Você está na página 1de 392

1

2
CENÁRIOS
PÓS-PANDEMIA
Reflexões sobre o Sul
Global e outros
territórios.

3
Capa e diagramação
Ana Cláudia Magalhães Azevedo

Conselho Editorial
Alexandre Queiroz Pereira
Universidade Federal do Ceará
Anatália Dejane Silva de Oliveira
Universidade Federal do Oeste da Bahia
Jânio Roque Castro de Barros
Universidade do Estado da Bahia
José Yure Gomes dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ínia Franco de Novaes
Universidade Federal de Uberlândia
Marcelo de Oliveira Latuf
Universidade Federal de Alfenas
Roberto Bagattini Portella
Universidade Federal do Oeste da Bahia
Ricardo Abrate Luigi Júnior
Universidade Federal Fluminense
Terezinha Oliveira Santos
Universidade Federal do Oeste da Bahia

4
CENÁRIOS
PÓS-PANDEMIA
Reflexões sobre o Sul
Global e outros
territórios.
Paulo Roberto Baqueiro Brandão
(Org.)

São Paulo – 2021

5
São Paulo – 2021
©2021- Paulo Roberto Baqueiro Brandão
CULTURA ACADÊMICA EDITORA
Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo (SP)
Tel.: (11) 3242-7171
www.culturaacademica.com.br

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA DE BARREIRAS - UFOB.
Bibliotecário: Romualdo Machado Ferreira – CRB5-001553/O
______________________________________________
C395
Cenários Pós-pandemia: reflexões sobre o Sul Global e outros
territórios / organização: Paulo Roberto Baqueiro Brandão. – São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2021.
390 p.; 23 cm
Inclui Bibliografia
ISBN 978-65-5954-070-9

1. COVID-19. 2. Geografia Política - Globalização. I. Brandão, Paulo


Roberto Baqueiro. II. Título.
CDD: 616.2414

______________________________________________
6
SUMÁRIO
Apresentação 9

Cuba y las enseñanzas que dejan cinco meses de


enfrentamiento a la Covid-19 13
Luis Carlos Silva Aycaguer

Perspectiva hermenéutica de la pandemia:


comprensión social desde un lugar en América
Latina 41
Victor Rodrigo Yáñez Pereira

Efeitos geográficos da pandemia de Covid-19 nos


territórios dos povos indígenas no Brasil:
contenção territorial, corpo-território e fronteira 75
Marcos Mondardo

Análise geográfica da imigração internacional em


Moçambique: um estudo de caso na cidade de
Maputo 109
Inês Macamo Raimundo
Adelaide Macaba Bazagari
José Alberto Raimundo

Determinación social de la vida, la salud y la


muerte: una mirada geohistórica y post Covid-19 163
Giannina Zamora Acosta

Quê turismo, para qual turista? Reflexões sobre


um porvir para a prática turística no pós-
pandemia 199
Paulo Roberto Baqueiro Brandão
7
Pandemics and climate change: lessons from the
2020 Covid-19 221
Elisa Magnani

O Sul Global nas relações internacionais pós-


pandemia: fatos, desafios e perspectivas para um
mundo em desalento 247
Júlio César Ferreira Cirilo

Perversidade do território-recurso,
acontecimento das pandemias e território-abrigo
como possibilidade do bem viver 287
Cláudio Jorge Moura de Castilho

“Sólo el pueblo salva al pueblo”: apoyo mutuo,


solidaridad y redes vecinales en Madrid (España) 327
María Lois
Silvia González Iturraspe

Resiliência da natureza em tempos de Covid-19 347


Evanildo Santos Cardoso

Processo de incorporación del sistema


KoboToolbox en el contexto del trabajo
comunitario de salud en terreno 371
Juan Manuel Diez Tetamanti
María Alejandra Saavedra

Autores 387

8
APRESENTAÇÃO
Em escala planetária, a Covid-19 converteu-se, até
então, no maior desafio do século XXI, tanto no âmbito da
saúde coletiva, quanto no que diz respeito à economia,
política, meio ambiente e cultura, impondo à sociedade
global a necessidade de uma rigorosa reflexão-ação quanto
ao seu futuro comum.
China, Coréia do Sul, países da Europa e os Estados
Unidos foram os primeiros territórios da Terra a vivenciarem
de modo mais intenso as ameaças diretas relacionadas ao
contágio pelo chamado novo coronavírus. Contudo, há que
se considerar que, se o Sul Global – a exceção do Brasil e
Índia – não é o epicentro da pandemia, com números de
contágio e mortes inferiores aos de alguns dos ditos países
do Norte, trata-se de uma região extremamente susceptível
aos efeitos vindouros de ajuste ao novo quadro de realidade,
em especial àqueles de caráter geopolítico, geoeconômico,
ambiental, demográfico e cultural.
Passada a fase mais aguda da pandemia, a tendência
mais óbvia é a de que a reconstrução do Capitalismo dar-se-
á, entre outras estratégias já conhecidas, pela intensificação
do neoextrativismo e de políticas neoliberais, tudo isso como
causa e produto do recrudescimento das formas
contemporâneas de colonialismo.
Além dos temas principais, mencionados
anteriormente, suscitam atenção debates de interesse sobre
questões como segurança e soberania alimentares, relação
sociedade-natureza em territórios urbanos e rurais, minorias
sociais, comunidades, projetos alternativos ao modo de
produção capitalista e o papel dos movimentos sociais no
enfrentamento às consequências da pandemia.

9
A obra coletiva tem o objetivo de refletir sobre as
tendências, perspectivas e desafios no contexto do pós-
pandemia, aludindo sobre questões as quais, direta e
indiretamente, serão afetadas por tal conjuntura. Para tanto,
buscou-se estabelecer uma firme abordagem interdisciplinar
no âmbito de uma visão o quanto mais alargada dos diversos
territórios sob influência de tal processo, na perspectiva de
se imaginar outros mundos possíveis.
São, no total, doze textos que abordam temas os mais
diversos, mas centrados no debate sobre possíveis cenários
pós-pandemia da Covid-19. Além disso, tais contribuições
estão situadas em contextos nacionais ou infranacionais do
Sul Global. A exceção fica por conta de dois escritos que
aportam questões relativas à pandemia em contextos de
países europeus, fundamentais por permitirem ao leitor
lançar olhares para outros territórios.
Para manter o sentido de diversidade já presente nos
temas e objetos de empiricização, decidiu-se pela
manutenção do idioma original de cada um dos textos. Por
tal motivo, as contribuições estão escritas em português,
espanhol e inglês.
Importa salientar que não se vislumbra a priori uma
postura de alinhamento do pensamento entre as autoras e
autores, visto que a riqueza da obra coletiva acha-se
justamente na pluralidade que pretende conter. Contudo, os
escritos buscam expor uma postura crítico-reflexiva que
possa compelir o leitor a lançar questionamentos sobre a
realidade e as perspectivas descortinadas em suas linhas.
Além disso – como um desafio maior – deseja-se motivá-lo
a assumir-se como um agente protagonista da transformação
social.
O compartilhamento de ideias e experiências criadas
e desenvolvidas nos diferentes territórios do Planeta
10
constitui uma ação fundamental à construção de um mundo
em que os homens e as mulheres vivam, para o que se faz
crucial o fortalecimento de uma contra-racionalidade visando
combater a racionalidade técnico-instrumental capitalista.

Paulo Roberto Baqueiro Brandão

11
12
CAPÍTULO 1

CUBA Y LAS ENSEÑANZAS QUE DEJAN CINCO


MESES DE ENFRENTAMIENTO A LA COVID-19
Luis Carlos Silva Aycaguer

Introducción
Junto a las zozobras, las tragedias sanitarias
individuales y colectivas, el impacto económico para países,
empresas y ciudadanos, entre otras calamidades, la epidemia
de Covid-19 va dejando enseñanzas para todos. “Tras la
pandemia, nada será igual”, reza el apotegma de moda, que
ya ha pasado a ser un lugar común. Muchos males estaban
delante de nuestros ojos, como lo estaban realidades que nos
llenan de orgullo, pero tuvo que producirse este cataclismo
para que la humanidad esté captando con más claridad tanto
aquellos como estas. Lamentablemente, los males son la regla
mientras las fuentes de satisfacción excepcionales.
El presente texto no procura exponer detalladamente
estas realidades, no solo porque sería una tarea ímproba, sino
porque han sido y seguirán siendo abordadas con lucidez por
analistas de mucho más calibre. Sin embargo, algunos males
no necesitan de grandes disquisiciones académicas para
emerger con trágica elocuencia. La fragilidad del modelo
neoliberal, vertebrado en torno a oprobiosas desigualdades,
la endeblez de los sistemas sanitarios en la mayoría de los
países y la incapacidad que se hallaba más o menos oculta en
la médula de influyentes políticos (Trump, Bolsonaro, Piñera
a la cabeza), son solo algunos ejemplos.
En cambio, nos proponemos examinar con cierto
detalle el caso de Cuba, cuyos éxitos resultan difíciles de

13
ocultar si se quiere hacer un análisis medianamente objetivo,
ajeno a pasiones políticas de uno u otro signo. Cuba también
deja importantes enseñanzas y mi propósito es exponerlas.

Crónica de una catástrofe anunciada (y desdeñada)


La pandemia de Covid-19 solo ha sido una sorpresa
para quienes ignoraban las diversas razones socio-
epidemiológicas que estaban llamadas a determinar su
aparición, y para quienes decidieron no prestar atención a las
serias advertencias que se habían producido, sabiendo que
una actuación preventiva constituía una amenaza para sus
finanzas o su agenda política.
Epidemiológicamente, era perfectamente verosímil
que tarde o temprano habría de producirse una pandemia en
ancas de dos elementos necesarios y suficientes: la
sistemática aparición de virus de índole diversa en el planeta
y la desenfrenada hiperglobailización de los últimos años. Era
cuestión de tiempo que irrumpiera un agente con gran
capacidad de contagio, y que este detonador actuara en ese
marco ecológico favorable para su expansión que es el
mundo contemporáneo.
Geopolíticamente, por otra parte, diversas
dependencias de gobierno habían alertado sobre el problema
con escalofriante capacidad de anticipación. La Agencia
Central de Inteligencia (CIA) de Estados Unidos, a través de
uno de sus órganos, el National Intelligence Council, elaboró
en 2008 el informe titulado “Global Trends 2025: A
Transformed World” según hace constar Klippenstein
(2020), donde se anunciaba "la irrupción de una dolencia
respiratoria sumamente contagiosa antes de 2025 para cuyo
enfrentamiento se carece de recursos adecuados y que podría
producir una pandemia de grandes proporciones” (p. 75).
14
Pero más significativo a mi juicio, por provenir del
marco directamente político, fue el acuciante reclamo de
finales de 2014 del presidente Barak Obama, reclamando que
se invirtiera “en infraestructuras sanitarias para poder
detectar la llegada de una posible epidemia novedosa del
calibre de la ‘gripe de Kansas’ (conocida como “gripe
española”) de 1918, que costó millones de vidas humanas y
prevenir sus aterradores efectos” (LEE, 2020, p. 1).
Lo cierto es que la epidemia se ha expandido y
virtualmente la padecen en una medida u otra todos los
países, que han tenido que ir improvisando respuestas sin
poder esperar por refinados conocimientos científicamente
contrastados para diseñarlas.
Desde muy temprano se constató que el medio de
transmisión fundamental del patógeno es la saliva, que este
sobrevive en algunas superficies durante algunas horas al
menos y que los conductos por los cuales ingresa al
organismo son las vías respiratorias y los ojos (muchas veces
con las propias manos del sujeto infectado como
intermediarias). Consecuentemente, la higiene personal, el
distanciamiento físico y el uso de mascarillas no demoraron,
no sin ciertas controversias iniciales, en ser identificados
como los tres recursos más eficaces a nivel personal para
evitar la infección. En cada sitio se establecieron estrategias
propias para controlar la difusión. Una miríada de
informaciones útiles más específicas, tanto para el
diagnóstico como para la terapia, tanto en relación con las
medidas preventivas de índole comunitaria como para
mantener bajo control la epidemia allí donde se consolidó,
han venido produciéndose.
No desarrollaré un inventario de éxitos y fracasos en
esta contienda epidemiológica. Hay sobrada literatura al
respecto y, por otra parte, aún pueden producirse
15
modificaciones sustantivas tanto en unos casos como en
otros. Sin embargo, el caso de Cuba merece especial atención
por su singular desempeño en ese proceso y por los rasgos
especiales que caracterizan política, económica y socialmente
a la nación.

Los resultados de Cuba en el combate a la Covid-19


No pocos profetizaban un desastre de grandes
proporciones para Cuba. Las dificultades materiales, la
población envejecida (el 20% de la población pertenece al
tramo etario de mayores de 60 años, el de mayor riesgo de
muerte en caso de enfermar) y la acechanza de una privación
energética debida a que los suministros de petróleo son un
blanco preferido de la persecución norteamericana contra las
fuentes externas del hidrocarburo, eran algunos de los
elementos manejados para las más agoreras profecías. A día
de hoy, 5 meses después de haberse diagnosticado el primer
caso, Cuba mantiene bajo control, en lo esencial, a la
epidemia de Covid-19.
Esto no quiere decir que se descarten brotes
coyunturales; mientras el patógeno siga presente en un país,
reaparecerán inevitablemente nuevas infecciones que serán
recurrentes. De hecho, es altamente probable que la
presencia de la enfermedad se mantenga por mucho tiempo,
acaso con carácter endémico, incluso después de que se
cuente con una vacuna específica contra la dolencia.
No olvidemos la advertencia de Federico Engels
cuando aconsejaba que “no debemos vanagloriarnos
excesivamente de nuestras victorias sobre la naturaleza. Ella
se venga de cada derrota recibida ya que no dominamos por
entero a la naturaleza, sino que le pertenecemos y vivimos en
su seno”. Tampoco las advertencias tan magistralmente
16
documentadas por el austriaco Iván Illich hace casi medio
siglo sobre la némesis médica que arrogantemente solemos
desdeñar (ILLICH, 1976).
No obstante, unos pocos datos actuales (mediados de
agosto de 2020), difícilmente reversibles de manera
significativa, son suficientemente elocuentes de la
extraordinaria gestión del país en el enfrentamiento a la
epidemia, al menos hasta ahora:
 Menos de 90 muertos, la mayoría de los cuales han
fallecido “con” Covid, aunque no “por” Covid
(ancianos con importantes comorbilidades como
enfermedad renal crónica, hipertensión, tumores
malignos, etc.). Ninguno de ellos es menor de edad.
 Ningún recluso ha sido diagnosticado con la
enfermedad y, de una treintena de embarazadas con
la dolencia, todas se han recuperado.
 Se han curado (altas clínicas, pues todos los
confirmados son ingresados hasta su muerte o
recuperación) alrededor del 80% de los enfermos

Talvez nada sea más expresivo que los Gráficos 1 y 2


que se muestran debajo. Nótese que en ambos se señala que
se trata de casos “detectados”. Se sabe que un gran
porcentaje de individuos cursan asintomáticamente por la
dolencia. Cabe suponer entonces que, además de los
detectados por los sistemas de vigilancia (que propician el
examen de todos los sujetos que ingresan al país, de aquellos
que tienen síntomas compatibles con la enfermedad y de los
identificados como contactos de los que van siendo
confirmados), deben producirse muchos casos de
ciudadanos que han estado enfermos (algunos ya
recuperados) de cuya existencia nunca se enteró el sistema de

17
salud. Siendo así, los datos expuestos constituyen una clave
para aquilatar la extensión del problema y no una
caracterización cabal de su magnitud. Esta limitación,
obviamente, afecta a todos los países -marcadamente en los
que tienen vastas zonas de difícil acceso por razones sociales
o étnicas- de modo que resultan relativamente razonables las
comparaciones entre países, aunque se basen en datos que
padecen tal subregistro.
El primero registra el comportamiento del número
de “casos activos” detectados desde el primer día de la
epidemia hasta la actualidad: tales casos son aquellos que se
habían detectados como infectados cada día según una
prueba PCR (todos hospitalizados, ya que en Cuba se
ingresan a todos aquellos con Covid confirmada mediante
esa prueba). Su variación diaria se debe a la detección de
nuevos casos confirmados de los que se restan los fallecidos
y los recuperados.
Gráfico 1. Número de “casos activos” (sujetos infectados
y por ende ingresados) detectados según días desde el
comienzo de la epidemia.

Fuente: Ministério de Salud Pública de Cuba (2020).

18
Como puede apreciarse, a pesar de la aparición
ocasional de brotes, típicos y virtualmente inevitables, el
número de sujetos detectados como afectados por la Covid-
19 se ha mantenido siempre inferior a 500 “casos activos”
una vez superado el pico de la epidemia.

Gráfico 2. Número diario de casos nuevos (confirmados con


PCR) detectados desde el comienzo de la epidemia

Fuente: Ministério de Salud Pública de Cuba (2020).

Por otra parte, se han diagnosticado 20 casos nuevos


diarios como promedio a lo largo de los 5 meses
transcurridos desde que se identificaron los primeros
enfermos el 11 de marzo de 2020, pese a la realización de
miles de pruebas PCR cada día (más de un tercio de millón
de pruebas en total). Estas cifras que, como es natural,
fluctúan en el tiempo, aunque hasta ahora nunca han
superado la centena, contrastan con los cientos o miles que
se detectan cada día en decenas de países
La tasa de enfermos detectados por 100 mil
habitantes es de 25,5 y la de mortalidad se reduce a 0,77. Ello

19
coloca a Cuba dentro de límites comparativamente muy
favorables1.

Las tecnologías de la comunicación en y contra Cuba


Como es bien conocido, el virus de la información
tergiversada, inventada u ocultada se hizo presente desde que
comenzó la epidemia. En efecto, la pandemia del nuevo
coronavirus ha constituido una oportunidad extraordinaria
para construir un relato acorde a determinadas políticas
globales. Por una parte, se promocionan estereotipos
favorables a ellas y, por otra, se vituperan las voces que
reivindican verdades indiscutibles sobre la inequidad, la
depredación de valores, la cacería obscena del dinero, las
conquistas históricas de los trabajadores y, en general, sobre
la naturaleza despiadada de tales políticas. La táctica favorita
ha sido la puesta en práctica de estrategias relativizadoras de
dichas verdades. Sobre este último punto, me permito sugerir
que se preste atención a un sobresaliente material audiovisual
de 5 minutos que puede hallarse en You Tube.2
A la diseminación vertiginosa de información falsa en
los espacios noticiosos y las redes se suma el escamoteo
deliberado de datos que se oponen al discurso del poder
hegemónico. Se articula así una trama de convicciones

1 El día 9 de agosto, la tasa de casos detectados por 100 mil habitantes


fue marcadamente mayor en casi todos los países de la Región de las
Américas y en no pocos de ellos, de manera abrumadora: el número de
veces en que dicha tasa fue mayor que la de Cuba ascendió a 77 en Chile,
a 68 en Panamá, a 57 en Perú, a 48 en Estados Unidos, a 18 en Costa
Rica y Brasil y al doble en Uruguay. En cuanto a mortalidad, se tiene el
mismo panorama (la tasa de Perú es 80 veces mayor, la Chile es 66 veces,
la de Brasil y Estados Unidos, alrededor de 62 veces más grande, etc.)
2 https://www.youtube.com/watch?v=1ApiaY6lhdw&t=90s

20
sesgadas que genera estados de zozobra o de falsa seguridad,
según convenga.
En esa línea, las grandes corporaciones informativas
han hecho todo lo posible por ocultar o minimizar los éxitos
de Cuba. Muchas veces, sublimando los logros de otras
naciones cuyos resultados pueden ser similares, pero en el
marco de un muy probable subregistro de enfermos o
fallecidos. Otras, insinuando cínicamente que los datos
cubanos son falsos, cuando este país ha dado pruebas de
máxima transparencia informativa.
Las llamadas redes sociales (especialmente Facebook,
Instagram, LinkedIn, Twitter o WhatsApp), consolidadas
como los medios dominantes de información al alcance de
todos, se han sumado como vehículos orientados a la
invasiva difusión de falsedades y noticias distractoras sobre
Cuba.
Sin embargo, debe consignarse que, desde hace unos
cinco años, el acceso a Internet, y por tanto a las redes
sociales, ha pasado de ser poco menos que marginal a estar
al alcance de más de la mitad de los 11 millones de
ciudadanos. Siendo así, la ecología digital ha experimentado
un cambio notable; no sin limitaciones se han abierto nuevas
posibilidades de gravitación para quienes actúan desde el
exterior, pero también con nuevos “actores digitales” dentro
del país, unos y otros en función de examinar la realidad
cubana en torno a la epidemia e influir sobre la opinión
pública.
Once años atrás, escribí la siguiente advertencia, que
retrata la situación actual:
Al aceptar acríticamente una tecnología estamos firmando
un contrato social implícito cuyas condiciones sólo
advertimos a menudo mucho después de haberse
consumado. Este «sonambulismo tecnológico» permite que
se vayan remodelando las condiciones de vida humanas de
21
modos no deseados y con consecuencias negativas para
amplias capas de la población y para el futuro del planeta.
Lo que aparentemente son elecciones instrumentales
(elección de técnicas) se revelan en realidad como opciones
hacia formas de vida social y política que van construyendo
la sociedad y configurando a las personas (SILVA, 2009, p.
5).

Adam Kucharski, afamado profesor de la London


School of Hygiene & Tropical Medicine, especializado en análisis
de brotes infecciosos, advertía (KUCHARSKI, 2020) que la
pandemia va a prolongarse y tenemos que atacar los bulos
tanto como la propia enfermedad. Se ha constatado que las
noticias falsas propagadas vía Twitter entre 2006 y 2017
circulan más velozmente que las que no lo son, quizás en
virtud de que las falsedades, por definición, cobijan más
datos novedosos que las verdaderas.
Acaso la más vergonzosa expresión de la
manipulación informativa de que Cuba ha sido objeto es una
campaña sucia para desacreditar su accionar
internacionalista. Con el antecedente del cese de la
colaboración médica por parte de los regímenes derechistas
del continente, sumisos a los dictados de Washington (Brasil,
Ecuador y Bolivia), Estados Unidos ha hecho todo lo posible
por calumniar, e incluso bloquear, la ayuda cubana al mundo
con motivo de la pandemia. Aunque nos extenderemos sobre
este tema más adelante, es ilustrativo detenerse en un
ejemplo concreto.
Cuando ya reinaba un estado de alarma superlativa
sobre los peligros inherentes al coronavirus, el día 13 de
marzo, el crucero MS Braemar, con numerosos enfermos en
su interior, deambulaba por el Mar Caribe sin que país alguno
accediera a recibirlo como solicitaba el gobierno británico.
Solo Cuba asumió los enormes riesgos que suponía acoger a
22
los viajeros y facilitar su regreso aéreo a Londres (MINREX,
2020). BBC Mundo ocultó a cal y canto esta noticia. Sería
ingenuo creer que tal conducta en torno a un hecho de tan
extraordinaria significación haya sido fruto de la casualidad.
Cualquier duda al respecto se disipa reparando en que la
propia agencia se apresuró a exaltar con bombos y platillos
un gesto similar del gobierno uruguayo que tuvo lugar un
mes más tarde con el crucero australiano Greg Mortimer (BBC,
2020).

Las fortalezas de Cuba ante la emergencia epidémica


¿Cómo explicar los resultados que se han bosquejado
en la segunda Sección? Vale la pena detenerse en las
fortalezas de Cuba como expresión de un posible paradigma
socio sanitario. En este análisis mencionaremos algunas
expresivas diferencias que singularizan a Cuba respecto de
los países de América y el Caribe, su entorno geopolítico
natural.
Me anticipo a expresar que las fortalezas que a
continuación se analizan, evidentemente, no se pueden
exportar. En particular porque no surgieron como una
respuesta puntual a la tragedia mundial, sino que responden
a un devenir labrado históricamente a lo largo de decenios.
Pero evidencian, precisamente, el papel que, ante una
emergencia, pueden desempeñar las conquistas conseguidas
durante 60 años a partir del trazado inicial de políticas
responsables y humanistas.
Cabe consignar que la epidemia también ha
desnudado debilidades crónicas del país, tales como la
notable dependencia de la importación de alimentos que ha
agudizado las carencias en un marco de parálisis comercial, o
el considerable retraso en materia de conectividad y de
23
articulación de los servicios en el marco de los recursos
digitales, lo cual ha obstaculizado la implementación del
teletrabajo y otras soluciones que podrían derivarse del uso
apropiado de Internet. Sin embargo, la crisis también ha sido
exitosamente enfrentada gracias a las fortalezas mencionadas
que, a nuestro juicio, anidan en las siguientes seis esferas: el
sistema sanitario, el enfoque integral de la salud, el
entrenamiento de los cubanos frente a las adversidades, las
peculiaridades socio culturales de la población cubana, la
ausencia de flagrantes inequidades y la insularidad.

Un poderoso sistema de salud


Con un sistema nacional de salud gratuito, de acceso
y cobertura universales, Cuba cuenta con medio millar de
policlínicos a lo largo y ancho de la nación, 12.000
consultorios de médico y enfermera de la familia enclavados
en la comunidad y casi medio millón de trabajadores en el
sector salud. Hay un enfermero por cada 133 habitantes (75
enfermeros por 10.000 habitantes) y, al tener un médico por
cada 116 habitantes, la tasa se eleva a 87 galenos por 10.000
habitantes, la cifra más alta del mundo (2,5 veces mayor que
la de Suiza, Alemania o España, y 3 veces mayor que la de
Francia, Estados Unidos e Israel). Dispone además de una
amplia red de instituciones de salud para la atención
secundaria y terciaria y numerosos centros destinados a la
investigación higiénico-social, médica y biotecnológica. Ello
ha permitido elaborar e implementar avanzados y flexibles
protocolos de atención a los enfermos con acuerdo al mejor
conocimiento existente.
En términos generales, se agrega la capacidad de
adaptación del sistema a los nuevos desafíos. En palabras de
la Dra. Carissa Etienne, directora de la Organización
Panamericana de la Salud:
24
Cuba amplió el sistema de salud sumamente fuerte que ya
tenía, y expandió esta red con más trabajadores de la salud y
estudiantes de medicina, e incorporaron herramientas
digitales para mejorar el seguimiento de contactos y casos.
Se valieron de un sistema de salud muy bien establecido que
ya incluye nuevos elementos a partir de esta pandemia (OPS,
2020, p. 1).

Varios países de América Latina y el Caribe, que


padecen los mayores estragos sanitarios debidos a la
pandemia (destacadamente, Perú, Chile y Brasil), disponen
de sistemas de salud fragmentados, mercantilizados,
tercerizados y hondamente inequitativos, que no pueden dar
la talla ante una crisis de este calibre. Las tasas de mortalidad
por Covid-19 de estos tres países son las más altas de
América (aproximadamente 62, 52 y 45 por 100 mil
habitantes respectivamente). La tasa de Cuba es 7,7 por
millón, entre 60 y 80 veces menor que las de las naciones
mencionadas.
Tras décadas de aplicación de políticas públicas
depredadoras, el caso de Chile es especialmente dramático.
Vale la pena detenerse en el análisis de a dónde ha
desembocado el modelo neoliberal, hasta hace poco tan
elogiado como paradigmático del buen hacer. Basta reparar
en que la gestión de los hospitales chilenos como empresas
ha determinado que se maneje a los pacientes como una
mercancía más. La atención en los hospitales públicos,
gratuita para sus usuarios, se ha derivado a los privados, a
costa del estado, en los casos en que aquellos hospitales,
crónicamente desfinanciados, no pueden asumir sus
funciones; pero ello no modifica la naturaleza comercial de
buena parte de ese proceso asistencial. Puesto que es en los
hospitales donde se dirime en lo fundamental la muerte o la
sobrevivencia, las siniestras cifras arriba mencionadas no
25
pueden sorprendernos. Como señala Rovere (2020): "entre
enfermar y morir están los servicios de salud, pero entre
enfermar y no enfermar está la política pública".
Bilal et al. (2019) publicaban de The Lancet que
Santiago de Chile es la ciudad con mayores brechas de
esperanza de vida según la comuna de residencia. Una mujer
que nace en una cuyos residentes tienen altos ingresos, por
ejemplo, puede vivir hasta 18 años más que una mujer nacida
en una comuna de ingresos bajos. Esta gigantesca brecha,
como no podría ser de otro modo, se expresa en las
diferencias entre los porcentajes de fallecidos por COVID
que exhiben los hospitales enclavados en barrios ricos y
pobres. Según Sepúlveda y Miranda (2020) los muertos
pueden llegar a ser 1 de cada 25 en los primeros, dotados de
recursos apropiados, y 1 de cada 4 en los segundos, que
operan en precarias condiciones.
El sistema de salud cubano es sólido y confiable no
solo por lo que abarca sino también por lo que excluye. El
solo hecho de que no operen en el archipiélago cubano ni
centros asistenciales privados, ni compañías aseguradoras
que consolidan la inequidad en el acceso a los servicios, ni
instrumentos publicitarios para promover servicios médicos,
ni empresas vinculadas a la farmaindustria entraña una
ventaja inapreciable.
El frondoso prontuario de abusos y deformaciones a
cargo de los mercaderes de la salud explica en buena medida
los paupérrimos resultados de muchos países de Sud
América, a la vez que ayuda a entender los éxitos de Cuba.

La salud en todas las políticas.


La política en defensa de la salud en Cuba, sin
embargo, no se vertebra exclusivamente en torno a su
potente sistema sanitario. Desde el siglo pasado la OMS ha
26
reclamado que la salud sea incorporada “en todas las
políticas” (HEALTH CANADA, 2000). Ello entraña la
convocatoria a la acción intersectorial que permita articular
respuestas socialmente organizadas para desarrollar
actividades destinadas, total o parcialmente, a tratar los
problemas vinculados con la salud, el bienestar y la calidad
de vida. Ello permite la suma y la comunión de influencias y
eleva la eficacia, eficiencia y efectividad de las acciones
(CASTELL-FLORIT y GISPERT, 2012).
Cuba constituye desde entonces, e incluso desde
mucho antes, un ejemplo en esta materia, y la experiencia con
la epidemia de Covid-19 lo ha puesto claramente de
manifiesto. Los cubanos han visto, día a día, cómo todos los
ministerios, todas las fuentes informativas y todos los actores
sociales se han movilizado en torno a un meditado Plan
Nacional de Prevención y Control, en la defensa y el cuidado
de la salud de la población amenazada por el Sarscov-2.

El entrenamiento del pueblo cubano y de sus dirigentes


A partir de comienzos de la década de los años 90, el
país se vio abocado a una crisis de notables dimensiones, a la
que se dio en llamar oficialmente como período especial. A raíz
de la abrupta desaparición del socialismo en los países del
este europeo, que habían sido durante años sus socios
económicos estratégicos, tejió una madeja de adversidades
sistémicas. Precariedad energética, aguda escasez de
alimentos, dramática contracción de importaciones y
exportaciones, entre otros efectos de la crisis, presagiaban el
derrumbe del gobierno y la caída, finalmente, del país en el
redil capitalista de su entorno geopolítico más cercano.
Contra todo pronóstico, a lo largo de casi 20 años,
no solo tan nefastos vaticinios se incumplieron, sino que el
país se recuperó lentamente mediante un proceso de
27
adaptación a las nuevas realidades, aunque con algunas
heridas sociales, económicas y morales que aún perduran.
Esta traumática experiencia dejó, sin embargo,
inestimables experiencias, no solo para las autoridades que
han recogido el legado de las que entonces condujeron el
destino del país, sino también para las instituciones del
estado y para la gente llana que resistió el recrudecimiento
del bloqueo impuesto por Estados Unidos que entonces tuvo
lugar. En síntesis, el país entero estaba mejor preparado para
encarar la contingencia epidemiológica que hoy conmueve al
mundo, a lo cual ha contribuido que durante la crisis se
mantuvo la voluntad de desarrollar la biotecnológia por su
importancia estratégica, la cual ha prestado un inestimable
servicio en esta contingencia. También ha sido medular el
accionar de dirigentes responsables, receptivos y solventes.

El involucramiento activo del pueblo cubano en el combate a la epidemia


En circunstancias de crisis epidémica asociada a una
enfermedad infecto contagiosa, la participación popular en
su enfrentamiento, adhiriéndose disciplinadamente a las
orientaciones de las autoridades y colaborando con ellas (por
ejemplo, actuando de manera activa en acciones de vigilancia
epidemiológica), resulta medular.
Ya desde el siglo pasado, Porter (1999) señalaba que,
“cuando estamos ante un súbito evento desastroso, tal como
un huracán, un terremoto o inundaciones, se hacen patentes
diversos rasgos de las sociedades afectadas. El estrés que
causa pone a prueba la estabilidad y la cohesión sociales.”
Es bien conocido que el paso periódico de los
huracanes por el Caribe y las zonas meridionales de México
y Estados Unidos suele dejar una nefasta estela de muertos
desconocida para los cubanos. Obviamente, eso no es
fortuito, sino que responde a estructuras de defensa
28
establecidas por el estado y secundadas de manera activa por
la población.
Un ejemplo puntual pero elocuente del compromiso
de la población con las acciones gubernamentales es el
siguiente.
María Van Kerkhove, directora técnica del Programa
de Emergencias Sanitarias de la OMS subrayó recientemente
la importancia de que las muestras de población sean
representativas para obtener resultados que puedan
considerarse concluyentes. Llamó a los países a desarrollar
estudios serológicos sobre la base de un protocolo propuesto
por la organización (WHO, 2020).
Se han llevado adelante numerosos estudios de este
tipo en ciudades, barrios o grupos de donantes, pero solo
España y Cuba han respondido hasta ahora a ese
llamamiento con estudios de carácter nacional (Portugal y la
India han proclamado su propósito de hacerlo). En ambos
países se diseñaron muestras probabilísticas de 90 mil y 4 mil
ciudadanos respectivamente, a quienes se ha hecho un
“seguimiento” con mediciones serológicas, además de
aplicarles un cuestionario epidemiológico. La tasa de
respuesta final en el caso de España ascendió a 57% de los
sujetos aleatoriamente seleccionados,3 mientras que en Cuba
se consiguió una participación del 98%4.
Solo el alto nivel cultural de la población, la confianza
que esta deposita en el Sistema de Salud y la disposición a

3 Véase informe final del estudio en


https://www.mscbs.gob.es/ciudadanos/ene-covid/home.htm
https://www.mscbs.gob.es/ciudadanos/ene-
covid/docs/ESTUDIO_ENE-COVID19_INFORME_FINAL.pdf
4 Véase descripción detallada en YouTube: https://www.youtube-

com/watch?v=GNrNCtdqhwY
29
colaborar con sus autoridades pueden explicar resultados de
este calibre, acaso únicos en el mundo.
La banalización de la cultura, el amarillismo noticioso
y el bombardeo de productos orientados a sublimar el
individualismo extremo y el consumo como meta suprema
de la vida, están simplemente ausentes de la prensa plana,
radial y televisiva cubana. Por ejemplo, en este país no se
accede a cientos de canales de TV sino a menos de una
decena. Ello puede no ser una ventaja per se y, si bien esa
estrategia comunicacional no consiente que se dibuje una
imagen idílica en esa materia, menos en el mundo
hiperconectado de hoy, sin duda dejan una impronta que
favorece que los mensajes sanitarios y la convocatoria a las
conductas responsables calen en la población sin
interferencias significativas en el contexto de esta emergencia
sanitaria.

Ausencia de grandes inequidades


Cuba no es un país carente de desigualdades.
Especialmente después de la crisis mencionada en el punto
3.3 (el llamado “período especial”, según la terminología
oficial y también popular), las diferencias al interior del país
se han incrementado, y la Covid-19 ha venido a ser un agente
más de desigualdad debido a algunas medidas que han tenido
que adoptarse. No se trata ni de diferencias “clasistas” en el
sentido marxista del término, ni ellas se expresan agudamente
en el marco educacional o sanitario, aunque sí en materia de
los ingresos percibidos y, por ende, en el consumo de bienes
y servicios. Tales diferencias no conciernen por lo general al
nivel cultural o profesional de los ciudadanos tanto como a
oportunidades que dimanan del área en que se desempeñan
(por ejemplo, el turismo) o de sus vínculos con emigrados.

30
Según comunica Monreal (2017), en 1986, poco antes
del “período especial”, Cuba registró un privilegiado lugar en
materia de distribución equitativa del ingreso: Coeficiente de
Gini (CG) de 0,220, entre los más favorables del planeta. En
1999, última medición conocida de dicho coeficiente en
Cuba, la situación había empeorado sensiblemente: el CG
ascendió a 0,407. Es verosímil que en años sucesivos se haya
mantenido más o menos en el mismo nivel. Sin embargo, esa
cifra puede considerarse “muy buena” en el ámbito regional;
de hecho, la mejor de América Latina y el Caribe junto con
la de Uruguay (CG=0,416), notablemente más baja que la de
naciones como Chile (IG=0,505) o Brasil (IG=515).
Sin embargo, a los efectos de una emergencia
sanitaria como la que plantea la epidemia de Covid-19, las
inequidades más devastadoras no quedan abarcadas por el
IG. La naturaleza de cobertura universal y gratuita del
sistema de salud cubano coloca a Cuba a la cabeza de la
región en la esfera de la equidad en salud.
Es obvio que, sobre los barrios más empobrecidos y
los sectores más vulnerables en países donde la salud es un
componente del mercado, por residir en zonas con
estructuras de salud más frágiles y con mayor precariedad en
el acceso a servicios básicos, el impacto será inexorablemente
más brutal. Estos grupos sociales discriminados quedan
mucho más expuestos a los efectos de la infección. Cuba no
padece de ese mal en términos estructurales.
Sin duda, se producirán estudios detallados cuando la
crisis epidemiológica supere su etapa más aguda, pero desde
ya se dispone de datos que denuncian que, si bien la
enfermedad puede afectar a cualquier ser humano, la
epidemia (que no es lo mismo que la enfermedad) castiga de
manera muy diferente a los grupos según su lugar en el
mundo de la inequidad.
31
Según señala Ramonet (2020), por ejemplo, en
Brasil, país con los peores indicadores relacionados con la
pandemia, la población afrodescendiente asciende al 9% de
la población total, aunque este grupo ha aportado el 32,8%
de las muertes. Y en Estados Unidos algunas minorías
étnicas -afroestadounidenses e hispanos- están presentando
un índice de mortalidad frente al coronavirus muy superior
al del resto de la población. En Nueva York, por ejemplo,
afroamericanos y latinos abarcan el 51% de la población,
pero acumulan un 62% de los decesos por COVID-19. En
el estado de Michigan, los afrodescendientes representa el
14% de la población, pero constituyen el 33% de los
infectados y el 41% de los fallecidos, mientras que en
Chicago, son el 30% de la población, pero aportan el 72% de
los fallecimientos.

La insularidad
La naturaleza insular del archipiélago cubano ha
obrado en favor de la lucha contra la epidemia. El país no
tiene kilométricas fronteras porosas que operan como
puertas de entrada para narcotraficantes y otros males, y
como vasos comunicantes para quienes buscan refugio en
entornos menos agredidos por la epidemia. Esto ha sido
provechoso. Sin embargo, el catastrófico ejemplo del Reino
Unido pone en entredicho que tal condición geográfica haya
sido determinante.

Solidaridad en tiempos de crisis


António Guterres, Secretario General de la ONU, en
el homenaje anual a Nelson Mandela celebrado en
Johannesburgo el 18 de julio de 2020 hizo lúcidas
declaraciones, inesperadamente enérgicas (GUTERRES,
32
2020). Fue un grito angustiado alertando que la Covid-19 ha
radiografiado las fracturas presentes en el armazón de las
sociedades contemporáneas. Tras denunciar la rapacidad de
los países ricos, incapaces de mirar hacia realidades que no
sean sus propios intereses, Guterres citó a Mandela cuando
proclamó que “uno de los desafíos de la actualidad
es reinstalar en la conciencia de la gente el sentido de la
solidaridad humana”. Según expresó, la pandemia pone al
desnudo todo tipo de falacias y mitos prevalecientes: la
falsedad de que el libre mercado puede proveer de un seguro
de salud a todos, el embuste de que el mundo se ha liberado
del racismo y, muy especialmente, el cínico mito de que
estamos todos en el mismo bote. “Aunque todos flotamos
en el mismo mar”, apostilló, “es obvio que algunos se
desplazan en lujosos yates mientras que otros se aferran a
maderos que quedan a la deriva”.
Michael Sandel, profesor de Filosofía Política en la
Universidad de Harvard, quien ha incursionado en el examen
de cómo los límites morales del mercado involucionan para
erosionar valores esenciales hasta ahora respetados
(SANDEL, 2013), declaraba recientemente:
La pandemia de la covid-19 no es solo una crisis de salud
pública. Es también una crisis global y cívica. Para luchar
contra la enfermedad se necesita la clase de solidaridad que
la mayoría de las sociedades difícilmente alcanzan excepto
en tiempos de guerra. El desafío al que nos enfrentamos
consiste en descubrir fuentes de solidaridad en una época en
la que la mayor parte de las sociedades democráticas están
profundamente divididas… Echando sal en la herida, una
concepción meritocrática del éxito ha venido a racionalizar
la desigualdad. Esta visión del éxito hace difícil creer que
"vamos todos en el mismo barco".

Unos pocos viven en amurallados recintos de


riqueza, otros en un marco de relativa prosperidad y vida
33
digna, y muchos en espacios de pobreza o de simple
indigencia. Una mirada ingenua puede llevarnos a creer que
la pandemia propicia nexos solidarios entre estos grupos,
pero pedirles a los poderosos que los desarrollen es como
implorar a las nubes que llueva invocando las desgracias que
produciría una sequía sostenida.
Otra influyente voz, la del Papa Francisco, clamó en
medio de la actual conmoción por la por la condonación de
la deuda contraída por los países periféricos con el gran
capital (GRAY, 2020). Numerosos economistas prominentes
reclaman soluciones preventivas de fondo, tales como
regímenes fiscales justos, concesiones de créditos blandos o
eliminación de paraísos fiscales. Otras voces, más sibilinas
reclaman donaciones filantrópicas, urgentes rescates
bancarios o una recalificación internacional más benévola de
riesgos financieros.
Por lo general bienintencionados, se trata de
desgarradas reivindicaciones cuyo éxito, de momento,
exigiría de la colaboración de los polos de poder
hegemónicos del mundo. Tal auxilio se nos antoja quimérico
en la medida que subvertiría el ADN del sistema capitalista
mundial.

Basta recordar a Carlos Marx cuando advertía:


El capital tiene horror a la ausencia de ganancias o a la
ganancia demasiado pequeña, como la naturaleza al vacío.
Conforme aumenta la ganancia, el capital se envalentona.
Asegúresele un 10% y acudirá a donde sea; un 20%, y se
sentirá ya animado; con un 50%, positivamente temerario;
al 100%, es capaz de saltar por encima de todas las leyes
humanas; el 300%, y no hay crimen al que no se arriesgue,
aunque arrostre el patíbulo (MARX, 2004 [1867]).

34
Los gestores de ese poder afirman -y quieren
convencernos- de que el mundo pertenece a los vencedores
en el combate por la supremacía económica y que, quienes
sobreviven precariamente, merecen ese destino, como ocurre
con cualquier otro competidor que fracasa. Tarde o
temprano, apelarán a criterios propios del “darwinismo
social” para sacudirse la responsabilidad implícita en las
desgracias de los menos favorecidos.
El proyecto cubano ha estado sitiado por un bloqueo
económico, financiero y comercial concebido por Estados
Unidos desde hace 60 años para “provocar hambre,
desesperación y el derrocamiento del gobierno”, así como
promover” desengaño y desaliento mediante la insatisfacción
económica y la penuria”. Así consta en el desvergonzado
memorándum de Subsecretario Adjunto de Estado para los
asuntos interamericanos, Lester D. Mallory, del 6 de abril de
1960 (BLUM, 2014). Sistemáticas medidas coercitivas
unilaterales se han sumado desde el comienzo de la
pandemia. En ese hostil contexto, esta nación ha dado una
muestra de su vocación solidaria real. El país ha prestado su
ayuda altruista mediante el envío de brigadas conformadas
por miles de profesionales sanitarios especializados a decenas
de países de cuatro continentes: pueblos de países ricos como
Italia, Andorra o Qatar, y de países muy pobres como Haití,
Honduras o Cabo Verde, han reconocido con estupor y
admiración esa operación. Se trata de contingentes de la
llamada Brigada Internacional que lleva el nombre “Henry
Reeve”, un joven estadounidense quien, con diecinueve
años, dejó Brooklyn para incorporarse al ejército libertador
que luchaba por la independencia cubana. Reeve alcanzó el
grado de General de Brigada en 1872 y poco después murió
en combate.

35
No se trata de un accionar coyuntural ante la tragedia
provocada por el nuevo coronavirus. Asentada en una
política sostenida ininterrumpidamente desde que, en 1963,
un primer contingente de sanitarios cubanos se desplazara a
Argelia para mitigar la partida de los franceses luego de la
independencia. 29 médicos, 4 estomatólogos, 14 enfermeros
y 7 técnicos de la salud permanecieron en Argelia dos años y
dos meses apoyando a los pocos médicos con que contaba
entonces el país africano. Actualmente, más de 30 mil
médicos y enfermeros prestan sus servicios en 66 naciones
(ABAD, 2020).
Tal desempeño ha sido invisibilizado, pero más difícil
ha resultado hacer lo propio en relación a la ayuda cubana en
el mundo en relación con la Covid-19. Después de que los
profesionales cubanos acudieran a Lombardía, la zona más
infectada de Italia, más de 1.450 especialistas de este país se
han desplazado en los últimos meses a otras veintiuna
naciones5.
Desde mayo de 2020, se ha desplegado una iniciativa
para nominar a la Brigada con vistas a que se le conceda el
Premio Nobel de la Paz del presente año 20206. Un
movimiento para conseguir ese reconocimiento está
teniendo lugar. Ojalá tenga éxito, pues son sobrados los

5 Por orden alfabético, hasta mediados de agosto de 2020 los países


beneficiados por la ayuda cubana han sido: Angola, Antigua y Barbuda,
Barbados, Belice, Cabo Verde, Dominica, Granada, Haití, Honduras,
Italia, Jamaica, México, Nicaragua, Principado de Andorra, Qatar, San
Cristóbal y Nieves, San Vicente y las Granadinas, Santa Lucía, Sudáfrica,
Surinam, Togo y Venezuela.

6Véase la convocatoria para firmar la solicitud en el sitio siguiente:


https://www.cubanobel.org/?utm_campaign=unblock_cuba&utm_me
dium=email&utm_source=codepink
36
merecimientos para para obtener ese galardón.
Personalmente, me permitiré ser pesimista sobre el
desenlace, habida cuenta de las numerosas inconsistencias en
que ha incurrido el “Comité Nobel Noruego”, que podrían
ser objeto de un análisis detenido si no quedara fuera del
alcance del presente texto. Sin embargo, saludo
enfáticamente esa cruzada, pues su sola existencia constituye
una reivindicación ante la infame campaña de descrédito
desplegada por la administración Trump y sus acólitos.

Referencias
ABAD, F. Semiótica de la pandemia. In: Granma, La
Habana, 26 marzo 2020.
BBC. Coronavirus en Uruguay: la emocionante evacuación
del crucero con Covid-19 en Montevideo. In: BBC News,
Mundo, London, 27 abril 2020. Disponible en:
<www.bbc.com>. Aceso en: 29 abr. 2020.
BILAL, U. et al. Inequalities in life expectancy in six large
Latin American cities from the SALURBAL study: an
ecological analysis. Lancet Planet Health, v. 3, n. 12,
2019, p. 503-510.
BLUM, W. The Punishment of Cuba. In: Counter Punch,
Humboldt, 21 noviembre 2014. Disponible en:
<www.counterpunch.org>. Aceso en: 28 oct. 2020.
CASTELL, P.; GISPERT, E. Intersectorialidad en el
contexto socio-económico cubano y sus implicaciones en la
salud de la población. Revista Cubana de Salud Pública,
v. 38, Suplemento, 2012.

37
COLUSSI, M. Coronavirus, ¿fin de la globalización
neoliberal? In: Rebelión, Madrid, 8 abril 2020. Disponible
en <www.rebelion.org>. Aceso en: 18 abr. 2020.
GRAY, J. Adiós globalización, empieza un mundo nuevo.
O por qué esta crisis es un punto de inflexión en la historia.
In: El País, Madrid, 12 abril 2020. Disponible en:
<www.elpais.com>. Aceso en: 18 may. 2020.
GUTERRES, A. Mensaje del Secretario General de las
Naciones Unidas, António Guterres, en ocasión del Día
Internacional Nelson Mandela. In: United Nations Office
on Drugs and Crime, Viena, 18 julio 2020. Disponible en:
<www.unodc.org>. Aceso en: 12 ago. 2020.
HEALTH CANADA. Salud de la población: conceptos y
estrategias para políticas públicas saludables. La perspectiva
canadiense. Washington: OPS/OMS, 2000.
ILLICH, I. Némesis médica: la expropiación de la salud.
Ciudad de México: Joaquín Mortiz, 1978.
LEE, A. Obama warned of pandemic threat in 2014, but
Republicans blocked funding. In: AJC News, Atlanta, 15
abril 2020. Disponible en: <www.ajc.com>. Aceso en: 12
mar. 2020.
KLIPPENSTEIN, K. Military knew years ago that a
coronavirus was coming. In: The Nation, Coronavirus,
New York, 1 abril 2020. Disponible en:
<www.thenation.com>. Aceso en: 12 may. 2020.
KUCHARSKI, A. The Rules of Contagion: why things
spread and why they stop. New York: Basic Books, 2020.
MARX K. El Capital. Tomo 1, Vol 3. Libro primero.
Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2004 [1867].
38
MINREX – MINISTÉRIO DE LAS RELACIONES
EXTERIORES DE CUBA. Cuba recibirá y brindará
atención a viajeros con coronavirus del crucero británico
MS Braemar. In: Granma, Especial Covid-19, La Habana,
16 marzo 2020. Disponible en: <www.granma.cu>. Aceso
en: 18 mar. 2020.
MONREAL P. Desigualdad global: ¿Dónde se ubica Cuba?
In: El Estado Como Tal, La Habana, 29 abril 2017.
Disponible en: <www.elestadocomotal.com>. Aceso en: 24
ene. 2020.
OPS – ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA
SALUD. Cuba frente a la COVID-19. Boletín de la
OPS/OMS en Cuba, v. 24, n. 2, 2020, p. 1-48.
PORTER, D. Health, Civilization and the State
Health, Civilization, and the State: A history of
Public Health from ancient to modern times. New York:
Routledge, 1999.
RAMONET, I. La pandemia y el sistema-mundo. In: Le
Monde Diplomatique, París, 25 abril 2020. Disponible
en: <www.mondiplo.com>. Aceso en: 26 abr. 2020.
RÓVERE, M. La pandemia desde el sanitarismo.
[Entrevista concedida a: Santiago Toffoli. In: Sistesis
Mundial, Buenos Aires, 23 mayo 2020. Disponible en:
<www.sintesismundial.wordpress.com>. Aceso en: 24 may.
2020.
SANDEL M. Lo que el dinero no puede comprar: los
límites morales del mercado. Madrid: Penguin Random
House, 2013.

39
________. Are We All in This Together? In: The New
York Times, New York, 13 abril 2020. Disponible en:
<www.nytimes.com>. Aceso en: 15 abr. 2020.
SEPÚLVEDA N.; MIRANDA B. Coronavirus: tasa de
mortalidad de los hospitales públicos metropolitanos
duplica la de las clínicas. In: Ciper, Santiago de Chile, 21
junio 2020. Disponible en: <www.ciperchile.cl>. Aceso en:
4 jul. 2020.
SILVA, L. Los laberintos de la investigación
biomédica. En defensa de la racionalidad para la ciencia
del siglo XXI. Madrid: Editorial Díaz de Santos, 2009.
WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION.
Population-based age-stratified seroepidemiological
investigation protocol for COVID-19 virus infection
[Internet]. World Health Organization. Report No.:
WHO/2019-CoV/Seroepidemiology/2020.1, 2020.

40
CAPÍTULO 2

PERSPECTIVA HERMENÉUTICA DE LA
PANDEMIA: COMPRENSIÓN SOCIAL DESDE UN
LUGAR DE AMÉRICA LATINA

Víctor Rodrigo Yáñez Pereira

Introducción
Resuena, en las distintas capas del pensamiento y los
sentidos, el mes de diciembre del año 2019 como período de
emergencia y ebullición, en China, del nuevo SARS-Cov-2,
capaz de originar la pandemia por la enfermedad Covid-19
para este siglo XXI. De esta manera, el pasado 11 de marzo
del año en curso la Organización Mundial de la Salud (OMS)
declaró al Coronavirus como calamidad mundial. Esto es,
una nueva muestra de los impases de la globalización, con el
hándicap de que todos los avances en investigación y
tecnología no son suficientes para mitigar la magnitud e
intensidad de esta desgracia social.
La pandemia, como muchas otras, interpela a la
sociedad como un acontecimiento cuyos efectos perturban
sus diversas facetas, institucionalidades y dinámicas. Nos
recuerda Nietzsche, rebasando a los estoicos, que el
acontecer trae consigo el cambio tras la perturbación, refleja
quizá una movilidad sin móvil alguno, pues precede a la cosa
y a lo imaginable (ROMANO, 2008, p. 26). Por eso, nos
sobrellevó como un rayo súbito alterando los órdenes de
nuestra historia, que se traduce en un presente azaroso e
incierto.
Eso se ve en los intentos epidemiológicos,
gubernamentales, científicos o cotidianos, donde ha primado
41
ensayo y error. Todo aquello, tal vez, como expresión del
desmontaje que lo acontecido vino a provocar en la ritualidad
neoliberal de un mundo que, hasta ahí, nacía y moría en la
voracidad del mercado y que hoy expone las figuras más
desiguales y agraviantes de la modernización.
Hablamos de un espacio donde las relaciones sociales
se equiparan con formas de producción, las ciudadanías se
constituyen en masas de consumo, disciplinando las
subjetividades. Allí se instala, lo que Gastón Saublette (2007)
llama el “mito del paraíso”, aunque en realidad en él,
únicamente, somos la reserva, ya que en sí mismo no nos
pertenece, aunque nos atrapa y nos enreda.
Estamos viviendo un fenómeno colectivo e histórico
que no sólo interpela prácticas, también, lógicas. Que, junto
con un Estado más fuerte, nos exige asumir mejores nexos
entre diferentes campos del saber y de la intervención social,
resinificado los alcances y deudas del mundo
contemporáneo, sobre todo en nuestra América Latina, aun
cargada de opresiones, clasismos, abusos, racismos,
acuñados por más de 500 años de colonialismos
(CARBALLEDA, 2020).

Crisis de lo social y hermenêutica vacía: memoria, saber


y comprensión.

El Covid-19 está lidiando por entrar en los


almanaques de aquellas enfermedades que, en el correr de los
siglos, repentinamente, han aparecido y acometen contra
toda una población, atravesando fronteras y convirtiéndose
en pandemias. Esto no es algo nuevo para la humanidad, ellas
han modificado el curso de la historia, así como el futuro de
diversas regiones, territorios, familias y personas desde la
edad antigua. Con el sarampión en la segunda mitad del siglo
42
II o, posteriormente, en el imperio bizantino, atrapado por la
denominada peste de Justiniano, en nombre de su
emperador, que surge y se expande desde Constantinopla.
Hasta el más contemporáneo, virus de inmunodeficiencia
adquirida (VIH) o SIDA (síndrome de inmunodeficiencia
adquirida), documentado desde 1981 en Estados Unidos.
Enfatizamos que, si bien, estas devastadoras
enfermedades, así como el riesgo y la contingencia, definen
nuestra intrínseca vulnerabilidad, al integrarse a otras
cuestiones sociales atentan contra la convivencia y sus
formas de organización en la esfera pública y privada. Vienen
a oscurecer no sólo ámbitos de salud o a traer la muerte,
además, inciden en la demografía, la economía, la
gubernamentalidad, el bienestar de la población y hasta en la
memoria de los pueblos y las civilizaciones.
Más allá de que hace millones de años se empezaron
a documentar pandemias que nos han puesto en jaque como
especie y género, por sus efectos transformadores de
sociedades, hasta antes de la acometida del coronavirus
parecía que habíamos perdido la conciencia del caos y la
catástrofe. Como representantes de la razón moderna,
exhibíamos la convicción de que la medicina todo lo sana, la
ciencia todo lo explica, la tecnología todo lo reemplaza. Pese
a ello, como cualquier fenómeno, a esté, no se responde con
un discurso puramente instrumental. Se trata de una cuestión
multifactorial y, por tanto, altamente compleja.
En rigor, de lo que las sociedades adolecen es de
modelos y medios de comprensión a la altura, para repensar,
reinterpretar y volver a explicar lo social que, en síntesis, es
una configuración urdida por dimensiones políticas,
económicas, ideológicas y culturales. Como enfatiza el dicho
popular “de prueba un botón”, con la llegada del virus se
confabularon el miedo, la histeria y, en muchos casos, la
43
huida, reflejada en una expansión presurosa, una explicita
ignorancia sobre sus causas y tratamiento, golpeando a
angustiados sistemas de salud, débil esfuerzo estamental y
enorme confusión mediática. Eso mismo, puso los
testimonios historiográficos lejos de la primera línea y, en
consecuencia, los aprendizajes del pasado quedaron a foja
cero. Tal vez, atemorizados por el hecho de que en períodos
anteriores hemos demorado siglos en contrarrestar a “los
grandes asesinos de la historia […] los virus y las bacterias”
(BELLES y ARBÓS, 2020, p. 14).
¿Qué nos dejó el pasado? Esta interrogante nos
coloca ante los vacíos de la actualidad, que se han puesto por
detrás de logros y conocimientos establecidos, tras la
búsqueda de una falsa certeza ilustrada, como la de Cándido
o el optimista Voltaire (1759). Una certeza cuyo afán de
transparencia, seguridad y regularidad, desplaza los
intersticios de lo social y sus historicidades, aun cuando la
evidencia no es suficiente, pues la verdad es siempre relativa
y conflictual, la documentalidad como la narrativa son
selectivas, la ciencia es perfectible y la ética es una constante
lucha de resistencias.
Ahora bien, el vacío es una categoría que emerge en
el caos del pensamiento, que se aloja en la ausencia de la
presencia (HEIDEGGER, 1998). Hablamos de brechas,
hendiduras o abandonos desde donde podemos encontrar
opciones, por ejemplo, para enfrentar las consecuencias que
trae consigo el desarrollo desigual en los países de la periferia
capitalista, donde junto con afrontar la voracidad del
mercado, lo hacen también sobre la redefinición de lo
político y, por tanto, de la concepción de ciudadanía.
Las preguntas sobre los vacíos inspiran hipótesis
interpretativas, mediante una cuidadosa atención a las huellas
mnémicas, las ruinas del pasado arrastradas en nuestros
44
textos que son la memoria, pero, sin dejarnos obnubilar por
la transmisión de lo heredado. En esta perspectiva, los
debates sobre el lugar de la hermenéutica se han dinamizado
desde el año 1960, con la publicación de la obra “Verdad y
Método” de Hans-George Gadamer, asentada en el trabajo
divulgado por Martín Heidegger desde la década del ‘20.
Acá, incorporamos un “modelo de hermenéutica vacía”
(YÁÑEZ, 2020, p. 215), que no busca convertirse en corpus
unitario de respuestas, ni en fundamento teórico universal,
sino en criticismo u horizonte de lenguaje, desde el que
nuestros umbrales de comprensión pueden irse despertando,
desplegando y enriqueciendo. Esto, nos recuerda que
contrarrestar la pandemia no es asunto de cuerpos sanados,
sino de fundamentos que nos permiten argumentar y
descifrar lo social, después de nuestros históricos
aprendizajes, como los que nacieron con el desconcierto al
saber que, en su momento, nos trajo la lepra, la sífilis, la
tuberculosis, la peste negra, la viruela, la gripe española,
asiática y de Hong Kong, el cólera, el ébola, entre otros. En
lo social el vacío adquiere contenidos que están lejos de ser
cabalmente vacíos.
Hoy, ante los enormes desafíos que nos coloca la
crisis de sociedad en la que nos encontramos, es
indispensable alcanzar maneras más complejas de
comprensión social para trasparentar el impacto de leyes del
mercado que unifican procesos sociales, creando relaciones
más violentas, competitivas y autómatas, superponiéndose a
dispositivos e instituciones que aseguren el diálogo y la libre
participación en una esfera pública disonante, capaz de
destruir la racionalidad “patrimonial” (VATTIMO, 2014, p.
44).
Tengamos en cuenta que comprender es una
construcción constante de la interpretación crítica. Un
45
proceso que siempre implica un nuevo comenzar, pues es
hermana del conocimiento histórico y por tanto, la
experiencia dialéctica de una deconstrucción a la pobreza del
saber.
Nos explicita que este fenómeno viral no es sólo
asunto de epidemiólogos e investigadores quienes han dicho
que es diferente porque, incluso en el peor de los escenarios,
matará a una proporción mucho menor de la población,
respecto de las grandes pandemias previas. La mera evidencia
muestra que su estancia trae graves consecuencias en
diferentes latitudes, no solamente en salud. Su
complejidad no redunda de una causa, conjuga variados
factores instaurados en nuestras sociedades, puerta de
entrada a nuevas cuestiones sociales, ambientales,
económicas, políticas e, incluso, culturales que, a diferencia
de las enfermedades endémicas, ha colapsado los
fundamentos a disposición.
Desde una lógica hermenéutica debemos aprehender
los presupuestos de base que sostienen los brotes de
irresolución, vacilación y perplejidad que alimentan
tensionantes simbolismos en el imaginario social. No
aludimos sólo el trauma, a eso se adhieren trastornos en las
prácticas societarias, donde Estado, mercado y sociedad civil
se presentan como cual David ante Goliat. Debemos
preguntamos ¿cómo los Gobiernos van a seguir
priorizando?, ¿de qué manera el mercado se comprometerá
con el Estado para asegurar mínimos de bienestar?, ¿en qué
medida las legislaciones serán efectivas?, ¿qué opciones se
presentarán para los ciudadanos, sobre todo los peor
afectados?.
Esta cuestión pone frente a frente los micro y los
macrocosmos, las dinámicas de mundos cotidianos con el
desequilibrio estructural a nivel de los países. Se cruzan
46
biografías con condiciones de trabajo, representaciones
sociales con políticas de protección, enfermedades con
coberturas hospitalarias, violencias domésticas con
violencias institucionales. En suma, oportunidades de acceso
no equitativos a derechos civiles y sociales.
Así pues, muchas veces “quedarse en casa” es más
dañino cuando la pobreza define las semánticas y formas de
confinamiento. Las consecuencias de la pandemia no se
distribuyen de manera equitativa, las situaciones de personas
y familias mayormente vulnerables presentan efectos más
nocivos en cuanto acceso a servicios médicos, sumándole su
menor o inexistente ahorro para abordar el desbarajuste
financiero, pagar deudas, hipotecas o arriendos, hasta las
compras para mantención diaria.
Por tanto, es indispensable comprender cómo las
distintas cartografías de lo social se manifiestan en concretos
y singulares modus vivendi, donde los campos discursivos se
edifican en atención a lo que las realidades de sujetos,
colectivos, territorios realmente son y no a lo que “deberían
ser”. El ojo debe estar puesto en condiciones socio –
históricas y contextos que preñan de exclusión e injusticia las
identidades individuales y colectivas, cuyo sentido está en la
lucha discursiva de pequeñas historias, “donde la persona puede
convertirse en […] una existencia social” (MARTÍN, 2013, p. 74).
A nivel microeconómico, si bien hay quienes pueden
reducir el riesgo de contagio por teletrabajo, no corren la
misma suerte quienes se desempeñan en áreas de primera
necesidad, donde se ha venido dando ausentismo laboral, no
por enfermedad directa, también, por cuidados a miembros
del hogar (niños, crónicos o mayores, que son la población
de alto riesgo). Aun cuando el trabajador asista al
cumplimiento de funciones, los determinantes psicosociales
disminuyen su eficacia y productividad. De otro lado están
47
las desempleados, así como trabajadores migrantes y de la
economía informal quienes, junto con mermar ingresos, no
son beneficiarios de subsidios de cesantía. En el plano macro,
la desaceleración de los mercados financieros, descolocan el
Producto Interno Bruto (PIB) golpeando presupuestos
nacionales y comercio internacional, interfiriendo en la
cadena de suministros de bienes críticos y el consumo
privado.
Ahí, hemos de develar códigos vacíos de
representación, discursos subyugados por relatos de un
macro-sujeto: el Estado, el mercado, la globalización, la
industrialización, el libre comercio, etc., que instauran una
suerte de personalidad de base con que se caracterizan y
tipifican procesos de producción y reproducción de
relaciones sociales. La memoria del pasado debe exponer esa
bipolaridad característica de la fábrica fordista, aun remedada
por las sociedades de mercado, expresadas en estilos de vida
que parecieran justificarse en términos de éxito y placer
individual, lo que lleva a que nuestros territorios sean presa
de la dependencia a todo tipo de recursos externos, en un
sistema que permite la succión de riquezas (ROBERTS,
2016). Lo más gravitante sería pasar por alto que en
circunstancias de desastre, se acentúa la implementación de
políticas económicas asociadas a un capitalismo salvaje,
sobre todo en ausencia de un Estado social. Todo el
entramado económico depende de la creación de dinero y
crédito de aquellos que son “demasiado grandes para caer”,
como las multinacionales.
No perdamos de vista que el Covid-19 podría hacer
que el mundo sea aún más desigual. Si nada cambia, como
resultado no habrá escasez de mano de obra, todo lo
contrario, por lo que los salarios decaerán mientras la
precariedad laboral aumente. Inclusive, aunque el volumen
48
de trabajadores disminuya, la tecnología, inteligencia artificial
y automatización podrían reemplazar esa pérdida, asentando
el bajo valor del trabajo humano. Sin dejar de lado que la
innovación viene aparejada de negocios virtuales que
conllevan más cobertura con menos inversión.
Conjuntamente, la crisis trae otras probabilidades,
como una nueva opinión pública o presión socio-política en
pro de cambios favorables para la ciudadanía, por la
expansión del empobrecimiento o el descontento con
decisiones de las elites. Insistimos, que no podemos
cristalizar los argumentos sobre el pasado como meros
anecdotarios (KARSZ, 2013, p. 165), por ejemplo, la Gran
Recesión del 2008 debería operar como modelo de memoria
colectiva.
Si bien, es muy importante resguardar la salud de las
personas, también lo es la garantía de sus derechos y el
proceso social de recomposición política que eso implica, ya
que los impactos de la pandemia pueden llevar hacia una
“inseguridad alimentaria aguda” o hambrunas ampliadas,
según lo advirtió el Programa Mundial de Alimentos de
Naciones Unidas. Fenómeno expansivo en cantidad y
profundidad, que afectaría primero a países africanos y
subdesarrollados. Según David Beasley (2020), jefe del PMA,
a fines de este año se duplicaría la cifra de ciudadanos que en
2019 estaban en el abismo de la depauperación, alcanzando
un número aproximado de 250 millones. De ellos, alrededor
de 18,5 millones viven en América Latina y el Caribe,
preferentemente en el llamado “corredor seco”, compuesto
por Guatemala, Honduras, El Salvador y Nicaragua.
Desastre que no supone sólo suministrar, en forma
coyuntural, medios básicos de subsistencia y nutrición para
los grupos de mayor riesgo, ni con pura solidaridad vecinal,
donde los barrios más deprivados retoman la práctica de ollas
49
comunes o comedores sociales. Tampoco hay que olvidar
que antes de la crisis, diariamente sucumbían alrededor
de 21.000 personas por hambruna, las familias más
necesitadas de apoyo estatal, civil o caritativo sostenido;
incluyendo a migrantes severamente desplazados.
Mientras el mundo del trabajo atraviesa la peor crisis
internacional desde la Segunda Guerra Mundial, como lo
avizoró la OIT, el FMI ha pronosticado una caída de -3% de
la economía mundial y de -1% para las economías
emergentes, lo que para Chile constituye el 4,5% en 2020,
peor que la crisis de 1982-1983. El país ha seguido una
estrategia de soporte económico que va, por un lado, dando
garantía estatal de endeudamiento a empresas, legislando en
protección del empleo y posponiendo impuestos, así como,
por otro lado, flexibilizado que trabajadores formales
accedan a subsidios o a sus propios ahorros (vía seguro de
desempleo), mientras que para los informales y sectores de
más bajos recursos, aprobando un ingreso familiar de
emergencia por tres meses, con tope de $65 mil por persona
y con valores decrecientes en el tiempo.
No obstante, en inversión de presupuesto fiscal, se
requiere más arrojo gubernamental ante el desafío social y
económico, asentado en un principio de equidad que hoy nos
llama a repensar la economía, la sociedad y la democracia. En
el país, si bien, se ha procurado aprender de las experiencias
extranjeras, la balanza de problemas fiscales es distinta a la
del mundo desarrollado. No por nada, los que expresan un
IDH superior a 0,900, como Alemania, tienen tasas de
mortalidad por contagios inferiores al 2%.
Los países no pueden seguir concibiendo lo social
con indicadores de gasto. Hay que pasar a la lógica de
inversión. Como se enfatiza en el último informe CEPAL
(abril 2020), debemos avanzar hacia un modelo de desarrollo
50
con mayor integración en América Latina y el Caribe,
reconociendo la contracción de al menos -1,8% en el PIB
2020. Es un reto a nuestros gobiernos, donde la mayor parte
de los mandatarios gozan de poca popularidad, según la
cifras. Se ha perdido confianza en su liderazgo y en las
instituciones. Sin embargo, apoyar a los gobiernos no es sólo
tema de investigadores, universidades, centros de estudio o
diagnóstico. Tampoco, del puro colegio médico. Una
calamidad como la que estamos viviendo, junto a
comunicados oficiales, estadísticas y recomendaciones
especializadas, reclama educación y diálogo entre sectores y
actores sociales.
Atenderla exige mancomunión y responsabilidad
colectiva. El conocimiento acumulado debe ser
desempolvado, como de búsqueda de soluciones y
alternativas.
Los conocimientos, en cualquier formato son textos,
memoria de la sociedad, que no deberían empeorar las cosas,
como sucede con la reducción de la biodiversidad, sino todo
lo contrario. Por consiguiente, comprender la historia y sus
textos ayudará a poner en perspectiva lo que está sucediendo
y sacarlo de su sino orwelliano. Es necesario “generar nuevas
gramáticas latinoamericanas”, “otros regímenes de
enunciación siempre perfectibles”. La hermenéutica abre un
acto político poniendo en duda el lenguaje hegemónico sobre
la pandemia. El higienismo benéfico y la tecnofilia operativa
no son lo esperable, menos lo suficiente.

