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44 Identidade afro-brasileira: abordagem do ensino da arte

IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA:
ABORDAGEM DO ENSINO DA ARTE
O resgate da arte e dos padrões estéticos da produção negro-africana no
ensino de Arte revigoram a formaç5o da subjetividade e da identidade
do estudante negro

Pesquisas recentes têm apontado para africana e incompleta quanto i afro-brasilei-


a dificuIdade de aceitação da identidade ne- ra. Os professores de educação artística se
gro-afiicana por parte de enorme parcela do formam sem nunca terem tido sequer uma
alunato de nosso país, ocasionando proble- disciplina com conteúdos relativos h estéti-
mas de repetência, evasão escolar e impe- ca negra ou As raizes africanas. Tem-se, ain-
dindo o pleno exercicio da cidadania por da, em nossa produção sirnblilica, o agra-
parte dos educandos'. vante da ideologia do embranquecimento e
Livros didãticos de Educação Artísti- do mito da democracia racial imposta pelos
ca, adotados por 30% de professores da rede setores hegernenicos da sociedade.
pzíblica e consultados por 70% destes, são Desse modo, parece-nos oportuno tra-
totalmente omissos no que se refere i pro- zer a discussão sobre Relações Étnicas e
duqão cultural e aríistica do negro2. Relações Raciais, focalizando a arte e a
Sabemos que a herança histórica bra- estética africanas.
sileira tem dificultado as camadas subalter-
nas vivenciarem suas experiências estéticas.
Tambdm a indústria cultural, juntamente EST~TICAAFRICANA
com o sistema educacional, tem imposto
padrões homogeneizantes, desvalorizando e Nosso interesse se volta para as raizes
negligenciando a heterogeneidade e a diver- africanas da arte na arte brasileira atual.
sidade de nossa cultura, omitindo a presen- Quais elementos estão presentes, vindos
ça participe dos descendentes de escravos. pela m2o dos africanos, no p e n d o Colonial
A bibliografia disponível para o ensi- e Imperial, e quais foram trazidos por via
no da Arte é omissa no que se refere i arte erudita, através de artistas brasileiros que
foram iEuropa e lá tiveram contato com a
-
A
-
ra - produção africana.
Desde o período Colonial, desenvol-
DEIIma de Me10 Silva veu-se, em nosso país, uma cultura estética
Prcpfessora Dciutora do Depammer iuni- hegemenica e uma cultura estética subalter-
ca<:&s e Arte s da ECA. Especialir ria e na (ou popular), produzidas pelas duas ver-
Crftica da Arte. Presidente da Comissão de
tentes acima apontadas. No nível da produ-
Pesquisa da ECA-USP. E-mail: dil!
ção hegemônica assistimos, no período
1. FUNARI, R. M . L. O ensino da Arte no Brasil em busca das raizes culturais africanas. STio Paulo. ECA-USP. 1993.
(Di~sertaqãode Mestrado).
2. FERRAZ. H. T.Arte-FAucaqáo, vivhcia, experienciaçGo ou livro didhtico? Sio Paulo: Loyola. 1987.
Comunicação & Educação, Sao Paulo, [ 1 0):
44 a 49, set./dez. 1 997 45

colonial, i formaçio de uma iconografia cla catolicismo, kardecismo, com elementos


católica ligada ao período pré-renascentista africanos e ameríndios): percebemos que a
europeu e, no periodo republicano, ã intro- expressão plástica dos ancestrais caboclos
dução das artes e dos padrões de beleza cal- traduz uma concepção culta do que seria o
cados nos cânones de beleza greço-romanos nosso indígena. O índio, na iconografia da
- um estudo do Barroco e da atuação da umbanda, não é o índio real, mas um perso-
Missão Francesa seria ilustrativo para com- nagem saído da literatura, dos livros de José
preendermos o que ocorreu em nosso pais. de Alencar ou de Gonçalves Dias.
O Barroco brasileiro mostrava um Quanto i produção africana podería-
rompimento com os cânones estéticos euro- mos acrescentar: sua presença já era regis-
peus, tendo produzido obras originais de trada na Europa desde o século XV, quando
artistas vindos das camadas populares. Mas um filho de André Tiraqueau, protegido de
a Missão Francesa significou o retorno à or- Rabelais, reúne em Paris uma coleção de
dem, com a imposição do neoclássico, objetos exóticos, os fetiches noires. No
levando a um retraimento da produção século XVI são levadas peças em madeira,
popu I ar. marfim e bronze de zonas banto, atual An-
gola, para a Europa. No século XVIII um
musicólogo da corte de Brunswick reproduz
peças em marfim em seu Theatmm Instnr-
mentorum. Ainda nesse mesmo período,
são levadas peças em ouro da Nigeria (como
a máscara do Rei Ashanti Koffe KaIakalli) e
outras em bronze.

