Você está na página 1de 15
Lei antidrogas e selet jade penal: criminalizagao e encarceramento em massa da populagao negra Anti-drug law and criminal selectivity: criminalization and mass incarceration of the black population Adeildo Vila Nova Assistente Social Judiciario no Tribunal de Justiga do Estado de Sao Paulo (TJ-SP) adeildovilanova@hotmail.com Resumo ( cariter punitivo e de seletividade racial do sistema de justiga criminal brasileiro contribui para que, cada vez mais, negros, jovens e periféricos, sejam violentados no seu direito humano fundamental, a liberdade. Faz-se urgente a transformagio dessa sociedade que discrimina € criminaliza os seus integrantes apenas por serem negros e periféricos. Dados apontam que entre ‘05 anos 2000 ¢ 2014, a populagaio earceriria teve um aumento de mais de 167%, especialmente apés a aprovagao € aplicagao da Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas. A partir de ‘uma revisdo bibliografica-documental, com o levantamento de materiais publicados em quaisquer meios fisicos e digitais sobre o tema proposto para coleta de dados, para explicar e/ou desvelar 0 aumento significativo do encarceramento de pretos, pobres ¢ periféricos, especialmente apés a promulgaco desta Lei, Entendemos que se tora urgente que o Brasil busque estratégias realmente eficazes para conter o grande encarceramento provocado por uma politica criminal cada vez mais excludente e seletiva, especialmente para a populagio negra, pobre e periférica Precisamos combater as priticas punitivas, repressoras € coercitivas que so comuns no Ambito penal brasileiro e que s6 contribui para aumentar cada vez mais contingente de pessoas presas ‘© em sua maioria com um perfil socioeconémico ¢ étnico-racial pré-determinado. Palavras-chave: Seletividade penal. Encarceramento em massa. Populagdo negra Abstract The punitive and racially selective nature of the Brazilian criminal justice system contributes to the fact that, increasingly, blacks, young people and the peripheral, are violated in their fundamental human right, freedom. There is an urgent need to transform this society that discriminates and eriminalizes its members just because they are black and peripheral. Data show that between the years 2000 and 2014, the prison population increased by more than 167%, especially after the approval and application of Law 11.343 / 2006, known as the Anti-Drug Law. From a bibliographic-document review, with the survey of materials published in any physical and digital media on the proposed topic for data collection, 10 explain and / or unveil the significam increase in the incarceration of blacks, the poor and the peripheral, especially after the enactment of this Law. We understand that it is urgent for Brazil to seek really effective strategies 10 contain the great incarceration caused by an increasingly exclusive and selective criminal policy, especially for the black, poor and peripheral population, We need to combat the Punitive, repressive and coercive practices that are common in the Brazilian criminal sphere and which only contributes to increasing the number of prisoners, mostly with a pre-determined socioeconomic and ethnic-racial profile. Keywords: Penal selectivity. Mass incarceration, Black population. Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 36 Introducio Desde o periodo de escravizagao das/os negras/os que foram sequestradas/os da Africa para 0 nosso pais, o Brasil tem se especializado nas estratégias de contengao ¢ de controle da populagao negra brasileira. A forma contemporinea se traduz no encarceramento em massa de negros e negras, especialmente as/os jovens, pobres ¢ periféricas/os. Como nos ilustra muito bem ‘© cantor e compositor Marcelo Yuea (1994) na cangio “Todo camburio tem um pouco de navio negreiro”, a forma contemporinea dessa vigiléncia ostensiva direcionada quase que exclusivamente aos negros e negras desse pais. Diz a letra da miisica: “quem segurava com forga a chibata agora usa farda”, ou seja, o policial é a figura contempordnea do feitor ¢ o Estado ado senhor dos negros ¢ das negras escravizadas/os. As prisies brasileiras sio as figuras contempordneas que nos remetem as senzalas do Brasil escravizador. A pesquisadora Cliudia Rosalina Adio (2018), em entrevista ao site de noticias Alma Preta, aponta essa semelhanga entre o periodo escravista e a contemporaneidade quando diz. que “as periferias do