.
M A RX : ., o M ÉT oDo DA E eo N o MIA p o L IT I e A " e o M o e RIT I e A o N T o L ó G I e A 99
Lukács2, as interpretações mais influentes não ns ' i 1 'm la r nta da novo à p opulação, mas d sta vez não como a representação caótica d um
orientação ontológica do texto marxiano, justament a lim " 11S' funda- todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. A
mental de sua crítica. Com esse propósito, o artigo inicia tran crevendo primeira via foi a que tomou historicamente a economia em sua gênese.
as passagens da obra de Marx de maior interesse para a discussão. economistas do século XVII, p. ex. , começam sempre com o todo vivente, a
Em seguida, comenta o seu exame elaborado por alguns autores para população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.; mas sempre terminam
ilustrar os elementos mais característicos do que se pode considerar a com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão
sua interpretação padrão. Por último, sustenta que Marx descreve ali os do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise. Tão
procedimentos da ciência em geral, e não do seu método, razão pela logo esses momentos singulares foram mais ou menos.fixados e abstraídos,
qual se pode inferir que a resolução da questão não é propriamente começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como
metodológica, gnosiológica ou epistemológica, mas sim ontológica. trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a
troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente
2. O método de Marx? o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese
Não há como elaborar a crítica sem citar a extensa passagem inicial de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa
de "O método da economia política" que sintetiza as ideias de Marx. razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como
Para facilitar a exposição e discussão, optou-se por destacar em itálico resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida
as passagens do texto mais comentadas na literatura: efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da
representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em
Se consideramos um dado país de um ponto de vista político-econômico,
uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam
começamos com sua população, sua divisão em classes, a cidade, o campo,
à reprodução do concreto por meio do pensamento. 3
o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a exportação, a
produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Como será ilustrado a seguir, em geral esses dois primeiros parágra-
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto fos têm sido utilizados para assegurar ou sugerir que Marx considera
efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela seu o segundo método - a viagem de retorno -, o método cientifi-
população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção camente correto. Callinicos, por exemplo, logo após haver citado a
como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se passagem, conclui que
mostrafalso. Apopulaçãoéumaabstraçãoquando deixodefora, p. ex., as
esse, portanto, é o método de análise de Marx [. ..] [então] nós vamos
classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra
primeiro do concreto ao abstrato , decompomos o concreto em suas
vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho "determinações mais simples" e , depois, do abstrato ao concreto, usando
assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc.
aquelas determinações para reconstruir o todo. Veremos esse método
O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem 4
em operação quando Marx analisa a sociedade capitalista em O capital.
o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta o::

seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação Carchedi parece defender interpretação idêntica. Citando a passa-
>-
mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples, gem de Marx de que seria necessário "dar início à viagem de retorno
<(

do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não ::,
vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totali- o
teria de dar início à viagem de retorno até que .finalmente chegasse de dade de muitas determinações e relações"5, ele sublinha que
o
o

3 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 54 , grifos nossos. o::


2
1-- Ver Gyõrgy Lukács, Para uma ontologia do ser social, v. 1(trad. Carlos Nelson Coutinho, Ma-
<(
0:: rio Duayer e Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 201 1), capítulo IV, seção 2, para a análise 4 Alex Callinicos, The Revolutionary ldeas of Karl Marx (Londres, Bookmarks, 2004), p. 74.
detalhada do tema elaborada pelo autor. 5 Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54.

100 M A R G E M E S QUERDA 33 M ARX : "Q MÉ T O D O DA EC O NOMIA POLÍTICA " C O MO C RÍTICA ON T OL Ó GI C A 101


[isso] é o que Marx denomina "concreto n p 'nsam 'Ili < ". A fas d Em sua anális d " método da economia política", Nett b-
remontagem é a dedução dialética, o desdobram nt (r nstrução no s rva que "o método de Marx" não é o produto de súbito e g nial
pensamento) de noções da realidade mais e mais concr tas, detalhadas insight, mas de longo processo de investigação. Em sua opinião, na
e articuladas derivadas de seu estado potencial. Cada etapa no desdo- "Introdução", após quinze anos de estudos, estão formulados "com
bramento é uma conclusão (temporária), mas também a premissa para 0 precisão os elementos centrais" do método de Marx. Ainda segundo
próximo passo na cadeia de deduções. 6
ele, as poucas páginas da obra apresentam sintetizadas "as bases do
O autor descreve o processo do conhecimento exposto por Marx método que viabilizou a análise contida n' O capital e a fundação da
em termos de indução e dedução dialéticos, distintos de seus equiva- teoria social de Marx" 1º.
lentes na l~gica formal. Não é o caso de discutir aqui essa proposta O autor recorda que, no processo de conhecimento, de elabora-
de Carched1, mas se ele afirma que "o ponto de partida da indução de ção teórica ou de apropriação teórica do objeto proposto por Marx
Marx é de fato a realidade empírica" 7 , fica claro que, para ele, Marx "começa-se 'pelo real e pelo concreto', que aparecem como dados;
de fato fala de seu próprio método. pela análise, um e outro elementos são abstraídos e, progressivamen-
Foley decerto partilha interpretação semelhante quando, ao asse- te, com o avanço da análise, chega-se a conceitos, a abstrações que
gurar que o "duplo movimento é disseminado nos escritos de Marx" remetem a determinações as mais simples" 11 •
julga que O capital pode ser visto como ' E complementa, apoiado no texto marxiano, que este foi o método
adotado pela economia em sua gênese. Todavia, na sequência de sua
um movimento para reconstruir no pensamento a totalidade complexa
análise, Netto despreza um elemento crucial do argumento de Marx.
das relações sociais capitalistas iniciando a partir das abstrações mais
De fato, segundo ele, para Marx o "procedimento analítico foi neces-
simples - mercadoria, valor, dinheiro - e, finalmente, chegar às formas
sário para a emergência da economia política", porém não é suficiente
mais complexas e distorcidas, por exemplo, o mercado de capitais e crise. 8
para "reproduzir idealmente (teoricamente) o 'real' e o 'concreto"' 12 •
Basu, em workingpaperdo Departamento de Economia da Universidade De posse das determinações mais simples, como recomenda Marx,
de Massachusetts (campus de Amherst)-famoso por sua tradição marxista- seria necessário fazer a viagem de volta e chegar à população, não
está co~vencido ~~ que, dos Grundrisse até a redação de o capital, mais como representação caótica da totalidade, mas "como uma rica
Marx pos em pratica a sua compreensão do "método correto da totalidade de muitas determinações e relações" 13 . É esta "viagem de
economia política", que teria sido mostrado de maneira detalhada na volta", conclui ele, que Marx caracteriza .c omo "o método adequado
"Introdução". Segundo o autor, Marx explica que "ascender do abstrato para a elaboração teórica". E arremata com a afirmação de Marx: "O
ao concreto é o único caminho científico para entender uma realidade último método é manifestamente o método cientificamente exato" 14 .
concreta como a sociedade capitalista". Tal movimento termina "com Não é possível afirmar que, para Netto, Marx refere-se ao seu mé-
uma síntese estruturada de determinações, que é a maneira como todo ao mencionar a viagem de volta como o método cientificamente
Marx visualizou a reprodução no pensamento da realidade concreta exato. Todavia, a forma como apresenta e comenta as passagens do
a::
que ele estava analisando"9. texto marxiano sem dúvida induz o leitor a essa conclusão. De fato,
apesar de ter alertado que "não lhe [ao leitor] oferecemos, em nome >-

6 ::,
Guglielmo Carchedi, Behind the Crisis: Marx's Dialectics of Value and Knowledge (Leiden Brill
2011), p. 46. . . . , , 10 o
o José Paulo Netto, Introdução ao estudo do método de Marx (São Paulo, Expressão Popular,
7
<.:)
Idem. 2011), p. 19.
8 11 o
Duncan Foley, Understanding Capital: Marx's Economic Theory (Cambridge, Harvard University Ibidem, p. 42.
.... Press, 1986), p. 4. 12
Ibidem, p. 43. a::
9
"' Deepankar Basu, "The Structure and Content of Das l<Dpital" , UMass Amherst Economics 13
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54.
<(
Working Papers, Amherst, Universidade de Massachusetts, 2017, working paper n.2017-12, p. 6. 14
José Paulo Netto, Introdução ao estudo do método de Marx, cit., p. 43. L

i 02 M A R G E M E S Q U ERD A 33
MA R X : "o M ÉT o D o DA E e o No MI A p o LI TI e A " e o Mo e RI TI e A o N To L ó G I e A 103
de Marx, um conjunto de regras para orientar a p ' S I ilst1" '\ 1 f cha
assim a análise: provocada por tal ambiguidade. Quartim interpreta de outra f rma,
notando, é claro, que não é bem isso o que Marx pretende sustentar.
O conhecimento teórico é [. .. ] para Marx, o conhecimento do concreto, Reafirma, com Marx, que, embora a população seja "o fundamento
que constitui a realidade, mas que não se oferece imediatamente ao pen- o sujeito do ato social de produção", ela é uma abstração, se ignoro
samento: deve ser reproduzido por este e só "a viagem de modo inverso" suas determinações e, portanto, alcanço somente uma "representação
permite esta reprodução. L..] o concreto a que chega o pensamento pelo caótica do todo" 19 . Com relação ao fato de que, no texto marxiano,
método que Marx considera "cientificamente exato" (o "concreto pensado") "representação venha associada ao caos[...] e assimilada a uma abstra-
é um produto do pensamento que realiza "a viagem de modo inverso". ção", Quartim enfatiza algo impo1tante para compreender o argumento
Marx não hesita em qualificar este método como aquele "que consiste de Marx, e que em geral não é realçado:
em elevar-se do abstrato ao concreto", "único modo pelo qual 'o cérebro
Todo substantivo comum é um universal e [.. .] o resultado necessariamente
pensante' se apropria do mundo ".16
abstrato de uma generalização operada na e pela prática da comunicação
A conclusão equivocada que se pode depreender de sua análise social. Transpostos da linguagem corrente para o discurso teórico, os
resulta, a nosso ver, de sua omissão da passagem, essencial no texto substantivos [. ..] mantêm um núcleo semântico básico sobre o qual incide
comentado, em que Marx afirma que os "sistemas econômicos, que se o esforço do conhecimento científico. Tanto na economia política como
elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessida- na biologia, por população se entende uma coletividade composta de
de, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado indivíduos vivendo numa área determinada. É evidente que neste nível
17
mundial" . Por sistemas econômicos, claro, Marx quer dizer teorias de generalidade, a noção não designa um conhecimento, mas um objeto a
econômicas, que, portanto, fizeram a "viagem de retorno". Ora, se, ser conhecido, o qual, sem embargo, é suscetível de ser progressivamente
para ele, a ciência econômica fez a "viagem inversa", Marx não poderia determinado com precisão.20
considerar exclusivamente seu esse "método cientificamente correto".
Na verdade, ao falar de "representação caótica do todo", Marx
Quartim de Moraes também analisa em detalhe "O método da
refere-se à forma mais imediata de consideração de um país do ponto
economia política" e, ao contrário dos autores analisados anterior-
de vista político-econômico, ou seja, com "sua população, sua divisão
mente, não parece considerar que Marx expõe ali aquilo que seria o
18 em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos de produ-
seu método . Entretanto, apesar das interessantes contribuições que
ção, a importação e a exportação, a produção e o consumo anuais,
apresenta para o esclarecimento das posições de Marx, a meu ver sua
análise mostra-se inconclusiva. os preços das mercadorias etc." 21 . Por conseguinte, ao contrário do
que se depreende do texto de Quartim, nesse caso a população não
Sua exposição começa destacando o caráter aparentemente parado-
é apenas um universal abstrato como qualquer substantivo comum,
xal da afirmação inicial de Marx de que o ponto de partida correto é
uma vez que é especificada com aquelas determinações. Ademais, é
o real e o concreto, o pressuposto efetivo, para em seguida sustentar
importante frisar que, apesar de abstrata, trata-se ainda assim de um
que, sendo mais rigoroso, isso se mostra falso. Em lugar de paradoxal, o:
tipo de conhecimento, uma representação que, por mais caótica que
diria que tal ambiguidade poderia ser vista como expediente retórico
seja, consiste em uma inteligibilidade - pré-teórica, pré-científica - do >-
para despertar a atenção do leitor, tirando partido da perplexidade
mundo, pressuposto da prática social dos sujeitos. Paradoxalmente,
Quartim parece concordar com isso, pois, ao fazer uma crítica à in- :,
15
Ibidem, p. 41-2. terpretação de Althusser do texto marxiano - que aqui não vem ao o
o
16
Ibidem, p. 44-5. caso - , reclama que:
17
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54, grifos nossos. o
f- 18
19
João Quartim de Moraes, ';As abstrações, entre a ideologia e a ciência", Crítica Marxista, n. 44, Ibidem, p. 44. a:
0:
2017, p . 43-56. Sem a devida permissão do autor, daqui em diante o chamaremos somente 20
Idem.
"Quartim" ao longo do texto, pois é como o teórico marxista é amplamente conhecido. 21
Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 54.

104 M A R G E M E SQUERDA 33
M ARX : "o MÉ T o D o DA EC o No MI A p o L í TI C A" e o Mo C R í TI C A o N To Ló G ICA 105
[Althu e r) também deveria explicar que ant s d s ·rvlr · m matéria -
vida cotidiana"25 . E, a prática intencional atua sobre estruturas pr -
-prima da produção teórica, as intuições e repres nta s onstituem xistentes, reproduzindo-as ou transformando-as, segue-se que algum
26
o acervo léxico de cada idioma, que resulta da prática social. [.. .] Elas tipo de conhecimento das estruturas é condição da prática . Dito de
cristalizam o pensamento social acumulado em cada momento histórico outra forma, pode-se concluir que noss!ls apreensões da realidade
e proporcionam ao conhecimento o acervo de ideias que constituem os não são o resultado do que "captamos na percepção sensorial, mas
materiais sobre os quais opera o trabalho da teoria. 22 são resultados das teorias [e/ ou representações] em termos das quais
27
nossa apreensão das coisas é organizada" .
_Apesar de esclarecedora, creio que a passagem merece reparo, Nesse sentido, pode-se afirmar que Marx, ao dizer que sempre se
p01s, tal como Marx sugere na passagem em questão, mas também em inicia pela população, refere-se não a um mero substantivo, mas a uma
outros momentos 23 , parece ser mais adequado inverter a proposição representação da população que, na ausência de uma ciência econô-
de Quartim e afirmar que as intuições e representações constituem mica, era condição necessária para os agentes na vida econômica real.
o acervo de figurações do mundo, pressuposto necessário da prática Não há dúvida de que é isso que Marx tem em mente quando nota que
social e, nessa condição, são de fato o material a partir do qual se
se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica
constroem as teorias. Essa inversão não só é mais correta cronológica
do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria anali-
e conceitualmente, pois o acervo léxico não existe apartado e "antes"
ticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado
da apreensão conceituai da realidade 24 , mas também explicita uma
[chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que
obviedade, a saber, que a realidade social, sendo produto da prática
intencional dos sujeitos, sempre tem de ser figurada, concebida por tivesse chegado às determinações mais simples.
[... ] [a] primeira via [o caminho de ida] foi a que tomou historicamente a
eles de alguma forma .
economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., come-
Em uma formulação alternativa da mesma ideia, do truísmo de que
çam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos
qualquer atividade humana tem por pressuposto necessário a existência
Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes,
de estruturas sociais, Bhaskar conclui que a sociedade proporciona
abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc. , que
meios, regras e recursos para tudo o que fazemos. Significa dizer, a . d , . 2s
sociedade, com suas estruturas, é condição necessária para qualquer desco b rem por me10 a ana 11se.
atividade teleológica. Disso se infere que nós não criamos a socieda- A economia, portanto, em sua fase de formação , inicia com a
de, que sempre preexiste a nossas ações. O que fazemos com nossa representação da população dos agentes reais da produção so~ial.
prática é reproduzir e/ ou transformar as estruturas sociais - materiais Quartim é mais enfático ao sublinhar que, para os economistas
e espirituais - que são condição de nossa prática cotidiana. Nas pa- do século XVII, "não havia outro modo [.. .] de avançar na análise
lavras do autor: "[o] mundo social é reproduzido ou transformado na econômica" 29, de forma que Marx não teria razão para qualificar de
falso tal caminho. Coisa que Marx, para ele, tacitamente admite na
"'
22 João Quartim de Moraes, ''As abstrações entre a ideologia e a ciência" , cit., p. 79-80. sequência do argumento:
23 >-
Ver adiante, a passagem em que ele critica a economia vulgar no capítulo intitulado ''A fórmu la Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abs-
trinitária".
traídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, ::,
24
Como defende Lukács: "Já vimos como o pôr teleológico ~onscientemente realizado provoca
um distanciamento no espelhamento da realidade e como, com esse distanciamento, nasce a o
relação sujeito-objeto no sentido próprio do termo. Esses dois momentos implicam simultanea-
o 25 Roy Bhaskar, Recloiming Reolity (Londres, Verso, 1989). o
mente o surgimento da compreensão conceptual dos fenômenos da realidade e sua expressão
adequada através da linguagem. [ ... ] Com efeito, palavra e conceito, linguagem e pensamento 26 Ibidem, p. 3-4.
c?nceptual são elementos _vinculados do complexo que se chama ser social, o que significa que 27 Ibidem, p. 60-1 . "'
... so podem ser compreendidos na sua verdadeira essência relacionados com a análise ontológica
2a Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 54.
"' dele e reconhecendo as funções reais que eles exercem dentro deste complexo", Gyõrgy Lukács,
29 João Quartim de Moraes, ''As abstrações entre a ideologia e a ciência", cit. , p. 45.
<( Poro uma ontologia do ser social, v. 2 (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 84-5.

