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Diego Bomfim Almeida

Fichamento: Bastide, Roger. 1958 [2001]. O candomblé da Bahia (rito nagô). São Paulo:
Companhia das Letras.

Introdução e apresentação, p.7-20

Enquanto mão de obra escrava, a população negra no Brasil nunca foi matriz de
interesse da população branca escravocrata para além da relação servil. Enquanto povo
bárbaro, não teriam nenhuma contribuição para justificar o interesse dos brancos.
Apenas com o fim do regime escravocrata, no momento em que os negros teriam que
se introduzir como brasileiros dentre os outros brasileiros, que se passou a pensar nas
suas especificidades culturais. Esse interesse, é claro, não visava captar as
contribuições que os negros teriam para a sociedade brasileira, mas pretendia os
colocar como objeto de estudo, enquanto corpos estranhos na integração nacional.
Não é de se assustar que Nina Rodrigues, médico psiquiatra, eugenista e estudioso da
frenologia, ocupou o papel de estudar a população negra na Bahia. Desses estudos,
resultou um material rico sobre as práticas do candomblé que Nina Rodrigues recolheu
a partir de suas observações no terreiro do Gantois, em Salvador. De um lado
apresentou informações importantes sobre o candomblé e por outro tratou de tomá-lo
como manifestação histérica e animismo fetichista.
Já no início do século XX, Manuel Querino tomou uma atitude oposta a de Rodrigues, ao
buscar compreender as contribuições dos negros para a sociedade brasileira da época,
não caindo nos preconceitos raciais deste. Querino, também pelo fato de ser negro, se
esforçou por compreender o significado daquela cultura, ali onde os pesquisadores
brancos buscavam apenas prova de sua exoticidade. Bastide chama atenção para esse
ponto ao falar sobre o padre Etienne Inácio Brazil, que apenas seguindo a letra de
Rodrigues, não contribuiu em nada para a compreensão da cultura negra brasileira. Para
Bastide “para fazer trabalho etnográfico, não basta descrever os ritos ou citar os nomes
das divindades; é preciso também compreender o significado dos mitos ou dos ritos”
(p.9). Nesse sentido, a posição anteriormente racista de Brazil, bem como a de
Rodrigues, colocam empecilhos importantes numa compreensão maior sobre a cultura
negra no Brasil.
Bastide toma Arthur Ramos como um paradigma nos estudos antropológicos acerca
dos candomblés. Ele teria sido o primeiro que, por meio do cuidado com seu método de
pesquisa, abdicando de preconceitos religiosos e não partindo de uma perspectiva
racista, se esforçou por compreender as práticas afro religiosas de maneira objetiva,
sem cair naquela posição positivista de Rodrigues. Ramos teria ao mesmo tempo
apresentado descritivamente as práticas para, a partir delas, dar uma interpretação de
seu significado. Além disso, forneceu um material para pensar as permanências
africanas no Brasil, somando com as pesquisas de outros etnógrafos acerca da África e
das Américas. Bastide cita Édison Carneiro como continuador da obra de Ramos.
Na década de 40 Herskovits chega na Bahia, para continuar seu trabalho de pesquisa
sobre a presença dos africanos no novo mundo. Seu projeto visava pensar a
religiosidade africana dentro do contexto social brasileiro a partir de sua teoria da
aculturação.
Bastide reconhece a importância de se pensar o candomblé enquadrado num contexto
social maior, mas delimita seu interesse em descrever o candomblé “como realidade
autônoma, sem referência à história ou ao transplante de culturas de uma para outra
parte do mundo” (p.11). Ele também pretende trabalhar com o candomblé a partir de
categorias próprias a este, e não numa tentativa de enquadrá-lo a partir de categorias
conceituais já presentes na antropologia clássica. Bastide chama a atenção para o fato
de que até então o candomblé era apenas tratado como prática religiosa da população
mais baixa e, por isso, incapaz de estruturar para si um arcabouço teológico e filosófico
complexo. Seu esforço, então, vai ser compreendido como explicitação e apresentação
da complexidade filosófica que baseia as práticas religiosas candomblecistas. “O
pensamento africano é um pensamento culto” (p. 12).
Mas esse trabalho se depara com algumas dificuldades. Primeiramente porque o
candomblé é uma religião do segredo. Tanto informações sobre os ritos quanto acerca
dos próprios mitos não são passadas a qualquer pessoa. Mas como observa Bastide,
pelo fato de nela poder adentrar pessoas para além do pertecimento racial, é possível
para alguém que não seja negro se inicar nos mistérios. No entanto, mesmo sendo
aceita sua presença no terreiro, as informações são passadas de maneira gradativa,
justamente porque no terreiro as práticas são submetidas a outra temporalidade que
não a ocidental. Não é possível saber tudo de uma vez. Além disso, muito do interesse
dos brancos se dirigiu para as cerimônias públicas e para o transe, deixando de lado
aspectos fundamentais do culto, que permanecem encerrados no terreiro. Outra
dificuldade é como interpretar as informações recolhidas de modo que não se coloque
categorias ocidentais na análise. Interpretar o candomblé a partir do que lhe é imanente.
Embora presente em grande parte do território brasileiro, o candomblé tem seu centro
de gravidade na Bahia e na cidade de Salvador, mais especificamente. Ele se divide em
nações, a partir dos diversos povos que foram constituindo suas práticas religiosas no
Brasil. Essas nações, portanto, se diferenciam pelo idioma, pela maneira de tocar os
atabaques, pelas vestes, pelo nome das divindades e por traços da liturgia. Bastide
chama a atenção para a predominância da influência iorubá sobre as demais nações
(Jeje, Angola, Congo…) e coloca o candomblé de Ketu, Nagô e Ijexá, todos de língua
iorubá, como os mais puros e, por isso, objetivos de sua análise. Bastide ainda cita o
candomblé feito no Maranhão, fortemente influenciado pela Casa das Minas, culto da
família real do Daomé, e da macumba do Rio de Janeiro, marcadamente sincrética.
Na cidade de Salvador, mesmo constando a presença de alguns terreiros no centro
urbano, nos bairros proletários, a maioria dos terreiros se reservam às áreas periféricas,
onde minguam as casas e abundam as matas. Nesses lugares que ocorrem o culto, que
em festas específicas as divindades baixam à terra através de seus filhos iniciados.
O ponto central das cerimônias públicas é o transe dos iniciados, e Bastide nota o
fascínio que isso exerceu nos pesquisadores, inclusive muitos deles médicos. Essa
atenção exacerbada no transe e na cerimônia pública, no entanto, deixou de lado as
cerimônias privadas que são muito mais importantes para a religião.