Brasil podem ser consideradas como as senzalas contemporineas” ¢ ainda acrescenta, ao falar sobre a forma como esses territérios sio vistos: “os homicidios, a precéria infraestrutura urbana, a escassez de equipamentos piiblicos ¢ a violéneia policial podem ser considerados como mecanismos de controle e gest da vida”, Quando Claudia Rosalina Adio (2018) faz essa anilise, ela localiza a populagao negra ‘em um determinado territério que tem suas caracteristicas proprias, caracteristicas estas que se relacionam com a forma que as politicas piblicas, especialmente as de “seguranga” sio direcionadas excessivamente a esse segmento populacional, bem como a inexisténcia de politicas sociais para atender as necessidades basicas ¢ fundamentais ¢ garantir, minimamente, a sobrevivéncia desse mesmo grupo populacional. Nesse sentido, Rolnik (2007), nas suas andlises sobre territérios, mostra-nos como se constitui a situagdo atual, (.)a situagio atual se constitui na continuagao de um modelo de urbanizagaio excludente, do qual pretos © pardos sto ainda 0 grupo populacional mais preterido. Politicas sociais e culturais reparadoras¢ includentes sio urgentes € necessirias — entretanto nao & mais possivel deixar intacto ¢ inedlume um modelo de erescimento ¢ expansio urbana que ndo consegue sair do paradigma do gueto/senzala, (ROLNIK, 2007, p. 90) As formas de contencdo © de controle do Estado sobre a populagio negra foram se ‘metamorfoseando ¢ se aperfeigoando ao longo dos tempos, tendo sempre ao seu lado grandes aliados intelectuais que construiram narrativas de uma suposta democracia racial entre brancos, dios e negros, como as de Gilberto Freyre, que se consolidavam a partir da década de 1920, passando a imagem de um pais com uma convivéncia pacifica e cordial entre essas trés ragas, ou seja, um pais sem conflitos quando, na verdade, todos sabemos do historico de lutas e resisténcias do provo negto a uma série violéncias e de violagdes as quais foram submetidos, e ainda os sio, no processo, ainda em curso, de formago da sociedade brasileira, como muito bem nos ensina Clovis Moura, Abdias do Nascimento ¢ tantos outros intelectuais negros que sempre se opuseram 1 essa narrativa que tem como perspectiva o olhar do colonizador, trazendo a luz olhar do colonizado. Cadernos da Defensoria Pablica do Estado de Sio Paulo, Sio Paulo, v6 n. 28 p.39-53, 2021 40 Catoia (2018) analisa a relacao estreita entre a institui¢do da escravidao e a emergéncia do direito penal no Brasil Império (1822-1889) apontando a contribui¢io do Direito para o racismo no Brasil, instituindo a inaptido dos negros para o trabalho e, a mesmo tempo, a sua aptidio para a criminalidade. A pesquisadora segue sua anélise até a Primeira Republica (1889- 1930) concluindo que a partir de discursos politicos, cientificos e juridicos a humanidade negra foi criminalizada, reconfigurando 0 direito penal como estratégia de controle ¢ de interdigio da cidadania da populag3o negra e acrescenta: “mantendo-se, no aparato juridico, a reprodugio das assimetrias raciais ¢ a construgdo da narrativa da branquitude como norma”. (CATOIA, 2018). De acordo com Levantamento Nacional de Informagdes Penitenciarias, atualizadas em Junho de 2016 ¢ langado no inicio de 2017 (INFOPEN, 2017), do Departamento Penitenciirio Nacional (DEPEN), drgio ligado ao Ministério da Justiga e Seguranga Piblica (MJSP), a populacdo prisional do Brasil, em junho de 2016, era de mais de 726 mil pessoas privadas de liberdade. Com esses dados, 0 Brasil ultrapassou a Riissia em nimero de presos, pasando a ‘ocupar a terceira posigdo no ranking dos paises com o maior nimero de pessoas encarceradas no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos ea China. O dado mais alarmante & que deste total de pessoas encarceradas, 64% so negros. Em niimeros absolutes, em junho de 2016, o Brasil tinha uma populagao prisional de 726.712 pessoas, incluindo além dos presos e presas do Sistema Penitenciirio, composto pelos presidios estaduais ¢ distrital; os/as das carceragens das delegacias € do Sistema Penitencidrio Federal, composto pelos presidios federais de seguranga maxima. Outro dado que chama muito a nossa atengo & de que 40% das pessoas presas sequer tiveram seus processos julgados ou foram condenadas. Os dados divulgados apenas confirmam © que os movimentos sociais organizados de defesa dos direitos humanos vém afirmando hé anos sobre a violéncia