¿Lenguages de la pandemia u órdenes discursivos?:


necesidad de rupturas enunciativas.
Si recordamos la “séptima función del lenguaje”, de
Laurent Binet (2017), entramos de lleno en su poder
51
transformador de mundos, vidas, realidades. Esto, por su
carácter performativo que permite convencer mediante
figuras discursivas, capaces de forjar duelos retóricos. Así
podríamos entender cómo el Coronavirus se arraiga en
contradicciones del proceso de reproducción de relaciones
sociales, dominadas por principios de sobre-adaptación que
justifican mecanismos de supresión a libertades colectivas e
individuales, como sucede con los estados de excepción y sus
consecuentes toques de queda, donde el aparataje policial y
militar se toman los espacios públicos.
Eso se basa en acumulación de discursos
hegemónicos asentados en la coherencia de cánones
legislativos o moralizantes que, en la esfera privada, versan
en torno a la corrección de comportamientos de conjunto o
decisiones individuales, atendiendo por ejemplo a la
conciencia especulativa del daño que no cumplir la norma
genera en la salud de otros y que desde ahí, merece
sanciones., como si eso fuera suficiente para modificar
impactos culturales y políticos de una educación pauperizada
por Estados debilitados en sociedades de mercado.
Ahora bien, la aparición de la pandemia entre esos
registros civilizadores y moralizadores exterioriza la
disociación entre un proyecto de producción y uno de
cohesión social, pues las intervenciones no pueden cerrarse
en reglas ordinales y jerárquicas de convivencia, sin
comprometer la comprensión de quienes se ven expuestos
ellas, pues no abre un lenguaje común ni luchas discursivas
entre sistemas racionales-instrumentales y mundos de vida
cotidianos.
El desafío es idear palabras donde existe falta de
lenguaje, tras una reflexión conceptual en torno a la
formulación de categorías para comprender lo social y cómo
fundamentar nuestra toma de partido, la producción del
52
saber, el reconocimiento y la creación de propuestas de
incidencia. El lenguaje sostiene toda actividad racional, en
torno a pretensiones de validez desarrolladas tras diversas
performatividades discursivas, lo que “[…] nos autoriza a
reelaborar los conocimientos de partida, pero, sin anularlos,
sino reedificando, una y otra vez, las traducciones sobre su
fundamento” (RICOEUR, 2008, p. 85).
Así por ejemplo, se torna indispensable repensar el
sentido que designa la “nueva normalidad” pues, en sí
misma, dicha categoría es paradójica, invoca una figura
conceptual formada por ideas en oposición. Mientras lo
primero es lo inédito, lo segundo es corriente o, además, a
priori. Esto llama a una simplificación lingüística y
comprensiva. Saca al proceso de su profundidad,
inclusive, confundiéndolo con el retorno progresivo y
seguro a actividades laborales (públicas o privadas),
reapertura comercial y/o regreso a clases presenciales, según
lo postula la actual administración gubernamental chilena.
Aun cuando, tal enunciado fue incorporado por la
OMS en abril 2020, acorde a la propuesta desarrollada en
Australia, como etapa exploratoria luego del primer brote
viral en diferentes continentes y países, el mismo ya era
utilizado en economía desde 2008. Éste último caso,
refería a pronósticos de crecimiento económico mundial,
ante crisis aparejadas a ralentización productiva, cambios en
el mercado laboral, sistemas de colaboración internacional,
etc., o sea, por la Gran Depresión. Evitar estas ambigüedades
permite fortalecer confianzas, a través de una “[…] búsqueda
cognoscitiva que puede convertirse en descubridora de una
posible verdad” (HEIDEGGER, 2000, p. 28). Así
podríamos concentrarnos en un proceso de renovación
mundial, cuya raíz se encuentra en los determinantes dejados
por la pandemia, cambiando lógicas que irradien las
53
estructuras de la sociedad, convivencia y prácticas de vida
cotidiana. La pregunta es ¿cómo asumir las
consecuencias?: del confinamiento, los conflictos socio-
económicos, la psicosis sanitaria, la excepción
constitucional, las transformaciones ambientales, etc.
Eso, en consideración a las repercusiones, riesgos y
requerimientos durante las diversas transiciones que
conlleva la reintegración social.
Entonces, en ninguna medida el aumento de recursos
o medios aseguran por sí solos, la resolución de
complejidades sociales, si los mismos se separan de una
“decisión socio-ideológica explícita o implícita” (KARSZ,
2013, p. 67). Su abordaje implica dialogar con diversos
sistemas de interpretación, con miras a producción y
suministro de sentido a los dispositivos discursivos que
persiguen atender las consecuencias de esta nueva expresión
de la cuestión social. No es lo mismo asimilar el problema
que apropiarse de él, por lo que se han de formar luchas
discursivas capaces de tensionar relaciones de poder, pues el
lenguaje junto con exponer estados de cosas, permite
demostrar, exigir e inquirir (HABERMAS, 2001, p. 354). Lo
relevante es identificar fuerza, impacto y restricciones del
saber, de las ofertas, de las lecturas o informaciones
particulares sobre un fenómeno que se construyen
argumentando no sólo sus características, sino sobre todo
sus efectos en situaciones reales.
Así recuperamos el acto político del ejercicio de la
crítica, que implica transparentar tanto el espacio donde las
palabras habitan y ocurren, como el lugar que ocupan y la
modalidad en la que se instala en el mundo social. En tal
sentido, podríamos confrontar la grave epidemia informativa
o “infodemia” sobre el Covid-19, que gracias a la
conectividad en línea desata un tráfico indiscriminado de
54
noticias no siempre veraces, poco confiables, erróneas,
maliciosas o que incentivan comportamientos inadecuados,
al dificultar discernir sobre opciones válidas para el abordaje
del problema.
Es la denominada propagación de “false news”
(contenido falso) y fake news (contenido con intencionalidad
políticamente dañina), cuyas implicancias son profundas,
toxicas y recalcitrantes, pues a diario acechan y avanzan más
rápido que el propio virus. Estas prácticas han sido
incorporadas a la semántica de la pandemia, aunque no es
propia de esta sino de su coyuntura, acentuada por las lógicas
de una aldea global, una sociedad del riesgo, una modernidad
líquida, una era del vacío o una planetarización (MCLHUAN,
1968; BECK, 1986; BAUMAN, 2003; LIPOVETSKY, 2006;
MORIN, 2011).
Por un lado, aumenta el pánico, angustia y confusión,
y por otro, la estigmatización, discriminación y violencia,
azuzadas por ignorancia y temor, frente a una enfermedad
que todavía trae consigo muchos enigmas. Se atenta contra
la confianza pública, ese valor o ideal de esperanza que
otorga seguridad respecto de los otros y lo otro, pero sobre
todo respecto del futuro, más aún porque la solución no
depende de nosotros, pero, afecta nuestro bienestar.
Es un asunto de construcción de significados en un
escenario de “posverdad” que hace proliferar prejuicios y
emotividades afianzadas en la viralización de terminologías,
contenidos y opiniones para llenar vacíos tanto en el
conocimiento científico como en su comunicabilidad. No es
extraño leer o escuchar afirmaciones de conspiración,
sospecha, contraindicación, peligro, etc., que se tornan
reiterativas y ruidosas.
Para combatirlo, debemos verificar los datos, hurgar
en fuentes oficiales, en el conocimiento comprobado,
55
analizar la responsabilidad de medios, plataformas digitales y
gobierno sobre las formas en que pululan contenidos por
redes sociales. Eso pues, como plantea Natalia Aruguete y
Ernesto Calvo (2020), actualmente el 49% de la población es
usuaria de YouTube, Facebook, Whatsapp y TikTok, con un
aumento del 9% respecto de 2019 y un uso anual de internet
del 60% (We Are Social y Hootsuite, 2020).
Ante el nuevo Leviatán del imperio virtual, hay que
ejercer mecanismos de responsabilización de empresas, para
controlar a quienes ejercen estas acciones, movilizando
respuestas políticas y colectivas que propicien ciudadanías
responsables y colaborativas en tales entornos, sin olvidar la
brecha digital que desconecta por edad, ubicación geográfica
o socioeconómica, donde dichas tecnologías siguen
afectando por su influencia en medios tradicionales de
comunicación masiva. La clave es volver a una educación
liberadora que promueva la reflexión prudente y lectura
crítica, para no llegar a extremos que atentan contra la
convivencia social, según dijo Christopher Tidey (UNICEF,
2020). Ello exige entender lenguajes en movimiento, no
respuestas automáticas a mandatos judiciales, estatutos de
salud, proyectos de continuidad educativa o leyes orgánicas.
Ahí, la hermenéutica provoca giros en los lenguajes
particulares, fracturando relaciones de fuerza que se imponen
en espacios locales, en el terreno de las subjetividades,
proyectos de vida y saberes cotidianos, muchas veces
truncados por la tecnocracia política.
Así, se puede poner a la luz, por ejemplo, las estéticas
de la pobreza. Consideramos, a diferencia de Alexander
Gottlieb Baumgarten (1758), que la estética no sólo se
traduce en lo bello sino que comporta experiencias,
sensaciones, percepciones, juicios y sensibilidades sobre
objetos y realidades a las que atribuimos cualidades,
56
trasladándonos entre lo bello, lo sublime, lo selecto, lo vulgar,
lo grotesco o lo miserable.
La estética es una marca de la modernidad y su fuerza
de modernización, en la sociedad contemporánea, arrastra
rostros duros como el de la exclusión y desintegración no
sólo económica, también de valores, subjetividades,
identidades. Son manifestaciones estéticas de la pobreza,
proyectadas en imágenes sociales, culturales, políticas,
económicas, materiales, emocionales, que orientan diversas
maneras de vivir la vida, no sólo en satisfacción de
necesidades básicas, sino en oportunidades de realización
humana e integridad social.
Así, la pobreza deja de significar una sola cosa:
“medida de carencia económica”. Con su enunciación
podemos aludir, incluso, a opulencias vacías, o sea “sería
menos pobre quien menos cree necesitar”, o, como lo
asevera la metáfora popular: alguien “es tan pobre que lo
único que tiene es dinero”. Hemos de aprender a hablar de
pobrezas, como lo han hecho Max-Neef (1993) o
Hopenhayn (2007), que no están únicamente en la necesidad
y la subsistencia, también en el afecto, entendimiento,
participación, imaginación, creación, visón de futuro, etc.
¿Acaso no es pobreza vivir en países donde el crecimiento
económico va consumiendo poco a poco la vida de personas
y territorios?
De este modo, debemos conseguir descifrar signos
invisibles e incrustados en series de acontecimientos que
crean situaciones sociales no generalizables, sobre efectos
provocados por condiciones y fenómenos generales, como
el que ahora afrontamos con la mutación del virus y los
nuevos brotes de la enfermedad.
Así pues, […] es conveniente elevar a la categoría de
conocimiento la dimensión práctica de experiencias y

57
vivencias, incorporando “la sabiduría práctica” de las
palabras, como una forma de saber, que enriquece el
conocimiento teórico de [la comprensión y] la intervención,
tanto como su ejercicio (CORDERO, 2011, p. 88).

Es alarmante que gran parte de la intervención social


desplegada enfatice en respuestas materiales, más que en el
impacto simbólico que dicho orden produce en las
subjetividades y en la cultura que discurre por nuestros
cuerpos afectados. Muestra, en sus modos específicos, la
efectividad que producen las palabras al operar en vínculos
subordinados al discurso sanitario, político y tecnificado.
Esto, nos insta a buscar nuevas palabras para que el lenguaje
vuelva a poner en escena su cualidad enunciativa. De hecho,
en tiempos de pandemia los neologismos están de moda,
surgiendo palabras inexistentes para expresar una realidad
reciente (VALLÈS, 2002), sin estar todavía clasificada por
instituciones autorizadas como la RAE, creando lenguaje en
la carrera digital y medios de comunicación, sin tiempo
suficiente para revisar impactos. Modifican vocablos, alteran
significados y traen errores en habla y escritura, como ocurrió
con la idea de bullying, influencers, seropositivo,
motochorro, emoticón, entre otros.
De hecho en Chile, podemos destacar un neologismo
muy paradojal, utilizado por el Ex-Ministro de Salud, Jaime
Mañalich, pidiendo en mayo 2020 tranquilidad ciudadana al
avizorar noticias espantosas que llegarían desde otros países,
donde las situaciones por Coronavirus tensionaban las cifras.
A eso le llamó “Pánico Viroterrorista”, algo así como un
terrorismo viral.
Lo estrepitoso es que los términos viral, virus y
terrorismo son habitualmente empleados en diferentes
esferas y sectores, pocas veces preguntándonos ¿qué son?,
¿cuáles son sus condiciones?, ¿cómo nos afectan?. De
58
hecho, la palabra terrorismo, si bien, se aplica a lo que genera
terror, se circunscribe a la violencia política, refiere al poder
y se construye ideológicamente. Stampnitzky (2013), enfatiza
que para algunos es un atentado cívico inhumano e ilegítimo
y para otros una lucha por la libertad o patriotismo. Incluso,
la violencia del Estado es eximida de esta denotación.
También, la violencia contra mujeres, niños, mayores, gays y
lesbianas, que legal y moralmente se entienden como
acciones individuales aberrantes, mas no como actos
terroristas.
Antes llegó el bioterrorismo, causado por la
diseminación intencional de virus, bacterias, gérmenes u otras
sustancias dañinas contra la población, provocando
enfermedad, horror y muerte por su difícil detección,
resistencia o falta de antídotos. Eso instigó la idea de teorías
conspiratorias respecto del Sars-cov-2. Entonces, junto con
informarnos racional y apropiadamente, es indispensable que
las fuentes oficiales no sean manipuladas, transparentando lo
que sucede en un país. Eso requiere una robusta ética
pública.
Lo social aparece en horizontes enunciativos, donde
podemos descifrar categorías y presupuestos que definen
formas de relación instituidas. Traducirlas nos permite
contribuir a reinterpretar nociones como democracia,
consenso o disenso social, gobernanza, descentralización,
desarrollo territorial, identidad local, etc., mediante la
confrontación de puntos de vistas y luchas discursivas. Así,
la hermenéutica vacía, a su manera, alienta aquel principio
esperanza de Ernest Bloch (2007), que invoca la
emancipación del sentido y nos inquiere a no renunciar a las
transformaciones de un presente precario, violento e
inestable.

59
La reinvención de lo público: hacia una nueva relación
Estado y ciudadanía.
El Coronavirus puede servirnos para recordar que en
la trama de la vida en la Tierra lo minúsculo es concluyente,
incluso, para desmantelar andamiajes societarios mantenidos
por múltiples generaciones humanas. Somos sociedades
vulnerables, el tiempo y la urgencia nos pasa la cuenta.
Nuestros cuerpos declinan y perecen sin poder impedirlo. El
antropocentrismo se desmorona, y donde la destrucción del
ecosistema es una práctica rutinizada.
De hecho, el historiador Walter Scheidel (2017)
concibe las epidemias como uno de los cuatro jinetes del
apocalipsis, junto a aquellos colapsos civilizadores que han
afectado violentamente distintos períodos, aparejados de
vicisitudes políticas y bélicas. En este momento nadie, tiene
el número real de infectados. Tampoco se sabe la tasa de
portadores asintomáticos, tal vez debamos esperar el cierre
del proceso para poder contar con datos totales. Además, la
detección tiene relación con las capacidades económicas y del
sistema de salud de cada país.
Lo indiscutible es que el discurso dominante avala
que el propio comportamiento social y colectivo, ha abierto
paso al estado de excepción, objetivado en muchos países
latinoamericanos, por ahora al menos, a través del toque de
queda y el confinamiento obligado. Al respecto, nos
preguntamos si ¿esto corresponde, también, a una cuestión
axiológica o socio-cultural?, pues sin duda acuña un lenguaje
político afianzado constitucionalmente, que afecta derechos
y garantías ciudadanas, a consecuencia de enfrentar eventos
extraordinarios para el normal desenvolvimiento de las
instituciones del Estado.

60
La catástrofe o “calamidad pública”, como exalta
Agamben (2020, p. 19), junto con fundar un estado de miedo,
trae consigo restricción a la libertad humana, prohibiendo,
suspendiendo y vigilando. Son relaciones confinadas, o, al
menos, relativamente, basadas en que durante antiguas
pandemias se observó que el riesgo de enfermar aumenta al
aproximarse a los contagiados, lo que en el siglo XI llamaban
contagio aéreo. Sobre eso ya se hablaba en el Decamerón de
Giovanni Bocaccio (1353), en el contexto de la peste
bubónica, que fue piso de los cordones sanitarios desde el
siglo XIV. En términos fácticos confinar es una pena de
encierro temporal, ahora, en nuestros propios hogares,
donde nos recluimos tensionando lo social, política y
legalmente permitido. Es un tipo de confinamiento
“inercial”7, que persigue las condiciones necesarias para que
la curva sanitaria logre controlar contagios y efectos más
negativos, pero, a ratos, descuidando la fusión de
dimensiones que hacen del fenómeno una cuestión múltiple
en sus efectos individuales, colectivos y territoriales.
La forma de asumir los impactos Covid-19 implica
ser socialmente responsables, lo que, a su vez, se expresa en
compromiso político de nuestras decisiones y acciones, no
univocas sino abiertas, como plantea Hans Jonas (2014).
Toda responsabilidad es abstracción, esencia humana que,
éticamente, se asume como promesa, por lo que no basta con
su identificación conceptual, jurídica o coercitiva. Es
necesario replantearnos la educación cívica.
Esta medida de emergencia altera no sólo
desplazamientos, además, el ocio, recreación, la educación,
lo laboral, lo asistencial; en sí la experiencia de lo cotidiano.
Transgrede las topografías, el domicilio, la calle. Entonces,

7 Categoría propia de la ciencia física y del movimiento.


61
penetra la arqueología de la experiencia humana, su
conmensurabilidad y sentido en el “subsuelo de lo común”
(GIANNINI, 2013, p. 25). No es raro ver como muchos
compatriotas siguen aprovisionándose de alimentos o
productos farmacéuticos, mientras otros deben aprender a
vivir con la desafiliación laboral o la merma de ingresos. Este
encierro nos afecta diferencialmente, según estratificaciones
sociales. El confinamiento es, entonces, “un concepto
burgués", asevera Hamza Esmili (2020).
Ilusorio es creer que las sociedades de nuestro
continente sostienen un desarrollo equitativo, tanto para
asegurar satisfacción de necesidades básicas, como de
servicios y políticas públicas a la altura. Por ejemplo, para
disciplinas como Trabajo Social esto es casi una evidencia
empirista, hay familias enfrentadas a degradantes
determinantes de convivencia, como la insalubridad,
viviendas reducidas e inestables (para cinco o más
miembros), carentes de conexión en línea, con habitaciones
multiuso, etc. Sin olvidar las personas que no cuentan con
domicilio, los conventillos de migrantes o extranjeros
alojados en plazas públicas, ya que en estos tiempos sus
países de origen no los reciben. Todo esto ayornado por más
presencia policial y, en ocasiones, por violencia.
El foco del análisis no es el confinamiento en cuanto
tal, sino las inadecuadas y desiguales condiciones para asumir
la efectividad de la medida. Pensemos en los muchos que han
debido seguir trabajando in situ (obrer@s, cajer@s de
bancos, farmacias o supermercados, guardias y seguridad
pública, gendarmes, personal de salud o aseo industrial, etc.).
Así se ha vivido la presión del aislamiento social, no sólo
alejándonos, involuntariamente, de nuestros entornos y lo
que ello comporta, o distanciándonos de modo físico-
expresivo, para mantener un espacio de alejamiento corporal
62
entre unos y otros, si es que tenemos que estar fuera del
“cuartel” en que se convirtieron nuestras casas.
Junto con el habitual “lávense las manos” y “usen
mascarilla”, los textos más comentados son: “no se reúnan
en grupos”, “aléjese de sitios concurridos”, “evite
congregaciones masivas”. Descuidando, imprudentemente,
las circunstancias concretas y particulares, pues en estado de
emergencia se restringen derechos constitucionales. Una vez
más las estructuras procuran colonizar relaciones, lo macro
obscurece a lo micro, las medidas generales olvidan las
singularidades. De hecho, desde el discurso conservador,
afianzado en la parte más pequeña de nuestras sociedades,
aparece el optimismo ante una cuarentena que quiere
imaginarse como oportunidad personal y familiar, para
fortalecer la intimidad, los diálogos y los acuerdos. Mientras
política y economía invocan al teletrabajo o la educación on
line, con desmedidos usos del tiempo y sin ocuparse de la
conciliación familia – trabajo. Por eso, la convivencia es una
gran preocupación, no sólo por aumento en violencia
intrafamiliar, también por perdida de rituales (fundacionales,
funerarios, conmemorativos, religiosos, de cuidado),
impidiendo que la diversidad prolifere.
Tenemos claridad de que mientras no se disponga de
una vacuna efectiva, las cuarentenas serán una medida
adecuada que, implícitamente, contiene la idea de período de
incubación de enfermedades8. Aunque su efectividad reclama
de mayores y mejores garantías desde el Estado, autoridades
legitimadas, así como de ciudadanías reflexivas, informadas,

8 En el siglo XIX el término cuarentena asumió impronta marítima,


aplicado como el aislamiento de buques que llegaban de puertos con mala
gloria médica, llevando implícita la idea de un período necesario
de incubación de enfermedades.
63
comprometidas e incidentes. No es sólo una crisis en el
orden económico, también, en la organización política. La
pandemia si bien pone al límite el sistema de salud, además
lo hace con el control social, hasta ahora aceptado por recelo
al contagio, más que por responsabilidad cívica.
El paroxismo capitalista del neoliberalismo
globalizado ha desarmado lo público y lo común, traslapando
asimetrías e individualismos absolutos, mediados por una
hiperconectividad que, si bien, aumenta capacidades de
respuesta, incrementa colapsos de conjunto e instabilidades
en cadena, como ocurre con la actual formación socio-
económica, que encaja al mercado bursátil en la vida
cotidiana. La epidemia del Sars-cov2 muestra los riesgos de
todo esto, por lo que su abordaje rebasa la discusión del
gobierno, el congreso y los parlamentarios. Para promover y
abordar las múltiples dimensiones de la cuestión social, se
requieren debates públicos en que los ciudadanos, se
comprometan con una semántica colectiva, librándose del
etiquetaje de beneficiarios, destinatarios o clientes, lo que
implica, comprender lo político como un espacio
socialmente construido, y que la incidencia de su
intervención se releva promoviendo derechos
fundamentales. Consiste en democratizar la convivencia,
armando puentes para la toma de la palabra, donde los
sujetos concretos rescatan políticas de enunciación que los
ubican en un espacio público de negociación de su lugar en
la configuración de un mundo común-compartido.
En Chile esto se hace ver en las simientes dejadas por
el estallido social del 2019, que se consolidan en el Plebiscito
Nacional por el proceso constituyente del 25 de octubre de
20209. Es un llamado a la reinvención en el ethos de lo público,

9 El estallido social de Chile, cuya elocuencia se hizo sentir el 18 de


64
posible sólo al ejercer la sabiduría ético-política para
recuperar el sentido y la pasión de los asuntos comunes en el
actual espacio sociocultural y científico acuñado por la
pandemia, producto y productor de nuevas subjetividades
que vehiculizan otras demandas sociales. “Es por esta razón
que las justificaciones de las demandas ciudadanas por parte
del poder necesitan de una actualización permanente”
(CAZZANIGA, 2014, p. 56).
Aludimos a exigibilidades que nacen como
consecuencia de intensas contradicciones donde el
Coronavirus se une al incremento de actitudes racistas,
xenofóbicas, misóginas, la precarización del trabajo, dominio
tecnológico, pérdida de identidades, incidencia de redes
sociales y medios de comunicación como formadores de
opinión pública, etc. Hoy, con este caos, vemos que el
Estado opera, más bien, como fábrica de reglamentación de
derechos y deberes individuales, que como promotor de
garantías colectivas.
Nuestros mundos de vida se han vuelto vertiginosos,
las relaciones se miden por la durabilidad de su utilidad y no
por su significado o potencia simbólica, alentando la
fragmentación entre los “ciudadanos” y la construcción de lo
público como Estado. Allí, donde las exigencias de mercados
y los imperativos técnicos, que escapan a todo control
político, entran en una horrorosa colisión con las identidades
y costumbres locales.
Adela Cortina (2013), nos recuerda que en nuestras
sociedades hay un conjunto de temas absolutamente
reprochables, la esclavitud es uno de los más terribles, junto

octubre de 2019, como un llamado a que la dignidad del pueblo se hiciera


costumbre, tras 30 años de codicia disfrazada de opciones de crecimiento.

65
a cualquier forma de discriminación, abuso y violencia que
sostenga la brecha entre amos y esclavos. Atenderlos es
prioridad absoluta, aunque las cortes hagan jurisprudencia, lo
legal es derivativo. Lo fundamental está en la ética, cimiento
de transformaciones políticas influidas por el respeto y
revalorización a la esencia de lo humano.
José Ortega y Gasset (2007) plantea que “mientras el
tigre no puede dejar de ser tigre, no puede destigrarse, el
hombre vive en riesgo permanente de deshumanizarse” (p.
69). Evitarlo es una cuestión de integridad, para hacer
práctica todo aquello que pensamos como bueno y valioso,
maximizando la coherencia entre idea, valor y acción, en
referencia a principios democráticos de igualdad, justicia y
probidad. No olvidemos que el Estado, en sí mismo, cumple
un fin ético. Para Hegel es la más alta expresión de eticidad
ejercida como poder político, territorial y constitucional. “Un
Dios concreto que ha entrado en el mundo” (HEGEL, 2006,
p. 38), mediante instituciones reales e históricas (familia,
sociedad civil, gobierno).
La ética pública promueve el comportamiento
virtuoso del Estado, la concordancia entre declaraciones y
realizaciones de pueblos y gobiernos, para cumplir de forma
óptima las exigencias de la “vida buena” (ALEJANDRO,
2013), un estilo de convivencia honesta y prudente,
comprometida con la frugalidad en el consumo, la
solidaridad con los congéneres y el medio ambiente.
Reinventar lo público recupera el mundo en común que, por
definición, es plural. Allí, emana la libertad como
fundamento de la política pues, con la natalidad, los
ciudadanos acreditan como interlocutores válidos, cuyo
poder se afianza en el intercambio horizontal de discursos,
argumentos y acciones, no en su instrumentalización que
sólo llama a la violencia (ARENDT, 1993). Nos posibilita
66
imaginar la sociedad como algo nuevo, recreándola una y otra
vez, en pro de un futuro más digno.

Reflexiones finales
Desde una visión optimista, Aristóteles establece que
somos seres sociales por la garantía que nos ofrece el
lenguaje, la comunicación y la capacidad de tomar la palabra
para hacer política, es decir, crear y recrear la convivencia
pública, en la construcción de identidad colectiva como
pueblos, países y sociedades. Para eso, es indispensable
promover valores familiares, cívicos y democráticos que
fortalezcan el compromiso por una “vida buena”, en un
presente donde lo social se define por, lo que Rawls (1997)
llama, un principio de “pluralismo razonable”, donde la
diversidad no es requisito de desigualdad.
En tiempos de crisis, eso acrecienta las exigencias de
reformular tradicionales formas de organizar prácticas
políticas y ciudadanas, cultivando capitales relacionales
donde primen las virtudes, asumiendo nuevos modelos de
comprensión al bienestar, no sólo desde medidas de ingreso
y consumo per-cápita o de producto interno bruto. Los
índices tendrían que revisarse en términos de felicidades,
pobrezas y oportunidades, donde se van despertando la
aceptación y no discriminación de diversos géneros y formas
de vida.
Esto no es menor, sobre todo pues el temor a la
infección del virus movilizó dispositivos normativos y
políticos que han fracturado la interacción social. Si bien, es
fundamental la prevención, esas medidas más bien son
estrategias de control y respuesta oportuna que permitan, por
una parte, aplanar la curva de contagio y, por otra, nivelar la
curva de la economía, lo que nos pone el desafío de “mapear”
67
las disonancias entre crecimiento económico y desarrollo
social.
Sin desconocer la recesión económica, salir del
confinamiento ha de responder a otros criterios que cada país
sopese, por idiosincrasias o por capacidad para gestionar
soluciones óptimas. Incluso, la protesta social debe avanzar
en el análisis del contenido de la democracia, reclamando una
ciudadana responsablemente concertada para reinventar lo
público, que es fundamento del Estado, como interlocutor
válido ante la vorágine del mercado.
Comprender lo que el fenómeno deja para nuestra
Latinoamérica, es tarea obligada que viene permeada por
condiciones de contexto. Allí radica la experiencia del límite,
espacios trágicos que debemos traducir para trasformar la
desigualdad social. En ellas subyacen experiencias que están,
necesariamente, mediadas por los lenguajes de la
socialización como por los significados que los sujetos les
otorgan. No descuidemos que “[…] a través del lenguaje
amanece el mundo” (GADAMER, 1998, p. 11).
Por eso, son las preguntas de Nuestra América de
esta segunda década del siglo XXI las que nos han de permitir
encontrar las fallas, faltas y obstáculos en el conjunto de
elementos éticos, políticos y teóricos que le definen y
orientan. Se requiere identificar y trabajar, en serio, sobre los
intereses comunes, en tanto fundamento para construir la
integración política y no sólo diseñar políticas o mecanismos
para el orden social.
Eso será posible si logramos devolver el significado
a la cuestión pública y a la política democrática,
descentralizada, participativa y pluralista, fundada en el
respeto a la dignidad humana y la solidaridad, garantizando
seguridad, bienestar, identidad y libertad a tod@s. Es ahí,

68
“[…] donde la memoria y el saber se ponen en común”
(RICOEUR, 2008, p. 369).
Evitemos miradas ingenuas, queda mucho por hacer
y nada volverá a ser como antes. Debemos estar mejor
preparados, no sólo para interactuar con el virus o enfrentar
futuras epidemias, sino para contribuir a reactivar el
desarrollo sostenible y el bien común, mediado por la
redefinición en la eticidad de nuestras sociedades y la
resignificación de relaciones humanas, institucionales y
ambientales, superando individualismos y mezquindades,
ocuparnos de lo que está en deuda, aquello que carece de
palabra. Hoy, es el momento para revisar el esclavismo del
consumo, romper con esa falta de juicio que impide
comprender que la realización humana no está en el éxito,
sino en rebasar la manutención de necesidades falsas y/o
superfluas, que más bien son prescindibles deseos de placer.
Hemos de asumirnos, de modo voluntario y consciente,
socialmente responsables, a través de una conducta ética y un
principio de integridad que se aprenden involucrando el
pensamiento, el juicio y la emocionalidad (LARRAÑAGA,
2000). Para ello, proponemos recobrar la prudencia crítica, el
acto político del ejercicio de interrogarnos, para desmantelar
la kafkiana maquinaria del mundo contemporáneo, que
nosotros mismos contribuimos a hacer multitarea, agitado y
asfixiante, con un carácter trágicamente absurdo.
Preguntémonos, incansablemente, ¿qué pasará cuando todo
esto acabe?, sabiendo hoy, más que nunca, nuestra fragilidad,
falta de control absoluto y necesidad de los otros.

Referencias
AGAMBEN, G. et al. Sopa de Wuhan. Buenos Aires:
ASPO, 2020.
69
ALEJANDRO, R. Hermenéutica, ciudadanía y esfera
pública. Barcelona: Bellatera, 2013.
ARENDT, H. La Condición Humana. Barcelona: Paidós,
1993.
AUTÈS, M. Les Paradoxes du travail social. Paris:
Dunod, 2013.
BELLES, D; ARBÓS, L. 14 maneras de destruir la
humanidad. Pamplona: Next Door Publishers, 2020.
BINET, L. La séptima función del lenguaje. Santiago de
Chile: Seix Barral, 2017.
BLOCH, E. El Principio Esperanza. Madrid: Trotta,
2007.
BOCCACCIO, G. El Decamerón. Buenos Aires: El
Ateneo, 1960.
BREGMAN, R. Utopía para realistas. Barcelona:
Salamandra, 2017.
CALVO, E, ARUGUETE, N. Fake news, trolls y otros
encantos: cómo funcionan (para bien y para mal) las redes
sociales. Tres Cantos: Siglo XXI, 2020.
CARBALLEDA, A. (2020). La pandemia, el lenguaje de la
guerra y la desigualdad. Revista Margen, n. 97, 2020, p. 1.
CAZZANIGA, S. Cuestiones de legitimidad y
legitimación en Trabajo Social. El caso argentino.
Tesis Doctoral (Facultad de Ciencias Sociales). Rosario:
Universidad Nacional de Rosario, 2014.
CORDERO, N. Trabajo Social y Hermenéutica Crítica: una
opción metodológica para desvelar elementos éticos en los

70
orígenes de la profesión en Sevilla, España. Portularia, v.
9, n. 1, 2011, p. 87 -97.
CORTINA, A. ¿Para qué sirve realmente la ética?
Barcelona: Paidós, 2013.
FERNBACH, P.; SLOMAN, S. Noticias falsas. Fake News.
Infodemia, la mentira como peste. Argentina. In: El Clarín,
Revista Ñ, Buenos Aires, 13 noviembre 2017. Disponible
en: <www.clarin.com>. Aceso en: 15 may. 2020.
GADAMER, H. El Giro Hermenéutico. Salamanca:
Cátedra, 1998.
GIANNINI, H. La “reflexión” cotidiana. Hacia una
arqueología de la experiencia. Santiago de Chile: Editorial
Universidad Diego Portales, 2013.
GOTTLIEB BAUMGARTEN, A. Aesthetica. Alemania.
Edit. Traiecti Cis Vaidrvm, 1758.
HABERMAS, J. Teoría de la Acción Comunicativa:
racionalidad de la acción y racionalización social. Tomo I.
Madrid: Taurus, 2001.
HEGEL, G. El sistema de la Eticidad. Buenos Aires:
Quadrata, 2006.
HEIDEGGER, M. Ontología. Hermenéutica de la
Facticidad. Madrid: Alianza, 2000.
________. Ser y Tiempo. Santiago de Chile: Editorial
Universitaria, 1998.
JONAS, H. El principio de responsabilidad. Barcelona:
Herder, 2014.
KARZ, S. Problematizar el Trabajo Social: definición,
figuras, clínica. Barcelona: Gedisa, 2007.
71
LARRAÑAGA, P. El concepto de responsabilidad.
Ciudad de México: Fontamara, 2000.
MARTIN, M. La construcción de la Identidad en
Trabajo Social. Análisis de una trama hilvanada por sus
personajes. Tesis Doctoral (Facultad de Filosofía y
Humanidades). Madrid: Universidad Complutense de
Madrid, 2013.
ORTEGA Y GASSET, J. Obras Completas, Tomo VII.
Madrid: Taurus, 2007.
RAWLS, J. Teoría de la justicia. Ciudad de México:
Fondo de Cultura Económica, 1997.
RICOEUR, P. El conflicto de las interpretaciones.
Ensayos de Hermenéutica. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2008a.
________. La memoria, la historia, el olvido. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008b.
ROBERTS, M. La larga depresión. Barcelona: El Viejo
Topo, 2016.
ROMANO, C. Lo Posible y el Acontecimiento. Santiado
de Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2008.
STAMPNITZKY, L. Disciplining Terror. How Experts
Invented “Terrorism”, Cambridge: Cambridge University
Press, 2013.
SAUBLETTE, G. La Poética del Acontecer. Santiago de
Chile: Editorial Universitaria, 2007.
VALLÈS, T. La productividad morfológica en un
modelo dinámico basado en el uso y en los usuarios,

72
en Lexic i Neologia. Barcelona: Observatori de Neologia
de la Universitat Pompeu Fabra, 2002.
VATTIMO, G. De la Realidad a la Verdad. Buenos
Aires: Editorial Fedun, 2014.
VOLTAIRE. Cándido o el optimista. Barcelona: Folio,
2011.
YÁÑEZ, V. El potencial de figuras hermenéuticas en
el trabajo social contemporáneo. Modelo de
hermenéutica vacía. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2020.

73
74
CAPÍTULO 3

EFEITOS GEOGRÁFICOS DA PANDEMIA DA


COVID-19 NOS TERRITÓRIOS DOS POVOS
INDÍGENAS NO BRASIL:
Contenção territorial, corpo-território e fronteira

Marcos Mondardo
“O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos
sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É
como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco
para olharmos para o que realmente importa. (...) Em artigo
que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico De
Masi cita a obra profética A peste, de Albert Camus: ‘a peste
pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja
modificado’. (...) Tomara que não voltemos à normalidade,
pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de
milhares de pessoas no mundo inteiro. (...) Seria como se
converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que
devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado
que a humanidade é uma mentira” (Krenak, 2020, p. 42-43).

Introdução
A crise planetária que enfrentamos com a pandemia
é uma crise sistêmica que colocou em uma encruzilhada
civilizatória as promessas modernas de humanização: a
teleologia do crescimento, do progresso, do des-
envolvimento e da racionalidade neoliberal, ou seja, a direção
da modernização. Por isso, o reacionarismo moderno, o
negacionismo reacionarista, demonstra os mundos que não
conseguiram se desapegar dessas promessas.

75
O racionalismo promoveu a ruptura entre homem e
natureza. Essa fragmentação é um princípio para a teleologia
do crescimento, progresso e do des-envolvimento. Os povos
indígenas diante da degradação ambiental decidiram não
embarcar na “canoa furada” do progresso, de “se converter
ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos
seguir nos devorando” como alerta o ambientalista e líder
indígena Ailton Krenak (2020). Os povos originários
decidiram seguir pelas trilhas do envolvimento, como parte
da natureza humana e não-humana e por suas cosmologias
próprias e diferenciadas em que a Terra é a sua mãe.
Em face da doença do mundo, o negacionismo
climático, Latour (2020) propõe que é necessário construir
uma direção terrestre de volta para a casa, que se move em
direção à Terra, mas que também se restringe e se limita à
materialidade da Terra, da singularidade do seu espaço-
tempo, que diz respeito à retomada possível de nossos
vínculos com a Terra, ou seja, um movimento de volta para
a Terra. A casa é a Terra.
Diante desse planeta pandêmico e de degradação
ambiental, o objetivo principal deste texto é fazer uma análise
dos efeitos geográficos da pandemia de Covid-19 nos
territórios dos povos indígenas no Brasil. O Censo do IBGE
de 2010, ainda que defasado, registrou que a população
indígena é composta de 896.917 pessoas, que perfazem 305
povos e falam 274 idiomas; 572.083 residem em áreas rurais
e 324.834 em cidades, o que corresponde a 0,47% da
população total do país.
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)
contabilizava, até o dia 16 de agosto de 2020, 25.415 casos
confirmados da doença e 678 mortes entre indígenas. O
número de povos afetados chegava a 148. A taxa de
mortalidade da Covid-19 entre os indígenas (número de
76
óbitos por 100 mil habitantes) é quatro vezes maior que a
média brasileira. O acompanhamento do avanço da Covid-
19 sobre territórios e povos tem sido realizado pelo Comitê
Nacional pela Vida e Memória Indígena, em um esforço para
o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da
pandemia.
O Boletim Epidemiológico da SESAI (Secretaria
Especial de Saúde Indígena), do Ministério da Saúde
registrou, por meio dos Distritos Sanitários, 19.573 casos
confirmados de contágio em Terras indígenas e 338 óbitos,
de acordo com os dados atualizados em até o dia 15 de
agosto de 2020. A região norte é que registra o maior
número de casos. O estado do Amazonas foi o primeiro a ter
a confirmação de indígenas contaminados e atualmente
concentra o maior número de mortes entre indígenas. A
Apib chama a atenção para o “fato da SESAI ser um dos
principais vetores de expansão da doença dentro dos
territórios indígenas, alcançando a região com maior número
de povos isolados do mundo: o Vale do Javari”. Essa
discrepância de dados, à escala regional e nacional, evidencia
a negligência do Estado brasileiro com relação à saúde
indígena e o combate à pandemia.
Os idosos são os que mais morrem com o novo
coronavírus (Sars-CoV-2). Com isso extingue-se liberanças
políticas e religiosas, bibliotecas vivas de culturas nativas
seculares, de memórias, mitos, línguas e história indígena.
Assim, a pandemia tem acentuado a situação de
vulnerabilidade dos territórios diante da Covid-19.
As questões indígenas, de ordem geográfica, estão
envolvidas na atual crise planetária e sanitária provocada pela
pandemia da Covid-19. Na América Latina e,
particularmente, no Brasil, povos e comunidades tradicionais
são os mais atingidos – a exemplo dos indígenas e
77
quilombolas. Essa situação é fundamental para verificar as
categorias geográficas devido ao que está acontecendo em
um mundo pandêmico. As reconfigurações territoriais – o
território e os processos de desreterritorialização – nunca
foram tão evidentes e relevantes para os povos indígenas no
combate à expansão e proliferação do vírus. Portanto, nosso
objetivo neste texto é esboçar algumas reflexões geográficas
sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, evidenciando
não “só” a importância do espaço como esfera/condição da
multiplicidade (MASSEY, 2005) para entender o processo,
mas como ele também requer a reelaboração dos conceitos
para entender a complexidade atual, suas tendências,
perspectivas e desafios.
O tema do “isolamento social” e medidas de
contenção/confinamento se tornaram centrais em muitas
discussões que envolvem a pandemia. Essa problemática esta
associada à discussão da dimensão biopolítica da sociedade
“de segurança” (FOUCAULT, 2004) ou de “controle”
(DELEUZE, 1992) que vivemos, ainda mais de forma
acentuada, em tempos de Pandemia, mesmo que retomando
características da sociedade disciplinar – como o
confinamento – em um mundo estruturado pela distância.
Nos jornais, nos discursos e práticas dos epidemiologistas e
em parte dos governos, a defesa da vida nem sempre é
prioridade para, por exemplo, a existência de povos
indígenas em seus territórios tradicionais. Com a proliferação
de uma política de exceção por parte do atual governo essas
populações tradicionais tornaram-se ainda mais vulneráveis.
No Brasil, no entanto, essas terras e territórios
indígenas, historicamente tratados pelo Estado como
periferias, reivindicam atualmente por meio de uma agenda
de luta o seu lugar como centro ontológico e epistêmico.
Mesmo com a acentuação da violência, dos conflitos, dos
78
retrocessos democráticos (GUAJAJARA, 2020) e o quadro
pandêmico, os indígenas estão se organizando e adotando
novas estratégias de luta, articuladas às múltiplas escalas
espaciais, e fazendo frente para combater a proliferação do
vírus nas terras e territórios indígenas. Nessa luta são
fundamentais – mas não somente – as barreiras sanitárias
indígenas para a sobrevivência dos povos e para defesa e
proteção dos territórios.
É diante desse contexto que este texto evoca o
“território como categoria da prática” (HAESBAERT, 2018)
e dispositivo de resistência das múltiplas territorialidades
indígenas (MONDARDO, 2019; 2020). Partimos da
Geografia para debater como as ferramentas de análise e as
práticas espaciais podem se tornar armas de luta para
combater a desigualdade alvitante e para fazer justiça social
como propõe Fraser (2008) para o reconhecimento das
minorias étnicas e de redistribuição-demarcação das terras.
Ao longo desse percurso de pesquisa, fomos buscando nos
atualizar no debate em torno das populações indígenas
vulneráveis diante da pandemia da Covid-19, seus territórios
e territorialidades ancestrais, em diferentes condições de r-
existência (resistir para existir), sejam em reservas, aldeias,
terras, acampamentos e bairros periféricos das cidades
brasileiras.

Profecias indígenas, agronegócio e pandemia

Desde a sua cosmologia, os Guarani e Kaiowá


afirmam que antigamente não existiam doenças
caracterizadas como epidemias e pandemias. No entanto, os
nhanderu e nhandesy (xamãs, lideranças religiosas) narram que
no contanto com os karai (não indígenas) essas doenças
(mba’asy) passaram a ser disseminadas. Os xamãs, por meio
79
da sua cosmovisão, já profetizavam a proliferação de doenças
que chegariam aos povos indígenas como esta oriunda da
pandemia de Covid-19 dos karai. Segundo essa perspectiva,
os karai ao desmatarem a floresta, ao contaminarem os rios,
as plantas e os animais com agrotóxicos, agridem a mãe Terra
e acabam trazendo doenças graves como a Covid-19.
Os Guarani e Kaiowá tem utilizado a palavra nativa
mba'etirõ para designar a propagação e contágio de doenças
oriundas dos karai (não indígenas). Esses povos narram que
no início da colonização, quando se depararam com novas
doenças trazidas pelos portugueses, traduziram esse
momento terrível de mortes de seus parentes como mba'etirõ.
O mba'etirõ traduz para esses povos o momento de contágio
dos corpos indígenas pelos vetores de infecção e
disseminação de vírus.
A nota emergencial elaborada pelas organizações de
base Guarani e Kaiowá, logo após a propagação da pandemia
no Brasil, reitera que “são 520 anos de massacres e doenças
que a violenta experiência de colonização nos trouxe” (ATY
GUASU et al., 2020, online). O ambientalista e líder indígena
Ailton Krenak (2019), nessa mesma direção, afirma que
desde o século XVI com a colonização do Brasil pelos
europeus vários segmentos humanos e não-humanos foram
mortos e tirados de cena por epidemias, pobreza, fome e
violência dirigida. Assim:
Já que se pretende olhar aqui o Antropoceno como o evento
que pôs em contato mundos capturados para esse núcleo
preexistente de civilizados – no ciclo das navegações,
quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a
América -, é importante lembrar que grande parte daqueles
mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação de
eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro
entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da
população desaparecesse por um fenômeno que depois se

80
chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares
de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia
tropical largava um rastro de morte por onde passava. O
indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma
guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo;
tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para
os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do
mundo foi o século XVI. Não estou liberando a
responsabilidade e a gravidade de toda a máquina que
moveu as conquistas coloniais, estou chamando a atenção
para o fato de que muitos eventos que aconteceram foram
o desastre daquele tempo. Assim como nós estamos hoje
vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas
pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está
chamando de caos social, desgoverno geral, perda de
qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos
jogados neste abismo. (KRENAK, 2019, p. 34).

O xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo


francês Bruce Albert (2015) produziram um livro com
potência transformadora – “A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami” – por meio de uma gramática simétrica.10
Kopenawa (2015) já alertava em sua profecia que o céu
poderia cair sobre suas cabeças se desmatarem a sua terra,
seu corpo pode adoecer, os animais podem adoecer e morrer.
Em tempos de pandemia da covid-19, vale lembrar como o
xamã narra como sua mãe morreu de epidemia de sarampo
levada pelos missionários das novas tribos do Brasil, e como
estes sepultaram o cadáver a revelia, em um lugar até hoje
desconhecido para a família:
10A potência do livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”
está em demonstrar que a queda do céu é a destruição das perspectivas,
das cosmologias, pelas doenças, intolerância, autoritarismo e
mandonismo do capitalismo tropical em sua versão mercadológica
neoliberal. Esta Terra deve ser compartilhada por diferentes culturas,
povos e suas cosmovisões. Uma Terra de mundos de diversidade.
81
Depois de meu tio, foi minha mãe que a epidemia devorou.
Começou arder em febre. Ainda era jovem e muito forte.
No entanto, morreu em alguns dias. Aconteceu tão de
repente que nem pude cuidar dela. Eu mesmo estava em
estado de fantasma, e não a vi morrer. Ainda hoje me
recordo disso com uma grande dor. Os missionários,
poupados por sua própria epidemia, puseram minha mãe na
terra à minha revelia, em algum lugar perto da missão
Toototobi. Minha mãe mais velha e nossos demais parentes
também estavam muito doentes. Meu padrastro agonizava.
Nenhum de nós pôde impedi-los. Enterraram do mesmo
modo de muitos dos nossos. Eu soube disso bem mais
tarde, depois de ficar curado. Mas nunca consegui saber
onde minha mãe tinha sido sepultada. O pessoal de Teosi
nunca disse, para nos impedir de recuperar as ossadas. Por
causa deles, nunca pude chorar minha mãe como faziam
nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim. Causou um
sofrimento muito profundo, e a raiva dessa morte fica em
mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá
fim quando eu mesmo acabar. (...) Os mortos ficam tristes
por nos terem abandonado na terra, sozinhos, como fome
e ameaçados pelos seres maléficos. Por isso, minha mágoa é
um pouco aplacada quando penso que minha mãe vive na
floresta dos fantasmas, na companhia de todos os nossos
parentes falecidos. É verdade. Somos nós, os poucos
humanos que sobraram, que ficamos sofrendo na floresta,
longe de nossos mortos (KOPENAWA, 2015, p. 267-68).

O líder Yanomami Davi Kopenawa (2015) afirmou


que se os pajés (xamãs) partirem, o mundo não pode ser
esvaziado de sua espiritualidade ameríndia (mitológica), e o
céu pode cair sobre as nossas cabeças. Os pajés e as profecias
demonstram a necessidade de um planeta com menos
intolerância. Uma terra com vários mundos, com muitos
xamãs. A relação entre cultura e ontologia é fundamental
para imaginar outros espaços, territórios e territorialidades
reelaborados sem a separação abissal entre cultura e natureza.
82
Cultura é natureza. Cultura é política. “O que uns chamam
de ‘natureza pode bem ser a ‘cultura’ dos outros”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 361).
No Brasil contemporâneo o agronegócio como
modo de produção hegemônico tem sido associado à
proliferação de doenças, da degradação dos habitats, da
criação de ambientes patógenos e de pandemias como a da
Covid-19. Assim, essa “espoliação da natureza” (HARVEY,
2004) destrói os habitats de humanos e não-humanos,
indígenas, dentre outras formas de vida.
Para o filogeógrafo e biólogo evolucionista
estadunidense Rob Wallace (2020), os novos vírus que
colocam em xeque a vida no planeta com epidemias e
pandemias são uma criação dos seres humanos. Esses novos
vírus, ao invés da criação em laboratórios ou produzidos em
meio uma guerra biológica como tem sido propalada de
forma controvérsia a origem do novo coronavírus (Sars-
CoV-2), são resultado da forma como passamos a criar
animais em grande escala para consumo, nas últimas décadas,
em granjas repletas que tornaram ambientes favoráveis para
mutações virais. Assim:
Desde a década de 1970, a produção pecuária intensiva se
espalhou pelo planeta a partir de suas origens nos Estados
Unidos. Nosso mundo está cercado por cidades de
monoprodução de milhões de porcos e aves apinhados lado
a lado, em uma ecologia quase perfeita para a evolução de
várias cepas virulentas de influenza (WALLACE, 2020, p.
20).

A monocultura dos animais criados em espaços cada


vez mais restritos, demonstra que o confinamento de aves,
porcos e vacas, por exemplo, produzem aglomerações
propicias para a geração de novos micro-organismos. Esses

83
novos patógenos são fruto de mutações e de contágios
oriundos da forma de criação destes animais.
Por isso, segundo Wallace (2020), existe uma relação
direta entre pandemia e agronegócio. O autor afirma que as
origens da Sars, da gripe aviária e da gripe suína, é resultado
da maneira que os seres humanos modificaram criação de
animais para abate. Esses vírus pandêmicos das últimas
décadas não são “infortúnios da natureza”, mas, sim, micro-
organismos reais e letais, e produzidos nas áreas consideradas
biosseguras de operações agroindustriais de monocultivo
genético. Para atender ao imperativo da produtividade essa
forma produção de animais levará humanidade a se defrontar
com formas de vírus cada vez mais mortais. Por isso, é
fundamental fazer uma crítica radical ao modo de produção
capitalista aplicado às atividades agropecuárias que são
estimuladas por governos necropolíticos que acentuam a
vulnerabilidade de comunidades tradicionais como os povos
indígenas.

Governo necropolítico e a acentuação da


vulnerabilidade territorial dos povos indígenas na
pandemia

Nesse mundo pandêmico os povos indígenas


tornaram-se ainda mais vulneráveis pela precariedade de suas
condições materiais de vida, da acentuação dos conflitos e
ataques aos seus territórios. Lideranças, organizações e
estudiosos dos direitos humanos afirmam que o que se
verifica é um projeto genocida em curso. O governo
brasileiro incentiva e favorece as medidas liberais em favor
do agronegócio, da mineração e do desmatamento,
expropriando os povos indígenas das suas terras. Essa
ofensiva ameaça os territórios, direitos e saberes em nome
84
do neodesenvolvimento para fazer avançar o
neoextrativismo (SVAMPA, 2019). Isso tem contribuído
fortemente para o aumento dos conflitos e confrontos
territoriais, a especulação financeira com a terra e diante do
quadro de pandemia tem desencadeado a fome nos
territórios.
Devido à necropolítica, isto é, política da morte
(MBEMBE, 2011), anti-indigenista e anti-ambiental
praticada pelo atual governo, não é surpresa a omissão e a
negligência do poder público federal no que compete a
proteção das minorias étnicas, a exemplo das populações
originárias contra a pandemia da Covid-19. A propagação
viral se alastra rapidamente pelos territórios, tendo afetado
148 povos até o dia 16 de agosto de 2020, e vitimado
lideranças importantes, como o cacique Aritana Yaualapiti,
referência no Alto Xingu, no estado de Mato Grosso.
O Estado, diante da pandemia, tem reagido
notadamente para reforçar o projeto neoliberal em curso, em
especial na questão territorial. Como afirmou o antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro (2020, p. 1) “no Brasil o Estado
é aliado da pandemia” e o que vem acontecendo “é
genocídio: genocídio por negligência ou incompetência para
alguns responsáveis, mas um genocídio deliberado para os
outros”. “A epidemia vai ter o mesmo efeito que uma
limpeza étnica para aqueles que dependem da assistência
pública”.
Assim, em detrimento ao cuidado da vida, o Estado
tem priorizado o capital. O Estado tem privilegiado a
propriedade privada e a exploração dos recursos naturais dos
territórios tradicionais em nome da economia neoliberal.
Com isso ocorre o avanço do capital sobre os territórios
originários no Brasil, ainda, hoje, os mais preservados e que
tem contribuído para o combate ao aquecimento global. No
85
caso brasileiro, isso é um projeto escancarado de espoliação
desses territórios. Os discursos do governo brasileiro
carregam agressões, palavras de ordem e escaram o projeto
de exploração neoliberal.
Nesse contexto, aqueles que levam adiante os ataques
aos povos e comunidades tradicionais fazem parte dessa
sociedade patológica, do desempenho (HAN, 2007), e do
projeto neoliberal de espoliação dos territórios (HARVEY,
2004). O Estado reforça esse projeto e age por meio de
dispositivos no executivo, no legislativo e no judiciário,
composto pelas bancadas ruralista, evangélica e da
armamentista, que hoje formam um bloco majoritário. No
legislativo (na Câmara dos Deputados), pressionam para
passar em caráter de urgência o PL da Grilagem, como tem
sido chamado o PL 2633. Os ataques impõem ameaças de
desterritorialização (de expulsão, de saque e expropriação)
desses povos e comunidades tradicionais que, durante a
pandemia, torna-se muito mais ameaçador.
O que se verifica é um projeto genocida em curso. O
Estado incentiva e favorece as medidas liberais em favor do
agronegócio, das mineradoras, das propriedades rentistas,
expropriando os povos e as comunidades tradicionais dos
seus territórios. Essa ofensiva ameaça os territórios, direitos
e saberes em nome do neodesenvolvimentismo para fazer
avançar o neoextrativismo. Isso tem contribuído fortemente
para o aumento do desmatamento, o aumento dos conflitos
e confrontos socioambientais, a especulação financeira com
a terra e diante do quadro de pandemia tem desencadeado a
fome nos territórios.
A destruição dos territórios tradicionais tem sido
oportuna ou oportunista diante desse projeto genocida de
governo que estamos vivenciando. Os ataques aos territórios
tradicionais são fundados em ataques patológicos que
86
incitam a violência contra as minorias, contra outras formas
de vida, contra outras maneiras de compreensão do Outro e
do mundo, tendo como pano de fundo a lógica de
exploração dos recursos naturais como a terra, a água, a
madeira, o minério, dentre outros, e da expansão sobre
territórios indígenas e de comunidades tradicionais do
agronegócio.
Na esteira desse processo e diante do confinamento
imposto pela pandemia, territórios tradicionais apresentam
situação famélica. Muitos povos indígenas e comunidades
quilombolas lançaram campanhas para combater a fome nos
territórios. Esse tempo de pandemia nos traz a lição da
necessidade de fortalecer a segurança e soberania alimentar
dos povos e comunidades tradicionais que estão
particularmente comprometidas. Por isso, é importante
reforçar as bases locais e regionais, incentivar a agroecologia,
construir alianças e redes de solidariedade tendo em vista que
se projeta no horizonte próximo uma crise econômica dura
e perversa.
Muitas ações de solidariedade vêm sendo realizadas
durante a pandemia com a entrega de cestas básicas, por
exemplo, mas é preciso avançar mais por meio de práticas
autonomistas com relação à comida nos territórios. Assim,
muitos territórios têm grande preocupação com a fome, com
a entrada do vírus nas comunidades, com a questão da luta
por terras e todas as formas de violências que sofrem, como
o aumento do racismo e ódio contra esses os povos
tradicionais, da perseguição e assassinatos de lideranças
indígenas.
Apesar da suspensão temporária dos despejos pelo
judiciário durante a pandemia, há um fortalecimento dessa
lógica de expropriação da iniciativa privada liderada pelas
empresas do agronegócio. Os ataques fazem o projeto
87
neoliberal avançar contra os territórios tradicionais e seus
“recursos” naturais. A Amazônia volta a ser uma questão
nacional dentro do território brasileiro devido o ataque aos
territórios tradicionais pela insaciabilidade/fome de recursos
naturais como o ouro, a madeira, a água, a terra, dentre
outros.
Então, diante dos ataques das políticas genocidas do
Estado e do contexto de pandemia é importante destacar
uma nova estratégia de luta adotada com a realização da 16ª
edição do Acampamento Terra livre online, no período de
27 a 30 de abril de 2020, organizado pela Apib. Foram
transmitidos encontros, reuniões, pajelança, cantos, danças
tradicionais, mostra de filmes e debates. O evento visou à
proteção dos povos indígenas, uma vez que a grande mídia
não mostra a situação de vulnerabilidade territorial dos
mesmos no contexto pandêmico. Esses povos estão fazendo
uso das novas tecnologias para criar redes sociais e demarcar
as telas. Frente à negligência do Estado brasileiro, os
indígenas estão construindo, virtualmente, redes de
colaboração e de visibilidade, fazendo denúncias e trazendo
as pessoas para um olhar de solidariedade, de ajuda e de
diálogo. Esses eventuais virtuais devem ser uma tendência
cada vez mais presente para a defesa e proteção dos
territórios indígenas.

Proteção territorial (autodefesa) dos povos indígenas:


entre o fechamento/abertura e a contenção/barreira
sanitária
Para Haesbaert (2014) a contenção territorial é
definida como a condição socioeconômica em que grupos
subalternos, a exemplo dos povos indígenas, são forçados a
viver no limite, ao se tornarem os territórios mais vulneráveis
88
da cidade, em periferias distantes, nas aldeias, com
infraestrutura insuficiente e acesso a bens e serviços de
precários. A pandemia fez com que esses grupos periféricos
fossem contidos como potenciais transmissores do vírus.
Por sua vez, os grupos subalternos, a exemplo dos
povos indígenas e comunidades quilombolas, passaram a
construir suas próprias lógicas territoriais de contenção,
orientadas pelas cosmologias e ancestralidades, para
subverter a ideia de contenção do subalterno pelo
hegemônico. Com a pandemia, grupos minoritários
passaram a construir lógicas ancestrais de autocontenção em
seus territórios tradicionais para que possam ter as
condições, mesmo que mínimas, para o distanciamento ou
isolamento social.
No Brasil, devido à omissão e negligência do Estado,
os indígenas promoveram medidas de contenção das terras
indígenas, capitaneadas pelas organizações regionais e
nacionais indígenas – a exemplo da Apib e da Kuñague Aty
Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá).
As barreiras sanitárias indígenas, em maior ou menor grau,
são destinadas ao controle da mobilidade, principalmente,
externa às terras tradicionais, bem como da proteção do
corpo-território11 (HAESBAERT, 2020), deve ser protegido
na sua dupla acepção, enquanto fechamento dos territórios
indígenas, bem como do controle da circulação dos corpos,
no sentido da i-mobilidade dos fluxos das aldeias. É evidente
que este território de corpos nunca é dissociado da proteção
territorial (das terras e territórios) e de outras escalas espaciais

11 Dentro das principais contribuições feministas decoloniais latino-


americanas, podemos citar Barnsley (2006), Cabnal (2010), e da sua
leitura geográfica, a “geopolítica do útero” (ZARAGOCIN, 2018) e o
“território-corpo” (HAESBAERT, 2020).
89
mais amplas de articulação e alianças políticas, como as
cidades, estados da federação e áreas transfronteiriças
internacionais.
Essa contenção territorial das terras indígenas criadas
por barreiras sanitárias é, no entanto, um fechamento
temporário e em alguns casos, precário, devido à ação de não
indígenas, de mineradoras no garimpo ilegal, de madeireiros
no desmatamento ilegal, isto é, da invasão das terras
indígenas como vêm acontecendo na Amazônia brasileira, a
exemplo da maior terra indígena no Brasil, a Terra Indígena
Yanomani, na fronteira Brasil-Venezuela.
Em outras regiões brasileiras, como o Centro-Oeste,
nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul a
proximidade das terras indígenas com cidades, áreas urbanas,
rodovias e vias de acesso, a fronteira com o Paraguai e
Bolívia, demonstra que nesse efeito barreira sanitária sempre
há uma forma de atravessar para entrar, para contornar, para
transgredir esses limites por meio de fluxos pessoas e/ou
mercadorias promovidas por não indígenas. No Brasil, os
eixos de infecção ocorrem por rodovias e rios. Os modais de
transporte se transformaram em vetores de um vírus
biológico brutal para as comunidades e que é ainda mais letal
aos anciãos. Levadas por caminhões ou em barcos, a Covid-
19 infecta etnias nas mais diversas regiões brasileiras.
A pandemia demonstra, assim, a complexidade dos
territórios indígenas atualmente que, mesmo sendo ilhas no
ordenamento territorial do país – “as Terras Indígenas
ocupam 13% do território nacional e abrigam mais de meio
milhão de pessoas. A maior parte está localizada na
Amazônia” (MONDARDO, 2019, p. 19) –, não são
“completamente” isoladas em relação à sociedade. Vide
também os exemplos dos indígenas que precisam sair das
suas aldeias para irem à busca do auxílio emergencial do
90
governo nas cidades, bem como das equipes médicas da
SESAI, ou de outros órgãos do Estado, como a FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), que precisam entrar nas terras
tradicionais e acabam levando o vírus.
A pandemia impõe para a proteção territorial dos
povos indígenas este jogo entre fechamento/abertura e
contenção/barreira sanitária das terras nas mais diversas
escalas espaciais. Os territórios passaram a ter que controlar
muito mais a circulação dos corpos indígenas e não indígenas
com o efeito barreira sanitária do tipo zonal de fechamento,
mas, ao mesmo tempo, esses grupos estão tendo que lidar
com ou fluxos local, regional e nacional (MONDARDO,
2020), ou os circuitos globalizados de mercadorias – 0o
“imperativo da fluidez”, como afirmava Milton Santos
(1996) –, e de pessoas não indígenas em rodovias (como
naquelas que servem ao agronegócio), rios, áreas de acesso
ou cidades próximas, além de invasores. Isso fez com que o
modo de vida comunitário tivesse que ser, em certo sentido,
reconfigurado dentro de áreas ou zonas, como das terras
indígenas que tentam fazer o controle, com dificuldade
crescente, da proliferação do vírus. Por isso, quanto mais
entradas ou vias de acesso uma terra indígena tem ligadas às
áreas urbanas e rodovias, por exemplo, maior a dificuldade
do controle da mobilidade dos corpos e proteção territorial.
Quando uma entrada do território é identificada
como forma de proliferação do vírus, o bloqueio parcial e
temporário da terra indígena deve ser realizado. Quanto mais
portas de entrada, maior a dificuldade do controle. Por isso
a importância do controle geográfico focal em terras
indígenas. É assim que os próprios indígenas têm realizado
esforços para conter a proliferação do vírus. Para os povos
tradicionais a tendência é de uma tentativa de retornar ao
controle territorial zonal das terras, que tinha sido imposto,
91
em alguns casos, pela sociedade não indígena, mas que agora,
para combater a disseminação de coronavírus, é feita pelos
próprios indígenas, no sentido que adquire agora de uma
contenção feita de baixo e para os de baixo, pelas minorias
étnicas como forma de defesa, proteção e cuidado. Os
indígenas optaram ou foram obrigados a fazer o controle
zonal de algumas fronteiras dos seus territórios, impondo a
quarentena e isolando, inclusive, os contaminados em suas
terras indígenas.
Um fator decisivo para os povos e comunidades
tradicionais tem sido as organizações indígenas, além de
ONGs e movimentos sociais aliados, para viabilizar e manter
as barreiras sanitárias nas terras indígenas, seja por meio da
distribuição de EPI (Equipamentos de Proteção Individual)
como máscaras, luvas e roupas, kits de proteção, dentre
outros, seja para a vigilância da entrada de não indígenas com
o papel fundamental das lideranças e de equipes baseadas em
comitês de áreas que monitoram as entradas e saídas com
pequenos grupos de famílias.12 O baixo ou inócuo número
de testes para identificação para a detecção e isolamento dos
portadores assintomáticos, por exemplo, é decisivo. Além
disso, a necessidade de i-mobilidade da territorialidade em
relação à contenção e distanciamento social para povos que

12No estado do Mato Grosso do Sul, segundo Aty Guasu et al. (2020, p.
1) e o “Plano da equipe Aty Guasu Guarani e Kaiowá diante do avanço
da Covid-19 e ordem de isolamento social”, “em cada barreira sanitária é
envolvida uma equipe voluntária indígena, composta por 15 indígenas
atuando em 3 turnos, no período matutino, vespertino e noturno. Essa
barreira sanitária indígena não recebeu apoio dos órgáos dos municípios,
do Estado e dos órgãos Federal”. É imprescindível assinalar o
protagonismo das mulheres Kaiowá e Guarani na atuação das barreiras
sanitárias e dos jovens que fortaleceram os cuidados com os anciões.

92
tem um modo-espaço de vida comunitário, com famílias
compartilhando o mesmo território, com moradias com
várias pessoas e que bebiam tereré como os Guarani, Kaiowá
e Terena do Mato Grosso do Sul, é a prova de um dos
obstáculos internos à disseminação vírus. A dinâmica de
fechamento/abertura e contenção/barreira, associada à
organização sociopolítica interna dos povos, nunca foi tão
importante para a proteção territorial do ataque severo do
vírus.
A partir das medidas tomadas pelos povos indígenas,
pode-se ver o quanto mais difícil é implementar o controle
territorial com rigidez ou eficácia para os territórios indígenas
em um país periférico (onde a pandemia parece ainda não ter
atingido o seu auge), no contexto latino-americano, de
retrocesso democrático, da acentuação da violência e de crise
sanitária, a luta por direitos, a defesa e a vigilância dos
territórios tradicionais é fundamental.
No caminho geográfico da pandemia pelo mundo,
desde a China, na Ásia, o vírus percorreu e afetou primeiro
os centros econômicos europeu e norte-americano, depois
proliferou pelas periferias, chegando à América Latina e a
África. Essa expansão ocorreu pela rota da globalização,
demonstrando a interdependência das relações, e foi
homogeneizando (e ao mesmo tempo diferenciando) os
espaços pela doença, pelo poder do vírus de matar e não
obviamente pela cura.
O dilema imposto pela pandemia não é novo para a
continuidade dos seres humanos no planeta. É o mesmo
impasse há décadas evidenciado (e negado) pela emergência
climática. Não é a toa que as áreas de desmatamento, de
agronegócio, de agroquímicos – que fazem parte dessa
economia de destruição predatória da Terra – são as

93
possíveis responsáveis da origem destes vírus como o da
Covid-19.
Uma característica primária desta pandemia, que tem
uma importante conotação geográfica, é que, ao se propagar
da China, ela começa no topo da pirâmide socioeconômica,
desde as classes mais abastadas até as classes menos
favorecidas. No caso dos povos indígenas a contaminação
nas aldeias começou muitas vezes em frigoríficos,
abatedouros, usinas sucroalcooleiras e mineradoras.
Ao olhar o mapa do Brasil da propagação da
pandemia em áreas periféricas, como as terras indígenas,
verifica-se que o coronavírus foi levado pela rede urbana e
afetou inicialmente as metrópoles brasileiras (os bairros mais
ricos), onde chegaram os turistas e/ou viajantes
internacionais, os primeiros portadores do vírus, e depois foi
se disseminando para as cidades médias até chegar as
pequenas. Consequentemente, ao chegar às cidades médias e
pequenas, onde estão em grande medida, às terras indígenas
brasileiras, o vírus começou a atingir os territórios ancestrais.
A grande questão é que esse vírus chegou primeiro nos
bairros mais ricos nas cidades, no comércio e na
agroindústria, o que evidencia que às estratégias espaciais de
controle dos territórios indígenas pela contenção/barreiras
sanitárias é um fenômeno complexo na realidade periférica e
colonial de um dos países mais desiguais da América Latina
e do planeta.
Foi assim que a pandemia chegou até os territórios
indígenas. No Mato Grosso do Sul o primeiro caso de
contágio de indígena por Covid-19 parece ser sintomático de
uma sociedade espacialmente desigual: uma mulher indígena
de 35 anos que trabalha em um frigorífico, moradora da
aldeia Bororó, no município de Dourados, foi o primeiro
caso confirmado no dia 13 de maio de 2020. Os dez
94
primeiros casos de contaminação pela Covid-19 na Reserva
Indígena de Dourados vieram de um frigorífico na cidade, de
acordo com liderança Guarani da aldeia Bororó. Os
indígenas contaminados, que transitaram pela aldeia Bororó
em seus horários de folga, trabalham no frigorífico e
começaram a apresentar os sintomas iniciais na primeira
semana de maio. Eles foram testados pela empresa e
obtiveram a confirmação do contágio. Embora os
trabalhadores tenham sido testados pela empresa, seus
familiares não foram. Frigoríficos, abatedouros, usinas
sucroalcooleiras e mineradoras, por exemplo, não
paralisaram as suas atividades de produção durante a
pandemia e tornaram-se espaços de transmissão do novo
coronavírus para trabalhadores indígenas e não indígenas.
Nessa situação distópica que é pandemia, os mais
afligidos são, paradoxalmente, os que mais precisam se
fortalecer com ela. E isso ocorre porque a catástrofe é vista
quase como inevitável pela vulnerabilidade destes povos e
comunidades tradicionais diante de um governo genocida.
Povos indígenas no Brasil estão sendo injustamente os mais
vulneráveis. Diante deste contexto é difícil acreditar que
teremos transformações substanciais no futuro pós-
pandemia, mesmo porque no Brasil às pretensões eleitorais
têm acentuado as mediadas neoliberais de diminuição de
direitos, de espoliação de territórios e rentistas com a terra.
Por sua vez, os povos indígenas e movimentos
sociais, através de suas organizações, criticam as políticas de
austeridade e propõem a necessidade de um retorno ao
Estado social. E isso se justifica num país com altas taxas de
desemprego, pobreza extrema e a precariedade do
atendimento médico hospitalar público – embora nunca foi
tão significativo defender o SUS (Sistema Único de Saúde).
É importante lembrar que uma das primeiras medidas do
95
atual governo, ao assumir o poder, foi o de desmantelar um
programa completo de atendimento médico (Médicos sem
fronteiras), e as tentativas de municipalização da SESAI,
políticas públicas fundamentais para as populações mais
vulneráveis – os povos originários. Por isso esses povos
lutam na justiça para que o Estado implemente um Plano
emergencial para a defesa da vida dos indígenas.
As organizações indígenas em múltiplas escalas
nacionais têm atuado para as medidas de autocontenção
territorial, como o impedimento do acesso às aldeias por
meio das barreiras sanitárias, com todas as dificuldades da
proximidade com cidades, rodovias, rios, dentre outras vias
de acesso ou de abertura a esses territórios originários.
Alguns grupos mais vulneráveis, como os povos isolados na
Amazônia, que só têm seus corpos como um território a ser
defendido, um espaço sobre o qual eles ainda tentam manter
algum controle, já que missionários fundamentalistas e o
atual governo querem estabelecer contato, acentuando o
risco de contágio e extermínio de parcelas que não tem
nenhuma imunidade à Covid-19. Essa ofensiva para os
povos isolados pode impor um triste e perverso destino
diante de um vírus biológico agressivo. Assim, para os povos
indígenas é praticamente impossível fechar completamente
suas aldeias para controlar as entradas quando não há sequer
água e sabão suficientes para a higiene pessoal, como é o caso
de muitas aldeias dos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do
Sul. Além disso, nesse caminho geográfico, o novo
coronavírus (Sars-CoV-2) afeta também a vida e os
territórios dos povos indígenas transfronteiriços.