MAR X : "o MÉ To D o DA EC o No MI A p o LI TI C A" Co Mo C R í TI e A o NTo Ló G I C A 107


106 M A R G E M E S QUERDA 33
d la se erve para forjar as ferramentas analíticas que permitem re produzir
orno trabalho, divisão do trabalho, nece ida 1 , :do,· 1• 1r a, até o
Estado, a troca entre as nações e o mercado mundia l. úll lm manifes- o "concreto no pensamento " .34
tamente o método cientificamente correto. O concre to n reto porque Esse é justamente um dos pontos centrais da posição defendida no
é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. presente artigo. Todavia, não pelas mesmas razões apres~ntada_s por
Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da Quartim, que atribui a Marx o erro de apres_e~tar como dois caminho~
síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o o que consistiria em três momentos de um urnco pr_o cesso - de for1;1a
ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida ção da teoria econômica -, equívoco esse que tena gerado o c~r_ater
da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi paradoxal da "Introdução". De acordo com o autor, Ma~ não facilita a
volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações compreensão de seu argumento na medida em que qualific~ co_mo falso
abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. 30 · · ami·nho Em sua opinião "Marx segmenta artificialmente
o pnmelfo c · 'A . ·
Interpretado de maneira correta, o argumento de Marx pode ser a história da formação da teoria economica, apresenta~do co~o d_?is
assim descrito: os responsáveis pela gênese da economia não tinham caminhos (um que termina, outro que começa nas ~eterminaçoes
,,3,
por onde começar a não ser pelas representações correntes dos agen- abstratas') os três momentos de um mesmo processo . ,
tes reais da produção social. Como observa Lukács, "[a] totalidade na Em virtude dessa interpretação, Quartim arrisca uma hipotese para
natureza pode ser inferida de muitas maneiras, por mais rigoroso que explicar O que considera o "paradoxo dos d_ois caminhos". Seg~ndo
seja o raciocínio; no campo social, ao contrário, a totalidade sempre ele Marx não atribui aos primeiros economistas o erro em partlf do
está dada de modo imediato" 31. É sobre essa totalidade sempre ime- pri~eiro caminho, mas às análises que partem
diatamente dada que agem os sujeitos que, portanto, sempre têm da representação obscura de um todo vivo no século XIX, q~1~ndo os
de figurá-la de alguma forma. Desse modo, posto que a realidade elementos simples, identificados pela análise, já tinham perm1t1do que
social é sempre representada 32 , aqueles economistas partiram dessas os sistemas econômicos se elevassem até o Estado [. ..] A grande tarefa
representações para, por meio da análise, descobrir "algumas rela- teórica que devia ser levada adiante, na segunda metade do século XIX,
ções determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, era a crítica da economia política tal como tinha sido elaborada por Adam
dinheiro, valor etc." 33 . O conhecimento assim adquirido, infere-se do Smith no último terço do século XVIII e por David Ricardo e outros nas
texto de Marx, retorna à prática e a torna mais eficaz, pois agora os primeiras décadas do XIX-
36

sujeitos atuam conhecendo algumas estruturas e legalidades.


Na verdade se há algo que se pode qualificar de artificial sem
Com relação à dupla viagem - de ida e de volta - do texto mar-
dúvida é a hipótese levantada por Quartim, que não _e~contra qual-
xiano, Quartim contribui para dissolver o pseudoproblema com uma
quer amparo direto ou indireto no original. Ao contrano do ~ue. ele
formulação muito simples e direta, quando, ao salientar a dificuldade
propõe, 0 problema para Marx não _consiste _em que os pnmelf~S
de compreender a proposição de Marx, sustenta que
economistas erraram por não terem feito o caminho de volta, por nao
parece óbvio que longe de se opor ao primeiro caminho, o segundo o terem totalizado a partir das relações e determinações descob.:rtas.
>-
pressupõe. O primeiro parte das representações da linguagem corrente Na verdade, 0 problema é que não abandonaram a representaç~o da
para dissolver a representação em determinações abstratas. O segundo totalidade da qual partiram, mantiveram as noçõ~s s~bre a realidade ::,

imediatamente dada, agora acrescida das determinaçoes descobertas o


30
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54.
e, por isso, estavam dispensados de totalizar.
o 31
o
l'.)
Gyõrgy Lukács, Para uma ontologia do ser social, v. 1, cit., p. 304.
32
Sobre esse tema, ver também Mario Duayer, '/\nti-realismo e absolutas crenças relativas", 34 João Quartim de Moraes, '/\5 abstrações entre a ideologia e a ciência" , cit. , p. 45.
... Margem Esquerda, n. 8, 2006, p. 109-30; e "jorge Luis Borges, filosofia da ciência e critica onto-
35 Idem.
a: lógica: verdade e emancipação", Margem Esquerda, n. 24, 2015, p. 87-11 O.
<( 33
Karl Marx, Grundrisse, cit. , p. 54. 36 Ibidem, p. 46.

NO MI A POLÍT I CA" COMO C R Í TI CA ONTOLÓG I CA


"0 DA ECO
108 M A R G E M E SQUERDA 33 M ARX: MÉTODO
Em sínte e, pretendemos ter ilustrado ne ta s a inL 'rpr tação ualquer conhecimento sobre a realidade investigada para além do
muito disseminada segundo a qual a "viagem d r t rn " é marca f nomênico . Em suma, o significado fundamental da explanação
distintiva e exclusiva do método de Marx, exceção feita à ontribuição de Marx pode ser assim expresso: toda ciência totaliza, forma uma
de Quartim, que, entretanto, é inconclusiva. Na próxima seção será figuração da realidade em questão, uma reprodução do concreto,
mostrado que o equívoco dessas análises tem origem no fato de elas resultado do processo de síntese. Faz a viagem de retorno com os
se circunscreverem ao, digamos, problema do método, ao passo que elementos obtidos no processo de análise. Inaugura uma nova on-
a análise de Marx evidencia justamente que o problema é de caráter tologia ou oferece argumentos científicos para ontologias correntes.
ontológico. O que se trata de provar na próxima seção.
Por conseguinte, é possível assegurar que, para ele, o problema da
3. Crítica ontológica
ciência não é totalizar, mas de que maneira ela totaliza. E a partir
de quais categorias39 .
A primeira coisa a se observar para a adequada interpretação do Questão, a meu ver, tratada por Marx (ainda que em comentário
pensamento de Marx é a sua declaração categórica sobre a instauração marginal) na seção sobre o fetichismo da mercadoria em O capital:
dos sistemas econômicos. Como se viu antes, ele afirma que
A reflexão sobre as formas da vida humana, e, assim, também sua análise
tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abs- científica, percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento real.
traídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, Ela começa post Jestum [muito tarde, após a festa] e , por conseguinte,
como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até 0
com os resultados prontos do processo de desenvolvimento. As formas
Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é mani- que rotulam os produtos do trabalho como mercadorias, e, portanto, são
festamente o método cientificamente correto.37
pressupostas à circulação das mercadorias, já possuem a solidez de formas
Ora, se, para Marx, a economia assim procedeu, não resta dúvida de naturais da vida social antes que os homens procurem esclarecer-se não
que, para ele, a economia emprega o método cientificamente correto. sobre o caráter histórico dessas formas - que eles, antes, já consideram
Sendo assim, não tem fundamento declarar que o segundo método, imutáveis-, mas sobre seu conteúdo. Assim, somente a análise dos preços
a viagem de retorno, é o método de Marx. das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e somente
Na verdade, Marx não poderia mesmo ter a ambição de ser o a expressão monetária comum das mercadorias conduziu à fixação de
detentor do copyright do método cientificamente correto, pois a via- seu caráter de valor. Porém, é justamente essa forma acabada - a forma-
gem de retorno nada mais é do que o processo de síntese, ou seja, -dinheiro - do mundo das mercadorias que vela materialmente [sachlich],
de totalização, objetivo último do processo de análise de qualquer em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as
ciência. Com efeito, para Kuruma, "a via descendente, para Marx, é relações sociais entre os trabalhadores privados. [. ..]
a premissa indispensável da via ascendente. Afirmar que a última é o Ora, são justamente essas formas que constituem as categorias da eco-
método cientificamente correto é dizer, creio, que a economia política nomia burguesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas
como ciência só se instaura com as várias peças de conhecimento e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção desse a:

econômico formando um sistema"38 . modo social de produção historicamente determinado, a produção de


De que adiantaria à ciência interromper o processo em seu mo- mercadorias. 40 >-

mento analítico e, com isso, permanecer com um conjunto inarticu- :::,


lado de conceitos abstratos? Incapaz, por conseguinte, de produzir 39 o
o Lukács recorda que o caminho de Marx do abstrato à totalidade concreta "não pode partir de
uma abstração qualquer. [ .. .] porque, considerado isoladamente, qualquer fenômeno poderia,
" 37
Karl Marx, Grundrisse , cit., p. 54, grifos nossos. uma vez transformado em 'elemento' por meio da abstração, ser tomado como ponto de partida; o
,_ 38 só que tal caminho não levaria jamais à compreensão da totalidade"; Para uma ontologia do ser
Samezõ Kuruma, "Di~cussion of Marx's Method (part 1)", originalmente publicado em Marx- social, v. 1, cit., p. 3 12. a:
-Lexikon Zur Politischen Okonomie, v. 2, mar. 1969, e disponível online traduzido para o inglês no 40
<(
portal marxists.org, acesso em 9 set. 2019. Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro /: O processo de produção do capital
(trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 201 1), p. 2 10-1 .

II Q M ARGEM ES Q U ERDA 33
M ARX: "0 MÉTODO DA E CONO M IA P OL ÍT I C A " CO M O C R ÍTI CA ONTOLÓGI C A 11)
Como se pode constatar, para Marx a economia I u r u ·su , f nna apagada toda conexão interna, a base natural e livre de toda dúvida d
de pensamento socialmente válida, objetiva para sas r ' la de sua superficial pomposidade. 42
produção, cujo conteúdo procura investigar. O que signifi a qu con-
Nessa passagem Marx adverte que a economia vulgar parte da r -
siste em uma totalização, uma figuração, uma ontologia científica da
presentação dos agentes cativos das relações da economia capitalista ,
sociedade capitalista. Parte da representação, como todas as teorias,
em lugar de progressivamente dela se diferenciar, faz precisamente o
dela se distancia e diferencia, mas no processo hipostasia essa forma
oposto: mantém a ontologia (figuração/ totalização) gerada e necessitada
de vida e, portanto, é a-histórica. Mas certamente se pergunta por sua
imediatamente por tais relações e as sistematiza mediante o aparato
estrutura e sua dinâmica - num tempo lógico, sem história, ou seja,
científico; feito isso, retorna aos agentes como forma de pensamento
sem mudanças substantivas41 . Parte da totalidade acabada, plenamente
mais eficaz na prática imediata43 • Com a chancela da ciência.
desenvolvida, ignora seu caráter histórico, procede analiticamente, e
Como indicado na apresentação, procurei mostrar, primeiro, que
produz uma síntese ricamente articulada. Sem história.
as usuais interpretações de "O método da economia política" con-
Avaliação totalmente distinta faz Marx do que denomina de
trariam diretamente o texto de Marx. Aliás, como o próprio título
economia vulgar, precursora da tradição neoclássica. No capítulo
da seção indica, pois trata do método da economia política, e não
48 do Livro III de O capital, intitulado "A fórmula trinitária", assim
do método da crítica da economia política. Em segundo lugar, que
a analisa:
toda ciência totaliza . Totaliza (sintetiza) a economia vulgar, totaliza
A economia vulgar nada mais faz [. ..] do que traduzir, sistematizar e a economia política e totaliza a crítica da economia política, ou seja,
apologizar doutrinariamente as ideias dos agentes presos nas relações Marx. Tais totalizações constituem ontologias com força social 44 .
de produção burguesas. Não nos deve surpreender[. .. ] que a economia Oferecem aos sujeitos a imagem, referendada pelo prestígio da
vulgar sinta-se [. .. ] à vontade precisamente na forma de manifestação ciência, por meio da qual se situam em suas relações recíprocas e
estranhada das relações econômicas, nas quais elas aparecem, prima com o mundo natural.
facíe, como contradições perfeitas e absurdas - e toda a ciência seria Se toda ciência totaliza, significa o mundo para os sujeitos e, além
supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coinci- disso, provê um aparato científico para gerenciá-lo, administrá-lo,
dissem imediatamente - , e que essas relações lhe pareçam tanto mais ou seja, é eficaz na prática, então o embate teórico decisivo entre
evidentes quanto mais nelas se oculta sua conexão interna, mas que são sistemas teóricos se dá no plano ontológico - ontologias em disputa,
familiares para as ideias ordinárias. Por isso a economia vulgar não tem modos radicalmente distintos de conceber como é o mundo . Em
a mínima ideia de que a trindade da qual parte - terra-renda; capital- outras palavras, crítica de fato, crítica substantiva, é crítica ontológica.
-juros; trabalho-salário ou preço do trabalho - envolve três composições Se, como vimos em Marx, a economia política é forma de pensa-
prima facie impossíveis. [. .. ] mento válida e objetiva para a vida social sob o capital, se é ciência
Por isso, é também natural que a economia vulgar, que nada mais é do econômica a serviço da administração dessa sociedade, se expressa
que uma tradução didática, mais ou menos doutrinária, das ideias co- e reforça as noções ontológicas espontaneamente geradas, se com
tidianas dos agentes efetivos da produção, e que as organiza em certa seu prestígio não só eleva as ideias correntes à figuração exclusiva
ordem compreensível, encontre justamente nessa trindade em que está >-
<(

42
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro Ili: O processo de circulação do capital ::,