que se estabule nos espagos de privagaio de liberdade, principalmente, pelo encarceramento em massa e, consequentemente, a violagdo dos direitos humanos dessa populagdo carcerdria, composta especialmente por negros € negras, jovens, pobres e da periferia dos grandes centros do nosso pais. Esses dados apontam que 55% da populagio prisional & composta por jovens de 18 a 29 anos de idade. Mais do que os dados apresentam, a preocupago maior é com o crescimento exponencial da populagio carcerdria que vem, cada vez mais, crescendo de uma forma assustadora € estarrecedora. De acordo com o Diagnéstico do Sistema Prisional, estudo elaborado pelo Ministério da Justica e Seguranca Pablica (MJSP) e apresentado ao Jornal Estado de Minas (2018) pelo ministro extraordindrio Raul Jungmann, a expectativa é de que, em 2020, a populagio carceriria brasileira seja de mais de 987 mil pessoas © que chegue a quase 1,5 milhdo de pessoas privadas de liberdade em 2025. Na mesma entrevista, o ministro faz uma afirmagao que s6 ratifica ‘0 que a maiorias das/os especialistas ¢ liderangas dos movimentos sociais vém afirmando ha anos: “Exposta, vulnerivel e com medo da violéncia, a saida (para a opinido piblica) ¢ prender. Quando nao, infelizmente, matar. Esta no é a saida que tem que ter. O prende, prende e prende leva a isso (aumento da populagao carceriria)” © Levantamento Nacional de Informagdes Penitenciérias (INFOPEN, 2017) tem evidenciado um nimero expressivo da populagio negra cumprindo penas de privagio de liberdade. Os dados divulgados ¢ atualizados em junho de 2016 demonstram que 64% da populacdo carceréria é composta por negros (pretos € pardos), de acordo com definigdes do Cadernos da Defensoria Pablica do Estado de Sio Paulo, Sio Paulo, v6 n. 28 p.39-53, 2021 41 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), enquanto a populagio branca representa apenas 35%, (INFOPEN, 2017). Notadamente, a populaco negra tem muitos prejuizos no que se refere ao acesso a justiga quando comparada aos nio negros, depreendendo-se um sistema de jjustiga criminal que é seletivo e estigmatizante, tendo o racismo, em suas mais variadas formas de expressio, como um importante promotor dessa seletividade e, consequentemente, do ‘encarceramento em massa desse grupo populacional. A partir de uma revisio bibliografica, este estudo pretende responder algumas indagagdes acerca do fato da maioria da populacio carceriria ser composta por negras e negros, na sua maioria jovens, pobres e perifiricos. A lei antidrogas e a seletividade penal A promulgagao da Lei Federal n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Politicas sobre Drogas (SISNAD) ¢ prescreve medidas para prevengio do uso indevido, atengdo e reinsergo social dos usuarios e dependentes de drogas e ainda, estabelece ‘normas para repressio a produgdo no autorizada e ao trifico ilicito de drogas, definindo também ‘crimes, da outras providéncias e trouxe algumas consequéncias para a populagio pobre em geral ‘© mais especificamente para a populagio negra, principal vitima das constantes investidas do sistema punitivo, que tem na populagao negra e periférica, o seu alvo predileto. No ano de 2006, ano em que a Lei foi instituida, 15% das pessoas que eram presas no Brasil respondiam por crimes relacionados as drogas. Crimes estes, basicamente caracterizados como trifico, porém essa definigdo é muito subjetiva, tendo em vista a subjetividade do policial que apreendeu a droga ¢ a fragilidade da lei que imputa a responsabilidade pela determinagao € qualificago do crime ao Juiz, tendo como tinica testemunha o préprio policial responsivel pela Agio, de acordo com o § 2° do Artigo 28 da referida Li Em 2014 este mimero saltou para 28%, de acordo com o Levantamento Nacional de Informagdes penitencisrias do Departamento Penitenciirio Nacional do Ministério da Justiga (INFOPEN/2014). De 2006 a 2014, houve um aumento de mais de 160%, de acordo com estudos do Instituto Brasileiro de Ciéncias Criminais (IBCCrim) ¢ da Plataforma Brasileira de Politicas de Drogas. Segundo dados divulgados pela Rede Justiga Criminal, de 2000 a 2014 a populagio do sistema prisional brasileiro cresceu de 167,32%, superando, em muito, o erescimento populacional ea distribuigao de presos por tipo de crime era a seguinte: 46% de crimes contra 0 patriménio, 28% referentes 4 Lei de drogas, 13% de crimes contra a pessoa ¢ 13% referem-se a ‘outros tipos de crimes. O mais alarmante é que quase metade dessas pessoas presas, cerca de 40%, aguarda por um primeiro julgamento, ou seja, parte expressiva delas pode ser absolvida. No Brasil, tiltimo pais no mundo a “abolir” a escravidio, as discussées sobre criminalidade no podem estar deslocadas das discusses sécio historicas desse passado cruel e desumano, marca indelével do nosso pais, haja vista a relagdo estreita que existe entre esse passado escravocrata ¢ a sociedade contemporinea e as consequéncias sociais, econémicas, ‘educacionais, pol icas ¢ criminais, Cadernos da Defensoria Piblica do Estado de Si0 Paulo, Sto Paulo, . 