No século XIX, a Europa C inundada com


objetos de origem africana: as expediqiies
científicas e etnográficas dirigem-se ao
continente africano e trazem consigo cen-
tenas e milhares de objetos que formam
os acervos dos Museus da Eumpa: Soa-
Iheria, esculturas, máscaras, suportes,
IIn I (I [ I L I ~ tlccurxio w r n m~)ti\,o\Ilurai\ yr~ir:~do\dt\kica- placas, portas, frontões etc.
sc. eni :iltci-relevo. a vigoroía tigiirí~tlç um çcihenino 1;idc;ido
por guerreiros. (Arte Benin. Iiminíi em hriinle. Nelsun
Gallery iiTAn. K a n ~ a sCity, EUA). Em 1897, uma expedição punitiva da
Marinha inglesa vai ao Benin, destrói a
No que se refere h estética da cultura comunidade e carrega como despojo de
popular, vamos encontrar um alto grau de guerra t ~ d a produção plgstica encontrada.
rnestiçagem, unindo padrões da produção Num Único carregamento são levadas mais
pr6-colombiana, da africana e do catolicis- de duas mil peças, provocando uma ruptura
mo popular, mesclado aos padrões natura- na produção local, que fica despojada de
listas greco-romanos. suas matrizes. O Obá Ovonramwen foi
Poderíamos exernplificar com um exilado e, somente em 1914, os ingleses
olhar sobre a iconografia ligada aos rituais permitiram o retorno de um novo Obá e a
de umbanda (religiosidade popular que mes- reconstrução dos locais sagrados.
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Nos primeiros anos deste século, Ma- povos negros são incapazes de se desenvol-
tisse, Braque. Ylaminck, Picasso descobrem ver e de receber uma educação. Eles sempre
a arte negra. Apolinaire publica um primeiro foram tal como vemos hoje".'.
álbum francês dedicado à escultura africa- - e,
2
-
na; em seguida, Carl Einstein publica Nege-
-
u

splastik. Os alemães, ligados ao Dle Bruck J2


C;

(inovimento de Artes Plásticas desencadea- "


'4 +
do, na Alemanha, nas primeiras décadas -
deste século), ao afirmarem em seus catálo-
gos a necessidade de se buscar o instinto, de 2
se buscar as causas viscerais das emoções,
substituem os rostos humanos por máscaras I, .
africanas. A tela Demoiselles d9~vignon de
Picasso, de 1907, é ilustrativa: o artista
substitui o rosto feminino por uma máscara.
Em 1919 é publicada em Paris uma antolo-
gia negra e, na década seguinte, são feitas
grandes exposições com peças africanas e
da Oceania: em Marselha, em Vincennes e
na Galeria Pigalle, no Pavilhão Marsan em
Formas estilizadas c ripidnmcnle hinictriclis caracterizam es-
Em 1935, 0 Museu de Afie Moderna ta figura humana em madeira. (Arte Gum, cnieçán pariicu-
de Nova York organiza uma primeira expo- lar. Milão, Itália).