41 (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2017), p. 768-79 . o


Sobre as temporalidades características do capitalismo - tempo abstrato e tempo histórico -,
o ver Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de
43
Ver Mario Duayer, ':i\nti-realismo e absolutas crenças relativas" , cit.
Marx (trad. Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira, São Paulo, Boitempo, 20 14), em particular 44
Sobre o poder social da ontologia, diz Lukács: "independentemente do grau de consciência, o
o capítulo 8. Segundo o autor, "a dialética das duas dimensões do trabalho no capitalismo tam- todas as representações ontológicas dos homens são amplamente influenciadas pela sociedade,
1-
bém pode ser entendida temporalmente, como uma dialética de duas formas de tempo. [ ...] a não importando se o componente dominante é a vida cotidiana, a fé religiosa etc. Essas repre- "'
"' dialética do trabalho concreto e abstrato resulta em uma dinâmica intrínseca caracterizada por sentações cumprem um papel muito influente na práxis social dos homens e com frequência se <
<( um peculiar treadmi/1 effect"; p. 338-9. condensam num poder social"; Para uma ontologia do ser social, v. 2, cit., p. 95 . L

112 M ARG EM E SQUERDA 33 M ARX : "0 MÉTODO DA ECONOMIA POLÍTICA" COMO CRÍTICA ONTOLÓGICA 11 3
d a socie dade, mas também fornece as técnica ptm, r 'I r 1zi-la, HOMENAGENS
e ntão a crítica da economia política, como crítica u bstanli va, cria
inteligibilidade da estrutura e d a dinâmica da sociedad regida
pelo capital radicalmente distinta, em primeiro lugar restituindo-
-lhe a historicidade e, e m consequê ncia, abrindo à prática humana
a possibilidade d e sua transformação. Co ntribui, e nfim, para criar
o utra ontologia , em que a humanidade não está condenada à infinita Chico de Oliveira: a chispa da imaginação
reprodu ção do mesmo ou a ser mera espectadora d a história co mo
absoluta contingência.
ANDRÉ S/NGER

Reproduzo a observação que segue para lembrar, no momento em


que perdemos a presença física de Francisco de Oliveira (1933-2019),
o quanto o fulgurante modo de p ensar desenvolvido por ele ao lon-
go de vida fértil e obra criativa continua a nos acompanhar e ajudar
nestes dias aziagos 1 . Tive o privilégio de dialogar com os textos do
mestre p ernambucano e, por vezes, também de ouvi-lo em saborosas
conversas a respeito de temas brasileiros e da esquerda em geral. Im-
portava pouco concordar ou discordar. Sua permanente capacidade
de surpreender o interlocutor com relações inesperadas e transversais
antologia, compilada pelo premiado estimulava a imaginação e suscitava novas hipóteses .
historiador Luiz Bernardo Pericás, reúne 19 Quando escrevi O lulismo em crise, queria entender o pap el de-
artigos clássicos em que militantes e intelectuais sempenhado pelo que chamei de subproletariado, seguindo Paul
teorizam sobre o tema da revolução brasileira.
Elaboradas entre a República Oligárquica dos Singer, de quem Oliveira foi amigo até os últimos dias, na formação de
anos 1920 e a transição da ditadura militar classes do país e as consequê ncias políticas de tal presença no golpe
para a redemocratização nos anos 1980, essas parlamentar de 2016. Recorri, então, mais uma vez, à ideia lançada a:

contribu ições trazem diferentes perspectivas por Chico em 1972, segundo a qual, no Brasil, a "conversão de enor-
sobre como, a partir da formação social
mes contingentes populacionais em 'exército de reserva', adequado à
brasileira, podemos pensar em caminhos para z
uma transformação estrutural. reprodução do capital, era pe rtinente e necessária do ponto de vista
do modo de acumulação que se iniciava ou que se buscava reforçar" 2 • VI

Textos de Alberto Passos Guimarães, Ana


apresentação: Luiz Bernardo Pericás Montenegro, Astrojildo Pereira, Caio Prado
o relha: Angélica Lovatto Jr, Carlos Marighella, Elias Chaves Neto, Érico 1
Este texto utiliza passagens de André Singer, O lulismo em crise: um quebro-cabeça do período a:
q ua rta capa: Marcelo Ridenti Sachs, Florestan Fernandes, Franklin de Oliveira,
e Marly Vianna Dilma (20 l /-2016) (São Paulo, Companhia das Letras, 20 18), p. 20-4 . o
376 pá ginas Leôncio Basbaum, Luciano Martins, Lu iz Alberto 2 z
Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003),
Moniz Bandeira, Luiz Carlos Prestes, Mário
p. 38, grifos meus. <(
Pedrosa, Lívio Xavier, Nelson Werneck Sodré,
Octávio Brandão, Roberto Sisson e Ruy Mauro
Marini e Theotonio dos Santos. C H I C O D E Ü L I V E IRA 11 5
Influ nciado pelo p ensamento latino-am ri an · 1 •las l ria ao meio ambient ossistemas; e a crise da hegemonia dos Estado
la depe ndência, o autor aponta que o moderno i t ma mundial se Unidos e a te ndência à multipolaridade, que dificultariam a formação
divide em centro, semiperiferias e periferias, integrando, m sua evo- de um novo Estado hegemônico em ambiente concorrencial. Imma-
lução para ocupar o planeta, áreas externas, como a África e a Ásia, nuel não inclui, todavia, entre as razões da crise estrutural do capital,
no século XIX. Esse sistema evolui por meio de tendências seculares a revolução científico-técnica, que consideramos central nesse pro-
e conjunturais, que impõem ciclos de hegemonia, de Kondratiev ou cesso, como apontamos em nosso livro Globalização, dependência
períodos de caos sistêmico que se desdobram em guerras mundiais e neoliberalismo na América Latina, publicado pela Boitempo em
de trinta anos. Apresenta ainda uma flecha do tempo irreversível que 2011, e em breve pela editora Brill, em versão atualizada e ampliada
indica o desenvolvimento e o desgaste inevitável da estrutura. traduzida para o inglês.
Abre-se assim um rico instrumental analítico que articula as repe- Na análise prospectiva dos processos de transformação socialista,
tições e mudanças numa temporalidade evolutiva, permitindo inte- o autor coloca muito peso nos movimentos sociais, em detrimento
grar o conhecimento da macro-história para a análise prospectiva. O do Estado, abrindo um contencioso com as teorias marxistas da de-
marxismo seria, para ele, a ideologia antissistêmica por excelência e pendência. Todavia, sua crítica ao baixo desempenho dos processos
a única com potencialidade para romper com as noções de tempo revolucionários que não romperam o isolamento em Estados nacionais
do conservadorismo e do liberalismo. Aquele busca a regressão a um apresenta grande atualidade.
passado mítico e estilizado, e este rejeita os ciclos e afirma o protago- Um dos temas da obra do autor é a crítica à organização liberal
nismo da mudança, do progresso, da liberdade e do indivíduo diante das ciências sociais, que rompeu com a sua unidade e as separou em
do passado ou das estruturas. territórios independentes para respaldar o capitalismo histórico. Ele
As tendências evolutivas do sistema levam não somente a períodos propõe abrir esses territórios e reunificá-los como recortes de uma
de caos e a bifurcações de poder, em que se disputa a sua reorganiza- base epistêmica comum.
ção interna, como na disputa sucessória das hegemonias holandesa e Immanuel Wallerstein deixa uma obra densa, inacabada e aberta.
britânica, mas também a lutas pela organização de um novo sistema. Caberá aos seus continuadores e às lutas sociais desenvolvê-la na
Isso ocorre quando as tendências seculares do capitalismo perdem a direção da emancipação dos 99% da humanidade.
força para relançá-lo a um patamar superior. Wallerstein afirma que é
para esse cenário que caminhamos aceleradamente no século XXI. Ele
aponta que, entre 2020 e 2050, se abrirá um período de intensas lutas
sociais em que o liberalismo global perderá sua centralidade, e duas
ideologias disputarão a reinvenção e o comando do sistema-mundo: o
fascismo, como relançamento e reformulação do império-mundo para
resolver a crise dos processos de acumulação de capital, constituindo
uma nova classe social e sistema de poder; ou o socialismo, que não se
circunscreveria a marcos nacionais de um sistema-interestatal ancorado
z em formas de gestão burocráticas, mas que estabeleceria um governo Como os poderosos criam narrativas e conceitos
mundial associado à socialização e à democratização radical do poder. que justificam ataques com interesses econômicos e
geopolíticos contra outros países?
<(
Ele assinala como razões para a crise estrutural do capital: a des-
z
ruralização da população mundial, que, ao promover a convergência "Uma grande contribuição para a compreensão da
das expectativas de ingresso e consumo, reduziria a capacidade de o superestrutura ideológica das potências centrais e dominantes
no sistema capitalista mundial, encapada por alguns valores,
r: capital conter a queda da taxa de lucro pela exploração de assimetrias como direitos humanos e democracia, que elas realmente não
o regionais; a pressão para incorporar os custos ecológicos nos proces- respeitam, mas apresentam como rationale para agressões e
para intervir militarmente nas regiões e países periféricos
I sos de acumulação, em função das agressões e ameaças crescentes tradução: Beatriz Medina
e semifperiféricos, em defesa de seus interesses econômicos e
apresentação: Luiz Alberto
Moniz Bandeira geopolíticos, além da sustentação de sua hegemonia." - Luiz
144 páginas Alberto Moniz Bandeira
120 M ARG EM E SQ UE RDA 33
p rp trada p lo p ogrom na Romênia de Ion Antonescu (1940 a 1941 ,
na qual foram assassinados vários membros de sua família. Nesse m -
mo período se viu forçado à humilhante imposição de portar em seu
peito a estrela amarela de identificação dos judeus, sendo inclusive
expulso do Colégio Nacional de la~i. Foi durante esse período, em
função dessas perseguições, que o jovem judeu Nathan Veinstein se
Nicolas Tertulian: a filosofia contra a corrente viu forçado a mudar seu nome para Nicolas Tertulian.
Os anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, com o advento do
comunismo, não significaram o fim dos desalentos impostos pelos
RONALDO VIELMI FORTES governos autocráticos que se impuseram em seu país. Ainda jovem,
por ocasião de seu trabalho na revista Contemporanul, Tertulian se
viu sob a forte pressão da vaga autoritária perpetrada pelo regime
romeno, que exigia dele e dos outros membros do hebdomadário
cumprirem a função de "defender a linha do Partido no terreno
cultural". A natureza rigorosa de suas investigações no campo da fi-
losofia o distanciava sempre da linha político-ideológica imposta. As
Não é uma tarefa simples falar da vida de importantes figuras in- pressões oriur:idas das práticas neostalinistas, que perduraram mesmo
telectuais que viveram acontecimentos decisivos do decurso histórico após a morte de Stálin, se intensificaram durante o regime de Nicolae
do século XX. Sob o risco de o adjetivo "importante" ser considerado Ceau~escu, com o agravante da retomada de um antissemitismo ainda
aqui um mero elogio protocolar, convém, de início, esclarecer o que persistente na sociedade romena - conforme depõe o filósofo em seu
pretendemos dizer. Os momentos mais conturbados da história humana último livro, Pourquoi Lukács? 1 . As vicissitudes que se seguiram com
são aqueles que trazem os maiores desafios aos indivíduos. Esses são a perseguição política explícita e implícita do Partido culminaram em
postos diante do repto ético de compreender os percalços históricos sua expulsão da cátedra universitária, levando o pensador romeno à
que se colocam e são forçados a se posicionar frente às exigências e alternativa fatídica de se pôr na condição de exilado. O exílio, a que
às urgências do momento, muitas vezes sob o risco do sacrifício de muitos se viram forçados diante das práticas neostalinistas - Tertulian . >-

suas próprias vidas. refere, a propósito, o caso de lstvan Mészáros, na Hungria de 1956
Falar da vida do filósofo romeno sem o circunscrever em dois o
- , não significava de modo algum uma dissidência, pelo contrário, u..
importantes contextos do século passado - a ascensão do fascismo tratava-se de viabilizar o desenvolvimento autêntico das bases filosó-
na Europa e o advento do socialismo no Leste Europeu - seria ne- ficas estabelecidas pelo pensamento de Marx.
gligenciar o enlaçamento orgânico entre sua produção teórica e a O encontro com a obra de Gyõrgy Lukács contribuiu desde cedo
postura reflexiva prática diante dos acontecimentos mais candentes com as lutas travadas pelo pensador romeno. Conforme o próprio
de sua vida. A obra de Nicolas Tertulian 0929-2019) é a expressão Tertulian declarou: "eu o encontrei porque o procurava"2 • Para Tertu-
z cabal de que a filosofia não deve se apartar da vida; no entanto, isso lian, as reflexões do filósofo magiar consistiam na retomada da gran- >
não significa afirmar que ela deva ser simples instrumentalização para de tradição do pensamento filosófico . Não se tratava da construção
questões práticas. O elemento decisivo sob o qual se unem os desafios ideológica pragmática característica do taticismo comunista oficial, o
<(
práticos e a reflexão filosófica de rigor é, para um marxista autêntico, o
z mas do pensamento filosófico de rigor erguido sobre os fundamentos
o critério da emancipação humana.
<(

~
A carga histórica do século XX sempre pesou sob as costas do 1 z
Nicolas Tertulian, Pourquoi Lukacs? (Paris, Éditions de la Maison des Sciences de L'.Homme,
o filósofo romeno. Oriundo de uma família judaica burguesa, já em seu 2016). o
I período de entrada na adolescência, Tertulian testemunhou as ações 2
Idem, cit., p. 8. o::

122 _M A R G E M E SQU ER DA 33 NI COLAS T E R T U L I A N 123


DOCUMENTO
t óricos autê nticos de Marx. As obras de Lukács qu " allm ·ntaram ua
críticas desde os conflitos de sua juventude serviram I ba e para
a crítica do empobrecimento do marxismo provocado p las distorções
estabelecidas pela linha oficial do Partido. Mas não apenas. Assim
como para Lukács, sua luta no plano das ideias significava uma dupla
batalha: o combate aos desvios do marxismo oficial e ao revisionismo
que se nutria das novidades provenientes do pensamento ocidental, A crítica gay*
em particular de filósofos como Heidegger e Nietzsche, para não dizer
do pensamento pós-moderno. MAR/O MIELI
Essa batalha perdurou mesmo em seu exílio na França, onde foi
acolhido por um importante leque de intelectuais que contribuíram
para sua reinserção acadêmica, como Jacques D'Hondt. Tertulian, nesse
novo contexto, não se curvou diante da hegemonia do pensamento de
matriz heidegger-nietzschiana. Foi o único intelectual que sustentou o
pensamento tardio de Lukács em condições acadêmicas e intelectuais
completamente adversas a seu pensamento. O resgate da Estética e
da Ontologia de Lukács foram sempre as armas de combate no plano O desejo homossexual é universal, isto é, presente em todo ser hu-
filosófico contra as tendências que, por vias diretas ou indiretas, servem mano. Onde não é manifesto, está latente. Um projeto revolucionário
de sustentação para a forma da sociabilidade vigente. totalizante e, portanto, voltado à realização da comunidade humana
Em função da formação clássica sólida de Tertulian, os traços e à criação de uma existência intersubjetiva não pode prescindir da
marcantes de seus escritos sempre foram a alta qualidade e o nível importância fundamental da luta gay, liberando o desejo homoeró-
de aprofundamento de suas reflexões. Tais aspectos fazem com que tico. Contribuímos para a emancipação de toda a vida, daquela vida
seus textos destoem do maniqueísmo dos assim chamados filósofos que o sistema capitalista nega e tende a aniquilar. A situação hoje, na
marxistas. Todas as discussões são travadas nos mais altos patama- Europa e no mundo, prenuncia o tudo ou nada: revolução ou morte.
res que a filosofia pode alcançar. Seus estudos da filosofia alemã do Para que os revolucionários adquiram uma consciência limpa e se
século XX são fontes fecundas e ainda não devidamente exploradas tornem verdadeiros companheiros, eles devem ser amantes. Para que
para a necessária crítica das reflexões hegemônicas do mundo con- entre mulheres e homens sejam inventadas relações novas e propo-
temporâneo. Nas vias abertas por Lukács, o pensamento de Tertulian é sitivas, é necessário que a heterossexualidade não seja mais baseada
também elemento fundamental para a "redescoberta" do pensamento na remoção forçada dos outros elementos do Eros, nem coincida mais
de Marx e para a prospectiva do destino humano sob as bases de uma com a Norma.
emancipação humana autêntica. Para que nossos companheiros consigam uma comunicação global
com as mulheres, para que os companheiros se amem e, derrotando
z a armadura entre eles e desfazendo a armadura machista, descubram
um novo entendimento com as mulheres, é necessário difundir a
l?
homossexualidade em todos os lugares, fazendo crescer o desejo
<(
gay latente na maioria e resgatando todas aquelas tendências do Eros o
z

a:
l:

o * Publicado originalmente em Revista Lambda, n. 6, 1977, p. 250. A tradução, do italiano, é de