96
Povos indígenas transfronteiriços e a pandemia de
Covid-19
No Brasil, ao longo dos 16.886 quilômetros da
fronteira internacional, há uma grande variedade de situações
de território e territorialidades que envolvem indígenas
transfronteiriços. Não se trata simplesmente de indígenas
que residem perto ou na fronteira, mas de populações que
transitam constantemente e cruzam esses limites político-
administrativos do Estado-nação, a exemplo dos Guarani e
Kaiowá na fronteira do Brasil com o Paraguai.
Durante a pandemia esse “ir e vir ou trânsito”13
(MONDARDO, 2018) tornou-se mais complexo na medida
em que os Estados na América latina – embora, alguns, de
forma tardia em relação aos países europeus, norte-
americanos e asiáticos –, fecharam as fronteiras terrestres e
aéreas como de controle dos fluxos de pessoas e, em menor
grau, de mercadorias. A retomada do poder soberano para o
fechamento das fronteiras política e administrativa dos
Estados-nacionais tornou-se um dispositivo para o controle
zonal da difusão da pandemia no mundo e na América
Latina.
No entanto, o mecanismo da fronteira fechada não
tem garantido aos Estados uma eficácia no combate à Covid-
19. Isso porque muitas populações transitam pelos limites
internacionais, como os moradores de cidades gêmeas (os

13 Como afirmamos em Mondardo (2018, p. 325), “este ir e vir ou trânsito


entre diferentes territórios é uma característica de certas territorialidades
na zona de fronteira, o que possibilita, por meio de redes de articulação,
a construção de uma multi ou, em alguns casos, até de
transterritorialidade pelo ‘jogar’ [simultâneo e/ou sucessivo] com os dois
lados. Essa relação transfronteiriça possibilita obter vantagens e/ou
benefícios econômicos, políticos e culturais”.
97
chamados trabalhadores essenciais) e os povos indígenas
transfronteiriços.
Por isso, num mundo globalizado, interdependente e
agora pandêmico, existem implicações desse
refortalecimento da fronteira fechada. É imprescindível que
sejam construídas políticas públicas, ações conjuntas e
articuladas entre Estados, Ministérios da Saúde e da Justiça,
organizações indígenas (compostas por indígenas),
indigenistas (focada no cuidado dos povos indígenas) e
organizações aliadas para que estratégias de alcance regional
na América Latina sejam efetuadas no combate a Covid-19.
A cooperação internacional na região transfronteiriça
brasileiro-latino-americana deve ser uma ferramenta
fundamental para construir ações coordenadas entre os
países para além da fronteira zonal do tipo fechada. Diante
de um contexto de emergência sanitária, áreas e/ou
corredores para indígenas transfronteriços, moradores e
trabalhadores essenciais de cidades gêmeas, podem se
configurar como estratégias reticulares efetivas para a
proteção territorial de populações vulneráveis e do
fortalecido da luta pela demarcação das terras no continente.
No combate a pandemia é importante pensar
propostas objetivas e concretas para a cooperação
transfronteiriça na direção de uma integração latino-
americana para a proteção dos povos indígenas e dos seus
territórios. No ordenamento territorial, os dispositivos
fronteiriços como áreas-corredores seriam importantes para
aproximar as experiências de combate ao vírus em cada país.
Parcerias, por exemplo, que vêm ocorrendo entre os grupos
Guarani do Paraguai, Brasil, Bolívia e Argentina são
fundamentais e precisam ser estimuladas para desenvolver o
diálogo, em tempo de pandemia, por meio de plataformas
virtuais. Considerando as especificidades históricas e
98
culturais dos Guarani em áreas de fronteira, é importante
focar nos mecanismos internacionais para dialogar com o
Estado na proteção dos territórios e na saúde dos povos.
As fronteiras tornaram-se, assim, ainda mais, durante
a pandemia, áreas de alto risco de conflitos
socioambientais/territoriais e de contágio para os povos
indígenas. A partir de Assembleias locais e reuniões – como
a Kuñangue Aty Guasu (Assembleia das mulheres Guarani e
Kaiowá) – que participamos dos Guarani e Kaiowá no Mato
Grosso de forma virtual, é possível afirmar que existe um
conjunto de demandas e reivindicações para a proteção
desses povos que perpassam a pandemia como os EPIs para
manter as barreiras sanitárias, a água potável (existem até
companhas online para arrecadas recursos para a perfuração
de poços artesianos), até à demarcação das terras de uso e
ocupação tradicionais que, durante o atual governo, estão
paralisadas as mais variadas fases dos processos de regulação
fundiária.
Nesse caso observamos que os indígenas definem
cada vez mais áreas geográficas de proteção como um
mecanismo para estabelecer os limites e ter ferramentas para
a vigilância territorial, autodefesa e cuidado dos próprios
povos. Áreas ou corredores indígenas transfronteriços
podem ser estratégias efetivas, diante de um contexto de
emergência sanitária, a serem desenvolvidas e colocadas em
prática para a proteção territorial.
Atualmente as comunidades usam seus territórios
como meio de prevenir os conflitos
socioambientais/territoriais. É importante melhorar a
visibilidade destes conflitos nos territórios ancestrais por
meio de redes de comunicação para que a informação possa
chegar às comunidades, inclusive contraponto às
informações e imagens que estão sendo difundidas pelo
99
Estado de que as comunidades estão bem na pandemia.
Nessa luta é necessário fortalecer as estratégias de
enfrentamento dos povos indígenas, como, por exemplo,
realizar pressão política nos governos locais/estaduais e
pressão internacional com o objetivo de demonstrar a
vulnerabilidade socioterritorial dos povos indígenas frente os
conflitos ambientais e a pandemia.
A pandemia revela ainda mais que os territórios
indígenas são imprescindíveis para fortalecer os mecanismos
de comunicação das comunidades, de ter uma comunicação
sobre as violações (como, por exemplo, por meio de rádios
comunitárias e redes sociais), sobre as situações de conflitos
e a emergência da Covid-19. Para essa proteção territorial os
povos transfronteiriços precisam unificar as políticas
públicas entre os indígenas, as organizações indígenas e os
Estados.
Uma organização regional transfronteiriça pode, por
exemplo, fortalecer com as bases locais indígenas, com os
setores sensíveis da sociedade civil, com as principais
organizações dos Estados, como o Ministério da Saúde e o
Ministério da Justiça. Nesse momento de pandemia é
fundamental fortalecer os mecanismos de saúde, de
segurança para as ameaças e assassinatos de lideranças
indígenas, considerando, nesse processo, os protocolos
internacionais como elementos preventivos – a exemplo da
Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do
Trabalho).
No caso dos povos indígenas transfronteiriços isso
leva em conta definir os tempos para intervenções de
emergência. Para que isso aconteça deve-se focar nos povos
e organizações indígenas (compostas por indígenas) e
indigenistas (focada no cuidado dos povos indígenas) e
organizações aliadas, como, por exemplo, a Apib, a COIAB
100
(Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira), a FENAMAD (Federación Nativa del Río Madre
de Dios y Afluentes), dentre outras.
As ameaças, as invasões, os garimpeiros,
territorialidades-vetores de destruição e agora de contágio
durante a pandemia, estão muito presentes no Brasil. Neste
contexto os povos indígenas apresentam um alto grau de
vulnerabilidade territorial, embora esse risco não seja
reconhecido pelo Estado. No Brasil, o Ministério de Saúde
demonstra a falta (ou pouca aplicabilidade) de recursos e de
estrutura para controlar essa pandemia. Na América Latina
existem dificuldades dos sistemas de saúde e dos governos
de adequarem os planos de proteção e protocolos de
atendimento para a especificidade dos povos indígenas e suas
diferenças interétnicas.
Assim, consideramos que diante do quadro de
pandemia é importante construir uma cooperação
internacional na região transfronteiriça brasileira-latino-
americana, em que países compartilham as mesmas
problemáticas. Uma perspectiva de envolvimento regional é
imprescindível para construir estratégias conjuntas. São
processos de luta que os povos indígenas estão fazendo
desde a perspectiva da região latino-americana.

Considerações finais
Essa crise sanitária e planetária, por um lado, nos
força a imaginar um futuro sombrio, muito em breve. Os
povos indígenas vêm lutando e denunciando, cada vez mais
em múltiplas escalas espaciais, a falta de quase tudo para o
atendimento nos hospitais públicos. O governo
necropolítico, por sua vez, nega e continua subestimando a
seriedade da crise mesmo depois de mais de 100 mil mortes
101
de brasileiros, dentre os quais 678 são indígenas, registrados
até o dia 16 de agosto de 2020. A necropolítica adotada pelo
governo genocída tem priorizado a economia ao invés da
vida, mesmo em um sistema econômico fracassado, com
efeitos sociais nefastos (a desigualdade socioespacial foi
escancarada com a pandemia) e ecológicos perversos. Assim
o coronavírus nos alerta sobre este padrão perverso de
extração de riqueza da Terra, esgotando os recursos naturais
pelo neoextrativismo em países da América Latina como o
Brasil, e levando até a banalização ou desumanização das
mortes.
Ao fechar de forma malograda as fronteiras com
outros países, o Estado brasileiro não adotou medidas para
controlar o contágio ou evitar a entrada de pessoas infectadas
em terras indígenas. Isso demonstra que a luta para os povos
indígenas devem ser transterritorial e transfronteiriça na
medida em que se faz necessária a articulação entre povos
indígenas que vivem nas fronteiras de países latino-
americanos, num diálogo, intervenções e protocolos que
devem envolver diversos atores institucionais, desde as
organizações até os órgãos dos respectivos Estados. Isso se
deve aos diferentes níveis de contágio dos povos indígenas
que habitam as fronteiras dos países do Mercosul, e devido
ao aumento mais rápido da pandemia no Brasil, esse ir e vir
ou trânsito, coloca em risco diversos grupos de indígenas, a
exemplo dos Guarani.
Por isso, a pandemia desmascara que não há nada de
democrático sobre o coronavírus. No Brasil, o vírus
desencadeia efeitos perversos sobre as populações mais
frágeis, a exemplo dos indígenas, e dentre estes os idosos, os
doentes, as mulheres e as crianças. Além disso, a
autocontenção é um processo extremamente complexo para
esses povos, seja pelas invasões, ameaças e violências sofridas
102
em seus corpos-terras-territórios, seja em função das
condições mínimas para o distanciamento social (afinal, só
os mais ricos têm as condições econômicas para isso), seja
devido ao seu modo de vida comunitário.
Uma das lições geográficas dessa pandemia é que
para os povos indígenas defender o território é defender a
vida. Num mundo tão desigual da intensificação da
informação e com tanta tecnologia, além dos diferentes
dispositivos de contenção territorial, cada vez mais é
importante defender a vida, e o corpo-terra-território é a
condição permanente para essa r-existência (existir para
resistir). É imprescindível construir por meio das lutas
anticoloniais outra biopolítica que seja centrada no
comunitário, no afeto e no cuidado.
Contra o crescimento econômico desenfreado, como
o padrão sino-americano da globalização neoliberal que
impõe novas dependências à América Latina, do
neoextrativismo e da reprimarização, o mundo pandêmico
pode ajudar a construir ou fortalecer utopias. Mesmo diante
da distopia do espaço-tempo que é a pandemia, faz
necessário pensar em horizontes de decrescimento e pós-
extrativistas (ACOSTA e BRAND, 2018), de alternativas ao
desenvolvimento para frear o consumo frente aos “limites
do modelo civilizatório ocidental” (LANDER, 2016), da
finitude material do planeta pela forma hegemônica adotada
de existência humana (NODARI, 2004), para reconhecer
outras formas de vida, de convívio e de relação
pluriontológica com a natureza, de “sentir e pensar com a
terra” (ESCOBAR, 2018), como nas perspectivas de “Bem
viver”, “Bien Vivir Sumak Kawsay/Vivir Bien” (ACOSTA,
2016), mãe Terra, Pachamama, teko porã, nhandereko, uma
oportunidade para imaginar outros mundos como fazem os
povos indígenas latino-americanos.
103
A insaciabilidade do uso dos “recursos” naturais
afeta negativamente a cosmologia de cada povo e também a
vida de não indígenas. Por isso é fundamental construir
horizontes em que a mãe Terra é um ser vivo com direitos,
um mundo onde caibam muitos mundos (o pluriverso),
como na visão ecofeminista indígena latino-americana, ou
como afirma o líder indígena, ambientalista e pensador
Ailton Krenak (2019), para que tenhamos ideias para adiar o
fim de um mundo.

Referências
ACOSTA, A. O Bem Viver: uma oportunidade para
imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia
Literária/Elefante, 2016.
ACOSTA, A.; BRAND, U. Pós-extrativismo e
descrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo:
Elefante, 2018.
APIB – ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
DO BRASIL. Disponível em:
http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/ - acesso
em 16/08/2020.
ATY GUASU et al. Carta emergencial dos conselhos
Guarani e Kaiowá frente a pandemia da Covid-19. APIB
Oficial, Brasília, 17 maio 2020. Disponível em:
<www.apib.info>. Acesso em: 18 de jun. 2020.
ATY GUASU. Plano da equipe Aty Guasu Guarani e
Kaiowa diante do avanço da Covid-19 e ordem de
isolamento social. APIB Oficial, Brasília, julho 2020.
Disponível em: <www.emergenciaindigena.apib.info>.
Acesso em: 10 de dez. 2020.

104
BARNSLEY, J. El cuerpo como territorio de la rebeldía.
Caracas: Unearte, 2006.
CABNAL, L. Acercamiento a la construcción de la
propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres
indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In:
Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Madrid:
Acsur Las Segovias, 2010, pp. 11-25.
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de
controle. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219-226.
ESCOBAR, A. Otro posible es posible: caminando hacia
las transiciones desde Abya Ayala/Afro/Latino-América.
Bogotá: Ediciones Desde Abajo, 2018.
FOUCAULT, M. Naissance de la Biopolitique. Paris:
Gallimard-Seuil, 2004.
FRASER, N. Scales of justice: reimagine political space in
a globalizing world. New York: Columbia University Press,
2008.
GUAJAJARA, S. Governo Bolsonaro: o retrato da
barbárie contra os povos indígenas e a vida. Conflitos no
campo: Brasil 2019. Goiânia: CPT Nacional, 2020, p. 182-
189.
HAESBAERT, R. De categoria de análise a categoria da
prática: a multiplicidade do território numa perspectiva
latino-americana. FRIDMAN, F.; GENNARI, L. A.;
LENCIONI, S. (Org.). Políticas públicas e territórios:
onze estudos latino-americanos. Buenos Aires: CLACSO,
2018. p. 267-288.

105
________. Do corpo-território ao território-corpo (da
Terra): contribuições decoloniais. GEOgraphia, v. 22, n.
48, 2020, p. 75-90.
________. Viver no limite: território e
multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e
contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola,
2004.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
E ESTATÍSTICA. Os indígenas no Censo Demográfico
2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou
raça. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras
de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2020.
________. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
LANDER, E. Com o tempo contado: crise civilizatória,
limites do planeta, ataques à democracia e povos em
resistência. In: DILGER, G.; LANG, M.; PEREIRA
FILHO, J. (Org.). Descolonizar o Imaginário. São Paulo:
Elefante, 2016, p. 214-255.
LATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar
politicamente no Antropoceno. Bazar do Tempo: Rio de
Janeiro, 2020.

106
MASSEY, D. For Space. London: Sage, 2005.
MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife: Melusina, 2011.
MONDARDO, M. O local, o regional e o nacional como
escalas geográficas das práticas, lutas e direitos:
territorialidades indígenas latino-americanas. Revista da
ANPEGE. v. 16. n. 30, 2020, p. 148-169.
________. Tekoha: lutas indígenas pelo território. Boa
Vista: Editora da UFRR, 2019.
________. Territórios de trânsito: dos conflitos entre
Guarani e Kaiowa, paraguaios e “gaúchos” à produção de
multi/transterritorialidades na fronteira. Rio de Janeiro:
Consequência, 2018.
NODARI, A. Limitar o limite: modos de subsistência. Os
mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra,
São Paulo, setembro de 2014. Disponível em
<www.osmilnomesdegaia.files.wordpress.com>. Acesso
em: 21 ago. 2020.
RAFFESTIN, C. Pour une Géographie du Pouvoir.
Paris: LITEC, 1980.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo,
razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SESAI – SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE
INDÍGENA. Boletim epidemiológico da SESAI.
Disponível em: <www.saudeindigena.net.br>. Acesso em:
16 ago. 2020.
SVAMPA, M. Neo-extractivism in Latin America:
socio-environmental conflicts, the territorial turn, and
new political narratives. New York: Cambridge University
Press, 2019.
107
VIVEIROS DE CASTRO, E. “Ce qui se passe au Brésil
relève d’un génocide”. [Entrevista concedida a] Martin
Legros. In: Philosophie Magazine, Paris, 19 maio 2020.
Disponível em: <www.philomag.com>. Acesso em: 20 jul.
2020.
________. A inconstância da alma selvagem (e outros
ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac & Naify,
2002.
WALLACE, R. Pandemia e agronegócio: doenças
infecciosas, capitalismo e ciência. Editora Elefante e Igrá
Kniga, São Paulo, 2020.
ZARAGOCIN, S. La Geopolítica del útero: hacia una
geopolítica feminista decolonial en espacios de muerte
lenta. CRUZ, D.; BAYON, M. (Org.). Cuerpos, territorios
y feminismos. Quito: Abya Yala y Estudios Ecologistas del
Tercer Mundo, 2018.

108
CAPÍTULO 4

ANÁLISE GEOGRÁFICA DA IMIGRAÇÃO


INTERNACIONAL EM MOÇAMBIQUE:

Um estudo de caso na cidade de Maputo

Inês Macamo Raimundo


Adelaide Macaba Bazagari
José Alberto Raimundo

Introdução
O conceito de imigração é multivariado e depende de
quem fazemos a pergunta, variações que se podem observar
desde o cidadão comum até o cidadão mais letrado quer no
campo das ciências sociais, como das humanas e naturais.
Apesar de existirem diferenças nessas definições, a
percepção do conceito é a mesma, a medida em que se
encontrarem alguns aspectos comuns em todas elas como é
o caso do movimento ou deslocação de pessoas, e também
o facto de que nenhum país pode viver em autarcia, ou seja,
nenhuma sociedade pode prosperar por si, sem precisar do
auxílio de outra(s). Por exemplo, não produzimos tudo o que
necessitamos, não consumimos tudo o que produzimos e
nem temos tudo que precisamos para produzir. Por outras
palavras, podemos afirmar que, no geral, todos os países
importam o que não produzem e, exportam o que os outros
necessitam. É neste binómio importação e exportação que
encontramos o fenómeno de imigrantes e emigrantes, da
existência de países mais atrativos e menos atrativos e
também a questão de oportunidades.

109
Referindo-se a migração internacional Castles e Miler
(2009) afirmam não se tratar somente de uma acção
individual de procura de oportunidades de continuar a viver
ou de conseguir ter melhores condições de vida, mas sim,
como uma acção colectiva que surge fora da mudança social
de toda a sociedade receptora e emissora de migrantes. Além
disto, estes autores constataram que no âmbito de estudos da
migração internacional ela pode ser abordada em dois
domínios de investigação nas ciências sociais: o primeiro
domínio tem a ver com os motivos, processos e padrões de
migração, e o segundo, com a integração dos mesmos na(s)
sociedade(s) receptora(s).
Ravenstein foi o primeiro a apresentar explicações
científicas sobre teorias das migrações, baseadas numa
realidade específica encontrada na Inglaterra (PEIXOTO,
2004). Depois dele, outros teóricos se sucederam baseando
as suas teorias em realidades específicas particularmente da
Europa. Por exemplo, o trabalho de Ferreira et al. (2016) é
um dos que explicam que a epistemologia dos estudos sobre
a migração baseia-se nas posições ocidentalistas, construídas
na base de um quadro teórico e empírico, olhando somente
para fluxos que ocorrem dentro e para os países ocidentais.
Estamos, portanto, no contexto da ocidentalização do
conhecimento desafiado por Sousa Santos (2018) e Nola
(2007) que aconselham os cientistas do Sul a lutarem para a
descolonização do conhecimento. Por exemplo, quando
olhamos para o continente africano nos apercebemos que
algumas destas teorias só têm cabimento para explicações
relacionadas com a emigração e muito pouco para
compreender a migração que acontece nos países africanos,
os fluxos da Europa, Ásia e América para África.
É importante lembrar que conhecimento primário
sobre migração internacional tem a ver com o facto da África
110
ser o continente de emigração devido a escravatura e de
imigração devido a colonização, desvalorizando quase que
totalmente a migração bantu, migração àrabe em África e a
imigração pós-colonial.
A respeito da imigração pós-colonial, estatísticas
demográficas africanas têm demonstrado um crescimento
populacional quase exponencial, num contexto cheio de
desafios, provocando por consequência uma emigração sem
precedentes para a Europa, através do Mar Mediterrâneo.
Notícias veiculadas pelo canal de televisão
Euronews, dão-nos conta da brutalidade em que ocorre essa
travessia, bem como as condições em que viajam. A título de
exemplo, podemos apresentar o caso de Lampedusa na Itália
cujo Governo tentou impedir a entrada de imigrantes,
originando por consequência movimentos de solidariedade
de alguns cidadãos europeus, defensores dos direitos
humanos.
Com este trabalho pretendemos desmistificar o
fenómeno da imigração africana em particular aquela que
acontece em Moçambique motivada pela necessidade de
cooperação e investimento europeu, e também mostrar a
continuidade da migração portuguesa, chinesa e indiana bem
como o contínuo e tradicional movimento migratório bantu
iniciado há muitos séculos e responsável pela dinâmica do
povoamento da África Austral (Raimundo e Raimundo
2015).
A nossa visão de análise baseou-se na perspectiva de
Castles e Miller (2009), que se preocuparam com a maneira
como os imigrantes se integram nas sociedades receptoras.

111
Questões metodológicas

Estudar populações em movimento, constitui ainda


um grande desafio nos estudos demográficos. Segundo
Rocha-Trindade (2015), é impossível identificar as várias
componentes de pessoas em movimento de uns para outros
lugares, particularmente os estrangeiros que entram nas
fronteiras nacionais sem declarar quando e em que
circunstâncias o fizeram, muito menos o tempo de
permanência no país, como é o caso de turistas e
transfronteiriços.
Ao longo da pesquisa, tivemos algumas dificuldades
em separar, no contexto da categoria de imigrante os luso-
moçambicanos, luso-descendentes, expatriados portugueses
e os luso-indo-moçambicanos, uma vez que na definição
clássica das migrações, as pessoas que vivem há mais de cinco
anos já não fazem parte desta categoria. Porém, na sociedade
acolhedora eles são imigrantes in omne tempus. Aliás, neste
nosso trabalho em algum momento trabalhamos como
população estrangeira e não necessariamente imigrante,
devido a indisponibilidade de dados estatísticos limpos sobre
imigrantes em Moçambique no recenseamento de 2017, que
para nós constituem um indicador sobre o aumento do
número de estrangeiros em Moçambique, particularmente na
Cidade de Maputo.
Apesar de ser difícil, ou quase impossível medir uma
população em movimento, os recenseamentos populacionais
nos dão algumas pistas sobre o assunto, através das quatro
perguntas que constam no boletim do recenseamento,
nomeadamente o lugar de nascimento, residência actual,
residência ou lugar em que se encontrava há um ano ou há
cinco anos da data do censo. O simples facto de se conhecer
o sítio onde uma dada pessoa residia há um ano ou há cinco
112
anos permite-nos tirar algumas ilações sobre movimentos
migratórios recentes ou da última etapa. A esta forma de
obter dados se chama medição directa.
A grande limitação sobre a pergunta há quanto
tempo residia há um ano da data do censo, pois é difícil
incluir crianças que terão nascido nessa altura e vieram a
Maputo com menos de 11 meses de idade. Destes cálculos,
é possível determinar a distribuição geográfica dos não
nativos e medir o saldo migratório.
É importante também referir que fica difícil medir a
informação referente as etapas migratórias. Apesar disto, é
possível detectar através de entrevistas ou histórias de vida o
tempo em que o indivíduo esteve em cada lugar por onde
passou. Estes dados, porém, não nos permitem analisar o
movimento de retorno ou de permanência na potencial área
de destino.
Em 2019 os estudantes do curso de Geografia da
Universidade Eduardo Mondlane, sob orientação da docente
da disciplina de Geografia das Migrações, administraram um
inquérito a 1120 residentes na Cidade de Maputo dos quais
945 eram de nacionalidade moçambicana e 175 de
nacionalidade estrangeira. Tratando-se de um assignment, cada
estudante tinha a missão de inquirir aleatóriamente 20
pessoas, dentre as quais pelo menos dois inquiridos tinham
que ser cidadãos estrangeiros, com o objectivo de identificar
a situação migratória de cada inquirido, através de algumas
questões tais como onde é que nasceu, quando é que chegou
na cidade, há quanto tempo reside na cidade, as motivações
da migração para a cidade, suas qualificações académicas e o
grau de inserção.
Analisadas as respostas das perguntas acima
apresentadas com recurso do SPSS 25, notamos que ela
contém informação muito valiosa para sustentar o
113
pressuposto de que Moçambique é um país de destino de
muitas nacionalidades que o vêm com potencialidades
necessárias para a satisfação das sua pretensões.
Além da análise estatística também nos baseamos nas
respostas de entrevistas que serviram para dar voz a algumas
constatações que o inquérito nos proporcionou.
Seria pretensão nossa afirmar que se trata de um
trabalho perfeito uma vez que possui algumas limitações
metodológicas tais como: i) Dados limpos do IV
recenseamento; ii) Análise baseada em várias fontes de
informação em períodos diferente; e iii) incapacidade em
separar estrangeiro/turista do migrante com base nos dados
disponíveis do IV Recenseamento no momento do nosso
estudo. Apesar destas dificuldades os números e as
entrevistas mencionadas nos dois projectos de pesquisa
serviram para nos ilucidar sobre duas conclusões: i) Existe
uma nova geografia de migração internacional caracterizada
pela imigração e re-imigração de portugueses, chineses,
indianos, imigração de africanos de todo o continente; ii)
Moçambique se tornou nas últimas duas décadas em país de
destino final, de trânsito e de emigração em grande escala,
uma vez que os factores que causavam essa imigração ainda
prevalecem.

Imigração portuguesa, indiana e chinesa em


Moçambique: fenómeno que a história pós-
independência não pode apagar
Os fluxos migratórios de portugueses para
Moçambique no período pós-colonial particularmente
depois da Assinatura do Acordo Geral da Paz em 1992, são
tidos como um fenómeno cada vez mais importante. De

114
acordo com Raimundo (2020)14, podem ser identificados
quatro tipos de portugueses migrantes no período pós-
colonial: 1) Portugueses que permaneceram em Moçambique
depois da independência com visitas regualares à Portugal; 2)
Portugueses que emigraram para África do Sul e retornaram
para Portugal como consequência da Directiva 24/20; 3) Os
retornados da África do Sul e de Portgual em Moçambique
que o fizeram na tentativa de recuperação das propriedades
que foram confiscadas no contexto das Nacionalizações; e 4)
Portugueses que nunca conheceram nem tiveram contacto
anterior com Moçambique.
O estudo desenvolvido por Ferreira et al. (opus cit.),
aponta como principais razões da vinda de portugueses em
Moçambique no período pós-colonial, cujo pico se registou
em 2014, fundamentalmente as seguintes: oportunidades de
trabalho, perspetivas económicas positivas de Moçambique,
conhecimento da língua portuguesa, existência de redes
familiares e de amigos residentes em Moçambique e a
perspetiva de uma boa qualidade de vida em Moçambique.
Estes resultados não nos surpreendem uma vez que a
abertura de Moçambique para investimentos estrangeiros e o
boom das descobertas dos seus recursos minerais foram, por
si sós, motivos fortes para se interessarem pelo país,
principalmente aqueles que com quem tinham ligações
históricas muitos fortes (portugueses, indianos e chineses),
bem como outros provenientes de outros espaços
geográficos, tais com cidadãos da África, Ocidental, Oriental
e Central.

14 Raimundo, I. (2020): Are not Mozambicans good enough for


Portuguese employers? What is missing in knowledge exchange? Artigo
não publicado e elaborado no contexto do projecto Portuguese migrants in
Mozambique: Postcolonialism, emotions and exchange of knowledge.
115
A presença portuguesa em Moçambique
É importante reconhecer que a presença portuguesa
em Moçambique é muito antiga. De acordo com a história
de Moçambique, apareceram inicialmente como
comerciantes e, mais tarde, como colonizadores, num
processo que durou séculos e acompanhou várias e
diferentes gerações. Nesse processo, por variados motivos
alguns portugueses não regressaram mais a Portugal optando
por permanecer definitivamente no país, outros regressaram
à origem e mais tarde voltaram a Moçambique e, também
aqueles que são considerados como fazendo parte da nova
geração de portugueses em Moçambique.
Os retornados e a nova vaga de portugueses vieram
à Moçambique atraídos pelas oportunidades de investimento
resultantes da abertura do país ao investimento externo, pela
descoberta de recursos minerais de alto valor comercial
internacional e também pelo ambiente de paz que se instalou
no país logo após a assinatura do Acordo de Paz de 1992,
não obstante alguns ‘soluços de paz’ que têm-se feito sentir
ao longo do tempo, com maior destaque para a situação
actual nas regiões Norte e Centro do país. No geral, a maioria
destes imigrantes encontra-se envolvida em negócios,
principalmente nas áreas da construção civil (prédios,
estradas e pontes), restauração e hotelaria.
Olhando para a geografia urbana da Cidade de
Maputo, facilmente nos apercebemos que, no geral os
imigrantes portugueses habitam a área do cimento com
restaurantes, bares, cafés e pastelarias enquanto que os
indianos continuam a ocupar a Baixa da cidade e a zona do
Alto Maé com lojas principalmente de capulanas, calçado,
roupas usadas, loiça e eletrodomésticos, bem como
mercearias, alfaiatarias, para além de bancas de quinquilharias
116
e casas de câmbio particularmente no Mercado Municipal de
Maputo. Os chineses são os que ocupam tanto a área
suburbana, periurbana e a área central da Cidade. No geral,
encontram-se ligados à construção civil e a hotelaria bem
como a mercearias, lojas de quinquilharias e a jogos de
internet.
Analisando a Tabela 1 e o Mapa 1 observa-se que o
maior número de portugueses em Moçambique registou-se
nos anos 2008 e 2014. Estes dados foram obtidos através dos
registos do Consulado de Portugal em Moçambique, uma
vez que os dados do censo não mostram grandes variações,
provavelmente se deva ao facto dos portugueses não se
consideram moçambicanos no momento da realização do
censo. Por essa razão, aventamos a hipótese de serem
cidadãos de dupla nacionalidade, aqueles que foram
mencionados por Ferreira et al. (2016).
Tabela 1. Portugueses registados em Moçambique (1997 e 2017).

Ano do recenseamento Portugueses registados


198015 Sem informação
1997 4.279
2007 4.109
2008 16.50016
2014 24.80017
2017 4.192
Fonte: Raimundo (2011); Ferreira et al (2016); INE 1999; 2009; 2019.

15 Primeiro Recenseamento Geral da População de Moçambique


pós-colonial
16 Ferreira et al (2016) citando o Consulado Geral de Portugal em

Moçambique.
17 Op cit.

117
Mapa 1. População portuguesa em Moçambique entre os períodos
censitários.

Fonte: Elaborado por Adelaide Macaba Bazagari (2020).

A presença indiana em Moçambique


Cabaço (2007) na sua tese de doutoramento sobre
identidades, colonialismo e libertação em Moçambique
divide os asiáticos nas seguintes categorias: Indianos
divididos em monhés (os que professavam a religião islâmica),
baneanes (os induístas da chamada Índia inglesa) e os canecos
(os originários de famílias goesas, na sua grande maioria da
religião católica). Muito recentemente, outros autores tais
como Diogo (2011), Leite e Khouri (2011) e Zamparone
(2000) dizem que a presença indiana em Moçambique é
mencionada como sendo muito antiga, datando mesmo de
um período anterior à presença mercantil portuguesa neste
país Enquanto Diogo fala do papel dos indianos como
intermediários comerciais entre portugueses e produtores

118
“africanos”, Leite e Khouri, por sua vez, falam de uma
comunidade específica de indianos os ismailis ou ismaelitas
originários do meio rural indiano do Estado de Gujarate.
Segundo estas autoras, a comunidade Ismail iniciou a
imigração para Moçambique a partir dos anos 1890 e, entre
1910 e 1920 se fixaram na região que hoje se chama Cidade
de Maputo (antigo Lourenço Marques) e nos actuais distritos
da Manhiça e no Posto Administrativo de Sábiè (actual
Distrito de Moamba, Província de Maputo). Dentre eles, uns
eram portugueses e outros eram ingleses e pertenciam a duas
religiões islâmicas (Chiitas e Sunitas) como é indicado na
Tabela 2.

Tabela 2. Comunidade Ismail em Lourenço Marques e arredores


em 1907.
Portugueses Ingleses
Lugar de registo Total
Chiitas Sunitas Chiitas Sunitas
Circunscrição 10 424 14 516 964
Lourenço Marques
Circunscrição 1 0 - - 1
Manhiça
Circunscrição Sábiè 1 39 - 68 108
Total 12 463 14 584 1.073
Fonte: Leite e Khouri (2011).

Para estas autoras, os ismailis não tinham nenhuma


experiência relacionada com o comércio. Uma vez em
Moçambique passaram a dedicar-se a esta actividade, por ser,
na altura, o único sector acessível e rentável.
A entrevista feita a uma pesquisadora de assuntos
indianos no dia 24 de Julho de 2020 fez-nos saber que o seu
bisavô imigrou sózinho para Moçambique vindo de Gujarate
em busca de oportunidades de vida e, mais tarde regressou à
Índia para se casar, tendo depois trazido a esposa para
Moçambique, onde todos os seus descendentes nasceram.
119
Ainda a respeito dos indianos em Moçambique uma
das entrevistadas deixou a seguinte informaçãos:
Os indianos têm contribuído desde há muito tempo no
comércio. Eles têm vocação natural para fazer negócios e
comércio. Porque os moçambicanos realizam trabalhos de
menor qualificação que não exigem nenhuma escolaridade.
Os indianos vivem dentro da comunidadade deles e fazem
negócios familiares. Eles trazem familiares da Índia e do
Paquistão. Para nós não há diferença entre indiano e
paquistanês (Entrevista realizada a uma empresária
moçambicana no dia 26 de Julho de 2020).

O depoimento acima confirma aquilo que esta


comunidade faz até aos dias de hoje em Moçambique, uma
vez que, na sua maioria ainda se encontra envolvida em
actividades comerciais. Esta realidade é confirmada no
estudo de Allen (2019) ao afirmar que os indianos residentes
em Moçambique usaram a migração como um mecanismo
para fazer escolhas individuais acerca da sua cidadania,
localização e pertença étnica num ambiente político
progressivamente inseguro, situação que lhes dá vantagens
em muitos momentos. A título de exemplo, assistimos que
nos momentos de tensão militar em Moçambique, nenhum
destes cidadãos é visto a cumprir o Serviço Militar
Obrigatório regulado pela Lei 24/97 de 23 de Dezembro18.
Entretanto, Patel (2017) diz que as relações entre
Moçambique e a Índia foram-se ampliando de tal forma que,
da mera actividade comercial passaram a envolver-se

18 O Artigo 2 sobre obrigatoriedade do serviço militar diz o segunte: 1.


Todos os cidadãos moçambicanos dos 18 aos 35 anos de idade, estão
sujeitos ao dever de prestação de servió militar e ao cumprimento das
obrigações militares dele decorrentes; 2. Em tempo de guerra as idades
estabelecidas para o cumprimento de obrigações militares podem ser
alteradas por lei.
120
também em investimentos de grande vulto, nomeadamente
no sector energético (carvão e gás natural), no sector de agro-
processamento, na produção da cana-sacarina e também na
formação de quadros moçambicanos. Além disto, segundo a
autora em referência, o investimento indiano é orientado
sobre linhas de crédito no fomento de pequenas e médias
empresas, de novos postos de trabalho e na formação
técnico-comercial.
Tal como se pode observar no estudo de Patel acima
apresentado, a Índia não é apenas um país de comerciantes,
uma vez que também contribuíu e continua a contribuir de
forma multifacetada para o desenvolvimento de
Moçambique, o que contraria a percepção de muitos
africanos, incluindo moçambicanos na qual os indianos são
vistos como simples comerciantes que não trazem nenhum
benefício para o país e que se aproveitam da bondade e
hospitalidade dos moçambicanos. Por esta e outras razões,
questionamo-nos muitas vezes sobre quem são na realidade
estes cidadãos. Foi neste contexto que um dos nossos
entrevistados desabafou afirmando que “Estes indivíduos
são camaleões. Quando lhes convém são moçambicanos,
quando não lhes convém são portugueses, ingleses ou de
outra nacionalidade”. Por outras palavras, isto significa que a
identificação destes cidadãos é difícil no contexto em
referência, situação que coloca qualquer investigador em
águas turvas. Para testemunhar esta realidade, os números de
cidadão indianos registados no país ao longo do tempo são
bastante variados e elucidativos. Enquanto que Allen (2019),
citando um relatório do Alto Comissariado da Diáspora
Indiana do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia
acedido em 2014, constatou que no ano 2000 foram
registados 70 mil cidadãos de origem indana, em 2015, o
estudo de Patel (2017) mostra que eram apenas 25 mil.
121
Pelo exposto acima, fica claro que não foi fácil
identificar estes cidadãos ao longo do processo de
administração das entrevistas no trabalho de campo. Como
estratégia, achamos mais seguro nos orientarmos através das
suas características físicas.

A comunidade chinesa em Moçambique


Os chineses são referidos por Medeiros (1998) como
sendo uma comunidades que se fixou na Ilha de
Moçambique em 1858. Eram conhecedores de diversos
ofícios, dentre os quais carpinteiros, pedreiros, ferreiros e
picadores de pedra cuja missão era de criar nos ilhéus o
espírito de trabalho entre os africanos. Segundo este autor,
foi com esse espírito que se instalaram nos finais do século
XVIII na Cidades da Beira e de Lourenço Marques (actual
Maputo). Segundo Allen (2019), entre 1800 e 1900 já existia
um número considerável de população chinesa em
Moçambique em períodos, incluídos na categoria de asiáticos
nos censos coloniais. Na página 75 do trabalho em
referência, a autora afirma que em 1894 residiam 38 chineses
na Cidade de Lourenço Marques que se dedicavam ao
comércio e ao artesanato. Esta realidade foi também referida
por Eduardo Medeiros que diz que em 1920 esta
comunidade se tornou bastante significativa na Cidade da
Beira, razão pela qual decidiu criar a chamada Associação
Chinesa, reconhecida pelo Estado Português.
Existem debates controversos sobre a presença
chinesa em Moçambique e no continente africano em vários
artigos. Os que mencionam o carácter colonial da China são
os mais comuns quando comparados com os que se referem
ao seu papel na cooperação e no desenvolvimento dos países
africanos e de Moçambique em particular. Por exemplo, Jafar
(2017) não reconhece essa presença chinesa como de boas
122
relacções, a medida em que são ignorados os graves
problemas ambientais, laborais e sociais criados, no processo
de exploração desmedida dos recursos naturais e humanos.
Este posicionamento é também defendido por outros
autores tais como Chichava (2010), Konijn (2014), Chemane
(2019), e por alguns dos nossos entrevistados que afirmam
que “Esses chineses estão aqui só para nos roubar. Eles tiram
os nossos negócios”. Porém, existem outros entrevistados
que mesmo não tendo uma opinião diferente, dizem que “Os
Chineses vendem coisas muita baratas”. (Entrevistas
realizadas em Maputo, 29 de Julho de 2020).

Imigração internacional e imigração africana: Porquê


Moçambique?
A ideia de emigração (saida) e de imigração (entrada),
pressupõe deslocamento de pessoas de um lugar para um
outro lugar. No geral, quem sai se dirige para um lugar
hospedeiro, esperando ser recebido e, quem recebe tem
sempre expectativas sobre aquelas pessoas que procuraram o
seu espaço, como lugar de destino.
A migração do Norte para o Sul e a do Sul para o
Norte tem muitas vezes sugerido explicações e
interpretações diferentes, tal como foi referido no início da
nossa análise, continua sendo explicada pelas mesmas causas.
Em relação a imigração do Norte para o Sul, a nossa pesquisa
vem aos poucos demonstrando que o continente africano,
em particular Moçambique, atrai todos imigrantes do Norte
e do Sul para os mesmos objectivos: oportunidades de
negócios associadas a abertura do país ao investimento
estrangeiro e, a oportunidade de exploração dos recursos
naturais, nomeadamente ouro, florestas, petróleo, gás. E
sobre a emigração do Sul para o Norte, em particular a
123
africana, os pressupostos que a explicam têm sido geralmente
aqueles que se encontram relacionados com desafios
económicos, perseguições políticas, desastres naturais e a
propalada fuga de cérebros ou de profissionais como um
problema estrutural. Ao se pronunciar sobre o último
pressuposto, Oucho (2008) explica que a fuga de
profissionais tem sido muitas vezes consequência da quebra
da ordem política e económica e da globalização da
educação.
Além dos pressupostos acima apresentados, existem
outros também reconhecidas no meio académico que têm a
ver com o facto da África: i) ser um continente em
movimento, segundo Castles e Miller (2009); ii) por ter
movimento massivo ilegal; e também iii) pelo facto do seu
movimento migratório se direcionar para a Europa e para a
América. Sobre este assunto ainda, importa observar que
Castles e Miller (opus cit.) já demonstraram que a grande
migração em África, é aquela que ocorre dentro deste
continente. Em relação a imigração europeia, muito pouca
literatura existe sobre o assunto, se não no contexto da
cooperação internacional e da ajuda externa. Entretanto,
alguns trabalhos mais recentes os quais tivemos acesso já
mostram a mudança deste paradigma. Exemplos desta
mudança são encontrados nas obras de Candeias et al. (2016),
Ferreira et al. (2016) e de Peixoto et al. (2016). Estes últimos
por exemplo, apresentam dois capítulos importantes sobre
emigração portuguesa para Angola e para Moçambique, não
no contexto colonial, mas como resultado do impacto da
crise económica e do desemprego em Portugal e das novas
oportunidades de investimento económico e de emprego
nestes países. Nesta abordagem, não nos podemos esquecer
das obras de Lisa Akesson (2018; 2020) nas quais falam da
imigração portuguesa em Moçambique enfatizando o
124
relacionamento pós-colonial entre moçambicanos e
portugueses, como sendo muito conturbado e baseado na
desconfiança que o colonialismo causou entre
moçambicanos (povo colonizado) e portugueses
(colonizadores).
Ao longo do trabalho de campo, quando
questionamos alguns burundeses e ruandeses sobre a razão
ou razões da escolha de Moçambique como destino de
residência e não a África do Sul (preferência da maioria dos
africanos), foi surpreendente ouvir a seguinte resposta:
É uma pergunta muito interessante. Eu descobri
Moçambique através da África do Sul onde eu vivia. Eu lia
notícias sobre Moçambique e passei a ganhar interesse. Por
outro lado, estudei na escola a história e geografia de África
que incluia Moçambique. Como já não era agradável viver
na África do Sul, pensei em mudar-me para aqui. Comecei
por fazer visitas e fui percebendo o quão era agradável viver
aqui do que na África do Sul (Entrevista a um cidadão
ruandês no dia 29 de Julho de 2020).

Uma outra resposta não menos interessante sobre o assunto


foi a seguinte:
Não existe um país que pode viver sozinho, porque não
existe uma sociedade que não precise de outra. Isso não é
possível, pois não produzimos tudo que necessitamos e nem
consumimos tudo que produzimos. Precisamos comprar o
que não produzimos e precisamos vender o que produzimos
em excesso. E por detrás da importação e exprotação temos
imigrantes. O mundo foi feito assim e ele assim operará. As
pessoas precisam viajar, conhecer outras pessoas e outras
terras. Um país que diz que pode viver sem outro, não existe.
Precisamos conhecer as experiências, as ideologias e
tecnologias dos outros. Por exemplo, hoje Moçambique
conhece muitos países e é conhecido em outros países como
um país com muitos recursos e em franco desenvolvimento.
Pelo que, vai precisar de técnicos, tecnologias, trocar
produtos e conhecer novos mercados. Nós somos pequenos
125
empresários que precisamos sobreviver. Mas, entre nós
alguns fecham as portas. Criam barreiras para que o outro
não prospere. Criam barreiras para que os outros não
avancem. Há compatriotas com mais de duas lojas aqui na
cidade e não dão espaço para irmãos recém-chegados. É
uma concorrência horrível. Não sei como a caracterizar. A
qui só existe vontade de matar o outro. Como é que um ser
pensante como o homem pode entender matar o outro?
Não posso dizer que agimos como animais, porque quando
este mata é porque está com fome ou se sente ameaçado.
Quando digo matar é no sentido figurado. Mas, se alguém
me tira o negócio e não me dá oportunidade, significa que
estou a matar o outro, pois não terá dinheiro para pagar
renda, comprar alimentos e outras necessidades básicas de
qualquer ser humano. Por exemplo, alguns imigrantes
portugueses têm mandado seus filhos para países africanos
a fim de estudar a cultura e questões económicas dessees
países. Isto permite-lhes ter uma visão sobre esses países.
Eu acho que nós africanos poderíamos também fazer isso.
Viajar para outro país africano a fim de abrir negócio. Mas,
os políticos africanos não permitem esta liberdade. É uma
estratégia para que não sejamos honestos. Por último, diria
que enquanto os moçambicanos têm terra, deveriam abrir
as portas para os pequenos e médios empresários africanos
para investimentos. Por exemplo, o meu tio quando veio a
Moçambique ele tinha 20 Mil Dólares americanos para
investir. É pouco aos olhos de muitos, mas é bastante
significativo para um pequeno negócio (Entrevista a um
ruandês no dia 29 de Julho de 2020).

A partir destes depoimentos ficamos a saber que nem


sempre um africano se desloca para um outro país por ser
pobre a medida em que não existe pobre com 20 mil dólares
americanos. Além disto, ficamos também a saber que existe
uma necessidade de cooperação intra-africana para um
desenvolvimento equilibrado no continente.

126
Análise da imigração africana em Moçambique
A imigração africana em Moçambique pode ser vista
como sendo a continuidade dos movimentos migratórios
bantu, tal como explica Matusse (2009) e Raimundo e
Raimundo (2017). Se no passado ela teve a ver com o
processo do povoamento da África Austral e as guerras de
ocupação, mais recentemente estas migrações estão no geral
associadas aos conflitos militares (em algumas regiões de
África), a pobreza (que assola a grande maioria dos países da
África sub-sahariana), a fatalidade do destino, ao aumento do
sentimento xenófobo e também a existência de rotas de
garimpo nas províncias do Centro e Norte de Moçambique.
Importa observar que os europeus, os asiáticos e os
americanos que se encontram em Moçambique não são
regidos por uma Política de migração específica, se não pela
Lei 5/93 regulamentado pelo Decreto n. 108/2014 que
aprova o Regulamento da Lei n. 5/93, de 28 de Dezembro e
as respectivas normas de entrada, permanência e saída do
país, os direitos, deveres e garantias assim como o regime
legal da permanência de cidadãos estrangeiros em
Moçambique (Boletim da República 2014, I Série, 31 de
Dezembro n. 105). Em relação ao regime de contratação
laboral, os referidos cidadãos são regidos pela Lei n.
23/2007, de 1 de Agosto, que define os mecanismos de
contratação de mão-de-obra estrangeira.
No que se refere à imigração africana no geral, alguns
estudiosos tais como Raimundo e Raimundo (2015), Neto
(2012), Liesegang e Cumbe (2012) e Matusse (2009)
concordam que as migrações actuais constituem
continuidade das migrações iniciadas pelos povos bantu da
região central de África e que foram apenas perturbadas e
interrompidas, com a delimitação de fronteiras e o início da
colonização do continente africano. Porém, com as
127
independências dos países africanos a partir dos anos 1950 e
os subsequentes conflitos armados, desastres naturais,
pobreza, desemprego e perseguições políticas assiste-se ao
início de um novo movimento de migrações em África, com
características bem diferentes do período anterior à
dominação colonial. De forma legal ou ilegal, obedecendo as
rotas tradicionais de trânsito e outras novas, os africanos
saem dos seus países para outros países incluindo
Moçambique. Apesar da falta de estudos sistemáticos sobre
a imigração africana em Moçambique, é fácil constatar
algumas mudanças a vários níveis nas cidades
moçambicanas, em particular na Cidade de Maputo. A título
de exemplo, podemo-nos referir sobre a popularização da
capulana como tecido para confecção de vestuário feminino
e masculino, o surgimento de religões pentecostais, e o
aumento de escolas internacionais que recrutam professores
zimbaweanos e nigerianos por causa do conhecimento da
língua inglesa. Estas realidades por si só, revelam mudanças
que de certa maneira resultam da presença significativa de
cidadãos africanos em Moçambique. Um outro exemplo que
podemos acrescentar, é a existência de um campo de
refugiados na Cidade de Nampula no norte de Moçambique
que em 2017 albergava cerca de 14 mil refugiados e
requerentes de asilo, na sua maioria provenientes da África
dos Grandes Lagos (SENAMI, 2017)19.
São vários os factores que facilitam a entrada de
cidadãos africanos em Moçambique. A título de exemplo,
segundo Seda (2017) e podemo-nos referir sobre a existência
de fronteiras relativamente menos protegidas (que facilitam

19Comunicação da Directora Geral do Serviço Nacional de Migração de


Moçambique em Dezembro de 2017 sobre o Pacto Global para migração
segura, ordenada e regular.
128
a entrada de estrangeiros quer em trânsito ou para uma
fixação definitiva) e relativa facilidade na aquisição de
documentos de viagem. Além destes factores, Raimundo e
Raimundo (2015) também apontam a porosidade das
fronteiras e as redes familiares existentes desde a época da
migração bantu.
As entrevistas realizadas na Cidade de Maputo,
ilustram melhor a facilidade com que os cidadãos de alguns
países africanos entraram em Moçambique. A título de
exemplo alguns dos nossos entrevistados disseram que “vim
a Moçambique porque o meu irmão me chamou”, “o meu
tio já residia em Maputo”, e finalmente os que disseram que
“foi durante as visitas que efectuava vindo da África do Sul”,
“Quem está em fuga não olha a meios. Basta haver um
buraco que permita passagem, nós entramos”, e “Em
Moçambique me sinto em casa. Tenho família”.
Embora se constate a existência de uma forte
presença de cidadãos africanos em Moçambique, os dados
estatísticos oficiais, à semelhança do que acontece com os
indianos, portugueses e chineses não ilustram essa realidade.
Por exemplo, durante o trabalho de campo, foi possível
observar muitos cidadãos burundeses, nigerianos, ruandeses,
congoleses, somalis e etíopes que desenvolvem o comércio
informal nas ruas de diferentes bairros da Cidade de Maputo,
particularmente nos bairros de Matendene, Zimpeto,
Maxaquene, Mahotas, Albasine, Benfica, Xipamanine,
Mafalala e Central (bairros onde o nosso estudo incidiu) que,
quando contabilizados ultrapassam os números que nos são
disponibilizados pelas Estatísticas. As razões desta situação
podem ser encontradas a partir dos seguintes depoimentos:
“Eu ainda não tenho DIRE (Documento de Identificação de
Residência para o Estrangeiro)”, “Não tenho nenhum
documento”, “É difícil legalizar documentos” e “Tenho
129
documento de Moçambique”. A partir destes depoimentos,
achamos que estes cidadãos estrangeiros não declaram a sua
verdadeira origem durante os inquéritos ou recenseamentos.

A Cidade de Maputo e a nova imigração internacional


Esta secção vai discutir a migração na Cidade de
Maputo, a partir dos resultados obtidos no inquérito e nas
entrevistas concedidas nos contexto do projecto “Migração
para o Crescimento Inclusivo em África e Migração
Potuguesa Pós-colonial”, começando por apresentar os
antecedentes históricos da migração colonial portuguesa, dos
indianos, chineses e do povo bantu. Analisamos também os
dados do inquérito sobre migração realizado por estudantes
de Geografia da Universidade Eduardo Mondlane em 2019.
Com esta análise, pretendemos demonstrar que o cenário
actual de imigração teve um contexto histórico marcado pela
história pré-colonial, colonial e pós-colonial. Para o efeito,
fizemos uma análise documental baseada numa perspectiva
antropológica, histórica, política e geográfica.
A ideia da elaboração de um exercício académico
com estudantes do Curso de Licenciatura em Geografia na
dsiciplina de Geografia das Migrações permitiu recolher um
manancial de informações, que suscitaram em nós a
necessidade de partilhar com os leitores sobre a situação da
imigração na Cidade de Maputo. Para a sustentação dos
dados quantitativos extraímos alguns depoimentos de
cidadãos nacionais e estrangeiros no âmbito de dois
projectos em curso.

130
Quantas pessoas foram contadas no IV Recenseamento
Geral da População e Habitação de 2017 na Cidade de
Maputo?
O IV Recenseamento Geral da População e
Habitação realizado em 2017 registou para a Cidade de
Maputo 1.066.881 habitantes, dos quais 513.705 homens e
553.176 mulheres. Deste número, os estrangeiros incluídos
são de nacionalidade sul-africana (2.350), zimbabweana (
443), tanzaniana (228), malawiana (327), zambiana (61),
burundesa (738), ruandesa (579), chinesa (371), portuguesa
(2.277), indiana (987), paquistanesa (600), outras da África
Austral (215), outras africanas (2420), outras europeias (816)
outras do resto do mundo (481).
Estas estatísticas mostram que na data do censo na
Cidade de Maputo foram 12.893 estrangeiros
correspondente a 1,2% da população total. Isto significa que
em 10 anos a população estrangeira nesta cidade teve um
aumento de 1278, uma vez que no no III Recenseamento
Geral da População em 2007 foram registados 11.615
estrangeiros. Importa lembrar que recensear estrangeiros
com base na nacionalidade é um exercício muito complexo,
se considerarmos que existem portugueses e indianos que
por altura do censo não se consideravam moçambicano
preferindo declarar que fazem parte de uma outra
nacionalidade. A título de exemplo, tal como atrás nos
referimos, dificilmente se chega a conhecer a real
nacionalidade de um indiano, uma vez que, em alguns casos,
eles se identificam como indo-moçambicanos, luso-indiano
e indo-britânicos. Para testemunhar este facto, um dos
nossos entrevistados afirmou que “Os indianos dependem
de onde têm vantagens. São moçambicanos para facilidades
de negócios e outra regalias.Porém, acabam adoptando uma
131
outra nacionalidade pelas facilidades de vistos para Inglaterra
ou União Europeia”. (Entrevista com um consultor
moçambico na Cidade de Maputo, 8 de Julho de 2020).

O contexto da migração na Cidade de Maputo


Caracterização da Cidade de Maputo
A Cidade de Maputo é a capital da República de
Moçambique. Segundo Conselho Municipal (2019 20)
administrativamente possui sete distritos municipais,
nomeadamente KaMpfumo, Nlhamankulu, KaMaxakeni,
KaMubukwana, KaMavota, KaTembe e KaNyaka e uma
área de 310 Km2 (INE, 2019). Tem estatuto de Província
desde 1986 (PILILÃO, 1989).
O Mapa 2 mostra que a cidade se localiza na margem
Ocidental da baía do mesmo nome e é Limitada a Norte pelo
Distrito de Marracuene, a sul pelo Distrito de Matutuíne, a
Oeste pelo Municipio da Matola (tendo como separador
natural o vale do Rio Infulene) e, a Leste, como toda a área
costeira de Moçambique, é banhado pelo Canal de
Moçambique.

20Conselho Municipal de Maputo- Pelouro de Saúde e Acção Social,


2019, Plano Director 2015-2019. Maputo.
132
Mapa 2. Localização da Cidade de Maputo (Moçambique).

Fonte: Elaborado por Adelaide Macaba Bazagari (2020).

Explicação metodológica do processo de recolha de dados na Cidade de


Maputo
Quando se fala de emigração e de imigração, temos
como referência saídas e entradas de pessoas de um
determinado país para um outro. Referindo-se sobre os
factores que originam a emigração, Rocha-Trindade (2015, p.
309) aponta os seguintes: i) Incapacidade de um dado país de
estebelecer o justo equilíbrio entre a população e as
condições de vida básicas; ii) O desemprego ou subemprego;
iii) Impossibilidade de fazer poupanças; e iv) Falta de
segurançaa para o futuro. Foi a partir destes postulados de
Rocha-Trindade (que não são novos), que nos orientamos na
organização do inquérito em três (3) categorias: i) Perguntas
contendo aspectos demográficos (nacionalidade, sexo, idade,
estado civil, língua e grau académico); ii) Relacionadas com a
migração (lugar de origem, tempo de residência em Maputo,
tipo de documento usado para entrar em Moçambique,
133
estatuto de residência, razões da mudança de residência, com
quem migrou e, se pretende para área de origem); e iii)
Relacionadas com a integração (actividade que exerce na
Cidade de Maputo e a avaliação da sua integração na Cidade
de Maputo).

Amostra
Como foi explicado anteriormente, o inquérito não
obedeceu a cálculos estatísticos complexos. Foram cálculos
simples dos quais cada um dos 56 estudante deveria realizar
20 inquéritos. Deste modo, foram inquiridas 1120 pessoas
das quais 945 são moçambicanos e 175 são de nacionalidade
estrangeira (Gráfico 1). A determinação das pessoas a inquirir
foi aleatória.
Gráfico 1. Amostra dos inquiridos
1000

800

600

400

200

0
Moçambicanos Estrangeiros
Fonte: elaboração própria.

Características demográficas das pessoas inquiridas:


nacionalidade, sexo, idade, estado civil, língua e grau
académico
População inquirida por nacionalidade
A Tabela 3 e o Gráfico 2 mostram a distribuição da
população inquirida por nacionalidades. Na tabela (3) se
134
constata que os inquiridos de nacionalidade moçambicana
são a maioria (945) seguidos pelos inquiridos nigerianos e sul-
africanos (30 cada), burundeses (23), congoleses (16),
portugueses (14) e tanzanianos (13), zimbabweanos (9),
brasileiros (8), malawianos (4), somálianos (4), indianos (3),
angolanos (2) e, por último, se encontram países com apenas
um inquirido, nomeadamente Argentina, Austrália,
Camarões, Itália, México, Quénia, Rússia e Senegal.
Tabela 3. População inquirida por nacionalidade.
País de origem Total %
Angola 2 0.2
Argentina 1 0.1
Austrália 1 0.1
Brasil 8 0.8
Burundi 23 2.1
Camarões 1 0.2
Congo 16 1.3
Espanha 1 0.1
Índia 3 0.3
Itália 1 0.1
Malawi 4 0.3
México 1 0.1
Moçambique 945 84.4
Nigéria 30 2.7
Portugal 14 1.3
Quénia 1 0.1
Ruanda 3 0.3
Rússia 1 0.1
Senegal 1 0.1
Somália 4 0.4
Sul africana 30 2.7
Tanzânia 13 1.2
Venezuela 1 0.1
Zâmbia 4 0.4
Zimbabwe 9 0.8
Total 1120 100.0
Fonte: elaboração própria.

135
População inquirida por sexo
No total foram inquiridos 613 indivíduos do sexo
masculino dos quais 118 de nacionalidade estrangeira e 507
do sexo feminino dos quais 57 de nacionalidade estrangeira,
de acordo com o Gráfico 2.

Gráfico 2. População inquirida por sexo

600
500
400
300
200
100
0
Moçambicano Estrangeiro Moçambicana Estrangeira
Homem Mulher
Fonte: elaboração própria.

Idade da população inquirida


A Tabela 4 mostra a idade dos inquiridos. Nela
podemos constatar que a idade mínima dos inquiridos foi de
18 e a máxima de 92 anos. Não é de estranhar que entre a
população estrangeira existam inquiridos com idade inferior
a 30 anos, uma vez que a teoria de migração indica que os
jovens são os que mais migram, e também porque a idade
média da população africana é jovem.
Importa referir que existem ligeiras diferenças de
idades entre os 20 e 39 anos na qual encontramos uma
maioria com idades compreendidas entre os 25 e 29 anos,
seguida pelo grupo de inquiridos com idades entre 30 e 34
136
anos e um terceiro grupo de inquiridos com idades entre os
20 e 24 anos. É de observar que entre os inquiridos
estrangeiros não foi encontrado ninguém que tenha
declarado idade superior a 60 anos, embora se tenha
encontrado alguma representatividade significativa nos
grupos etários de 35 a 49 anos.

Tabela 4. Idade dos inquiridos por grupos etários e por


nacionalidade.
Idade Moçambicana Estrangeira Total
18-19 51 1 52
20-24 259 30 289
25-29 186 33 219
30-34 129 31 160
35-39 95 23 118
40-44 60 18 78
45-49 50 19 69
50-54 43 11 54
55-59 35 7 42
60+ 29 0 29
Total 937 173 110
Fonte: elaboração própria.

Estado civil da população inquirida


A Tabela 5 mostra que a maioria dos inquiridos são
solteiros (650), seguidos por casados em em união de facto
(395), divorciados (33) e viúvos (31). Entre a população
estrangeira existem ligeiras diferenças entre soltieros (82) e
casados ou inião de facto (79). Porém os divorciados
constituem o dobro dos viúvos.

137
Casado/união Divorciado
Nacionalidade Solteiro de facto ou Viúvo Total
separado
Estrangeira 82 79 8 3 172
Moçambicana 568 316 35 28 947
Total 650 395 33 31 1109

Tabela 5. Estado civil da população inquirida.


Fonte: elaboração própria.

Grau académico por nacionalidade


A Tabela 6 refere-se ao grau académico por
nacionalidade na qual se pode observar que a maioria dos
inquiridos (187) possui o grau de Licenciatura, seguidos por
aqueles que disseram possuir o grau de Bacharelato (78),
Mestrado (13), Doutoramento (6) e apenas 1 que disse ter
outro grau. Entre os cidadãos estrangeiros 20 possuem o
grau de Licenciatura, 6 têm o Bacharelato, 4 fizeram o
Doutoramento e 3 o Mestrado.
Tabela 6. Grau académico por nacionalidade
Nacionalid Bacharel Licenciat Mestra Doutorame Outr
ade ato ura do nto os
Brasileira 0 0 2 0 0
Burundesa 3 6 0 0 0
Congolesa 3 3 0 0 0
Indiana 0 0 0 0 0
Nigeriana 0 4 0 0 0
Portuguesa 0 2 0 1 0
Sul-africana 0 1 0 0 0
Tanzaniana 0 4 0 0 0
Zambiana 0 0 0 2 0
Zimbabwea 0 0 1 1 0
na
Moçambica 78 167 10 2 1
na
Total 84 187 13 6 1
Fonte: elaboração própria.

138
Esta análise, ao ser feita por países de origem
constata-se que dos que possuem o grau de bacharel 3 são
burundeses e 3 são congoleses, e dos que disseram possuir a
licenciatura no total são 20, dos quais 6 são de nacionlaidade
burundesa, 4 nigerianos, 4 tanzaninos, 3 congoleses, 2
portugueses e 1 sul-africano. Em relação ao nível de
mestrado foram identificados 2 brasilleiros e 1
zimbabweano, e, a nível de doutoramento foram
identificados 2 cidadãos de nacionalidade zambiana, 1 de
nacionalidade zimbabweana e 1 de nacionalidade
portuguesa.
Importa observar que o IV Recenseamento geral da
População e Habitação de 2017 (Tabela 7) revela que a
maioria dos citadinos de Maputo possui o Primário do 1º
Grau (46.940 hab.), seguida por aqueles que possuem o
Primário do 2º grau (44.483 hab.), Secundário Geral do 2º
Ciclo (30.854 hab.) e Secundário Geral do 1º Ciclo (28.840
hab.). É de referir que a Cidade de Maputo registou um
número bastante significativo de pessoas com grau superior
universitário. A tabela mostra que possuem o grau de
Licenciatura (18.243 hab.), seguidos por aqueles que fizeram
Mestrado (3.847 hab.), Bacharelato (1.802 hab.) e o
Doutoramento (809 hab.).
Além dos dados acima apresentados, a tabela
também nos trás informações sobre os que concluiram o
Ensino Técnico Médio (6.375 hab.), Ensino Técnico básico
(1963 hab.), nível de Alfabetização (5.214 hab.), Ensino Pré-
escolar (2.219 hab.), EnsinoTécnico elementar (739 hab.) e
o Curso de Formação de Professores (488 hab.).

139
Tabela 7. Escolaridade dos residentes da Cidade de Maputo
Qualificações Homem Mulher Total
académicas
Doutor (PhD) 692 117 809
Mestrado 3.094 753 3.847
Licenciatura 14.247 3.996 18.243
Bacharelato 1.424 378 1.802
Curso Formação de 328 160 488
Professores
Técnico médio 5.247 1.128 6.375
Técnico básico 1.599 364 1.963
Técnico elementar 586 153 739
Secundário Geral do 23.667 7.108 30.854
2º Ciclo
Secundário Geral 1º 21.653 7.187 28.840
Ciclo
Primário do 2º Grau 31.806 12.677 44.483
Primário do 1º Grau 28.956 17.984 46.940
Pré-Escolar 1.122 1.097 2.219
Alfabetização 2.562 2.652 5.214
Total 157.558 78.192 235.750
Fonte: INE (2019).

Uma análise da imigração internacional na Cidade de


Maputo
Com esta secção analisar a imigração internacional na
Cidade de Maputo. Para o efeito, partimos do pressuposto
de que todo o estrangeiro é sempre um imigrante. Porém, se
nos limitássemos a este princípio não estaríamos no caminho
certo, uma vez que nem todo o estrangeiro é imigrante, pode
se tratar de uma pessoa em trânsito, ou com um tempo de
permanência inferior a três meses. Por isso, para responder a
esta pergunta procuramos conhecer o seu lugar de origem,
tempo de residência, tipo de documento usado para entrar
140
em Moçambique, estatuto de residência, razão da mudança
de residência, a(s) pessoa(s) com quem migrou e também se
pretende retornar para área de origem.
Mapa 3. População estrangeira residente na Cidade de Maputo
segundo o Inquérito sobre Migrações, 2019

Fonte: elaborado por Adelaide Macaba Bazagari (2020).

Lugar de origem da população inquirida por continente ou região


O Gráfico 3 e o Mapa 3 mostram que a população
dominante na Cidade de Maputo nascida fora de
Moçambique é predominantemente de origem africana
(12.9%), seguida pela população europeia (1.6%), da América
Latina (0.4%) e, por fim, da Ásia e Oceânia (0.4%). Interessa
referir que nenhum cidadão oriundo da China aceitou fazer
parte do estudo. Por essa razão, não temos dados que nos
permitiriam fazer comentarios sobre a imigração asiática.

141
Gráfico 3. Origem da população inquirida por continente ou
região
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Moçambique África Europa América Ásia e
Latina Oceania

Fonte: elaboração própria.

Tempo de residência na Cidade de Maputo


A Tabela 8 indica que a maioria da população
estrangeira (80) vive na Cidade de Maputo entre 12 e 59
meses, seguida daquela que disse viver há mais de 60 meses
(59) e por fim, aqueles que residem entre 7 e 11 meses (17) e
entre 0 e 6 meses (13). Entretanto, dentro dos estrangeiros
inquiridos identificamos 6 pessoas que nasceram na Cidade
de Maputo.
Dos moçambicanos inquiridos, a maioria reside na
cidade em referência há mais de 60 meses (315), seguida
daqueles que disseram ter nascido aqui em Moçambique
(294), e daqueles que já residem no país entre 12 e 59 meses
(241), entre 7 e 11 meses (67) e, entre 0 a 6 meses (28).

142
Tabela 8. Tempo de residência na Cidade de Maputo por
nacionalidade
Nasceu 7 a 11 12 a 59 Mais
Nacionalidade aqui 0a6 meses meses de 60 Total
meses meses
Estrangeira 6 13 17 80 59 175
Moçambicana 294 28 67 241 315 945
Total 300 41 84 321 374 1120
Fonte: elaboração própria.

Tipo de documento usado pela população estrangeira para entrar em


Moçambique
Segundo Lei Nº 5/93 de 28 de Dezembro, capítulo
II, Artigo 6, é permitida a entrada na República de
Moçambique a todas as pessoas, desde que sejam portadoras
de qualquer dos seguintes documentos: i) Passaporte ou
documento equiparado válido no país, um visto de entrada
emitido pelas entidades moçambicanas competentes,
igualmente válido; e ii) Outros documentos estabelecidos em
convencções ou acordos internacionais a que Moçambique
se encontre vinculado, que é o caso do salvo-conduto,
mencionado por alguns dos inquiridos como documento de
entrada também válido.
Analisando a Tabela 9, o passaporte é o documento
principal usado pela maioria dos inquiridos de nacionaldiade
estrangeira (152), contra apenas (3) que disseram ter
recorrido ao Salvo-conduto. Importa porém esclarecer que o
passaporte e o salvo-canduto são documentos que apenas
atestam a legalidade de entrada, mas não necessariamente a
legalidade de permanência no país com direito a trabalho ou
exercício de actividade comercial estipulados pela Lei 5/93.

143
Tabela 9. Tipo de documento usado para entrar em Moçambique
por nacionalidade
Documento
Nacionalidade Total
Passaporte Salvo-conduto
Angolana 2 0 2
Brasileira 6 0 6
Burundesa 20 0 20
Camaronesa 1 0 1
Congolesa 12 0 12
Espanhola 1 0 1
Indiana 3 0 3
Malawiana 4 1 5
Mexicana 1 0 1
Nigeriana 28 1 29
Portuguesa 12 0 12
Queniana 1 0 1
Ruandesa 2 0 2
Russa 1 0 1
Senegalesa 2 0 2
Somaliana 4 0 4
Sul-africana 29 0 29
Tanzaniana 11 0 11
Venezuelana 1 0 1
Zambiana 4 0 4
Zimbabweana 7 1 8
Total 152 3 155
Fonte: elaboração própria.

Acompanhantes da migração por nacionalidades


Questionados sobre com quem migrou (Tabela 10),
a maioria dos inquiridos (53) disse que o fez sozinho,
seguidos dos que responderam terem migrado com amigos
(37), com pais (9) e com outros familiares (8). Entretanto,
registamos (5) inquiridos que disseram ter migrado com o
pai, apenas (1) com a mãe e (4) com o filho.
Algumas diferenças notáveis podem ser observadas com os
inquiridos de nacionalidade nigeriana em que (10) disseram
ter migrado sozinhos e (9) com amigos. Dos inquiridos de
144
nacionalidade burundesa (13) revelaram ter migrado com
amigos e três (3) migraram sozinhos, enquanto que a maioria
dos inquiridos (6) de nacionalidade congolesa afirmou ter
migrado com amigos. Por último, os ruandeses destacam-se
na variável viajou sozinho (7) em relacção as restantes pais,
mãe, filho e outros familiares.

Tabela 10. Acompanhantes da migração por nacionalidades


Outros Total
Nacionalidade Sozinho Pais Pai Mãe Filho Amigo familiares

Brasileiro 4 1 0 0 0 2 0 6
Burundês 3 0 2 0 0 13 2 20

Congolês 3 0 0 0 0 6 2 11

Indiano 0 1 0 0 0 0 1 2
Malawiano 3 0 0 0 0 0 1 4

Nigerianos 10 2 0 0 0 9 1 22

Portuguesa 1 1 0 1 0 0 0 3

Ruandesa 1 1 0 0 0 1 0 3
Somaliana 1 0 0 0 0 2 1 4

Sul-africana 22 3 0 0 0 0 0 25

Tanzaniana 1 0 3 0 2 2 0 8

Zambiana 3 0 0 0 0 1 0 4
Zimbabweana 1 0 0 0 2 1 0 4

Total 53 9 5 1 4 37 8 116

Fonte: elaboração própria.