Conclusões: metafísica e sociologia, p. 326-333

No Brasil, muito da mitologia africana foi compreendida e assimilada a partir de


elementos cristãos. De fato, houve uma metamorfose da mitologia tradicional para que
pudesse fazer sentido nesse novo contexto de recepção. Mitos foram modificados,
alguns outros completamente recontados ou inventados (pensar nos itans acerca da
relação entre Omolu e Iemanjá, por exemplo). Mas, segundo Bastide, isso só continuou
um movimento que já existia no território africano, movimento que ele chama de
“desagregação metafísica”, a passagem da metafísica para a proliferação do mito.
Nesse sentido, ainda persistem no candomblé brasileiro elementos metafísicos
presentes do território iorubá.
Outro elemento importante é a absorção de mitos a partir da fusão de diferentes etnias.
Isso fica bastante claro no candomblé a partir da noção de qualidade (tido também
como caminho) do orixá, na qual divindades de grupos diferentes, ou a mesma
divindade cultuada de maneira diferente por grupos distintos, são aglomeradas em uma
mesma divindade. É o caso dos muitos Xangôs, Oxuns, Oxossis, Omolus (Obaluaê).
“A mitologia se compõe de estratos superpostos que têm uma idade, uma cronologia”
(p.331). Mesmo mantendo uma metafísica de base, é próprio das religiões se
modificarem a partir de demandas históricas e sociais específicas. Foi o que aconteceu
em território africano e o que aconteceu em território brasileiro. Nesse movimento que
novos mitos aparecem, e que velhos mitos são revistos. Para Bastide, o papel do
sociólogo é o do arqueólogo que, penetrando nessas camadas, tem que encontrar
aquele pensamento metafísico ordenador geral.
Diego Bomfim Almeida

Etnografia: Coelho, Ruy. 1955 [2002]. Os Caraíbas negros de Honduras. São Paulo:
Perspectiva.