<(

Luiz Ismael Pereira. (N. E.) L


I

A C R T I C A G A Y 125
124 M A R G E M E SQ UE RDA 33
que a repressão (que é funcional para a perpetua 1, 1>mínio do
capital sobre a espécie) força à latência, ou - se ma nlí stam - à
marginalização. Para rejeitar o trabalho alienado de uma v z por todas,
é indispensável liberar o Eros que normalmente é sublimado e que,
portanto, apoia o modo de produção cancerígeno atual.
Escrevi Elementi di critica omosessuale [Elementos de crítica ho-
mossexual]* para fins informativos, tentando esclarecer o dito acima Contribuições de Mario Mieli para
e demonstrar que a questão homossexual não diz respeito apenas a
um número limitado de seres humanos, bichas e lésbicas, mas diz
uma crítica LGBT+ do capitalismo
respeito a todos e , como é importante, a uma cada vez maior extensão
do movimento gay, a fim de envolver todos, e, todos juntos, trans- LUIZ ISMAEL PEREIRA
formarmo-nos num sentido gay e revolucionário. É hora de desfrutar
plenamente da nossa paixão homossexual, para que a vida ressurja.

Durante décadas, o movimento LGBT+ no mundo ocidental se


manteve preso a uma pauta de construção de direitos civis, políticos
e sociais. Civis, pois seus membros foram constantemente privados
de segurança física e mental, muitas vezes condenados à morte nas
esferas pública e privada 1; políticos, por serem privados de voz ou
reprimidos quando se manifestaram por visibilidade 2 ; sociais, por
serem evitados como público na construção de políticas de atenção
à saúde e no acesso à educação.
Não que tais pautas sejam de menor importância. Elas constituem
o que podemos pensar como a materialização dos direitos humanos a:

1
O relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia aponta o assassinato de 420 pessoas a:
LGBT + em 2018; Bruna G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira apontam que,
no mesmo ano, ocorreram 163 assassinatos de pessoas trans no país; a ONG Transgender a...
Europe catalogou 2. 1 15 mortes de pessoas trans no período de 2008 a 2016. Embora sejam
números altos, é importante lembrar que há uma grande subnotificação quando a violência é
o praticada contra pessoa LGBT. Ver Grupo Gay da Bahia, Mortes violentos de LGBT + no Brasil:
relatório 2018 (Salvador, GGB, 2018, disponível online, acesso em 8 ago. 2019), p. 1; Bruna <(

z G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira (org.), Dossiê: assassinatos e violência contra
travestis e transsexuois no Brasil em 2018, ANTRA/IBET, 2019, disponível online, acesso em 8
:,: ago . 2019) , p. 15; Transgender Europe, TMM IDAHOT 2016 Update (Berlim, TGEU, 2016,
disponível online, acesso em 8 ago. 2019).
2
u Em 20 19, a revolta de Stonewall completa cinquenta anos, quando a luta contra a repressão a N

pessoas LGBT em um estabelecimento em Nova York deflagrou um movimento de reivindicação


o
por participação política na conquista de direitos. Não se deve esquecer do papel fundamental :::,
o * Mario Mieli, Elementi di critica omosessuo/e (Turim, Einaudi, 1977). (N . E.) das pessoas trans que já lutavam antes do ocorrido, como Marsha P. Johnson.

126 M A R G E M E SQU E RDA 33 C ONTRIBU I ÇÕES D E M ARIO M IEL I PARA UMA CRÍTICA LGBT+ DO CAP IT ALISMO 127
no E tado burgu As. Foram importantes no pro ss r •v lu i ná ri da r pr du ção da o iabilidade capitalista para compre nder como as
construção da modernidade. Foram por tais direito qu , as r"voluçõe r lações sexuais implicam uma diferenciação na construção da tessitura
burguesas lutaram desde o século XVII, como tentativa d superação da sociabilidade capitalista. Para além de um diagnóstico, apresenta
do padrão de privilégios característicos da formação social feudal. uma tese sem a qual seria impossível a rejeição do trabalho alienado
Mas tais conquistas colocaram de lado a populaçãó LG BT+ em vários do capitalismo, propondo, no texto ora traduzido: "é indispensável
locais do mundo ocidental. Criaram-se subcidadãos e subcidadãs a liberar o Eros que normalmente é sublimado e que, portanto, apoia o
quem não era permitido o acesso às mesmas conquistas adquiridas atual modo de produção cancerígeno"4 . E, indo mais além: "na verdade,
pela população heterossexual. Portanto, a conquista pelo reconhe- para a criação do comunismo, é conditio sine qua non, entre outras,
cimento da condição de sujeito de direito foi bem mais retardatária a completa desinibição das tendências homoeróticas, que somente
para aqueles e aquelas que viviam e vivem, diariamente, a violação livres podem garantir a realização de uma comunicação totalizante
de seus corpos, vidas e subjetividades. entre seres humanos, independentemente de seu gênero"5 .
Durante o século XX, no momento de construção de uma polí- Nesse contexto teórico, Maria Mieli se apropria das discussões mar-
tica que identifica o diferente, o Outro, ou, para Theodor Adorno, xianas sobre a forma mercadoria e os meios pelos quais ela determina
o sujeito negativo, como significativo para a reprodução da própria as relações entre sujeitos. Após esse movimento, caminha mais a fundo,
subjetividade, os movimentos sociais organizados passam a rei- compreendendo como essas relações de produção e reprodução do
vindicar aqueles direitos. No Brasil, o movimento LGBT+ passou capital também sofrem interferência da questão da sexualidade. Em
a se organizar há cerca de quatro décadas, ainda com os grandes Althusser, essas contradições se interpenetram e acabam sendo fun-
problemas que o patriarcado impõe, como a exclusão de mulheres damentais para serem compreendidas na totalidade: "Há sempre uma
lésbicas, ou mesmo as questões raciais fundamentais para enten- contradição principal e contradições secundárias, mas elas trocam de
der a periferia do capitalismo. A comunidade passou a lutar pelas papel na estrutura articulada dominante, a qual permanece estável"6 .
promessas não cumpridas da modernidade, como a recolocação no Inclusive, para Maria Mieli, um movimento realmente revolucioná-
mercado de trabalho e os direitos provenientes da legislação civil, rio necessitaria libertar a esquerda dos valores masculinos, machistas,
como o casamento e a consequente partilha igualitária de bens no heterossexuais e anti-homossexuais capitalistas, bem como libertar a
divórcio ou no falecimento de cônjuge, entre outros . Portanto, lutou transexualidade tão aspirada pelo desejo, sem o que apenas mantería-
por sua absorção como parte da forma jurídica própria do Estado mos o apoio à norma pública e privada do sistema capitalista7 . <(
burguês, na expressão de Marx. Essa percepção não é unicamente de Mario Mieli. Em outros cam- a::
Maria Mieli 0952-1983), militante e intelectual italiano, já nos anos pos identitários, pesquisadores e pesquisadoras marxistas também
1970 deu um passo mais largo para compreender os elementos fun- pensaram ou permitiram a abertura teórica para reflexões a respeito
a::
damentais de uma ciência que faça a intersecção entre dois pontos de como as relações de gênero, raça e etnia são fundamentais para
cruciais: a questão LGBT+ e a luta de classes. Tendo se aproximado do compreender a atuação da forma mercadoria, em especial quando se a...
marxismo, reconheceu que o economicismo não dava toda a resposta utiliza da forma política estatal e da forma jurídica, um tripé garanti-
necessária para entender o papel da divisão sexual do trabalho. Deveria dor da reprodução do capital. Para citar alguns exemplos: Roswhita
o
1-
haver mais, algo não visto, algo sob o "véu de Maia" que deveria forçar Scholz, Angela Davis, Frantz Fanon, Louis Althusser, Joachim Hirsch
<(

2
a pessoa que o investigasse a descer um degrau para compreender e Silvio Almeida .
plenamente as relações sociais que excluíam as pessoas LGBT+.
No mesmo movimento anunciado por Marx no fim do capítulo 4
do Livro I de O capital 3, Maria Mieli vai às relações de produção e 4
Ver, neste volume, Mario Mieli, '/\ crítica gay", p. 126.
u 5
N
Mario Mieli, Elementi de critico omosessuole (Milão, Universale Economica, 2018), p. 8.
o 3
Ver Karl Marx, O capital: crítico do economia político, Livro 1: O processo de produção do capital
6
LouisAlthusser, Por Marx (trad . Maria Leonor F. R. Loureiro, Campinas, Unicamp, 2015), p. 169.
o (trad. Rubens Enoerle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 250. 7
Ver Mario Mieli, EJementi de critico omosessuole , p. 168, 238-9 . -'

128 M A R G E M E SQUERDA 33 C ONTRIBUIÇÕES DE M ARIO M IELI PARA UMA CRÍTICA LGBT+ DO CAPITA L ISMO 129
Trata-se d e reconhecer a existê ncia d uma s •ri • 1 , anta ni _
CLÁSSICO
mos sociais anteriores ao capitalismo, mas qu r • nfi urados
po~ essa sociabilidade e ganham importante papel na pr dução do
ma1s-valor. Joachim Hirsch, na construção de uma leitura materialista
do Estado, leva em consideração a existência de tais formas sociais
pré-capitalistas de dominação, como o patriarcado, a LGBTfobia
a relação . com a natureza, ou mesmo expressões culturais e reli~
giosas, comentando: Apresentação: Clara Zetkin
Essas não resultam meramente das relações capitalistas de classe, e não e o legado de Rosa Luxemburgo
desapareceriam de modo algum com elas. [... ] Ao contrário, a relação com
a natureza, de gênero, a opressão sexual e a racista estão inseparavelmente
MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES
unidas com a relação de capital, e não poderiam existir sem ela. No entan-
to, o decisivo é que o modo de socialização capitalista, enquanto relação
de reprodução material, é determinante, na medida em que impregna as
estruturas e as instituições sociais - as formas sociais determinadas por
ele -, nas quais todos esses antagonismos sociais ganham expressão e
ligam-se uns aos outros.8
Alguns meses depois do brutal assassinato de Rosa de Luxemburgo
Ess~ apropriação e reconfiguração de formas sociais pelo capital pelas milícias anticomunistas que operavam na falida República de
lhes da uma nova lógica, levando à necessária compreensão da cor- Weimar, em janeiro de 1919, sua amiga Clara Zetkin registrou para <(

relação entre questões de classe e questões identitárias. a história a vergonhosa capitulação da social-democracia alemã ao
. O ree~~ontro com as ideias de Mario Mieli, um intelectual que militarismo imperialista e lembrou o preço que Rosa pagara por seu o
viveu ?oht1camente suas conclusões marxistas sobre as relações de pacifismo e por sua dedicação radical à causa dos oprimidos. L
sexu_a hdade no capitalismo, permite que aprofundemos as pautas do O texto em questão foi elaborado por Clara como prefácio à segun-
movimento para a tomada de atitude mais coerente no momento de da edição da Brochura de Junius1 • Escrito por Rosa na prisão, quando o
aprofundamento da crise do capital: construir um revolucionamento a Primeira Guerra Mundial já iniciara seu banho de sangue, o panfleto
da sociedade, do Estado e dos meios de produção num sentido gay- é um eloquente e dramático balanço dos descaminhos e das conse-
-lésbico-trans ... ou morte. quências da traição da social-democracia europeia (especialmente da f-

alemã) ao internacionalismo operário.


<(
O texto de Rosa denuncia a decisão da social-democracia de :,
votar favoravelmente aos créditos de guerra em 1914, que levou a
a
um ponto de inflexão na história do movimento socialista. Pois se a
o
f-
Comuna de Paris, com suas barricadas, constitui o ponto final das <(

z revoluções espontâneas, foi a partir dela que se inicia a organização l?


de um forte movimento operário e a organização da Associação Inter- >-
nacional dos Trabalhadores (AIT). Nessa mudança de eixo, o Partido __J

:,
<(
u 1
Brochura de Junius é o nome popular pelo qual ficou conhecido o texto 'ti. crise da social-
o 8
-democracia", escrito por Rosa Luxemburgo em 191 6 e assinado "Junius", em referência ao
Joachim Hirsch, Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista
o de Estado (trad . Luciano Cav,ni Martorano, Rio de Janeiro, Revan, 201 O), p. 39-40. pseudônimo de um escritor inglês anônimo do século XVIII que, em suas cartas para o jornal <(