145
Estatuto de residência em Moçambique
Segundo a Lei 3/95, na República de Moçambique é
considerado estrangeiro todo o cidadão que não tenha a
nacionaldiade moçambicana em conformidade com o
ordenamento jurídico vigente. Porém, de acordo com a
mesma lei, esse estrangeiro pode ser concedido o estatuto de
cidadão residente com direito de residir em Moçambique,
concedido pela autoridade competente. Para o efeito, é-lhe
emitido o DIRE- Documento de Identificação e Residência
para o Estrangeiro.
A Tabela 11 dá-nos informações sobre as respostas
concedidas pelos inquiridos relacionadas com o estatuto de
residência em Moçambique. Neste contexto, dos (151)
respondentes, a maioria (82) revelou ter o estatuto de
residente enquanto que (69) disseram ter residência
temporária. É importante observar que o tempo de
residência temporária em Moçambique é regido pela Lei
5/93 que estabelece três tipos de DIRE: i) Que estabelece
uma residência precária (que varia de 90 dias a 5 anos); ii)
Que concede uma residência temporária (a um cidadão
estrangeiro que tenha residência precária há mais de 5 anos);
e iii) Que prevê uma residência permanente (concedida a um
estrangeiro que tenha residência temporária há mais de 10
anos consecutivos).

146
Tabela 11. Estatuto de residência
Estatuto de residência
Nacionalidade Total
Permanente Temporário
Angolana 2 0 2
Argentina 1 0 1
Australiana 1 0 1
Brasileira 2 0 2
Burundesa 9 12 21
Camaronesa 0 1 1
Congolesa 10 4 14
Espanhola 1 0 1
Indiana 1 0 1
Italiana 0 1 1
Malawiana 2 1 3
Mexicana 0 1 1
Nigeriana 11 16 27
Portuguesa 10 2 12
Queniana 1 0 1
Ruandesa 2 1 3
Russa 1 0 1
Senegalesa 0 1 1
Somaliana 3 1 0
Sul-africana 16 14 30
Tanzaniana 1 0 1
Venezuelana 1 9 10
Zambiana 4 0 4
Zimbabweana 3 5 8
Total 82 69 151
Fonte: elaboração própria.

Motivo(s) da mudança do local de residência


No estudo das migrações é sempre importante
questionar os motivos que terão forçado o indivíduo a se
mudar da área de residência habitual. Foi nesse contexto em
que foi elaborada a Tabela 12 que mostra claramente que a
maioria dos inquiridos (206) indicou a falta de emprego
como a principal motivo, seguidos por aqueles que disseram
ter mudado por causa do casamento (102), escola (97), feitiço

147
(90), motivos familiares (70), emprego e fome (45), guerra
(26), negócio (10), fome (8) e condições climáticas (6).
Além dos motivos acima apresentados, foram
também identificados outros motivos que tiveram apenas
duas respostas de cada, tais como gravidez, guerra e fome,
ideologia da casa, casamento, missão de serviço, Serviço
Militar, trabalho e escola, escola e casamento, seguir minha
missão divina, viuvez, divórcio ou separação, o pai vendeu a
casa e novo casamento da mãe, discussões com os vizinhos,
injeva, gostar da cidade, entre outras não especificadas.
Ao analisarmos as respostas sobre os motivos que
originaram a mudança do local de residência dadas pelos
estrangeiros, o emprego é foi o principal motivo apontado
pela (44), seguido da guerra (22), feitiço (22), casamento (16),
escola (15), motivos familiares (14), emprego e fome (12),
negócio (10) e fome (3).

Tabela 12. Razão de mudança de residência


Nacionalidade
Razão de mudança Total
Estrangeira Moçambicana
de residência
Motivos familiares 14 56 70
Escola 15 82 97
Emprego 44 162 206
Casamento 16 86 102
Guerra 22 4 26
Fome 3 5 8
Negócio 10 0 10
Escola e emprego 0 4 4
Condições climáticas 4 2 6
Feitiço 22 68 90
Emprego e fome 12 33 45
Outras 15 32 47
Total 177 536 711
Fonte: elaboração própria.

Pretende retornar a sua área de origem?


148
Em relação a esta pergunta, procuramos saber se o
migrante já teria resolvido as preocupações que o forçaram a
sair da sua área de origem. Observando a Tabela 13, conclui-
se que, para a maioria dos inquiridos (43) a presença em
Moçambique não é definitiva, revelando deste modo a
vontade de um dia regressar para os países de origem. Esta
resposta foi particularmente dada pelos respondentes de
nacionalidade portuguesa (8) e nigeirana (9) seguidos pelos
congoleses, burundeses e zimbabweanos com (4) inquiridos
cada, brasileiros, malawianos e sul-africanos com (3) e por
último se encontram (2) respondentes angolanos e aquelas
nacionalidades em que foi apenas (1) respondente que se
mostrou interessado em voltar a terra de origem que são os
de nacionalidade zambiana indiana e ruandesa.

Tabela 13. Pretensão de regresso à área de origem.


Nacionalidade Sim Não Total
Angolana 2 0 2
Brasileira 3 3 6
Burundesa 4 16 20
Congolesa 4 8 12
Indiana 1 2 3
Malawiana 3 2 5
Nigeriana 9 21 30
Portuguesa 8 4 12
Ruandesa 1 1 2
Sul-africana 3 26 29
Zambiana Indiana 1 3 4
Zimbabweana 4 3 7
Total 43 89 132
Fonte: elaboração própria.

Integração na Cidade de Maputo


É muito comum em estudos de migração questionar
sobre a integração do imigrante. Trata-se de um conceito
muito abstrato e, muitas das vezes, depende da experiência
pessoal, varia de indivíduo para indivíduo. Para tal, existem
149
vários indicadores sobre a integração que podem ser de
natureza social, cultural económica, psicológica ou mesmo
política. Para este estudo identificamos aleatoriamente como
indicadores o conhecimento da língua portuguesa, actividade
que exerce ou ocupação e, o significado de integração
segundo a pessoa inquirida ou entrevistada.
Sobre esse conceito, os nossos inquiridos e
entrevistados tiveram várias opiniões. No geral, sentem que
os moçambicanos são acolhedores, apesar de algumas
dificuldades encontradas. Por exemplo, um dos
entrevistados de nacionalidade portuguesa disse que
Moçambique é um bom país para se estar, pelo facto do seu
povo ser humilde e bastante receptivo. Entretanto, a maioria
dos respondentes migrantes de origem africana diz que
“apesar de sermos o mesmo povo sentimo-nos
discriminados em relacção aos indianos e aos brancos” e que
nos bairros onde residem têm sido chamados por nomes que
acham não serem muito abonatório, como é o caso da
expressão munigeriano21 e vapfumba (hóspedes). Além disto,
estes migrantes sentem-se discriminados na realização dos
seus negócios porque, segundo eles, as autoridades
moçambicanas apenas privilegiam os negócios de imigrantes
de outra cor da pele.
A maioria dos que respondeu sobre a presença de
imigrantes e sua inserção foi unânime em dizer que tem
aprendido muito deles e um dos exemplo disso, segundo eles,
é a forma de fazer negócio em contentores e em pequenas
quantidades acessíveis a todos os bolsos, diferentemente dos
indianos que vendem a grosso. Além disto, dizem eles

21 O prefixo “mu” na língua changana significa o/a dependendo da


circunstânica. Neste caso significa o nigeriano. Mais detalhes sobre o
singificado vide Ngunga e Simbine (2012).
150
também que aprederam a preparar alguns pratos típicos dos
países de origem destes migrantes, com é o exemplo da carne
de porco assada sem gordura (práto típico de Burundi) e a
reativação do muganda que na língua Kynhurwanda do
Ruanda significa trabalho comunitário.

Sabe falar a língua portuguesa


O saber falar a língua do local ou do país hospedeiro
constitui vantagem, conforme disseram os entrevistados. Ao
longo das entrevistas, alguns afirmaram ter aprendido a
língua portuguesa ao escutar os moçambicanos a falar, outros
disseram que aprenderam com os seus familiares que já se
encontravam a residir em Moçambique e, outros ainda
disseram ter aprendido a língua por causa do comércio e
finalmente aqueles que disseram ter aprendido através da
simpatia que conquistaram dos moçambicanos.
A Tabela 14 mostra por nacionalidades que os que
sabem falar a língua portuguesa se destacam os falantes de
língua inglesa liderados por nigerianos (30) e sul-africanos
(29) e menor incidência os tanzanianos (1), zimbabweanos
(9) e zambianos (4). Quanto aos falantes da língua francesa
encontramos as seguintes nacionaldiades por ordem de
número de respondentes: burundeses (21), congoleses (14) e
ruandese (3).
Os portugueses, brasileiros e indianos estão
excluídos desta análise pelo facto da língua oficial nesses
países ser o português.

151
Tabela 14. Sabe falar a língua portuguesa, por nacionalidade.
Nacionalidade Sabe Não Total
Burundesa 21 0 21
Brasileira 2 0 2
Congolesa 14 0 14
Indiana 3 0 3
Nigeriana 30 0 30
Portuguesa 11 0 11
Ruandesa 3 0 3
Sul-africana 29 0 29
Tanzaniana 1 0 1
Zambiana 4 0 4
Zimbabweana 9 0 9
Moçambicana 935 10 945
Total 1062 10 1072
Fonte: elaboração própria.

Actividade/profissão/ ocupação que exerce na actualidade


Como se pode observar na Tabela 15, a principal
actividade desenvolvida pela população estrangeira é o
comércio, de acordo com (86) respondentes, seguida pela de
cabeleireiro (7), modista (4), engenheiro de obras e
cozinheiro (3) cada. Por último, com (2) respondentes cada
uma encontram-se as profissões de professor, jurista,
consultor, funcionário bancário, construtor civil, pastor de
igreja/obreiro e empregada doméstica/balcão.
Importa observar que houve outras respostas dadas
pelos inquiridos com apenas um respondente que são:
Educador de infância, administrador de empresa, corretor de
seguros, investigador, assessor, alfaiate, vendedor de roupa
de segunda mão, técnico de telemóveis, vendedor de
telemóveis e acessórios de viaturas, gestor financeiro, gestor
de informática, instrutor de artes marciais, modelo, promotor
de vendas e vendedor de balcão.

152
Tabela 15. Actividade que exerce na actualidade.
Nacionalidade
Actividade Estrangeira %
Professor 2 1.7
Jurista 2 1.7
Consultor 2 1.7
Modista 4 3.4
Funcionário bancário 2 1.7
Comerciante 86 74.1
Cabeleireiro 7 6.0
Construtor civil 2 1.7
Engenheiro de obras 3 2.5
Pastor de igreja/obreiro 2 1.7
Empregada doméstica/balcão 2 1.7
Cozinheiro 3 2.5
Total 116 98.7
Fonte: elaboração própria.

Conclusões
Estudar migrações ou pessoas em movimento é um
dos assuntos demográficos de difícil mensuração. Mais difícil
ainda, é estudar pessoas que por alguma razão não possuem
documentos, ou se encontram no país hospedeiro como
consequência de fuga por temer a sua vida e que dificilmente
declaram quem são e, por consequência, se mostram
indisponíveis para participar em estudos desta natureza.
Existe, também, dificuldade em identificar algumas
nacinalidades tais como portuguesa e indiana que, por
natureza histórica se apresentam com dupla ou tripla
nacionalidade, situação que nos coloca em desafio para
identificá-los como imigrantes internacionais. Aliada a esta
situação temos a grande dificuldade de encontrar dados
estatísticos fiáveis que possam suportar os nossos
argumentos. A título de exemplo, apresentar IV
Recenseamento Geral da População e Habitação em
153
Moçambique que, apesar de ter sido realizado em 2017 e a
publicação dos seus dados definitivos ter ocorrido em 2019,
ainda não é possivel ter acesso a base de dados que nos possa
auxiliar a fazer uma mensuração indirecta da migração. Por
essa razão, este trabalho pode estar inferido de algumas
incosistências estatísticas que provavelmente foram
colmatadas por entrevistas e diversa literatura existente sobre
a temática analisada.
No geral, constata-se que as migrações internacionais
em Moçambique têm sido ignoradas, particularmente aquelas
que dizem respeito à Cidade de Maputo. Como residentes
nesta Cidade, observamos algumas transformações espaciais
resultantes da presença de imigrantes que outrora não faziam
parte do cenário geográfico da Cidade de Maputo, na sua
maioria resultantes do fim da guerra dos 16 anos (1976-1992)
e da abertura do País aos investimentos estrangeiros como
resultado da chamada ‘descoberta’ dos recursos naturais que
transformaram Moçambique num destino final de
imigrantes, deixando por consequência de ser um país de
trânsito de migrantes.
Ao longo do estudo usamos de forma propositada a
expressão nacionalidade estrangeira, para a distinguir da
expressão migrantes moçambicanos.
Com este estudo pretendemos compreender a
migração internacional nas últimas duas décadas e avaliar as
transformações espaciais resultantes das migrações. Para o
efeito, foi incontornável a análise de dados dos censos de
2007 e 2017, consubstanciada por informações obtidas nas
entrevistas e inquérito realizadas para o efeito, bem como
pela informação bibliográfica. Assim, a conclusão a que
chegamos, se circunscreve nos seguintes aspectos:
1. A globalização, o avanço das comunicações, as
guerras que se alastraram em todo os
154
continentes, os desastres ambientais, as doenças
globais, a internacionalização da economia e os
problemas ambientais exigem uma reflexão mais
profunda sobre as migrações internacionais do
mundo contemporâneo;
2. A imigração portuguesa e indiana continua ainda
presente na Cidade de Maputo. Porém, a
determinação estatística destes cidadãos tem sido
um exercício difícil, uma vez que muitos deles
têm uma dupla nacionalidade ou tripla
nacionalidade ficando por consequência, muitas
vezes, fora das estatísticas nacionais de
Moçambique;
3. A Cidade de Maputo tem sido nos últimos anos
palco de encontro de imigrantes oriundos de
países que, até há duas décadas, não faziam parte
das estatísticas do país, tais como cidadãos
australianos, argentinos, brasileiros, burundeses,
congoleses, ruandeses, nigerianos e somalianos;
4. Os inquéritos e as entrevistas realizadas serviram
para desmistificar a imigração portuguesa que
tem sido vista apenas como resultado da
cooperação bilateral, mas que no fundo é
também consequência da necessidade de
melhoria das suas condições de vida que Portugal
já não as pode garantir;
5. Existe uma nova geografia de imigração na
Cidade de Maputo resultante da vinda de muitos
africanos, portugueses, asiáticos que vêm
Moçambique, em particular a Cidade de Maputo
como um espaço hospitaleiro para novas

155
oportunidades da vida social, económica e
políticas;
6. Na Cidade de Maputo existe uma nítida Divisão
Geográfica do Trabalho, onde os portugueses, os
indianos e os chineses se encontram envolvidos
em grandes negócios, como é o caso do controlo
de grandes armazéns (indianos e chineses),
aluguer de estabelecimentos comerciais para os
africanos (indianos), hotelaria e restauração
(portugueses) e construção de infraestruturas de
transporte, habitacionais, escolares e hotéis
(portugueses e chineses), enquanto que os
africanos se encontram envolvidos em pequenos
negócios, como é o caso da venda de peças de
viaturas (nigerianos), pequenas mercearias
(burundeses, ruandeses e nigerianos),
cabeleireiros (congoleses, burundeses e
ruandeses), venda de bebidas (ruandeses)
confecção de roupa e venda de roupa importada
da China (senegaleses). No geral, os
moçambicanos são meros consumidores
envolvidos em actividade comerciail de fraca
expressão em volume e vendas, venda de roupa
de segunda-mão, de gestão político-
administrativa na função;
7. Os imigrantes de forma geral se sentem
integrados, porque se comunicam em língua
portuguesa, têm trabalho (negócio) e são bem
aceites por moçambicanos. Muitos deles pensam
em voltar para o país de origem logo que forem
satisfeitas as motivações que os levaram a migrar.

156
Referências
AKESSON, L. Postcolonial portuguese migration to
Angola: migrants or masters? London: Palgrave Macmillan,
2018.
________. 2020, European migration to Africa and the
coloniality of knowledge: the Portuguese in Maputo. Third
World Quarterly, v. 41, n. 7, 2020, p. 1-17.
ALLEN, N. Indo-Mozambicans in Maputo: oral
narratives on identity and migration from 1947-1992. PhD
thesis (African Centre for Migration and Society),
Johannesburg: University of Witwatersrand, 2019.
CABAÇO, J. Moçambique: identidades, colonialismo e
libertação. Tese de Doutoramento (Faculdade de Filosofia ,
Letras e Ciências Humanas). São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2007.
CASTLES, S.; MILLER, M. The age of migration:
international population movements in the modern world.
New York: Palgrave Macmillan, 2009.
CANDEAIS, P.; MALHEIROS, J.; MARQUES, J.;
LIBERATO, E. A nova emigração para Angola: integração
diferenciada e forte ligação a Portugal. VALENTE, G.
(Org.). Regresso ao futuro: a nova emigração e a
sociedade portuguesa. Lisboa: Gradiva, 2016, p. 199-233.
CHEMANE, V. Pareceria Moçambique-China: cruzamento
de estratégias seeking em contexto de globalização
financeira (um olhar aos resultados do período 2001-2016).
Conjuntura Austral, v. 10, n. 49, 2019, p. 62-80.

157
CHICHAVA, S. Moçambique na Rota da China:
desafios para Moçambique. Maputo: Instituto de Estudos
Sociais e Económicos, 2010.
CONSELHO MUNICIPAL DE MAPUTO. Pelouro de
Saúde e Acção Social. Plano Director 2015-2019. Maputo:
Conselho Municipal de Maputo, 2019.
DIOGO, Z. Moçambique e o comércio internacional
das oleaginosas (1855 C. – 1890 C.). Dissertação de
Mestrado (Departamento de História). Lisboa:
Universidade de Lisboa, 2011.
FERREIRA, B.; SANTANA, E.; MALHEIROS, J.;
RAIMUNDO, I. A atual emigração portuguesa para
Moçambique: identidades complexas no quadro de um
movimento Norte-Sul em contexto pós-colonial.
VALENTE, G. (Ed.). Regresso ao futuro: a nova
emigração e a sociedade portuguesa. Lisboa: Gradiva, 2016,
p. 236-271.
INE - INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. II
Recenseamento Geral da População e Habitação:
Maputo cidade - Resultados definitivos. Maputo: INE,
1999.
________. III Recenseamento Geral da População e
Habitação: Maputo cidade-Resultados definitivos. Maputo:
INE, 2009.
________. IV Recenseamento Geral da População e
Habitação: Maputo cidade- Resultados definitivos.
Maputo: INE, 2019.
JAFAR, S. Presença chinesa em Moçambique, 2000-2015:
hetero-identidades, ‘neocolonialimso’ e ‘apartheid’ sócio-
laboral. OLIVIERI, C.; SANTOS, A. (Ed.).
158
Decolonizando identidades: pertenecia y rechazo
de/desde el Sur Global. Chiara Olivieri e Antonio Ortega
Santos (Editores). Granada: Instituto de Migraciones de la
Universidad de Granada, 2017, p. 301-314.
KONIJIN, P. Chinese Resources for Infrastructures
(R41) Swaps: An Escape from the Resource Curse?
Occasional Paper 201. Johannesbourg: South African
Institute of International Affairs, 2014.
LEITE, J.; KHOURI, N. História Social e Económica
dos Ismailis de Moçambique - Século XX. Coleção
Documentos de Trabalho n. 92. Lisboa: Instituto Superior
de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa,
2011.
NGUNGA, A.; SIMBINE, M. Gramática Descritiva da
Língua Changana. Colecção: As Nossas Línguas V.
Maputo: Centro de Estudos Africanos da Universidade
Eduardo Mondlane, 2012.
MATUSSE, R. África Austral: das migrações Bantu à
integração regional. Maputo: Imprensa Universitária, 2009.
MEDEIROS, E. Formação e desagregação das
comunidades de origem chinesa nas cidades moçambicana
da Beira e Lourenço Marques. In: ACTAS... Seminário
Moçambique, Navegação, Comércio e Técnicas.
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 297-314.
NOLA, R. Knowledge, discourse, power and genealogy in
Foucault. Critical Review & International Social and
Political Philosophy, v.1, n. 2, 2007, p. 1009-1154.
OUCHO, J. African brain drain and gain, diaspora and
remittances: More rhetoric than action. ADEPOJU, A.;
159
NAERSSEN, T.; ZOOMERS, A. (Ed.). International
migration and national development in sub-Saharan
Africa. Boston: Brill, 2008, p. 49-69.
PATEL, H. Oportunidade e desafios para Moçambique na
expansão indiana em África. Revista Brasileira de
Estudos Africanos, v. 2, n. 4, 2017, p. 64-95.
PEIXOTO, J. As teorias explicativas das migrações:
teorias micro e macro-sociológicas. Lisboa: Centro de
Investigação em Sociologia Económica e das Organizações
da Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, 2004.
PEIXOTO, J.; OLIVEIRA, I.; AZEVEDO, J.;
MARQUES, J.; GÓIS, P.; MALHEIROS, J. A nova
emigração para Angola: integração diferenciada e forte
ligação a Portugal. VALENTE, G. (Ed.). Regresso ao
futuro: a nova emigração e a sociedade portuguesa. Lisboa:
Gradiva, 2016, p. 199-233.
PILILÃO, F. Moçambique: evolução da toponímia e da
divisão territorial 1974-1987. Maputo: s/d, 1989.
RAIMUNDO, I. Are not Mozambicans good enough
for Portuguese employers? What is missing in knowledge
exchange? Artigo no prelo. Projecto Portuguese migrants in
Mozambique: Postcolonialism, emotions and exchange of
knowledge, 2020.
RAIMUNDO, I.; RAIMUNDO, J. A migração
moçambicanna na África Austral: povoamento e formação
de famílias transnacionais. In ARROYO, M.; CRUZ, R.
(Org.). Território e circulação: a dinâmica contraditória
da globalização. São Paulo: Annablume, 2015, p. 239-270.
ROCHA-TRINDADE, B. Das migrações às
interculturalidades. Lisboa: Afrontamento, 2015.
160
SEDA, F. Gestão de fronteiras em Moçambique: uma
análise do impacto dos padrões internacionais de segurança
para as regiões fronteiriças. Maputo: Escolar Editora, 2017.
SANTOS, B. The end of the cognitive empire: the
coming of age of epistemologies of the South. London:
Croydon, 2018.
ZAMPARONI, V. Monhés, baeanes, chinas e afro-
mahometanos. Colonialismo e racismo em Lourenço
Marques, Moçambique, 1890-1940. Paris: Karthala, 2000.

161
162
CAPÍTULO 5

DETERMINACIÓN SOCIAL DE LA VIDA, LA SALUD


Y LA MUERTE:
Una mirada geohistórica y post Covid -19.

Giannina Zamora Acosta

Introducción
Cuando la OMS declaró a la Covid-19 una pandemia,
enseguida nos atrapó el fantasma del miedo y la
incertidumbre; noticias, investigaciones y diferentes
versiones sobre esta pandemia nos inundan, abarcando no
solo el espacio público, sino también el privado (familia,
amig@s, vecinos, entre otros).
La pandemia de la Covid-19 no llegó de la misma
manera a todos los grupos sociales: se presentaron grupos
más vulnerables que otros en este escenario de pandemia,
pues la afección a los sujetos sociales con mayor grado de
vulnerabilidad “está íntimamente correlacionada con la
posición socioeconómica […suponiendo que ésta se
interrelaciona además con las vulnerabilidades ligadas a la
edad, sexo, condición etnocultural, etc…] y, por lo general,
los pobres sufren más con los desastres que los ricos”
(BLAIKIE, 1996, p. 30).
Pobres, que se ubican en los paisajes de pobreza e
inequidad y que, de acuerdo a Bauman (2011), son los que
“han sido ya desechos de la sociedad” y tratados como tales;
por lo tanto, son todos aquellos que han recibido los daños
colaterales del denominado desarrollo, estado enmascarado
por la ideología del progreso, que en realidad no es sino “el

163
desarrollo científico-tecnológico, el crecimiento económico,
la modernización capitalista, la expansión mercantil, la
obsesión productivista, etc.[…]” (BENJAMÍN, 1973, p. 6,
citado por SIERRA, 2011, p. 2), objetivos vigentes en el
modelo de acumulación del capital.
Los muertos, especialmente la población vulnerable
socioeconómicamente y políticamente, que se afectaron por
la Covid-19, son solo números que alimentan las estadísticas
o mapas estatales y mundiales que producen “visiones
normalizadas siempre ligadas a las representaciones
dominantes […] que oscurecen las ambigüedades existentes”
(OSLENDER, 2011, p. 145).
El objetivo de este artículo consiste en analizar las
estructuras de poder desde una perspectiva multi escalar
geográfica y temática, que permita reflexionar sobre la
pandemia no como un hecho aislado y desconectado, sino
como expresión de la capitalización de los espacios en el
marco de nuestras relaciones metabólicas con la naturaleza,
en este proceso de acumulación de capital sin límite;
naturaleza que ha sido cosificada, cuantificada e
invisibilizada, desconociendo su valor, y su valor de uso en
el equilibrio de la vida.
En este escenario de diferencias geográficas de
segregación, exclusión, acumulación de riqueza, etc.,
materializadas en diferentes escalas geográficas que se
imbrican y contradicen, y que se decantan en enfermedades,
pandemias y cambios climáticos, entre otros, emerge la
necesidad de replantearnos otras formas de relacionarnos,
tanto como sujetos sociales, como con la naturaleza.
En consecuencia, surge la pregunta de que si, como
sociedad, ¿hemos comprendido la crónica de esta salud-
enfermedad-muerte anunciada? y también, si ¿existe la

164
posibilidad de construir territorios de vida, de libertad o
contra-espacios post Covid-19?
El caso de estudio es Ecuador desde la mirada de la
multi-escalaridad espacial, y el método de aproximación para
la reflexión es el materialismo histórico geográfico, que
permite leer al territorio desde la complejidad, dinamismo y
contradicción, y con el apoyo de la geo-historia como
herramienta teórico – metodológica, articular espacio,
tiempo y sociedad, considerando al espacio como una
construcción social.

Crónica de una pandemia anunciada


Desde la visión globalizada de desarrollo, las políticas
económicas están orientadas hacia el crecimiento
económico, relacionado con mayores ingresos, y medido
mediante indicadores como el Producto Interno Bruto (PIB),
equiparado como un equivalente de prosperidad y mejor
calidad de vida. Sin embargo este indicador no considera los
conflictos socio-ambientales, las inequidades de poder y de
distribución de la riqueza (ZAMORA, 2016, p. 46-47).
La premisa asumida de progreso y desarrollo de este
modelo de acumulación se fundamenta en la comprensión
irracional de que los recursos del planeta son ilimitados; por
lo tanto, se los cosifica en las lógicas de valorización del valor
en el proceso producción – consumo.
Ecuador y América Latina conformamos el “ejemplo
palpable de la frustración teórica” de las propuestas de
desarrollo (SOTELSEK, 2008, p. 163), diseñadas desde los
postulados de la economía clásica y adoptados como
directrices por los organismos internacionales (SOTELSEK,
2008), que subordinan y condicionan su implementación a
gobiernos de los países denominados de periferia
165
(WALLERSTEIN, 2004), en desarrollo, o tercer mundo
(ESCOBAR, 1996).
Naomi Klein, en su libro “La Doctrina del Shock”,
explica cómo el miedo, los mitos, y otros mecanismos 22,
permiten a los centros de poder global impulsar a las grandes
corporaciones internacionales para que se apropien de los
recursos naturales de los países considerados de la periferia,
proceso que Harvey lo denomina acumulación por despojo23,
configurando de este modo el espacio geopolítico propicio
para la expansión de los espacios de capital24 , y
estructurando los espacios de un mercado mundial que:
[…] universaliza a todos los habitantes del planeta, aunque
lo haga en términos puramente abstractos. Los construye en
calidad de miembros de un género humano compuesto de
propietarios privados y, al hacerlo rompe los universos
cerrados del valor de uso en los que se reflejan las
innumerables identidades concretas que están siempre
conectadas entre sí (ECHEVERRÍA, 2010, p. 237).

La valorización del valor o acumulación


desenfrenada de capital, comandada por capitales globales,
ha desmantelado las débiles autonomías de los Estados-
Nación en consolidación, proceso que se ha materializado en
los espacios del sur bajo lógicas de la dependencia,

22 “Por ejemplo, EUA ha utilizado repetidamente el cierre del acceso a su


enorme mercado como arma para forzar a otras naciones a cumplir sus
deseos […] (HARVEY, 2005, p. 109).
23 “La acumulación por desposesión […] se acelera cuando ocurren crisis

de sobreacumulación en la reproducción ampliada […]” (Idem, p. 115).


24 Harvey (2005) plantea la “teoría de una solución espacial, una solución

espacio-temporal a las contradicciones internas de la acumulación de


capital […]” el argumento es “la tendencia crónica del capitalismo a la
crisis” por sobreacumulación del capital (exceso de capital y fuerza de
trabajo).
166
aprovechando la mano de obra barata, la débil legislación de
protección ambiental y de derechos laborales, entre otros,
“desnudando la razón utilitaria, egoísta y antisocial de un
modelo económico de DESARROLLO […] que arrastra la
marca indeleble de la enfermedad y la muerte” (CAMPAÑA,
2020, p. 1). Esta estrategia globalizadora neoliberal, a través
de imposiciones, se ha apropiado del agua, la tierra, el aire, el
suelo, el subsuelo (CAMPAÑA, 2020); es decir, de la vida de
los seres humanos y no humanos.
Si los seres humanos o seres sociales viven en medio
de “opresiones, represiones, explotaciones, todas ellas
evitables en principio, es porque su proceso natural de
reproducción no obedece a un telos propio capaz de
sintetizarlo sino a una ajena –enajenado- que es el telón
cósico del valor instalado como sujeto que se autoafirma, que
se valoriza: el telos de la acumulación de capital”
(ECHEVERRIA, 1988, p. 9).
La acumulación de capital se expresa en la “fe en el
crecimiento” que podría ser “una de las causas
fundamentales de esta crisis civilizatoria en la cual estamos, a
la vez crisis socioeconómica, ecológica, política y moral” (LE
QUANG, 2017, p. 149)
En este contexto de subordinación y segregación, la
lectura de las enfermedades, pandemias en general y de la
Covid-19 en particular, es abordada tanto por los
organismos internacionales como nacionales desde una
perspectiva fragmentada y lineal (causa – efecto), la cual es
funcional al poder (Estado, farmacéuticas, etc.), donde se
propone un cierto culpable (animal que trasmitió el virus, el
virus mismo) e individuos que no se cuidan y no cumplen el
enclaustramiento obligatorio, establecido por decreto
gubernamental, enmarcado así mismo en lógicas de dominio
y de subordinación, en las que el culpable siempre es el otro, el
167
externo, el individuo “de a pie”. Esta forma de mirar la
realidad invisibiliza las estructuras de poder inequitativo y
dominante, responsable de la construcción y reconstrucción
de paisajes de enfermedad y muerte.
La información que se registra de la Covid-19 es
lineal, parcial y fragmentada, consistente simplemente en
estadísticas que muestran cantidades de contagios, fallecidos,
sobrevivientes. Sobre esta base de información se afirma
desde diferentes perspectivas (actores estatales y no estatales)
que la solución para esta pandemia gira alrededor de una
sustancia milagrosa, denominada vacuna, la que permitirá
regresar a la “normalidad”: normalidad de inequidades que se
multiplican a escala global y local, pero que en realidad solo
se trata de una solución que permite continuar con la
expansión de la mercantilización del mundo, de la vida, así
como también de los “bienes comunes y públicos” (LE
QUANG, 2017).
Por lo tanto, las supuestas soluciones provienen de
un Estado que, en la práctica, fortalece los derechos
individuales y no colectivos, planifica desde miradas
fragmentadas de la realidad, y estructura un sistema de salud
público fragmentado y desarticulado, que no busca
responder a los requerimientos ni individuales, peor
colectivos, de los grupos sociales que habitan los diferentes
espacios de sus territorios. A su vez, se observa la
desarticulación de las políticas públicas respecto a la
multiplicidad de territorios, entendido éstos, como los
espacios donde se articulan procesos sociales, económicos,
ambientales, culturales y políticos (ZAMORA, 2016; 2019).
En este escenario, podemos afirmar que la pandemia
de la Covid-19 no llegó de la misma manera a todos los
grupos sociales, sino que hay grupos más vulnerables, sujetos
sociales y globales que han sido considerados como desechos
168
de la sociedad y tratados como tales (BAUMAN, 2011),
grupos sociales afectados históricamente por los daños
colaterales del denominado desarrollo y progreso, y cuyas
muertes (por la pandemia, hambre, desempleo, entre otros)
son registradas únicamente como números abstractos que
alimentan las estadística estatales, o son muertos de Covid-
19 que no aparecen materialmente, y que han desaparecido
como por arte de magia, como lo que ocurrió en la ciudad de
Guayaquil (Ecuador).
La desaparición y falta de noticias de decenas de fallecidos
durante la emergencia sanitaria que vive Guayaquil ha
repercutido no solo en el dolor de los deudos que perdieron a
sus parientes, sino en críticas desde la sociedad que apuntan a
una negligencia absoluta de parte del Gobierno en el
tratamiento que se ha dado a los cadáveres en cuestión
(MONCADA, 2020, p. 1).

Si trazamos una línea de tiempo de la expansión de la


Covid-19, el paciente 0 habría arribado a la ciudad de
Guayaquil proveniente de España y se le confirmaría como
positivo el 28 de febrero. Se dice que esta persona estuvo
principalmente en la provincia de Los Ríos y que, una vez
que fuera identificado como paciente, en su torno como
medidas se establecieron cercos epidemiológicos que no
tuvieron la efectividad esperada, de forma que “para el 17 de
marzo, cuando comenzó la restricción total de circulación,
había 111 casos confirmados, pero en realidad Ecuador tenía
1692 personas enfermas” (SECRETARÍA DE GESTIÓN
DE RIESGOS, 2020)
En la provincia del Guayas, específicamente en
Guayaquil, a pesar de la emergencia sanitaria, se desarrollaron
partidos de futbol con público, las playas lucieron llenas y en

169
el cantón Samborondón25 (espacialmente se ubica junto al
cantón Guayaquil) hubo una gran boda26 con decenas de
invitados (autoridades locales, entre otros). Además, el
aeropuerto José Joaquín de Olmedo seguía trabajando […].
Vuelos desde distintos países de Europa y Estados Unidos
siguieron aterrizando (en) Guayaquil” (CELI, 2020, p. 1).
En estas circunstancias, surge la pregunta: ¿qué
hicieron las autoridades locales (alcalde, prefecto, y gobierno
nacional?: lo primero ha sido encontrar al culpable (“caso
0”), segundo: omitir las irregularidades e irresponsabilidades
respecto a los eventos que fueron autorizados por
autoridades locales y, tercero: emitir resoluciones de
emergencia en forma compelida.
El gobierno nacional, el 16 de marzo de 2020, declaró
el Estado de Excepción en todo el territorio ecuatoriano.
Estado de excepción (ya se refiere a las denominaciones
estado de emergencia, estado de sitio, o ley marcial) tiende cada vez
a manifestarse como el paradigma dominante de gobierno en la
política contemporánea. Leyes, decretos y órdenes emitidos en
profusión creciente tienden a borrar de forma radical todo
estatus jurídico del individuo, con lo cual se produce un ser
innombrable e inclasificable (AGAMBEN, 2005, P. 2-4,
citado en BAUMAN, 2011, p. 171).

En teoría, esta declaratoria en Ecuador tuvo como


objetivo el evitar la propagación de la Covid-19, siendo una
25 Al 9 de abril este cantón tiene una tasa de contagiados de 254 de Covid-
19 por cada 100.000 habitantes (SERVICIO NACIONAL DE
GESTIÓN DE RIESGOS Y EMERGENCIAS, 2020).
26 “Días después, una vez que saltaron las alarmas, en Guayaquil se

celebró una gran boda. Se omitió por completo la cuarentena porque


formar parte de la oligarquía te permite saltarte las reglas, incluso las del
cuidado de la vida de “las otras”, y que parezca gracioso. La oligarquía
siempre se ha permitido la indiferencia ante el sufrimiento ajeno el cual
termina siendo cruelmente naturalizado” (MOSCOSO, 2020, p. 1).
170
de las medidas la del aislamiento en domicilio, con la muletilla
“quédate en casa”, pero estas políticas no consideraron la
seguridad alimentaria del ejército de población desempleada,
de trabajadores informales, que sobreviven con ventas o
trabajos diarios; es decir, sin considerar las condiciones de
pobreza y de extrema pobreza de los ciudadanos que
sobreviven en la periferia de la periferia (zonas sin servicios
básicos, espacios de hacinamiento, etc.) especialmente de las
zonas urbanas.
Lo que pasó y aún pasa en Ecuador es el reflejo de la
débil y deficiente respuesta del Estado (gobierno nacional y
locales) frente a esta pandemia, pues históricamente se ha
atacado a toda iniciativa colectiva y, más bien, se ha
fomentado la “privatización de la atención a la salud y
desmantelamiento de los sistemas públicos de educación, de
salud y de seguridad social” (CAMPAÑA, 2020, p. 1). En
otras palabras, se ha fomentado un sistema de salud pública
que “ha dado demasiada importancia a los hospitales y no se
ha trabajado a nivel comunitario” (ERNESTO TORRES,
2020)27, y este sistema, además de ser “asistencialista y
obsoletoque a pesar de las inversiones en construcción de
hospitales” (BREILH, 2020), más bien se ha sumado a las
“dinámicas de corrupción que envuelven al sistema de salud”
(VALLEJO y ÁLVAREZ, 2020, p. 98), que han sido
denunciadas de forma exponencial durante la pandemia,
factores todos que imposibilitaron enfrentar esta crisis
humanitaria que eclosionó primero en la ciudad de
Guayaquil.
Una imagen del impacto de la Covid-19 que enfrenta
Ecuador se puede ver el siguiente gráfico.

27 https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52116100
171
Gráfico 1. Datos históricos de mortalidad (2018 – 2019) y
durante la pandemia.

Fuente: Mena (2020), basado en datos del Registro Civil del Ecuador.

De acuerdo a BBC News, en un reporte del 2 de abril


de 2020, “Ecuador ocupaba el segundo lugar de fallecidos
después de Brasil, aún cuando su población es doce veces
menor que la del gigante sudamericano y su territorio, 30
veces más chico”28. Sin embargo, la culpabilidad siempre se
atribuye al individuo, mas no a la estructura de poder
inequitativa y malsana, lo que se constata cuando el Ministro
de Salud Juan Carlos Zevallos29 manifestó que “el
comportamiento de las personas no ha sido el ideal y eso ha
causado serios focos de infección” (ZIBELL, 2020, p.1).

28Entrevista por BBC News al Ministro de Salud Juan Carlos Zevallos.


29Ministro que fue denunciado por el colectivo Acción Jurídica Popular
ante la Fiscalía, por “presunto delito de tráfico de influencias en el uso de
vacunas por Covid-19” (Diario el Universo de 28 de enero 2021,
disponible en <www.eluniverso.com>.
172
Mirada crítica geo-histórica de la Covid-19
En este artículo se pretende analizar la pandemia de
la Covid-19, no desde el modelo empírico lineal y teleológico
de relaciones causales entre virus y afectados, basado en
factores de riesgo, sino en el análisis geo-histórico del
proceso de la Covid-19, desde la propuesta de determinación
social de la salud, una de las categorías de la epidemiología
crítica (BREILH, 2003).
Entender la determinación social de la vida, de la
salud y de la muerte, implica comprender desde la totalidad,
complejidad y contradicción, las dinámicas históricas que
configuran estructuras espaciales (urbanos, rurales y de
transición) vulnerables y propicias para la expansión de la
pandemia.
Desde una lectura crítica, el proceso socio-histórico
que da forma y contenido a la estructura del espacio del
Ecuador responde a la diferencia espacial configurada por la
matriz de poder inequitativa que se produce por la división
del trabajo, las economías de la dependencia y la
subordinación del espacio local al capital global.
A continuación ejemplificamos la mirada integral de
la Covid-19, si articulamos la lectura de los mapas 1 y 2: en
el primero, se espacializa la tasa de casos de Covid-19 por
cantones (división político-administrativa) y, en el segundo,
se muestra la estructuración del espacio, configurado por el
proceso socio-histórico de despojos y de extractivismos, en
tanto relaciones metabólicas destructoras, que serán el
fermento ideal para desencadenar procesos malsanos, que se
expresarán como: pandemias, cambios climáticos,
segregaciones, paisajes de pobreza, entre otros.

173
Mapa 1. Tasas de casos Covid-19 confirmados por cantón.

Fuente: elaborado por la autora (2020).

Hasta la fecha de corte (1 de junio de 2020, para la


elaboración de los mapas), se notaban 17 cantones 30 que no
tenían casos confirmado de Covid-19 (4 ubicados en la
Amazonía, 7 en la región sierra y 6 en la costa), territorios de
gestión político-administrativo municipal, que se
caracterizan por poblaciones proyectadas al 2020 menores a
12.000 habitantes31 (INEC 2020), y con flujos de movilidad
incipiente o movilidad de paso, distantes de centros
(económicos, políticos y extractivos), y en los que prevalecen
todavía ciertos rasgos de convivencia comunitaria.
Los cantones con mayor afectación a la Covid-19, al
15 de agosto de 2020, son Guayaquil (cabecera cantonal y
provincial del Guayas) y Quito (Cabecera cantonal,

30 De acuerdo a la Constitución (2008), el Ecuador se organiza político -


administrativamente en: provincias, cantones y parroquias.
31 Proyecciones de población realizadas por el Instituto Nacional de

Estadísticas y Censos – INEC.


174
provincial de Pichincha y capital del Ecuador). De acuerdo
al Ministerio de Salud Pública (MSP), entre los 91.732 casos
confirmados con pruebas PCR y 6.065 personas fallecidas (a
los que adicionalmente se registran 3.567 fallecidos
probables por Covid-19 a nivel nacional), Pichincha reporta
20.304 casos confirmados y 803 fallecidos, mientras que
Guayas reporta 18.289 casos confirmados y 1.666 fallecidos
(MSP Infografía No. 170 inicio 29-02-2002 corte 15-08-2020
08:00)32.
Mapa 2. Estructura del espacio: Actividades extractivas por
región (Ecuador continental).

Fuente: elaborado por la autora (2020).

Desde la mirada basada en indicadores


macroeconómicos, Ecuador es un país que recibe ingresos
de la exportación de materias primas33 (minerales, petróleo,
32 https://www.salud.gob.ec/el-ministerio-de-salud-publica-del-
ecuador-msp-informa-situacion-coronavirus/
33 Banano, camarón, y flores son los principales productos no petroleros

que generan ingresos económicos para el país (Banco Central del


Ecuador, enero 2020).
175
camarón, banano, flores, entre otros), pero estos indicadores
no consideran los daños ambientales, sociales, políticos y
culturales, constituyéndose solo en expresiones de la
acumulación por saqueo (HARVEY, 2005). Por ejemplo,
Sen (1999) presupone necesarias las formas de ser y hacer de
una persona, y no solo:
Aspectos materiales (como leer, escribir, estudiar, estar
nutrido, estar sano, evitar la mortalidad prevenible, etc.) y
no materiales (participar en la vida pública de la sociedad,
expresarse libremente, etc.). Tradicionalmente se ha tendido
a confundir entre medios y fines. El crecimiento económico,
la modernización y el cambio tecnológico son medios para
el desarrollo (SEN, 1999, citado en FALCONÍ y OLEAS,
2004, p. 31).

La forma histórica que ha tomado el espacio del


territorio del Ecuador es la expresión de la forma de
reproducción del modelo de acumulación capitalista, donde
las sociedades localizadas en esta realidad espacial-social e
histórica concreta “están constituidas de múltiples redes de
poder socio-espaciales superpuestas y en intersección”
(MANN, 1986, p. 1), con intersecciones de los procesos
globales, nacionales y locales, marcadas por la dependencia a
los mercados internacionales, y las relaciones centro – semi
periferia –periferia (WALLERSTEIN, 2004).
La estructura del espacio ecuatoriano responde a la
configuración de su territorio en su forma capitalista, espacio
que como planea Lefebvre “no es un objeto científico ajeno
a la ideología o la política, no solo es el sitio donde se articula
el conflicto físicamente. El Espacio es político y estratégico
[…] es político e ideológico, […] es un producto literalmente
lleno de ideologías, […] sitio simbólico del conflicto, […]
espacio de interpretaciones y representaciones”

176
(LEFEBVRE, 1970, p. 98, citado en OSLENDER, 2010, p.
10).
Cuando se habla del riesgo de la pandemia de la
Covid-19 y su afectación como un fenómeno aleatorio en la
relación lineal causa – efecto, estamos realizando una
escisión a la realidad, que permite invisibilizar los procesos
malsanos (ejemplificados en el mapa 2) que determinan la
reproducción de capital y condicionan la vulnerabilidad de
los sujetos sociales, así también como la capacidad de
afrontamiento y respuesta por parte de las diversas escalas
espaciales de poder de los diferentes gobiernos (nacional –
local – nacional) que se sobreponen e intersecan en el
territorio ecuatoriano.
El Ecuador bio-geográficamente se divide en 4
regiones: sierra, costa, región amazónica e insular. En la
Amazonía ecuatoriana se asientan muchos pueblos indígenas
que tenían prácticas nómadas, de semi-nomadismo, o se
movían en territorios amplios, inclusive más allá de las
fronteras de los Estados (ZAMORA 2016, 65). Los espacios
de la región amazónica históricamente (ver mapa 2) han sido
“el locus que ha proporcionado materias primas para surtir
al mercado global, la actual pandemia está dejando secuelas,
con el riesgo en muchos casos del declive demográfico, e
inclusive la extinción de pueblos indígenas; todo ello en
medio de la inercia de los gobiernos y de los sistemas de salud
pública, que tiene matices de discriminación étnica”
(VALLEJO y ÁLVAREZ, 2020, p. 96).
Las provincias con mayor afectación al Covid-19 en
la Amazonía son aquellas que tienen imbricaciones con
actividades extractivas, principalmente minería y petróleo,
como son Pastaza, Orellana, Zamora Chinchipe, Morona
Santiago y Sucumbíos (Ver mapas 2 y 3), y que también se
muestran en el sistema de monitoreo de Covid-19 de pueblos
177
y nacionalidades indígenas, implementado por
34
organizaciones sociales
Mapa 3. Registro de Covid 19 en Nacionalidades y Pueblos de la
Amazonía

Fuente: Ministerio de Salud Pública, Ecuador (2020).

Una vez que tenemos la mirada nacional y por


regiones, en la escala local compararemos las estructuras del
espacio social en las dos ciudades más pobladas del Ecuador
(Quito y Guayaquil), para interpretar su correlación con la
afectación de Covid-19, considerando el acceso a agua y
alcantarillado.
En Guayaquil, cabecera del cantón del mismo
nombre y de la provincia de Guayas, provincia que tiene una

34 Organizaciones sociales están monitoreando los casos de Covid en


poblaciones indígenas de la amazonia, ver link
https://geocentro.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/
63c23d73dc7c4604bcf3cecf29d54850
178
cobertura de agua por red pública del 84% y de alcantarillado
del 61,7%, como cantón se observa que su cobertura de agua
por la red pública es del 85,4% y el 60,6% de cobertura de
alcantarillado (SENPLADES et al., 2014, p. 54-56)
Por su parte Quito35, capital del Ecuador, cabecera
del cantón Quito y de la provincia de Pichincha, tiene una
cobertura provincial de agua por red pública del 94,1%, y de
alcantarillado: del 93,6%, en tanto que como cantón la
cobertura de agua por red pública es del 96%, y de 90,9% de
cobertura de alcantarillado (SENPLADES et al., 2014, p. 89-
91).
La ciudad de Quito ha tenido una alternabilidad de
autoridades locales tanto de corte neoliberal como
progresistas de centro izquierda, y al ser el centro político del
país, cualquier intención de privatizar los servicios públicos
por alguna autoridad de turno, no ha podido concretarse
debido al poder de movilización que tienen los pobladores
de la ciudad. Así, un ejemplo lo constituye el apoyo solidario
de grupos sociales, universidades y de ciudadanos a la
movilización36 nacional de octubre 2019, convocada por el
movimiento indígena, en contra de las medidas neoliberales
del actual presidente (RAMÍREZ, 2019).
Guayaquil, por su parte, históricamente se ha
caracterizado por tener autoridades locales de corte
neoliberal, donde el discurso de la eficiencia de las empresas
privadas sobre las públicas ha sido uno de sus caballos de

35 Población del cantón Quito (DMQ) estimada al 2020 es de 2.781.641


habitantes (INEC, 2020).
36 caracterizada por la falta de cobertura de los medios de comunicación

(privados y oficiales), pero presentes en el espacio virtual de las redes


sociales, donde la imagen fue la prueba empírica de los hechos ocurridos
(Revisión por parte de la autora de los diarios El Comercio, el Universo
vs redes sociales).
179
batalla, estando el servicio de agua potable a cargo de la
empresa INTERAGUA37. En el resto de municipalidades del
Ecuador, este servicio público es gestionado principalmente
por los gobiernos locales, siendo Quito y Cuenca, entre otras
ciudades, ejemplos de la cobertura del servicio por empresas
públicas.
La tragedia de muertos por Covid-19 durante los
meses de marzo a mayo 2020, que sucedió en la ciudad de
Guayaquil38, para Paúl Murillo39 representa “una verdadera y
profunda crisis humanitaria”, de lo cual no es de
sorprenderse, según manifiesta Adriana Rodríguez, porque
Guayaquil es una de las ciudades con una alta desigualdad
social y “lo que ocurre ahora con los cadáveres nos hace
pensar en qué cuerpos importan y qué cuerpos no importan.
Los recortes en salud pública nos dicen que hay cuerpos que
no importan”40.
La forma de los espacios urbanos configurados
históricamente en el marco de las “nuevas geografías de

37 “Firmado en el 2001, este Contrato de Concesión contempla la


operación, mantenimiento, y financiación de la expansión de los servicios
de agua potable y alcantarillado en Guayaquil, Ecuador. El contrato de
30 años de concesión se celebró entre la Empresa Cantonal de Agua
Potable y Alcantarillado de Guayaquil - ECAPAG y la firma International
Water Services of Guayaquil (Interagua), empresa filial de FCC y Viola”,
disponible en https://ppp.worldbank.org/public-private-
partnership/library/interagua-ecuador-contrato-de-concesi%C3%B3n-
concession-agreement, descargado el 9 de agosto de 2020.
38 Población estimada para el 2020 del cantón Guayaquil es de 2.723.665

habitantes (INEC, 2020).


39 Responsable del área de incidencia comunitaria del Comité Permanente

de los Derechos Humanos.


40 Entrevista de BBC News a Adriana Rodríguez, profesora de Derecho

de la Universidad Andina y especialista en Derechos Humanos (ZIBELL,


2020).
180
exclusión y paisajes de riqueza” marcan el nuevo orden
mundial (GIROUX, 2008, citado en BAUMAN, 2011, p.
170), global y local, y se expresan en espacios segregados,
centros, periferias y periferia de las periferias (Mapa 4).
Los mapas que se presentan a continuación permiten
el análisis de Covid-19 (o cualquier expresión de salud,
enfermedad o muerte) no desde la localización de eventos,
ya que ésta invisibiliza y ¨oculta la determinación social de la
salud que explica las grandes diferenciales de salud en la
población por clase social y condiciones de vida¨
(PENCHAZADEH, 2017, p. 1).
Los mapas 3 y 4, analizan las diferencias geográficas,
por niveles socioeconómicos y por sector censal41. Las
variables seleccionadas fueron: condiciones de vivienda (tipo
de vivienda -piso, techo-paredes, servicio higiénico, servicio
de ducha, hacinamiento); servicios básicos (cómo obtiene
agua para la vivienda, de donde proviene el agua para la
vivienda: red pública, de pozo, de carro repartidor, otro,
eliminación de aguas negras, disponibilidad de luz eléctrica,
formas de eliminar los desechos sólidos); educación (nivel de
instrucción); y sectores económicos (primario, secundario y
terciario).
Cada una de las variables e indicadores fueron
ponderados utilizando métodos multicriterio. Los niveles
socioeconómicos que se identificaron fueron clasificados en
cinco categorías: alto, medio alto, medio, medio bajo y bajo,
correspondiendo el rango denominado alto (representado en

41 Definido por el Instituto Nacional de Estadísticas y Censos del


Ecuador para el Censo de Población y Vivienda 2010. Es una unidad
espacial que no forma parte de la división política administrativa del país,
pero que permite un mejor nivel de análisis de las condiciones
socioeconómicas medidas en el Censo.
181
color verde) al que presenta las mejores condiciones
socioeconómicas en el espacio analizado.

Mapa 4. Distribución socio-geográfica del Covid-19 según


caracterización socioeconómica: Parroquias urbanas de Quito.

Fuente: elaborado por la autora (2020).

182
Los datos reportados de Covid-19 por el Ministerio
de Salud Pública y los niveles socioeconómicos (mapa 3), por
el nivel de detalle reportado, y muchos de los cuales han sido
cuestionados por diferentes medios (prensa escrita y digital,
organizaciones sociales), no permiten una representación del
espacio de la pandemia, articulado a la matriz de inequidad
(clase social, raza, género, grupo étnico), que se configura en
el espacio urbano de Guayaquil.
Una mirada de lo sucedido en Guayaquil constituye
la representación de la correlación entre los muertos 42 por
Covid-19 registrados o reportados (del 10 de marzo al 29 de
abril 2020) con la variable hacinamiento, como se visualiza a
continuación.
La incidencia de la Covid-19 en Guayaquil está
relacionada con sitios de aglomeraciones (mercados, centros
comerciales) y con condiciones de hacinamiento, así como
de escaso acceso a servicios de agua potable (zonas de barrios
densamente poblados), entre otros.

42 “información registrada por el Organismo de Derechos Humanos,


información de medios de comunicación, redes sociales, canales de
youtube y mapas en la web de sitios oficiales” (Sánchez y Zamora 2020,
p. 17). En Guayaquil “los cadáveres se acumulaban en las viviendas y en
las calles sin que ninguna autoridad los recogiera, los protocolos
establecidos para el retiro de cadáveres no funcionaban, las familias
afectadas recurrían a las redes sociales pidiendo que se retiren los cuerpos
que, a causa de la temperatura de Guayaquil en época invernal (35 grados
Celsius), sufrían una acelerada descomposición” (
https://www.eltiempo.com/mundo/latinoamerica/por-que-hay-
cuerpos-en-las-calles-de-guayaquil-en-medio-de-lapandemia-de-
coronavirus-480874 citado en Sánchez y Zamora 2020, p.34)
183
Mapa 5. Guayaquil: Categorización socioeconómica y fallecidos
de Covid-19 reportados en casas y calles

Fuente: Sánchez y Zamora (2020, p.16)

184
Mapa 5. Distribución socio-geográfica del Covid-19 según
caracterización socioeconómica: Parroquias urbanas de Quito.

Fuente: elaborado por la autora (2020).

185
Los espacios con mayor incidencia de casos Covid-
19, en el área urbana de Quito, corresponden a las zonas
articuladas con mercados, zonas de venta ambulante, y
parroquias urbanas que incluyen barrios periféricos,
especialmente los que colindan con la zona occidental que
bordea los límite del Guagua Pichincha (volcán en actividad).
El impacto de la Covid-19 en el caso de estudio
analizado (Ecuador), desde la escala global, nacional y local-
urbana (Quito y Guayaquil), permite visualizar la
multiescalaridad espacial jerárquica, articulada y dialéctica, de
los procesos que históricamente configuraron diferencias
espaciales inequitativas, que se expresan en paisajes de
pobreza y de acumulación de riqueza, permitiendo leer los
patrones espaciales que determinan socialmente las formas
diferenciadas de vivir, enfermar y morir en general, y a causa
del Covid-19, en particular.
Por lo tanto, podemos plantear que las megacrisis
mundiales, climática y de pandemias (Covid-10), entre otras,
y visibles en la historicidad en todas las escalas espaciales, son
el resultado de las contradicciones de sobreacumulación que
generaron metabolismos malsanos entre los seres humanos
y la naturaleza, y diferencias espaciales jerárquicas y
dialécticas, donde lo “social y espacial se nutren
mutuamente” (SOJA 2014, p. 133). En consecuencia, las
relaciones sociales de la diferencia “señalan el camino hacia
una política emancipadora, conectando experiencias
específicas de opresión y explotación con las visiones de
futuros alternativos y el sentido de cómo llegan hasta allí”
(SMITH, 2002, p. 140).

186
Contra-espacios post pandemia – Territorios de vida o
de libertad
El proyecto de clase, que hoy conocemos como
neoliberalismo (LEÓN, 2018), fortaleció el proceso de
valorización del valor, donde en su glotonería, se
expandieron los espacios del capital.
El absurdo de la vida moderna está en que “los seres
humanos solo pueden producir y consumir bienes, crear
riqueza y gozarla o disfrutarla, es decir, solo están en
capacidad de autoproducirse, en la medida en que el proceso
de producción y consumo de sus bienes sirve de soporte a
otro proceso diferente a que se le sobrepone y al que Marx
denomina “proceso de valorización de valor” o
“acumulación de capital (ECHEVERRÍA, 1988, p. 9-10).

La crisis social, económica, ambiental y moral que ha


detonado el modelo de acumulación capitalista nos plantea
la disyuntiva de enfrentar estos problemas como individuos
aislados, o, “afrontarlo como colectivos organizados para
transformar un mundo que se cae en pedazos, en medio de
la opulencia absurda de una rapaz y poderosa minoría”
(BREILH, 2020, p. 33)
Desde la multiescalaridad espacial podemos plantear
que los espacios materiales e inmateriales, desde lo global
hasta el espacio de la vida cotidiana, han sido contaminados
por venenos de diferentes clases (químicos, ideológicos,
producción – consumo en el marco de la acumulación de
capital, entre otros), que son contrarios a los principios de la
vida y que de acuerdo a Breilh (2018; 2019) son:
sustentabilidad, soberanía, solidaridad y bioseguridad, en sus
cinco dimensiones de la determinación de orden social:
“trabajo, consumo y vida doméstica, organización/soportes
sociales, cultura y construcción de identidad y metabolismo

187
de la vida social con la naturaleza” (BREILH, 2015, p. 973),
principios que determinan socialmente la vida en general y la
salud en particular.
Esta crisis de la supervivencia convoca a plantearnos
modos de pensar y actuar diferentes, que permitan esclarecer
el papel crítico y emancipador, para construir tanto
conceptualmente como realidad espacios de vida, de libertad;
es decir, contra-espacios a la diversidad de formas de
reproducción social malsana materializada en pandemias,
cambios climáticos, segregaciones socio-espaciales entre
otras, en todas las escalas geográficas y espaciales.
En diferentes espacios y tiempos se han suscitado
múltiples luchas de resistencia en contra del orden neoliberal
global, luchas por el espacio para Lefebvre (1974; 1976), o
luchas por el espacio abstracto, que responden a una
búsqueda de contra-espacios (OSLENDER, 2011, p. 142).
Contra-espacios o espacios post Covid-19, que se
deberían plantear desde la búsqueda de espacios de vida
saludable articulados a los tres momentos interconectados
que identifica Lefebvre en la producción del espacio y que
son; prácticas espaciales, representación del espacio y el
espacio representacional (LEFEBVRE, 1974).
El primer momento, las prácticas espaciales deben
replantearse desde el cuestionamiento crítico a nuestras
formas de metabolismo con la naturaleza, que se expresan en
el uso y la forma de percibir al territorio; prácticas espaciales
que están “íntimamente ligadas a las experiencias de la vida
cotidiana y las memorias y residuos de formas de vida más
antiguas y diferentes. Llevan, por lo tanto, un potencial para
resistir la colonización de espacios concretos”
(OSLENDER, 2011, p. 145).
El segundo momento, en que la representación del
espacio debe superar la lógica euclideana, la causalidad
188
(linealidad, pensamiento fragmentado) o la yuxtaposición de
disciplinas (como simples capas de información), que han
devenido en la “creciente abstracción y descorporalización
del espacio que resulta en un ‘espacio abstracto’, y que es
precisamente “el espacio del capitalismo contemporáneo
donde la ley del mercado como lógica dominante del
capitalismo moderno ha llevado a una mayor
mercantilización de la vida social” y que “tiende a la
homogeneidad, a la eliminación de las diferencias […]”
(LEFEBVRE, 1991, citado en OSLENDER, 2011, p. 145-
146)
Por lo tanto, la representación del espacio debe
tratar de ser desde la lectura, comprensión y representación
de la realidad (espacio – tiempo), desde su complejidad,
integralidad, contradicción y totalidad; es decir, plantearlo
desde “un nuevo tipo de espacio, un ‘espacio diferencial’”
(OSLENDER, 2011, p. 145). Este espacio diferencial debe
recoger las luchas de resistencia de los grupos sociales
excluidos-segregados por clase social, género, y sumada a las
luchas ecologistas, de forma que todas estas luchas se
articulen y tejan una mirada de resistencia al pensamiento
monolítico y espacio- homogeneizador del capital.
El tercer momento, en que el espacio
representacional “no necesitan obedecer reglas de
consistencia o cohesión. Rebosantes de elementos
imaginarios y simbólicos, tienen su fuente en la historia de
cada individuo perteneciente a ese pueblo” (LEFEBVRE,
1991, p. 41).
Estos espacios “hallan su articulación en la vida
cotidiana donde encarnan simbolismos complejos. Estos
espacios no son homogéneos ni autónomos. Están
involucrados constantemente en una relación dialéctica
compleja con representaciones dominantes del espacio, que
189
intervienen, penetran e intentan colonizar el mundo vida del
espacio representacional. Éste es, por consiguiente, también
el espacio dominado que la imaginación busca cambiar y
apropiarse” (OSLENDER, 2011, p. 147). Es a la vez sujeto
de dominación y fuente de resistencia, mientras “se niega a
reconocer el poder [dominante]” (LEFEBVRE, 1991, citado
en OSLENDER, 2011, p. 147).
Estos procesos de los momentos que identifica
Lefebvre en la producción del espacio (prácticas espaciales,
representaciones del espacio y el espacio representacional)
no deben entenderse desde una perspectiva teleológica sino
desde la constante interconexión, complejidad y relación
dialéctica, principio del pensamiento crítico.
Estos contra-espacios post Covid-19, deberían
producirse desde estas nuevas lógicas de relacionamiento con
la naturaleza, representadas desde la complejidad y dialéctica
y dotadas de sentidos y significaciones que permitan
cuestionar y fracturar al poder dominante, considerando cada
uno de los momentos interconectados y dialécticos que
conlleven a la producción del espacio de vida, de libertad y
de emancipación.
Libertad, entendiéndose que “como un trascender no
es solamente una especie particular de causas, sino el origen
de toda causa. Libertad es libertad para causar” (M.
Heidegger, Von Wesen des Grundes (1929), Klosterman,
Frankfurt/M., 1995, p. 44, citado en ECHEVERRÍA, 1984,
sp). La libertad no es el problema de un individuo43 sino de
todos los individuos, en tanto que la emancipación no solo
es una lucha de intenciones sino de voluntades y decisiones
(LEÓN, 2018).

43 “La híper individualización del sujeto mercantil capitalista […] el


problema del homo economicus” (LEÓN, 2018).
190
En este artículo propongo conformar espacios de
vida, o territorios saludables que podrían ser teorizados y
producidos en torno al concepto y propuesta de Buen Vivir44
, suma kawsay45, entre otros. Propuestas que nacen como
crítica a la modernidad, y a los discursos y prácticas del
desarrollo-progreso de matiz neoliberal. Le Quang (2017)
afirma que:
El sumak kawsay, si bien no es una categoría epistemológica
ancestral y no aparece en los discursos de las organizaciones
indígenas antes de los años dos mil, tiene sus orígenes en la
existencia de una forma de vida de sociedades indígenas
precoloniales ‘basada en una organización comunitaria, una
forma de vida silvestre y rural y una cultura tradicional,
empírico-natural y mágico religiosa’ (Hidalgo-Capitán 2012,
16). Pero esta recreación, reconstrucción o ‘tradición
inventada’ (Viola 2014, 64), se ha alimentado de luchas
contemporáneas sobre todo ecologistas y antineoliberales
(LE QUANG 2017, p. 148).

Buen Vivir que desde su definición más amplia


implica “una vida armónica consigo mismo, entre seres
humanos y entre los seres humanos y la naturaleza” (LE
QUANG, 2017, p. 145), concepto que ha sido interpretado
desde diferentes corrientes, cuya base común son: “la
dimensión comunitaria de la vida; el ser humano como ser
social; la superación de la dominación de la naturaleza por

44 “Este concepto está todavía en construcción y en disputa política” (LE


QUANG, 2017, p. 145). Definido desde diferentes corrientes como: la
culturalista e indigenista, la ambientalista y postdesarrollista, la
ecomarxista y estatista, entre otras.
45 “Según el lingüista y filósofo kichwa Armando Muyolema existe una

transculturización del concepto sumak kawsay. No se trata de una


categoría epistemológica ancestral, sino más bien de una construcción
que se alimenta de las luchas ecologistas en un mundo en crisis y del estilo
de vida de los indígenas” (LE QUANG, 2017, p. 146)
191
los seres humanos y el reconocimiento de los derechos de la
naturaleza; la necesidad de repensar las estructuras del
Estado para transformarlo en un Estado plurinacional e
intercultural; la transición hacia una sociedad
posextractivista, y la reivindicación de la soberanía sobre el
territorio nacional que no es incompatible con una voluntad
de integración regional” (LE QUANG, 2017, p. 145).
Para lograr el Buen Vivir, es necesario ir a la “des-
mercantilización de los espacios necesarios para la
reproducción de la vida y de los bienes comunes y de los
bienes público” (LE QUANG, 2017, p. 150); esto implica
establecer otras relaciones metabólicas con la naturaleza. En
Ecuador se ha materializado en la Constitución (2008,
artículos 71 al 74), en los Derechos de la naturaleza.
Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá
exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos
de la naturaleza... La naturaleza tiene derecho a la
restauración... la obligación que tiene el Estado y las
personas naturales o jurídicas de indemnizar a los individuos
y colectivos que dependan de los sistemas naturales
afectados […] (Constitución, 2008, p. 52).

Los derechos de la naturaleza entran en


contradicción46 si continuamos en el modelo de desarrollo
neoliberal, pues estos derechos desde el Buen Vivir no son
planteados desde el fundamentalismo antihumanista sino

46Entra en conflicto cuando se manifiesta en la Constitución (2008): el


derecho al trabajo (art 33), a la libertad de empresa y contratación (art
66.16), al libre tránsito y elección de residencia (art 66-14), a desarrollar
actividades económicas (art 66-15) o el derecho a la propiedad (art 66-
26), etc. En efecto, es fácil imaginar y encontrar situaciones en que estos
derechos deben ser regulados o limitados a efectos de proteger tanto el
derecho a vivir en un medio ambiente sano (art 66-27) como los derechos
de la naturaleza (Arts. 71 al 74).
192
que se reconoce al ser humano como parte de la naturaleza y
a la naturaleza como parte del ser humano, y bajo esta
premisa se requiere construir relaciones metabólicas
saludables.
Por lo tanto, el reto para proponer espacios de vida
saludables y no de enfermedad o muerte, implica pensar
críticamente desde lo ético, epistemológico y de praxis. Praxis que
requiere desarrollar empatía con los distintos miembros del sujeto
social global que han sido despojados, excluidos, con los que día a
día vamos recibiendo los daños colaterales del desarrollo-
progreso. No tener conciencia crítica es justificar o no entender las
relaciones inequitativas de poder y enfocarnos metafóricamente en
observar la punta del iceberg y no las estructuras malsanas del
poder vigente, que determinan socialmente la salud, la vida y la
muerte de los territorios y de los grupos sociales que los
habitamos.
Espacios y territorios de vida saludables deben ser
construidos desde la propuesta del Buen Vivir, de forma que
como sujetos sociales tengamos un telos propio, que podrá
ser la “entrada en una historia en la que el ser humano viviría
él mismo, su propio drama y no, como ahora, un drama ajeno
que lo sacrifica día a día y lo encamina, sin que él pueda
intervenir para nada, a la destrucción” (ECHEVERRIA,
1984, p. 46).

Referencias
BAUMAN, Z. Daños colaterales: desigualdades sociales
en la era global. Ciudad de México: Fondo de Cultura
Económica, 2011.
BLAIKIE, P. Vulnerabilidad: el entorno social, político y
económico de los desastres. Lima: Soluciones Prácticas,
1996.

193
BREILH, J. SARS-CoV2: rompiendo el cerco de la ciencia
del poder. Escenario de asedio de la vida, los pueblos y la
ciencia. PRODUCCIÓN COLECTIVA. Posnormales.
Buenos Aires: Editorial ASPO, 2020, p. 31-90.
________. Espacios de capital, territorios de libertad.
Conferencia del Primer Congreso de Geografía. Quito:
Pontificia Universidad Católica del Ecuador, 2018.
________. Epidemiología Crítica: Ciencia Emancipadora
e interculturalidad. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2003.
CAMPAÑA, A. Comentario presentado en el
“Conversatorio sobre Crisis Civilizatoria y el Buen vivir
o Vivir Bien” (on line), convocado por la Coordinación
General de ALAMES y su Capítulo de República
Dominicana, miércoles 27 de mayo 2020.
CELI, E. Así se propagó el coronavirus en la província de
Guayas. In: Primicias, Sociedad, Quito, 10 abril 2020.
Disponible en <www.primicias.ec>. Aceso en: 18 ago.
2020.
ECHEVERRÍA, B. La forma natural de la reproducción
social. Cuadernos Políticos, n. 41, 1984, p. 33-46.
FALCONÍ, F.; MONTALVO, J. Economía ecuatoriana.
Quito: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 2004.
HARVEY, D. Sobre reajustes espacio-temporales y
acumulación mediante desposesión. Herramienta, n. 29,
2005, p. 7-21.
KLEIN, N. Decir no no basta: Contra las nuevas políticas
del shock por el mundo que queremos. Bogotá: Editora
Géminis, 2018.

194
LEFÈBVRE, H. La producción del espacio. Papers -
Revista de Sociología, n. 3, 1974, p. 219-229.
LEÓN HERNANDÉZ, E. Espacios de capital,
territorios de libertad. Conferencia del Primer Congreso
de Geografía. Quito: Pontificia Universidad Católica del
Ecuador, 2018.
LE QUANG, M. Interpretaciones y tensiones alrededor del
Buen Vivir en Ecuador. Papeles de relaciones
ecosociales y cambio global, v. 137, 2017, p. 145-158.
MANN, M. The Sources of social Power. A History of
Power from the Beginning to AD, 1760-1986. Cambridge:
Cambridge University Press, 1986.
MENA MENA, P. Coronavirus al día: cifras y mapas del
Ecuador. In: El Universo, Coronavirus, Guayaquil, 2
agosto 2020. Disponible en <www.eluniverso.com>. Aceso
en: 3 ago 2020.
MONCADA, Blanca. Testimonios del COVID-19: “Las
desapariciones de cuerpos son crímenes de Estado”. In:
Expreso, Actualidad, Guayaquil, 19 abril 2020. Disponible
en <www.expreso.ec>. Aceso en: 8 ago. 2020.
MOSCOSO ROSERO, M. Guayaquil, “colonial” vírus. In:
El Rumor de las Multitudes, Coronavirus, Madrid, 4 abril
2020. Disponible en <www.elsaltodiario.com>. Aceso en:
13 jun. 2020.
OSLENDER, U. La búsqueda de un contra-espacio: ¿hacia
Territorialidades alternativas o cooptación por el poder
dominante? Geopolítica: Revista de Estudios sobre
Espacio y Poder, v. 1, n. 1, 2010, p. 95-112.