sição de arte africana. Nessa linha de raciocínio entendemos


A conceituação de primitiva dada à arte a utilização dos adjetivos primitivo e urre
africana está diretamente ligada ?iidéia de primitiva. Quando os especialistas utilizam
que a inferioridade técnica de uma civiliza- categorias estéticas européias, a produção
ção implica uma inferiondade artistica. Tal africana aparece como distorcida, incapaz
afirmação tem seu início com Da Vinci em de elaborar obras nos moldes do europeu
sua hierarquização das Artes, hannonizando- colonizador - assim, vemos que a estética
as com o nível técnico das comunidades que sofreu a marca do positivismo e do funcio-
as produzem. Desse modo, a pintura seria a nalismo do skculo XIX.
primeira das Artes e os negros, que se limita- Contudo, a produção africana remonta
vam 2 escultura, seriam artistas inferiores. de séculos antes da chegada dos europeus;
Com Hegel, a apreciação estética da as características formais da escultura afri-
produção africana se complica ainda mais, cana: desproporçianalidade, exagero d e
uma vez que para ele os africanos não uma ou outra parte, verticalidade, condizia
tinham sequer história. Ele definiu explici- com formas maciças, pesadas. O observador
tamente essa posição em sua Filosofia da ocidental procurava captar o arranjo de
História, a qual contem afimaçoes como as volumes que não condizia com um arranjo
que se seguem: "a África niio é um conti- de superfície e não a entendia. Q encontro
nente histórico, ela não demonstm nem da arte européia com a arte africana é um
mudança nem desenvolvimento"( ....) "'Os ponto de intersecção na História da Arte
3. HEGEL. aprrd KI-ZERBO. HistSria Geral da África. São Paulo: Ática. [s.d.3. p.48. (Ed.UNESCO, v. 1 ).
Comunicaçao & Educação, São Paulo, ( 1 01: 44 a 49, set./dez. 1 997 47

bastante negligenciado pelos estudiosos e dade, da gestação e, ao exagerar o ventre


mereceria um estudo mais atento, para um feminino, essa é a sua intenção.
melhor conhecimento de ambas. A tese central da estética moderna
centrada na produção euroamericana, afir-
mando que o artístico se realiza na obra de
arte e que ela é autônoma. uma vez que e
artista é um criador livre para se expressar,
não encontra eco na produção africana.

Em comunidades africanas o artista se


situa no centro de tensões dinâmicas, sua
produção permeia a ordem e a desordem
devido h sua capacidade de manipular for-
ças vitais geradoras de transfomaçãK.s,
destruiçáo e aniquilação. Ele consegue fa-
zer com que uma coisa (kintu)se transfor-
me (kunhc) em beleza, em perfeição.

As categorias de análise da filosofia


banto nos auxiliam a entender melhor a
estitica africana. Cunha. explicitando dados
sobre a estética ioruba, nos aponta existên-
cia de 19 conceitos em ioruba para apreen-
Um refínadn grupo esculiriricri çcrve de b a ~ ep r a a peça der a realidade estética. Dentre eles:jijora -
usada crimo apoio par4 caheqii. (Ane Raluba. M u ~ e u semelhança ao modelo, eqwilibrio entre o
Brltfinico. Grã-Bretanha).
modelo e a abstração da cópia; ifarahon -
No Brasil, o artífice negro, para ch tra- visibilidade de come deveria ser o plano de
zido pelo tráfico negreiro, vai atuar junto is trabalho; gigun - arranjo simétrica na
Irmandades nas Igrejas, produzindo a ico- escuItura; odod - representação do indiví-
nografia cat6lica do Barroco. Acreditamos duo em pleno vigor; tatu - serenidade, com-
que, também aqui, um estudo mais atento postura, harmonia.
deveria voltar-se para e olhar e para as mãos As singularidades contidas na p d u -
dos artistas do período Colonial e Imperial. ção das cuIturas negro africanas não podem
Estudos mais recentes de Cunha, ser apreendidas através da ótica excludente
Araujo, Munanga4 nos mostram que a pro- ocidental, devido 21s funções diferenciadas
dução africana não se limitou a uma arte desempenhadas pela arte cornunicacional
ritual mas ao que chamaríamos hoje de arte nessas sociedades. Tais funções seriam:
conceitual. Quando um artista quer repre- 1. diferenciar o mundo dos homens,
sentar a maternidade não está esculpindo regido pela cultura, do mondo dos animais,
urna mulher grávida, mas a idéia da fertili- regido pelos impulsos natos;
4. CUNHA. M. C. Apwd ZANINI. História Geral da Arte rta Brasil. Siio Paulo: W.M. Salles. 1983. ARAUJO, E. A mão
ah-briisileirii: signific~r;ãrida ccinirihuiçilo histririca e artística. Sio Paulo: Tenenge. 1988. MUNANGA. K. A propus de
Ia lonrtiiin de I'art plastique em Afrique. Zaire: Afrique Noir. 1984.
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2. diferenciar uma comunidade das necendo um desconhecimento sobre nossas


demais, dando-lhe uma identidade; raízes culturais e artísticas africanas. O sis-
3. comprovas a luta dos homens para tema escolar não propicia aos indivíduos
dominar a natureza, mas, também, afastar- oriundos de tais grupos informações que
se dela, para alcançar o prazer infinito da Ihes possibiIitem formar uma auto-imagem,
criação. uma auto-representação positiva, que sirva
de conrra-ataque is investidas deterioradas
feitas à identidade gnipal e individual a que
ARTE AFRO-BRASILEIRA estão sujeitos estes grupos.