Public Advertiser, apontava os abusos da coroa. (N. E.) L

130 M A R G E M E SQU E RDA 33


A PR E S E N T AÇÃO 13 1
Social-De mocrata Alemão (SPD assumiu um p p ,1 1, li 1' ra n a, ma
seu crescime nto trouxe também a burocratizaçã d s 1 ' t rti do e das
centrais sindicais alemãs.
Com a capitulação frente ao nacionalismo conservador e aos ape-
tites imperialistas das classes dominantes alemãs, a social-democracia
jogava uma pá de cal sobre mais de cinquenta anos de conquistas
operárias . E, não obstante o internacionalismo teoricamente defendido A luta de Rosa Luxemburgo contra os traidores
pela social-democracia, a Alemanha acabou por paiticipar de uma das
guerras mais cruentas do século XX, em qu e operários convertidos em alemães do socialismo internacional*
soldados matavam-se uns aos outros na disputa das grandes potências
por colônias na Ásia e na África. CLARA ZETKIN
Mas Clara também destaca que Rosa tinha a esperança que a
Primeira Guerra Mundial abrisse caminho para a revolução mundial
e defendia a greve geral como uma importante forma de luta. Quan-
do lembramos que foi uma greve geral iniciada pelas mulheres em
São Petersburgo que deu o sinal de partida para a Revolução Russa,
vemos a agudeza do pensamento de Rosa. E ·se cem anos após seu A Brochura de Junius, de Rosa Luxemburgo, tem uma história, e
assassinato o panorama político é tão desconsolador, é bom ter pre- cabe a ela uma página própria na história. Isso em razão tanto das
sente sua convicção de que cada momento histórico traz su as formas circunstâncias nas quais o texto emergiu quanto da vida ardente e da
de luta e que o próprio movimento popular cria novos instrumentos clareza radiante nela presentes.
de resistência e ação. · Rosa Luxemburgo redigiu a brochura em abril de 1915. Algumas
semanas antes , tinha sido encarcerada na prisão feminina da rua Bar-
nim em Berlim. Foi lá que teve de cumprir a sentença de um ano
a q~e tinha sido condenada antes da guerra, em fevereiro ~e 1914,
pela Câmara Correcional de Frankfurt, em virtude de sua _~oraJo~a luta
contra O militarismo. A luta, a condenação e o epílogo Jª continham
tudo O que, mais tarde, se desdobraria amplamente e apareceria_em
plena luz do d ia: o conhecimento nítido que Rosa Luxe~burgo_tmha
da tempestade imperialista que se preparava e da necessidade irr:ipe-
riosa para O proletariado de se opor a ela com toda a sua energia; a z
audácia e a dedicação com as quais liderou o combate em nome do
socialismo internacional contra o perigoso inimigo; o agudo instinto
No centenário do assassinato de Rosa Lu xemburgo, de classe do capitalismo, isto é, a lúcida consciência de classe co~ a f-

chega aos leitores de língua portuguesa a incontor- qual O mundo burguês colocava sem esc~pul~s ~eu pode~ ao s_erv~ço
N
nável biografia de Paul Frõlich sobre a revolucioná- do militarismo, ao qual a emergência do 1mpenaltsmo ha~ia atnbu~do
ria polonesa-alemã. as novas tarefas da dominação do mundo e ao que se havia confendo <
a:
"A vida e a obra d e Rosa se caracterizam pela extraordinária uni-
dade entre pensamento e ação, teoria e prática, conhecimento <
científico e compromisso com a luta dos oprimidos. A grande * Escrito em maio de 19 19 como prefácio à segunda edição de A crise da social-democrac~a
virtude da biografia d e Frõli ch é a d e conseguir dar conta dessa ( 1916), de Rosa Luxemburgo, mais conhecido como Brochura de Junius. Traduzido do frances
unidade e restituir, assim, a grandeza humana, política e int elec-
u
por Fabio Mascaro Querido. (N . E.)
tradução: Erica Ziegler e Nélio Schneider tual desta inesquecível figura do social ismo revolucionário do
prólogo: Diana Assunção século 20." - Michael Lõwy
posfác io: Isabel Loureiro
D E R o s A L U X E M 8 U R G O 133
orelha: Michael Lõwy A L U T A
a maior importância para a sobrevivência do capitalism ; a ·apitulação contra o "petit lieutenant' Forstern-Zabern; a propósito do julgam n-
desonrosa da social-democracia alemã (ou, antes, d s u lirigentes) to do tribunal de guerra de Erfurt, que, deixando de lado qualquer
diante do militarismo e do imperialismo. sentimento humano, condenou os proletários a anos de prisão por
De fato, naquele momento, as grandes massas proletárias ferviam causa de ninharias; a propósito das terríveis brutalidades das quais foi
do desejo de se engajar na luta contra o militarismo e o imperialismo. vítima um grande número de soldados, que saíram da obscuridade dos
A consciência de classe ainda não compreendia o inimigo mortal, mas quartéis para serem revelados num processo subsequente contra Rosa
sua sensibilidade de classe, sempre sadia, o farejava e o pressentia. Luxemburgo (se nossas lembranças são exatas, foram citadas como
Como sob um projetor, o militarismo em sua essência histórica lhes testemunhas mais de 30 mil vítimas de tais brutalidades).
aparecia no horizonte, cruelmente realçado pela condenação de Rosa Mas, nessa época, o rápido avanço da cretinização e do abur-
Luxemburgo e pelo que havia levado a essa condenação: a convicção guesamento parlamentares da social-democracia, bem como o seu
da corajosa militante de que os proletários não devem obedecer à medo inabalável das ações de massa, já a tinham conduzido ao início
ordem de pegar em armas contra seus irmãos de outras nacionalida- da capitulação diante do militarismo e do imperialismo. Foi com a
des. O efeito contundente e estimulante das palavras incriminadas foi cumplicidade tanto ativa quanto passiva do grupo parlamentar social-
ainda reforçado pelo discurso que fez no tribunal de Frankfurt um -democrata - e, portanto, de toda a social-democracia - que a mons-
documento clássico de defesa política em que, em vez de se ent;egar truosa fraude do "dom jubilar para o pacífico imperador Guilherme II"
às chicanas jurídicas sobre a sua "culpa", sua punição e sua senten- pôde triunfar, e que o governo pôde preparar sem problemas a guerra
ça, Rosa Luxemburgo destacou o combate pelo ideal cientificamente "preventiva" do imperialismo em 1914, graças ao projeto de lei sobre a
estabelecido do socialismo internacional. Uma onda de entusiasmo defesa, que concedia um aumento requerido dos efetivos militares ao
despertou as massas proletárias, que estavam dispostas a lutar. Se a di- orçamento militar, na casa de bilhões, e ao primeiro crédito de guerra
reção da social-democracia tivesse sido uni pouco mais sagaz, poderia para a expedição de pilhagem, pelo capital alemão, de Bagdá e de
ter aproveitado esse estado de espírito, ampliando-o de modo a travar outros "lugares ao sol" através dos Balcãs. O grupo parlamentar havia
uma batalha de grande estilo contra o militarismo e o imperialismo, acalmado os partidos burgueses "de oposição" aprovando o projeto de
dirigindo-lhes um duro golpe . lei sobre a defesa e, ao fazê-lo, admitia que esse projeto fosse sepa-
O bureau dirigente da social-democracia revelava nitidamente rado do projeto de lei de cobertura. O grupo havia dado sua benção
uma vez mais, que a sua convicção não se baseava sobre a base so-' ao orçamento militar e ao imposto sobre o crescimento das fortunas
lidamente estabelecida dos princípios marxistas, sobre essa elevada apenas porque se tratavam de impostos sobre a propriedade. Havia
plataforma que proporciona uma visão ampliada sobre as coisas e o corrido atrás do elusivo fantasma de uma "política financeira reorien-
desenvolvimento delas, o que permitiria determinar de maneira pre- tada", mas desistira de se opor à armadura de ferro do imperialismo.
cisa o conhecimento, a vontade, a ação. O bureau elaborou também As posições do grupo parlamentar haviam decidido a atitude de
a própria confissão de deficiência, mostrando que lhe faltava, pura e todo o partido, com exceção de pequenos círculos que adotaram uma
simplesmente, tudo aquilo que define uma direção política. Renundou atitude crítica e ativa. A social-democracia não tinha se preparado para z
à sua evidente, manifesta e necessária tarefa: canalizar em uma ação repelir, por meio das ações de massas, o terceiro assalto do imperialis-
de massas unificada e potente contra o militarismo e o imperialismo mo, sedento de poder. Assim, de um lado, ela deu ao imperialismo e ao f-
o todas as manifestações imponentes que se desencadearam na luta militarismo a certeza da vitória e a garantia de que não deveriam temer
u contra o julgamento na Câmara Criminal de Frankfurt. O bureau di- uma revolta das massas proletárias capaz de frustrar seus planos e, de N
retor do partido recuou ainda mais em relação ao glorioso juramento outro, criou uma situação sombria e paralisante nas próprias massas,
da social-democracia ao reprimir um movimento que havia crescido provocando a desmobilização enquanto uma ameaça estava à vista. a:
sem qualquer ajuda sua. E tudo isso em uma atmosfera de violenta Enfim, a social-democracia permitiu o desenvolvimento de um clima
agitação não apenas em relação ao a.ffaire Luxemburgo, mas também de vertigem de guerra que, no verão de 1914, minou toda resistência
u a propósito do triunfo da autoridade militar no e candaloso processo política e moral da classe operária contra a guerra criminosa. Não nos u

134 M A R G E M E SQUERDA 33 A L U T A D E R o s A L UXEM B U R G O 135


squ çamos d qu , à época , predominava na s 'iu1 1 rn ra ia a ao ocialism o. Dua ir unstâncias impediram qu e a n o tícia d ssa
po lítica do Marxistische Zentrum [Centro Marxista), u I ar! l autsky
J
reb elião fosse amplamente divulgada. Em primeiro lugar, e ra preci-
re comendava fervorosamente , como condição de sua vit ria, ao prole- so levar adiante a luta contra o voto social-democrata a favor dos
tariado. Não nos esqueçamos de que foi este mesmo sumo sacerdote créditos de guerra e, ao mesmo tempo, agir de tal maneira que ~s_se
do "marxismo puro" que, com sua teoria fiscal, antimarxista no mais protesto não fosse estrangulado pela censura e pelo e~tado de ,si~io.
alto grau, tinha construído a ponte de burros [pons asinorum] sobre a Além disso, e antes de tudo, o efeito desse protesto tena sem duvida
qual o grupo parlamentar se engajaria, votando os créditos militares e se fortalecido se tivesse sido apoiado por um número considerável
o imposto imperial sobre o crescimento da fortuna. Na situação em que de militantes social-democratas conhecidos. Por isso, nos esforçamos
estávamos, se o bureau dirigente do Partido Social-Democrata tivesse para formulá-lo de tal maneira que pudesse ser aprovado pelo maior
optado por uma mudança de perspectiva, poderia aproveitar o estado número possível de camaradas dirigentes qu~, no g1;1Pº parla,n_ientar
de espírito das massas após o julgamento de Frankfurt e liderar uma e em pequenos círculos, criticavam de modo lillplacavel a pohtica do
luta séria contra o militarismo e o imperialismo. Ao longo dos aconte- 4 de agosto. Foi uma preocupação que nos custou muitos aborrecimen~
cimentos da primeira quinzena de fevereiro de 1915, que levaram Rosa tos, papéis, cartas, telegramas e tempo precioso - e cujo resultado foi
Luxemburgo à prisão, era possível observar a falência vergonhosa da quase inexistente . Apenas Karl Liebknecht, Rosa Luxemb~r~o, _Franz
social-democracia, mas também o combate dedicado e resoluto que Mehring e eu ousamos enfrentar o ídolo devorador da di~cipl~na do
a ardente militante empreendeu contra a decadência interior desta. partido, endereçando críticas violentas à maioria da orgarnzaçao.
Após ter sido beneficiada com o adiamento da sentença, Rosa Lu- Obviamente, esses dias de aparente calma não passavam de um
xemburgo foi presa com uma agilidade surpreendente, ignorando-se período de preparativos febris para o combate corpo-a-corpo co~ o
o fato de que estava sofrendo as consequências de grave doença e de inimigo mortal. Rosa Luxemburgo foi a organizadora dos preparativos
que os médicos temiam que sua estadia na prisão prejudicasse ainda e , depois, do próprio combate . Nas névoas sangrentas do caos da
mais sua saúde. O mundo burguês necessitava da expiação, para que guerra mundial, sua inteligência histórica clari~ide~te revel~v~ aos
a sentença de Frankfurt fosse imediatamente executada? Nessa época, hesitantes as linhas indeléveis da evolução em direçao ao socialismo;
os portões das prisões e penitenciárias se abriram diante de ladrões, sua energia impetuosa e inesgotável estimulou aqueles_qu~ esta~am
bandidos, adúlteros, falidos, perjuras, assassinos, cafetões. Graças ao cansados e abatidos; sua intrépida audácia e sua dedicaçao faziam
assassinato em massa cometido em glória ao imperialismo alemão e, no com que O tímido e o assustado ruborizassem. O espírito audaz, o
fim das contas, à existência e à continuidade da economia de exploração coração ardente e a vontade firme da "pequena" Rosa eram o motor
capitalista na Alemanha, todos eles se tornaram os mais puros inocentes: da rebelião que, em nome do socialismo internacional, se opunha à
é verdade que violaram as leis da sociedade burguesa, mas, apesar de guerra assassina e a seus fatais corolários: o social-patriotismo e a ~nião
tudo, em seus próprios erros, continuavam sendo seus filhos legítimos. Sagrada. Nem a doença nem o estado de sítio, tampouco o º?stacu~o
Rosa Luxemburgo, quanto a ela, se rebelava contra essa sociedade, e mais penível e mais opressor: foi a inércia das massas que impedm
z
mesmo após o início da guerra, em vez de gritar "Alemanha, Alema- Rosa Luxemburgo de lutar por suas palavras e por seus escritos contra
nha acima de tudo!" [Deutschland, Deutschland über alies] ao làdo de a social-democracia majoritária e seu socialismo nacionalista e guerreiro
toda a social-democracia, entoou a "Internacional", que engloba toda e contra a oposição hesitante e tímida que começava a se agrupar em f--

a humanidade. A prisão era muito menos uma expiação pelos "delitos" torno da minoria do grupo parlamentar e de Kautsky, que fazia de tudo
N
do passado do que um obstáculo para a combatente do momento para arrancar os proletários alemães de sua influência. Reuni-~os _c~m
presente. Isso porque, desde o dia da mobilização, Rosa Luxemburgo base num reconhecimento claro e nitidamente definido dos pnncipios <(

saiu em luta contra o imperialismo e seus crimes monstruosos. do socialismo internacional, levá-los a se opor ao imperialismo como a:

Assim que se soube que o grupo parlamentar social-democrata ha- militantes conscientes da luta de classes, aumentar a intensidade da <(

via votado os créditos de guerra, Rosa, acompanhada de alguns raros luta de classe proletária de acordo com o grau de evolução histórica:
estes eram os objetivos da apaixonada ação de Rosa. u
amigos, levantou a bandeira da rebelião contra a traição à Internacional