6 n. 28 p.39-53, 2021 2 Esse passado escravocrata deixou marcas ¢ estigmas que se expressam das mais diversas maneiras na sociedade contemporinea, Alm desse hist6rico de escravizagio e de violencia contra a populagdo negra a época, varias teorias bioantropolégicas na estigmatizagio dos negros como delinquentes que deu sustentagdo ao racismo cientifico tio bem discutido pela professora de Direito da Universidade Federal do Piaui, Doutoranda em Direito pela Universidade de Santiago ‘de Compostela e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco Deborah Dettmam Matos (2010), contribuiram para que a populagdo negra fosse estigmatiza, scus direitos fundamentas e sociais, e consequentemente, seus direitos humanos. -xcluida e privada de A relagio dos negros brasileiros com a “legalidade” da justiga inicia-se antes mesmo da aboligdo da escravatura. Eram leis que, em tese, seriam para proteger os negros escravizados, vitimas dos traficantes ilegais. A Lei 581, de 04 de setembro de 1850 estabelecia medidas para a repressio do trifico ilegal de negros e consistia na apreenstio das embarcagdes ¢ punigdo para todos que cram flagrados nessas embareagdes. As pessoas escravizadas eram apreendidas ¢ reenviadas para seus portos de origem. Passados 21 anos, surge a Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como a Lei do Ventre Livre, que declarava livre os filhos de eseravas nascidos a partir dessa data, contudo ‘a guarda/tutela era determinada ao Senhor de sua mae, que tinha que criar a crianga até os seus 8 anos de idade © depois desse periodo entrega-lo, Exatos 14 anos apés, 0 Imp conhecida como a Lei dos Sexagenirios, permitindo aos negros escravizados, maiores de 60 anos, io mais exercer trabalhos forgados. O fato € que aos 60 anos de idade, dada as péssimas condigdes de trabalho e a exploragio excessiva da forga de trabalho escravo, a maioria morria muito antes dessa idade. io promulga a Lei n° 3.270 de 28 de setembro de 1885, Enfim, chega a Lei Aurea, Lei n° 3.353 de 13 de maio de 1888, que declarava extinta a eseravidio no Bra Mas para onde iam os negros escravizados e agora “ antes da “aboligio” da escravatura, ao menos tinham um teto, a senzala, para se abrigar, e os restos de comida dos seus senhores, com os quais faziam a feijoada. Com a promulgagao da Lei Aurea, os negros passaram a vagar sem destino certo e passaram a ocupar espagos de dificil acesso, como os mortos. ivres”, haja vista que A Lei Federal n° 11.343 de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Drogas, esta completando uma década de sua implantagao e, desde entio, o niimero de pessoas presas aumentou significativamente em relago aos anos anteriores sua aplicagao, especialmente 0 znimero de negros ¢ negras. Esta lei, que substituiu a Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976, instituiu © Sistema Nacional de Politicas sobre Drogas no Brasil, mas alguns de seus dispositivos legais so questionados por reproduzirem um modelo ineficaz de “guerra as drogas A grande questio que se coloca pela legislagio atual, especialmente no seu artigo 28, parigrafo 2°, € sobre como diferenciar um usuario de um traficante, pois a referida lei aponta ri categoria, se de usuario ou traficante, Para determinar isso, 0 juiz considerard a natureza e a quantidade da droga apreendida, 0 local ¢ as condigdes em que a ago foi desenvolvida, as jos subjetivos que, na pritica, atribui a cada juiz decidir quem & enquadrado ¢ em qual Cadernos da Defensoria Pablica do Estado de Sio Paulo, Sio Paulo, v6 n. 28 p.39-53, 2021 43 circunstincias sociais e pessoas, alm da conduta © os antecedentes criminais da pessoa apreendida. Art. 28 — Quem adquirir, guardar, tiver em depésito, tansportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorizagdo ou em desacordo com