195
________. La búsqueda por un contra-espacio: ¿Hacia
territorialidades alternativas o co-optación por el poder
dominante? GUERRA DE HOYOS, C.; PÉREZ
HUMANES, M.; TAPIA MARTÍN, C. (Ed.). El Territorio
como “Demo”: demo(a)grafias, demo(a)cracias y
epidemias. Sevilla: Universidad Internacional de Andalucía,
2011, p. 142-163.
PENCHAZADEH, V. La bioética en América Latina.
Conferencia del VI Congreso de la Red bioética San José:
UNESCO, 2017.
RAMÍREZ GALLEGO, Franklin. Ecuador y las colisiones
de clases. In: Nueva Sociedad, n. 284, Conyuntura,
Buenos Aires, noviembre 2019. Disponible en
<www.nuso.org>. Aceso en: 7 abr. 2020.
SÁNCHEZ, P.; ZAMORA, G. Guayaquil: La ficción de
um éxito. El impacto de la pandemia Covid 19.
Plataforma por el Derecho a la Salud/DONUM/FOS.
2020. Disponible em
<www.saludyderechos.fundaciondonum.org>.
SENPLADES (Secretaria Técnica para la Erradicación de la
Pobreza) Secretaria Técnica del Agua – Banco del Estado.
Agua potable y alcantarillado para erradicar la pobreza
en Ecuador. Fuente de información: datos de Encuesta
Nacional de Empleo, Desempleo y Subempleo Urbano y
Rural 2013 del INEC. Quito: SENPLADES, 2014.
SIERRA, Natalia. El progreso una noción terminada.
Inédito. Quito: s/d. Disponible en:
<www.repositorionew.uasb.edu.ec>. Aceso en: 18 ago.
2018.

196
SMITH, N. Geografía, diferencia y las políticas de escala.
Terra Livre, n. 19, 2002, p. 127-146.
SOJA, E. En busca de la justicia espacial. Valencia:
Tirant Humanidades, 2014
SOTELSEK, D.; MARGALEF, L. Reflexiones sobre la
trilogía: pobreza-crecimiento y desigualdad en América
Latina ¿Qué se necesita para la cohesión social? GRANDA
AGUILAR, J. (Ed.). Pobreza, exclusión y desigualdade.
Quito: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 2008,
p. 161-188.
VALLEJO, I.; ÁLVAREZ, K. La pandemia del
Coronavirus en la Amazonía ecuatoriana: vulnerabilidades y
olvido del Estado. Cuadernos de Campo, v. 29, n. 1,
2020, p. 94-110.
ZAMORA ACOSTA, G. La gestión del territorio en un
estado plurinacional: retos de la implementación de las
circunscripciones territoriales indígenas, como regímenes
especiales en el Ecuador. Tesis de Maestría en Estudios
Socioambientales (Departamento de Desarrollo, Ambiente
y Territorio). Quito: Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales, 2016.
________. La ciencia crítica: geografía, inequidades,
resistencia y representaciones” en Debates de la geografía
latinoamericana: visiones desde el XVII Encuentro de
Geógrafos de América Latina. Quito: ASGE, IPGH, 2019.
ZIBELL, M. Coronavirus en Ecuador: el drama de
Guayaquil, que tiene más muertos por Covid-19 que países
enterros y lucha a contrarreloj para darles un entierro digno.
In: BBC News, Mundo, London, 1 abril 2020. Disponible
en <www.bbc.com>. Aceso en: 2 abr. 2020.
197
198
CAPÍTULO 6

QUÊ TURISMO, PARA QUAL TURISTA?


Reflexões sobre um porvir para a prática turística no
pós-pandemia

Paulo Roberto Baqueiro Brandão

Introdução
A disseminação da Covid-19 desencadeou uma
pandemia que, pela primeira vez na história, assumiu, de fato,
um alcance planetário e multifacetado. Contudo, essa
assertiva não diz respeito apenas aos seus efeitos
epidemiológicos, uma vez que, se em determinados lugares,
houve poucos casos de sujeitos contaminados, o mesmo não
se pode afirmar quanto as consequências de (mais uma) crise
do modo de produção capitalista e, tampouco, no que diz
respeito às transformações no âmbito das relações sociais.
Não seria exagero dizer, por exemplo, que, em alguns
lugares, os efeitos não epidemiológicos sejam mais severos e
prolongados que aqueles ligados diretamente ao contágio.
Nesse contexto, graças à impossibilidade de cumprir-
se a premissa do deslocamento, a prática turística47 foi uma

47 Este autor defende, com veemência, que o turismo é, antes de tudo,


uma prática espacial, uma vez que o seu fazer é causa, mediação e produto
da organização e produção do espaço. Contudo, é fundamental
reconhecer, também, o caráter multifacetado que a sua realização enseja.
Assim, neste escrito, o turismo será denominado como “prática” sempre
que for mencionado como uma ação realizada por turistas ou a partir das
implicações espaciais que o envolvem; como “atividade”, quando fizer
referência ao segmento da economia que é; ou “setor”, sempre que fizer
199
das realizações humanas mais afetadas pela pandemia da
Covid-19. As restrições à mobilidade de pessoas em
praticamente todas as escalas, com barreiras sanitárias nos
limites das cidades, impedimentos ao tráfego rodoviário
intermunicipal e interestadual, redução drástica de voos e até
fechamento de fronteiras, foram responsáveis por uma quase
total desfiguração do turismo. Além disso, por conta de
medidas de isolamento social, todo um conjunto de
segmentos tão intrinsicamente ligados ao turismo, como os
de hospedagens, entretenimento, traslados, bares e
restaurantes, foram seriamente afetados, registrando
elevados números de demissões e falências.
Por outro lado, embora o retorno gradativo das
atividades ligadas ao setor turístico nos países onde o pior da
pandemia – aparentemente – já passou aponte uma tendência
de tentar recuperar, com máxima voracidade possível, as
perdas recentes (ZAMPRONHO, 2020; ANSA, 2020), fica
patente que o turismo, em toda a sua complexidade, precisa
ser repensado, de modo a permitir que outra concepção da
prática possa emergir, baseada em princípios convergentes
com formas solidárias e populares de reprodução econômica,
que ensejem a organização autônoma e soberana de
comunidades receptoras e em harmonia com os desígnios
dos Direitos Humanos e da Natureza.
Destarte, este escrito cumpre um roteiro que
manifesta (a) uma contextualização do turismo,
considerando uma periodização – não datada – que
contempla um período “imediatamente antes” da pandemia
e um segundo, que aborda os impactos da Covid-19 na
atividade turística, fomentando um debate sobre a relação

menção às formas de solidariedade organizacional que os seus agentes


hegemônicos compartilham.
200
entre turismo e modo de produção capitalista e a sua
susceptibilidade às crises; (b) um debate conjectural sobre
que tipos de turismo e turista devem emergir de um contexto
pós-pandemia, uma vez que, para o bem e para o mal, a crise
causada pela Covid-19 tenha produzido transformações
irreversíveis na sociedade que incidirão nas relações,
comportamentos e desejos, para, a partir disso; (c) refletir e
pleitear que outro turismo é possível e que a sua enunciação
já era factual antes mesmo da pandemia, sob a denominação
de Turismo Comunitário.
Desde uma perspectiva metodológica, vale destacar,
de passagem, que a construção de algumas argumentações
empíricas acerca de um fato tão atual e, portanto, ainda
insuficientemente abordado pelas Ciências Humanas e
Sociais, como é a pandemia da Covid-19, foi possível graças
à composição de uma hemeroteca, cujas consultas foram
realizadas por meio dos sítios web de alguns dos jornais de
maior circulação no Brasil. Neste sentido, a formulação de
uma análise crítico-reflexiva baseada em reportagens
extraídas dessas publicações mostrou ser uma estratégia
adequada para o momento.

O turismo antes e durante a pandemia


Antes da pandemia, o turismo era considerado uma
das atividades econômicas mais pujantes em escala
planetária, com números de viagens e circulação de moeda
sempre crescentes, mesmo em um contexto de crise do
capitalismo que perdura, em sua versão mais atual, desde a
década de 1980, quando da consolidação do modelo
neoliberal. Ao longo deste século, em seus registros anuais, a
OMT (Organização Mundial do Turismo) vinha
apresentando resultados de uma atividade em expansão,
201
ainda que com pequenas oscilações decorrentes de grandes
eventos econômicos, políticos ou ambientais adversos que
provocaram retração na mobilidade humana. Em 2019, por
exemplo, o turismo suscitou a movimentação de 1,7 trilhão
de dólares estadunidenses e cerca de 1,4 bilhão de
desembarques internacionais (UNWTO, 2019).
Desde algumas décadas, em diferentes contextos
nacionais, o turismo vem representando parte bastante
significativa do PIB (Produto Interno Bruto) e, em alguns
casos, como Maldivas, Grécia ou Bahamas (MALDIVES,
2019; BAKOGIANNIS et al., 2020; PODHORODECKA,
2018), por exemplo, é impensável o funcionamento de suas
respectivas economias sem a participação desse segmento,
posto que seja responsável pela produção de, no mínimo,
20% da riqueza nacional.
No caso brasileiro, ainda que tenha uma importância
menor no PIB, a atividade garantiu um status estratégico na
pauta econômica nacional, especialmente após a criação do
Ministério do Turismo, no início da presidência de Luís
Inácio Lula da Silva. A partir de então, houve uma crescente
participação da atividade turística nos resultados da riqueza
produzida nacionalmente, com incremento, também, da sua
relevância nas escalas infranacionais, graças à adesão cada vez
maior de estados, regiões e municípios às políticas de
turismo.
Por tal motivo, gestores públicos e agentes
econômicos envidaram esforços na tentativa de transformar
a atividade em uma panaceia, impondo às populações
receptoras uma retórica segundo a qual não há futuro para
além da submissão aos ditames desses promotores do
turismo. Disso decorre, pois, a vertiginosa difusão recente do
turismo, que, de maneira nunca antes observada, atingiu todo

202
e qualquer espaço que apresente uma “vocação” para atrair
visitantes.
Ao longo do tempo, essa dependência do turismo
acabou por subordinar as economias, ressignificar modos de
vida, transformar natureza (supostamente) intocada em
negócio e acentuar o mal-estar causado nos residentes frente
às assimétricas relações de poder que emergem das práticas
turísticas, fenômeno para o qual Milano (2017) cunhou o
termo pressão turística (overtourism), contrapondo o vocábulo
turismofobia, utilizado pela imprensa de forma pouco
criteriosa e até sensacionalista.
Por conseguinte, a contraditória realização do
turismo segundo as configurações nas quais o capitalismo o
moldou é “uma faca de dois gumes”: se, por um lado, é
inegável que a prática turística gera postos de trabalho (em
sua maioria precarizados) e amplia os ingressos econômicos
nos espaços receptores, por outro lado, produz uma
valoração desigual desses espaços, o que, por sua vez,
promove formas de (des)territorialização que impõem uma
alienação do território (SANTOS, 1996) e acentuam as
desigualdades, ao tempo em que, dialeticamente, evidenciam
singularidades culturais e/ou ambientais, enquanto as
ameaçam por meio da sua transformação em produtos para
consumo massivo.
Não obstante, a pandemia da Covid-19 representou
um golpe implacável na trajetória de expansão do turismo,
colocando a descoberto as fragilidades do setor frente a mais
grave instabilidade planetária do atual milênio. Aliás, como
não poderia deixar de ser, considerando que, em seu formato
hodierno, a atividade turística seja uma das muitas formas de
gerar acumulação de riqueza, tal processo apenas exemplifica
quão susceptível às crises é o próprio modo de produção
capitalista.
203
Segundo reportado pela versão brasileira do jornal El
País (2020), utilizando dados fornecidos pela OMT, em
escala planetária, a retração no setor turístico chegou a cerca
de 97%, enquanto as perdas de faturamento estão estimadas
em mais de 1 trilhão de reais, considerando apenas os meses
de janeiro a abril de 2020. No Brasil, conforme apurado pela
Agência O Globo (2020), a contração do setor atingiu 84%,
o que representa uma queda de 12 bilhões de reais em
faturamento e, como consequência mais perversa de tal
fenômeno, a eliminação de cerca de 295 mil postos de
trabalho.
Alguns fatos – nada pontuais – podem ilustrar, para
além dos números, a dimensão dos impactos da Covid-19 no
turismo. Para tanto, vale a pena rememorar algumas notícias
jornalísticas recentes sobre empresas prestadoras de serviços
aeroviário, hoteleiro e de entretenimento, como, por
exemplo, os pedidos de recuperação judicial e falência de
Latam e Avianca Brasil (OLIVEIRA, 2020;
KAFRUNI,2020), fechamento temporário do icônico
Copacabana Palace (SARAIVA, 2020), cancelamento de
rentáveis eventos anuais, como os festejos de São João, no
Nordeste brasileiro, e a Fórmula 1, em São Paulo (ALOISIO,
2020; RACY, 2020), todos demonstrando exemplarmente as
fragilidades de tais setores frente a queda frenética das
viagens ao longo de 2020.
Evidente que, nos casos das empresas que
encerraram suas atividades, os problemas não foram criados
pela pandemia da Covid-19, afinal, esses empreendimentos
já apresentavam sinais de falta de liquidez bem antes dos
primeiros casos da doença serem reportados em Wuhan.
Contudo, não se pode negar que a pandemia acabou por
acelerar, de forma fatídica, o desfecho da decadência dessas
outrora importantes corporações.
204
A dependência do turismo e a falta de capacidade
financeira para o enfrentamento da crise levaram Estados e
agentes econômicos, em aliança, a provocarem um retorno
precipitado da “normalidade”, engendrando, entre outras
providências de reedificação do capitalismo, a reabertura de
espaços destinados à prática turística e a reativação das
atividades que lhe dão suporte, ainda que sem garantias
elementares de que tais decisões estivessem isentas de uma
segunda onda de contaminações, conforme se viu, por
exemplo, nas tentativas de “salvar” o verão europeu
(ALTARES, 2020; ZAMPRONHO, 2020).
No Brasil, até a finalização deste texto, estavam em
plena operacionalização de protocolos de reabertura alguns
dos principais atrativos turísticos do país, como, por
exemplo, o bondinho do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro,
o Mercado Modelo e Igreja do Bonfim, em Salvador (O
GLOBO, 2020b; BRANDÃO, 2020; CORDEIRO, 2020).
Tal situação é ainda mais complexa e preocupante que o caso
europeu, uma vez que, dadas as posições negacionistas do
governo federal, o Brasil adotou políticas errantes quanto ao
combate à pandemia, o que acabou por implicar o país como
um dos epicentros da Covid-19, sendo o segundo a registrar
mais casos no mundo.
Há que se considerar que essa atuação oscilante de
flexibilizar restrições pode intensificar ainda mais a
insegurança que ora domina a sociedade, em seu sentido mais
amplo, e os turistas, tratando mais especificamente do objeto
deste escrito. Tal procedimento pode, enfim, resultar em um
alargamento sem precedentes da crise que atualmente assola
o setor turístico.

205
Conjecturas sobre o turismo e o turista no pós-
pandemia
A pandemia da Covid-19 evidenciou algumas fissuras
no modo de produção capitalista que, durante séculos, seus
agentes tentaram ocultar em uma malfeita Caixa de Pandora
(DAVIS, 2020). Conforme afirma Boaventura de Sousa
Santos (2020), a pandemia não pode ser vista como uma crise
isolada a atacar a suposta normalidade até então vigente, mas
um elemento novo na duradoura crise que o neoliberalismo
impõe a bilhões de pessoas há cerca de quarenta anos.
A recente – e ainda vigente – exacerbação vertiginosa
da crise do capitalismo neoliberal evidenciou, por exemplo,
conforme já abordado alhures, a incapacidade de
corporações até então consideradas inabaláveis em
responder satisfatoriamente à perturbação causada pela
pandemia, mas também que o modelo de sociedade forjado
sob os desígnios da modernidade capitalista serve apenas
para mascarar a grande falácia do discurso do progresso pela
acumulação.
No entanto, do colapso pode emergir o novo,
conforme advoga Rivera (2018), para quem a crise é uma
oportunidade, mas não no sentido organizacional do termo.
O que a socióloga boliviana põe em relevo é a possibilidade
de se ter, nesse quadro de adversidade extrema e por meio
dele, um ponto de inflexão – um evento (SANTOS, 1996)
ou período denso (VASCONCELOS, 1999) – que permita
romper com a “normalidade” vigente e antecipar o
surgimento de um outro mundo.
Em se tratando da prática turística, especialistas em
agenciamentos de viagens vislumbram prognósticos segundo
os quais, a curto e médio prazos, haverá um revigoramento
do turismo interno, em detrimento das visitas ao exterior.
206
Segundo apuração feita por Rebeca Oliveira (2020), em
pesquisa realizada por um buscador virtual de voos, 26% dos
brasileiros pretendem viajar após o término da quarentena,
mas 66% desses mesmos entrevistados creem que não seja
pertinente sair do país.
Há que se considerar também que os destinos pouco
atingidos pelo coronavírus e distantes dos grandes centros
urbanos devam ser valorizados. Ainda segundo Rebeca
Oliveira (Idem, p. 1), “quem se beneficiará são destinos
situados em regiões menos atingidas, se analisados o número
de casos e de vítimas; e aqueles que dispensam
deslocamentos aéreos”. De fato, no auge da pandemia, o
deslocamento de pessoas que podiam realizar trabalho à
distância de cidades maiores para localidades interioranas foi
uma das estratégias empregadas para apartar-se dos perigos
das aglomerações (BENITES, 2020).
Outro aspecto a ser destacado é que, ainda que
forçados pelas exigências impostas por protocolos
governamentais restritivos, as empresas prestadoras de
serviços turísticos têm se adaptado à realização de suas
atividades para grupos diminutos, com efeitos na menor
circulação de pessoas e, por extensão, em uma redução da
pressão pela presença de visitantes em espaços anteriormente
saturados pela turistificação.
As ações anteriormente relatadas não são a
proclamação de uma nova era do turismo, tendo em vista que
todas essas medidas sejam transitórias e sua manutenção
dependa tão somente da volta à “normalidade”, não
havendo, portanto, qualquer vislumbre quanto a uma
mudança duradoura na forma como a prática será conduzida
no longo prazo, afinal, conforme assevera Traoré (2020, p.
1), “A batalha pelo humanismo do século XXI será brutal

207
porque os ganhadores do mundo anterior não querem
renunciar aos seus privilégios”.
De fato, os agentes hegemônicos do turismo colhem
privilégios dos quais não haverão de abnegar facilmente. São
fomentos governamentais, acesso praticamente irrestrito aos
tomadores públicos de decisão, primazia na apropriação e
dominação de territórios, direito de abster-se ao diálogo com
as comunidades afetadas por suas atividades, dentre outras
tantas benesses que lhes foram conferidas ao longo do tempo
e das quais, por certo, não cogitam abrir mão.
Contudo, há, naquelas mudanças transitórias,
pequenas centelhas de esperança que permitem crer no
prenúncio de uma profunda e irreversível transformação na
prática turística. Segundo o dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, o termo “centelha” significa “partícula que salta
de um corpo em brasa; fagulha, faísca”, mas também, por
metáfora, pode indicar uma “intuição ou inspiração súbita”
(HOUAISS e VILLAR, 2009, p. 148). Tais acepções
convergem com a ideia que se quer, aqui, empregar, uma vez
que a palavra “centelha”, conforme anteriormente aplicada,
aponta para pequenas iniciativas ou eventos que, tal e qual
faíscas, podem provocar grandes e duradouros movimentos
rumo a transformações irreversíveis.
Assim, não se pode negar que essas ditas ações
apontam, ao menos durante o período de implementação de
medidas especiais, para um incremento do chamado turismo
de proximidade, induzindo formas não massificadas de
interação turista-lugar-comunidade. Contudo, é fundamental
salientar que a continuidade desse processo a longo prazo
não virá senão pela auto-organização solidária de
comunidades receptoras, mobilizando e articulando
conhecimentos e práticas locais para o desenvolvimento de
propostas de Turismo Comunitário.
208
Um futuro possível para o turismo no pós-pandemia
Muitos cenários de transformação do turismo no
contexto pós-pandemia podem ser imaginados. Por outro
lado, conforme já cogitado, pode não haver nenhuma
mudança significativa, a não ser a acentuação da voracidade
dos agentes hegemônicos em criar formas ainda mais
avassaladoras de produção e consumo dos espaços
destinados a essa prática, com vistas a uma rápida
recuperação dos ganhos econômicos interrompidos.
Contudo, o período hodierno talvez seja extremamente
propício para precipitar verdadeiras e duradouras
transformações qualitativas baseadas na auto-organização
comunitária, na economia social e na práxis territorial, este
último surgindo como amálgama dos anteriores.
Conforme adverte Santos (1996), a
contemporaneidade do capitalismo faz surgir como
tendência uma união vertical dos lugares, por meio de um
crescente processo de hierarquização e subordinação de uns
fragmentos de espaço por outros, reafirmando, assim, a
existência de espaços de comando e espaços de obediência.
Contudo, ainda segundo esse autor, “[...] os lugares também
se podem refortalecer horizontalmente, reconstruindo, a
partir das ações localmente constituídas, uma base de vida
que amplie a coesão da sociedade civil, a serviço do interesse
coletivo” (p. 194).
Em entrevista concedida a Boaventura de Sousa
Santos, Gladys Tzul Tzul (2015a) defende a adoção de
princípios comunitários – ou comunais, conforme o
contexto sobre o qual a socióloga guatemalteca se debruça
em suas análises – de organização como forma de garantir a
reprodução social em condições não-hegemônicas. Para
209
tanto, é fundamental preservar os meios de controle, gestão
e regulação coletivos daquilo que a autora denomina de
meios concretos para a reprodução da vida.
Cuando digo medios concretos para la reproducción de la vida, me
refiero al territorio y a todo lo que lo contiene, a saber: el agua, los
caminos, los bosques, los cementerios, las escuelas, los lugares sagrados,
los rituales, las fiestas; en suma la riqueza concreta y simbólica que las
comunidades producen y gobiernan mediante una serie de estrategias
pautadas desde un espacio concreto y un tiempo específico que se
estructuran desde cada unidad de reproducción (TZUL TZUL,
2015b, p. 129).

Neste sentido, tal modelo de auto-organização diz


respeito, antes de tudo, à construção continuada de um
processo coletivo de defesa dos Direitos Humanos e da
Natureza, com base no uso do território segundo princípios
localmente situados. Em outras palavras, é um processo de
autorreconhecimento quanto “[...] la capacidad política para
deliberar las formas de compartir, organizar jornadas de trabajo
comunal, y regular el uso y el abuso de los bienes comunes” (TZUL
TZUL, 2019, p. 106).
Esse fazer político de auto-organização comunitária
é, pois, a base sobre a qual se consolidam a autonomia e
soberania populares, estas que, por sua vez, impelem a
comunidade à busca continuada pela primazia de definir os
usos e as formas de proteção dos ditos meios concretos de
reprodução da vida no território em que habita. É
precisamente como expressão desse poder que a
comunidade decide se e como o turismo – ou qualquer outra
atividade – passará a fazer parte do seu conjunto de formas
de reprodução social e econômica.
Por outro lado, como se pode observar muito
claramente, aquilo que Tzul Tzul chama de meios concretos
para a reprodução da vida são, no âmbito do turismo, os
210
atrativos, ou seja, os bens naturais, culturais-simbólicos e as
rugosidades espaciais que convencem os sujeitos a
mobilizarem-se do seu local de origem ao destino a ser
visitado. Isso revela um perigo, na medida em que o que é
crucial para garantir a existência de uma comunidade pode
vir a ser capturado pelo mercado turístico.
Advém justamente da constatação da existência dessa
relação dialética dos usos quase sempre conflitivos desses
bens comuns transformados em atrativos turísticos a defesa
de um modelo de turismo assentado nos princípios da
economia social, conforme pleiteado por Corragio (2011).
Para o autor,
Al ver la economía como inseparable de la cultura, la Economía Social
la mira como espacio de acción constituido no por individuos
utilitaristas que buscan ventajas materiales, sino por individuos,
famílias, comunidades y colectivos de diverso tipo que se mueven dentro
de instituciones decantadas por la práctica o acordadas como arreglos
voluntarios, que actúan haciendo transaciones entre la utilidade
material y los valores de solidaridad y cooperación [...] (p. 44-45).

Ao adjetivar a economia como “social” significa,


ainda nas palavras de Coraggio (Idem, p. 291), que todos os
feitos econômicos são feitos sociais, considerando que o
econômico não pode existir para além da materialidade da
natureza, “pero tampoco fuera de lo simbólico, la cultura y la política”.
Ademais, a economia social, por sua base solidária e popular,
é prenhe em reciprocidade e cooperação, envolvendo
crescentemente os sujeitos organizados em processos de
controle do trabalho, dos recursos do trabalho e dos
resultados do trabalho (QUIJANO, citado por
CHRISTOFFOLI e NOVAES, 2012, p. 70).
Vale salientar, ainda, que a economia social se faz
pela busca do equilíbrio entre os arranjos econômicos,
representados pela união voluntária de trabalhadores em
211
cooperativas e associações, e a coletividade, que corresponde
ao universo da comunidade ou de comunidades em
coalização de forças, para que os primeiros sejam a ponta de
lança de revoluções sociais no âmbito do segundo. Em
outras palavras, a organização pelo trabalho torna-se a liga
necessária ao fortalecimento de uma outra forma de
organização comunitária.
Sob esse aspecto, o turismo desenvolvido sob os
desígnios de uma economia social obstaculariza processos de
alienação do território típicos em espaços onde há
prevalência do valor de troca sobre o valor de uso, algo tão
comum nas práticas turísticas massificadas.
Todo esse processo de construção de uma
organização política e econômica de base comunitária em
favor do desenvolvimento de um outro turismo é possível
por meio daquilo que Saquet (2019) vem denominando de
práxis territorial. Conforme preconiza o autor, o território é
um espaço “de (in)formação, partilha, reciprocidade,
mobilização, luta, resistência político-cultural-ambiental,
descolonização, conquista da autonomia decisória e de
melhores condições de vida para e com o povo” (2015, p. 8,
itálicos no original). É, portanto, no/a partir do/pelo
território que se consolida uma práxis da cooperação e
solidariedade entre os sujeitos próximos geográfica e
socialmente.
Para Saquet (2019), a práxis social, em especial aquela
que se desenvolve no seio das gentes comuns, é, em última
instância, uma práxis territorial, posto que esteja submetida a
processos localmente situados e contextualizados
territorialmente. Conforme o autor mencionado:
A ancoragem territorial, a proximidade em suas múltiplas
características, a confiança, o diálogo, a reciprocidade, os
vínculos, os saberes e o patrimônio valorizado são

212
fundamentais na construção da identidade do e com o lugar,
bem como na construção participativa, debatida, reflexiva e
dialógica do desenvolvimento dos lugares e do desenvolvimento nos
lugares por meio da consciência do lugar (Idem, p. 66, grifos no
original).

A práxis territorial expressa, pois, a unidade da teoria-


prática manifestada na sistematização de saberes e fazeres
populares, que se revela pela centralidade do território
naquilo que diz respeito aos processos de organização e
mobilização política de base comunitária. Assim, conforme
afirma Saquet (Idem, p. 63), “a [...] práxis territorial precisa
considerar o sentido de pertencimento a uma classe social e a um
lugar” (itálicos no original).
O Turismo Comunitário, por princípio, se faz a partir
do reconhecimento e valorização da relação o quanto mais
harmônica possível que uma dada comunidade receptora
possui com a natureza do entorno e de como essa relação,
por um lado, é manifestada por meio de uma cosmovisão
própria e, por outra parte, é materializada em saberes e
fazeres que integram as formas de reprodução social e
econômica a uma longa tradição de uso não predatório dos
bens comuns.
Assim, uma vez que a comunidade vislumbre no
turismo uma possibilidade para o desenvolvimento de
iniciativas contra-hegemônicas de reprodução social, tal
processo deve considerar os saberes e fazeres populares e as
formas de regulação dos bens comuns existentes no
território.

Considerações finais
Não se pode negar que o turismo, como atividade
econômica, está em um momento de inflexão. A pandemia
213
afetou sensivelmente esse fazer social que não pode ser
realizado sem deslocamentos e cuja aglomeração é lugar-
comum, tendo sido, portanto, uma das primeiras práticas
interrompidas pelas medidas de isolamento e distanciamento
sociais decretadas por governos mundo afora e estando
fadada a ser uma das últimas a atingir níveis de recuperação
econômica.
Dado tal contexto de crise, talvez inigualável na
história, abre-se uma possibilidade única para uma reflexão-
ação que permita um redimensionamento do turismo com
potência suficiente para incidir não apenas sobre as
consequências do colapso hodierno, mas, de forma definitiva
e irreversível, na sua causa maior: a sujeição ao modo de
produção capitalista. Conforme reportado por Boaventura
de Sousa Santos,
A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis
alternativas, que as sociedades se adaptam a novos modos
de viver quando tal é necessário e sentido como
correspondendo ao bem comum. Esta situação torna-se
propícia a que se pense em alternativas ao modo de viver,
de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros
anos do século XXI (SANTOS, 2020, p. 29).

Nesse sentido, o turismo pode ser um dos


promissores eixos de transformação social em direção a
outro mundo. Mas não este turismo que se consolidou como
imposição em diversos territórios até o advento da pandemia
do novo coronavírus. Ao contrário, o que se propugna é a
realização da prática turística e das atividades que lhe dão
suporte a partir da tríade auto-organização comunitária,
economia social e práxis territorial.
Para tanto, vale frisar, as universidades podem ter um
papel destacado, na medida em que estabeleçam relações de
cooperação com comunidades que pleiteiem assumir a tarefa
214
de desenvolver iniciativas de turismo comunitário. Essa
interação comunidade-universidade deve ter, antes de tudo,
um caráter de mediação entre saberes-fazeres e cosmovisão
locais e expertise técnico-científica, considerando, ainda, a
solidariedade, autonomia comunitária e reconhecimento do
território por seu valor de uso como pilares de um novo
porvir para o turismo.

Referências
ALOISIO, D. ‘Dendicasa’: avanço do coronavírus adapta
festejos juninos no interior baiano. In: Correio da Bahia,
Seção Coronavírus, Salvador, 3 de junho de 2020.
Disponível em <correio24horas.com.br>. Acesso em: 3
jun. 2020.
ALTARES, G. Europa recua pelo temor de uma segunda
onda de contágio. In: El País Brasil, Seção Internacional,
São Paulo, 25 julho 2020. Disponível em
<www.brasil.elpais.com>. Acesso em: 25 jul. 2020.
ANSA, Agência. Itália libera fronteiras internas e reabre
para o turismo. In: Época Negócios, Seção Mundo, São
Paulo, 3 junho 2020. Disponível em
<www.epocanegocios.globo.com>. Acesso em: 5 jun. 2020.
BAKOGIANNIS, E.; VLASTOS, T.; ATHANASOPOULOS,
K.; CHRISTODOULOPOULOU, G.; KAROLEMEAS, C.;
KYRIAKIDIS, C.; NOUTSOU, M.; PAPAGERASIMOU-
KLIRONOMOU, T.; SITI, M.; STROUMPOU, I.; VASSI,
A.; TSIGDINOS, S.; TZIKA, E. Development of a Cycle-
Tourism strategy in Greece based on the preferences of
potencial cycle-tourist. Sustainability, v. 12, n. 6, 2020, p.
1-14.

215
BENITES, A. Busca por “ar livre e uma graminha”
provoca fuga rural durante a pandemia. In: El País Brasil,
Seção Coronavírus, São Paulo, 25 julho 2020. Disponível
em <www.elpaisbrasil.com.br>. Acesso em: 27 jul. 2020.
BRANDÃO, J. Mercado Modelo será reaberto na quinta-
feira, garante vice-prefeito. In: Metro1, Seção Cidade,
Salvador, 29 julho 2020. Disponível em
<www.metro1.com.br>. Acesso em: 29 jul. 2020.
CHRISTOFFOLI, P.; NOVAES, H. A economia solidária
e a autogestão no Brasil contemporâneo. Elementos à luz
das teorias de Marx e da Colonialidade do Poder.
MARAÑÓN-PIMENTEL, Boris (Coord). Solidaridad
económica y potencialidades de transformación en
América Latina. Una perspectiva descolonial. Buenos
Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2012,
p. 59-84.
CORAGGIO, J. Economía Social y Solidaria. El trabajo
antes que el capital. Quito: Abya Yala, 2011.
CORDEIRO, H. Igreja do Bomfim celebra primeira missa
com fiéis após liberação de reabertura. In: Correio da
Bahia, Seção Salvador, Salvador, 24 julho 2020. Disponível
em <www.correio24horas.com.br>. Acesso em: 25 jul.
2020.
DAVIS, M. A crise do coronavírus é um monstro
alimentado pelo capitalismo. In DAVIS, M.; HARVEY, D.;
BIHR, A.; ZIBECHI, R.; BADIOU, A.; ŽIŽEK, S.
Coronavírus e a luta de classes. Teresina: Terra Sem
Amos, 2020, p. 5-12.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
216
KAFRUNI, S. Avianca pede para converter recuperação
judicial em falência. In: Correio Braziliense, Brasília, 6
julho 2020. Disponível em <correiobraziliense.com.br>.
Acesso em: 7 jul. 2020.
MALDIVES. Maldives Fifth tourism master plan. Male:
Ministry of Tourism, 2019.
MILANO, C. Overtourism y turismofobia: tendencias
globales y contextos locales. Barcelona: Ostelea School of
Tourism and Hospitality, 2017.
O GLOBO, Agência. Covid-19: turismo será setor mais
afetado e levará mais tempo para se recuperar. In: Época
Negócios, Seção de Economia, Rio de Janeiro, 12 abril
2020. Disponível em <www.epocanegocios.oglobo.com>.
Acesso em 1 jul 2020a.
________. Pontos turísticos serão reabertos em nova fase
da flexibilização no Rio. In: Valor Econômico, Seção
Brasil, 16 julho 2020. Disponível em
<www.valor.oglobo.com>. Acesso em: 24 jul. 2020b.
OLIVEIRA, R. Qual será o futuro do turismo após a
pandemia de coronavírus? In: Metrópoles, Caderno de
Turismo, 15 maio 2020. Disponível em
<www.metropoles.com>. Acesso em: 19 jun. 2020.
OLIVEIRA, R. Latam Brasil é incorporada ao pedido de
recuperação judicial do grupo nos EUA. In: El País Brasil,
Seção de Economia, São Paulo, 9 julho 2020. Disponível
em <www.brasil.elpais.com>. Acesso em: 9 jul. 2020.
PODHORODECKA, K. Island tourism during the
economic global crisis. Miscellanea Geographica, v. 22,
n. 3, 2018, p. 130-141.

217
RACY, S. Fórmula 1 é cancelada em quase todos os países
das Américas. In: O Estado de S. Paulo, Caderno de
Cultura, São Paulo, 21 julho 2020. Disponível em
<www.cultura.estadao.com.br>. Acesso em: 24 jul. 2020.
RIVERA CUSICANQUI, S. Utopía ch’ixi. [Entrevista
concedida a] Yael Weiss. Revista de la Universidad de
México [Programa de TV], Ciudad de México, 2 nov. 2018.
SANTOS, B. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra:
Almedina, 2020.
SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica e Tempo.
Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SAQUET, M. Por uma Geografia das territorialidades e
das temporalidades: uma concepção multidimensional
voltada para a cooperação e para o desenvolvimento
territorial. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.
________. Saber popular, práxis territorial e contra-
hegemonia. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
SARAIVA, A. Com turismo em crise, Hotel Copacabana
Palace fecha as portas pela 1ª vez em 96 anos. In: Valor
Econômico, Seção Empresas, São Paulo, 9 abril 2020.
Disponível em <valor.globo.com>. Acesso em: 15
jun.2020.
TURISMO Internacional caiu 97% em abril no mundo
todo, segundo a OMT. In: El País Brasil, Seção Pandemia
de Coronavírus, São Paulo, 22 junho 2020. Disponível em
<www.brasil.elpais.com>. Acesso em: 18 jul. 2020.
TRAORÉ, A. “Se quisermos um mundo melhor,
precisamos desconfinar o pensamento”. In: El País Brasil,

218
Seção Internacional, 24 julho 2020. Disponível em
<www.brasil.elpais.com>. Acesso em: 29 jul. 2020.
TZUL TZUL, G. Conversación del Mundo VII. [Entrevista
concedida a] Boaventura de Sousa Santos. Conversas do
Mundo [Programa de TV], Coimbra, 21 nov. 2015a.
________. Sistema de gobierno comunal indígena: la
reproducción de la vida. El Apantle, n. 1, 2015b, p. 125-
140.
________. La forma comunal de la resistencia. Revista de
la Universidad de México, Dossier Abya Yala, n. 847,
2019, p. 105-111.
UNWTO (WORLD TOURISM ORGANIZATION).
International tourism highlights. 2019 Edition. Madrid:
United Nations World Tourism Organization, 2019.
VASCONCELOS, P. Questões metodológicas na
Geografia Urbana Histórica. VASCONCELOS, P.; SILVA,
S. (Org.) Novos Estudos de Geografia Urbana
Brasileira. Salvador: Mestrado em Geografia da
Universidade Federal da Bahia, 1999, p. 191-201.
ZAMPRONHO, V. O retorno do turismo. In: Gazeta de
S. Paulo, Caderno de Turismo, 15 junho 2020. Disponível
em <www.gazetasp.com.br>. Acesso em: 18 jul. 2020.

219
220
CAPÍTULO 7

PANDEMICS AND CLIMATE CHANGE:


Lessons from the 2020 Covid-19.

Elisa Magnani

Introduction: environment, diseases and climate


change. A doublefold approach
In late December 2019 WHO was informed that
cases of pneumonia of unknown cause had been spreading
around Wuhan city in China, and a few days later China
identified it as a novel coronavirus, setting the alarm for a
possible global spread of the new disease
(https://www.euro.who.int/en/health-topics/health-
emergencies/novel-coronavirus-2019-ncov_old).
The causes behind the spead of this new virus have
rapidly been identified and put in relations to the
encroachment on the environment by human activities,
mainly the the commercialization of wild animals and
deforestation, that facilitate the spillover of animal-borne
diseases to human vectors. Forests, in particular, provide key
ecosystem services that are both underestimated by human
societies and, also, partially unknown. The role the
environment plays in keeping diseases under control is, in
fact, quite known by scientists, but little considered by
society as a whole, as several media are now pointing out (a
wide and beautiful article on the topic (ROBBINS, 2012) was
presented, as an example, by the New York Times already in
2012, in a clear attempt to sensitize its readers to the
question, and which seems quite visionary if read now).
According to the same author (ROBBINS, 2012) and other
221
sources (WWF, 2020a), the destruction of forests is directly
responsible for more than 50% of all recent zoonotic
diseases, while the change in the soil use, particularly
connected to deforestation, may put humans in more direct
contact with pathogens or with the forest species that bear
them (and with which they have co-evolved for millions of
years developing mostly a peaceful coexistence, which
produces, however, dramatic impacts once they get in
contact with new non-immunized vectors). Another 2020
WWF Report in Italian (WWF, 2020b) reminds that 80% of
all known viruses that infect humans have zoonotic origin,
as is 60% of all known human diseases (among which 75%
of all new diseases appeared after 1940 - nearly 400 in
absolute numbers). Zoonotic diseases affect nearly one
billion people every year and cause several million death.
This new Coronavirus confirms that the spread of
diseases is the product of an anthropogenic stress on the
environment: as a matter of fact, the majority of viruses that
have created global alert in the last decades derive from the
encroachement of men on nature. And little attention has
been paid in the same time span to the fact that in order to
keep the ecosystem services running, the environment has to
be protected, not only for the sake of the beauty of nature,
but to prevent the impacts of having them reduced or halted,
with all the impacts on humans that have been displaying
under our eyes in the aftermath of the spread of Covid 19:
not only is it affecting the global health and health systems,
but it also has economic, political, financial drawbacks. An
example often cited in this regard is the case of 2003 SARS,
whose spread left 8,000 infected people, with a global
economic loss of 30-50 billion dollars (WWF, 2020a).
According to WWF (2020b) the increase in the
occurrence of vector-borne diseases can be traced to a
222
number of mechanisms that directly affect human health,
such as the increase in the number of reproduction sites for
vector-borne diseases; an amplified diffusion of vectors;
keeping wild species in captivity in close contact with each
other; transfer of pathogens between different species; loss
of predatory species; human-induced genetic changes of
disease vectors or pathogens (such as the resistance of
mosquitoes to pesticides or the appearance of antibiotic
resistant bacteria);environmental contamination by agents of
infectious diseases. Deforestation triggers the intensity of all
these mechanisms. As an example, WWF (2020b) highlights
that a 10% increase in the deforestation of the Amazonas
produces a 3.3% increase in the cases of malaria: the rain, not
held back by foliage, accumulates on the soil and creates large
areas of stagnant water, where mosquito eggs thrive.
To sum up, the occurrence of zoonotic diseases may
be highly influenced by human activities interacting with the
environment, including population change, cultivation,
change in pastures and in croplands, and urbanization. Quite
interestingly, many of these factors are also among the main
contributors to climate change and striclty intertwined with
other anthropogenic changes. As a matter of fact, the Covid-
19 pandemic spread globally in early 2020 has brought many
scholars to discuss about the connections between diseases
and society, the environment, neoliberalism and climate
change.
According to Iacovone and Valz Gris (2020), as an
example, the pandemic crisis is raising several questions on
public health, on contaimnent measures, on economic and
political consequences and, most of all, on the root causes of
the unraveling of such a situation: they identify the main
drivers of this crisis in urbanization and industrialization, that
have been subtracting space to nature, sometimes very
223
rapidly and suddenly, to leave space to a “whole and
somehow schizophrenic set of connected infrastructes,
among which airports, urban centres, logistic areas,
agriculture moncrops, mines, industrial forests, intensive
breeding lots and suburban areas”. They even question
whether epidemics could not possibly be identified as
intrinsically tied to capitalist production, as endogenous
(contradictory) factors to the so called Capitalocene system.
In their analysis, Covid-19 had brought to a progressive
block of several states (with borders being locked, reduction
of individual freedom, economic slowdown), which has
stopped the capitalist system and, as a consequence,
produced a reduction in the atmospheric pollutants after
years capitalist over-exploitation of the planet natural
resources., just to start it all over again: just like economic
crisis are endougenous to the capitalist system, so
environmental crisis are, and they contribute to keeping alive
the system and regenerating it (IACOVONE and VALZ
GRIS, 2020).
To this, David Harvey has recently added some
insightful remarks, focusing in particular on the social impact
of viruses: while “there is a convenient myth that infectious
diseases do not acknowledge class or other social barriers and
boundaries”, Harvey reflects that if this was true in the past,
the pandemics that have spread along the 20th century
capitalist society tell a different story, one in which the
differential classes and social effects and impacts emerge
dramatically. In particular, two aspects reveal clearly: on one
side the question of who can work at home and who cannot
depicts a clear dividing line between working elites and the
basic workforce; on the other side, the fact that “the
workforce that is expected to take care of the mounting
numbers of the sick is typically highly gendered, racialized
224
and ethnicized in most parts of the world” (HARVEY,
2020).
Climate change may thus be regarded as another by-
product of the capitalist system and many scientists have
agreed that within that system it may contribute to the
insurgence and spread of new diseases. Namely, the risk of
an increase in the diffusion of diseases has been related to
climate change already in the 4th IPCC report in 2007, and
since then some other reports and authors have been
exploring this relation posing some very interesting research
questions such as whether pathogens and parasites that are
currently restricted to the tropics and lower latitudes might
move towards other latitudes and altitudes, considering that
future temperatures may allow for their survival; and how
much socieconomic patterns will influence the spread of
these patogens (ROSENTHAL, 2009).
However, it is only after the spread of coronavirus
that the connection between the pandemic and
environmental issues have become one of the main clues to
analysing this new global phenomenon.

Methodology
It does not seem an easy task to be discussing about
the Covid-19 pandemic, because, being such a fresh global
phenomenon and the grief it has brought all over the planet
so recent, a full objectivity in dealing with it may be hard to
obtain. Nonetheless many scholars have been publishing
about it under many different perspectives since the
beginning of 2020.
Being our aim to reflect upon the intercorrectedness
between climate change and diseases using the global spread
of Covid-19 as a laboratory from which deriving observation,
225
we have been focusing on those publications that could
contribute to give an answer to the following research
questions: which are the main root causes of the spread of
pandemics? Can they include the environmental changes
deriving from the human encroachment on nature and
climate change? Which are the main observable territorial
impacts deriving from a reduced immission of pollutants in
the athmosphere, consequence of the countermeasure taken
nearly globally to contain the diffusion of the pandemic?
And, finally, will our society be able to draw a lesson from
this pandemic? In particular, will we be able to put in place
adaptation measures that tackle not only the recovery from
this health (but also financial and economic) crisis but also
the recovery from the effect of climate change?
We have narrowed our research to some very recent
publicationst that either have been issued by geographers and
researchers of other critical disciplines, or that present
scientific data or analysis that are in line with the purpose of
connecting climate-related issues with diseases, namely
Covid-19. A wide set of scientific publications have thus
been revised, both presenting and analyzing scientific data
collected in many parts of the planet in respect to the victims
of the disease, the amount of pollutants in the air or the
athmospheric temperature, and connecting the virus to other
geographical, economic, political or social phenomena.
Moreover, a wide set of grey literature has
contributed to the analysis of the data: reports from the
IPCC, WHO, NASA, WWF and other global or regional
institutions have offered useful insights not only on datasets
but also in making connections between topics.
Finally, due tue the very recent nature of the
phenomenon here discussed, even more informal sources
have been used to gather both data and critical insights, such
226
as websites and blogs where several geographers or other
scholars have offered their critical readings of different
aspects of this situation.
Our aim is thus to discuss the intertwined knots
between all these factors, by focusing on the connection
between the pandemic and climate change, with a double
approach that analyses on one side the spread of diseases as
a consequence of the human-induced reduction of natural
spaces, on the other the environmental impacts of the
lockdown that many countries have decided to impose as a
reaction to the spread of Covid-19, such as the reduction of
the amount of greenhouse gases in the athmosphere since
mid February in many parts of the planet.

Climate change and diseases


In 2016, in a most cited journal article appeared on
the Lancet, Springmann et al. (p. 1937) higlighted that
“climate change has been described as the biggest global
health threat of the 21st century” and that this threat may
either be a direct one (changes in temperature, precipitation,
heatwaves, floods, droughts, and fires) or indirect (“leading
to ecological and social disruptions, such as crop failures,
shifting patterns of disease vectors, and displacement of
people”). It is now evident that among the indirect threat the
diffusion of diseases has to be given primary relevance. The
intertwined history of climate change and diseases has
already been identified by several scientists and grey literature
from different institutions emphasises the impact it may pose
on future societies. Both the 4th (2007) and the 5th (2014)
IPCC Assesment Report - just to mention some of the most
quoted assessments on climate change - warned against the
role climate change might have in contributing to the global
227
burden of infectious, respiratory and skin diseases (IPCC,
2007) and in “increasing incidences of temperature-
influenced diseases” (IPCC, 2014a, p. 167), but also food and
water-borne diseases and vector-borne diseases (IPCC,
2014b, WHO, 2003).
Another IPCC Report (2018, p. 9) mentioned, more
specifically, that “risks from some vector-borne diseases,
such as malaria and dengue fever, are projected to increase
with warming from 1.5°C to 2°C, including potential shifts
in their geographic range”. This confirms what the IPCC had
already postulated in 2012, when it connected the spread of
several diseases to climate change impacts, such as flooding
or droughts, and analysed the relevance on public health,
mentioning an increased threat of zoonotic diseases and
different local patterns in the prevalence of infectious
diseases such as malaria, dengue fever, cholera, Rift Valley
fever, and hantavirus pulmonary syndrome. Later, in 2019,
another IPCC Report on the impacts of climate change on
land highlighted that some vectors bearing zoonotic diseases
such as ticks “have also likely changed distribution as a
consequence of past climate trends” (p. 494) and also that
“climate may act directly by influencing growth, survival,
persistence, transmission, or virulence of pathogens; indirect
influences include climate-related perturbations in local
ecosystems or the habitat of species that act as zoonotic
reservoirs” (p. 726). The same Report reminds that pests and
other diseases may impact on agriculture and, as a
consequence, on food security.
On its website, the Word Health Organization clearly
asserts that “much evidence of associations between climatic
conditions and infectious diseases”
(https://www.who.int/globalchange/climate/summary/en
/index5.html), while scientists agree that “globalization and
228
climate change may increase the risk of the geographic
spread of vector-borne diseases” (LIU-HELMERSSON,
2016, p. 267), and that “Global climate change and the
unprecedented rate of infectious disease emergence
represent two of the most formidable ecological problems of
our time” (ROHR et al., 2011, p. 270). Nonetheless the same
authors also consider that “there is an apparent paradox, at
the level of communities, which has not been explicitly
mentioned in the climate change–disease literature. Evidence
is mounting that climate change will reduce biodiversity,
including parasite diversity” (ROHR et al., 2011, p. 275).
Rohr et al., however, warned as well that while a
genuine concern for the future increase in the spread of
climate-related diseases, effectively forecasting climate-
change impacts on disease was not an easy task, and needed
to be based on more scientific research, addressing several of
the theoretical, data and scale gaps. Following this reasoning,
Jordan (2019), while stressing the need for more accurate
investigation on this relationship, observes that what we
know at the moment seems to be highlighting both a good
and a bad news: “The good news: higher global temperatures
will decrease the chance of most vector-borne disease
spreading in places that are currently relatively warm. The
bad news: warming will increase the chance that all diseases
spread in places that are currently relatively cold”. On her
side, Shuman (2010) reminds that climate change has already
contributed to pressing the introduction of certain infectious
diseases in areas that were previously unaffected, as is the
case with malaria in highland regions in East Africa, where
warmer and wetter weather conditions have resulted in a
higher incidence of infections. The same author stresses that
“If global temperatures increase by 2 to 3°C, as expected, it
is estimated that the population at risk for malaria will
229
increase by 3 to 5%, which means that millions of additional
people would probably become infected with malaria each
year” (SHUMAN, 2010, p.1062).
In 2009 Rosenthal already suggested thay while
diseases such as influenza and cold viruses had not been
much studied yet, still they were likely to change in terms of
distribution on the planet as a consequence of climate
change, temperature/humidity pattern, globalization. This
last, in particular, was identified as a new player in the global
mobility of pathogens, that offers new and numerous
opportunities for them to reach new hospitable vectors,
while in the past isolation and spatial distance would hinder
a global diffusion of diseases: “in the past, a zoonotic
pathogen might infect a band of hunter-gatherers; today,
thanks to a globalized, deeply interconnected world, a single
local outbreak can become a pandemic in a few weeks”, De
Waal (2020) warns. Gobal practices such as agriculture,
livestock and wildlife trade, human travel and migration
together with the planetary transportation industry, help
moving pathogens and infecting hosts all around the planet.
Recent examples of this global migration of vector-diseases
include West Nile, Chikungunya, Rift Valley viruses, that
diffuse from animal hosts, often supported by their innate
capacity to mutate and thus being transmitted to new species
(ROSENTHAL, 2009).
The 5th IPCC Report (2014) estimated that climate
change would lead to an increase in ill-health and deaths in
many regions of the planet, especially in low income
countries. In 2018 WHO published a more detailed study on
climate-change related diseases, estimating that 60,000
deaths were caused every year by weather-related disasters,
particularly in developing countries, and that this figure,
which has more than tripled since the 1960s, is espected to
230
increase up to 250,000 additional deaths per year between
2030 and 2050, of which 38,000 due to heat exposure in
elderly people, 48,000 to diarrhoea, 60,000 to malaria, and
95,000 to childhood undernutrition. People living in small
island developing states and other coastal regions,
megacities, mountainous and polar regions are particularly
vulnerable, together with children, especially those living in
poor countries (http://www.who.int/news-
room/factsheets/detail/climate-change-and-health).
All this said, and bearing in mind that climate change
has been proven to influence the insurgence and spread of
several diseases, we need to be cautious when relating climate
change to Covid-19 as no scientific proof has been given yet.
What we know for sure is that, as a consequence of climate
changes, many animal species migrate to latitudes that they
had never populated before, bringing with them the diseases
they bear, and getting in touch with other animals and finally
humans, thus increasing the opportunities for the spillover
and the diffusion of these pathogens to new hosts
(BERNSTEIN, 2020).
Several epidemiological studies have been assessing
the climatic conditions in which Covid-19 has had larger
diffusion and discovered that it has struck mainly in urban
areas with humid and not exceedingly hot environments
(LOZITO, 2020). Zhongwei et al. (2020) have been analysing
3,750,000 confirmed COVID-19 cases from 185
countries/regions from January 21, 2020 to May 6, 2020, to
identify a distibution pattern and found out that 60% of the
confirmed COVID-19 cases had developed in places in
which the temperature ranged from 5° to 15°, with very few
cases identified at lower (lower that 0 °C) or hotter (greater
than 30°C) temperatures. Lozito (2020) goes on saying that
the virus has had a larger diffusion in very polluted cities,
231
which are also very popolous areas and insists that while the
air pollution and the high presence of PM10 and PM2.5 play
a multiplier effect, many people living in these urban areas
tend to present critical lungs conditions as a consequence of
smog, making them weaker and more vulnerable to
respiratory diseases. He also stresses that according to the
World Health Organization, in 2016 pollution caused the
death of 2.4 million people, particularly from lower classes in
lower income countries.
As for Italy, the same author (LOZITO, 2020)
reports that the high diffusion of Coronavirus in the Po
Valley has been interpreted by several scientists as a direct
evidence of the role played by air particulate, while others
have connected it to the higher presence of industries (which
seems to be confirmed by the fact that the less industrialized
South has had far less cases). He insists, however, that while
the role played by these two factors is undeniable, the fact
that Northern Italy and particularly the Po Valley have also
the highest demographic concentration has not to be
underestimated, being Lombardia the region with the highest
density according to ISTAT figures (ISTAT, 2018).
However, he seems not to consider that the region with the
second higher demographic density, Campania, has counted
a relatively low number of cases – but, objectively, one must
admit that it has been reached by the infection after the
national alarm had been given and countermeasures had
alteady been put in place.

Consequences of the lockdown


In late March 2020 Italian media spread the news that
satellite images from the Copernicus programme
coordinated by the European Commission and the
232
European Spatial Agency confirmed the data that ISPRA
(The Italian agency for the protection and the research on
the environment, operating under the control of the Ministry
of the environment since 2008) had already collected: the
amount of atmospheric pollutants on the Po Valley had
drastically reduced since the beginning of the lockdown.
Such a result derived from the shutdown of several activities
responsible for the immission in the atmosphere of
greenhouse gases and particulate, among which industrial
and energy production, together with commercial and
private transportation. This allowed for a reduction of the
Italian national carbon footprint as Rugani and Caro (2020)
highilight in their study on the carbon footprint of all Italian
regions pre- and post-lockdown; they also observe that
Northern regions, while having had the highest footprint
previuosly, have been able to reduce the most during the
lockdown phase, with Lombardia and Emilia Romagna
showing the highest reduction of greenhouse gases emitted
in the atmosphere during the lockdown. However, the same
authors warn that while carbon footprint has been reduced
globally by a reduction of in road and non-road transport and
fuel combustion in institutional and commercial buildings,
“these decreases were counter-balanced by an increase of PM
emissions from the activities at home (e.g. domestic heating,
biomass burning)” (RUGANI and CARO, 2020).
The same data were confirmed by satellite images
from either ESA and NASA for several other European
industrial areas (ESA, 2020a) and other highly industrialised
areas of the planet such as China, in particular the Wuhan
area (NASA, 2020a) or India (ESA, 2020b).
Sicard et al. (2020) in their study on atmospheric
concentration in Southern Europe and Wuhan, observe that:

233
The unprecedented reduction in mobility and economic
activity caused by the COVID-19 lockdown represents an
exceptional opportunity for studying the contribution of
different sources of primary pollutant and for understanding
the changes in the atmospheric chemistry under conditions
of reduced primary pollutant emissions in the cities
(SICARD et al., 2020).

However, while the reduction of pollutants emerging


from these data regards mainly nitrous oxide and PM
concentrations, the global amount of CO2 in the atmosphere
continued increasing and peaked in April 2020 (when it was
measured by the Mauna Loa Observatory at 416 ppm, the
highest value ever recorded), and this because CO2 remains
in the atmosphere for many years, as Rugani and Caro (2020)
state. Moreover, according to Dantas et al. (2020) in their
study on the effect of the lockdown on air pollution in Rio
de Janeiro, other variables need to be taken in consideration,
such as the meteorological conditions, whose impact
“cannot be neglected and should be analyzed in the future”.
A study on CO2 emissions reduction during
lockdown has been published in July 2020 by Le Quéré et al.,
who focus on the specific reduction experienced by 6
different economic sectors in 69 countries, 50 US states and
30 Chinese provinces, which represent 85% of the world
population and 97% of global CO2 emissions. According to
their study, daily global emissions of CO2 decreased by 17% by
early April 2020 compared with the mean value of 2019.
Analysing daily changes in CO2 emissions the study shows that
by 7 April 2020 (the day with the maximum change for each
economic sector for the globe in comparison with the mean
level of 2019) emissions decreased prevalently in aviation (-60%)
and surface transport (-36%). The other economic sectors
considered are power (-7.4%), industry (-19%), public (-21%)
234
and residential (+2.5%). Zhu Liu et al. (2020), on their side,
propose a different estimate, based on power generation in 29
countries, industry production in 73 countries, road
transportation in 132 countries, aviation and maritime
transportation plus heating both for commercial and residential
buildings in 206 countries. They calculate a 5.8% decrease in
gobal CO2 emissions in the first quarter of 2020, with the
highest reduction in fishing and maritime transport (-13.3%
compared to 2019), road transportation (-8.3%), aviation (-
8.0%) and industry (-7.1%), followed by power generation (-
3.8%), residential (-3.6%). The largest share of reduction was
kept by China (-10.3%), followed by Europe (-4.3%) (EU-27 &
UK) and USA (-4.2%).
While there are already several researches on such short-
term effects of the lockdown, comprehension of the possible
long-term responses to quarantine from the Planet is still
lacking, as NASA scientists sustain, while committing to
studying it (NASA, 2020b).

Discussion: are adaptation measures to Covid-19


beneficial to the reduction of climate change?
This positive impact of the lockdown on the
reduction of pollutants in the atmoshpere, however, poses a
new worry to the scientific community worldwide, in that it
is, as mentioned above, just a short-term result, which may
higly be reversed should the production be resumed at the
pace it had before the quarantine, and with the same
nonsensical disregard for the environmental/atmospheric
drawbacks. La Quéré et al (2020) warn that following the
most recent financial crisis in 2008-2009, global CO2
emissions decreased up to -1.4% (2009), but immediately
after global CO2 emissions increased up to +5.1% in 2010,
235
and that the same may follow the 2020 pandemic crisis, if the
post-crisis economic recovery policies do not include a
substantial shift in energy efficiency and in the development
of alternative energy sources. Political action is thus vital to
prompt a shift in societal values.
Figueres and Rivett-Carnac (2020) observe that while
governments have been promoting economic stimulus
packages to help people and corporations overcome the
crisis, no clear agreement on clean recovery measures has
already been reached and so we may just hope that it will not
compound the climate crisis. As pointed out by Columbia
University specialists in late March 2020, the lowering of oil
price due to a lower request may impact negativly on the
climate crisis in that it may reduce the investment in
renowable rosurces and, at the same time, encourage people
to buy new, larger vehicles; on a microscale, it may also drive
smaller oil and gas producers out of business, thus
reinforcing big corporations (CHO, 2020), which do not
seem particularly keen in investing in climate-friendly
policies.
We need to observe that while the management of
the Covid-19 crisis has put in place successful global political
cooperation, the same has never occurred up to now in
respect to the management of the ecological and climate
crisis and this is associated with the fact that while the threat
of a global Covid-19 unleashed pandemic seems very real,
the risk of global climate change does not seem as real and
for this the transition out of the global health crisis may not
include attention to the need for green incentives for the
economic and financial recovery. However, the risk
associated to climate change is indeed real, as Springmann et
al. demonstrated in their 2016 article published on the
Lancet, estimating that as a consequence of climate change-
236
induced lower food productivity, more that 500,000 death
had to be expected globally by 2050, slightly the same figure
for Covid-19 deaths at the beginning of July 2020
(https://covid19.who.int/). Quite a significant amount of
deaths, be it for one reason or the other. The risk is real.
On the topic, Bernstein (2020) warns that “Infectious
diseases are scary because they are immediate and personal”,
while “climate change seems to many an Armageddon in
slow motion and its dangers can feel impersonal and its
causes diffuse”. He also stresses that the actions aimed at
combating climate change and promoting people’s health are
the same. In his essay Lozito (2020) follows this reasoning
and suggests that we should take the opportunity of this
global pandemic to use the same adaptation measures as a
framework to guide the planet to a solution for climate
change.
In their study published in July 2020, Le Quéré et al.
identify and test three possible post-lockdown scenarios in
relation to the emission of greenhouse gases in the
athmosphere. In the first scenario, with all economic
activities returned to pre-crisis levels around mid-june, the
global decrease on CO2 emissions would be -4.2% for 2020.
In the second scenario the economic activities will return to
pre-crisis levels only around the end of June, because of the
social trauma and low confidence of the governments, and
as a consequence the the global decrease on CO2 emissions
for 2020 will be -5.3%. In the third scenario some restrictions
will remain in place up to the end of the year and prolonged
or intermittent social distancing may be necessary into 2022:
in this case the global decrease on CO2 emissions will reach
-7.5% for 2020. But, the authors warn, “most changes
observed in 2020 are likely to be temporary as they do not
reflect structural changes in the economic, transport or
237
energy systems.” (LE QUERE et al, 2020, p. 652). The risk is
that as the more dramatic health-related measures start
working, the global preoccupation for the root causes of the
pandemic and its intercorrectedness with climate change-
related territorial causes is cast aside, in pursuit of short-term
solutions that tackle only the economic and finacial aspects
of the crisis (CRAWFORD, 2020).
Hepburn et al. in their study published in May 2020
for the Oxford Smith School of Enterprise and the
Environment, posit that the reduction of emissions resulting
from lockdown will not have a long-term impact without a
sustainable recovery policy that should be based on five main
aspects: clean physical infrastructure, building efficiency
retrofits, investment in education and training, natural capital
investment, and clean research and development. They also
suggest that recovery packages could (and should) be used to
reach both economic and climate goals (HEPBURN et al.,
2020), aiming at a change in the dominant economic
paradigm. This is actually in line with one of the three
scenarios identified by Pelling (2010) in respect to adaptation
to climate change: in particular, when describing the most
radical of the three (being the others adaptation by resilience
and adaptation by transition), he posits that adaptation as
transformation is aimed at a complete reform in the
overarching political economy regimes, that encompasses
conscious replacement of the dominant political-cultural
regimes. This reform, however may only occur when those
with power are held to account over their ability to protect
core and agreed-upon rights for citizens. Moreover, he
stresses the fact that the rights concerning climate justice are
connected to the acceptance of what climate change is,
through the inclusion of the voices of scientists in the
political and public discourse, that should lead to a shift in
238
the way people and organizations behave and organize
values, and perceive their place in the world (Pelling, 2010).
But, as De Waal (2020) reminds us, in the management of
diseases, it is only “where political interests align with
scientific advice, that advice becomes policy.”

Conclusions
Aaron Bernstein (2020), Director of Harvard Chan
C-CHANGE, warns that climate actions are needed not only
to control climate change but also to prevent the
development of future pandemics. He also suggests that
implementing actions that tackle the root causes of climate
change is vital, and that preventing deforestation is a key
action, together with halting air pollution, that threatens the
respiratory health of the global population and weakens their
immune systems. However, putting pollution and
deforestation on a leash does not seem an easy goal to
achieve in our society, as rooted as they are into capitalism,
and with consumerism as a major driver of all economic
policies worldwide (HARVEY, 2020).
We may observe that, at the moment of writing, the
idea that Covi-19 will not be used to steer the climate
adaptation policies towards a greener future is prevailing
worldwide. Rather, it is threatening the very global
commitment toward climate actions, as it has imposed a halt
to climate negotiations that should have taken place in
the November conference in Glasgow, which has been
postponed due to the impossibility to meet in person.
Moreover, another major threat may derive from the
reduced interest of politicians to invest in climate
policies, to favour economic recovery plans in response
to the disruption brought about by Coronavirus, as the
239
Time has cleverly suggested early in March
(WORLAND, 2020).
Coming back to the research questions that had
moved our interest, let’s revise them briefly to draw some
concluding reflections. First of all, we may conclude that
among the root causes of the spread of pandemics
environmental changes deriving from the human
encroachment on nature and climate change may rightly be
included, as it has been widely discussed in scientific
publications and grey literature coming from some among
the key institutions dealing with climate change, health and
the environment. Following, we have discussed about the
observable territorial impacts of the (nearly) global
lockdown, that has implied a reduced immission of
pollutants in the atmosphere: scientific evidence has shown
that there has been a measurable reduction in the presence
of (at least) some greenhouse gases in several very
industrialized areas, such as the Po Valley in Italy, the Hubei
region in China, but also India, Brazil and other EU
countries. However, this reduction include only partially
CO2, which has a longer persistance in the atmoshere than
PMs and Nox, and a much longer lockdown would perhaps
be necessary in order for it to be appreciable.
This last aspect brings us right into the final question,
that was aimed at investigating the possible post-virus
scenarios. Many voices are claiming to start putting in place
adaptation measures that, while addressing the recovery from
this health (but also financial and economic) crisis, tackle at
the same time the effects of climate change. But the reality is
that this seems hardly feasible, as several authors have been
arguing: it is higly possible that the emissions reduction could
be short-lived once the quarantine is over all around the
planet and we start polluting as in a pre-Covid-19 scenario,
240
just like it happened in the aftermath of the 2008-2009
economic crisis.

Bibliographic references
BERNSTEIN, A. Coronavirus, Climate Change, and the
Environment. A Conversation on COVID-19 with Dr.
Aaron Bernstein. In: News From School of Public
Health, Coronavirus and Climate Change, Cambridge,
2020. Available in <www.hsph.harvard.edu>. Acess: 24 jul.
2020.
CHO, R. What Can We Learn From COVID-19 to Help
With Climate Change? In: News From Earth Institute of
Columbia University, Climate and Health, New York,
march26, 2020. Available in <www.blogs.ei.columbia.edu>.
Acess: 29 jul. 2020.
CRAWFORD, V. How COVID-19 might help us win the
fight against climate change. In: World Economic Forum
Agenda, Covid-19 and Climate Change, Geneva, march 31,
2020. Available in <www.weforum.org>. Acess: 24 jul.
2020.
DANTAS, G. The impact of COVID-19 partial lockdown
on the air quality of the city of Rio de Janeiro, Brazil.
Science of the Total Environment, v. 729, 2020, p. 1-11.
DE WAAL, A. New Pathogen, Old Politics. In: Boston
Review, Science & Nature, Boston, april 3, 2020. Available
in <www.bostonreview.net>. Acess: 25 jul. 2020.
ESA (The European Space Agency). Coronavirus lockdown
leading to drop in pollution across Europe. In: The
European SpaceAgency, Applications, Paris, march 27,
2020a. Available in <www.esa.int>. Acess: 24 jul. 2020.
241
________. Air pollution drops in India following
lockdown. In: The European SpaceAgency, Applications,
Paris, april 24, 2020b. Available in <www.esa.int>. Acess:
24 jul. 2020.
FIGUERES, C.; RIVETT-CARNAC, T. Our approach to
covid-19 can also help tackle climate change. In: New
Scientist, Health, London, april 1, 2020. Available in
<www.newscientistcom>. Acess: 24 jul. 2020.
HARVEY, D. Anti-Capitalist Politics in the Time of
COVID-19. In: Reading Marx’s Capital With David
Harvey, New York, march 19, 2020. Available in
<www.davidharvey.org>. Acess: 24 jul. 2020.
HEPBURN, C. et al. COVID-19 fiscal recovery packages
accelerate or retard progress on climate change? Smith
School Working Paper, v. 20, n. 2, 2020, p. 1-48.
IACOVONE, C.; VALZ GRIS, A. Il virus è un prodotto
del Capitalocene. In: Jacobin Italia, Roma, 25 marzo 2020.
Disponibili in <www.jacobinitalia.it>. Accesso in: 26 giu.
2020.
IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change).
Climate Change 2007: Synthesis Report. Contribution of
Working Groups I, II and III to the Fourth Assessment
Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change,
Geneva: IPCC, 2007.
________. Managing the risks of extreme events and
disasters to advance climate change adaptation. A
Special Report of Working Groups I and II of the
Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambrigde:
Cambridge University Press, 2012.

242
________. Climate Change 2014: Mitigation of Climate
Change. Contribution of Working Group III to the Fifth
Assessment Report of the Intergovernmental Panel on
Climate Change. Cambrigde: Cambridge University Press,
2014a.
________. Climate Change 2014: Impacts, Adaptation,
and Vulnerability. Part A: Global and Sectoral Aspects.
Contribution of Working Group II to the Fifth Assessment
Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change
Cambrigde: Cambridge University Press, 2014b.
________. Summary for Policymakers. Global Warming
of 1.5°C. An IPCC Special Report on the impacts of global
warming of 1.5°C above pre-industrial levels and related
global greenhouse gas emission pathways, in the context of
strengthening the global response to the threat of climate
change, sustainable development, and efforts to eradicate
povert. Geneva: IPCC, 2018.
________. Summary for Policymakers. Climate Change
and Land: an IPCC special report on climate change,
desertification, land degradation, sustainable land
management, food security, and greenhouse gas fluxes in
terrestrial ecosystems. Geneva: IPCC, 2020.
ISTAT (Instituto Nazionale di Statistica). Annuario
Statistico Italiano 2018. Territorio. Roma: Instituto
Nazionale di Statistica, 2018. Available in <www.istat.it>.
Acess: 24 jul. 2020.
JORDAN, R. How does climate change affect disease? In:
Stanford Earth, Stanford, 15 March, 2019. Available in
<www.earth.stanford.edu>. Acess: 24 jul. 2020.

243
LE QUÉRÉ, C. et al. Temporary reduction in daily global
CO2 emissions during the COVID-19 forced confinement.
 Nature Climate Change, v. 10, 2020, p. 647-653.
LIU HELMERSSON, J. et al. Climate Change and Aedes
Vectors: 21st Century Projections for Dengue Transmission
in Europe. EbioMedicine, n. 7, 2016, p. 267-277.
LOZITO, N. Coronavirus e cambiamento climatico. 50
domande per capire le connessioni tra Covid-19 e ambiente.
Roma: Il Colore Verde, 2020.
NASA (National Aeronautics and Space Administration).
Airbone nitrogen dioxide plummets over China. In: NASA
Earth Observatory, Washington, February 2020a.
Available in <www.earthobservatory.nasa.gov>. Acess: 24
jul. 2020.
________. COVID-19: NASA Science keeps the lights on.
In: NASA Global Climate Change, April 6, 2020b.
Available: <www.climate.nasa.gov>. Acess: 24 jul. 2020.
PELLING, M. Adaptation to Climate Change. From
resilience to transformation. London: Routledge, 2010.
ROBBINS, J. The Ecology of Disease. In: The New York
Times, Sunday Review, New York, july 14, 2012. Available
in <www.nytimes.com>. Acess: 24 jul. 2020.
ROHR, J. et all. Frontiers in climate change–disease
research. Trends in Ecology and Evolution, v. 26, n. 6,
2011, p. 270-277.
ROSENTHAL, J. Climate Change and the Geographic
Distribution of Infectious Diseases. EcoHealth, n. 6, 2009,
p. 489–495.