R o s L UXE M BURGO 137


36 M A R G E M E SQUERDA 33 A L U T A D E A
Rosa Luxemburgo já tinha terminado o prim ir núm •r da r vista vez de conscientem nt a I por resistência; sua apatia e sua l targia
In~e_rnationale quando foi presa. Na véspera de uma via m que pla- eram como uma massa de neblina escura e opressiva. Na atmosfera
ne1avamos fazer juntas, para a Holanda, ao longo da qual queríamos sufocante desse período, a Brochura de Junius teve o efeito da rajada
preparar a prevista Conferência Internacional das Mulheres Socialistas de vento fresco e vivificante que anuncia a tempestade purificadora.
a fim de estreitar os laços internacionais e encorajar as tentativas qu~ E representou muito mais do que isso: em si mesma, ela já era a
foram feitas para juntar forças, os camaradas (homens e mulheres) tempestade purificadora do conhecimento lúcido, graças ao qual a
permaneceram fiéis aos princípios da Internacional. Em vez de cruzar social-democracia começava a reencontrar seu caminho e se preparava
a fronteira holandesa com Rosa, tive de visitá-la na prisão de Barnims- para vencer o imperialismo e o militarismo e realizar o socialismo por
~ass~. A execução da pena surgiu como um relâmpago em nosso plano meio da luta de classes internacional. Contribuiu poderosamente para
imediato de lutas. Apenas dois meses depois, porém, a Brochura de despertar os proletários, para afastá-los da embriaguez social-patriótica
Junius est~v~ c_oncluída. Rosa Luxemburgo não permitiu que sua prisão e do torpor da harmonia da União Sagrada, para reuni-los com base
desse ao inimigo um momento sequer de trégua. Impediram-na de na luta de classes, em torno da bandeira do socialismo internacional.
lutar. Audaciosamente, ela respondeu à restrição que nela se abatera: Esclarecedora, sólida como granito e baseada em estudo científico
agora mais do que nunca! Sua vontade indomável metamorfoseou esse aprofundado, a brochura exprimia e canalizava um modo de sentir, de
lugar de opressão impiedosa em um lugar de liberdade intelectual. o pensar e de querer que começava a aparecer nas massas populares,
trabalho político lhe era estritamente proibido. Em segredo em meio primeiro de forma tímida e esporádica, em seguida de maneira mais
às maiores dificuldades, observada de perto por olhos persc~tadores assertiva e mais premente, atingindo círculos cada vez mais amplos.
ao lado das ocupações científicas e literárias que lhe eram permitidas: Foi graças à Brochura de Junius que a vanguarda revolucionária do
Rosa escreveu sua extensa e penetrante crítica à social-democracia proletariado alemão e, sobretudo, os importantes círculos que servem de
in~es_tindo cad~ minuto, cada centelha de luz e todos os esforços nest~ intermediários às massas e que transmitem a linha política a ser seguida,
~bJe~ivo. A fadiga e a doença desapareceram diante da potência da voz recuperaram a lucidez e o espírito de luta. A brochura trouxe exatamente
mtenor. Foi essa voz que permitiu a Rosa suportar o que a frustrava o que esses círculos precisavam, assim como o que a vanguarda exigia:
e torturava no mais alto grau: o fato de que, inúmeras vezes ela era uma visão clara dos acontecimentos da hora; uma perspectiva luminosa
inte~rompida na sequência de suas ideias, de que constan~emente em relação ao futuro; palavras de ordem audaciosas e precisas.
ter_rna ser surpreendida em seu trabalho, não podendo continuá-lo Karl Kautsky, o teórico oficial da social-democracia, havia deixa-
ate o fim. Para ela, a libertação ocorreu quando conseguiu colocar 0 do de ser um líder de visão clarividente, tendo se perdido por um
ponto final no manuscrito e, astuta como Ulisses, confiar as últimas caminho equivocado. Em seu estoque de fórmulas "marxistas", não
folhas a mãos amigas, a fim de retirá-las de sua cela. logrou encontrar uma apenas que justificasse a lamentável traição da
D!ante das portas da prisão para as mulheres, o ar era pesado em maioria do partido. Ad usum Delphini inventou a famosa teoria das
~nçao_dos estragos da Guerra Mundial e empesteado dos vapores pú- duas almas da Internacional Socialista, que, segundo ele, era "um
tridos liberados pelos instintos do lucro e da usura dos especuladores instrumento válido para a paz e não para a guerra" e cujos princípios z
honoráveis defensores da ordem burguesa, que se desencadeavam se~ variavam de acordo com a situação dada, tomando ora a forma "Pro-
restrição. A "vontade de vencer" fora artificialmente aquecida por todos letários de todos os países, uni-vos! ", ora, ao contrário, "Proletários de ....
o os m~ios: mentiras, violências, infâmias estavam no auge. Mês após mês, todos os países, assassinem-se". Como uma alma penada, vagou aqui
u
a social~~ei:nocracia mergulhou cada vez mais fundo no mar sangrento e ali, cambaleando em meio às próprias construções lógicas, frágeis N
do fratricidio, cantarolando como uma aluna obediente as decisões da como castelos de cartas, e à sua verborragia pedante, para finalmente
b~rguesi~ imperialista e de seu governo, com algumas pequenas varia- <
tomar posição em favor da política do 4 de agosto, entrincheirando-
çoes, e violando, assim, todos os juramentos de lealdade à solidariedade -se atrás de sua autoridade. A oposição que depois manifestou era "
<
internacional, no atropelo dos ideais socialistas. Os trabalhadores se cheia de contradições, instável por princípio e débil. Na Brochura de
u deixavam levar pelo imperialismo ao abismo da morte e da perdição, em Junius, Rosa Luxemburgo submeteu essa política à crítica consistente, u
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E SQ UE R D A 33 A L U T A D E R o s A L UXEM B URGO 139
impi dosa avassaladora. Há aí um balan h l'al n 'ln , '1ni a na 0
ultimato da Áustria à rvia, acender e m 1914 (p or meio da "gue rra
história, da social-democracia, e, para tanto, Ro a n· s, bas ava em preventiva") a pira da civilização capitalista. Ele foi imp~lsionad~ irre-
fórmulas , mas em fatos, essas pequenas coisas inflexív i . A brochura sistivelmente pela sede de milhões do capitalismo financeiro alemao - o
demoliu todas as lendas e ·slogans que serviram como justificativa para capitalismo financeiro mais concentrado e bem organizado do mundo-,
o social-patriotismo, expondo as causas e as forças motrizes da guerra representado pelo Deutsche Bank, que cobiçava a exploração da
imperialista e revelando sua natureza e seus propósitos. Turquia e da Ásia menor; por outro lado, o poder mal controlado de
Guilherme II e a fraqueza complacente da oposição burguesa lhe ga-
A despeito das grandes dificuldades resultantes da prisão, Rosa
Luxemburgo coletou, na brochura, um conjunto de fatos preciosos rantiram uma liberdade perigosa.
Nas poucas páginas da Brochura de Junius, Rosa podia retratar o
e conclusivos. Com domínio soberano na utilização do materialismo
histórico como método de pesquisa, Rosa desemaranha esses fatos, caráter imperialista da Guerra Mundial e de seus objetivos sob uma
iluminando-os, e sua apreensão dialética da história os enche de forma pictórica, uma vez que, em seu vasto trabalho científico sobre
uma vida intensa. O leitmotiv do panfleto está contido nessa frase do a acumulação capitalista, ela já havia se proposto a rastrear o impe-
penúltimo capítulo: rialismo até as mais fundas raízes econômicas e em suas ramificações
políticas com tanta profundidade quanto sutileza. Despin~o a Guer~a
A história que deu origem à presente guerra não começou em julho de Mundial de sua farsa ideológica, mostrando-a como ela e (um nego-
1914, mas remonta de anos atrás, quando foi atada fio a fio à necessidade cio, um grande negócio, o comércio do capitalismo mundial sobre a
de uma lei natural , até que a rede coesa da política imperialista mundial vida e a morte), Rosa também arrancou impiedosamente da política
envolveu os cinco continentes - um formidável complexo histórico de social-democrata do 4 de agosto todos os véus ideológicos. No frescor
fenômenos cujas raízes descem às profundezas do desenvolvimento eco- matinal da análise científica do fenômeno histórico global e de seu
nômico, e cujos ramos extremos apontam para um novo mundo ainda contexto, expressões retóricas do tipo "luta pela civilização", "contra
indistinto que começa a despontar. tsarismo" ou "pela defesa da pátria" desaparecem na fumaça. Rosa
0
O imperialismo, nascido do desenvolvimento capitalista, nos apa- Luxemburgo mostra, de modo conclusivo, que, no atual quadro impe-
rece como um fenômeno internacional, irradiando e capaz de exercer rialista, a ideia de uma guerra defensiva, modesta, virtuosa e patriótica
influência em todas as direções, desprovido de escrúpulos e de respeito, desapareceu. A política de guerra seguida pela social-democracia se
com apetites gigantescos e insaciáveis, recorrendo a meios violentos e revela em toda a sua hediondez: marca a falência, a renúncia de um
produzindo maravilhas muito mais colossais do que "a construção das partido operário social-patriota aburguesado, que liquida um direito
pirâmides d~ Egito e das catedrais góticas" das quais fala o Manifesto revolucionário inato, do qual se orgulharia ainda menos do que o prato
Comunista. A oposição entre a França e a Alemanha surgida durante a de lentilhas exigido por Kautsky: pelas palavras vazias do imperador,
guerra de 1870-1871, o imperialismo dá um conteúdo completamente "Eu não conheço partidos, conheço apenas alemães", pela honra de
diferente e mais profundo: apaga os antigos conflitos de interesse em ser alistado na camarilha nacionalista. z
escala mundial entre os grandes Estados europeus e cria entre eles no- A Brochura dejunius começa refletindo sobre o dever e a impor-
vos antagonismos em novas regiões; joga em seu turbilhão os Estados tância da autocrítica socialista, com páginas entre as mais surpreen-
Unidos e o Japão. Coberto de sujeira e de sangue, viaja pelo mundo, dentes que já emergiram das profundezas de uma sensibilidade e >-

aniquila todas as civilizações e, depois de saqueá-las, transforma po- de um pensamento socialista puro e forte. Ali, a convicção íntima
o N
pulações inteiras em escravas do capitalismo europeu. O imperialismo e ardente nos exige os critérios mais elevados e mais rigorosos em
u
internacional prepara aos poucos a conflagração mundial no Egito, na nossa ação como socialistas; ali, com uma força profética, Rosa volta
Líbia, no Marrocos, no sul e no sudeste da África, na Ásia menor, na seus olhos para as perspectivas prodigiosas e deslumbrantes de futuro
Arábia, na Pérsia [Irã] e na China, nas ilhas do Pacífico, assim como que são abertas pelo socialismo. A próxima grande hora da viragem
nos Balcãs. Gestado tardiamente, mas dotado de um alucinado espírito histórica encontrará no proletariado um grande povo, formado pelo
triunfo do socialismo nos altos e baixos das vitórias e das derrotas de u
u empreendedor, o capitalismo alemão foi o responsável por, ao provocar

D E R o s A L UX E M B U R G O 14 1
140 M A R G E M E SQUERDA 33 A L U T A
ua luta revolucionárias, por meio de uma aut ·r 11 ·u ln pia ável. Partindo dessa p er p tiva, Rosa Luxemburgo analisou na época
O fim da brochura se une ao começo e o laço s f h· : "la onsidera um instrumento de luta já experimentado pela classe trabalhadora: a
que a guerra abriria o caminho para a revolução mundial. Nessa luta greve de massas, da qual foi a primeira a reconhecer a importância
gigantesca, a vitória e a derrota teriam consequências semelhantes histórica e a qual chamava de "a força clássica do movimento do pro-
tanto para os grupos imperialistas combatentes quanto, ao mesmo letariado em períodos de efervescência revolucionária". O presente
tempo, para o proletariado dos países envolvidos, ambas levando deu nova e crescente importância à brochura que escrevera sobre o
inevitavelmente ao colapso da ordem e da civilização capitalistas e assunto e que preparou o caminho para uma estimativa exata desse
ao seu julgamento diante do tribunal da revolução mundial. Rosa meio de luta· ela deveria hoje ser lida e compreendida por milhões de
Luxemburgo escreveu isso entre março e abril de 1915. Muito antes pessoas, qu~ se tornariam milhões de militantes prontos p~ra a ação.
de o proletariado russo, dirigido pelos bolcheviques determinados A Brochura de Junius é uma joia particularmente brilhante em
a ir até o fim, lançar o assalto da revolução social, muito antes de a meio ao rico legado que Rosa Luxemburgo deixou ao proletariado da
menor ruga anunciar a aproximação de um dilúvio revolucionário Alemanha e do mundo inteiro, para a teoria e para a práxis de sua luta
na Alemanha e na monarquia de Habsburgo. O que sabemos desde libertadora; uma joia cujo brilho e influência lembram dolorosamente
então, o que a própria Rosa Luxemburgo pode ter sabido em parte, 0
quanto essa perda sofrida é enorme e irreparável. Tudo o que pode
confirma vividamente a acuidade e a precisão com que enxergou as ser dito a seu respeito é como uma lista árida de nomes de plantas ao
linhas do desenvolvimento histórico na Brochura de Junius. lado de um jardim de flores de florescência, ricas em cores e fragrân-
Precisamente por essa razão, um ou outro leitor pode se perguntar, cias. É como se Rosa Luxemburgo, pressentindo seu fim prematuro,
lamentando ou reprovando, por que a autora não indicou a possibili- reunisse ali O melhor das forças de seu ser genial: o espírito científico
dade de uma revolução na Rússia, por que não se pronunciou sobre e penetrante da teórica, a paixão intrépida e ardente da ~~itante con-
os métodos e os meios de luta do proletariado no período de desen- victa e audaz, a riqueza interior e o brilhante poder criativo de uma
volvimento revolucionário que se iniciava. É bem verdade que, já em mulher perpetuamente em luta e dotada de uma sensibilidade a~ística.
1915, se começava a discernir cada vez mais nitidamente o colosso Todos os dons que a natureza lhe tinha generosamente proporcionado
da revolução que emergia do caos belicoso entre os povos . Todavia, ajudaram-na quando escreveu esse trabalho. , .
nenhum sinal indicava onde nem quando ela começaria sua marcha Mas ela só escreveu? Não, ela viveu nas profundezas da propria
triunfal. A Revolução Russa seria o tema de uma segunda brochura, alma. Em sua esmagadora crítica da traição social-democrata e na
para a qual Rosa Luxemburgo já havia delineado algumas diretrizes. estimulante perspectiva da renovação e da ascensão do prol~ta~i~do
A mão assassina do soldado civilizador nos privou desse projeto, no na Revolução; em suas palavras, marcadas por uma força incisiva;
qual seriam estudados e avaliados os meios e os métodos de luta da em suas frases que se precipitam impetuosamente em direção a seu
Revolução Russa. Obviamente não à maneira de Kautsky, em confor- objetivo; no encadeamento inflexível e no imen~o alcance de s:us
midade com um esquema rígido ao qual o desenvolvimento histórico pensamentos; em seus espirituosos sarcasmos; nas lffiagens e~pressiv~s z
efetivo deveria ter se adaptado como uma cama de Procusto. Não, que elaborava e em seu pathos simples e nobre; em tudo isso senti-
a concepção de Rosa Luxemburgo permanece fiel ao fluxo vivo e mos O sangue de Rosa Luxemburgo fluindo , sua inabalável v~nta?e
criativo desse desenvolvimento : "O momento histórico exige a cada falando, seu ser presente até a última fibra. A Brochura de ]uniu~ e a 1-

vez as forças correspondentes do movimento popular, criando novas expressão do próprio ser de uma grande personalidade, que se dedicou
o N
u [forças], improvisando meios de luta até então desconhecidos orde- inteiramente, sem reservas, a uma grande causa, à maior das causas.
' Assim, para além da morte, Rosa Luxemburgo ~os chama, e~a que
nando e enriquecendo o arsenal do povo, despreocupado de todas as
prescrições dos partidos". O que se trata de implementar na Revolução hoje, mais do que nunca, está à frente do proletariado, con~u~mdo-o a::

"não é , portanto, prescrições e receitas ridículas de natureza técnica, em seu caminho de Gólgota para a terra prometida do socialismo. <(

mas a palavra de ordem política, a formulação clara das tare fas e dos Do halo que envolve sua figura, porém, outra personalidade
se destaca. É preciso tirá-la da sombra na qual voluntariamente se u
u interesses políticos do proletariado".