ddeterminagao legal ou regulamentar, sera submetido as seguintes penas: §2° - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juz, atenderd & natureza e a quantidade da substincia apreendida, a0 local e as condigdes em que se desenvolveu a ago, is circunstancias sociais e pessoais, ‘bem como A conduta ¢ aos antecedentes do agente. usuario néo pode ser preso em flagrante, como ocorria antes, e sta pena é alternativa: adverténcia, prestagio de servigos a comunidade ou obrigagio de cumprir medidas educativas. O objetivo & deslocar essas pessoas do ambito penal para o ambito da satide piblica. O usuario também deve assinar um termo circunstanciado, uma espécie de boletim de ocorréncia para crimes de menor gravidade, perante um juiz ou, na auséncia deste, diante da autoridade policial 1no local da abordagem. ‘Ji considerado traficante é punido com pena de prisio de 5 a 15 anos, Importar, exportar guardar drogas e cultivar matéria-prima para o trafico acarreta a mesma penalidade. Dispositivos anteriores a Lei de Drogas, como a Constituigdo ¢ a Lei de Crimes Hediondos, estabelecem que ‘5 condenados por trifico nao podem ser beneficiados com a extingao de suas penas (anistia, ‘eraga ou indulto). A aprovagiio da Lei Antidrogas no Brasil se constitui como uma estratégia de “guerra as drogas”, copiando 0 modelo dos Estados Unidos, guerra esta que tinha alvo e enderego certo: a populacao negra das periferias pelo Brasil afora. Mas como muito bem observou a ativista negra americana Deborah Small (2016), (..) guerra ds drogas americana nao funcionou para 0 Brasil, pois em vez de reduzir 0 consumo € o abuso no uso das drogas, a erradicagao do cultivo, a interdigdo de laborat6rios de producdo e outras abordagens pela via da oferta, levaram a mais violéncia, softimento, miséria e morte Essa “guerra” tem como principal objetivo a exclusio da populagao negra, confinando-a cada vez mais longe dos grandes centros, com cariter higienista e a manutengdo do racismo na nossa sociedade, criminalizando de forma cada vez mais ostensiva a populagdo pobre, negra € perifériea. A professora Beatriz Abramides (2010), em Editorial da Revista PUCVIVA n° 39, jé alertava que “por tras da retoriea da guerra, hé uma estratégia de criminalizagao dos pobres pela limpeza étnico racial e de contengao social”. Um dos aspectos mais nefastos dessa lei & a relagio entre o sistema econémico e a politica criminal que, como nos lembra muito bem o professor Abramovay (2010), na introdugio do livro Depois do Grande Encarceramento, organizado por ele ¢ pela professora Vera Malaguti Batista, de que esta relagio, a do sistema econdmico com a politica criminal, é tio profunda que nao se pode olhi-las de forma separada, Com o crescimento da populacao carceraria hi a necessidade de construgao de mais presidios, 0 que justifica a contratagdo de entidades privadas, atendendo aos interesses do capital, com as privatizagdes das unidades penitencirias. Toma-se urgente que o Brasil busque estratégias realmente eficazes para conter o grande encarceramento provocado por uma politica criminal cada vez mais excludente € seletiva, Cadernos da Defensoria Pablica do Estado de Sio Paulo, Sio Paulo, v6 n. 28 p.39-53, 2021 44 especialmente para a populagdo negra, pobre ¢ periférica. Precisamos combater as priticas unitivas, repressoras e coercitivas que so comuns no Ambito penal brasileiro e que s6 contribui para aumentar cada vez mais 0 contingente de pessoas presas e em sta maioria com um perfil socioecondmico ¢ étnico-racial pré-determinado como ja mencionado no corpo deste capitulo, Precisamos rever a politica criminal vigente ¢ pensarmos numa politica piblica efetiva que reduza a populagio carceriria, especialmente no que se refere a politica sobre drogas, incemtivo & politica de altemnativas penais e as audiéncias de custédia, bem como a Agenda pelo Desencarceramento (2017), defendida pela Pastoral Carceréria, com diversas ages que vao desde a suspensio de investimentos para construgao de novas unidades prisionais 4 limitagio das prises cautelares, redugdo de penas e descriminalizacao de condutas, em especial aquelas relacionadas 4 politica de drogas, a fim de apurar a legalidade da pristo e evitar a pritica de abusos e torturas, garantindo a dignidade e o respeito a pessoa humana, seja qual for a sua raca/cor, religi _género ou orientagdo sexual. . origem, Historicamente, a populagio negra brasileira