Cap: A Unidade das Esferas de Vida Secular e Sobrenatural.

A religião dos caraíbas negros se dá a partir de práticas sincréticas entre catolicismo,


herenças africanas e indígenas, bem como o culto dos antepassados. Esse último se
coloca como o ponto central da prática religiosa. E são justamente as práticas religiosas
que apresentam o amálgama dessas fontes distintas de origem, particularmente
naquilo que se compreende por alma. Não obstante a ausência de uma hierarquia
organizada da religião, há uma constância de conteúdo nas práticas que se baseiam em
preceitos básicos.
A alma é compreendida por partes. A primeira reside no coração, é tida como uma força
vital e se manifesta por meio da pulsação cardíaca, da respiração e do calor do corpo.
Ela é mais ou menos material e se extingue com a morte. A segunda é imaterial e reside
na cabeça. Com a colonização espanhola, é a parte que comumente se traduz por alma,
pela possível semelhança que guarda com a ideia cristã de alma. Ela deixa o corpo no
momento imediato à morte. A terceira parte é um corpo astral que guarda a forma do
corpo físico, mas é composto de uma substância sobrenatural. Ele pode se separar do
corpo físico, mas sua existência é dependente deste e não pode se ausentar por muito
tempo.
Essa terceira parte é a responsável por ligar o mundo espiritual ao mundo físico, o que
aparece na sua função de perceber perigos à pessoa antes mesmo que ela perceba, ou
o seu papel no sonho, quando se desprende do corpo físico e pode se conectar aos
antepassados. O corpo astral é tomado como um duplo da pessoa, e por esse aspecto é
bastante sensível à influência de feiticeiros e entidades maléficas que podem o separar
do corpo físico para se apoderar dele. Caso isso aconteça, a pessoa perde suas
qualidades mentais e se torna um morto em vida. Há aqueles que possuem o corpo
astral mais leve e suscetível e aqueles que possuem um corpo astral mais pesado e, por
isso, mas propício à atividades mágicas como aquelas dos sonhos. Essas atividades
são importantes, porque há um jogo de dupla equivalência, em que mortos e vivos se
ajudam mutuamente para que cada um alcance seus objetivos: os vivos prosperidade e
os mortos a glória no outro mundo.
A relação com os mortos é bastante complexa. Os caraíbas negros compartilham da
crença católica na existência do céu e do purgatório. Após a morte, a parte imaterial da
alma segue para um desses rumos, enquanto que o corpo astral permanece na terra. É
esse corpo astral que preocupa a comunidade religiosa, porque é bastante instável e
deve ser tratado com muito cuidado e precaução.
Os mortos recentes podem se manifestar de diversas formas, como ruídos e bater de
portas, bem como através da interferência em questões domésticas e de aparições nas
ruas da comunidade. Essas aparições podem ser vistas por aqueles que possuem um
corpo astral pesado e nelas é possível ver a pessoa morta semelhante a uma pessoa
viva, com a diferença de que seus pés não tocam o chão e da presença de um vapor que
cobre seu corpo. Em geral é possível observá-los de longe, mas também há aqueles
mortos que foram pessoas violentas e que podem atacar os desavisados que cruzam
seu caminho. [áfurugu - áhari - ufi]. Esses mortos, em suas aparições como fantasmas,
também se tornam ameaças ao duplo espiritual das pessoas, porque podem se
apoderar dele. Em geral, pessoas que carregam culpa na consciência são mais abertas
aos ataques dos mortos. [O antepassado ou morto como zelador da moralidade da
comunidade]. Depois de certos preceitos rituais (banho, alimentação, dança) é que
esses corpos astrais conseguem se unir àquela parcela imaterial da alma para
permanecerem juntos no além e se tornarem definitivamente um ancestral.
Os ancestrais é que majoritariamente zelam por seus familiares vivos, e em troca
recebem suas honras. Do mesmo modo, também podem amaldiçoar seus
descendentes e lhes retirar as bençãos quando não satisfeitos. Quem faz a mediação
entre as pessoas vivas e os ancestrais são os búiei, os adivinhos. No entanto, ele
também só é capaz de fazer essa conexão através dos hiúruba, espíritos inferiores aos
ancestrais, que servem como mensageiros e ajudantes dos búiei. Esses espíritos