D E R o s A LU XE M B U R GO 143
142 M A R G E M E SQU E RDA 33 A L U T A
RESENHAS
mant v , com uma di crição que ' sinal do va i r g ' nu ín ' da d -
dicação absoluta a serviço de um ideal. Essa p r nal i la d é Leo
Jogiches. Por mais de vinte anos, ele se ligou a Ro a Luxemburgo
em uma incomparável comunhão de ideias e de luta, fortalecida pela
força mais poderosa do mundo: a paixão ardente e devoradora que
esses dois seres dedicaram à Revolução. Poucas pessoas conhecem
Leo Jogiches e raros são os que o estimaram à altura de seu real Bonapartismo brasileiro
valor. Em geral, Leo aparecia apenas como organizador, aquele que
levava as ideias políticas de Rosa Luxemburgo da teoria para a prática, LUCIANO CAVINI MARTORANO
ainda que um organizador de primeiro plano, genial. No entanto, sua
atividade não se limitava a isso. Dono de uma cultura geral ampla e
Estado burguês e classes dominantes no Brasil ( 1930-1964).
profunda, com um domínio incomum do socialismo científico e um
Francisco Farias. Curitiba, Editora CRV, 2017. 170 p.
espírito de uma torção dialética, Leo Jogiches era o juiz incorruptível de
Rosa Luxemburgo e de seu trabalho, sua consciência teórica e prática
sempre vigilante: sabia como enxergar longe e abrir novos h orizontes,
enquanto Rosa, por sua vez, tinha o espírito mais penetrante e uma
o título da obra de Francisco Farias já revela o desafio proposto ~elo
maior capacidade de conceber os problemas. Jogiches era um daque- autor: analisar a relação entre o Estado e as classes dominantes no Brasil ao
les homens ainda muito raros hoje, os quais, dotados de uma grande longo de um período de mais de trinta anos. Isso e_m um tex~o de pouco
personalidade, podem admitir ao seu lado, numa relação leal e feliz mais de 150 páginas, das quais 23 são usadas, no capitulo 1, para_apresentar
o
de camaradagem, a presença de uma grande personalidade feminina, a teoria escolhida e as hipóteses de trabalho; as restantes 104 p~ginas, que
z
auxiliando o desenvolvimento e a transformação dela sem vê-la como antecedem a breve conclusão, são dedicadas a convencer o leito:: (a) da
<
obstáculo ou prejuízo a sua própria pessoa; um revolucionário flexível, incapacidade hegemónica isolada da burguesia industrial, do capital me~-
no sentido mais nobre da palavra, sem contradição entre as ideias e cantil e da propriedade fundiária ; e (b) da implementaç_ão pela burocra:_1a "
o
os atos. Muito do melhor de Leo está no trabalho e na vida de Rosa estatal de uma política de desenvolvimento de "caráter 1~dependente (nao 1-

Luxemburgo. Su a insistência apaixonada e incansável e suas críticas contemplação prioritária a nenhum dos interesses ~as fraçoes das classes _do~
minantes) , embora tal política faça concessões aos interesses opostos entre s1
construtivas também contribuíram para o fato de a Brochura dejunius
das frações dominantes" (p. 37). Conseguirá o auto~ dar c~nta_ desse ~esafio?
ter sido publicada tão rapidamente e de maneira tão magistral, do A resposta a essa pergunta começa a se esboçar ia no pnme1r~ capitulo, no
mesmo modo que, se ela pôde ser impressa e difundida apesar das qual Farias delimita seu objeto: "os conflitos de classes e as fraçoes de c_la~se~
extraordinárias dificuldades resultantes do estado de sítio, devemos dominantes pelo controle dos benefícios das políticas do Estado brasileiro z
isso à sua inabalável vontade. Os contrarrevolucionários sabiam o de 1930 a 1964 (p. 15), com base na "teoria" de Nicas Poulantzas_ sobre as
que estavam fazendo quando, algumas semanas após o assassinato de frações das classes dominantes e seus diferentes sist_emas de fracionamen- >

Rosa Luxemburgo, também assassinaram Leo Jogiches, durante uma to . o critério fundamental seria o atendimento aos interesses_de cla~ses e
dessas frações pela política estatal, já que a "análise do conteudo s_ocial do u
suposta "tentativa de fuga" da prisão de Moabit.
A Brochura de Junius é um ato político individual, que deve poder do Estado é a observação dos resultados co~~retos do , con1unto de
o o
suas políticas" (p. 64). Ou seja, não apenas uma pohttca específica, como a
u engendrar a ação revolucionária de massa. É a dinamite do espírito z
que explode a ordem burguesa. A sociedade socialista que surgirá política econômica. , .
Desse modo, é a compreensão aprofundada do aut?r sobre ~ analise
em seu lugar é o único monumento digno de Leo J ogiches e de Rosa poulantziar:ia_do objeto em foco que lhe perm~te organtzar_ o ~on1un~o da u
Luxemburgo. A Revolução, para a qual dedicaram suas vidas e pela obra de maneira sintética e clara, ainda que, no item 2 do pnme1ro capitulo, ::,
qual morreram, está em processo de erigir este monumento. ele não estabeleça uma distinção teórica rigorosa entre Estado e governo, -'
u

B ONAPAR T IS M O
8 R A S I L E I R O 145
144 M ARG E M E SQUERDA 33
h ga ndo a afirmar que o Estado seria o "governo sp ·l:i li z:1 1 " p. 20), ref rindo-se a Poula ntzas, r t ma a m sma expressão , afirmando que ess
alé m de adotar um procedimento não explicitado de um pr s nvol- autor nela distinguiria "d i ntid s": (a) "como fenômeno histórico-concre to
vendo um movimento inicial, um intermediário e um final, que implicaria, da França", e (b) "como traço constitutivo do Estado capitalista" (p. 109),
e m uma ponta, o governo, e, na outra, o Estado - procedimento que se além de diferenciá-lo do conceito de autonomia relativa. Já na conclusão,
repete no caso das frações dominantes - , afirmando que "as classes sociais Farias faz menção a um eventual "Estado bonapartício" e a um "Estado com
são as comunidades concretas" (p. 20), despertando no leitor a dúvida: não funcionamento bonapartista" (p. 150-2). Com isso, temos quatro elemen-
seriam, mais precisamente, um conceito abstrato que procuraria explicar um tos relacionados ao bonapartismo: uma política de Estado, um fenômeno
fenômeno concreto? histórico-concreto, um modo de funcionamento de Estado específico e, por
Nos capítulos sobre a burguesia industrial e a burguesia mercantil, Farias fim, um Estado bonapartista. Se isso está correto, qual seria afinal a relação
acrescenta dois novos itens: a análise sobre os conflitos regionais e sobre o entre esses elementos? Haveria a predominância de um sobre os demais?
conflito cultural - este apresentado de modo pouco desenvolvido - , consi- Como se daria a sua articulação interna? Qual o estatuto teórico de um Estado
derados elementos integrantes da luta pela hegemonia política. Embora se bonapartista? Ou, em termos mais gerais, pode-se falar da existência de um
atenha principalmente à hegemonia política - entendida aqui como "a ca- conceito próprio de bonapartismo na obra de Poulantzas?
pacidade de uma fração de fazer prevalecer os próprios interesses no bloco Essas e outras questões que suscitam a leitura do livro de Francisco Fa-
no poder" (p. 35) - , sublinhando que não há uma relação automática entre rias mostram a sua qualidade, revelando que ele conseguiu responder ao
os domínios econômico e político no curto prazo, mas "a médio e a longo desafio a que se propôs e demonstram que, quanto maior o aprofundamento
prazo, a tendência é haver a correspondência entre hegemonia política e teórico sobre a problemática escolhida, maiores serão os resultados obtidos
preponderância econômica" (p. 36). e mais sintética e clara poderá ser a sua apresentação. Portanto, trata-se de
Sem se perder no grande volume de argume ntos do extenso debate uma obra que contribui teórica e historicamente para a análise da história
bibliográfico consultado, envolvendo os autores mais importantes, nem nos recente do Brasil.
dados econômicos, tampouco nos principais acontecimentos políticos do pe-
ríodo em análise (Revolução de 1930, movimento constitucionalista de 1932,
a conjuntura de 1945 a 1947, a crise de 1954, até chegar ao golpe de 1964,
que marcaria o fim da crise de hegemonia política), Farias resume em sua
conclusão que as políticas "dos governos" assumiram a "forma de um pro-
grama nacional-desenvolvimentista", tendo como aspectos centrais a cen-
tralização política e o intervencionismo (p. 147). De fato, elas beneficiariam
a "classe do capital" em se u conjunto, mas sem privilegiar, isoladamente,
uma de suas frações. Nesse prolongado contexto de crise hegemônica por
parte das frações dominantes, seria a burocracia de Estado que "parece"
dominar a "classe proprietária" (p. 151), assumindo o discurso da soberania
nacional e do desenvolvimento econômico. Portanto, como o próprio autor Diferentes facetas de Màrx aparecem neste
reconhece, ele adota a conhecida tese do bonapartismo para explicar a volume que reúne perspectivas de amigos,
dominação política no Brasil no período em foco. familiares, companheiros de luta e herdeiros
Mas o que é, para Farias, o bonapartismo? Deixamos nesta resenha de do legado político e científico do fundador do
lado a análise sobre os argumentos do debate historiográfico brasileiro elen- socialismo científico. Um verdadeiro compêndio
para compreender como a imagem do homem
cados ao longo do texto até mesmo por razões de espaço, tais como a lei do
Karl Marx foi construída pela perspectiva de
desenvolvimento capitalista desigual, o colonialismo e o semicolonialismo,
<(
pessoas que não eram biógrafos de profissão,
r a burguesia interna, o coronelismo, o populismo e tc. Inicialmente, ele afir- mas que foram essenciais para dar continuidade
z ma que "convém aplicarmos o termo de 'política bonapartista"' , pois assim a seu legado.
se caracterizaria "a independência da política estatal, na qu al nenhum dos
interesses específicos encontram-se prioritariamente contemplados", e "o textos de: Clara Zetkin, David Riazanov, Eleanor
ziguezague da política, em que os interesses contemplados caem ora para Marx, Franziska Kugelmann, Friedrich Engels,
ex:: um lado, ora para outro, no interior do bloco no poder" (p. 37). Depois, apresentação: João Quartim de Moraes Friedrich Lessner, Henry Hyndman, Karl Kautsky,
orelha: Virgínia Fontes Luise Kautsky, Marian Comyn, Paul Lafargue e
336 páginas Vladímir Lênin.
146 M A R G E M E SQUERD A 33
práticos das relações, m suas r ' pr ntaçõe , traz uma inversão entre uj ito
e objeto. As forças produtiva do trabalho, no limite, aparecem como força
produtivas do capital; o decisivo parece ser a propriedade, e não o trabalho.
E isso não corresponde a uma simples ilusão; antes, tal inversão faz parte do
próprio modo de produção capitalista: há uma espécie de religião da vida
cotidiana, em que as figuras essenciais do processo de produção aparecem
como um mistério para os próprios agentes da produção.
O Livro 111 de O capital e a atualidade do E tal questão fica bastante clara no tratamento marxiano, presente no
Livro III de O capital, de figuras como preço de custo, ganho empresarial,
pensamento de Marx em tempos sombrios capital portador de juros, dentre outras. Os portadores práticos das relações
de produção - o burguês, por exemplo - operam por meio de tais cate-
VITOR SARTORI gorias, que são efetivas na realidade. Ao mesmo tempo, elas somente são
efetivas em sua superficialidade. Dependem da extração do mais-valor, mas
ocultam a própria existência deste. Na noção de preço de custo e de ganho
Marx e a crítica do modo de representação capitalista. empresarial, por exemplo, não há quaisquer referências à composição do
Jorge Grespan. São Paulo, Boitempo, 2019. 304 p. valor (capital constante, variável e mais-valor); desse modo, a atividade diu-
turna do empresário, ao mesmo tempo, é regida pela valorização do valor,
e sequer se refere a ela.
Marx e a crítica ao modo de reprodução capitalista é uma obra de fô- O modo pelo qual a questão se apresenta aos portadores práticos dessas
lego. É possível afirmar, de certo modo, que ela expressa a maturidade do relações sociais assim supõe. E isto tem impactos substanciais no campo da
pensamento de Jorge Grespan, autor que há muitos anos vem estudando a representação, para que se use o título do livro, no modo de representação
obra de Marx e, em especial, O capital. capitalista. Na superfície da sociedade capitalista, o lucro consistiria justamen-
No texto, é possível perceber a presença de diversas temáticas, como te na capacidade de se vender determinada mercadoria acima de seu preço
a relação Marx-Hegel, o fetichismo, a inversão sujeito-objeto, o estatuto de custo. Ou seja, aparentemente, o ganho empresarial adviria, não de uma
dos diferentes livros que compõem a obra magna de Marx. No entanto, parcela do mais-valor, produzido pela classe trabalhadora, mas da expertise .
note-se que tais temas estão presentes na exposição de Grespan tendo do empresário, de seu trabalho. De repente, tem-se o seguinte: o capitalista
como linha vermelha a relação entre apresentação (Darstellung) e repre- aparece como trabalhador, e a força de trabalho dos trabalhadores aparece
sentação ( Vorstellung). como custo. Trata-se de uma inversão, certamente. No entanto, de uma inver-
Com isso, tem-se duas consequências: primeiramente, trata-se de um texto são presente no modo pelo qual se opera real e efetivamente na sociedade
organizado e de redação clara; a obra tem um fio vermelho claro. Em segundo capitalista. Tanto a apresentação como a representação decorrem da própria
lugar, a crítica do autor - tal qual a de Marx - tem íntima relação com o modo conformação objetiva das relações práticas dos agentes da produção; ao
de exposição (Darstellungsweise) das categorias no próprio texto. Sobre este mesmo tempo, trazem consigo os pressupostos destas. A autonomização das
último ponto, pode-se dizer que tanto em O capital, quanto no livro que agora formas econômicas e do preço diante do valor é tratada nesse contexto, em
comentamos, traz-se, primeiramente, e em considerável grau de abstração, a que a distribuição da riqueza social não aparece por meio do trabalho, mas da
figura medular interna do modo de produção capitalista. Então, explicita-se propriedade privada. A questão é bastante importante - mesmo para aqueles o
como que na prática e na representação dos agentes da produção esta figura que não concordem completamente com as conclusões do autor sobre a com- 1-

se apresenta de modo invertido. O livro do autor brasileiro vai da análise das preensão da relação entre as formas jurídicas (como a titularidade, o contrato, "'
<{
formas do mais-valor, passa pelo estudo da apresentação das leis imanentes e, no limite, a própria concepção de justiça) e o funcionamento concreto da
I
do sistema capitalista e pelo modo como ela se relaciona com a representação economia capitalista. Os meandros dessas questões, como era de se esperar,
dos agentes da produção e, por fim, chega à representação do próprio capital. são tratados por Grespan com bastante cuidado e, sempre, com referência ao
z
Isso significa que Jorge Grespan, seguindo o texto marxiano, mostra como original ale~ão; o autor, inclusive, opera cotejando os diferentes rascunhos "'
o
que a apresentação das leis imanentes do capitalismo depende daquilo que de O capital e comparando-os no que toca ao trabalho editorial de Engels.
é essencial à constituição dessas leis mesmas. No entanto, o autor deixa claro Nesse ponto, o autor brasileiro, mesmo que não tenha a questão por cen-
a: que o modo pelo qual essas leis se apresentam à consciência do portadores tral, vem a se posicionar sobre a relação Marx-Engels, mostrando que parte >