sempre soffeu varios processos de ccriminalizagio que se arrastam desde 0 periodo escravocrata até os dias atuais, seja pela sua religiio, misica, danga, origem ou condicdo socioeconémica. Mas esta populacdo sempre resistiu € resiste as estratégias de opressio © dominagao engendradas pelo Estado para sua exclusio © posterior eliminagao. O carter punitivo e seletivo do sistema penal brasileiro contribui para que, cada vez mais, negros, jovens e perifricos, sejam violentados no seu direito humano fundamental, o de it e vir, € para que sejam reiteradas vezes abordados ¢ levados para averiguagdes sem ao menos uma suspeita qualquer, senao o simples fato de ser negro e pobre. Faz-se urgente a transformagio dessa sociedade que discrimina e criminaliza os seus integrantes apenas por serem negros ¢ periféricos. O encarceramento em massa da populacio negra e a viola¢io dos direitos humanos Estado brasileiro ocupa a terceira posi¢ao no ranking dos paises com as maiores populagdes carceririas do mundo. Esti abaixo apenas dos Estados Unidos e da China. A Rissia ‘ocupa a quarta posi¢Zo em nimero de pessoas privadas de liberdade. Mais de um tergo dessa populagdo brasileira privada de liberdade refere-se aos presos sem condenagio, 0s chamados provisérios. Essa pequena amostragem do caos que se instalow no sistema prisional, expoe as fragilidades de um sistema de justiga e uma politica criminal que prende demasiadamente sem oferecer a estrutura necessaria para atender essa populacdo carceritia, O Anuirio Brasileiro de Seguranga Piiblica (2013), elaborado e publicado pelo Forum Brasileiro de Seguranga Publica, informa que 0 crescimento da populagio carceriria brasileira entre 1999 © 2014 foi de 213,1%. O estudo aponta ainda que, mantido esse ritmo, em 2030 0 Brasil tera alcangado uma populagao prisional de quase 2 milhdes de presos adultos, num pais, ‘que, segundo 0 Anuirio Brasileiro (2013) tem 1424 unidades prisionais, ‘io numerosos os exemplos de violagao de direitos humanos, especialmente entre negros pobres, dentro ou fora das cadeias, como torturas psicolégicas e espancamentos frequentemente denunciados pelos movimentos sociais organizados, além da falta de condigdes minimas de Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 higiene © satide, configurando-se como o racismo estrutural e institucional presentes nas instituigdes que compdem a estrutura social ¢ politica no nosso pais. Exemplos de casos de exterminio pelo Brasil afora nao faltam ¢ no & novidade pra ninguém, especialmente nos presidios, haja vista 0 massacre do Carandiru, com 111 mortes oficialmente registradas, sendo que 84 destas pessoas no tinham condenago, embora relatos deem conta de que o nimero de mortos é muito superior ao divulgado oficialmente. A sociedade brasileira est representada na populagio prisional em todas as suas configuragdes e a violagdo dos as pessoas sio cotidianamente violentadas, especialmente a populagao preta, pobre e periférica ireitos humanos é uma dessas, ou seja, presas ou em liberdade, A violagio dos direitos humanos na sociedade brasileira tem sido uma constante, especialmente no que se refere s pessoas privadas de liberdade. O sistema prisional se coloca ‘como um dos grandes laboratérios para as diversas formas de violagdo desses direitos. Configura- se como um dispositivo de produgio de vidas com autorizagao para matar, como indica Mallart e Godoi (2017) afirmando que “constata-se — em care e sangue ~ uma dimensio de produtividade do dispositivo carcerario contemporaneo: a produgao de vidas mataveis”. Falar sobre violago dos direitos humanos nas prisdes € redundante, pois a violagdo desses direitos, nas condigdes em que as prisdes so cotidianamente identificadas pelos organismos movimentos sociais organizados de defesa dos direitos humanos, passa a ser parte constitutiva do sistema carceririo e/ou prisional no nosso pais. As deniincias de violagdo de direitos humanos contra o estado so frequentes e representam um retrato da nossa sociedade que, cada vez mais, revela o seu cariter punitivista, racista, sexista e genocida, Relatos do Juiz de Direito da Vara de Execugdes Penais e Corredor do Sistema Prisional da Comarea de Joinville/SC Jodo Marcos Buch, em seu artigo no site de noticias Justificando (2017), sobre a sua atuag3o em processos de deniincias contra a violago dos direitos humanos ‘em presidios nos dio a dimensio do quanto 0 Brasil se distancia