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Análise do Poema «Ideal» de Antero Quental

Um soneto de um dos maiores poetas do século XIX, Antero de Quental. Oscilando


entre uma análise e um devaneio, o poeta português busca compreender quem é esse
ser, que parece pertencer a outro plano, mas que, no derradeiro final, segue envolto
em seu manto de mistério.

IDEAL
(Antero de Quental)

Aquela, que eu adoro, não é feita


De lírios nem de rosas purpurinas[1],
Não tem as formas lânguidas[2], divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita…

Não é a Circe, cuja mão suspeita


Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
D’um corcel[3] e combate satisfeita…

A mim mesmo pergunto, e não atino[4]


Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino…

É como uma miragem, que entrevejo,


Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo…

O título do poema é “Ideal”, isto é, o seu assunto não será da esfera material, mas sim
pertencente a um outro plano, superior. Assim, e ligando ao primeiro verso, vê-se que
evocará “aquela, que eu adoro”, e que será associada, na sequência, a três figuras do
universo feminino, num jogo de negações.

A primeira, presente na primeira estrofe, é Vênus, a deusa romana do amor e da


beleza. Cria-se um cenário de flores, com a figura apresentada em “formas” sensuais,
assemelhando-se a Vênus. Mas, como expresso desde o início da estrofe, “Aquela”
não é Vênus.

A segunda é Circe, presente nos versos 5 e 6, deusa grega associada à feitiçaria e a


maldições, como se fosse um oposto de Vênus (Na Odisseia, de Homero, Circe
recebe Ulisses e seus soldados com festas, transformando os últimos em porcos). Por
isso é possuidora de uma “mão suspeita”, criando-se uma atmosfera de destruição, de
morte e de ruínas. Mas, como se anuncia no verso 5, “Aquela” também não é Circe.

A terceira é uma amazona (com maiúscula, para indicar que é uma personificação),
denominação das mulheres guerreiras da mitologia grega. Em sua coragem nos
combates e no cavalgar encontra a “satisfação”. Mas, como se aponta no verso 7,
“Aquela” também não é uma amazona.

Nas duas primeiras estrofes, então, tem-se um panorama de dualidades femininas: a


vida, na beleza divina e perfeita de Vênus; a morte, nos poderes obscuros de Circe; e
a luta, na força e destreza da Amazona. Interessante apontar que a Mulher, ao mesmo
tempo em que não é nenhuma dessas, carrega consigo as possibilidades de todas
elas e de muitas outras.

O poeta, diante desse impasse em uma definição, chega ao meio do soneto com o
autoquestionamento: como compreender tal visão? Isso passa por dar-lhe um nome,
pois nomear é criar uma referencialidade, trazer-lhe ao campo do concreto. Como isso
não é possível, “Aquela, que eu adoro” mostra-se, então, como uma entidade que
possui nas mãos o destino do poeta.

A descrição se encerra pelo conflito existente entre revelar e ocultar os caminhos


dados ao poeta, como se essa Mulher (como as antigas moiras gregas) tivesse o
poder sobre o fio da vida do poeta e sobre ele agisse.

Por fim, como fechamento do soneto, formula-se um efeito de comparação, todo em


símbolos abstratos e inalcançáveis: é miragem, é nuvem, é sonho. Enfim, são
projeções do Desejo que o poeta cria, na tentativa de conexão com esse Ideal
feminino concebido.
 
Pode-se observar a mulher como um ser em indefinição: não é Vênus, nem Circe, nem
Amazona, embora carregue-as consigo; é miragem, é nuvem e é sonho, enquanto a
visão solitária do desejo do poeta.

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Ao observarmos o título deste soneto, somos levados, provavelmente, a evocar


o Romantismo, embora o conceito de "Ideal" nos possa remeter para a própria luta
travada pela Geração de 70 na busca de novos ideais. Em qualquer dos casos, há
uma sugestão de transcendência e de perfeição.

Ao longo do poema, alguns elementos semânticos - "que eu adoro", "visão",


"como uma miragem", "Ideal", "nuvem", "sonho impalpável" - confirmam o titulo do
soneto e mostram-nos uma mulher adorável, como uma "visão".

O tema é a mulher ideal, mas a sua descrição surge por antítese daquilo que
"não é", Em confronto com figuras mitológicas, aparece como um ser divino e sublime,
ideia pura: nem mulher sensual como a "Vénus de cintura estreita", com "formas
lânguidas, divinas"; nem mulher fatal e traiçoeira como a Circe que "compõe filtros
mortais entre ruínas"; nem mulher corajosa e dominadora como a Amazona, que
"combate satisfeita…”.

Esta mulher, retratada à maneira petrarquista, é uma "visão" que "ora amostra
ora esconde o meu·destino…", levando o sujeito lírico ao Desejo, ou seja, ao amor, à
aspiração do Ideal. Apresenta-se como uma "miragem", "nuvem", "sonho impalpável
do Desejo".

A busca do ideal não se confina ao amor. O homem e a mulher sempre ansiaram


por ideais que permitissem que a sua vida tivesse sentido. Por isso, Antero de
Quental, com a consciência do mundo em que vivemos, orientou a sua luta na busca
dos ideais da justiça, da fraternidade e da liberdade. De forma diferente dos
românticos, que sacralizaram o sentimento, procurou o apoio na Razão a que chamou
"irmã do amor e da Justiça".

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