também auxiliam os búiei nas lutas contra os seres sobrenaturais maléficos.
Todo praticante religioso se vale de fórmulas (orações) passadas em família que lhes
servem de ajuda mágica para momentos de necessidade. Há aqueles, entretanto, que
são especializados nessas práticas mágicas, os bruxos ou feiticeiros, que podem
assumir formas animais e vegetais para realização de suas práticas, o que é visto com
maus olhos. Essas orações servem para todos os fins, dos mais cotidianos aos
maléficos. Somados às orações, ainda existem os rituais que potencializam ou agem
conjuntamente com elas. Esses rituais também podem ser utilizados para os mais
diversos fins. Para defesa de práticas maléficas é bastante popular o uso de colares e
talismãs. Isso mostra como a magia é presença constante no cotidiano dos caraíbas
negros e integra sua prática religiosa.
Sobre os ritos funerários. Há um velório imediato da morte da pessoa, outro nove dias
depois, além de missas e rezas conjuntas. É necessário, para que o morto siga a estrada
para encontrar sua outra parte no além, que haja o rito do banho, o banquete e que
dancem com o morto. Mesmo após o velório, é possível que o morto peça alguma
cerimônia para sua família, em vista de dificuldades encontradas na passagem. Em
geral, esses ritos são negociados pela família através da mediação dos búiei. O morto
pode pedir outro banho, um banquete ou um ritual dançante. O ritual do banho é feito
pelos parentes mais próximos em casa, de maneira rápida e discreta. Os banquetes em
geral são oferecidos apenas pelos mais ricos. As cerimônias dançantes são marcadas
para que todos os parentes estejam presentes, e onde a música tem papel importante.
O ritual do dogo. O dogu, o dançar com o morto, é o ritual maior da vida religiosa dos
caraíbas negros. Ele se distingue do banquete (cugu) pelo seu nível de elaboração. E é
apenas nesses rituais que há a possessão pelos espíritos. É um rito bastante custoso e,
em geral, demora alguns anos de planejamento, inclusive financeiro. O dogo dura ao
menos três dias e nele também é feita a cerimônia do banquete. É construída uma casa
para o morto, além do monte de terra que consta do cugu. Com relação à dança: “os
passos do dogo reproduzem o avanço lento dos espíritos em direção à morada final”
(p.139). No dogo os espíritos podem possuir moças solteiras devidamente preparadas
para isso. Também há uma paródia ritual que tem por função divertir os antepassados
depois de terem comido e bebido.
Embora não possua uma hierarquia clerical, os búiei ocupam o lugar de dirigentes dos
preceitos religiosos, além de serem adivinhos e curandeiros. Cada búiei é chamado a se
especializar em uma área de atuação através de sonhos, embora os grande búiei sejam
mestres em todas as áreas de atuação. Os búiei podem ser tanto homens quanto
mulheres e, em geral, esse dom é transmitido de pais para filhos. Quando um jovem
escolhe seguir o caminho religioso, sua aprendizagem se dá através de ensinamentos
pontuais de outro búiei, mas principalmente através da guia de seus ancestrais.
O sistema de valores. A religião católica e o culto aos ancestrais convivem sem
problemas para os caraíbas negros. Eles se veem como católicos e a própria crença que
sustenta seu culto consegue se integrar na teologia católica em geral. A igreja também
se mostra tolerante com relação aos seus rituais. No cosmos dos caraíbas negros há
Deus Pai no centro, pairando acima o Espírito Santo, a direita Jesus Cristo, Virgem e os
santos e à esquerda os anjos e as almas dos ancestrais divinizados. Abaixo residem os
espíritos pagãos, como daqueles que auxiliam os búiei. Abaixo deles tem a Terra. No
inferno existe Satã, à sua direita os espíritos maus e à sua esquerda os “senhores da
terra”. Os caraíbas negros não reconhecem, por sua vez, espíritos que sejam
intrinscecamente maus ou bons, mas sim favoráveis e desfavoráveis. Até mesmo
espíritos tidos como maus podem ser utilizados para finalidades positivas. A noção de
pecado também não possui muita força, principalmente a ideia de salvação individual
da alma através da penitência. Lembrando que o que garante uma boa passagem após
a morte é a realização dos rituais.

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