do efetivo respeito aos direitos ‘humanos, especialmente no que se refere ao sistema carcerario. ‘Quando leio decisdes como essas, o sentimento que tenho é que estamos és, 1no Brasil, muito longe, mas muito longe mesmo de compreender e respeitar os direitos humanos. O Estado esti em falta nesse quesito. Nao conseguimos ainda disseminar ¢ fazer entender que os direitos humanos, resultado do rocesso histérico evolutivo, protegem a todos, indistintamente, e devem servir ‘como barreira contra govemos que insistem em manipular regulamentos ¢ leis para poder violar a integridade da célula humana, E quando o assunto é sistema carceririo, entdo sim, parece que todos os dias somos estapeados por essa ‘vergonhosa e cruel violagdo. (BUCH, 2017) E acrescenta as suas impresses sobre as condigdes das prisdes brasileiras na ocasido em que ‘sito uma boa parte delas pelo Brasil afora (.) estamos tratando de auséncia de trabalho ¢ estudo para detentos, falta de colchdes para dormir, com os existentes dispostos num chao timido ¢ sujo, ‘onde saneamento bisico nao hd, trabalhiamos com complexos prisionais que recebem pessoas que ficam nuas em celas, sem acesso a banlieiro ou por vezes ppermanecem algemados em corredores dias dias na espera de destinagao a ‘uma galeria faccionada ou nao. (BUCH, 2017) Cadernos da Defensoria Piblica do Estado de Si0 Paulo, Sto Paulo, . 6 n. 28 p.39-53, 2021 46 Em outro relato, também durante suas visitas aos presidios, s6 que agora no exterior, onde as condigdes destes eram bem melhores que as do Brasil, Buch (2017) denuncia, enquanto Jembrava que, no sistema brasileiro, diversas sio as violagdes de direitos humanos nos presidios ecm varias regides do Brasil (..) no Presidio Central de Porto Alegre, com seus 5.000 presos, mio havia ssameamento e que 0 esgoto escorria aberto pelos umbrais de um prédio que no cera reformado fzia mais de 20 anos, Nao relatava que em Pedrinhas/MA um detento podia simplesmente desaparecer dentro da unidade, sendo morto tendo 0 corpo desfeito, Nao contava que em Campo Grande/MS, a chamada “Maxima” possuia 2,500 detentos em celas eontendo 25 presos para 4.a 6 vagas © com os recursos lnumanos restringindo-se a 10 agentes penitenciirios por plantio, em processo de adoecimento diante das agruras insuperiveis do trabalho, Tampouco mencionava 0 sistema prisional catarinense, com idénticos e graves problemas e violagdes humanas, da superlotagao & falta de fornecimento de kit de higiene e vestuirio, (BUCH, 2017) Casos como 0 do Rafael Braga, um rapaz negro, pobre ¢ em situago de rua, preso em jjunho de 2013, durante manifestagdes piiblicas e rapidamente condenado sob a alegagio de que portava material explosive, mesmo apés o resultado do laudo pericial comprovando que o ‘material que levava consigo nao tinha nenhum carter explosivo, retratam bem as peculiaridades € particularidades do nosso sistema de justiga. Este caso revela a face seletiva, repressiva, higienista e estigmatizante do nosso sistema penal/prisional, bem como o seu cariter punitivo € de contengdo e controle social, especialmente da populagao preta, pobre e perifirica, De acordo com os noticidrios A época da sua prisio, Rafael foi encontrado pelos advogados algemado pelos pés, como um negro no pelourinho, cena que nos remete a0 Brasil escravocrata, onde os trabalhadores escravizados eram punidos em piiblico € para que isso servisse de “ligdo” para que nenhum outro se atrevesse a cometer as mesmas coisas. Denota-se assim que o Rafael Braga foi vitima da seletividade racial do sistema penal brasileiro, tendo em vista que foi o tinico condenado dentre as pessoas que foram presas naquelas manifestacées. padre Valdir Silveira (2014), ativista da Pastoral Carceréria, em entrevista 4 Revista Carta Capital, aponta o sistema carcerario como um grande violador dos direitos fundamentais ¢ acrescenta que “no Brasil podemos comparar os presidio as senzalas” advertindo que “! perfil bem definido das pessoas que esto li dentro”. Em sua critica severa, o lider religioso assevera que “o presidio é um palangue de tortura como eram as senzalas, mas hoje das periferias ¢ dos pobres” © nos chama a atencdo para a seletividade dessa instituigdo chamada prisio afirmando que “se houvesse outro piblico li dentro, podiamos nao pensar nisso, mas nao tem algo seletivo”. um como, A situagdo cadtica dos presidios na América Latina, em particular os brasileiros, de violéncias