148 M A R G E M E SQUERDA 33 o L I V R O 1 1 1 D E o C A P I T A L .•• 149


da util zas dialéticas do texto marxiano, por vez s, p ' J' 1 •m s n:i ' li de é livre, mesmo que os trabalhad r s sejam forçados a realizar a alienação
Engels (não obstante todos os méritos do autor do Anti- ilhrlng . A t máti- (Verausserung); são forçado a vender voluntariamente sua força de trabalho.
ca, com certeza, interessa aos estudiosos da obra marxiana e d marxismo. Por meio das formas jurídicas - principalmente a contratual - os trabalhadores
No entanto, também tem reverberações em outro assunto bastante cor- e os burgueses aparecem como proprietários; tal qual o burguês utiliza sua
rente na tradição marxista: a relação Marx-Hegel. Ao passo que Engels, de propriedade para enriquecer, o mesmo passa pela cabeça do trabalhador.
modo a tentar trazer certa popularização da questão , teve como central a Deste modo, em meio à reprodução diuturna do capitalismo, há certa re-
oposição entre sistema e método, Jorge Grespan vem a demonstrar que, em presentação, por assim dizer, "empresarial", "empreendedora" (este último
Marx, há meandros mais complexos. Eles dizem respeito não tanto ao fim acréscimo é nosso), que, de certo modo, é imanente à própria conformação
da filosofia clássica alemã, mas ao movimento das próprias categorias da da classe trabalhadora. Tal representação pode ou não ser superada. Mas ,
sociedade civil-burguesa. Para Marx, mostra bem o autor do livro, diante para a compreensão real da questão, é necessária uma crítica ao modo de
das figuras do processo global de produção, tem-se a inversão da posição representação capitalista, que é justamente o que Jorge Grespan, seguindo
hegeliana sobre a racionalidade do real; ali, na concretude das práticas dos de perto o texto marxiano, pretende realizar.
agentes da produção, aquilo destituído de conceito (begriffslos) - e que, deste Mesmo aqueles que discordem das concepções de fundo do autor brasi-
modo, não tem uma sustentação própria, como o capital portador de juros, leiro deparam-se com uma obra indispensável para o estudo de Karl Marx. A
a renda da terra - aparece como efetivo: o irracional é efetivo na superfície organização do texto em torno da questão da apresentação e da representa-
da sociedade capitalista. Tal inversão não consiste em má-fé ou em uma ção traz uma abordagem nova e cuidadosa na leitura de O capital, e só isso
simples falsa consciência; ela é parte da realidade efetiva do próprio modo já faz com que valha a pena a leitura. As críticas ao texto de Jorge Grespan
de produção capitalista. certamente virão, e isso é essencial à repercussão de toda grande obra. Porém,
Ou seja, tratar da relação e ntre Marx e Hegel não significa mostrar qual é importante que sejam feitas com o mesmo cuidado no que toca ao uso
parte da lógica de Hegel teria sido apropriada pelo autor de O capital; e tal do texto de Marx. O fôlego de Marx e a crítica do modo de representação
procedimento não é incomum. Antes, tem como suposto a compreensão do capitalista é evidente, tratando-se de obra a se tornar referência na literatura
modo pelo qual se desenvolve a dialética entre apresentação e representação sobre Marx e sobre o caráter proveitoso do marxismo na compreensão do
em Marx e no autor da Fenomenologia do espírito. Neste último, a efetivida- capitalismo contemporâneo.
de da razão na história leva à elevação da consciência imediata em direção
ao saber absoluto, tendo-se certa confluência entre as figuras da sociedade
civil-burguesa (mediadas pelo Estado) e a Razão (Vernunft) . O real, assim, é
racional, e o racional, real. Já , para Marx, de certo modo, mesmo que se parta
de temas hegelianos, e m meio a uma crítica à economia política, tem-se as
KARL MARX
categorias da economia burguesa progressivamente se tornando irracionais,
mesmo que efetivas.
Basta pensar no caso limite, aquele da economia vulgar. Ela, em verdade,
é uma representação da prática cotidiana dos agentes da produção capitalista.
O modo de representação capitalista, assim, não só traz uma inversão das Embora possa ser considerado em muitos
sentidos o ápice da obra de Marx - é nele que está
determinações reais da produção. Isso é feito à medida que tal inversão se
contida, por exemplo, a famosa apresentação do
apresenta como parte constitutiva da própria prática dos agentes da produ- problema da queda tendencial da taxa de lucro,
ção. E tal ponto traz uma consequência bastante interessa nte para a crítica, bem como toda a discussão sobre capital de
não só às representações, mas ao modo de produção capitalista como um comércio financeiro -, o Livro Ili de O capital é
todo: o capital se apresenta como sujeito, em verdade, tanto aos burgueses também um texto muito delicado, porque não
I
quanto aos trabalhadores. chegou a ser finalizado em vida pelo autor, sendo
A inversão trazida à tona na religião da vida cotidiana - e colocada de editado posteriormente por Friedrich Engels.
z
modo mais radical na tematização marxiana da forma trinitária - apresenta- Por isso é tão importante o fato de a edição
-se ao burguês ao passo que este representa a si mesmo como trabalhador. da Boitempo ser a primeira realizada a partir
dos documentos da MEGA-2 (Marx-Engels-
Mas atinge os trabalhadores, podendo estes representar a i mesmos como
Gesamtausgabe), que traz a mais completa e
a:: empresários; sobre tal ponto, vale destacar que a venda da força de trabalho tradução: Rubens Enderle minuciosa apuração dos manuscritos, notas e
apresentação: Marcelo Carcanholo apontamentos de Marx e das escolhas ed itoriais
texto de apoio : Rosa Luxemburgo
150 M ARGEM E SQUERDA 33 orelha: Sara Granemann
de Engels.
984 páginas
NOTA DE LEITURA

A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA


O NEOLIBERALISMO EM ATAQUE AO ENSINO PÚBLICO A ditadura do grande capital
CHRISTIAN LA VAL Octavio lanni. São Paulo, Expressão Popular, 2019 . 360 p.
Neste estudo explosivo, o autor de A nova razão do mundo dis-
cute a crise de legitimidade da instituição escolar em tempos
de avanço neoliberal e coloca em xeque os valores embutidos Em 1981, a editora Civilização Brasileira lançou A ditadura do grande
em termos hoje correntes na educação, como "inovação" e
"eficiência". A obra faz um diagnóstico geral das mudanças nos
capital, a obra-prima de um dos maiores clássicos do pensamento social
sistemas de ensino influenciadas pelo chamado neoliberalismo crítico latino-americano, o sociólogo Octavio Ianni. Passados quase quarenta
-escolar e vem acrescida de um prefácio escrito especialmente anos, a Expressão Popular, em parceria com a Associação dos Docentes da
para esta edição da Boitempo. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Adunirio) - seção sindi-
cal do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
(Andes-SN) na Unirio -, publica a segunda edição dessa obra que resistiu
ao tempo e afirma-se como um texto necessário e atual para desvelarmos os
EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE mecanismos contemporâneos de dominação capitalista.
Na década de 1980, Ianni já era reconhecido como uma referência na-
POR ESCOLAS DEMOCRÁTICAS E PELA LIBERDADE
DE ENSINAR cional. Desde o início dos anos 1960, produziu escritos impactantes sobre
FERNANDO CÁSSIO (ORG.) escravidão, questão racial, Estado, desenvolvimento capitalista, imperialismo,
questão agrária. A ditadura do. grande capital, entretanto, não foi uma obra
O novo volume da coleção Tinta Vermelha de livros de interven-
ção da Boitempo reúne mais de vinte autores para propor um aclamada no seu tempo e segue, até hoje, pouco revisitada pelas novas ge-
debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educa- rações de militantes e acadêmicos. O que explica o fato de uma obra-prima
ção pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, de um autor renomado não ter se tornado, no curso do tempo, um clássico?
focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à
atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o
Uma explicação, talvez a mais óbvia, é o longo período fora de circulação
conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico no mercado editorial. Outra especularia que a obra foi lançada no descenso
do ambiente escolar. da ditadura, no qual produções progressistas se destacavam por valorizar a
democracia, a emergência de novos movimentos sociais, a força do "tercei- o
ro setor" como uma contraposição ao mercado e ao Estado, e por aí vai. A
esperança de novos tempos estava no ar.
,_
IDEOLOGIA E PROPAGANDA Em linhas gerais, o livro traz uma perspectiva de totalidade que congrega
NQRIT PEL\D·~~~AN elementos econômicos, políticos e culturais para analisar a conjuntura de
ld OUlfAE
. .
.,~
PR~PAGMbA
.... . NA EDUCAÇÃO
A PALESTINA NOS LIVROS DIDÁTICOS ISRAELENSES
NURIT PELED-ELHANAN
Qual é o poder da escola na formação cultural de uma nação?
então, pondo em movimento tanto as ações das classes dominantes como as
resistê ncias dos subalternos. O texto traz um misto de esperança na transição
para um período de democratização no Brasil e de alerta da manutenção
de mecanismos de dominação do grande capital. Ao dar ênfase à segunda
u
<

o
\.?
llllhps~ orno ela pode contribuir para predispor os jovens a reproduzir variável das contradições advindas da crise da ditadura, Ianni destoava do
situações de opressão, em vez de transformá-las? Neste acla- clima da época.
NA EÍl~ÇAÇÃ8 mado estudo, a professora de linguagem da educação Nurit
Para Ianni, os mandos e desmandos da ditadura não eram somente uma "'
Peled-Elhanan apresenta uma detalhada exposição dos meca- o
nismos pelos quais os materiais escolares israelenses moldam operação autoritária dos militares. Em poucas palavras, a ditadura tinha uma o
um imaginário de marginalização dos palestinos. forma militar, mas o conteúdo era dado pelo grande capital. Seu objetivo era a::

A DIT A DURA D O GRANDE C A P I T A l 153


nte nd r as p olíticas a utocráticas do Estado brasil ir ' O ll H> 111 • ·:i nlsrn s de POESIA
aprofundame nto da superexploração da força de trabalh rop rla ão
dos meios de produção e de subsistência dos trabalhador a mpo e da
cidade. Esses mecanismos foram utilizados para a superação da crise pela
qual passava o capitalismo dependente no Brasil nos anos 1960, na qual foi
necessária a intervenção direta do Estado para superá-la.
Naquele cenário acirrado das lutas de classes, o Estado teve papel ativo. Na
primeira e na quarta partes do livro, Ianni destaca medidas de planejamento Pier Paolo Pasolini
econômico combinadas às políticas de segurança nacional na gestação do Tradução e nota: Flávio Wof de Aguiar
novo padrão de acumulação, tendo como base social os grandes capitais
nacionais e internacionais, com hegemonia do imperialismo no bloco de
poder dominante. Daí a consolidação do capitalismo monopolista no Brasil A/la bandiera rossa
À bandeira rubra
com a ditadura empresarial-militar. Tais medidas estatais são analisadas
teoricamente a partir da categoria de violência como potência econômica, Per chi conosce solo il tuo colore,
Para ele que apenas conhece tua cor,
cunhada por Marx no capítulo 24 do Livro Ide O capital. A diferença é que, bandiera rossa,
bandeira rubra,
enquanto o filósofo alemão analisa a transição eritre ·modos de produção (do tu devi realmente esistere,
tu deves de fato existir,
feudalismo para o capitalismo) no centro do mercado mundial, o sociólogo perché fui esista:
para que ele exista;
paulista estuda a mudança entre padrões de acumulação (do concorrencial chi era coperto di crostee
ele, que as cascas de ferida recobriam,
para o monopolista) numa formação econômico-social periférica. coperto di piaghe,
agora é tomado pelas chagas,
Na segunda parte, estuda-se o reino oculto da produção, suas particula- il bracciante diventa mendicante,
o trabalhador se torna um pedinte,
ridades no capitalismo dependente e seus rebatimentos nas expressões da il napoletano calabrese,
o napolitano; um calabrês,
"questão social". A repressão militar e a política salarial, por exemplo, são il calabrese africano,
o calabrês, um africano,
analisadas como mecanismos integrados da violência estatal como potência /'analfabeta una bufa/a o un cane.
a iletrada, uma búfala ou um cão.
econômica que sustentaram as altas taxas de crescimento do período. Na Chi conosceva appena il tuo colore,
Ele, que mal e mal conhece tua cor,
terceira parte, o foco é a expansão das fronteiras da acumulação capitalista bandiera rossa,
bandeira rubra,
e seus impactos regionais no Nordeste e na Amazônia, tendo como base as sta per non conoscerti piu,
não mais vai te reconhecer,
expropriações da terra e dos meios de vida das populações que lá habitam. neanche coi sertsi:
nem com os sentidos.
Apesar de toda sorte de violência, Ianni ressalta que as lutas dos trabalhadores tu che già vanti tante glorie
Tu, que ostentas tantas glórias z
do campo e da cidade se mantiveram ativas e altivas, o que fica destacado borghesi e operaie,
burguesas e operárias,
na quinta e última parte, na qual vaticina o fim da contrarrevolução burguesa ridiventa straccio,
voltas a ser um trapo,
ditatorial a partir de uma "revolução democrática". e il piu povero ti sventoli. o
e é o mais miserável quem te agita.
Em resumo, ao lermos o livro de Ianni, fica a certeza de que estamos
diante de uma obra-prima de um autor clássico. E podemos tirar a lição <
política de que a luta das trabalhadoras e dos trabalhadores não deve se a..
fiar exclusivamente nas bandeiras democráticas. A depender da conjuntura,
como as ditatoriais de ontem e de hoje, essas bandeiras são elementos táticos Pier Paolo Pasolini (1922-1975) é mais conhecido por seus filmes e suas o
indispensáveis. Todavia, não devemos esquecer que o autoritarismo e as posições libertárias e polêmicas sobre costumes e sexualidade. Foi também
opressões têm raízes profundas no imperialismo, na superexploração e nas um polemista político incansável, progressivamente atuando pela esquerda, o
expropriações do capitalismo dependente, e essas estruturas devem sempre e um poeta de renome, além de ensaísta e também linguista, defensor das <
ser o alvo estratégico da resistência da classe trabalhadora. - Rodrigo Castelo variedades dialetais italianas, como a do Friuli, no extremo norte do país, a..
de sua preferência. Sua poesia teve também ressonâncias revolucionárías,
correspondendo a sua adesão intermitente ao comunismo. Dela seleciona- "
mos um exemplo, dedicado à tradicional Bandiera rossa italiana, de tantas
canções e de amplo uso no cinema. a..

54 M A R G E M E SQU ERD A 33 À BAND EIR A R U B R A 155


QUEM ASSINANTE TEM DESCONTO
SOBRE AS IMAGENS
EM TODO O CATÁLOGO DA BOITEMPO

Carlos Motta e o reaparecimento da imagem

GABRIEL ZIMBARDI
Com periodicidade semestral, a Margem
Esquerda traz ensa ios de fôlego sobre
os principais acontecimentos de nosso
tempo e a conjuntura sociopolítica no
Brasil e no mundo, além de estudos sobre
os clássicos do marxismo e entrevistas
aprofundadas que traçam a trajetória
intelectual, política e cultural de figuras
· A produção de Carlos Motta tem entre suas principais virtudes fazer apare-
de destaque da esquerda de hoje.
cer sujeitos e estórias suprimidos, na tentativa de estabelecer contranarrativas
que reconheçam relatos não hegemônicos da história. Motta é conhecido por
seu engajamento e ativismo queer e por suas posições sobre as políticas de
sexo e gênero como oportunidades de articular posições contra a injustiça
social e política. Da vasta produção do artista e professor colombiano radi-
MODALIDADES DE ASSINATURA cado em Nova York, o recorte estabelecido para este volume baseia-se em
dois conjuntos fundamentados em iconografias esquecidas por processos
pasteurizadores de relatos históricos. A coincidência entre os dois conjuntos
evidencia a plu ralidade sexual e de gênero de civilizações pretéritas.
O primeiro deles, Beloved Martina, que aparece nas capas e ao final desta
edição, ·reproduz em dez esculturas em arenito impressas em 3D estátuas
greco-romanas ele Hermafrodito, filho de Afrodite e de Hermes, deus dos
n
"hermafroditas" e cios afeminados. As esculturas denotam o fascínio histórico
duradouro pela figura intersexual e a maneira como os corpos intersexuais
têm sido sujeitados à objetificação do olhar dominante. O segundo, Hacia una
historiografia homoerótica, que figura no miolo do volume, retrata em uma
série de desenhos em grafite e aquarela um conjunto de a1tefatos homoeróticos
descobertos nas Amé1icas e produzidos por diversas etnias, como os tairona, da N
NUAL DER$ 60,00 POR R$ 54,00 BIANUAL DE R$120,00 POR R$102,00 Colômbia, e os moche, do Pem. Tais objetos não costumam figurar nas exposi-
edições, desconto de 15% em toda a 4 edições, desconto de 30% em toda ções dos museus de antropologia, permanecendo sob "um véu de moralismo"
ja virtual da Boitempo durante o ano a loja virtual da Boitempo durante os em seus ace1vos, como conta Motta. As coleções que detêm a propriedade de
e vigência da assinatura. dois anos de vigência da assinatura . ambos os acervos reinterpretados por Motta seguem o esquema ele opressão
análogo àquele dos eventos passados ao tratar seus tesouros como itens exóticos
ou à margem da normalidade. O gesto ele Motta reconfigura essas questões, "'
COMO ASSINAR? posicionando essas produções à luz da discussão contemporânea.
l?
a ra assinar, basta acessar a loja virtual da Boitempo www.boitem poed itorial.com.br
u entrar em contato pelo e-mail loja@boitempoeditorial.com.br ou pelo telefone
1) 3875 -7250. C ARLOS M OT T A E O REAPARECIMENTO DA IMAGEM 15/

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