244
RUGANI, B.; CARO, D. Impact of COVID-19 outbreak
measures of lockdown on the Italian Carbon Footprint.
Science of the Total Environment, n. 737, 2020, p. 1-5.
SICARD, P. et al. Amplified ozone pollution in cities during
the COVID-19 lockdown, Science of the Total
Environment, v. 735, 2020, p. 1-7.
SHUMAN, E. Global Climate Change and infectious
diseases. New England Journal of Medicine, n. 362,
2010, p. 1061-1063.
SPRINGMANN, M. et al. Global and regional health eff
ects of future food production under climate change: a
modelling study. Lancet, n. 387, 2016, p. 1937-1946.
WHO (World Health Organization). Climate Change and
Human Health - Risks and Responses. Summary. Geneva:
World Health Organization 2003.
________. Health and climate change survey report:
tracking global progress. Geneva: World Health
Organization, 2019.
WORLAND, J. How coronavirus could set back the fight
against climate change. In: Time, World, New York, march
10, 2020. Available in <www.time.com>. Acess: 24 jul.
2020.
WWF (World Wide Fund for Nature). Quel legame
strettissimo tra pandemie e perdita di natura. In: Italia Che
Cambia, Ambiente, Roma, 17 marzo 2020a. Disponibili in
<www.italiachecambia.org>. Accesso in 24 giu. 2020.
________. Pandemie, l’effetto boomerang della
distruzione degli ecosistemi. Roma: WWF Italia, 2020b.

245
ZHU L. et al. Near-real-time data captured record decline in
global CO2 emissions due to COVID-19. In: General
Economics, Economics, New York, april 28, 2020.
Available in <www.arxiv.org>. Acess: 24 jul. 2020.
ZHONGWEI, H. et al. Optimal temperature zone for the
dispersal of COVID-19. Science of the Total
Environment, v. 736, 2020, p. 2-5.

Websites
https://www.euro.who.int/en/health-topics/health-
emergencies/novel-coronavirus-2019-ncov_old.
Last accessed 24/07/2020.
https://www.who.int/globalchange/climate/summary/en/
index5.html.
Last accessed 24/07/2020.
https://www.who.int/news-room/fact-
sheets/detail/climate-change-and-health. Last accessed
24/07/2020.
https://covid19.who.int/.
Last accessed 24/07/2020.
https://time.com/5795150/coronavirus-climate-change/.
Last accessed 24/07/2020.

246
CAPÍTULO 8
O SUL GLOBAL NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS PÓS-PANDEMIA:
Fatos, desafios e perspectivas para um mundo em
desalento.

Júlio César Ferreira Cirilo

Introdução
A pandemia global de Covid-19 traz a possibilidade
de novas reflexões e novas práticas na seara internacional, de
modo que sejam repensados os modelos utilizados pelos
estados-nação do Sul Global na política externa nos tempos
de globalização pré-pandemia. A onda de ódio xenófobo
(materiais e virtuais) alimenta discursos e políticas
unilateralistas e isolacionistas, havendo uma tensão crescente
entre duas posições a serem tomadas pelos estados-nação na
condução de suas políticas externas: o unilateralismo e o
multilateralismo. Este texto objetiva expor a realidade das
relações internacionais atuais no Sul Global, notadamente no
tocante à África e América Latina; expondo fatos
relacionados à xenofobia e obstruções comerciais
internacionais (turismo, logística, trocas tecnológicas)
havidas no âmbito da pandemia de Covid-19. O texto é
resultado de estudos qualitativos de dados e documentos
disponíveis, com base explicativa; e, quanto aos
procedimentos, fez-se uso de revisão bibliográfica.

247
Alguns fatos enfrentados pelo Sul Global nas Relações
Internacionais num contexto pandêmico: xenofobia e
crise econômica.
A compreensão de analistas sobre as relações
internacionais (R.I.) foi afetada pela pandemia da Covid-19
de formas múltiplas e ambivalentes, conforme a realidade de
cada região geopolítica, tendo em vista que há novas
perspectivas de análise das tradicionais teorias de R.I. num
mundo ligado agora, não apenas pela economia e pelo
mercado financeiro, mas, sobretudo, pelas (in)consequências
de atos sanitários. Se em fins de dezembro de 2019 já eram
anunciados, na China, os primeiros casos da Covid-19, dias
após outras nações asiáticas informavam infecções nativas,
alertando as nações quanto à gravidade do problema e a
possibilidade de real de uma pandemia global, com fortes
interferências nas Relações Internacionais e, ainda mais
graves quanto ao Sul Global. Xenofobia e Relações
Comerciais Internacionais são os dois enfoques escolhidos
para analisarmos como a pandemia de Covid-19 afetou o Sul
Global e este poderá agir em cenários pós-pandemia.

O Sul Global e o xenofobismo em tempos de pandemia


Um primeiro grande grupo de consequências da
pandemia nas R.I. no Sul Global é o recrudescimento do
xenofobismo e o fechamento de fronteiras ao mundo. Os
povos do Sul Global tem sido as maiores vítimas desta onda
de propagação de ódio, que usa o meio virtual como
instrumento disseminador de mentiras, distorções e teorias
conspiratórias. O xenofobismo encontrou terreno fértil no
ambiente virtual, com a propagação de mensagens de ódio e
discriminação, sobretudo (mas não somente) contra os
248
asiáticos, notadamente os chineses. Conforme o estudo de
Zannettou, et al. (2020) realizado pelo Network Contagion
Research (NCR), constatou-se a expansão de propagandas de
ódio e disseminação de “sentimentos sinofóbicos e
antiasiáticos” através de um complexo sistema
metodológico-informático denominado “Contextus”; e por
meio de tais estudos foram rastreados discursos
discriminatórios contra asiáticos e, com estudo de caso cujo
tema era “conspiração de armas biológicas”. De acordo com
tal relatório
Começamos detectando e documentando aumentos
mensuráveis na sinofobia e no sentimento anti-asiático em
uma grande comunidade da Web, que vinculamos
diretamente ao próprio vírus. Usando o Contextus,
monitoramos a hostilidade contra identidades específicas
medindo como os termos de identidade são direcionados
por associações odiosas em conjunto nas comunidades da
web (2020, p. 4).

A pesquisa do NCR constatou que os discursos de


ódio que antes ficavam restritos à grupos extremistas em
“chans” ou “blogs” transbordaram para redes sociais mais
abertas e acessíveis ao grande público; resultando, assim, na
reconstrução de antigos preconceitos sob novas formas,
atingindo um público em escala global. Segundo o relatório,
Descobrimos conspirações que conectam a injúria racial,
“fenda”, ao vírus. Isso inclui uma conspiração "chinobyl", o
lançamento acidental de uma arma biológica projetada, de
um "laboratório" em "wuhan", bem como "microinvasões".
A rede de tópicos, portanto, contém elementos de
militarização e conspiração em torno do vírus. De fato, de
acordo com nossa investigação de inteligência de código
aberto, o tema do vírus sendo militarizado como uma arma
biológica compreende a mais difundida das teorias de
conspiração sinofóbica que encontramos. Para examinar
essas conspirações com mais rigor, o NCRI implantou redes
249
de tópicos sobre o termo “arma biológica” para examinar se
a conversa sobre uso militar de vírus em geral relaciona o
Corona vírus com o ódio étnico da comunidade asiática
(ZANETTOU et al., 2020, p. 4).

Na perspectiva teórica subalterna há a crítica pela


qual a xenofobia contemporânea seja fruto do estado-nação
moldado a partir de concepções eurocêntricas e, onde o
estrangeiro seria visto como inimigo ou ameaça, e a
autoctonia estimulada pelo estado-nação seria a garantia da
preservação dos valores. Tal segregação seria inerente à
formação do estado-nação convencional, por estar
constituído com base em atual num território e sobre um
povo, de modo a proteger ambos das “ameaças externas”.
Assim, há que se falar que a xenofobia e a política interna
nacional refletem-se na condução de políticas externas e
internacionais, sobretudo quanto ao controle de fronteiras
(quem pode entrar ou quem deve sair de um país) e o
tratamento dispensado ao estrangeiro sob sua soberania. É
como se o corpo do estrangeiro estivesse constantemente
vigiado e submetido ao estado de semi-paridade jurídica com
os nativos ou, em outras palavras, num estado de quase
exceção e baixas prerrogativas. Comaroff e Comaroff
discorrendo sobre a autoctonia afirmam que,
Frente a afirmações cada vez mais assertivas sobre a
sociedade e o Estado, de afirmações feitas em nome de
diferentes tipos de identidade, uma solução que tem se
apresentado tem se baseado na autoctonia: ao elevar à
condição de princípio primeiro os interesses e ligações
inefáveis - a uma só vez materiais e morais, que se seguem
do "enraizamento" nativo - e os direitos especiais, a um local
de nascimento. Esta não é tampouco uma solução
meramente estratégica que atraia apenas àqueles envolvidos
diretamente com o governo; ela encontra ecos em medos
populistas que são sentidos profundamente – e encontra eco

250
também nas predisposições dos cidadãos de todos os tipos
de projetar ansiedades comuns sobre forasteiros. (...)
Enquanto forma de afirmação contra alienígenas, contudo,
a mobilização da autoctonia parece estar crescendo em
proporção direta à hifenização cindida da organização
política soberana, à sua porosidade e impotência,
popularmente percebidas, diante das forças exógenas
(COMAROFF e COMAROFF, 2001, p. 71).

O discurso em favor da autoctonia, do nacionalismo


é abraçado por ideólogos e políticos de extrema-direita que
fazem da presença estrangeira uma ameaça aos “interesses e
segurança nacionais”, de modo a que sejam alcançados a
primazia absoluta por tudo que seja nacional, interno,
autóctone. A xenofobia é então, uma radicalização da
dualidade “nós” contra “eles, os outros, o de fora”; sendo,
portanto, uma canalização dos sentimentos de ódio,
frustração e medo. As redes sociais têm sido usadas como
ferramentas para a divulgação de desinformação, tanto
quanto de hostilidades políticas que acarretam sérios danos
às relações externas contemporâneas, ao acirrarem os
ânimos nacionalistas e xenofóbicas existentes na seara da
política interna e que, reverbera na condução da política
externa. O secretário geral da ONU, sr. António Guterres,
fez um sensível apelo público (2020) para que as redes de
ódio fossem combatidas globalmente e, que as hostilidades
políticas internacionais não fossem acirradas neste contexto
pandêmico. In verbis,
À Covid 19 não interessa quem somos, onde vivemos, em
que acreditamos ou qualquer outra diferença. Necessitamos
de toda a solidariedade possível para lidarmos com isto
juntos. No entanto, a pandemia continua a desenvolver um
tsunami de ódio e xenofobia, de bodes expiatórios e de
disseminação de medo. O sentimento xenófobo aumentou
na internet e nas ruas. As teorias de conspiração antissemita

251
têm-se alastrado e ocorreram ataques antimuçulmanos
relacionados à Covid19. Migrantes e refugiados foram
acusados de ser a fonte do vírus, tendo-lhes sido depois
negado o acesso a tratamento médico. Com os idosos entre
os mais vulneráveis surgiram memes desprezíveis, sugerindo
que eles também são os mais descartáveis. Jornalistas,
denunciantes, profissionais de saúde, trabalhadores
humanitários e defensores de direitos humanos estão a ser
alvos simplesmente porque fazem o seu trabalho. Devemos
agir agora para fortalecer a imunidade das nossas sociedades
contra o vírus do ódio. E por isso que hoje apelo a um
esforço conjunto para acabar com o discurso de ódio
globalmente (2020).

O recrudescimento da xenofobia e dos discursos de


ódio aos estrangeiros/migrantes do Sul Global em tempos
pandêmicos é fruto de sentimentos moldados a partir de
percepções distorcidas da própria excepcionalidade do que
seja uma pandemia: têm-se elevado vozes extremistas que
manipulam o inconsciente coletivo ao fazerem uma
correlação entre o vírus Covid-19 e os “interesses
estrangeiros”, “a ameaça à soberania”, à “fragilidade das
fronteiras frente à uma invasão bioterrorista bárbara” etc...
No entanto, se há práticas sinofóbicas recrudescidas
pela pandemia originada na China, há também, por parte de
segmentos da sociedade e do governo chinês, tratamento
discriminatório contra estrangeiros, sobretudo negros
africanos. Conforme relatos compilados pelo Human Rights
Watch (2020) e havidos a partir de abril/2020, membros de
comunidades de imigrantes negros africanos estariam sendo
forçados a se submeterem à rígidos controles sanitários pelas
quais imigrantes de outras origens não foram submetidos; e
também, foram vítimas de despejos habitacionais,
cerceamento no direito de locomoção e proibição de acesso
à restaurantes e outros locais. Africanos residentes na China
252
também foram forçados a fazerem testes para Covid-19 e a
ficarem em quarentona, mesmo não tendo motivos factuais-
científicos para que isto ocorresse; bem como, tiveram
acesso negado ao sistema hospitalar em províncias chinesas.
É correto que governos tomem medidas sanitárias
no combate à disseminação da pandemia, sejam com tais atos
direcionados à nativos ou estrangeiros residentes no país
desde que a base de ação sejam fatores reais de viés sanitário;
porém é discriminatório que tais medidas sanitárias ocorram
de forma direcionada à um grupo de migrantes com base
apenas na questão étnico-racial e pelo fato em si de serem
estrangeiros. Em outros termos: a China tem o direito de
impor medidas sanitárias preventivas à estrangeiros ou não-
estrangeiros, mas o devem fazer com base em elementos
exclusivamente técnicos e de base factual (casos reais de
contaminação, por exemplo) e não, pelo simples fato de
serem estrangeiros oriundos do continente africano, dando-
lhes tratamento mais severo e atroz que à estrangeiros de
outras origens. E no mais, é inadmissível qualquer ato de
discriminação, proibindo todo um grupo diverso e difuso
(pois advindo de distintos países africanos) de acessarem
restaurantes ou, de se promover desalojamentos indevidos,
rescisões contratuais trabalhistas, negativas à atendimento
médico-hospitalar etc. A presunção de periculosidade
sanitária atribuída aos africanos residentes em território
chinês traz consigo, um forte sentimento de autoctonia de
modo a presumir-se como sendo potencialmente perigosos
os estrangeiros, notadamente os de origem africana.
Comaroff e Comaroff afirmam haver, nos moldes em que o
estado-nação contemporâneo foi criado uma “demonização,
tanto por parte do Estado quanto dos cidadãos, de migrantes
e refugiados”. Ainda segundo tais autores, falando sobre

253
xenofobia no estado pós-colonial e, quase que antevendo os
eventos contemporâneos,
Assim é que estrangeiros – e em particular estrangeiros
negros – tornam-se objeto de consternação e de contestação
em toda esta nova nação, por parte, desde políticos e seus
partidos, passando pela mídia e sindicatos de trabalhadores,
até camelôs e desempregados. [...] A comunidade local tem
atacado regularmente imigrantes e suas propriedades, os
quais são forçados a viverem em ‘guetos’, tornados
criminosos e bodes expiatórios (COMAROFF e
COMAROFF, 2001, p. 93).

Tais práticas discriminatórias geram uma tensão


histórica nas relações diplomáticas China-África, até então
marcadas pelo viés econômico-mercantil, onde a nação
asiática tem investido enormemente em projetos de
infraestrutura (rodovias, ferrovias, usinas de energia, portos
etc.) visando a facilitação do escoamento de commodities
africanas. E tal tensão eleva-se pois, ocorreram
manifestações de cidadãos nativos africanos pressionando
seus líderes políticos e governantes a mudarem a postura
destas nações africanas perante a China, exigindo que passem
de uma quase-dependência para um enfrentamento
diplomático no qual exige-se o reconhecimento de uma
igualdades formais e materiais de tratamento entre cidadãos
de ambas origens. Um grupo de nações africanas
convocaram embaixadores chineses em seus países (ato
diplomático de demonstração de descontentamento e
advertência), enquanto seus próprios embaixadores em
Pequim enviaram nota diplomática conjunta ao Ministério
das Relações Exteriores da China condenando a xenofobia e
a discriminação contra cidadãos africanos residentes no
território chinês.

254
O Sul Global e a crise econômica internacional
Se a economia do Sul Global tem sofrido graves
consequências, há que se considerar os novos arranjos
geopolíticos e geoeconômicos como sendo intrínsecos à
complexidade dos interesses e cooperações que se dão no
contexto pandêmico atual. Dentre muitos destes novos
rearranjos talvez o mais importante seja o fato da China ser
o centro mundial da produção de fármacos, suprimentos
laboratoriais e de produtos tecnológicos em
telecomunicações e eletrônica. É relevante notar os imensos
esforços empreendidos pelas autoridades chinesas na
tentativa de impedimento de propagação da infecção, ao
limitar ao mínimo possível os direitos civis de locomoção e
a liberdade econômica interna. Se por um lado tais
mitigações severas resultam na menor transmissão possível
do vírus entre a imensa população chinesa, por outro lado,
resultou um imenso impacto na economia global, tendo em
vista a potência de fato que a China é contemporaneamente.
E assim tem-se a segunda grande consequência da
Covid-19 nas Relações Internacionais no Sul Global que nos
propomos a analisar, dentre as múltiplas consequências
existentes: o processo de antiglobalização e retração do
mercado internacional, por meio da reconfiguração das
cadeias globais de valor, do recrudescimento do
protecionismo, o uso da pirataria moderna e de maiores
obstruções no transporte internacional. A pandemia de
Covid 19 resultou na interrupção das cadeias de produção e
fornecimento de produtos tecnológicos, biomédicos e
outros, em escala global. Gibson e Singh (2018)
apresentaram como as empresas chinesas conseguiram a
dominar o mercado mundial substâncias bioquímicas para
produtos fármacos-laboratoriais, controlando quase toda a
cadeia de suprimentos de boa parte de tais produtos. O
255
paradigma criado pela SarsCov2 no sistema econômico, a
partir da China, é o desta nação necessitar interromper toda
uma cadeia interna econômica e assim, resultar num impacto
econômico global que afetou a produção de veículos,
produtos de informática e telecomunicações e,
contraditoriamente, a essencial produção de fármacos e
testes sorológicos. Grande parte da produção industrial
mundial está inserida nalguma cadeia global de valor (CGV)
que tenha alguma empresa chinesa participante em ao menos
numa das fases. No cenário da economia internacional pré -
pandemia houve a expansão das ditas “cadeias globais de
valor” (CGV) onde a produção industrial de certo produto é
dispersa por vários países em desenvolvimento; atuando, de
certa forma, como uma escala mundial do preceito básico de
“divisão do trabalho” de Adam Smith (1996, p. 64-65). Tais
cadeias globais de valor (CGV) expandiram-se na
globalização e a liberação do comércio mundial por acordos
multilaterais e, também, graças às empresas multinacionais
que realocam suas unidades produtivas entre países
(sobretudo periféricos) conforme os ganhos de produção e
valor que venham obter. Aos países em desenvolvimento no
Sul Global as CGVs proporcionam a possibilidade de
participação nalguma das etapas de processos industriais em
rede internacional, de forma a terem acesso à ao menos parte
da tecnologia desenvolvida naquele produto. Na
globalização neoliberal pré-pandemia as CGVs
possibilitaram que tais nações do Sul Global atraíssem
indústrias específicas (filiais de multinacionais) de certas
linhas de produção industrial da cadeia de valor fragmentada,
de tal forma que houvesse um rápido crescimento
econômico e geração de renda e empregos, dependentes da
especialização em certas áreas, sem domínio de toda a cadeia
de valor e de todo processo tecnológico nela existente. As
256
consequências da pandemia nas cadeias globais de valor de
suprimentos anti-Covid-19 (sobretudo nos fármacos e
produtos médico-laboratoriais) foram afetadas quase que
imediatamente, a partir de janeiro de 2020, quando o governo
chinês declara lockdown em grande parte da atividade
econômica interna. Ainda que as empresas farmacêuticas e
laboratoriais não tenham sido alvo de tal medida, dada às
suas essencialidades, a complexa rede de fornecedores e
distribuidores dispersas em países do Sul Global sofreram
sérias restrições, em razão do isolamento social imposto e, de
funcionários afastados para tratamento ou prevenção à
Covid-19. Assim, no início de 2020 ocorreu uma conjunção
de fatores que levaram à escassez global de suprimentos
fármacos-laboratoriais: houve sérias dificuldades de
desembarque de produtos primários nos portos chineses;
simultaneamente ocorreram restrições logísticas internas
combinadas com ausência de mão-de-obra (por afastamento
sanitário); restrições internas nas unidades
produtivas/fábricas (diminuindo produtividade); e
novamente, restrições logísticas entre as fábricas e o
embarque de mercadorias/suprimentos nos portos, rumo
aos mercados globais. A consequência global foi imediata:
falta de produtos laboratoriais, ausência de testes detectores
da Covid19, queda nos estoques de fármacos... tudo isto
aliado ao pânico mundial, com agressivo aumento pela
demanda de tais produtos, ainda que em contextos onde não
eram necessários. Neste contexto, o controle da cadeia
produtiva de fármacos e suprimentos laboratoriais passou a
ser tratado como questão de “segurança e interesse
nacional”, notadamente pelos EUA, Europa, Índia e Japão.
Se no passado recente o poder geopolítico dava-se sobretudo
pelo domínio da cadeia produtiva bélico-nuclear, na
contemporaneidade é a cadeia de suprimentos de fármacos
257
que emerge como indicativo de potência de fato no cenário
internacional.
Outro fato específico quanto ao impacto da
pandemia nas relações comerciais internacionais é o impacto
no sistema logístico mundial, notadamente em nações do Sul
Global, seja no transporte de passageiros quanto de
cargas/mercadorias. Devido ao confinamento de pessoas,
restrições nas fronteiras nacionais e queda brusca em grande
parte da rede de suprimentos, ocorreram impactos altamente
negativos no comércio internacional e no transporte de
mercadorias sobretudo por vias aérea e marítima. Num
mundo pré-pandemia que a mais ampla liberdade de
locomoção humana e a de mercadorias entre nações eram
pressupostos formais de um sistema internacional
globalizado, ainda que a realidade indicasse que tal aforisma
liberal não fosse assim tão verdadeiro, tendo em vistas as
fronteiras constantemente fechadas aos imigrantes, aos
refugiados (ambientais, de guerras, de catástrofes, etc...); bem
como, às constantes limitações impostas por nações ricas aos
produtos de países em desenvolvimento do Sul Global. No
entanto, a realidade das R.I. do Sul Global (como de boa
parte do Norte Global) no mundo pandêmico é o de
mitigação da locomoção humana e da de mercadorias, em
escala global, em virtude de: a) lockdown nos principais
centros logísticos globais, com adaptações à rígidas regras de
inspeção sanitária anti-coronavírus; b) fechamento de
aeroportos, portos, rodoviárias e sistemas ferroviários
internacionais; c) escalada de protecionismo econômico,
com aumento de restrições à importações, em busca de
proteção da economia local face à recessão mundial causada
pela pandemia; d) obstrução de centros de lazer e turismo,
restrições à atividades recreativas, prejudicando o turismo
internacional. Quanto ao turismo mundial e o transporte
258
internacional de passageiros (turismo recreativo e de
negócios), estes têm sofrido um impacto devastador, com
cancelamento maciço de contratos, viagens, compromissos...
resultando em falências empresariais, perda de inúmeros
empregos e queda de arrecadação tributária. Conforme o
relatório da WEF/TTCR,
Os dados disponíveis mostram uma queda de dois dígitos
de 22% no primeiro trimestre de 2020, com as chegadas
caindo 57% em março. Isso resulta em uma perda de 67
milhões de chegadas internacionais e cerca de US $ 80
bilhões em receitas; 100 a 120 milhões de empregos podem
estar em risco (WEF/TTCR, 2020, p. 3).

Conforme relatório mundial WEF/TTCR-2019, boa


parte dos países latino-americanos, têm no turismo local e
internacional uma fonte relevante de seu PIB, e a obstrução
de fronteiras nacionais têm elevado os índices de
desemprego, miserabilidade e vulnerabilidades sociais em
comunidades turísticas. Segundo este mesmo relatório (2020,
p. 7) “Considerando os dados sobre T&T (travel & tourism,
ou seja viagem & turismo) de 2019 a atividade direta e
indireta representou 9,2% da emprego e 10,2% do PIB nos
21 países abrangidos por este relatório, o bem-estar
econômico da indústria está fortemente interligada com o
bem-estar da região”. Quanto à aviação comercial (turismo e
negócios) há estimativa de que 2020 tenha queda de 48% no
índice de “receita-passageiro-por quilômetro” ou em inglês:
PKP, o principal índice de eficiência no transporte aéreo
comercial. Segundo o relatório WEF/TTCR,
Os dados da ForwardKeys mostram uma queda colossal de
80% nas reservas de passagens aéreas globais no primeiro
trimestre. Ásia-Pacífico (-98%) sofreu a maior queda e caiu
antes das demais, com a implementação de restrições de
viagens na China. As reservas de voos da Europa (-76%),
Américas (-67%), África e Oriente Médio (-65%)
259
registraram quedas acentuadas no primeiro trimestre de
2020 (WEF/TTCR, 2020, p. 21).

E ainda conforme tal documento, o setor hoteleiro


mundial e do Sul Global em específico, foram duramente
atingidos pela pandemia, com o principal indicador de
produtividade do setor, o RevPar (receita por quarto
disponível), com resultado de -9,6% na Ásia em janeiro, ao
que até tal mês as demais regiões mundiais ainda não haviam
sido drasticamente atingidas pela pandemia. No entanto, já
em março de 2020 a Ásia apresentou resultado negativo de -
67.8% no indicador RevPar, a Europa com -61,7%, com
demais regiões (África, Américas) não apresentando índices
inferiores à 20%. Todos estes são dados da OMT (2020, p.
22) apresentados em relatório trimestral que mostra quão
destruidoras foram as consequências da pandemia de Covid
19 nos setores logístico internacional e turístico-hoteleiro.
Conforme M. Chinazzi et al. (2020) a expansão da pandemia
de Wuhan para o mundo ocorreu principalmente pelas
viagens turísticas aéreas e marítimas, com passageiros
assintomáticos disseminando o vírus.
Como dito, o crescente xenofobismo repercute na
política externa, notadamente quanto ao protecionismo
econômico, fechando fronteiras à produtos e suprimentos
ou, praticando-se a pirataria moderna, com sobrepujamento
de propostas vultuosas por parte das nações ricas na compra
de suprimentos no combate `a pandemia, em desfavor de
países mais pobres. As cadeias produtivas do Sul Global
foram seriamente afetadas pela pandemia e, de modo
irreversível, têm havido fortes alterações na rede de
transações comerciais internacionais que estão, desde já, mais
suscetíveis às interferências protecionistas nacionais em prol
da “segurança alimentar” de seus povos, tanto quanto de
260
uma busca por “autossuficiência tecnológica” no tocante à
suprimentos fármaco-hospitalares e biotecnológicos.
Tiveram início atos protecionistas, visando tanto a proteção
alimentar quanto autossuficiência biotecnológica; e tais atos
protecionistas tem sido desde a tarifação excessiva sobre
importação de produtos agrícolas concorrentes aos similares
nacionais, quanto a imposição de cotas para importação de
certos produtos há, até, medidas contrárias à estas:
flexibilização de regras tarifárias e aduaneiras na importação
de alimentos e outros bens necessários internamente e
imposição de impedimentos à exportação de bens
(sobretudo fármacos e equipamentos hospitalares) essenciais
no combate à Covid-19. Tal nacionalismo econômico (agora
recrudescido pelo xenofobismo pandêmico) tenta privilegiar
a produção econômica local (autoctonia econômica) em
detrimento de produtos estrangeiros em simultaneidade à
facilitação de importação de produtos que sejam
interessantes nacionalmente, quando conveniente; gerando
assim, tensões a serem administradas por mecanismos
tarifários e outros mecanismos de política mercantil que
possam corresponder aos interesses nacionais de cada
Estado, em detrimento de um livre-comércio que se almejava
até recentemente. Conforme relatório do Ministério da
Agricultura e Pecuária brasileiro/MAPA,
A forma de os países operarem nessa tensão será
provavelmente por intermédio de um comércio agrícola
ainda mais administrado: tarifas e barreiras não tarifárias
sendo reduzidas quando há temor de desabastecimento,
inclusive com a facilitação dos procedimentos para
habilitação de exportadores; e retorno a graus elevados de
proteção e subsídios quando conveniente, como forma de
estimular as agroindústrias domésticas.
(...). Sobre subsídios, especificamente, há o risco de a
pandemia ser utilizada como pretexto para seu emprego em
níveis desproporcionalmente elevados. Há que se separar
261
medidas emergenciais daquelas que gerarão distorções e
premiarão a ineficiência no longo prazo (MAPA, 2020, p. 3).

Ainda conforme tal documento, elaborado por


adidos agrícolas brasileiros em todo mundo à pedido do
MAPA, tais políticas protecionistas “tendem a privilegiar
determinados atores econômicos em detrimento dos
consumidores, tendo como consequência desabastecimento,
aumento do preço dos alimentos e precarização dos
segmentos mais vulneráveis da população”; e tal situação se
estendida à outras áreas para além da agropecuária já tem,
por consequência, algumas graves distorções internas
(oligopólios, baixa concorrência comercial, inflação, pouca
produtividade) ocorrendo em certos países, assim como
consequências externas ou no cenário internacional
(redução do ambiente negocial internacional, baixa troca
tecnológica, obstrução no acesso à recursos internacionais,
etc.). Correlata ao protecionismo econômico, a “pirataria
moderna pandêmica” tem ocorrido de forma escandalosa,
expondo sobretudo o poderio financeiro predador do
governo norte-americano sob a presidência Trump, através
de práticas que, ainda que escoradas em legislação nacional
dos EUA, ferem os acordos reguladores do comércio
internacional no âmbito multilateralista da OMC. Tal
pirataria ocorre quando o governo norte-americano
intercepta carregamento de bens/suprimentos médico-
hospitalares e fármacos essenciais no tratamento da Covid-
19 adquiridos por outras nações junto a fornecedores
asiáticos e, oferece somas vultuosas acima do valor do
mercado para que tais fornecedores procedam ao distrato
com seus clientes originais, privilegiando a entrega de tais
bens ao governo estadunidense. Um exemplo de tal
procedimento predatório ocorreu com a compra pelo
262
governo do Estado da Bahia/Brasil, de uma carga já faturada
de 600 (seiscentos) respiradores artificiais junto a fornecedor
chinês que, por sua vez, rompeu o contrato (“distrato”) de
R$42 milhões quando tal estava em escala no aeroporto de
Miami/Flórida (EUA) rumo ao Brasil. Há a suspeita de que
o fornecedor tenha sido pressionado a aceitar uma oferta do
governo norte-americano para venda de tais produtos àquela
nação. Outro caso de tensão política por uso predatório de
poder econômico (pirataria moderna) foi a interrupção na
entrega de 200.000 (duzentas mil) máscaras N95/FFP-2 que
foram encomendadas pelo governo da cidade de
Berlim/Alemanha junto à fornecedor asiático, e que seriam
usadas por policiais berlinenses durante a pandemia. Tal
encomenda teria sido “interceptada” pelo governo norte-
americano, gerando profunda revolta no meio político
alemão. Conforme manifestação pública do Ministro
(“senador”) do Interior da Cidade de Berlim, Andreas Geisel
Vemos isso como um ato de pirataria moderna. Não é assim
que você lida com parceiros transatlânticos. Mesmo em
tempos de crise global, nenhum método do oeste selvagem
deve prevalecer. Exorto o governo federal a instar os EUA
a cumprir as regras internacionais (GEISEL, 2020).

Tal contexto de confronto aberto entre nações


aliadas (sobretudo na OTAN, o tratado de proteção militar
Europa-EUA) expõe a gravidade de medidas
governamentais em política internacional em meio à uma
pandemia de proporções gigantescas, impondo desafios às
nações sobre como conciliarem os interesses nacionais com
a condução política externa num cenário de relações
internacionais permeado tanto por jogos de interesses
próprios quanto por alianças estratégicas historicamente
constituídas. Para além de tal pirataria (praticada
principalmente, mas não unicamente pelos EUA), há
263
também a aplicação de normas internas restritivas da
negociação internacional de bens considerados essenciais em
tempos de calamidade pandêmica. Ainda no exemplo norte-
americano, o presidente Trump fez uso da “Defense Pruduct
Act” (DPA, lei de produção de defesa, em tradução livre),
que é uma norma criada nos anos 1950 no começo da
Guerra da Coréia e no contexto da “Guerra Fria”, visando
forçar a produção doméstica e fornecimento compulsório
de bens e serviços essenciais ao esforço de guerra. Conforme
o sistema jurídico estadunidense, tal norma não tem sua
aplicabilidade limitada apenas aos tempos de guerra, mas,
também, e épocas civis por ocasião de desastres e
calamidades pois, está em conjunção com a lei Stafford de
Assistência a Desastres e Emergências (Lei 100-707, Título
42 do Código dos Estados Unidos, n. 5195). Esta lei é tão
ampla e incisiva que obriga produtores e fornecedores
(pessoas físicas e jurídicas) norte-americanos de bens e
serviços essenciais mesmo que estejam em território norte-
americano a priorizarem o fornecimento de seus produtos ou
serviços ao governo estadunidense se este assim decidir. A
requisição compulsória destes suprimentos e serviços
essenciais ocorrem por meio dos chamados “pedidos
classificados”, que são contratos prioritários e preferenciais
ao interesse do governo dos EUA em prol de um esforço de
guerra. Assim, o produtor/fornecedor que houver sido
requisitado pelo DPA deverá priorizar os pedidos
governamentais estadunidenses em detrimento de quaisquer
outras encomendas comerciais preexistentes e, deverá fazer
em tempo hábil aos interesses determinados pelo governo,
sob pena de multa e de prisão por até 1 (um) ano, além de
sofrer ações judiciais pelo governo estadunidense. Segundo
Nuechterlein (2001), o interesse nacional essencial
estadunidense reside na defesa e na proteção do bem-estar
264
dos seus cidadãos norte-americanos, assim como na defesa
do seu território e do sistema constitucional. No entanto, tal
interferência jurídico-comercial na liberdade econômica
acarreta a obstrução de fluxos comerciais internacionais,
impedindo empresas de outras nações (sobretudo do Sul
Global) a terem acesso aos produtos norte-americanos tidos
como essenciais no combate à pandemia; bem como, impede
que os fornecedores-alvo do DPA sejam responsabilizados
civilmente por distratos (rompimento de obrigações
contratuais) e atrasos, no âmbito do sistema judicial norte-
americano. Trudeau, primeiro-ministro canadense, fez alerta
quanto ao perigo do fechamento de fronteiras econômicas
entre EUA e Canadá, e como tais medidas são incongruentes
com sistema de livre –comércio (tradicionalmente defendido
pelo establishment neoliberal estadunidense) e livre trânsito de
profissionais da saúde entre os dois países vizinhos,
É um erro criar bloqueios ou reduzir a quantidade de
comércio de bens e serviços essenciais, incluindo médicos,
em ambos os lados da nossa fronteira. (...) São coisas em que
os americanos confiam e seria um erro criar bloqueios ou
reduzir a quantidade de comércio de ida e volta de bens e
serviços essenciais, incluindo produtos médicos, através de
nossa fronteira (TRUDEAU, 2020).

Tal como a DPA norte-americana, o governo


brasileiro promulgou a lei 13.993/20 de 24.04.2020 pela qual
impede a exportação de suprimentos hospitalares-
laboratoriais necessários à lide brasileira com a pandemia.
Esta norma proíbe a exportação dos suprimentos e
equipamentos necessários no tratamento da Covid-19. A lei
brasileira claramente objetiva criar um marco jurídico que
possibilite ao poder público reter o máximo possível de
equipamentos e demais suprimento necessários no combate
à pandemia no país; colocando a melhor disponibilidade
265
possível de tais bens ao sistema de saúde pátrio enquanto
interesse nacional sobrepujante ao interesse particular das
empresas em exportarem-nos e obterem moeda forte (dólar,
euro, etc.). Em Relações Internacionais, na perspectiva da
Teoria Realista, tem-se uma análise de “interesse nacional”
explicada por Morgenthau da seguinte maneira,
Qualquer política externa que opera sob o padrão do
interesse nacional deve, obviamente, ter alguma referência à
entidade física, política e cultural que chamamos de nação.
Em um mundo onde uns números de nações soberanas
competem e se opõem umas com as outras pelo poder, as
políticas externas de todas as nações devem necessariamente
se referir à sua sobrevivência como seus requisitos mínimos.
Assim, todas as nações fazem o que não podem deixar de
fazer: proteger a sua identidade física, política e cultural
contra invasões de outras nações (MORGENTHAU, 1952,
p. 972).

Desta feita, os governantes agem no cenário


internacional movidos pela defesa da conjunção resultante da
política de estado com a política de governo construam ser o
“interesse nacional” a ser protegido no sistema internacional
em dada época; e presentemente, este “interesse nacional”
tem sido construído ou objetivado em face de adversidades
advindas da pandemia que agora assola a Humanidade.
Porém, tais movimentações no sistema internacional
implicam em jogos político-econômicos de perdas e ganhos
em curto, médio e longo prazos e cujos resultados são
reconfigurados a cada nova movimentação política tanto dos
atores internacionais quanto do surgimento de imprevistos,
disrupturas e novas esperanças que surjam ao longo do
tempo.
As duas grandes consequências analisadas nesta
primeira parte do texto se entrelaçam e se retroalimentam,
gerando uma situação imediatamente desalentadora, mas
266
que, permitem, dadas as inúmeras variáveis existentes (e as
que ainda estão por vir), afirmar que há um processo
irreversível de mudança nas Relações Internacionais do Sul
Global em razão da pandemia de Covid-19. Neste processo
de irreversibilidade, as potências hegemônicas do Norte
Global (EUA, U.E.) movimentam-se na defesa de seus
interesses nacionais, através de um protecionismo pernicioso
que tenderá a prejudicar as nações subalternas/periféricas do
Sul Global, ao negar-lhes (novamente) acesso à mercados
internacionais e às redes econômicas de alto valor
tecnológico agregado. O desafio que se impõe às nações do
Sul Global é o destas fazerem as escolhas mais acertadas
possíveis no intricado jogo de interesses do sistema
internacional, de modo a pensarem em necessidades e
interesses próprios, em níveis imediatos e de médio e longo
prazo.

Desafios e possibilidades para o Sul Global nas


Relações Internacionais pós-pandemia
É impossível desenhar todos os cenários hipotéticos
para as relações internacionais pós-pandemia, em virtude da
imensa quantidade de fatores, atores internacionais e demais
variáveis existentes e as vindouras. Assim, num esforço de
concisão e tendo por limitação de objeto auto imposto os
dois enfoques dissertados na primeira parte deste estudo
(xenofobismo e decadência da globalização), tentear-se-á
discorrer sobre algumas possibilidades e desafios para um
mundo pós pandemia no âmbito internacional. No que tange
ao recrudescimento do xenofobismo e dos discursos de ódio
em escala global, a onda de discriminação demonstrou como
as políticas locais podem expor a disparidade entre o
discurso e a formalidade das leis no que tange à igualdade e
267
à Direitos Humanos em geral, com a prática de políticas
públicas discriminatórias aos estrangeiros ou, permissivas
aos discursos de ódio xenófobos. Os países do Sul Global
dispõe de iniciativas internacionais recentes que formalizam
o combate à xenofobia e ao discurso de ódio, tal como o
“Projeto de posição comum africana (PCA/CAP) sobre o
Pacto Global sobre a Migração Segura, Ordeira e Regular”
de 2017 da União Africana propôs para o Pacto sobre
Migração Segura, Ordenada e Regular (Marraquesh 2018); no
que a proposta conjunta da União Africana foi mais
específica do que a da União Europeia , que fez apenas 1
(uma) referência à xenofobia. No texto final aprovado em
2018 nota-se que a proposta africana preponderou,
conforme o disposto no Objetivo 16, artigo 32, alínea “i” e
em outras 6 (seis) referências explícitas no referido Pacto.
Ainda no Sul Global, tem sido inovadora a resposta que a
União Africana tem dado à falta de suprimentos e às
limitações no acesso à aparelhos e testagens para Covid-19,
muito em razão de experiências havidas por pandemias
anteriores, como a do Ebola (2014-16). Desde 2017 existem
os 5 (cinco) Centros para Controle e Prevenção de Doenças
(CDC), uma rede de cooperação multilateral (no âmbito da
União Africana) específica para doenças potencialmente
infecciosas como malária, sarampo, gripes, febre amarela etc.
Os CDCs são fruto de esforço regional multilateral, onde há
troca científico-tecnológica e de experiências, com análise
acurada de políticas nacionais foram certeiras na prevenção,
redução ou eliminação de epidemias em dados locais e, assim,
a tentativa de posterior reprodução de tais práticas de
sucesso. O esforço conjunto da União Africana através dos
CDCs resultou em três feitos:
 Antes do diagnóstico do primeiro caso de Covid-19
no continente foi criada uma força tarefa multilateral,
268
no âmbito da U.A., para compartilhamento de
informações, capacitação técnica conjunta e
coordenação de políticas sanitária, denominada
África Task Force for Novel Coronavirus (AFCOR);
 Criação do Partnership to Accelerate COVID-19 Testing
(PACT): Trace, Test & Track (CDC-T3), com o
objetivo de potencializar a realização de testagens em
massa, assim como, analisar dados nacionais que
permitam supervisionar a propagação da pandemia.
 Elaboração e implementação de uma política
multilateral regional coordenada no combate à
pandemia (Africa Joint Continental Strategy for Covid-19
Outbreak), mobilizando iniciativa pública e privada,
de forma conjunta, visando a dar suporte efetivo ao
sistema de saúde continental.

Se no âmbito das relações internacionais a resposta


das nações africanas à pandemia tem sido arrojada,
multilateralista e cooperativista, a atuação das nações latino-
americanas tem deixado a desejar. Tais nações atuam de
forma descoordenada, unilateralista. Em alguns casos
enviesada por ideologias anticientíficas (como o governo
Bolsonaro, no Brasil), inexiste um novo espaço regional
dedicado exclusivamente à imensa gama de discussões no
combate à disseminação do vírus bem como, quanto a um
novo modelo de integração regional que possa advir no pós-
pandemia. Ainda em setembro de 2020 não havia uma
política multilateralista regional coordenada latino-americana
para ofertar suporte político, econômico, técnico-científico e
logístico às populações locais, tal como o multilateralismo
africano tem feito de forma disruptiva e articulada.

269
Quanto ao turismo, a OMT tem incentivado seus
estados-membros a repensarem as políticas nacionais para o
setor, sobretudo em nações em desenvolvimento que
tenham o turismo internacional como realidade econômica
relevante ou, cujo o turismo internacional ainda seja um
potencial a ser explorado. Neste sentido, a WEF/TTCR,
O turismo tem potencial para se recuperar e mais uma vez
se estabelecer como parte fundamental das economias
nacionais e da agenda de desenvolvimento sustentável mais
ampla. Essa crise também pode oferecer uma oportunidade
única de moldar o setor para que não apenas cresça, mas que
cresça melhor, priorizando a inclusão, a sustentabilidade e a
responsabilidade. Além disso, para construir para o futuro,
atenção especial deve ser dada à construção de resiliência e
à promoção da sustentabilidade em todos os níveis
(WEF/TTCR, 2020b , p. 33).

Assim, há o desafio para o Sul Global fomentar um


turismo internacional que seja socialmente e ambientalmente
responsável no território receptivo, de tal forma que tais
turistas estrangeiros e as políticas públicas locais abandonem
práticas de degradação ambiental, exploração de mão de obra
e aviltamento de direitos sociais das comunidades turísticas,
tão em voga na fase pré-pandêmica. Consequentemente, no
Sul Global é desejável que deva haver uma cooperação
eficiente no incentivo a modelos de turismo justo e limpo
que incluam: turismo educacional-científico; ecoturismo;
turismo artístico-cultural; turismo de experiências ou turismo
de vivências comunitárias (estadias em quilombolas, aldeias
indígenas aculturadas, comunidades tradicionais, etc.), de
forma não –massiva e com o devido respeito às
especificidades locais, etc. Tanto os países latino-
americanos, quanto os africanos e asiáticos possuem
diversidade cultural, patrimônio histórico deslumbrante,

270
ativos naturais-ambientais únicos e povos hospitaleiros; o
que beneficiaria a retomada do setor turístico internacional
no Sul Global se souberem construir, conjuntamente, novas
bases para um turismo inclusivo, socialmente justo e
ecologicamente correto.
Quanto às cadeias de produção de bens e oferta de
serviços do Sul Global, estas têm a tendência de se adaptarem
às carências e as novas necessidades/demandas advindas do
contexto pandêmico por meio do redirecionando de suas
linhas de produção e der serviços para uma população global
que tenderá, em grande parte, a preocupar-se cada vez mais
com biossegurança, rastreamento de origem do produto,
certificações e produtos/serviços ambientalmente
sustentáveis. Verifica-se uma tendência de estímulos fiscais e
para- fiscais à substituição de importação de produtos por
produção local, ainda que decorram desajustes nos preços ao
consumidor final (inflação), pois políticos de países
desenvolvidos têm proposto novos modelos de cadeia de
valor e de produção econômica com vistas a evitarem a
dispersão e terceirização destas redes de valor em outras
nações (sobretudo as do Sul Global); elevando assim, os
níveis de resiliência das cadeias de abastecimento (de bens e
serviços essenciais) em nível local/nacional. E se atualmente
os bens-alvos de tais medidas são sobretudo os produtos
hospitalares e os insumos fármacos, é quase certo que o rol
de bens e serviços “essenciais à segurança e ao interesse
nacional” há de expandir-se enormemente para abranger
suprimentos de informática, equipamentos de biossegurança,
etc. Se efetivada tal tendência, poderá agravar a situação
econômica-social de países em desenvolvimento que, por
fatores diversos (recursos naturais, benefícios fiscais, mão de
obra barata etc.) abrigam muitas das unidades produtivas das
empresas transnacionais. Por outro lado, países em
271
desenvolvimento poderão beneficiar-se de tal retração de
investimentos estrangeiros caso invistam maciçamente em
pesquisa e desenvolvimento tecnológico (P&D) locais,
mediante a qualificação de mão –de-obra e investimento em
tecnologias que potencializem a implementação nacional de
uma nova economia baseada na sustentabilidade, na
eficiência e não-desperdício, na biossegurança/segurança
sanitária. Se nações ricas tendem, a partir de agora, a
retirarem investimentos fabris e industriais de países pobres
caberá a estes países periféricos Sul Global estimular que uma
mão-de-obra qualificada nacional (existente ou a ser
formada) reinvente o setor produtivo nacional, como forma
de também trazer independência e autossuficiência
econômica-tecnológica. Em tais hipóteses há o
enfraquecimento das políticas multilaterais em comércio
internacional em favor do fortalecimento de políticas
econômicas internas sobre acordos comerciais externos; bem
como, o fortalecimento de acordos internacionais bilaterais
restritos à bens e serviços cujas trocas sejam essenciais à
“segurança e ao interesse nacional”.
Com a pandemia foram expostas as fragilidades do
sistema multilateralista pré-pandêmico e de base neoliberal e
globalizante, onde as organizações internacionais
multilaterais (ONU, OMS, OMT, OIT, Mercosul, U.E. etc.)
por serem excessivamente burocráticas, não souberam reagir
rapidamente em níveis quantitativo-qualitativos na
simultânea preservação de vidas humanas, do emprego e das
redes de proteção social. Considerado que as nações
subalternas/periféricas do Sul Global são mais dependentes
das O.Is, a crise destas atinge diretamente tais nações,
deixando-as num vácuo, cujo espaço tende a ser preenchido
pelas potências hegemônicas contemporâneas: EUA, U.E.,
Rússia e China. E tais organizações internacionais (O.Is.)
272
também carregam o fardo das críticas advindas dos
neoliberais do Norte Global que condenam o
multilateralismo internacional e, propugnam que o sistema
internacional deva mover-se em bases unilateralistas;
perpetuando-se assim, a hegemonia de poderio entre as
potências atuais. A ausência de uma ação mais prática e
incisiva das OIs junto às nações do Sul Global permitiu que
nações hegemônicas, notadamente China e Rússia,
oferecessem ações de cooperação tecnológica no combate à
pandemia às nações mais dependentes de cooperação
internacional. Se a globalização dos anos 90 do século XX
trouxe a noção de esgarçamento das fronteiras nacionais
frente ao “mercado global”, caberá ao Sul Global propor um
mesmo esgarçamento de tais fronteiras em prol de uma
“cidadania planetária” que supere o xenofobismo, os
nacionalismos exacerbados, o protecionismo excludente e
prejudicial aos mais pobres; e que busque por ações
concretas em prol da biossegurança global, da preservação
ambiental e defesa dignidade humana.
No entanto, há a possibilidade (ainda sem claras
tendências perceptíveis na América Latina, porém, de forma
mais contundente na União Africana) de nações
subalternas/periféricas (Sul Global) tentarem fortalecer o
multilateralismo regional, de forma a implementarem
políticas coordenadas de investimentos em infraestrutura e
reestruturação financeira e comercial internacional, visando
a se manter ou ampliar as trocas tecnológicas, e o complexo
de cadeias produtivas internacionais existentes. Neste
sentido, caso o Sul Global opte pela prática de novos
modelos de trocas internacionais, com bases mais
humanistas, estes modelos tenderiam à diversificação
econômica e à troca tecnológica, mediante cooperação
multilateral ou regional, com a criação de empregos
273
nacionais/locais, sem o abandono do comércio
internacional. Desenvolveriam se o turismo ecológico, o
transporte de cargas e pessoas em padrões sustentáveis, a
redução dos desperdícios industriais e à alocação de mais
recursos para qualificação da mão de obra e a expansão
qualitativa-quantitativa de educação e saúde (rede de
proteção social). Tem-se então uma tensão, entre duas
hipóteses que coexistirão e tentarão sobrepor-se, mas que,
nesta simbiose, tornar-se-ão quase complementares entre si:
a) por um lado uma nacionalização de parte dos fluxos
econômicos internacionais, reduzindo o transporte
de bens e evitando-se a exposição ao risco de futuros
eventos disruptivos globais, ainda que sujeitos à
maiores custos e encargos produtivos e menores
trocas tecnológicas, com pesados sacrifícios
impostos sobretudo aos países mais pobres. Nesta
hipótese básica haveria a redução da relevância do
multilateralismo internacional, a elevação de práticas
acordo bilaterais, bem como o realce de medidas
unilateralistas por parte de potências hegemônicas.
b) um multilateralismo regional, que busque maior
integração de redes de infraestrutura, mercados,
sistema jurídico econômico; e que possibilite que
sejam feitos acordos internacionais mais amplos
quanto aos objetos negociados, ainda que restritos à
um grupo menor de países envolvidos. Ainda que
haja tentativas pontuais de autoctonia de produtos de
“interesse nacional”, os estados-nação tenderiam a se
manterem abertos às relações comerciais
internacionais, sobretudo em âmbito regional e em
acordos entre mercados regionais (Mercosul vs U.A.,
Caricom vs U.E. etc), como forma de obterem

274
tecnologia, divisas e outros suprimentos ainda não-
autóctones.

Num olhar macro, a maior ou menor efetividade de


uma destas posições acima descritas dependerá de quais
modelos de política econômica serão implementadas pelas
nações, do grau de comprometimento destes países com o
comércio internacional e as trocas tecnológicas, assim como,
do suporte real que se dá às políticas científico-tecnológicas
(produção, difusão e aplicação do conhecimento,
transformando-o em riqueza) em nível local/nacional. De
qualquer modo se vislumbra um esgarçamento da
globalização como a conhecíamos, em moldes (ainda que
formais) de “plena abertura de fronteiras e livre circulação de
bens”. E desenha-se, para o Sul Global pós-pandêmico, a
importância dos trabalhadores dos países periféricos sejam
qualificados e tenham acesso aos benefícios sociais-
econômicos necessários para que haja desenvolvimento
ambientalmente sustentável e economicamente justo,
conforme se depreende do relatório da Organização
Internacional do Trabalho/OIT
No nível internacional, a crise atual pode acelerar algumas
tendências de desglobalização e algumas cadeias de
suprimentos podem ser reorganizadas, dando mais peso às
ligações locais e nacionais. No entanto, as tendências globais
continuarão a impactar a região e vice-versa. Os desafios
colocados pelas mudanças climáticas e a necessidade de uma
transição justa para um modelo mais sustentável
continuarão sendo importantes como sempre. Por último, a
crise lançou uma luz particularmente dura sobre o custo da
informalidade e da desigualdade na maioria dos mercados
de trabalho da região. Portanto, as políticas de recuperação
não devem limitar os seus objetivos a alcançar uma “nova
normalidade” semelhante ao estado dos mercados de
trabalho antes da crise, mas devem orientar-se para uma

275
“normalidade melhor”, com maior formalidade, equidade e
diálogo social (OIT, 2020, p. 46).

Pode-se desenhar um cenário (cenário 1) onde


estados do Sul Global invistam pesadamente na ciência e
tecnologia (C&T) nacionais mas, mantendo uma
flexibilidade na importação de insumos essenciais até que
estes sejam substituídos por produtos locais; assim como
haver esforços multilaterais regionais (Mercosul, UE, União
Africana etc.) na defesa da livre circulação de pessoas, bens
e serviços (no âmbito destas organizações
internacionais).Outra conjugação possível (cenário 2) de
relações internacionais pós-pandemia no Sul Global é
aquela onde o multilateralismo (mundial ou regional) seja
defenestrado da pauta de política externa das nações e
substituído por acordos comerciais bilaterais e pontuais
sobre produtos/serviços pontuais, duramente negociados
em busca de melhores vantagens comparativas e do melhor
atendimento possível ao que se configurar como sendo “
interesse nacional” e “ segurança nacional” aos países
acordantes. E uma outra hipótese possível (cenário 3) seria
os estados subalternos optarem por fortalecer seus acordos
multilaterais (Mercosul, Brics, U. Africana) e
simultaneamente, os estados-membros fazerem acordos
bilaterais com outras nações onde possam obter vantagens
comparativas por insumos e serviços essenciais não
presentes em seu pacto multilateral regional original, estando
internamente investindo (ou não) em C&T e P & D em busca
de autossuficiência e soberania econômico-tecnológica.
Num quarto cenário (cenário 4), há a hipótese básica do
cenário 3 (fortalecimento do multilateralismo regional) e a
retomada de acordos regionais entre si, numa complexa rede
de multilateralismos regionais (Mercosul & Brics; Mercosul
276
& U. Africana; U. Africana & Europeia, Mercosul &
Caricom, Caricom &Pacto Andino etc.). De todo modo, a
formação de um cenário político externo não é excludente
de outro, de modo que múltiplos cenários ocorreriam
simultaneamente conforme forem dadas as condições
políticas internas, as negociações internacionais, o realce das
organizações internacionais multilaterais (OMC, Mercosul,
Brics, União Africana, BIRD, etc.) e de como os estados-
nação irão expor quais sejam os seus reais interesses
nacionais a serem protegidos. As relações internacionais
ocorrem num plano de complexidade dialética, no qual as
imprevisibilidades dos resultados abrem possibilidades
quando a novas oportunidades a serem usufruídas pelos
estados que melhor as entenderem. Focando no Sul Global
e sabendo que há elementos sobre os quais não há
possibilidade de controle total dentro de um “caos”
intrínseco às relações internacionais (permeadas pela
imponderabilidade), ainda é possível que, pela política
internacional baseada em novos preceitos, possa nascer um
novo sistema internacional mais livre das concepções
extremamente liberais hoje dominantes. Talvez um novo
sistema internacional menos desigual possa emergir da
melhor articulação entre povos subalternos/periféricos/em
desenvolvimento, mediante o reforço de acordos
multilaterais (quando possível) e acordos bilaterais, que
tenham por base a submissão da economia à valorização da
dignidade humana e à defesa ambiental. Para Santos,
Só com uma nova articulação entre os processos políticos e
os processos civilizatórios será possível começar a pensar
numa sociedade em que humanidade assuma uma posição
mais humilde no planeta que habita. Uma humanidade que
se habitue a duas ideias básicas: há muito mais vida no
planeta do que a vida humana, já que esta representa apenas
0,01% da vida existente no planeta; a defesa da vida do
277
planeta no seu conjunto é a condição para a continuação da
vida da humanidade. De outro modo, se a vida humana
continuar a pôr em causa e a destruir todas as outras vidas
de que é feito o planeta Terra, é de esperar que essas outras
vidas se defendam da agressão causada pela vida humana e
o façam por formas cada vez mais letais. Nesse caso, o
futuro desta quarentena será um curto intervalo antes das
quarentenas futuras (SANTOS, 2020, p. 31).

É a necessidade de superar os padrões atuais que


deve mover as nações do Sul Global em busca de uma
sociedade internacional menos injusta; e poderá fazê-lo se
houver articulações entre as políticas externas que superem
o formalismo dos acordos internacionais e que levem à
materialidade de propostas feitas para a dignidade humana.
E superar tal modelo atual é também incorporar novas
formas de articulação em rede, de articulações democráticas
e de meios de produção econômicos que sejam
ambientalmente sustentáveis. Pode-se pensar numa
articulação entre medidas de desconcentração dos
investimentos e dos meios de produção, com valorização do
micro empreendedorismo, da mão de obra feminina e da
negra/indígena/nativa tradicional em articulação de rede
econômica solidária internacional com outras iniciativas
similares em países do Sul Global. Assim como o Sul Global
como um todo, o Brasil pós-pandemia já deve ser pensado e
articulado agora, durante a pandemia, onde as experiências
de dor pela perda de entes e amigos possam nos fornecer um
contraponto essencial: da dor, surgir pensamentos e políticas
disruptivas que reconheçam que Humanidade deve ser
solidária, fraterna, numa cidadania que deve ser global,
integral e plena. Também há que se falar na democratização
do poder político e da condução das políticas econômicas no
Sul Global, de modo que o estado-nação seja revisto para ser
278
uma nova “ágora ateniense” efetiva do debate público sobre
decisões internas e de políticas externas que afetam
diretamente a população; excluindo de tal debate as
propostas racistas, fascistas e xenófobas.
O Sul Global tem a oportunidade de fazer uma
escolha: mover-se pelo “caos” do cenário internacionalista
pós-pandemia com autonomia frente ao Norte Global e com
interdependência entre suas nações, iniciando-se em nível
macrorregional um processo de cidadania global; ou, ficar à
margem dos acontecimentos, como espectadores, enquanto
velhos paradigmas pré-pandemia e pro-
establishment/hegemônicos voltariam lentamente ao cenário,
mitigando rupturas. Há que se estar alerta quanto à
movimentação do Norte Global (notadamente em redes
sociais virtuais e em mídias) em querer-se restaurar “a
normalidade pré-Covid19” de forma a restabelecê-la sob
uma roupagem de “nova normalidade”, mas mantendo os
laços hegemônicos sobre o Sul Global. No livro Lampedusa
“O Leopardo” (2017) há a famosa frase “É preciso mudar
algo para que tudo fique como está”; e é tal concepção de
“falsa-mudança” que deverá guiar as ações realistas de
política externa dos EUA, China e União Europeia, no
cenário pós-pandemia. Isto posto, pode ser que a
desglobalização não resulte na humanização das relações
internacionais; pode ser que resulte numa velha globalização
travestida de “nova normalidade”. Todavia, também pode
resultar num novo modelo de interdependência onde a
dignidade humana e preservação da Natureza sejam os
pilares verdadeiros de qualquer troca ou cooperação a haver,
seja cientifico-tecnológica, comercial, de serviços. Se as
potências hegemônicas sempre tentam conduzir as
mudanças no cenário internacional em conformidade com o
seu máximo interesse, ainda que mascarado em “novos
279
interesses” ou em “interesses de todos”, cabe às nações do
Sul Global definirem quais sejam os seus próprios interesses
nacionais e multilaterais a serem alcançados ou protegidos:
maior acesso às biotecnologias, industrialização sustentável,
fortalecimento de políticas sociais, diplomacia para a paz, etc.
Desta feita, nas relações internacionais pós-pandêmicas
muito dependerá de como o Sul Global se moverá, conduzirá
sua política externa: isolacionista ou multilateralista?
Individualista ou solidária? Mais do que nunca, é necessário
“pensar fora da caixa”, libertando-se de amarras e ousar
propor novas soluções para um mundo pós-pandêmico. De
acordo com Santos,
A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis
alternativas, que as sociedades se adaptam a novos modos
de viver quando tal é necessário e sentido como
correspondendo ao bem comum. Esta situação torna-se
propícia a que se pense em alternativas ao modo de viver,
de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros
anos do século XXI (SANTOS, 2020, p. 29).

Provavelmente as mudanças pós-pandemia nas


relações internacionais no Sul Global não serão
imediatamente altamente relevantes, mas, o serão
mediatamente, num processo contínuo de alteração de
elementos, fatores e atores políticos. É a oportunidade de se
repensar a relação entre o Ser Humano e a Natureza,
conforme Harvey (2020, p. 18) nos destaca, quando afirma
que o Covid-19 é "a vingança da natureza por mais de
quarenta anos do tratamento bruto e abusivo da natureza nas
mãos de um extrativismo neoliberal violento e desregulado".
As mudanças advirão da interação da crise do sistema
internacional provocada pela pandemia, com o grau de
assimilação de tal crise por parte das sociedades nacionais do
Sul Global (cada qual com suas especificidades) e da
280
reverberação de tal assimilação social sobre a condução da
política externa. Os nacionalismos se exacerbarão e o
populismo induzirão as políticas externas dos países do Sul
Global? Países optarão pelo isolamento econômico-
tecnológico? Segmentos sociais reagirão ao modelo
decadente e pediram por soluções conjuntas e multilaterais,
com reforço da integração regional, numa perspectiva
ambiental e humanas mais dignas?
De certo modo tais questões remetem à qual será a
nova arquitetura do poder pós-pandemia, onde a
interdependência de países poderá trazer a aceleração de uma
cidadania global ou planetária fundamentada na “igualdade
na diversidade”, de culturas, tradições; isto se as mentes de
povos e políticos estiverem abertas, para além do
convencional que agora torna-se obsoleto com o vírus
Covid-19. De certo modo, o sistema internacional já estava
em crise identitária antes da pandemia Covid-19, com uma
polaridade EUA x China moldado em práticas diplomáticas
tradicionais que excluíam, na prática (para além de discursos
formais) as nações periféricas do poder decisório no cenário
internacional. Mas a fragilidade da hegemonia do atual
modelo econômico no sistema internacional significa que há
um desafio para o Sul Global e que as nações periféricas/em
desenvolvimento devam se posicionar conjuntamente, de
forma multilateral, propondo novas perspectivas construídas
partir das experiências de suas próprias realidades, sem a
implementação de soluções prontas importadas do Norte
Global. Assimilar propostas do establishment do Norte Global
(de que o novo normal não deve romper com a normalidade
pré Covid-19) é aceitar a repetição do cenário de
dualidade/bipolaridade da Guerra Fria, tendo a China como
ator antagonista aos EUA. Caberá às nações periféricas do
Sul Global reorganizarem-se e, tal como a União Africana,
281
criarem novas formas de cooperação multilateral; e que,
sendo preferencialmente “disruptivas”, possam moldar as
relações internacionais desse Sul Global sob novas bases.

Referências bibliográficas
BRASIL. A pandemia da COVID-19 e as perspectivas
para o setor agrícola brasileiro no Comércio
Internacional. Brasília: Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, 2020.
________. Lei 13.993, de 24 de abril de 2020. Dispõe
sobre a proibição de exportações de produtos médicos,
hospitalares e de higiene essenciais ao combate à epidemia
de coronavírus no Brasil. Brasília: Presidência da República,
2020.
CHINAZZI M. et al. The effect of travel restrictions on the
spread of the 2019 novel coronavirus (COVID-19)
outbreak. Science Magazine, v. 368, n. 6489, 2020, p.
395-400.
COMAROFF, J.; COMAROFF, J. Naturalizando a Nação:
Estrangeiros, apocalipse e o Estado pós-colonial.
Horizontes Antropológicos, ano 7, n. 15, 2001, p. 57-106.
_________ . Teoría desde el sur: o como los países
centrales evolucionan hacia África. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2013.
EUA. Lei Stafford de Assistência a Desastres e
Emergências (Lei 100-707, Título 42 do Código dos
Estados Unidos, n. 5195. In: United States Government
Publishing Office, Washington, 23 novembro 1988.
Disponível em <www.govinfo.gov>. Acesso em: 11 set.
2020.
282
________. The Defense Production Act of 1950, as
amended [50 U.S.C. § 4501 et seq.] Current through P.L.
113-172, enacted September 26, 2014. In: Federal
Emergency Management Agency, Washington, 26
setembro 2014. Disponível em <www.fema.gov>. Acesso
em: 11 set. 2020.
GEISEL, A. Lieferung von Masken für die Polizei hat
Berlin nicht erreicht. In: Startseite von Berlin,
Coronavirus, Berlim, 03 abril 2020. Disponível em
<www.berlin.de>. Acesso em: 13 mai. 2020.
GIBSON, R.; SINGH, J. China Rx: Exposing the Risks of
America's Dependence on China for Medicine. New York:
Prometheus Books, 2018.
GUTERRES, A. Secretaria Geral da ONU. Apelo global
para lidar e combater o discurso de ódio relacionado com a
COVID-19. In: Secretaria Geral da ONU, Centro
Regional de Informações para a Europa Ocidental, Nova
York, 8 maio 2020. Disponível em <www.unric.org>.
Acesso em: 03 set. 2020.
HARVEY, D. Política anticapitalista em tempos de
COVID-19. DAVIS, M. (Org.). Coronavírus e a luta de
classes. Teresina: Terra sem Amos. 2020, p. 13-23.
HUMAN RIGHTS WATCH. China: Covid-19
Discrimination Against Africans: forced quarantines,
evictions, refused services in Guangzhou. In: Human
Rights Watch, Nova York, 5 maio 2020. Disponível em:
<www.hrw.org>. Acesso em: 12 out. 2020.
LAMPEDUSA, G. O Leopardo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017.

283
LE MAIRE, B. Sur l'impact économique de l'épidémie de
COViD-19 et le recours au 49.3 pour la réforme des
retraites. [Entrevista concedida a] Damien Thevenot e
Caroline Roux. Vie Publique [Web site]. Disponível em
<www.vie-publique.fr>. Paris, 2 mar. 2020.
MORGENTHAU, H. Another Great Debate: The
national interest of the United States. American Political
Science Review, v. 46, n. 4, 1952, p. 961-988.
NUECHTERLEIN, D. America Recommitted: A
Superpower Assesses Its Role in a Turbulent World.
Lexington: The University Press of Kentucky, 2001.
OIT/ECLAC. Employment Situation in Latin America
and the Caribbean Work in times of pandemic: the
challenges of the coronavirus disease (COVID-19).
ECLAC/IOL Bulletin, n. 22 (maio). Genebra: United
Nations, 2020.
ONU. Global Compact for Safe, Orderly and Regular
Migration. Resolution adopted by the General Assembly on
19 December 2018. In: General Assembly, Resolution,
Nova York, 18 dezembro 2018. Disponível
em<www.un.org>. Acesso em: 16 jul. 2020.
SANTOS, B. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra:
Almedina, 2020.
SMITH, A. Uma investigação sobre a natureza e as
causas da riqueza das nações. Volume 1. São Paulo:
Nova Cultural, 1996.
TRUDEAU, Justin. Trudeau warns U.S. against
denying exports of medical supplies to Canada.
https://www.politico.com/news/2020/04/03/3m-warns-

284
of-white-house-order-to-stop-exporting-masks-to-canada-
163060.
UNIÃO AFRICANA. Projeto de posição comum africana
(PCA/CAP) sobre o Pacto Global sobre a Imigração
Segura, Ordeira e Regular. In: African Union News, Adis
Abeba, 30 outubro 2017. Disponível em <www.au.int>.
Acesso em: 27 jun. 2020.
WEF/TT. Latin America and Caribbean Travel &
Tourism Competitiveness Landscape Report: Assessing
Regional Opportunities and Challenges in the Context of
COVID-19. Insight Report Jult 2020. Cologny: The World
Economic Forum’s Travel & Tourism, 2020.
ZANNETTOU, S. et al. Weaponized Information
Outbreak: a case study on Covid-19 Bioweapon Myths, and
the Asian Conspiracy Meme. In: Network Contagion
Research Institute, Contagion and Ideology Report,
Diego Garcia, 1 abril 2020. Disponível em
<www.networkcontagion.us>. Acesso em: 10 ago. 2020.

285
286
CAPÍTULO 9

PERVERSIDADE DO TERRITÓRIO-RECURSO,
ACONTECIMENTO DAS PANDEMIAS E
TERRITÓRIO-ABRIGO COMO POSSIBILIDADE DO
BEM VIVER

Cláudio Jorge Moura de Castilho

Introdução
A geografia é um campo do conhecimento científico
que estuda o território socialmente usado, no âmbito das
histórias de vida que acontecem nos mais diversos lugares da
existência humana. Segundo Santos e Silveira (2001), não é
apenas o território em si que lhe interessa, mas,
simultaneamente, o território usado como recurso e/ou
abrigo, ou seja, o uso que a sociedade faz dos territórios de
que se apropria, como meio e condição, para atender aos seus
propósitos.
O território constitui, segundo Santos (1997), um
conjunto indissociável, solidário e contraditório de sistemas
de objetos e de ações que, formando uma todalidade
complexa, acha-se em permanente processo de totalização,
em algum sentido. Sentido este que se acha intrinsecamente
atrelado à dinâmica das relações sociais que usam o território
e que, por conseguinte, só pode ser apontado pelo seu
próprio acontecer histórico.
Em uma sociedade de classes como a capitalista,
geralmente, o território é usado, preponderantemente, para
atender aos interesses das classes dominantes e opressoras, a
menos que as classes subalternizadas e oprimidas estejam
287
organizadas e mobilizadas, a partir dos seus territórios de
existência, para também fazerem valer os seus interessses,
atrapalhando a lógica hegemônica. Destarte, o território
constitui um mosaico fragmentado e, contraditoriamente,
combinado dos diversos usos e interesses da coletividade
social.
O conflito de classes, portanto, motor da história
social do capitalismo, engendra uma estrutura territorial
fragmentada e segregada, com diferentes graus de articulação
organizacional e orgânica. Esta estrutura compreende, ao
mesmo tempo, resultado e causa de uma série de
desigualdades e injustiças sociais, cujos graus de variação
dempendem da natureza do processo da formação histórico-
territorial dos lugares no mundo.
Ao longo do processo de formação histórico-
territorial do Brasil, as classes dominantes e opressoras
sempre usaram o espaço nacional para atender,
preponderantemente, aos seus interesses patrimonialistas,
privatistas e economicistas, submetendo as classes
subalternizadas e oprimidas às formas mais exacerbadas e
cruéis de exploração, visando garantir os seus privilégios.
A concretização de tais interesses vem acontecendo
há cerca de cinco séculos no Brasil, mesmo que tenha
destruído porções significativas da natureza e da cultura dos
povos autóctones e dos sogredores das cidades e dos campos
(RIBEIRO, 2015; CASTILHO, PONTES e BRANDÃO,
2018), negando e massacrando cruelmente as suas diversas
reações traduzidas por movimentos sociais (RIBEIRO,
2015; CASTILHO, 2020).
Isso tem acontecido sem esconder o ódio e o medo
das classes dominantes e opressoras com relação às classes
subalternizadas e oprimidas, na medida em que estas últimas
são vistas por aquelas, como ameaçadoras da manutenção
288
dos seus privilégios de classe. Essa postura das classes
dominantes e opressoras tem impedido a consolidação do
processo de formação da cidadania no Brasil, tanto que, de
acordo com Santos (1996, p. 7),
[...] lembremos que a cidadania se dá segundo diversos
níveis. Sobretudo deste país, todos não são igualmente
cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e havendo os
que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam
privilégios e não direitos.