Se fomos traçar um breve esboço da Embora as CiGncias Sociais tenham feito


presença do negro africano em nossa traje- muitos avanços, a cultura da inferiorida-
tória artística, verificamos que, devido i sua de radai e o mito da primitividade do ne-
competência na escultura e na metalurgia, gro ainda estão presentes na contempora-
ocorreu "a presença de pardos e pretos nas neidade, penetrando na memhria coletiva
obras de talho e douração das igrejas barro- de negros e brancos em nossa pais, inter-
cas desde a metade do século XVI. 0 Barro- ferindo na formação da sub.jetlvâdade de
co brasileiro mostra sua matriz africana em ambos.
anjos e madonas com traços negr0ides; ou
mesmo quando os temas e imagens negras Por isso, o conhecimento da riqueza
escondem-se nas dobras dos mantos ou sob cultural e estética das sociedades africanas e
o peso do ouro da estatuária, como "oras rin seus desdobramentos na diáspora poderá con-
seus nicho.^"^. tribuir para a eliminação dos estereótipos e da
Centenas de exemplos poderiam ser estigmatizaç5o social sofridas pelos negros.
dados. A iconografia dos santos Cosme e Tais estereótipos justificam a exploração e
Damião são reformulaqões dos 1heji.q do opressão pelo índice imaginário de superiori-
Benin; a representação de Nossa Senhora da dade de um gnipo huniano sobre outn,.
Conceição, ostentando cornos na cabeça e
segurando emblema de Xangd, os 0x8s.
Artistas negros e mestiços como AntBnio
Francisco Lisboa, Valentirn da Fonseca e
SiIva e Francisco Chagas são representantes
conhecidos do Barroco e têm registra na
História da Arte brasileira. Mário de An-
drade, ao analisar o Aleijadinho, nos fornece
pistas para a compreensão da vertente africa-
na escondida em nossa produqão plástica.
Como afirmamos anteriormente, tais
conhecimentos niio são difundidos entre
nós, nossa cultura omite essa herança. Os
descendentes de escravos ignoram o valor Taça com tampa. executada em madeira e ornamentada por
duas figuras humanas e~ciilpidas.(Arte R~luba.Museu da
da produção de seus antepassados, perma- Africa Central.Tcrvuren).

5. CUNHA op. cir.


tomunicaçáo & Educaqão, São Paulo,I10):44 a 49, set./set. 1997 49

O nosso sistema educacional tem res negativos com relação ao segmento ne-
compactuado com a ideologia do embran- gro. Devemos apontar, dentro do ensino da
quecimento com livros didáticos e práticas Arte, a valorização da identidade cultural de
pedagógicas que omitem nossas raizes ne- tal segmento.
gro africanas, permitindo a difusão de valo-

Resumo: A omissão nos livros didbticos de Abstracf: The article discusses how the omis-
Educação Artística de representaçbes da pro- sion, in Artistic Education didactic books, of
dução artístico-cultural do segmento negro e representations of the artistic and cultural
de sua tradiqáo cultural tem contribuido para production of the black segment and of its
a permanência do preconceito e da margina- cultural tradition, has contributeci to the per-
lização do negro no Brasil. Resgatar a arte, a manence of biases and to the marginalization
estética e a cultura negro-africana em seus of the black periple in Brazil. The article pro-
diferentes aspectos e sua presença na cultura poses recovering the black-African art, aes-
ocidental, principalmente brasileira, implica a thetics and culture in its different aspects and
valorização da identidade cultural do seg- reinstating its presence in Western culture,
mento negro. most especially in the Brazilian culture, to
value the black segment's cultural identity.
PaEavras-chave: Arte, Educação Artistica,
negro africano, cultura negra, marginaliza- Keywords: Ar?, Artistic Education, black cul-
~ ã 0 ture, marginalization

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