As especificidades territoriais inerentes a cada lugar


influem na dinâmica do acontecer histórico de qualquer
fenômeno, positivo ou negativo, ou seja, qualquer
fenômeno, mesmo que acontecendo simultaneamente em
todos os lugares do espaço geográfico mundial, atinge-os de
maneira diferente segundo a natureza social de cada território
usado. Tais especificidades influem, concomitantemente, nas
formas locais de reação à manifestação e ao enfrentamento
dos referidos fenômenos.
O presente capítulo possui como objetivo geral a
análise da perversidade do território usado como recurso,
agravando a problemática socioambiental na cidade,
inclusive incrementando o evento das pandemias, como
resultado de ações humanas socialmente inconsequentes, no
contexto de uma sociedade de classes fortemente desigual e
injusta como a brasileira. Mas que, ao mesmo tempo e
dialeticamente, não se deixa de pensar e refletir acerca das
possibilidades concretas do acontecer histórico do território
usado como abrigo.
Nesta perspectiva, o materialismo histórico-dialético
constitui a abordagem metodológica escolhida. Isto porque
o território usado é, ao mesmo tempo, resultado e processo
permanente das inter-relações contraditórias e conflituosas
de classes, no âmbito do acontecer do capitalismo como
289
modo de ser e pensar. Destarte, a pandemia da Covid-19 faz-
se presente em um espaço urbano que, formado
historicamente no âmbito de um mosaico territorial
fortemente desigual e injusto, contribui para agravar ainda
mais a situação das classes sociais sofridas como as
subalternizadas e oprimidas.
A operacionalização do método de abordagem acima
proposto materializou-se através dos seguintes
procedimentos metodológicos: revisão não exaustiva da
literatura acerca das principais variáveis utilizadas nesta
reflexão (território usado como recurso, pandemias,
território usado como abrigo); escuta de homens e mulheres
que, pertencentes às classes sociais subalternizadas e
oprimidas, mais sofrem com a propagação da pandemia
causada pela Covid-19; e utilização de figuras representativas
da complexidade do fenômeno ora abordado com a
finalidade principal de esclarecer a discussão ralizada.
A despeito do enorme acervo teórico sobre parte da
temática ora abordada, a revisão da literatura utilizou-se,
apenas, dos trabalhos julgados mais pertinentes para a
realização da discussão ora travada. Isso para evitar correr o
risco desagradável para os leitores do citacionismo
exacerbado e infrutífero que poderia desviar a atenção do
foco do escrito.
Quanto à escuta das pessoas, realizaram-se
entrevistas informais, em locais que retratam de maneira
patente o sofrimento das pessoas no atual contexto histórico
em que se vive: CIS (Comunidades de Interesse Social); filas
de agências bancárias que pagam auxílios emergenciais aos
trabalhadores e às trabalhadoras atingidos/as pela pandemia
da Covid-19; terminais de ônibus; e ruas comerciais da ACR
(Área Central do Recife).

290
Ressalta-se que, para proteger os/as respondentes,
como nos alertara Lacoste (2019), buscou-se omitir qualquer
informação que pudesse revelar as suas respectivas
identidades. Acrescenta-se que o pesquisador usou máscara
facial e manteve o distanciamento necessário de, no mínimo,
um metro e meio de distância com relação aos/às
respondentes, respeitando as recomendações dos governos
estadual e municipal as quais, por sua vez, achavam-se de
acordo com as orientações da OMS (Organização Mundial
da Saúde).
Por último, mas não de menor importância para a
realização do presente ensaio, utilizou-se de figuras
representativas da temática ora abordada; o que aconteceu
com vistas a, principalmente, tornar mais evidentes os seus
principais sentidos e, ao mesmo tempo, vislumbrar
perspectivas concretas visando à superação da perversidade
do território usado como recurso, impedindo seu uso como
abrigo.
O presente capítulo acha-se estruturado da seguinte
forma: o tratamento do acontecer histórico do território-
recurso negando a possibilidade do território-abrigo,
deixando, assim, o espaço geográfico vulnerável à
manifestação dos vários impactos negativos decorrentes das
ações antrópicas (primeira seção); o acontecimento das
pandemias em territórios usados como recurso para atender
aos interesses hegemônicos alienantes e elienígenas (segunda
seção); e o território usado como abrigo enquanto uma
possibilidade concreta diferente em termos de ordenamento
territorial, abrindo outras perspectivas de ser e pensar no
mundo (terceira seção).

291
O território-recurso negando a possibilidade do
território-abrigo
Portanto, não constituindo um epifenômeno, o
território não é somente o espaço onde as ações humanas
acontecem, mas, ao mesmo tempo, é a instância material
produzida e usada para atender os interesses das classes
sociais que necessitam apropriarem-se dele para existirem.
Em se tratando de uma sociedade capitalista como a
brasileira, os interesses predominantes são aqueles que
representam os propósitos das classes dominantes e
opressoras os quais, contraditoriamente, conflitam com os
das classes dominadas, subalternizadas e oprimidas. Santos et
al. (2000, p. 12-13) acentua que
Para os atores hegemonicos o território usado é um recurso,
garantia da realização de seus interesses particulares. [...] o
rebatimento de suas ações conduz a uma constante de
adaptação de seu uso com adição de uma materialidade
funcional ao exercício das atividades exógenas ao lugar,
aprofundando a divisão social e territorial do trabalho,
mediante a seletividade dos investimentos econômicos que
gera um uso corporativo do território. [...] Os distintos
atores não possuem o mesmo poder de comando levando a
uma multiplicação de ações, fruto do convívio com os atores
hegemonizados. Dessa combinação temos o arranjo
singular dos lugares. Os atores hegemonizados
[subalternizados e oprimidos] têm o território como um
abrigo, buscando constantemente se adptar ao meio
geográfico local, ao mesmo tempo que recriam estratégias
que garantam sua sobrevivência nos lugares. É neste jogo
dialético que podemos recuperar a totalidade.

Em países como o Brasil, a permanência, no tempo-


espaço, das desigualdades e injustiças sociais inerentes à
racionalidade técnico-instrumental capitalista produz
territórios insustentáveis à realização plena da vida humana,
292
deixando sempre as classes subalternizadas e oprimidas mais
vulneráveis a quaisquer tragédias a exemplo da que se
caracteriza como pandemia; o que, por seu lado, dificulta a
realização de ações capazes de enfrentá-las e combatê-las
visando não somente ao bem-estar, como também ao bem-
viver da coletividade.

O território usado como recurso


Recife é um importante centro urbano da região
Nordeste do Brasil. Segundo o BNB (2019), a cidade
compreendia, em 2018, um espaço com cerca de 218 km²;
possuía população total com cerca de 1.637.834 habitantes; e
densidade demográfica de 7.498,0 habitantes por km². Trata-
se do núcleo central da Região Metropolitana do Recife
(RMR) cuja população total chegara, em 2018, de acordo
com FNEM (2019), a 4.054.866 habitantes.
De acordo com o Lab Moradia no Centro (2018),
com base no Atlas das Infraestruturas Públicas em
Comunidades de Interesse Social (CIS), realizado pela
Autarquia de Saneamento do Recife (Sanear), entre 2014 e
2016, cerca de 53% da população total do Recife moravam
em CIS, cobrindo 35% da área urbanizada da cidade.
Várias dessas CIS achavam-se localizadas no interior
do perímetro de 74 ZEIS (Zonas Especiais de Interesse
Social) e 304 achavam-se fora das ZEIS, evidenciando o
significativo número de lugares cujos/as moradores/as
sequer têm perspectiva de regularização fundiária e
urbanística garantida pela legislação da ZEIS. Isso resulta de
um processo de formação histórico-geográfica que
engendrou paisagens urbanas significativamente desiguais e
injustas, constituindo um mosaico fragmentado e,
contraditoriamente, articulado de territórios sob a lógica dos
interesses inerentes a uma sociedade de classes perversa.
293
Em Recife, portanto, a referida articulação acha-se
distante da perspectiva de propiciar relações plenas de
proximidade entre as classes sociais existentes. Em certa
medida, até se consegue perceber casos de aproximação
física entre elas, mas a aproximação social sempre se calcou
nos parâmetros da exploração e precarização.
A fragmentação histórico-territorial foi representada
por Castro (1954), Freyre (1981) e Melo (1978), dentre outros
autores clássicos sobre a história urbana local, pela visível
presença de desigualdades entre os habitantes de “terras
firmes” e de “áreas de manguezais”.
As primeiras, de grande valor econômico,
justificavam sua maximização em termos de construção dos
sobrados, residências das classes dominantes e opressoras;
enquanto que as segundas constituíram espaços
economicamente desvalorizados em função da dificuldade,
sobretudo nos tempos iniciais da formação territorial da
cidade, para construir, razão pela qual se tornaram espaços
ocupados pelas classes subalternizadas e oprimidas, onde elas
levantavam seus mocambos.
Se, por exemplo, para Melo (1978, p. 68), “[...] não
longe deles [dos espaços de terra firme], ou até beirando-os,
existiam as áreas dos manguezais...”, também para Bitoun
(1996, p. 44-45),
[...] no Recife, nenhuma concentração de população de
renda alta e média está localizada a mais de 1.200 m de um
assentamento popular gerando práticas sociais de
vizinhança entre setores sociais que convivem no mesmo
bairro. No entanto, existem [...] bairros exclusivamente
ocupados por populações de baixa renda, em localizações
periféricas dificultando o acesso ao mercado de trabalho e
tornando ainda mais remotas as perspectivas de mobilidade
social.

294
A proximidade acima citada não significa que tenha
existido, consequentemente, relações de convivência social
entre as classes sociais dominadas e subalternizadas no
espaço urbano; o que se deve, ao mesmo tempo, à
permanência da dimensão racista e preconceituosa das
primeiras classes com relação às segundas, fazendo com que
estas últimas sempre tenham sido mantidas afastadas das
anteriores.
Por outro lado, nota-se que, após a realização dos
aterros das áreas de manguezais pelas próprias classes
subalternizadas e oprimidas, valorizando-as no curso da
história urbana local; os interesses das classes dominantes e
opressoras, através da sua articulação em um CFICF
(Complexo Fundiário Imobiliário Comercial Financeiro),
buscaram, progressivamente, apropriar-se dos terrenos
tornados terras firmes.
Ações urbanísticas de cunho higienista
implementadas pelo Estado, a exemplo das empreendidas
pela Liga Social Contra os Mocambos, nos anos 1930 e 1940
(MELO, 1985), foram responsáveis pela “limpeza” dos
referidos terrenos, removendo as famílias das classes
subalternizadas e oprimidas para outras áreas da cidade e/ou
da RMR, expulsando-as sem nenhum apoio técnico e
econômico. Todavia, parte delas continuou no espaço
municipal, ocupando áreas disponíveis e adensando-se em
outras áreas de famílias pobres existentes na cidade. (Figura
1)

295
Figura 1. Recife, cadastramento de áreas de interesse social.

Fonte: CONDEPE/FIDEM, SIGAP (2012), RECIFE (2016). 48

Observa-se que as áreas de interesse social


ampliaram-se e adensaram-se, entre 1978 e 2014,
consolidando um processo que se faz presente desde o
século XIX, em Recife, não obstante as investidas do CFICF
com vistas a apropriar-se delas. A formação desta estrutura
urbana compreende, portanto, o resultado de tensões e
conflitos suscitados pelas contradições inerentes ao modo do
desenvolvimento histórico-geográfico desigual e combinado
capitalista que se materializou e permaneceu no tempo-
espaço do urbano no Brasil.
Reitera-se que as CIS acham-se, hoje, presentes na
cidade como um todo, fortemente concentrada na porção
norte e relativamente espalhada nas porções centro e sul com
relação ao rio Capibaribe (Figura 2). Ao mesmo tempo, há

48 A periodicidade das observações foi condicionada aos anos


disponíveis. Os levantamentos foram realizados com metodologias
distintas. Em cada levantamento ocorreram denominações diferentes
para essas áreas, por isso Manuela M. P. do Nascimento
(NASCIMENTO e CASTILHO, 2018) achou por bem uniformizá-las,
para efeito de comparação, como áreas de interesse social. O que
interessa é sentir a expansão e o adensamento das referidas áreas no
espaço do Recife.
296
duas grandes áreas, próximas da Área Central, que são
habitadas, em sua maioria, por famílias pertencentes aos
grupos sociais de maior rendimento, mas que não deixam de
estarem rodeadas por áreas de CIS; as quais também se
encontram no interior das duas áreas. Isso demonstra que a
desigualdade territorial continua fazendo parte da estrutura
urbana local, inclusive reforçando o caráter socialmente
injusto da formação territorial brasileira.

Figura 2. Recife – Sobreposição do mapeamento de Comunidades


de Interesse Social (CIS) das Zonas Especiais de Interesse Social
(ZEIS) e Rendimento mensal por setores censitários (Censo
2010).

Fontes: Bases artográficas/Fontes: Prefeitura da Cidade do Recife, 2016; IBGE/DGC. Base


Cartográfica Contínua, ao milionésimo – BCIM: versão 4.0. Rio de Janeiro, 2014. Sist. Geodésico
de Referência: SIRGAS 2000.

297
Os moradores das CIS possuem um cotidiano
sofrido em função, notadamente, da ausência do conjunto
dos serviços públicos sociais fundamentais à concretização
do que Santos (1987) chamou de direito ao entorno os quais,
por seu turno, constituem condição sine qua non à formação
do espaço do cidadão.
Os serviços de saneamento (compreendendo o
abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário e a
coleta de lixo) e a provisão da infraestrutura urbana
(compreendendo as vias de acesso, as canaletas, as obras de
drenagem) voltada para uma habitabilidade digna, quando
existem nas referidas áreas, atendem de maneira muito
precária às necessidades vitais dos/das moradores/as,
reduzindo ainda mais a qualidade no que tange à sua
habitabilidade. Vale ressaltar que
[...] a moradia adequada é um direito humano,
reconhecido em diversos tratados internacionais. Os 7
elementos mínimos do direito humano à moradia adequada,
de acordo com o Comentário Geral nº 4 do Comitê de
Direitos Econômicos Sociais e Culturais, são:
1. Segurança de posse, proteção contra remoção ou despejos
e outras ameaças;
2. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e
infraestrutura, essenciais para a saúde, segurança, conforto
e nutrição, etc.;
3. Custo acessível, que não comprometa a realização de
outras necessidades básicas;
4. Habitabilidade, proporcionando proteção contra frio,
umidade, calor, chuva, vento ou outras amaças à saúde,
riscos etruturais e riscos de doença;
5. Acessibilidade, principalmente para os grupos menos
favorecidos;
6. Localização, que permita acesso a opções de trabalho,
serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades
sociais;

298
7. Adequação cultural, possibilitando a expressão da
identidade e diversidade cultural (LUDERMIR e
COELHO, 2016-2018, p. 13).

No que toca à densidade demográfica, nas CIS, há


famílias numerosas para os padrões de uma “sociedade
moderna”, cujos membros coexistem em espaços muito
exíguos: casais morando com quatro, cinco ou mais filhos/as
dividindo áreas com tamanho inferior a 30 m². Tais
condições, sem acesso aos serviços mínimos de
abastecimento de água e saneamento citados no parágrafo
anterior suscitam ambientes insalubres, deixando as pessoas
vulneráveis a uma série de doenças causadas por diversos
fatores.
Da mesma maneira, os serviços públicos sociais
como os de atenção à saúde (compreendendo o acesso a
consultas médicas, exames ambulatoriais, medicamentos,
tratamento de doenças, etc.) também têm sido alvo de
reclamações contínuas nas mídias locais e nos protestos
realizados junto aos órgãos governamentais gestores dos
referidos serviços.
Estabelecimentos de saúde (compreendidos por
postos médicos, policlínicas, upas/upinhas, etc.) até existem
nos territórios CIS e ZEIS, porém, o serviços de saúde como
direito socialmente conquistado e garantido pela
Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB,
1988) são prestados de maneira muito precária (CASTILHO,
2015).
O conjunto das condições sociais acima destacadas,
inerente a cada lugar de existência das pessoas, influi decerto
na maneira pela qual uma pandemia atinge os territórios
usados, ou seja, se por um lado, a pandemia causada pelo

299
COVID-19 atinge a todos os lugares, por outro, ela não os
atinge da mesma maneira.
Isto quer dizer que, em lugares nos quais o território
é usado preponderantemente como recurso econômico –
descuidando-se da qualidade da habitação, dos serviços
públicos sociais (de saneamento, atenção à saúde, e
transportes, sobretudo) –, seus habitantes tornam-se mais
vulneráveis aos efeitos negativos das pandemias e,
consequentemente, possuem mais dificultades de enfrentá-
los.

O acontecimento histórico das pandemias


A ocorrência e reincidência de endemias, epidemias e
pandemias não constituem eventos novos no mundo.
Atualmente, vivencia-se mais uma pandemia a qual acontece
em proporções gigantescas, desta vez provocada por um
vírus desconhecido e letal, o novo coronavírus (Covid-19); e,
mais uma vez, os países não conseguem evitar o crescente
número de óbitos, evidenciando que aprenderam pouco a
lição das experiências passadas.
Hoje, para combater a propagação da Covid-19,
observa-se que, na maioria dos casos, os governos utilizam-
se novamente de procedimentos semelhantes aos mesmos
que foram utilizados em outros momentos históricos de
surtos virais a exemplo do que ocorrera no início do século
XX49, que ficou conhecido como o da “gripe espanhola”,

49 Recife é uma cidade que, pela sua relevância econômica regional e


mesmo nacional, foi palco de surtos significativos de infecção, os quais
repercutiram no ordenamento territorial do seu espaço geográfico. Entre
1690 e 1693, durante a intervenção do Marquês de Montebello, o bairro
portuário foi alvo de uma série de medidas de saneamento visando ao
combate contínuo dos surtos das infecções virais e bacteriológicas que
300
dentre outros casos ocorridos no curso da história da
civilização humana.
A aparente repetibilidade e previsibilidade serial decorre do
fato da ação das coisas no tempo serem, intrinsecamente
humanas. É esta humanidade que nos leva, no exercício da
memória, a nos ver nas coisas e no tempo. A desigualdade
econômico-social, presente há 100 anos na “gripe
Espanhola” e nos 1000 anos anteriores, esta, não é cíclica e
nem repetida: parece permanência a desafiar as sociedades.
Uma história dos usos sociais da água exemplarmente nos
denota escolhas pela exclusão de parte das populações ao
direito igualitário aos bens naturais, econômicos e sociais, na
história da humanidade (MENESES, 2020, p. 49).

Na verdade, parece-nos que nunca se aprende, ou


melhor, que ainda não se quer aprender com as experiências
de pandemias que, por seu forte grau de letalidade,
provocaram a morte de milhares e mesmo milhões de
pessoas em tempos passados. Mas por que motivo o referido
problema continua a repetir-se? Onde reside a sua principal
causa? Na expansão espacial do vírus em si ou na forma
mediante a qual as sociedades usam os seus respectivos
territórios?
A história tem demonstrado que a escolha pelo modo
capitalista neo-liberal de território usado – tanto nos países
de capitalismo avançado como periférico – deixa os lugares
vulneráveis aos seus impactos negativos. O território usado
como recurso acha-se vulnerável às vicissitudes nefastas

acometiam a cidade. Em 1851, construiu-se o Cemitério de Santo Amaro


– espaço que, naquele momento, achava-se situado fora da área urbana –
para sepultar as vítimas da febre amarela, evitando o seu sepultamento
nas igrejas. O surto da gripe espanhola, entre 1918 e 1920, proporcionou
mudanças sobretudo ao nível do comportamento das pessoas a exemplo
da higienização dos corpos, do uso de máscaras cirúrgicas e da adoção
do distanciamento social.
301
decorrentes da referida escolha as quais lhes ameaçam com
frequência, suscitando crises econômicas e sanitárias,
algumas vezes acontecendo simultaneamente.
Defende-se, portanto, que tais crises não são
causadas meramente pela propagação espacial da Covid-19
per se, mas, simultaneamente, pela lógica da racionalidade
técnico-instrumental capitalista vigente no mundo, a qual
norteia o atual uso social do território. Tenta-se esconder esta
verdadeira causa para não manchar o propósito da lógica
hegemônica, sendo a realidade muito mais complexa do que
parece.
Em todo lugar onde se faz presente, como acentua
Harvey (2013), o capitalismo sempre busca transformar em
mercadoria tudo o que encontra no seu caminho, com a
finalidade, notadamente, de gerar riquezas a todo custo. Daí
por que, seus corifeus nunca negligenciam formular e
propagar discursos com a finalidade de reforçar a ideologia
que ratifica os seus verdadeiros propósitos.
Trata-se de uma perspectiva de relações de ser
(produção-circulação-distribuição-consumo) e pensar que se
expande e se reproduz, aceleradamente, pelo mundo há cerca
de 520 anos, negando qualquer possibilidade de mudança de
tal sentido.
Na medida em que as relações acima referidas
consolidam-se no tempo-espaço do mundo, principalmente
sob as fases de predominância da razão neoliberal de
território usado, os lugares tornam-se cada vez mais
vulneráveis, ou seja, frágeis à cobiça dos interesses
capitalistas, tornando-se lugares fracos.
Os lugares são frequentemente atacados pelos
imperativos de uma lógica que se baseia no crescimento
econômico voltado, preponderantemente, para a geração de
riquezas a qual constitui a principal meta a ser atingida,
302
mesmo que ela aconteça às custas da vida na Terra. Sob tais
parâmetros de território usado, todos os lugares da Terra
ficam sujeitos às consequências negativas desse modelo
perverso de mundo.
A maneira pela qual o uso do território não respeita
a natureza inerente ao seu próprio conteúdo, percebendo-a
fora e separada da sociedade, suscita o aparecimento das
doenças que nos têm atingido. Isso nos leva a reconhecer,
em escala global, problemas relativos aos descaminhos
ocorridos entre ecologia e economia.
Já se sabe que 60% das doenças infecto contagiosas que
atingem o homem têm origem em animais não humanos (as
zoonoses), sendo que “mais de dois terços deles são
originários da vida selvagem”. [...] Há apenas uma ou duas
décadas [...], “acreditava-se amplamente que florestas
tropicais e ambientes naturais intactos repletos de fauna
exótica ameaçavam os seres humanos ao abrigar os vírus e
patógenos que levam a novas doenças em seres humanos
como Ebola, HIV e dengue. Atualmente [...], pesquisadores
pensam que é realmente a destruição da biodiversidade pela
humanidade que cria as condições para o surgimento de
novos vírus e doenças como COVID-19 (SÁ, 2020, p. 1).

Segundo Carvalho (2012, p. 92), “As doenças infecciosas


emergentes [...] como SARS, são cada vez mais comuns. De
acordo com a [...] OMS [...], desde a década de 1970, cerca de
40 novas [zoonoses] foram descobertas”. São, portanto, as
ações humanas que, através da invasão do habitat de animais
selvagens, desmatando para construir estradas, cidades,
barragens e implantar atividades de mineração e agronegócio,
bem como do aumento das viagens aéreas, da difusão do
tráfico de vidas selvagens, etc., têm causado frequentes
surtos de doenças infecciosas.
Defendendo a tese segundo a qual as pandemias
letais são provenientes de alterações genéticas que tornam os
303
vírus capazes de infectar os homens, Ujvari (2012, p. 161)
acentua que a dinâmica dos fluxos econômicos também
influi na propagação de doenças dentre as quais se acham as
causadas por vírus.
Com a globalização do transporte, principalmente após o
período industrial, essas pandemias ganharam força. O
Brasil conheceu, em 1889 e 1890, um vírus da gripe surgido
no sul da Rússia que se alastrou pelo continente europeu.
Embarcações a vapor circularam o vírus com maior
eficiência. Pessoas doentes embarcaram em um paquete na
cidade de Hamburgo. Desembarcaram em Salvador. Suas
tosses e corizas transferiram o vírus para quase metade dos
habitantes da cidade. A doença alastrou-se pelo litoral
nordestino e alcançou o Rio de janeiro. Levou D. Pedro II
para a cama. Não deixaria vestígios, porém, para estudarmos
com a ciência do século XX. Ao contrário do que ocorreu
com a próxima e mais grave, a epidemia da gripe espanhola
de 1918.

Defende-se, assim, a ideia segundo a qual a raiz do


problema ora em foco encontra-se, preponderantemente, na
própria lógica neo-liberal de uso do território inerente ao
acontecer histórico do capitalismo no mundo, suscitando,
frequentemente, momentos de crises econômicas e sanitárias
cujos impactos trágicos são inevitáveis50.
As crises, enfim, suscitam a necessidade de
compreender o verdadeiro sentido do modelo capitalista

50 Afastamo-nos, portanto, das visões conspiratórias e simplistas de


mundo segundo as quais o COVID-19 tratar-se-ia do vírus causador da
“gripe chinesa” propagada, propositalmente, para finalidades
geopolíticas, bem como de um surto viral devido a patógenos liberados
de laboratórios e/ou ações de pesquisa voltada para a produção de armas
químicas. Visões desse tipo só interessam aos poderes ora instituídos que
desejam mascarar aspectos da realidade que poderiam, se descobertos,
desmanchar a ideologia reforçadora dos seus verdadeiros propósitos.
304
vigente de ser e pensar, a fim de contribuir para a
conscientização da sociedade acerca das contradições desse
modelo, as quais têm ameaçado a existência da vida humana
na Terra, permitindo-nos abrir novas possibilidades para se
imaginar outros mundos.
O surto [da Covid-19] expôs instantaneamente a divisão de
classes na saúde americana. Aqueles com bons planos de
saúde que também podem trabalhar ou ensinar de casa estão
confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas
prudentes. Os funcionários públicos e outros grupos de
trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão de
fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto
isso, milhões de trabalhadores com baixos salários,
trabalhadores rurais, desempregados e sem teto estão sendo
jogados aos lobos (DAVIS, 2020, p. 9).

A questão de classe, como colocada anteriormente,


permaneceu no curso do processo da formação histórico-
territorial brasileira visto que a lógica do modo de produção
capitalista pela qual o país optou continua a mesma, ou seja,
priorizando os interesses econômico-financeiros em relação
aos interesses referentes a uma vida digna para a coletividade.
A esse respeito, Young (2020) acentua que persiste a
negação de direitos, cidadania e vida aos negros e aos índios
e que os interesses econômicos sobrepõem-se sobre os
demais, razão por que tais povos estão situados entre os que
mais sofrem com a Covid-19.
Se no Brasil do século XIX as principais vítimas das
epidemias e pandemias foram os escravizados e os pobres
das cidades e do campo, hoje, os mais vulneráveis à
pandemia do Covid-19 são os seus herdeiros históricos: os
favelados, os presidiários e a população em situação de rua.
Nunca é demais lembrar que a escravidão [...] se deu sem
nenhuma política de integração dos ex-escravizados à
sociedade (GUIMARÃES, 2020, p. 103).

305
Prestando mais atenção às contradições acima
referidas, a sociedade se autoconscientiza da relevância das
pautas que têm sido levantadas por entidades sociais críticas
– a exemplo dos sindicatos e dos movimentos sociais – as
quais, aliás, nunca se calaram diante da insensatez no que se
refere à perversidade inerente à lógica de uso do território
como recurso. A este respeito, vale ressaltar
[...] o que os funcionários do hospital da França, lutando ao
longo do ano passado, têm dito repetidamente: que o
hospital público é vítima de políticas de estrangulamento
financeiro, tornando-o cada vez menos capaz de cumprir as
suas tarefas de acolhimento e cuidado dos pacientes; mas
que também é vítima de uma medicina liberal da cidade que,
em grande parte, vira as costas à sua missão, enviando
pacientes para o hospital público que inicialmente estavam
sob seus cuidados; enquanto as clínicas privadas prosperam
com os excessos de taxas que selecionam uma “clientela”
que evita a dupla armadilha anterior. Tanto que, quando o
choque de uma pandemia atinge, é todo este sistema,
deliberadamente dilapidado, que se revela incapaz de lidar
com a situação forçando os prestadores de cuidados a
separar os pacientes de acordo com a sua expectativa de
sobrevivência... e idade. Como os cirurgiões fazem em
tempo de guerra nos hospitais de campanha, na retaguarda
da linha de frente! (BIHR, 2020, p. 26).

Outros países europeus – tais como: Itália, Espanha


e Reino Unido – revelaram os efeitos perversos da sua
submissão, sobretudo a partir do contexto de consolidação
da razão neo-liberal de uso do território, preterindo, com
base na ideia de redução de gastos, os investimentos em
serviços públicos sociais e priorizando a geração de riquezas.
Nesse contexto, investimentos em aeroportos, agências de
viagem, hotéis, restaurantes, centros turísticos e de lazer e
parques temáticos tornaram-se muito mais presentes nas

306
cidades do que em hospitais devidamente equipados e
laboratórios de pesquisa em saúde pública.
Portanto, mesmo em territórios reconhecidos como
de Primeiro Mundo que possuem – ou possuíram – “Estado
Protetor”, deixou-se de investir, como antes, em serviços de
atenção à saúde, privatizando-os, o que contribuiu para os
atuais cenários trágicos ocorridos em função da propagação
da pandemia da Covid-19.
A situação torna-se ainda pior em territórios onde,
quando muito, houve, em alguns momentos da história,
experiências de um Estado Desenvolvimentista, onde o
direito ao entorno nunca se concretizou e, por sua vez, a
condição de cidadania ainda é um sonho muito distante de
ser conquistado pela coletividade social.
Basta prestar um pouco mais de atenção para a forma
pela qual bens de consumo coletivo como saneamento,
habitação, serviços públicos sociais de atenção à saúde e
transportes são providos para as classes sociais
subalternizadas e oprimidas, que logo se compreende o que
se está colocando.
Acrescenta-se um fato de ordem conjuntural que
complica ainda mais a situação brasileira, trata-se do seu atual
governo federal que, desprovido de espírito republicano, não
consegue enxergar os seus erros e, assim, não aceita, mesmo
diante das evidências trágicas dos efeitos da pandemia,
mudar a sua postura economicista para uma mais humana.
A enorme diferença entre os modelos de uso social
do território implica não somente em processos distintos de
organização territorial, configurando diferentes
territorialidades; mas, ao mesmo tempo, em maneiras
distintas de vulnerabilidade social, de enfrentamento às
adversidades e, por conseguinte, de formas de superar tais
condições. Daí por que, mesmo tendo sofrido muito com a
307
pandemia da Covid-19, justamente por já terem tido uma
experiência de Estado Protetor, as referidas nações europeias
apresentam-se com melhores condições de enfrentamento e
combate da pandemia.
O problema, entretanto, parece difícil de ser
resolvido a curto prazo em função, sobretudo, do peso da
ideologia hegemônica para a qual a celeridade e intensidade
dos processos de urbanização e de expansão do agronegócio
por territórios do mundo constitui uma estratégia fatal que
persiste em continuar. No caso dos territórios que se situam
em regiões tropicais e subtropicais nas quais a pobreza e o
desmatamento expandem-se a todo vapor, sem haver
nenhuma forma de controle das instituições públicas
nacionais, a situação torna-se ainda mais grave.
Em todo o Planeta, a manifestação da pandemia da
Covid-19 inicia-se e propaga-se a partir dos centros mais
dinâmicos do espaço mundial, de grande, média ou pequena
magnitudes. Afinal, Lefèbvre (1974) demonstrara, há
décadas atrás, que os centros – como espaços de encontros
promovedores da centralização e da centralidade –
constituem espaços cruciais do acontecer histórico do
capitalismo e, por sua vez, de tudo que se acha
intrinsecamente relacionado a este modo de produção.
Tais lugares constituem espaços da produção e
reprodução das relações capitalistas de ser e pensar inerentes
ao mundo moderno e, concomitantemente, da manifestação
dos seus impactos perversos. Percebe-se, assim, que os
centros constituem as áreas urbanas, ou seja, os lugares,
segundo Santos e Silveira (2001), de forte densidade do meio
técnico-científico-informacional que propiciam grande
fluidez, capacidade de influência e rapidez, enfim, os espaços
luminosos. Estes constituem, assim, espaços dispersores

308
também da Covid-19, o que é estimulado pelo modo como
se dá o uso do território.
No Brasil, da mesma maneira que acontece na escala
do mundo, são os espaços luminosos que concentram as
mais significativas ocorrências da pandemia da Covid-19, as
quais se vão expandindo pelos seus respectivos entornos à
medida que os contatos sociais se estabelecem, através das
vias de circulação que estruturam o processo de organização
do espaço urbano. (Figura 3).

Figura 3. Brasil, espaços luminosos; ocorrências dos casos do


COVID-19.

Fontes: Figuras cedidas por Robson José Alves Brandão, 2020, orientado nosso no
PRODEMA-UFPE.

Paralelamente, tendo em vista que, nos tempos


atuais, existe intensa superposição em termos de modalidade
de transportes de alta velocidade interligando os territórios
entre si e com suas respectivas hinterlândias, associada à
acessibilidade ao sistema de crédito que facilita a realização
das viagens internacionais acelerando o ritmo dos fluxos
econômicos a todo custo, compreende-se a razão pela qual o
surto da doença em epígrafe espalhou-se tão rapidamente
pelo mundo.

309
Trata-se do uso dos territórios segundo os interesses
das relações puramente capitalistas de produção-
distribuição-circulação-consumo de maneira mais célere e
intensiva. Contrapostos aos espaços luminosos, têm-se os
espaços opacos, ou seja, os territórios que, segundo ainda
Santos e Silveira (2001), compreendem aqueles que não
possuem as mesmas condições em termos de fluidez,
capacidade de influência e rapidez exigidas pelas relações
capitalistas a exemplo das CIS, mas que não deixam de ser
atingidos pelos fluxos inerentes à dinâmica econômica.
Não dispondo da qualidade devida e exigida em
termos de habitabilidade, saneamento, serviços públicos
sociais de atenção à saúde, de transportes e acesso ao
mercado de trabalho formal, os espaços opacos tornam-se
muito mais vulneráveis aos efeitos perversos do capitalismo,
incluindo os decorrentes das pandemias, o que é facilmente
visível quando se escuta e dá voz às pessoas que as classes
dominantes e opressoras insistem em não enxergar.
De acordo com as falas das pessoas escutadas,
pertencentes às classes subalternizadas e oprimidas,
destacando os conteúdos mais proferidos por elas, ou seja,
aqueles que se repetiram nas falas de quase a totalidade delas:
“[...] não tem água em nossas casas e a gente tá fazendo das
tripas coração pra conseguir água pra lavar as mãos”
(Moradora de uma CIS no bairro Pina); “A falta de água faz
com que muita gente use a água do rio [...], mas ela é suja e
tenho medo de usá-la” (Moradora de uma CIS no bairro Boa
Vista); “As casas aqui na Comunidade são muito pequenas
[...] na minha, eu moro numa casa que só tem uma sala, um
quarto e um banheiro e tenho cinco filhos [...], imagina se um
de nós pegar esse vírus...” (Moradora de uma CIS no bairro
Boa Viagem); “Eu moro numa casa de uma sala, dois
quartos, um banheiro [...] tudo isso pra mim, meu marido,
310
cinco filhos e minha sogra que tem 80 anos de idade”
(Moradora de uma CIS no bairro Boa Viagem); “Nossa casa
é muito pequena e só tem uma janela e uma porta, isso
dificulta a entrada do vento [...], se alguém daqui pega esse
vírus tamos fritos, [...] o senhor tá vendo que somos 7
pessoas morando nesse vão de apenas um quarto e um
banheiro” (Moradora de uma CIS no bairro Santo Amaro);
“Não temos água encanada em casa, estamos usando água
do rio, mas a gente fica com receio porque essas águas não
são limpas” (Moradora de uma CIS do bairro Pina); “[...]
tenho muito medo de sair porque na televisão passa todas
aquelas covas enterrando muita gente junta por dia, mas o
que fazer, né? [...] Preciso pegar o auxílio porque não tenho
nada pra dar a meus filhos que estão em casa...” (Trabalhador
em uma fila da Caixa Econômica Federal-CEF, no bairro
Encruzilhada); “Se eu pudesse não saía de casa porque não
quero pegar a doença e nem levar ela pra meus parentes de
casa, mas tenho necessidade desse dinheirinho pra que minha
família não passe fome” (Trabalhadora em uma fila da CEF,
no bairro Engenho do Meio); “Olhe, a situação dos ônibus é
sempre ruim, os ônibus parece que carrega boi de tão cheio,
e agora com o coronavírus está pior porque a gente corre
risco de pegar esse danado e morrer ou de levar ele para casa
e passar para um parente (Trabalhador no Terminal de
Integração da Macaxeira); “Justamente agora quando devia
ter mais ônibus pra gente viajar sentado e separado, tá assim,
cheio de gente [...] e arriscando a vida da gente todo dia, mas
precisamos ir trabalhar, que fazer né?” (Trabalhadora no
Terminal de Integração Joana Bezerra); “Se eu pudesse ficava
em casa para não arriscar minha vida e a dos meus pais e
filhos [olhos cheios de lágrimas], mas tenho que ir trabalhar,
minha patroa disse que não tem condição de me pagar se eu
não for ao trabalho (Trabalhadora no Terminal de Integração
311
Joana Bezerra); “Era pra tá tudo fechado, o governo até
tentou controlar no início mas depois escutou os donos de
empresas que só pensam neles [...], aí as lojas abriram e a
gente teve que trabalhar nesse risco todo de pegar o vírus”
(Trabalhador em rua comercial do bairro São José); e “Eu
queria tá em casa cuidando pra meu pessoal não pegar esse
bicho [o COVID-19] mas não posso deixar de vir pra loja
senão o patrão me demite (Trabalhadora no em rua
comercial do bairro Santo Antônio).
O conteúdo das falas acima demonstra que os/as
respondentes estão cientes do perigo que pode acometer os
seus lares, porém, dispondo de condições precárias nos seus
diversos territórios de existência, são obrigadas a exporem-
se à Covid-19 com a finalidade principal de conseguirem
sobreviver.
O medo com relação ao uso da água do rio, em
função da poluição, para a higienização pessoal remete-nos a
uma consciência da necessidade de cuidar melhor do meio
ambiente. O medo de não ter acesso aos meios mínimos para
a higienização pessoal e do lar, o medo de terem que tomar
ônibus cheios de gente impedindo a necessidade do
estabelecimento da distância mínima para evitar o contágio e
o medo de ter que sair de casa para não perderem seus postos
de trabalho sob a pressão dos proprietários dos
estabelecimentos comerciais demonstram a grande
vulnerabilidade das classes subalternizadas e oprimidas no
atual momento da pandemia da Covid-19.
Em Recife (Figura 4), nota-se que a concentração dos
infectados pela Covid-19 achava-se, em princípio, nas duas
principais centralidades socioeconômicas locais. Foi a partir
dessas áreas que os casos de ocorrência da doença
espalharam-se, atingindo tragicamente os lugares das classes
subalternizadas e oprimidas, tal como aconteceu em outras
312
cidades brasileiras. Barbosa e Teixeira (2020, p. 69)
reconheceram processo semelhante na cidade do Rio de
Janeiro ao constatarem o movimento da Covid-19 “[...] dos
bairros de classes médias com maior renda econômica,
disponibilidade de equipamentos e valorização imobiliária
[...] para os subúrbios, favelas e periferias cariocas”.

Figura 4. Município do Recife: epicentros iniciais da


pandemia do COVID-19 (à esquerda) e áreas atingidas em cerca
de um mês.

Fontes: IRRD-PE 22/03/2020 e DECART/PGCGTG/UFPE 25/04/2020,


respectivamente.

Os centros dispersores da doença em questão


constituem os lugares que, por constituírem os principais
espaços luminosos da cidade, abrigam a maior parte das
pessoas provenientes das classes dominantes e opressoras
locais, ou seja, os homens e as mulheres que viajaram ao
exterior e trouxeram a Covid-19 para a cidade.
Todavia, trata-se das pessoas que, tendo tido acesso
ao conjunto de bens e serviços de consumo coletivo
necessários à vida social, possuem condições de
habitabilidade mais próximas do que se concebe como
313
direito a viver com, pelo menos, um mínimo de dignidade,
para combater, ao nível individual, os efeitos nefastos da
pandemia.
São essas pessoas, portanto, que reúnem as
condições necessárias para livrarem-se da ameaça e do medo
de contrair o referido vírus na medida em que conseguem
permanecer mais tempo dentro das suas residências,
inclusive continuando a realizar suas atividades cotidianas
utilizando-se das novas tecnologias disponíveis nos seus
respectivos meios técnico-científico-informacionais,
diferentemente do que acontece com as pessoas das classes
subalternizadas e oprimidas que vivem nos espaços opacos.
Essas últimas, como revelado pelas suas próprias
falas, se permanecerem confinadas em casa sem alguma ajuda
do Estado, podem até mesmo morrer de fome, o que nos
remete a uma clara questão de classe social, a qual, negada
pelos teóricos neo-liberais, ainda é muito forte na sociedade
contemporânea, apresentando influência nas relações
socialmente estabelecidas no território.
Há, por exemplo, a questão de quem pode e quem não pode
trabalhar em casa. Isto agrava a divisão social, assim como a
questão de quem pode se isolar ou ficar em quarentena (com
ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção.
Exatamente da mesma forma que aprendi a chamar os
terremotos da Nicarágua (1973) e da Cidade do México
(1995) de “terremotos de classe”, assim o progresso da
COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia
de classe, de gênero e raça. Embora os esforços de mitigação
estejam convenientemente camuflados na retórica de que
“estamos todos juntos nisso”, as práticas, particularmente
por parte dos governos nacionais, sugerem motivações mais
sinistras. A classe trabalhadora contemporânea nos Estados
Unidos (composta preponderantemente por afro-
americanos, latinos e mulheres assalariadas) enfrenta a
desagradável escolha da contaminação em nome do cuidado
e da manutenção de elementos-chave de provisão (como
314
supermercados) abertos ou do desemprego sem benefícios
(como cuidados de saúde adequados). Assalariados (como
eu) trabalham em casa e recebem seu pagamento como
antes, enquanto os CEOs voam em jatos e helicópteros
particulares (HARVEY, 2020, p. 21-22).

Com efeito, a Covid-19 é um vírus que, em princípio,


atinge a todas as classes sociais, mas não as atinge de maneira
igual, revelando a desigualdade inerente à sociedade de
classes.
Os lugares nos quais as classes subalternizadas e
oprimidas moram e vivem são desprovidos das condições
mínimas de existência, apresentando, secularmente, os
mesmos problemas, quais sejam: habitações insalubres,
inexistência e/ou precariedade das redes de saneamento –
provisão de água potável, esgoto e coleta de lixo – e dos
serviços públicos sociais de atenção à saúde e transporte.
Ao fim e ao cabo, por mais que se afirme que o vírus não
escolha classe social, esta premissa deve ser rechaçada, pois
ela não pode ser “democrática” numa sociedade marcada
pela desigualdade, em que o acesso ao trabalho, saúde,
educação, bens e serviços não são minimamente os mesmos
para todos; da mesma forma que os efeitos da doença, que
provoca(ra)m consequências na maioria das vezes
completamente díspares para cada faixa social, reproduzem
ainda mais a desigualdade. (SANTOS, 2020, p. 158)

Quanto maior a densidade técnico-cientifico-


informacional dos territórios vividos, maiores são as chances
de enfrentar e combater os danos provocados pela Covid-19.
Por isso, em uma sociedade de classes, no momento em que
as chances de contágio são grandes, cabe ao Estado, na escala
do tempo curto, empreender um conjunto de ações com
vistas a garantir a preservação da vida humana para
coletividade social; e, no tempo longo, continuar investindo
315
pesadamente em obras de infraestrutura urbana e serviços
públicos sociais.

Território como abrigo e possibilidades concretas ao


bem viver
Em face da insustentabilidade da vida humana no
território usado como recurso, pelos interesses puramente
econômicos, urge implementar um conjunto de ações
efetivamente consequentes que eliminem as desigualdades e
injustiças territoriais; fazendo valer, por outro lado, a
concretização do território usado como abrigo.
Nesta perspectiva, visando à promoção de uma
habitabilidade humanamente sustentável, ressalta-se o
investimento na expansão – quantitativa e,
concomitantemente, qualitativa – dos serviços de
saneamento, atenção à saúde e transportes públicos sociais,
associados a formas justas e dignas de habitação e trabalho
para a coletividade social. O que deve acontecer buscando
constantemente adaptar as pessoas ao meio geográfico local,
recriando as estratégias que garantam as condições da
cidadania, nos seus diversos lugares de existêcia.
Urge também resolver a questão dos descaminhos
provocados pelo afastamento entre natureza e sociedade,
impostos pela lógica da racionalidade técnico-instrumental
capitalista neoliberal, o que se inicia pela recusa da ideia de
que a natureza constituiria uma dimensão alheia e separada
da cultura, da economia e do cotidiano da sociedade.
A respeito do que se acabou de colocar,
fundamentando-se, também, em uma perspectiva teórico-
empírica dialética e relacional com base na ligação metabólica
dos homens e das mulheres com a natureza, Harvey (2020,
p. 15) reconhecera que
316
O capital modifica as condições ambientais de sua própria
reprodução, mas o faz num contexto de consequências não
intencionais (como as mudanças climáticas) e contra as
forças evolutivas autônomas e independentes que estão
perpetuamente remodelando as condições ambientais.
Deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre
natural. Os vírus mudam o tempo todo. Mas as
circunstâncias nas quais uma mutação se torna uma ameaça
à vida dependem das ações humanas.

De onde devem surgir projetos alternativos em


termos de criatividade e inovação quanto ao uso do território
como abrigo? A hipótese que se levanta neste escrito é que
são, provavelmente, dos espaços banais que o efetivamente
novo é pensado e refletido.
No caso específico do novo, com relação ao que a
pandemia da Covid-19 vem provocando atualmente na vida
das pessoas, isso poderá acontecer a partir da crítica às ideias
segundo as quais a “normalidade” deverá ser retomada
depois que tudo passará. Destarte, segundo Acosta (2016), é
este o momento de se continuar a imaginar e praticar outros
mundos possíveis.
Isso acontece, notadamente, porque a normalidade à
qual se tem referido, através da mídia comercial, é justamente
a que se sustentava em formas de uso do território que de
certa feita naturalizam a devastação da natureza e a miséria
de muita gente visando beneficiar, a todo custo, os interesses
hegemônicos do capitalismo.
O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe
amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos
por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer
lhe ensinar alguma coisa. “Filho, silêncio!”. A Terra está
falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que
não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo:
“Silêncio!”. Esse é também o significado do recolhimento.
[...] É hora de contar histórias às crianças, de explicar a elas
317
que não devem ter medo. Não sou um pregador do
apocalipse, o que tento é compartilhar a mensagem de um
outro mundo possível. Para combater esse vírus, temos de
ter primeiro cuidado e depois coragem (KRENAK, 2020, p.
9).

Defendendo que não voltemos à normalidade


ressaltada pela mídia comercial, este mesmo autor busca
fazer valer a razão de ter havido tanto sofrimento na Terra,
alertando-nos para a necessidade de se reconstruir o mundo
na perspectiva de libertar os lugares dos imperativos da lógica
da racionalidade economicista, suscitando uma humanidade
verdadeiramente humana, convivendo pacificamente com a
alteridade/outridade.
No âmbito da busca de articulação social, nas
diversas escalas do mundo, mesmo diante das adversidades à
concretização de mudanças efetivas, ressurgem alternativas
de vida tal como a do socialismo participativo que se
fundamenta no diálogo entre as classes sociais, primando
pela garantia do direito de todos e todas à vida na Terra. O
que, por outro lado, deve ser pensado de acordo com as
vicissitudes do processo histórico vigente, considerando suas
possibilidades de progredir e/ou fracassar.
Ao abordar a epidemia, os socialistas devem encontrar todas
as ocasiões para lembrar aos outros a urgência da
solidariedade internacional. Concretamente, precisamos
agitar nossos amigos progressistas e seus ídolos políticos
para exigir um aumento maciço da produção de kits de teste,
suprimentos de proteção e medicamentos salva-vidas para
distribuição gratuita aos países pobres. Cabe a nós assegurar
que a garantia de cuidados de saúde universais e de alta
qualidade se torne uma política tanto externa como interna
(DAVIS, 2020, p. 9).

318
Faz-se mister reconhecer as especificidades
concernentes ao território usado que suscitam formas
diferentes de articulação e mobilização sociais em diversos
lugares do mundo, sobretudo naqueles em que se apresenta
maior vulnerabilidade em razão do fato de terem conhecido
modos mais céleres e intensivos de consumismo que
explodiram depois do choque de 2007-8, levando-os a
consequências catastróficas.
A torrente de investimentos em tais formas de consumismo
teve tudo a ver com a máxima absorção de volumes de
capital exponencialmente crescentes em formas de
consumismo que tiveram o menor tempo de rotatividade
possível. O turismo internacional era emblemático. As
visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4
bilhões entre 2010 e 2018. Esta forma de consumismo
instantâneo exigiu investimentos maciços em infra-
estruturas de aeroportos e companhias aéreas, hotéis e
restaurantes, parques temáticos e eventos cultuais, etc.
(HARVEY, 2020, p. 19-20).

Ao mesmo tempo, os investimentos em serviços


públicos sociais como em saúde e educação reduziram-se
progressiva e drasticamente durante o período desse
“consumismo instantâneo”. Em países como o Brasil, sequer
houve um esboço próximo do que se concebe como Estado
de Bem-Estar Social, a exceção de poucos períodos da sua
história em que se implementaram ações
desenvolvimentistas.
De acordo com Ribeiro (2020, p. 168), “Somente o
Estado é capaz de articular os recursos para a realização dos
investimentos51 necessários à organização da saúde pública,

51Contra o discurso da ausência de recursos financeiros, Piketty (2019)


defende a necessidade de taxar o patrimônio privado das classes
dominantes.
319
tendo como princípio o acesso universal da população”, o
que se coloca para processos, também, de longo prazo no
âmbito do uso do território, envolvendo, dialogicamente, as
diversas instituições progressistas da sociedade.
A universidade pública, dentre outras instituições
sociais, não pode eximir-se do seu papel fundamental no que
tange ao desenvolvimento de processos de diálogos sobre a
condição humana no mundo, através da realização de
atividades de assessoria não “para”, mas “junto com” a
coletividade social da qual faz parte. Sem o que, não se
conseguirá nunca retomar os rumos, já trilhados algumas
vezes, no sentido da concretização dos interesses das classes
subalternizadas e oprimidas na busca de serem mais
cidadãos/ãs em contexto de uma formação socioeconômica
e territorial que sempre lhes negou direitos mínimos à
existência.
Destarte, cabe à universidade, junto com seu povo,
deslindar a lógica das ações contemporâneas de uso do
território como recurso, fomentando a imaginação de outros
usos, resgatando e valorizando as vozes diversas dos
territórios que, felizmente, ainda não foram cooptadas de
todo pela racionalidade hegemônica de cunho economicista.
A parceria entre universidade e povo, decerto,
fundamentar-se-á nas condições existenciais regionais para
vislumbrar alternativas capazes de nortear ações visando
preparar a coletividade social para, mobilizando os valores
solidários do povo, auxiliá-lo na luta pela concretização do
seu direito ao entorno, fortalecendo-o para o enfrentamento
da presente e de outras crises sanitárias de caráter pandêmico
que poderão acontecer posteriormente à atual.

320
Considerações finais
A análise das relações dialéticas estabelecidas entre
território usado como recurso, acontecimento de pandemias
e ações sociais voltadas à concretização do território como
abrigo, no contexto de uma sociedade de classes altamente
desigual e injusta, demonstrou que os impactos catastróficos
de qualquer fenômeno acham-se intrinsecamente
relacionados com a natureza das ações que usam o território
para finalidades puramente econômicas.
Para superar os impactos do território usado como
recurso, levados em conta neste escrito, fez-se necessário
recolocar a necessidade de se reverter o atual sistema de
ações fundamentado na lógica de uso puramente capitalista
de ser e pensar em termos de sociedade, eliminando de uma
vez por todas as seculares desigualdades e injustiças sociais
refletidas pelas paisagens como, por exemplo, as dos centros
urbanos.
A opção pelo materialismo histórico-dialético como
método de abordagem foi apropriada para a concretização
do objetivo deste ensaio. O que teve como auxílio os
métodos de procedimentos relativos: à retomada de ideias
sobre o tema ora proposto, à escuta das pessoas que mais
sofrem com o atual processo de uso do território, e ao uso
de imagens representativas da problemática ora tratada.
A principal contribuição científica da reflexão residiu
no fato de se ter recolocado a relevância do entendimento do
território usado como recurso, enquanto uma totalidade
complexa que está em permanente movimento na história da
humanidade, acontecendo em algum sentido.
Com isso, continuou-se a abrir novas possibilidades
de pesquisas e ações capazes de, junto com as classes sociais
subalternizadas e oprimidas, imaginar e buscar possibilidades
321
concretas para implementar formas justas de uso do
território – como abrigo, por exemplo – que concretizem
efetivamente a condição da cidadania para todas as classes
sociais que se acham presentes no território.

Referências bibliográficas
BARBOSA, J.; TEIXEIRA, L. Territórios populares entre
as desigualdades profundas e o direito à vida. In CARLOS,
A. (Org.) COVID-19 e a crise urbana. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020, p. 67-77.
BIHR, A. França: pela socialização do aparato de saúde. In
DAVIS, M. (Org.) Coronavírus e a luta de classes.
Teresina: Terra sem Amos, 2020, p. 25-30.
BITOUN, J. Análise dos bairros do Recife através da
distribuição da renda. Revista de Geografia, Edição
Especial, 1996, p. 41-55.
BNB. Informações socioeconômicas municipais para
Recife, Pernambuco, 2019. Disponível em
<www.bnb.gov.br>. Acesso em: 20/04/2020.
CARVALHO, R. Doenças infecciosas emergentes na
fronteira do desmatamento. In YOUNG, C.; MATHIAS, J.
(Org.) Covid-19, meio ambiente e políticas públicas.
São Pauo: Hucitec, 2020, p. 92-100.
CASTILHO, C. Por uma geografia social dos serviços:
articulando pedaços de uma realidade fragmentada para
explicar a natureza das inter-relações espaço-serviços. In
CASTILHO, C. (Org.) Movimentos sociais, academia e
sociedade. Por um espaço do cidadão. Recife: Editora da
Universidade Federal de Pernambuco, 2015, p. 155-292.

322
________. O uso neoliberal do espaço – impactos sobre os
“territórios da vida humana” na cidade. Revista Okara:
Geografia em Debate, n. 13, 2019, p. 597-623.
CASTILHO, C. Territórios violados, resistências e
massacres de povos e pobres na história do Brasil – mas a
luta continua. Boletim Goiano de Geografia, n. 40, 2020,
p. 1-25.
CASTILHO, C. J. M. de, PONTES, B. A. N. M. e
BRANDÃO, R. J. A. (2018). A destruição da natureza em
ambientes rurais e urbanos no Brasil: uma tragédia que
ainda pode ser revista. Ciência e Natura, n. 40, 2018, p. 16-
20.
CASTRO, J. de. A cidade do Recife. Ensaio de geografia
urbana. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1954.
DAVIS, M. A crise do coronavírus é um monstro
alimentado pelo capitalismo. In DAVIS, M. (Org.)
Coronavírus e a luta de classes. Teresina: Terra sem
Amos, 2020, p. 05-12.
GUIMARÃES, E. As pandemias e as populações invisíveis:
do Brasil do século XIX ao Brasil do Covid-19. In
ALMICO, R., GOODWIN Jr., J., SARAIVA, L. (Org.). Na
saúde e na doença: história, crises e epidemias:
reflexões da história econômica na época da covid-19. São
Paulo: Hucitec, 2020, p. 98-106.
FNEM-Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas.
Região Metropolitana do Recife, 2019. Disponível em:
<www.fnembrasil.org>. Acesso em: 04/05/2020.
FREYRE, G. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1981.

323
LUDERMIR, R.; COELHO, R. Terra e moradia.
Conflitos fundiários urbanos em Pernambuco. Recife:
Habitat para a Humanidade, 2016-2018.
HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo:
Boitempo, 2013.
________. Política anticapitalista em tempos de COVID-
19. In DAVIS, M. (Org.) Coronavírus e a luta de classes.
Teresina: Terra sem Amos, 2020, p. 13-23.
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
LAB MORADIA NO CENTRO. Recife: Habitat para a
humanidade/Ibdu/Cities
Alliance/Fase/Interação/Cpdh/Mtst/Caus/Solid
ground/Uhph, 2018.
LACOSTE, Y. A geografia – isso serve, em primeiro lugar,
para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 2019.
LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris:
Éditions Anthropos, 1974.
MELO, M. A cidade dos mocambos: Estado, habitação e
luta de classes no Recife (1920-1960). Espaço e Debates,
n. 14, 1985, p. 45-66.
MELO, M. Metropolização e subdesenvolvimento. O
caso do Recife. Recife: Editora da Universidade Federal de
Pernambuco, 1978.
MENESES, J. “Águas passadas [...] movem moinhos”:
água, abastecimento, higiene e processo saúde-doença na
modernidade. In ALMICO, R., GOODWIN Jr., J.,
SARAIVA, L. (Org.). Na saúde e na doença: história,

324
crises e epidemias: reflexões da história econômica na época
da covid-19. São Paulo: Hucitec, 2020, p. 48-58.
NASCIMENTO, M., CASTILHO, C. Habitação de
interesse social: intencionalidades na realocação de
moradias e reuso do solo no ambiente urbano. Revista
Brasileira de Geografia Física, n. 11, 2018, p. 560-584.
PIKETTY, T. Capital et idéologie. Paris: Éditions du
Seuil, 2019.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido
do Brasil. São Paulo: Global, 2015.
Sá, M. A ecologia da doença. 082 Notícias, Maceió, 10
julho 2020. Disponível em: <www.082noticias.com >.
Acesso em: 24/05/2020.
SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel,
1987.
________. Por uma geografia cidadã: por uma
epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de
Geografia, n. 21, 1996, p. 7-14.
________. A natureza do espaço. Técnica e tempo, razão
e emoção. São Paulo: Hucitec, 1997.
________. Por uma outra globalização. Do pensamento
único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SANTOS, M. et al. O papel ativo da geografia. Um
manifesto. Florianópolis: XII Encontro Nacional de
Geógrafos, 2000.
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. O Brasil. Território e
sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record,
2001.
325
UJVARI, S. A história da humanidade contada pelos
vírus. Bactérias, parasitas e outros microorganismos... São
Paulo: Editora Contexto, 2012.
YOUNG, C. E. F. Covid-19 e cobiça: a importância da vida
humana para a elite brasileira, ontem e hoje. In YOUNG,
C.; MATHIAS, J. (Org.). Covid-19, meio ambiente e
políticas públicas. São Paulo: Hucitec, 2020, p. 144-149.

326
CAPÍTULO 10

“SÓLO EL PUEBLO SALVA AL PUEBLO”:


Apoyo mutuo, solidaridad y redes vecinales en madrid
(españa).

María Lois
Silvia González Iturraspe

Introducción
El 14 de marzo de 2020, el Consejo de Ministros del
estado español aprobaba la declaración del estado de alarma
para la gestión de la situación de crisis sanitaria ocasionada
por el virus SARS-CoV-2, más conocido como coronavirus
(Real Decreto 463/2020). Lo hacía solo tres días después de
que la OMS (Organización Mundial de la Salud) declarara el
brote como pandemia, y tras la previa declaración de
emergencia de Salud Pública de Importancia Internacional.
El artículo 7 de esta declaración limitaba la “libertad
de circulación de las personas”, construyendo la
excepcionalidad de la situación a partir de la definición de las
consideradas actividades esenciales, es decir, aquellas para las
cuales era posible la circulación por vía pública. Que serían,
exclusivamente, la adquisición de alimentos, productos
farmacéuticos, asistencia a centros sanitarios,
desplazamiento al lugar de trabajo o asistencia y cuidado a
mayores, menores, dependientes, personas con discapacidad
o personas especialmente vulnerables. Así, se abría un
período de excepcionalidad que duraría hasta el 23 de mayo,
fecha en la que entraron en vigor medidas de relajación del

327
confinamiento; en el caso español, programadas
diferencialmente por espacios y tiempos, por fases.
Casi al mismo tiempo que se decretaba el estado de
alarma, el gobierno municipal de la ciudad de Madrid
promulgaba una serie de “medidas necesarias y adecuadas
por extraordinaria y urgente necesidad en materia de
protección civil” dado el “alto índice de afectación a nivel
poblacional de la ciudad de Madrid” (Decreto 13 de marzo
de 2020). Esta alta afectación se traducía – en la fecha en que
se produjo el pico máximo de comunicación de casos en
España, esto es, el 26 de marzo de 2020 – en que la
Comunidad de Madrid reportaba 17.166 casos, un 30,5% del
total estatal, manteniéndose como el principal espacio de
contagio52. Datos, prácticas sociales y regulaciones políticas
situaban a Madrid como uno de los epicentros de la
pandemia a escala mundial. Hablamos de una ciudad de
3.266.126 habitantes53, la más poblada de España, capital del
país y de la Comunidad Autónoma, principal centro de poder
económico y político. Este escenario, como veremos, es
clave para contextualizar las formas comunitarias populares
desde las que se contesta a la pandemia.
Desde este escenario, entonces, el propósito del texto
es reflexionar sobre las prácticas que han construido la
respuesta social a la pandemia, desde diferentes ángulos. En
primer lugar, describiremos algunas cuestiones teóricas
generales donde contextualizamos las prácticas de apoyo
mutuo y solidaridad en tiempos de pandemia. En segundo
lugar, contaremos nuestro caso, es decir, algunas de las

52 Datos del Centro Nacional de Epidemiología, disponibles en


<www.cnecovid.isciii.es>.
53 Población oficial a 1 de enero de 2019, disponible en

<www.madrid.org>.
328
acciones desarrolladas en la ciudad de Madrid, básicamente,
desde la conformación de redes vecinales que han re-editado
una respuesta desde lo colectivo y la dignidad a la crisis. A
continuación, propondremos una lectura cruzada entre las
prácticas de estas redes y las zonas más vulnerables de la
ciudad, desde la que enfatizar la importancia de las formas
comunitarias en contextos socioespaciales desiguales, y su
capacidad transformadora. Como idea transversal a todo el
escrito, y desde la consideración de este volumen colectivo
como un material para reflexionar sobre tendencias,
perspectivas y retos sobre los posibles Sures en el contexto
del post-Covid 19, pretendemos señalar la invisibilidad
relativa de estas prácticas en circuitos mediáticos y activistas,
donde, en momentos de excepcionalidad, se han ido
visibilizando otras prácticas, más espectaculares, y que nos
motivan a preguntarnos sobre los espacios de
transformación de la realidad social.

La normalidad de la excepcionalidad: el apoyo mutuo y


las formas comunitarias de solidaridad
La llegada de la pandemia de la Covid-19 ha
provocado no sólo una crisis de salud pública, si no una
convulsión de las bases sobre las que se construía la
denominada normalidad (LOIS, 2020, p. 294). Podríamos
hablar de un hecho social total (RAMONET, 2020), como
proceso y experiencia a través del que se cuestionan
instituciones, hechos, actores, decisiones y valores, en medio
de la incertidumbre, el trauma, la desconfianza y el
desconcierto asociado a la vivencia colectiva y a la
construcción social de la excepcionalidad de la situación.
Desde este punto de partida, querríamos subrayar dos
cuestiones. Por un lado, poner de manifiesto cómo las
329
formas solidarias comunitarias se han convertido, una vez
más, en la base para la reconstrucción y mantenimiento de la
vida en situación de crisis extrema, siendo el apoyo mutuo
(KROPOTKIN, 1989) la base de la configuración de la
reciprocidad del apoyo más allá de lo inmediato
(SPRINGER, 2020, p. 112-115). Por otro, que, pese a la
magnitud e importancia de estas prácticas, creemos
reconocer una cierta invisibilidad relativa en los medios de
comunicación y redes sociales más volcados, por una parte,
en la lógica comunicacional de las noticias sobre el avance de
la pandemia, como sería de esperar; pero, al mismo tiempo,
entendemos que sí se han visibilizado de forma contundente
otras cuestiones más espectaculares, desde las llamadas
“colas del hambre” a las manifestaciones contra el estado de
Alarma y las medidas gubernamentales, o la solidaridad
“empresarial”54.
Sin embargo, la cuestión de la reestructuración social
sobrevenida por la política de confinamiento y la respuesta a
la crisis social desde diferentes prácticas comunitarias de
apoyo mutuo pone de manifiesto la importancia de lo
colectivo; es decir, paradójicamente, las medidas estatales
encaminadas a la protección colectiva desde la afectación a
derechos individuales (aislamiento, distancia física,
restricciones de movilidad) inevitablemente re-activan y re-
generan los espacios de solidaridad y reciprocidad como base
de lo común. Más allá de la dependencia de las lógicas
estatales o empresariales, el apoyo mutuo se confirma como
la base de lo colectivo en momentos de crisis y emergencia
social.

54 Ver,
por ejemplo Requeijo (2020), Hernández (2020) y en periódico El
Independiente (2020).
330
El caso: redes de apoyo mutuo y Covid-19 en Madrid
El 30 de abril de 2020, el Ministerio de Sanidad,
Consumo y Bienestar Social español publicaba un
documento recogiendo “información práctica para el
desarrollo de redes comunitarias locales en respuesta a la
pandemia de Covid-19”55. En él se identificaba a estas redes
como “estructuras de colaboración para gestionar un bien o
problema común, en este caso, la crisis sociosanitaria
provocada por la pandemia de Covid-19, en un territorio
determinado”. Efectivamente, en diversos puntos del
Estado se habían activado redes de solidaridad popular, de
cuidados entre vecinos, y, en general, prácticas y formas
comunitarias desde las que se articuló lo colectivo,
recuperando y actualizando dinámicas de autogestión y
proximidad, más allá del asistencialismo o de un servicio
personalizado de acompañamiento individual. La regulación
de las redes comunitarias locales por parte del Estado ponía
de manifiesto, así, la importancia de estas iniciativas. En un
gráfico de este documento se detallaban específicamente las
acciones que estaban desarrollando las redes comunitarias.
Cuadro 1. Redes comunitarias y Covid-19

Necesidades específicas detectadas en la pandemia de COVID19 a las


que hacen frente las redes comunitarias organizadas por dimensiones:
 Trasmisión de información (medidas de protección y
promoción de la salud, situación epidemiológica local,
recursos o activos en la comunidad, desmontar bulos,
proteger frente al estigma, etc.).
 Rastreo de necesidades en un contexto cambiante.

55 Disponible en <www.mscbs.gob.es>.

331
 Acompañamiento emocional (duelo, prevención de
soledad no deseada y problemas de salud mental,
prevención de la psicopatologización a través de la
elaboración colectiva de los traumas asociados).
 Cuidados (de la infancia, personas mayores, enfermas,
con diversidad funcional, cuidadoras, tanto familiares,
como remuneradas, etc.).
 Cobertura de necesidades básicas (techo,
alimentación, fármacos, sanidad, medidas de
protección, movilidad, comunicación, educación,
etc.).
 Identificación de personas y grupos vulnerables, así
como de las barreras de acceso a la información o a las
medidas aprobadas. En este sentido, dos brechas
importantes detectadas son la brecha digital e
idiomática.
 Identificación de recursos y activos para la salud y el
bienestar (grupos de apoyo, asociaciones,
voluntariado, redes vecinales, establecimientos
Colaboradores, servicios sociosanitarios, etc.).
 Prevención de la infección, detección de casos y
contactos, cuidados, apoyo en la cuarentena, facilitar
tratamiento.

Fuente: Ministerio de Sanidad, Consumo y Bien Estar Social (2020) 56

Sin embargo, como veremos en la Figura 1, sería


imposible recoger todas las iniciativas que se han
reorganizado o se han creado a partir de la crisis, y cuyas
prácticas van mucho más allá de lo estrictamente regulado,
afortunadamente. De forma muy general, han oscilado desde
las acciones del Sindicato de Manteros de Barcelona, que
confeccionó batas y mascarillas para hospitales57, a la Red

56Disponible en <www.mscbs.gob.es>.
57 Ver,por ejemplo,
https://twitter.com/sindicatomanter/status/1252892331331764224.
332
Cántabra de Apoyo Mutuo, que organizó cestas solidarias
desde una red con el agro y la ganadería local para dar salida
a productos previamente destinados a mercados y
restaurantes cerrados, pasando por BiziHotsa, una caja de
resistencia creada en el País Vasco para hacer frente a la
profundización de las desigualdades previas que la Covid-19
estaría agravando58.
Figura 1. Redes de apoyo mutuo ante la crisis del Covid-
19 en España.

Fuente: Poder Popular (2020).

En todo caso, Cataluña, Madrid y País Vasco serían


los tres territorios con una mayor proliferación de iniciativas
comunitarias organizadas por las redes barriales, aunque se
han creado y/o consolidando espacios de solidaridad en
Andalucía, Asturias, ó Galicia, y en ciudades como Granada,
Sevilla o Valencia. Quizás en futuros trabajos sería

58 Ver en <www.bizihotsa.eus/inicio>. Para un recuento más general de


estas y otras iniciativas ver, por ejemplo, en El Salto Diario (2020).
333
interesante reconstruir esos escenarios desde un análisis de la
memoria y las prácticas comunitarias en relación con lugares
determinados y a la densidad del tejido social, o a las
densidades de población y dinámicas demográficas propias
de las aglomeraciones urbanas en España. Pero, para este
trabajo, nos centraremos en Madrid, en las redes de
solidaridad y apoyo mutuo vecinales de la ciudad, por una
cuestión no sólo de disponibilidad de datos si no también de
la propia participación de las autoras en ellas.
En Madrid, más de 280 asociaciones vecinales
conforman hoy la Federación Regional de Asociaciones
Vecinales de Madrid, la FRAVM. Esta organización fue
legalizada el 2 de noviembre del año 1977, siguiendo el
ejemplo abierto por la Federación de Asociaciones de
Vecinos de Barcelona, pionera en ser reconocida como tal en
1974, en tiempos de la dictadura franquista. La FRAVM es
una entidad que intenta aglutinar las numerosas asociaciones
vecinales que, desde finales de los años 1960, habían ido
surgiendo con el fin de mejorar las condiciones de vida de
los barrios de las ciudades. En otras palabras,
el asociacionismo vecinal se extendía como un reguero de
pólvora que se las veía y se las deseaba para mantener su
actuación dentro de los estrechísimos márgenes de la
dictadura franquista. Fue así como los vecindarios
consiguieron escuelas, alumbrado público y agua, como
conquistaron años después el derecho a una vivienda que
dignificó el proceso de asentamiento de los suburbios, como
declararon la ‘guerra del pan’ contra la carestía de la vida,
como construyeron los cimientos de lo que hoy nos parece
evidente e irrenunciable59 .

Su creación y articulación son producto de la


espacialización del conflicto capital-trabajo, ligado al proceso
59 Ver <www.aavvmadrid.org/quienes-somos/historia/>.
334
de industrialización, que tiene lugar en las periferias de las
ciudades españolas. Efectivamente “nace el movimiento de
barrios como una extensión y a veces como un reflejo del
movimiento obrero” (ANGULO, 1976, p. 20). De hecho, las
asociaciones vecinales son, junto a sindicatos y
organizaciones de consumidores y usuarios, uno de los
principales ejes de articulación de la movilización social en
los barrios de todo el país, en general, y en Madrid, en
particular, poniendo en marcha desde la iniciativa y la
protesta social demandas en temas tan variados como la
vivienda, la educación, la sanidad o la movilidad, y con una
trayectoria histórica en ese sentido, ligada al horizonte
temporal de su creación:
De lo inhóspito de aquellas chabolas, de la espontánea ayuda
mutua, de la creciente concienciación y de las tertulias
vecinales surgieron grupos que se echaron a las calles para
luchar por lo evidente: el alumbrado público, los colegios, el
suministro de agua o algo de cemento para las calles
polvorientas y enfangadas.60

Estas prácticas y su solidez en los espacios y tiempos


de lo social no han dejado de ser claves. En una perspectiva
temporal más cercana, durante la última crisis económica, en
2008, este tejido asociativo impulsó dos de las principales
iniciativas en términos de solidaridad popular: la lucha contra
los desahucios y las redes de solidaridad popular (RSP):
Esto explica la naturalidad con la que promovió la
constitución de la Plataforma de Afectados por la Hipoteca
de Madrid (PAH), con la que colabora, día a día, en los
procesos de negociación para frenar los desahucios, con la
que participa en las acciones stopdesahucios o en campañas

60 Ver <https://aavvmadrid.org/quienes-somos/historia/>.

335
como la Iniciativa Legislativa Popular por la regulación de la
dación en pago, el alquiler social.61

En tiempos de la Covid-19, los repertorios de acción


y la memoria colectiva de nuevo fueron claves en la
conformación de las redes y en la respuesta a la primera
cuestión que puso el confinamiento en el centro de lo social:
la necesidad de apoyo a los considerados “grupo de riesgo”
y que en situación de falta de recursos y/o “soledad no
deseada” no podían cubrir sus necesidades más básicas. A
través de aplicaciones como Whatsapp, de plataformas como
frenalacurva.net, o de enlaces en redes sociales, las distintas
iniciativas de solidaridad y apoyo mutuo fueron tomando
forma, abarcando desde redes de cuidados al apoyo a la
conciliación debido al teletrabajo, o la impresión de
mascarillas, en el caso de la ciudad de Madrid. En muchos
casos, fueron clave los contactos en el entorno inmediato a
través de los integrantes de las redes vecinales, publicitadas
con carteles en edificios y superficies comerciales, o por
cercanía y conocimiento personal.
Un paso más en estas acciones llevó a revivir la
acción de las despensas solidarias, esto es, el acopio
comunitario de alimentos y otros bienes de primera
necesidad para afrontar las situaciones de falta de recursos.
En otros casos, se elaboraron diversos listados de comercio
de proximidad, tiendas de barrio que pudieran llevar pedidos
a los domicilios ante el desborde de grandes cadenas y
centros comerciales para hacer pedidos online. Esa tienda de

61 Ver <www.aavvmadrid.org/noticias/el-movimiento-vecinal-con-la-
lucha-stopdesahucios/>.

336
barrio (pequeños puestos de las galerías comerciales o
mercados, pequeñas tiendas de alimentación, pero también
floristerías a pie de calle, kioskos de periódicos etc.) se
dispuso como centro de abastecimiento en el entorno
inmediato, en la proximidad. Sin embargo, en escasas dos
semanas de confinamiento, las redes pasaron a ser ingentes
dispensarios de alimentos, mostrando la crisis social que
visibilizaba la emergencia de salud pública. Las redes
vecinales, como recursos de barrio para el apoyo mutuo
ciudadano, ponían de manifiesto la insuficiencia de
estructuras y recursos públicos de protección social para dar
respuesta a los problemas sociales sobrevenidos. En nuestro
caso, en Madrid, según los datos facilitados por las Redes
Vecinales a la Federación, a la FRAVM, desde el inicio del
Estado de Alarma hasta el 30 de abril, solamente las Redes
circunscritas en el ámbito de la ciudad de Madrid habían
distribuido alimentos a más de 5.800 familias diferentes, más
de 20.000 personas.62 Hasta entonces, la FRAVM había
registrado la creación de 58 redes vecinales y 37 despensas
solidarias en sólo un mes de confinamiento. Con datos del
31 de mayo, la FRAVM cifraba en 63 las redes vecinales en
Madrid (76 en toda la Comunidad Autónoma), y en más de
50.000 personas y unas 15.000 unidades domésticas a quienes
recibían algún tipo de alimento de estas redes vecinales 63.

62 Ver <www.aavvmadrid.org/economia-empleo-y-consumo/benestar-
social/las-redes-vecinales-de-solidaridad-de-la-capital-alimentan-a-mas-
de-5-800-familias-y-mas-de-20-000-personas/>.
63 Ver <www.aavvmadrid.org/economia-empleo-y-consumo/benestar-

social/las-redes-vecinales-distribuyen-alimentos-a-mas-de-50-000-
personas-en-toda-la-region/>.
337
Cuadro 2. Redes de apoyo mutuo en Madrid

Fuente: AA.VV. Madrid (2020).


338
Hubo muchas más líneas de acción que, insistimos,
sería complicado detallar por cuestiones de espacio, pero que
pasaron por la puesta en marcha de cocinas de Escuelas de
Hostelería o comedores de Centros Escolares cerrados para
la asistencia colectiva; la asistencia a personas en situación de
calle, o el suministro de material telemático de apoyo escolar.
Y todas estas prácticas han sido reconocidas, que no
lideradas, por las administraciones públicas. Veíamos el caso
del ministerio de Sanidad y Consumo y su documento de
regulación de la redes comunitarias, que incluye la iniciativa
“Dinamiza tu cuarentena”64, de la FRAVM; pero podríamos
mencionar también la puesta en marcha de la iniciativa el
Ecosistema de Proximidad por el Ayuntamiento de Madrid,
realizada a partir de las iniciativas sobre comercio de
proximidad de las redes, o el apoyo de la municipalidad a la
conversión de la Red de Huertos Urbanos en Solidarios,
facilitando la recogida de las cosechas durante el
confinamiento. Sin embargo, es fundamental subrayar
también la dinámica contraria: la de la independencia y
capacidad de acción de las redes respecto a las instituciones
madrileñas, afectadas por años de recortes y privatizaciones,
y que se vuelve a hacer evidente en la deriva de los propios
servicios sociales hacia las redes, precisamente por su
trayectoria de lucha social y de resistência (LORITE, 2020).
Asistimos, entonces, a la inmediata puesta en práctica
de la experiencia acumulada desde la que se ha ido haciendo
barrio en los barrios durante décadas, con el sentido común
de transferirlo a quienes quieren seguir haciendo barrio en
los barrios, también en condiciones de absoluta

64 Ver <www.dinamizatucuarentena.wordpress.com/2020/03/25/listado-de-
las-redes-de-solidaridad-y-apoyo-de-los-distritos-y-barrios-de-madrid/>.

339
excepcionalidad. Y desde aquí, nos gustaría cerrar nuestra
aportación abriendo otra ventana, desde la que señalar la
relación entre las desigualdades territoriales en la ciudad de
Madrid y la fortaleza del apoyo mutuo.
Si la Comunidad de Madrid ha sido el mayor
laboratorio neoliberal del estado español, donde la crisis
económica de 2008 se ha gestionado desde la reducción de
gasto social, y con recortes en sectores clave como sanidad,
educación y servicios sociales, precisamente la desigualdad
territorial pre-existente ha marcado la respuesta a la crisis
social surgida a consecuencia de la pandemia.
Dicho en otras palabras:
La llamada diagonal, o línea de separación entre la ciudad
central y el segmento territorial compuesto por los distritos
de Latina, Carabanchel, Usera, Villaverde, Puente de
Vallecas, Villa de Vallecas, Vicálvaro y San Blas han
conformado durante décadas una periferia segregada de la
ciudad de Madrid. Territorios anejos, antes municipios
próximos que se convierten en distritos de la gran ciudad y
se ponen al servicio del crecimiento urbano madrileño(...)
De espaldas a la ciudad a la que pertenecen, pero de la que
no forman parte. Fuera de cualquier estrategia de
recuperación de unos territorios que han sido dinámicos,
generadores de beneficios a costa de sus propias
condiciones de vida.65

65Ver texto íntegro disponible en <www.aavvmadrid.org/asamblea-por-los-


barrios-del-sur-y-este/>.
340
Figura 2. Diagonal de la Desigualdad en Madrid (sobre Índice de
Vulnerabilidad del Ayuntamiento)

Fuente: AA.VV. Madrid (2020).

Si atendemos a los datos ofrecidos por el servicio


público municipal de derivación de solicitudes de Atención
social a los Centros de Servicios Sociales de los Distritos del
19 de marzo al 12 de abril de 2020, los distritos que más
derivaciones registraron fueron Puente de Vallecas, Tetuán,
Usera, Villaverde, Carabanchel y Latina, en peso relativo a su
población; esto es, los distritos más vulnerables de la ciudad,
según el índice elaborado por el propio Ayuntamiento, en

341
201966, y que, justamente, caen fuera de la diagonal de la
desigualdad de la Figura 2, excepto en un caso (Tetuán).
Estos contrastes dentro de la ciudad se reflejan también en
las 175 solicitudes totales de ayuda del distrito de Retiro
frente a las 3089 de Puente de Vallecas (distrito más
vulnerable, según el mismo indicador), y que remarcan cómo
han afrontado el colapso de los servicios sociales aquellos
distritos y barrios con mayor índice de vulnerabilidad social.
En definitiva, como vemos en la Figura 3, entendemos que
esta pandemia también ha puesto en evidencia la
territorialidad de la solidaridad y el apoyo mutuo, y su
vinculación con la desigualdad social en el caso de Madrid.
Figura 3. Madrid. La solidaridad vecinal por distritos.

Fuente: Periódico El Diario (2020).

66 Disponible en Ayuntamiento de Madrid: <www.datos.madrid.es>


342
Conclusiones
Este texto ha tratado de poner de manifiesto la
centralidad de los grupos de apoyo mutuo y redes solidarias
en el mantenimiento de la vida, en el contexto de la ciudad
de Madrid durante la crisis generada por la Covid-19. Estas
formas comunitarias de afrontar las emergencias sociales
ponen de relieve no sólo la solidez de lo colectivo en un
momento donde las medidas de emergencia se construyen
desde los derechos individuales, si no la filosofía de las
prácticas sociales en términos de auto-organización y
transformación de la realidad.
Por otro lado, hemos intentado mostrar algunas de
las prácticas de las redes en la ciudad de Madrid, en concreto,
de las ligadas al movimiento de barrios, al movimiento
vecinal y a la FRAVM (Federación Regional de Asociaciones
Vecinales), no sólo por la sistematización de datos que han
realizado durante el período del estado de alarma, si no
también para destacar la relevancia de la relevancia de la
cooperación público-social como una línea de trabajo clave
en el movimiento vecinal, frente a la hegemónica idea de la
cooperación público-privada y de la concepción de un
denominado “tercer sector” centrado en el ámbito
meramente asistencial y/o caritativo. Hablamos de la
memoria de una sociedad organizada, donde, pese a la
imposibilidad de la toma de decisiones asamblearias de
grupos numerosos y desde el distanciamiento social, la
coordinación-dirección del movimiento vecinal madrileño ha
mostrado la fortaleza de sus repertorios y dinámicas
colectivas. En ese sentido, hemos intentado remarcar
también en la capacidad de las redes comunitarias y grupos
de apoyo mutuo para construir, marcar ó definir la agenda
343
institucional, tanto en general, a nivel estatal como a nivel
municipal, en el caso del municipio de Madrid. Ciudad
inevitablemente definida por sus desigualdades territoriales y
sus contrastes en términos de vulnerabilidad, sobre los que
se superponen la espacialidad de la solidaridad como muestra
de dignidad y de transformación para huir del hambre y
afrontar una crisis social. En todo ello, como decíamos, los
repertorios y las memorias de lucha y resistencia a las crisis
sociales desde la praxis ciudadana han ido conformando un
saber organizativo sin precedentes. No se trata de pensar en
una historia de progreso y superación pero, sin duda, cuando
la movilización social se construye sobre una filosofía de la
práctica, permite que la militancia sea, además, una escuela,
un espacio para la politización.
Por último, nos gustaría cerrar nuestra contribución
imaginando un necesario horizonte de investigación que
signifique las prácticas comunitarias como formas culturales
y societales. Las prácticas en torno a la idea de comunidad se
rearticulan constante y cotidianamente, mostrando la
resistencia y la esencialidad de lo colectivo. Nuestra
propuesta es exhibirlas, desplazarlas del silencio relativo que
las relega al lugar de las solidaridades aburridas, para
proyectarlas como prácticas de transformación social, desde
las que evidenciar diferentes cuestiones de (in)justicia
socioespacial que ha actualizado esta pandemia.

Referencias bibliográficas
AMANCIO Ortega, Álvarez-Pallete y Botín, ejemplos de
solidaridad empresarial ante el Covid-19. In: El
Independiente, Economía, Madrid, 11 abril 2020.
Disponible en <www.elindependiente.com>. Acceso en 9
jul. 2020.
344
ANGULO, J.; BENGUA, J.; JIMENEZ, A.; MOLINA, J.
Madrid: Barrios 1975. Madrid: Ediciones La Torre, 1976.
AYUDAS mutuas en tiempos de pandemia. In: El Salto
Diario, Saltamontes, Coronavirus, Madrid, 24 abril 2020.
Disponible en <elsaltodiario.com/saltamontes>. Acceso
en: 9 jul. 2020.
HERNÁNDEZ VELASCO, Irene. Coronavirus en
España: las colas del hambre por la crisis de la covid-19
inundan Madrid. In: BBC News, Mundo, Londres, 25
mayo 2020. Disponible en <www.bbc.com>. Acceso em: 9
de jul. 2020.
KROPOTKIN, P. El apoyo mutuo. Un factor de la
evolución. Madrid: Ediciones Madre Tierra, 1989.
LOIS, M. Los Estados cierran sus territorios por
seguridad… pero los virus están emancipados de las
fronteras. Geopolítica(s). Revista de Estudios Sobre
Espacio y Poder, v. 11, n. Especial, 2020, p. 293-302.
LORITE, Álvaro. Las redes de cuidados de Madrid niegan
estar gestionadas por el Ayuntamiento. In: El Salto Diario,
Coronavirus, Madrid, 13 abril 2020. Disponible en
<elsaltodiario.com>. Acceso en: 9 jul. 2020.
RAMONET, I. La pandemia y el sistema-mundo. In: Le
Monde Diplomatique en Español, Ante lo desconocido,
Valencia, 25 abril, 2020. Disponible en
<www.mondiplo.com>. Acceso en: j jul. 2020.
REQUEIJO, Alejandro. Miles de personas colapsan Madrid
en coche pediendo la dimisión de Sánchez. In: Voz Populi,
Política, Madrid, 23 mayo 2020. Disponible en
<www.vozpopuli.com>. Acceso em: 9 jul. 2020.

345
SPRINGER, S. Caring geographies: The COVID-19
interregnum and a return to mutual aid. Dialogues in
Human Geography, v. 10, n. 2, 2020, p. 112-115.

346
CAPÍTULO 11

RESILIÊNCIA DA NATUREZA EM TEMPO DE


COVID-19

Evanildo Santos Cardoso

Introdução
Este texto surge de uma leitura ambiental sobre a
mudança da natureza nos últimos acontecimentos
decorrentes da pandemia de Covid-19 e também é fruto de
uma discussão a respeito do modelo de desenvolvimento
vigente que se consolidou em determinado momento da
história no qual pôde-se obter resultados da evolução
técnico-científica, mas uma separação maior do homem e da
natureza, reduzindo essa última ao aproveitamento utilitário
e consumista.
Apesar dos inúmeros problemas de ordem ambiental
o mundo tem conquistado relevantes progressos em várias
áreas da ciência em especial no que tange às tecnologias de
comunicação, na biotecnologia, e na genética. Mas de forma
contrária, tem havido uma interrupção constante dos ciclos
regenerativos da vida quando aumenta a necessidade de
recursos naturais que leva a uma fragilidade ambiental das
mais preocupantes à qualidade de vida das pessoas em todo
o mundo. Nessa preocupação, o retorno de certos cenários
paisagísticos que não haviam sido presenciados há muito
tempo, vem promover ou ressurgir reflexões a respeito da
capacidade de resiliência que a natureza ainda produz.
Para tanto, apresentamos breve discussão sobre o
significado de natureza ao longo do período da história
moderna e contemporânea, as condições para compreender
347
a resiliência e refletir sobre os impactos antropogênicos, e,
por fim, se precisamos apostar no retorno da natureza. Pela
dimensão do tema, já sinalizamos que o debate está apenas
no começo.

Os significados de natureza
Longe de cairmos na visão isolada de natureza de um
lado e homem de outro, mas tentarmos entender nosso papel
nesse novo cenário (pandemia) capaz de revisarmos o
processo de desenvolvimento econômico e social atual,
achamos salutar discutirmos a resiliência da natureza e como
podemos repensar novos valores perante essa oportunidade
que nos é dada, apesar de muitas perdas de vidas humanas.
Nesse sentido, as águas cristalinas, o ar mais puro, as
montanhas e serras, agora visíveis, chamam a atenção do
público em várias regiões como algo quase surreal. A que
devemos isso? É possível perceber sinais da resiliência da
natureza quando diminuem os esforços aplicados sobre seus
componentes?
Esses sinais podem proporcionar o desenvolvimento
de uma reflexão acerca do que entendemos sobre sociedade
de consumo, economia de mercado, degradação ambiental,
progresso e prosperidade, guerras, doenças, pobreza? Os
questionamentos apontam a necessidade de projetar novos
cenários pós Covid-19 que possam dar sentidos e valores
sobre a interação natureza e sociedade capazes de realinhar
posturas, compreender processos e manter à disposição de
todos um mundo saudável.
Em determinado momento da história a noção de
mundo natural se contrapõe ao mundo humano, ou seja,
tratou-se a natureza de forma separada da espécie humana a
partir do método sistemático de classificação próprio das
348
ciências exatas e naturais. Na verdade, a ciência construiu por
meio de leis e teorias uma concepção de natureza passiva e
apartada de uma relação dialógica com o homem ou a
sociedade.
Surgem então os binômios homem-natureza,
sociedade-natureza, homem-meio, objeto-sujeito e outras
divisões forjadas pela experiência cientifica em promover a
taxonomia da vida e das relações. Esse rigor científico se
fortalece nas leis da Física clássica com Isaac Newton, mas
não só ele, Descartes, e o método, contribuem com a
formação de uma sociedade liberal moderna onde as
dicotomias são aceitas e reproduzidas. Gonçalves (2011),
trata dessa questão destacando que a natureza dos gregos
possuía uma compreensão diferente da que se consolidou no
mundo moderno e contemporâneo. Na era pré-socrática as
interpretações atentam para uma natureza única entendida
como totalidade e integrada com os deuses e presente em
todas as formas de vida. Destaca o mesmo:
Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser e a
partir da physis pode então chegar a uma compreensão da
totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas
particulares, do homem e da verdade, do movimento e da
mudança, do animado e do inanimado, do comportamento
humano e da sabedoria, da política e da justiça
(GONÇALVES, 2011, p. 31).

Assim, tudo o que existe tem sentido na visão dos


gregos pré-socráticos quando natureza e homem se
interligam como unidade e totalidade não havendo distinção
e separação da essência e do real significado, mas sim o da
própria existência. Todavia, o desenrolar de acontecimentos
que mudaram o sentido da concepção filosófica de natureza
passa por três questões que o mesmo autor adiante enfatiza:
a primeira, a desqualificação do pensamento pré-socrático
349
como pensamento mítico e não filosófico. A segunda, o
caráter desumanizado da natureza e a terceira, quando
refletimos, novamente em momento de crise como a
pandemia, o papel da natureza frente às alterações ecológicas.
Seguindo a reflexão proposta por Carlos Walter
Porto Gonçalves com o advento do cristianismo a influência
judaico-cristã fortalece a ideia de um Deus onipotente sobre
todas as coisas e o homem é sua semelhança. No campo da
separação, Deus controla as ações humanas e a partir daí
determina a distância entre espirito e matéria entre um ser
superior e um mundo imperfeito. A partir dessas concepções
tão presentes na idade média é que a ciência se transforma
em experiência, em empirismo e passa a explicar tudo a partir
de métodos cartesianos, tudo vira objeto. Homem, guiado
por uma necessidade de explicação para uso prático com
poder de decidir o que deve ser estudado ou descartado já
que é semelhança de Deus.
No desenrolar dessa separação há uma forte
associação entre utilitarismo, pragmatismo,
antropocentrismo, mercantilismo visto que a expansão
comercial do capital se torna evidente e a filosofia pré-
socrática passa a ser apenas algo mítico, pouco ou nenhum
sentido para as aspirações de uma sociedade mercantil. O
capitalismo comercial segue promovendo e incentivando
novidades e corrobora com a Ciência como uma visão cada
vez mais objetiva da natureza presente em especializações, na
Física, na Biologia, Química, mas também na Economia,
Sociologia e Psicologia.
Os séculos XVIII e XIX na história universal são
marcos importantes de conhecimento e descobertas
cientificas das mais importantes, porém com força suficiente
para reduzir a subjetividade e o pensamento filosófico à

350
matéria e à técnica. As ciências se separam e separam o
homem da natureza.
A busca de uma separação homem-natureza ignora a
sociabilidade entre grupos culturais e a adaptação aos
diferentes ecossistemas posto que o homo sapiens e a sua
evolução se deu a partir dessa coevolução com outros seres.
Assim, a partir do final do feudalismo e inicio do capitalismo
surgiu uma forçada ideia “isso é natural” como sendo algo
para se justificar o status quo, e manter as desigualdades
sociais. O que levou ao homem ser compreendido como
individuo, tal como é dissecado o corpo do animal, o átomo,
a molécula, uma concepção atomístico-individualista
pertence a uma lógica e a uma ordem do Estado que prega a
liberdade individual (GONÇALVES, 2011).
A sociedade evolui de diversas maneiras e a tentativa
de separar natureza (desumanizada) e homem ignora a
subjetividade e paixões, apenas entendida como
propriedades do segundo. A interpretação equivocada da
teoria da evolução de Darwin também promove a concepção
da individualidade, da competição, e da seleção natural na
economia, nas relações e na predação dos recursos naturais.
A partir da segunda metade do século XX, o caráter
mecanicista da Ciência foi mais fortemente questionado
como um problema de ordem ambiental e ético. Essa fase, e
ainda nos dias atuais, é caracterizada pela crítica da
insustentabilidade dos modelos de desenvolvimento a
qualquer custo e sobre a sociedade de consumo. Grupos de
ambientalistas, muitos deles cientistas, como Raquel Carson,
denunciaram a indiscriminada aplicação de agrotóxicos, e o
fizeram também com a poluição, o desmatamento, a caça, ao
mesmo tempo em que se organizaram movimentos
ecológicos e ativistas em busca de outra perspectiva de

351
conservação da natureza contrários a uma ideia de progresso
que tomou corpo no pós-guerra.
A mudança do paradigma reducionista da Ciência
vigente desde o século XVI para um pensamento
ambientalista gerou uma revolução que não ficou somente
na ciência e política mas também na arte e cultura. Com isso,
a crise ambiental oferece uma indicação para a urgência de se
acelerar o processo de construção do novo paradigma
alternativo (MATEO e SILVA, 2009) no qual foram
elaboradas diferentes concepções que fugiam da explicação
fácil e calculada dos fenômenos da natureza e da sociedade.
Com as conferências das Nações Unidas de
Estocolmo em 1972 e a Rio-92 a necessidade de repensar o
modelo de desenvolvimento em curso toma corpo e
inúmeras outras reuniões científicas foram/são realizadas
para ajustar o discurso com uma leitura da
(in)sustentabilidade.
Boff (2008) alerta para a crise ambiental que vivemos
atualmente de maneira crítica e preocupada com as novas
gerações. Seu pensamento é interligado com o holismo onde
todos saberes precisam estar a serviço da vida no planeta.
Chama atenção, que:
É importante desenvolver uma compreensão
interdisciplinar, o que exige também uma atitude de
relacionar tudo para trás: ver as coisas em sua genealogia,
pois elas conhecem uma longa história de bilhões de anos
até chegar à forma atual. Com isso se evitam visões
ingênuas, fixantes e fundamentalistas. Exige-se igualmente
uma visão para a frente: todas as coisas, como tiveram
passado, têm também futuro e direito ao futuro (BOFF,
2008, p. 26).

Esse todo integrado demonstra que a natureza é


resultado de evoluções de longo tempo cujas espécies se
352
relacionam umas com as outras desde as partículas pequenas
ao sistema universal como uma teia infinita de relações da
vida. A solidariedade entre gerações e com as gerações que
ainda não nasceram evita o imediatismo e promove uma
responsabilidade ética e espiritual. Tal leitura tem sua base de
fundamentos na ecologia, não somente enquanto ciência da
casa/oikos mas profundamente marcada pela capacidade
humana de reverter os problemas crônicos de nossa
civilização.

Resiliência da natureza e análise sistêmica


A resiliência é a capacidade do sistema de retornar às
suas condições originais após ser afetado por distúrbios
externos. O sistema é considerado mais estável à medida que
apresentar a menor flutuação ou recuperar-se mais
rapidamente (CAMARGO, 2005). Apesar da origem
etimológica desse conceito ser sempre atribuído às ciências
exatas, como a Física, nas ciências humanas está bem
consolidada em especial na psicologia ao tratar da condição
de saúde das pessoas frente aos distúrbios externos, de
ordem psíquica. Não ocorre do dia para a noite, mas é uma
oportunidade para o desenvolvimento de outras
potencialidades do indivíduo.
Se, anteriormente, a Ciência dava respostas prontas e
acabadas, apesar da relatividade de Einstein, os produtos e os
resultados alcançados não são mais aceitos como certezas
sincrônicas de uma realidade pouco conhecida e, portanto,
possível de ser interpretada sob diversas perspectivas de
análise. Já se delineava, a partir das décadas de 1950 e 1960,
a Teoria Geral dos Sistemas pelo biólogo Ludwig von
Bertalanfy, na qual os sistemas atuam dentro de uma

353
organização e que o todo é sempre maior que a soma de suas
partes, gerando assim, a noção de totalidade, ou seja,
Esses processos estariam relacionados às constantes
dinâmicas de fluxos internos e externos de energia e matéria
a que se submete um sistema aberto, e que interferem no
comportamento interno de seus componentes, levando ou
à manutenção do mesmo por resiliência e resistência, ou à
geração de novos padrões de organização irreversíveis
(CAMARGO, 2005, p. 153).

No geral, esses conceitos fazem parte de uma


revolução cientifica que trouxe novos olhares sobre o
comportamento da matéria e energia. Dessa forma,
repercutiram as concepções da Teoria da Complexidade, a
Ideia de Gaia, a Doutrina do Caos e Fracassos e, em essência,
a visão dialético-sistêmica da sociedade e da natureza
(MATEO e SILVA, 2009).
O modelo cartesiano-matemático, deu lugar, ou pelo
menos tem sido questionado quanto a aceitação dos
fenômenos por uma leitura parcial. A incerteza, a
probabilidade, o caos, a ordem e desordem são mais do que
terminologias e reorientam o sentido das pesquisas
referentes à organização dos sistemas de matéria e energia, a
partir das décadas de 1950 e 1960.
Para tanto, em um dado sistema da natureza certos
mecanismos importantes mantém a estrutura e hierarquia das
unidades para que o todo funcione com uma finalidade
específica. Um exemplo mais prático é a bacia hidrográfica
que possui entrada de matéria, energia e informação (MEI) e
está sujeita às interferências antrópicas com maior ou menor
grau de intensidade: uma represa, um desvio do rio,
assoreamento, rejeitos de mineração, dentre outros esforços
aplicados.

354
As respostas que esse sistema frente às alterações
antrópicas ou de ordem natural dependerá da resiliência e
capacidade de se auto-organizar. Para isso, leva tempo, grau
de interconectividade dos subsistemas (solo, vertente,
encostas), fragilidades naturais da rocha e vegetação, que
poderão responder mais rapidamente ou mais lentamente
aos distúrbios externos (Figura 1).
O sistema quando afetado por distúrbios externos
pode alcançar a resiliência (auto-organização) ou quando o
sistema permanece sem ser afetado ocorre a resistência.
Determinadas paisagens podem adquirir estabilidade com
essas duas condições que estão dependentes da característica
funcional do conjunto biótico e abiótico e das forças
atuantes/forças controladoras existentes.
Figura 1. Reação de um geossistema perante a imposição de um
esforço ou tensão.

Fonte: Mateo et al., (2004).

355
Pode-se perceber no exemplo de sistema da figura
anterior que ao aplicar um esforço sobre um geossistema, o
mesmo pode ser eliminado com o tempo, por exemplo, as
consequências de um desmatamento, e posteriormente
ocorrer uma restauração do sistema. Porém, caso o esforço
permaneça sendo aplicado, o sistema tenderá a ultrapassar o
seu limiar e se tornar mais frágil, mais vulnerável e pode
perder sua capacidade de restauração e regeneração. Um
novo equilíbrio dinâmico é restabelecido, todavia, sem a
estabilidade inicial, o que pode gerar paisagens fortemente
instáveis, tal como caracteriza Tricart (1977).
Quando a natureza e a paisagem são modificadas e
perdem sua capacidade original de estabilidade, o mecanismo
natural de autorregulação é alterado (MATEO et al., 2004)
forçando uma diminuição do potencial produtivo. Essas
paisagens dotadas de níveis de estabilidade passam por
prolongados períodos de recuperação quando sujeitas às
pressões tecnogênicas capazes de produzir uma
irreversibilidade devido ao grau de atividade humana
empregada.
Conforme Mateo et al., (Idem):
O homem não modifica as leis da natureza, mas muda de
forma significativa as condições de sua manifestação. A
interação natureza/sociedade tem um caráter complexo,
contraditório, múltiplo e histórico. A organização racional
da atividade produtiva e social exige o conhecimento das leis
naturais (p. 155).

No momento atual de pandemia estudar a natureza e


suas limitações diante da velocidade da tecnologia é
fundamental. A racionalidade econômica tem se sobressaído
diante da racionalidade ambiental (LEFF, 2006). As causas
são profundas e históricas em um processo de readaptação
do sistema capitalista mundial quando surgem novas
356
possibilidades de exploração da cultura, do consumo, das
forças criativas, das massas de trabalhadores.
Atualmente, prevalece uma drástica desterritorialização, que
é consequência de um modelo de desenvolvimentismo
econômico imposto à força. Este modelo foi construído,
quase sempre, à custa da miséria e ruína de muitos territórios
e sociedades. Isto leva dentro de si o germe da
desorganização traumática do ambiente humano, dos
espaços e territórios a diversas escalas (MATEO e SILVA,
2009, p. 47).

Se a crise pandêmica revela o antropocentrismo


predatório sobre a natureza, seja no Ocidente ou Oriente, de
forma explicita e cruel, também demonstra a fragilidade dos
sistemas de saúde e de previdência mesmo em países que
alcançaram há muito tempo bons níveis de desenvolvimento
econômico. Claro que os mais pobres são os mais afetados,
apesar do coronavírus não escolher quem vai contaminar por
classe social uma vez que todos estão sujeitos a contrair a
doença. Porém, os mais vulneráveis, novamente, encontram-
se em situação complicada pois dependem de atuação
política comprometida com a vida em primeiro lugar.
Voltamos às preocupações de Boff (2008) sobre o
futuro do planeta quando o mesmo denuncia que o modelo
desenvolvimentista não cessa com a degradação da natureza
e nem dá trégua pois está a serviço de um segmento
privilegiado da sociedade. Sob novos formatos de exploração
a natureza não consegue se recuperar pois esse modelo
produz, nas palavras do autor, um pecado social (ruptura nas
relações sociais) e um pecado ecológico (ruptura das relações
do ser humano com o seu meio ambiente).

357
Água, ar, animais: o retorno da natureza?
Esse subtítulo pode parecer contraditório pelo que já
apresentamos até aqui. Na verdade, a natureza é uma
invenção humana, estamos convencidos. Acontece que a
pandemia da Covid-19 acendeu uma faísca de esperança
quanto à busca por uma postura ética frente a essa
representação simbólica e ao mesmo tempo material, fonte
de recursos, e de tanta especulação de ordem financeira
característico de um século XXI cujas raízes estão muito
ligadas ainda na ideia de progresso e prosperidade.
As respostas às questões elaboradas na primeira parte
desse texto podem ser encontradas na reflexão de uma
natureza que teima em renascer das cinzas no meio do caos
e da desordem, agora, do ponto de vista político. A pandemia
tem comprovado que não estamos protegidos pelo bem-
estar social que outrora foi defendido por variados países e
políticos e que resulta numa enorme frustração ou sensação
de fracasso.
Santos (2000), ao desenvolver um pensamento sobre
a globalização chega a constatar que esse mundo é daqueles
que pensam com o poder da técnica e da transformação
artificial das coisas. Da democracia do mercado cujo dinheiro
é uma informação indisponível e ainda: “Das promessas que
as técnicas contemporâneas pudessem melhorar a existência
de todos caem por terra e o que se observa é a expansão
acelerada do reino da escassez, atingindo as classes médias e
criando mais pobres” (SANTOS, Idem, p.118).
Layrargues (2006) ao refletir sobre educação
ambiental e reprodução social expressa o efeito generalizante
sobre o causador da crise ambiental ser muitas vezes
atribuído à “humanidade”. Concordamos com essa assertiva
pois ficam de fora, portanto, as grandes corporações que
358
exploram minérios e água potável bem como governos
coniventes e parceiros da desigual distribuição de recursos.
Deixa claro, então que:
Assim, a repartição dos benefícios (a geração de riqueza) e
prejuízos (a geração de danos e riscos ambientais) do acesso,
apropriação, uso e abuso da natureza e recursos ambientais
em geral, através do trabalho na sociedade capitalista, é
sempre mediada por relações produtivas e mercantis, e
como tal, está sujeita à assimetria do poder nas relações
sociais, expondo ao risco ambiental os grupos sociais
vulneráveis às condições ambientais em processo de
degradação (como as populações marginalizadas nos
centros urbanos), ou dependentes de recursos naturais em
processo de exaustão (como as populações indígenas e
extrativistas) agravando a já delicada situação de opressão
social e exploração econômica a que tais grupos sociais são
impostos pelos setores dirigentes (LAYRARGUES, 2006, p.
81).

A fragilidade desse tecido social vem resgatar


princípios mais solidários na crise atual ou pelo caminho que
Boff (2008) nos convida a refletir:
Que tipo de sociedade queremos? Mais participativa,
igualitária, solidária, capaz de combinar a fantasia com a
razão analítica, a imaginação com a lógica, a técnica com a
utopia; finalmente, uma sociedade mais integrada à
natureza? Para as populações marginalizadas (nos países
periféricos elas são maioria), qual o significado de dizer que
os alimentos devem estar isentos de agrotóxicos, quando
nem comida elas têm? (BOFF, 2008, p. 39).

Essa reflexão lembra o momento atual de isolamento


em quarentena no qual o acesso a álcool gel e água são
recursos também pouco acessíveis aos mais fragilizados.
Nesse sentido, para uma ecologia social que possa conceber
natureza, homem e Terra como um só corpo é necessário
que compreendamos: a crise ambiental é uma crise de
359
sociedade e, segundo Leff (2006), uma crise de civilização.
Para combater efeitos dessa crise esse autor defende:
(a) Pensar o homem como indivíduo e as formações
sociais como populações biológicas inseridas no
processo evolutivo dos ecossistemas, bastante
similar às ideias de Leonardo Boff;
(b) Metodologizar a ecologia como disciplina por
excelência das inter-relações reconstruindo um
ecossistema global por diversos ramos do saber;
(c) Uniformizar os níveis ontológicos do real por meio
de uma Teoria Geral de Sistemas, levando em
consideração diferentes leituras das ciências e da
origem do ser;
(d) Legitimar e orientar a produção de conhecimento
por meio da eficácia e eficiência sem fissuras, sem
divisões;
(e) Confundir os níveis e as condições teóricas para a
produção de conhecimentos interdisciplinares sobre
os processos materiais que confluem em sistemas
socioambientais, com a aplicação e integração de
saberes técnicos e práticos no processo de
planejamento e gestão ambiental;
(f) Reduzir o estudo das determinações estruturais e
dos sistemas de organização dos diferentes ordens
de materialidade do real, a uma energética social, a
um cálculo de fluxo de matéria e energia, que
embora seja útil tanto num esquema integrador
transdisciplinar como também na avaliação do
potencial produtivo dos ecossistemas e de certas
práticas culturais, não se constitui no princípio
último de conhecimento sobre a organização dos
processos ecológicos e econômicos, das relações
entre a natureza, a técnica e a cultura.
360
O fato da China ter sido o epicentro da contaminação
pela Covid-19 mostra que a aproximação com a natureza,
alterando via consumo de animais exóticos, não é
exclusividade de um modelo econômico judaico-cristão que
tende a fragmentar o saber ambiental. Em todo o mundo,
portanto, ao longo da história humana no planeta, a escassez
dos recursos e a degradação do meio ambiente combinam-se
com populações em rápida expansão (SOUZA, 2009). Tal
argumento da autora critica a ideia capitalista de utilização da
natureza como mercadoria atribuída apenas ao mundo
Ocidental.
A prática cultural de domesticar animais e cultivar
plantas e de consumi-las tem sido o pivô da discussão atual
quando se especula sobre a origem do coronavírus. Cientistas
buscam explicações sobre sua disseminação que criou a
pandemia e ceifado vidas. De forma reducionista e até um
pouco desrespeitosa e fruto de desconhecimento tem sido
comum disseminar falsas informações sobre muitos temas e
sobre a pandemia que afeta a todos. Na verdade, a China não
criou vírus em laboratório. Isso está associado muito mais
pelo fato histórico, em especial, nas décadas de 1950 e 1960,
e sob o regime comunista, sua população ter passado por
inúmeras dificuldades para consumir alimentos.
Como consequência, os animais silvestres passaram
a fazer parte da culinária local de várias cidades. Doenças
zoonóticas estão se tornando comum em nosso meio pois
animais com seu histórico genético desconhecido pelo
homem e pela ciência passaram a fazer parte do consumo
humano cuja cultura reforçou sua prática e comercialização.
Isso é mais um exemplo da imposição humana sobre
a natureza afastando qualquer barreira existente entre outros
seres vivos ecologicamente diferentes, com outras formas de
361
viver e se reproduzir. Um antropocentrismo cego,
predatório, e catastrófico associado com sistema político
obsoleto gerador de pobreza e de exploração do homem e da
natureza apesar de toda conquista econômica alcançada
pelos chineses.
Determinados vetores de autorregulação da natureza
nesse momento de pandemia vêm de três fontes
essencialmente importantes para a vida: a águas, o ar, e os
animais. São neles que podem ser percebidos alterações
antrópicas com baixo ou alto nível de complexidade. As
águas e o ar, sobretudo, disseminam, transportam e
concentram desde nutrientes a compostos de gases que
equilibram os sistemas antroponaturais pela capacidade de
dispersão, fluidez e rapidez de propagação. Por isso,
possibilita rápido diagnóstico pela observação. Exemplos,
são a mudança na cor das águas fluviais em tempos de chuva,
a dissolução de componentes físico-químicos, a suspensão de
material nas camadas superficiais, dentre outras alterações.
O ar, composto por oxigênio, nitrogênio, partículas
de poeira, aerossóis, podem concentrar níveis de poluição
por dióxido de carbono além do permitido, principalmente
em regiões muito urbanizadas e industrializadas, o que leva a
um aumento de enfermidades respiratórias na população.
Não é à toa que a Cordilheira do Himalaia só pôde
ser vista do lado da Índia após trinta anos devido à crescente
industrialização da China e consequentemente poluição do
ar (Figura 2). Na redução do fluxo de pessoas com a
pandemia e de um freio da produção industrial nesses
últimos meses, pôde-se, enfim, contemplar a paisagem e nela
poder perceber, além da aparência, a complexa fase do capital
e da relação sociedade-natureza.

362
Figura 2. Himalaia visto ao norte da Índia.

Fonte: Folha de S. Paulo (2020).

As águas de Veneza, cidade italiana conhecida


mundialmente pelos passeios por gôndolas que atraem
principalmente os casais apaixonados, também passou por
uma espetacular mudança repentina. As águas mais
cristalinas revelaram que o turismo, longe de ser uma
indústria que não polui, impacta de forma intensa a natureza
e mascara a paisagem, forjando uma constante harmonia
com os visitantes (Figura 3).

363
Figura 3. Canal de Veneza com aves e águas menos poluídas.

Fonte: Revista Fórum (2020).

Nesse cenário é importante observar que a


concepção de natureza intocada que Diegues (1996) faz
menção só existe na ideia cristã de paraíso selvagem pois
esses lugares turísticos (ALMEIDA, 2003) que concentram
belezas naturais estão sob constantes pressões apesar da
diminuição de visitantes devido a pandemia.
Os animais têm demonstrado que há uma relação
muito estreita com a presença humana em determinados
lugares do mundo. Surgem golfinhos, cervos, pássaros, que
pouco se via e começam a reaparecer devido a diminuição do
fluxo de pessoas tanto em ambientes urbanos como em
ambientes rurais, recreativos, ou de lazer. Essa é a chave para
364
podermos revisar nosso sistema de representação sobre a
natureza ainda muito caracterizada como exótica.
A natureza se faz presente numa constante dialética
com essa sociedade, não a desumanizamos, pois precisamos
continuar a coevolução, possivelmente numa compreensão
do que Figueiró (2019) chama de paisagem-geo-biocultural.
No tocante ao entendimento da paisagem como sujeito da
cultura, o mesmo autor considera que ambas são frutos de
processos adaptativos que os grupos humanos produzem ao
longo do tempo e que “a estética da natureza e a estética da
cultura, são, assim, indissociáveis na paisagem cultural daí
derivada”, (FIGUEIRÓ, Idem, p. 182). O que não invalida
entender que a cultura pode ser adaptada, reinventada,
suprimida sua prepotência de achar que pode tudo, que é
assim, que é “cultural”, como consumir animais
desconhecidos.
Não faltam oportunidades de integração do homem
à natureza a partir de filosofia oriental e religiões que buscam
centrar o espirito humano às energias que fluem do natural.
O Budismo, o Taoismo, bem como movimentos alternativos
no ápice da industrialização e da Guerra Fria mostraram
outra dimensão integrativa com os ciclos naturais. Embora o
Oriente tenha sido tomado ao longo das últimas décadas por
uma busca por crescimento econômico e novos padrões de
consumo tal como no mundo ocidental pode-se acreditar
que outras filosofias e politicas venham corroborar para a
mudança de percepção sobre nós e o planeta nesse estágio
de crises em que vivemos.

Considerações Finais
O tema proposto nessa discussão é um ensaio teórico
quanto aos efeitos da pandemia e envolve certa expectativa
365
quanto a abertura para um novo pensamento sobre o
presente e o futuro da humanidade. O otimismo com pés no
chão deve prevalecer se queremos realmente produzir na
sociedade algo significativo em termos de ética,
solidariedade, respeito à todas as formas de vida. Pois “não
temos o direito de destruir o que nós não criamos” (BOFF,
2008, p. 46). Deve perpassar sempre incialmente por
questionamentos sobre que tipo de cidades queremos, quais
as relações humanas e Ciência podem ser estabelecidas, e
quais serão os modelos de desenvolvimento a seguir, ou não
seguir. A História já nos contemplou com avanços
consideráveis na Ciência, nas comunicações, na medicina,
nos transportes, mesmo assim, esse desenvolvimento foi
gerador de exclusões e principalmente de separação homem
e natureza.
A pandemia trouxe-nos uma possibilidade de
enfrentar esses tabus que se tornaram cristalizados sobre a
dominação da natureza, do progresso e do “vencer” na vida.
Estávamos crentes que a qualidade de vida dos países ricos
se explicava pela sua condição financeira ajustada capaz de
suportar adversidades sociais. O mesmo ocorre quando
olhamos para os crescentes índices econômicos da China
comunista. Seguimos um caminho, modelo e pensamento
errados. Será que podemos corrigí-lo? A natureza é a força
promotora dessa possível mudança utópica, porém essencial
e positiva pois não há outro sentido para a vida na Terra sem
a aliança com o homem.
A resiliência da natureza pode acender uma luz sobre
essa incerteza que paira sobre o futuro da humanidade nessa
fase de isolamento social. Também podemos correr o risco
de incentivar maior exploração já que a natureza se
autorregula e alcança sua estabilidade frente a novos
impactos. Porém, acreditamos que não há lugar para o
366
predomínio da ignorância frente à saúde e do bem estar em
um momento tão grave.
O epicentro da Covid-19 ocorreu na China e tem
causado um desastre humanitário dos mais impactantes na
história mundial. Além disso, o enfrentamento diferenciado
ao coronavírus pelas autoridades é uma das principais causas
para o crescimento de casos de contaminados devido à
supervalorização da economia que não pode parar de crescer
relegando a segundo plano o direito à vida.
Os contextos sociais são diferentes e complexos para
determinados grupos e setores da sociedade que atribuem
valoração à natureza conforme suas necessidades e
condições socioeconômicas. Por isso é necessário ter justiça
social e ambiental que construa uma solidariedade entre os
povos, uma maior igualdade no acesso aos produtos da
natureza e à tecnologia com respeito aos saberes ambientais.
Estaremos, enfim, justificando a razão de nossa existência
nesse mundo.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, M. et al. Paradigmas do Turismo. Goiânia:
Alternativa, 2003.
BOFF, L. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio
de janeiro: Record, 2008.
CAMARGO, L. A ruptura do meio ambiente:
conhecendo as mudanças ambientais do planeta através de
uma nova percepção da ciência. A Geografia da
Complexidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
DIEGUES, A. O mito moderno da natureza intocada.
São Paulo: HUCITEC, 1996.

367
FIGUEIRÓ, A. Memória, Cultura e Resiliência na
compreensão da paisagem do Pampa: contribuição para
uma Geografia integradora. GOMES, I. (Org.). A
produção do conhecimento geográfico. Ponta Grossa:
Atena, 2018, p. 179-194.
GONÇALVES, C. Os (des)caminhos do meio
ambiente. São Paulo: Contexto, 2011.
HIMALAIA fica visível para Índia após quarentena contr
coronavirus derrubar poluição. In: Folha de S. Paulo,
Coronavírus, São Paulo, 9 abril 2020. Disponível em
<www.folha.uol.com.br>. Acesso em 12 mai.2020.
LAYRARGUES, P. Muito além da natureza: educação
ambiental e reprodução social. LOUREIRO, Carlos
Frederico B. LAYRARGUES, Philippe Pomier; CASTRO,
R. (Org.). Pensamento Complexo, dialética e educação
ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p. 81-99.
LEFF, E. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez,
2006.
MATEO RODRIGUEZ, J.; SILVA, E. Educação
Ambiental e desenvolvimento sustentável: problemática,
tendências e desafios. Fortaleza: Edições da Universidade
Federal do Ceará, 2009.
MATEO RODRIGUEZ, J. et al. Geoecologia das
paisagens: uma visão geossistêmica da análise ambiental.
Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, 2004.
QUARENTENA faz vida animal ressurgir nos canais de
Veneza. In: Revista Fórum, Coronavírus, São Paulo, 20
março 2020. Disponível em <www.revistaforum.com.br>.
Acesso em: 12 ma1. 2020.

368
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
SOUZA, R. Concepções de natureza e tendências do
ambientalismo: contribuições ao debate geográfico entre
ambiente e paisagem no Brasil. Geonordeste, n. 2, ano XX,
2009, p. 133-153.
TRICARD, J. Ecodinâmica. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 1977.

369
370
CAPÍTULO 12

PROCESO DE INCORPORACIÓN DEL SISTEMA


KOBOTOOLBOX EN EL CONTEXTO DEL
TRABAJO COMUNITARIO DE SALUD EN
TERRENO (CHUBUT, ARGENTINA)

Juan Manuel Diez Tetamanti


María Alejandra Saavedra

Introducción
La llegada de la Covid-19 a la escena laboral fue en
todos los casos impactantes. Las transformaciones
estresaron tanto el tiempo y el uso de espacio, como las
dinámicas de producción; las jerarquías atravesadas por
espacios físicos. Entre los grandes cambios, se impone lo que
Bifo (2017) denomina como cybertiempo, que implica la
habilidad de la atención social para procesar información y
aplicar labores a tiempo de modo orgánico, cultural y
emocional. En contraposición a la noción infinita de
cyberespacio; el cybertiempo muy limitado.
Las horas frente a pantallas se duplicaron en algunos
casos, con respecto al periodo inmediato y anterior a la
pandemia (WINTHER, 2020). En lo laboral, algunos
empleos pasaron de una semivirtualidad, a la virtualidad total,
como el caso de la docencia en todos los niveles; mientras
que otros mantuvieron sus presencialidades con reducciones
horarias. En el sector de salud, hubo un incremento en las
demandas laborales, que en casos como en el que se
presentamos, se asociaron problemas en el sistema de salud
en relación al pago de salários (TÉLAN, 2020),

371
disponibilidad de recursos y sistematización de la
información.
En Chubut, la figura del Trabajador Comunitario de
Salud en Terreno (ex-agente sanitario), fue profesionalizada
en 2009 (a través de la creación de la Tecnicatura Superior
nn Gestión de Salud Comunitaria) y forma parte del sistema
de salud. Entre las funciones establecidas en sus normas
fundantes se indica que el Trabajador Comunitario de Salud
en Terreno “Debe favorecer la construcción conjunta con la
población del conocimiento sobre cómo se reproduce el
proceso salud-enfermedad en los grupos sociales, qué le
sucede a los individuos de una población, cuándo, dónde y
sobre cuáles son los factores de protección con los que
cuenta la comunidad así como los factores de riesgo a los que
está expuesta. A partir del intercambio de conocimientos
entre la comunidad y el sistema de salud se busca generar
procesos de transformación en ambos sectores que
favorezcan el desarrollo de autocuidado y autogestión por
parte de los sectores comunitarios”67.
En este contexto formal, atravesados por un sistema
de jerarquías, los trabajadores comunitarios de salud en
terreno, abordan una labor de acompañamiento, seguimiento
a través de visitas sistemáticas a las familias, tanto en áreas
urbanas como rurales de la provincia de Chubut. Así, el
conocimiento que poseen sobre las condiciones
poblacionales es esencial, al tiempo que funcionan de nexo
entre otros profesionales de los CAPS (Centros de Atención
Primaria de la Salud), Puestos Sanitarios y Hospitales en las
distintas localidades. Algunas publicaciones respecto a este
espacio profesional pueden encontrarse en Escudero (2013),

67Normas Provinciales del Trabajador Comunitario de Salud en Terreno,


Provincia de Chubut (2007).
372
Chanampa y otros (2015), Barría Oyarzo. (2020), Diez
Tetamanti y Armesto (2016) y Diez Tetamanti (2020).
El trabajo que aquí presentamos, recupera el proceso
de apropiación de una herramienta para la recopilación y
gestión de datos estadísticos sanitarios, en terreno desde
marzo de 2020: KoboTollbox. En este sentido, lo que se
propone aquí es la socialización de un derrotero producido
en un grupo de Trabajadores Comunitarios de Salud en
Terreno (en adelante “trabajadores comunitarios”), desde la
iniciativa de una de las autoras de este artículo y ante la
necesidad relevar, acompañar y producir datos estadísticos,
referentes a diferentes tópicos vinculados al proceso de
emergencia de Covid-19 en una región de la provincia del
Chubut; Argentina. Posteriormente se presentan los
diferentes tipos de instrumentos creados, transferencias a
instituciones y posibles perspectivas a futuro, desde el énfasis
de articular esfuerzos.

Contexto problemático
El escenario de trabajo de las/los trabajadores
comunitarias/os tiene dos puntos clave. El primero es el
“terreno”, que implica la ejecución de las tareas desarrolladas
de relevamiento, monitoreo y acompañamiento, fuera de los
CAPS, Puesto Sanitario u Hospitales. Esto implica que la
tarea se produce escencialmente realizando visitas
presenciales a diferentes viviendas. Por otro lado, el
componente que acompaña esta tarea, es el formulario
denominado “planilla de familia”, que se utiliza para el censo
y/o relevamiento en las llamadas “rondas sanitarias” (4
rondas al año) realizadas por los trabajadores comunitarios
regularmente, en donde se visitan según requiera cada
familia. Estas planillas de familia, están impresas en papel y
373
son parte del registro que engloba la información que cada
trabajadora comunitaria compone. A su vez, en cada
vivienda visitada, los trabajadores comunitarios
censan/relevan cambios en los datos sociodemográficos,
realizan el control de libretas sanitarias para corroborar la
vacunación de todo el grupo familiar, seguimiento de
controles de embarazadas, Controles de salud, etc. Además
de realizar tareas de prevención, promoción y educación para
la salud. Este sistema, como ya hemos mencionado en
(DIEZ TETAMANTI et al., 2018) forma parte de una
instrumentación poco práctica para la gestión de la
información, dado que los datos recabados son
posteriormente informados mediante planillas de síntesis que
producen una pérdida de la información primaria.
Ante esto, entre 2014 y 2016 desde el Grupo de
Investigación Geografía Acción y Territorio estuvimos
abocados al desarrollo del sistema App+Salud. La propuesta
pretendía informatizar la tarea de relevamiento y monitoreo
de modo que la información pudiera ser regionalizada,
localizada y geo-localizada. Este proyecto quedó en fase de
desarrollo beta, pero todo el proceso de creación del sistema
fue acompañado por las trabajadores comunitarios, de modo
que la propia experiencia de los registros quedara implicada
en el acto creativo de la aplicación. Así, como anteriormente
relatábamos, el desarrollo de App+Salud, fue “en sí mismo
un proceso de experiencia implicada y compartida entre
sujetos diferentes, lugares diferentes, prácticas diferentes y
profesiones diferentes. En esencia, desde una perspectiva
deleuziana, es la diferencia puesta en diálogo y sus fuerzas en
resistencia, que se pone a producir elementos nuevos, a partir
de su propia complejidad rica en sí misma, desde la
multiplicidad (DIEZ TETAMANTI, ROCHA et al., 2018, p.
125).
374
A partir de lo anterior, se realizaron varias jornadas
de capacitación y ajustes de la aplicación App+Salud en la
provincia del Chubut. Desde estos espacios, desde el
GIGAT se establecieron fluidos diálogos con las
trabajadoras comunitarias, a partir de los cuales también se
generaron otras propuestas, como la de intercambios de
experiencias de Trabajadores Comunitarios de salud en
Terreno de 2014 y 2019 (DIEZ TETAMANTI y
ARMESTO, 2016; DIEZ TETAMANTI, HEREDIAS et al.,
2019).
Relatamos todo este proceso como antesala de la
reescritura del vínculo entre los trabajadores comunitarios y
el GIGAT que se compone en este texto; la cual a partir del
evento Covid-19 produjo nuevos enfoques para el abordaje
en esquemas de relevamiento, sistematización y transferencia
de la información.

Producción de sentidos
Hasta marzo de 2020 las tareas cotidianas de los
trabajadores comunitarios se desarrollaban con las
singularidades habituales. La llegada de la Covid-19 al país,
inició una escalada de Decretos y Resoluciones, tanto
nacionales como provinciales68 que modificó la dinámica de
todos los aspectos de la vida.

68El primer Decreto del Poder Ejecutivo Nacional 260/2020, del 12 de


marzo de 2020, declara la emergencia sanitaria y al 4 de noviembre de
2020 ya era complementada por 948 normas adicionales: ver en
<www.servicios.infoleg.gob.ar>. En la provincia del Chubut, el 13 de
marzo de 2020 se declara la emergencia sanitaria mediante el Decreto
Provincial 232/2020.
375
En el Área Programática Trelew69 (Chubut), entre los
meses de marzo, abril y mayo se comenzaron a relevar los
ingreso de viajeros a la zona (personas que llegaban a la
provincia y debían realizar el Aislamiento Social Preventivo
y Obligatorio) y primeros casos de los Aislados por Covid-
19 . Los primeros relevamientos se realizaron en papel y
posteriormente se transferían diferentes sistemas de
georreferenciación, accesibles de modo gratuito pero con
ciertas limitaciones. En este contexto, inicialmente los datos
se cargaban en Google Earth© y Google Maps©, como
simples “pines” asociados a una planilla de datos. Esto
producía muchos problemas en los registros, ya que el
sistema estaba en ocasiones saturado y dejaba de prestar el
servicio.
Para mayo de 2020, retomando lo que había sido el
proceso de creación de la App+Salud, se generó un nuevo
contacto entre el Área Programática Trelew y el GIGAT, de
modo de intentar evaluar posibilidades de ejecución de la
aplicación App+Salud, en el caso concreto de relevamiento
de Aislados. Dado que la aplicación ya no estaba en servicio,
se comenzaron a evaluar diferentes posibilidades de puesta
en marcha de sistemas simples para el relevamiento y en
ejecución actual. Así, se comenzó a trabajar con la plataforma
gratuita y de código abierto KoboToolbox70

69 El Ministerio de Salud del Chubut divide al territorio en áreas


programáticas. Esta división es una propuesta político administrativa
orientada a la gestión.
70 KoBoToolbox es un conjunto de herramientas para la recopilación de

datos de campo para su uso en entornos complejos. El software es


gratuito y de código abierto. La mayoría de los usuarios son instituciones
y personas que trabajan en crisis humanitarias, así como profesionales e
investigadores de ayuda y cuidado que trabajan en países en desarrollo.
376
Los primeros ensayos (Figura 1) permitieron avanzar
con relevamientos de Búsqueda Activa, en terreno, mediante
planillas en papel, que luego eran cargadas en una plantilla
Excel en el oficina. Uno de los días de trabajo en terreno por
parte de los trabajadores comunitarios, en el mes de mayo de
2020, fue muy difícil, la lluvia no permitió que los registros
en planilla se mantuvieran en condiciones, a lo que se sumó
que la sistematización de la información requería de agregar
horas de trabajo posteriores al relevamiento; lo que hacían
también a la información errática e inestable en sus
posibilidades de transferencia. El evento del día de lluvia fue
clave en el cambio de modalidad de trabajo. A partir de esa
instancia, se creó una planilla KoBoToolbox para la
Búsqueda Activa en terreno, que pudiera ser operada de
modo remoto mediante teléfonos inteligentes.

Figura 1. Primeros ensayos. Transferencia de datos desde las


planillas en papel al sistema de recolección KoboToolbox.

Fuente: María Alejandra Saavedra (2020).

Puede accederse a todo el material de modo gratuito en


<www.kobotoolbox.org/>.

377
El sistema de KoboToolbox, permite realizar
formularios de encuestas que a su vez facilitan registrar el
geoposicionamiento y otros elementos, como fotografías,
líneas y puntos, entre otros. El registro, puede realizarse
tanto desde un link, que puede ser enviado por mensajería
como Whatsapp© o bien mediante la aplicación para Android
KoboCollect. En ambas opciones, existe la posibilidad de
realizar el registro con conexión de internet o bien en modo
“sin conexión” (off-line), para lo cual el sistema prevé la
transferencia en el momento en el que se conecta a la red.
Los últimos días de mayo de 2020 se comenzó
intensamente con el trabajo de levantamiento de información
mediante KoboToolbox (Figura 2), al tiempo que fue
adaptándose el formulario en el curso de los días, a nuevos
requerimientos que irían emergiendo desde diferentes
sectores, como el Área Externa del Hospital Trelew y del
Hospital Subzonal Rawson.
Figura 1. Relevamiento de datos en visitas domiciliarias en
operativos vinculados a la Covid-19.

Fuente: Maria Alejandra Saavedra (2020).

378
El abordaje de diseño de formularios, plantilla y
sistema de levantamiento de datos, fue realizado
integralmente por las trabajadoras comunitarias, lo que
ponen en evidencia que para ninguno de los procesos: a)
producción del formulario; b) puesta en implementación y
levantamiento; y c) procesamiento de la información; es
necesario tener conocimientos de informática. De este
modo, la transferencia de datos hacia el Ministerio de Salud
se simplificó, en tanto se incrementó la complejidad, el
volumen y la calidad de la información.
Así, además de los datos normalmente registrados en
terreno, se logró sostener un registro georeferenciado que
permite descargas de datos tanto en formato para ser
utilizado en sistemas de información geográfica, como otros
visualizadores cartográficos; elemento que facilitó en gran
medida no sólo la tarea cotidiana, sino la evaluación interna
del proceso de registro y la transferencia a organismos
públicos competentes en relación a la ejecución de políticas
públicas.
A continuación se presentan dos tipos de mapeos.
Los mapas (Figura 3 y 4) han sido desenfocados con el
propósito de conservar la privacidad de la tarea desarrollada
y la singularidad del terreno abordado.

379
Figura 3. Mapeo desenfocado de puntos con despliegue de
etiquetas de información, en función de relevamiento en
Búsqueda Activa.

Fuente: elaboración de los autores (2020).

Figura 4. Mapeo de calor desenfocado, en función de


relevamiento en Búsqueda Activa.

Fuente: elaboración de los autores (2020).

Nuevos trazos y relaciones


El éxito del trabajo de relevamiento georeferenciado
utilizando KoboToolbox, procreó diferentes tipos de
plantillas diseñadas desde el área de Salud Comunitaria del
Área Programática Trelew, para diferentes organismos.
También fue adoptado el sistema por las áreas programáticas
380
Sur (Comodoro Rivadavia) y Norte (Puerto Madryn) donde
se comenzaron a ejecutar múltiples relevamientos con esta
modalidad. De este modo, se crearon las siguientes plantillas
de formularios.
Cuadro 1. Plantilla de formulários
Plantilla Organización/Lugar
Búsqueda Activa Ministerio de Salud/Salud Comunitaria/ Trelew-
Rawson-Comodoro Rivadavia- Puerto Madryn
Seguimiento Viajeros Vialidad/Policía de la provincia/Salud
Comunitaria/Trelew
Embarazadas en área rural Ministerio de Salud/Salud Comunitaria/ Trelew
Zoonosis Ministerio de Salud/Salud Comunitaria/
Trelew/Comodoro Rivadavia
Ingresos de viajeros a la provincia Administración Provincial de Seguridad
Vialidad/Policía de la provincia/Defensa
Civil/Aeropuerto/Policía Seguridad
Aeroportuaria/Transito de Trelew/ Municipalidad de
Trelew/ Salud Comunitaria/Trelew
Vacunación Antirrabica Ministerio de Salud/Zoonosis/Salud
/Antiparasitarios Comunitaria/Trelew
Derivaciones desde Centros de Ministerio de Salud/Salud Comunitaria/ Puerto
Salud al Hospital Madryn
Muestreo parasitológico Ministerio de Salud/Zoonosis/Salud
Comunitaria/Trelew
Relevamiento en parques Guardia urbana/Trelew
industriales.
División Rural Trelew-Chubut Policía de la Provincia – Trelew
Plan DetectAr 71 Busqueda Activa Trelew-Rawson-Dolavon-Área Programática Trelew y
en Terreno Comodoro Rivadavia – Área Programática Sur
Puerto Madryn – Área Programática Norte

Fuente: elaboración de los autores (2020).

71Plan DetectAr (Dispositivo Estratégico de Testeo para Coronavirus en


Territorio Argentino).
Ver en: <www.argentina.gob.ar/coronavirus/detectar>.
381
Figura 5. Carga de datos en el registro de ingreso de viajeros.
Formulario creado por el área de salud comunitária, Trelew.

Fuente: Maria Alejandra Saavedra (2020).

Conclusiones
El proceso de la experiencia de pandemia ha
facilitado y, en gran medida, forzado el aprendizaje de nuevos
sistemas, métodos y herramientas para la resolución de
problemáticas complejas. Durante años, desde la universidad
pública y el GIGAT se trabajó implicadamente con
trabajadores comunitarios, con el propósito de producir
esquemas y herramientas que faciliten tareas cotidianas. Así,
queda demostrado que los vínculos generaron frutos en la

382
emergencia, a partir de procesos que facilitan el
asesoramiento y acompañamiento, más allá de las etiquetas
institucionales.
El empleo de KoboToolbox por parte de un sector
público en Chubut, inscribe a esta experiencia como la
primera de su tipo, la cual ha demostrado inmediatos
procesos de articulación y expansión de la propuesta. Sólo
para tener en cuenta, al cierre de la redacción de este artículo,
el registro del Plan Detectar dispone de 4.600 entradas,
mientras que el Registro de ingreso de viajeros acusa 20.600
entradas. Si bien el desarrollo tecnológico es externo, la
práctica en la apropiación es local. En este sentido debemos
hacer fuerte énfasis en los procesos de apropiación de las
herramientas a utilizar. En este caso, fueron los propios
trabajadores comunitarios quienes iniciaron la búsqueda de
sistemas propicios. Al mismo tiempo, diseñaron los
esquemas de levantamiento de datos, planillas modos de
transferencia.
En última instancia, es ésta una experiencia simple
que nos enriquece. Que a su vez nos enseña que articulando
mucho es posible, mientras la posibilidad de replicabilidad
transformación se multiplica. Aprendizajes en tiempos de
pandemia...

Referencias bibliográficas
BERARDI “BIFO”, F. Fenomenología del fin.
Sensibilidad y mutación conectiva. Buenos Aires: Caja
Negra, 2017.
PROVINCIA DEL CHUBUT. Organización del trabajo
en terreno. Dirección de Promoción y Prevención.
Documento oficial. Rawson: Secretaría de Salud de Chubut,
2007.
383
ESCUDERO, B. Salud Comunitaria. La construcción de
un campo interdisciplinar. Aproximaciones desde la
formación de Técnicos en Salud. Comodoro Rivadavia:
EDUPA, 2013.
CHANAMPA, M.; DIEZ TETAMANTI, J.; DUARTE, Y.;
JAIMES, M.; GÓMEZ, P.; MARTÍNEZ, N. Accesibilidad
a la salud y estrategias de movilidad. Caso Aldea Beleiro.
Revista Informe Científico Técnico de la Universidad
Nacional de la Patagonia Austral, v. 7, n. 1, 2015, p. 54-
77
BARRIA OYARZO, C. Gestión de políticas públicas en
salud: mujeres migrantes en una ciudad de la Patagonia,
Argentina. Anthropologica del Departamento de
Ciencias Sociales, v. 38, n. 44, 2020, p. 157-185.
DIEZ TETAMANTI, J.; ARMESTO, S. Salud
Comuniatria Territorio de relatos. Comodoro Rivadavia:
EDUPA, 2016.
DIEZ TETAMANTI, J.; AGÜERO, G.; HEREDIAS, T.;
GÓMEZ, P. INTER18 Mundos y experiencias
compartidas en Salud Comunitaria Urbano Rural.
Buenos Aires: Margen, 2020.
DIEZ TETAMANTI, J.; ROCHA, E.; MUNSBERG, G.;
PEIXOTO, J.; SANTOS, A.; JAIME, S.; SCHULER, J.
Desarrollo de un sistema georreferenciado para la gestión,
movilidad y monitoreo de atención primaria de la salud
comunitaria. Salud Colectiva, v. 14, n. 1, 2018, p. 121-137.
TÉLAM, Agencia. Chubut: pese al Covid-19, trabajadores
de la Salud paran por atraso en el pago de salarios. In:
Télam: Agencial Nacional de Noticias, Política, Buenos

384
Aires, 5 octubre 2020. Disponible en <www.telam.com.ar>.
Acceso en: 13/10/2020.
WINTHER, K. Rethinking screen-time in the time of
COVID-19. In: Unicef Global, Office of Global Insight
and Policy, New York, 7 abril 2020. Disponible en
<www.unicef.org>. Acceso en: 13/10/2020.

385
386
AUTORES
Adelaide Macaba Bozagari
Mestre em Sistemas de Informação Geográfica
Aplicadas em Ambiente pela Université d’Orléans
(França) e Doutora em Geografia, Desenvolvimento
Territorial e Geomática Aplicada na Gestão de
Riscos Ambientais Urbanos pela Université de Paris
VIII (Saint-Denis, França). Atua na Escola Nacional
de Estatística do Instituto Nacional de Estatística
(Moçambique).

Cláudio Jorge Moura de Castilho


Graduado e mestre em Geografia (Universidade
Federal de Pernambuco), doutor em Geografia,
Ordenamento Territorial e Urbanismo (Université
Paris III) e pós-doutor (Università Ca’Foscari di
Venezia). Docente do Departamento de Geografia e
do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade
Federal de Pernambuco (Brasil).

Elisa Magnani
Graduada em Língua e Literatura Estrangeira pela
Università di Bologna (2001) e Doutora em
Qualidade Ambiental e Desenvolvimento
Econômico Regional pela Università di Bologna
(2005). Docente e Pesquisadora vinculada à Alma
Mater Studiorum Università di Bologna (Itália).

387
Evanildo Santos Cardoso
Graduado em Geografia e mestre em
Desenvolvimento e Meio Ambiente (Universidade
Federal do Ceará) e doutor em Geografia
(Universidade Federal de Goiás). Docente do Curso
de Geografia e do Programa de Pós-graduação em
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal
do Oeste da Bahia (Brasil).

Giannina Zamora Acosta


Graduada em Engenharia Geográfica (Universidad
de las Fuerzas Armadas ESPE), Mestre em Gestão
de Sistema de Informações Geográficas (Universitat
de Girona), Mestre em Estudios Socioambeintales
(FLACSO-Ecuador) e doutoranda (“Salud Colectiva,
Ambiente y Sociedad”) pela Universidad Andina
Simón Bolívar. Miembro Nacional de la Comisión de
Geografía del IPGH – Ecuador.

Inês Macabo Raimundo


Mestre em Geografia Humana e Doutora em
Migrações Forçadas pela University of the
Witwatersrand (África do Sul). Professora e
pesquisadora da Universidade Eduardo Mondlane
(Moçambique).

Juan Manuel Diez Tetamanti (Argentina)


Graduado em Geografia pela Universidad Nacional
de Mar del Plata (Argentina) e Doutor em
Geografia pela Universidad Nacional del Sur
(Argentina). Pesquisador do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas e docente da

388
Universidad Nacional de Patagonia San Juan Bosco
(Argentina).

José Alberto Raimundo


Mestre em Antropologia e Sociologia do
Desenvolvimento e Doutor em Antropologia pela
Universidade Paris VIII (Saint-Denis, França).
Professor e pesquisador da Universidade
Pedagógica de Maputo (Moçambique).

Júlio César Ferreira Cirilo


Graduado em Direito, especialista em Direito
Empresarial e mestre em Direito Público
(Universidade Federal de Uberlândia), graduado em
Relações Internacionais (Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) e doutorando em
Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades
(Universidade de São Paulo).

Luís Carlos Silva Aycaguer


Licenciado em Matemática (Universidad de La
Habana), doutor em Ciências Matemáticas
(Universidad de Carlos), doutor em Ciências da
Saúde (Universidad de Ciencias Médicas de La
Habana), acadêmico de mérito da República de Cuba.
Atua na Escuela Nacional de Salud Pública (Cuba).

Marcos Leando Mondardo


Graduado em Geografia (Universidade Estadual do
Oeste do Paraná), mestre em Geografia
(Universidade Federal da Grande Dourados) e
doutor em Geografia (Universidade Federal
389
Fluminense). Docente do Departamento de
Geografia e do Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal da Grande
Dourados (Brasil).

María Alejandra Saavedra


Técnica em Saúde Comunitária em Terreno. Atua no
Ministério da Saúde e Ministério da Educação da
província de Chubut (Argentina)

María Lóis
Graduada em Ciências Políticas (Universidad
Complutense de Madrid), diplomada em Geografia
(University of California) e doutora em Ciências
Políticas (Universidad Complutense de Madrid).
Docente do Departamento de História, Teoria e
Geografia Políticas da Universidad Complutense de
Madrid (Espanha).

Paulo Roberto Baqueiro Brandão (Organizador)


Graduado e mestre em Geografia (Universidade
Federal da Bahia), especialista em Gerenciamento
Ambiental (Universidade Católica do Salvador) e
doutor em Geografia (Universidade Federal de
Pernambuco. Docente do Curso de Geografia e
Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais
da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Brasil).

Sílvia González Iturraspe


Graduada em Ciências Políticas e da Administração
e em Filosofia (Universidad Complutense de Madrid)
e doutoranda em Ciências Políticas (Universidad
Complutense de Madrid, Espanha).
390
Victor Rodrigo Yáñez Pereira
Graduado em Trabalho Social, mestre em Trabalho
Social e Políticas Públicas (Universidad de
Concepción) e doutor em Trabalho Social
(Universidad Nacional de La Plata). Vicedecano da
Facultad de Ciencias Sociales y Humanidades,
Diretor do Centro de Estudios y Gestión Social da
Universidad Autónoma de Chile, sede Talca (Chile).

391
392

Você também pode gostar