e descaso com os direitos, no € novidade. Presidios extremamente lotados, sem assisténcia aos detentos ¢ uma realidade, reconhecida pelas autoridades, responsiiveis pela politica de execugao penal. ‘Na maioria dos estados nio ha investimento, o que nos leva a um sistema prisional sem condigdes minimas de habitabilidade © sobrevivéncia. O que vemos nesta politica publica é a precariedade; 0 velho calabougo revestido de modernidade, sob 0 argumento dos recursos Cadernos da Defensoria Pablica do Estado de Sio Paulo, Sio Paulo, v6 n. 28 p.39-53, 2021 47 publi 0s insuficientes, que vem fundamentando as priv: negécio”. es, Ou Seja, prises como um “novo O recrudescimento penal e 0 poder encarceratério do Poder Judiciéirio ha décadas vém construindo uma sociedade do superencarceramento, que atinge também criangas e adolescentes, A proposta pablica & cada vez mais punir, em detrimento de politicas sociais para os trabalhadores ‘empobrecidos, com pouquissimas oportunidades sociais. Mesmo que amplamente se veicule que a prisio ndio combate criminalidade ¢ nao evita reincidéncia, A situago caética dos presidios brasileiros é violenta e de descaso com os direitos. Para a clite brasileira, “bandido bom é bandido morto”. As prisdes brasileiras nfo incomodam as classes dominantes, muito pelo contririo: representam 0 lugar de vinganga e softimento desejado, Neste momento, no Brasil, qual seria 0 resultado de um plebiscito sobre a “oficializa jo” da pena de morte ou pristo perpétua? Jé temos tido varios linchamentos, prises ¢ justiga pelas proprias maos. Para a maioria da populagao, o sistema prisional deve ser sindnimo de sofrimento, uma espécie de vinganga que nio respeita os direitos fundamentais de cada individuo condenado e/ou tutelado pelo Estado no cumprimento de suas penas, As barbaries cometidas no sistema carceratio, de violagao dos direitos humanos, tomam- se 0 “cadinho das expiagdes” das chamadas “classes perigosas” - aqueles que “niio deram certo” 1208 olhos dos padrdes dominantes da sociedade burguesa capitalista, E a existéncia das prisdes ‘cumpre um eximio papel nessa sociedade, pois, 0 que acontece dentro de muros ¢ grades & a unigo que o senso comum espera como vinganga e no como justiga. Nesse sentido, 0 encarceramento em massa da populago negra se traduz numa das mais sofisticadas téenicas de contengio, de controle de eliminagao desse segmento populacional, celevando o nosso sistema de “seguranga e justiga” ao patamar de um dos sistemas que mais mata no Brasil, especialmente em confrontos entre as forcas de seguranca © as pessoas privadas de liberdade. Dados do Relatério do Ministério da Justiga/ Comissio de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) apontam algumas das grandes rebelides em presidios brasileiros © seus respectivos niimeros de mortes registrados oficialmente, embora saibamos que os nimeros oficiais nao convergem com os niimeros reais, como jé visto no caso do massaere no Carandiru. Seguem os dados: Carandiru, em Sao Paulo, Capital (1992) ~ 111 mortos; Urso Branco, em Porto Velho, Rondénia (2002) ~ 27 mortos; Benfica, no Rio de Janeiro, Capital (2004) ~ 31 mortos; Pedrinhas, no Maranhio, Sao Luis (2010) ~ 18 mortos; Anisio Jobim, no Amazonas, Manaus (Dezembro /2016-Janeiro/2017) ~ 60 mortos; Penitencisria Agricola de Monte Cristo, em Roraima, Boa Vista (Janeiro/2017) ~ 33 mortos e na Penitenciéria de Aleaguz, no Rio Grande do Norte, Natal (Janciro/2017) — 26 mortos. ‘Apenas para se ter uma ideia da magnitude do nimero de mortes no sistema prisional paulista, em 2014, 482 homens ¢ mulheres faleceram em unidades prisionais do estado, efeito da propria mecanica de operagao da maquina ccarceriria em sua configuragao contemporinea, (MALLART e GODOI, 2017, p30) Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 48 Dados como estes revelam o grau de inseguranga em que as pessoas privadas de liberdade, no estado de So Paulo, esto expostas, além do risco de morte, em ambientes que, teoricamente, deveriam zelar pela sua integridade fisica e mental, Mostram a fragilidade de um sistema penal fadado ao colapso total, se considerarmos a superlotagao e a falta de politicas piiblicas e eriminais que, de fato, possam proteger as pessoas presas ¢ i iciar um processo de desencarceramento, especialmente das pessoas que esto presas sem ao menos serem julgadas e terem as suas penas decretadas. E nés sabemos muito bem quem so os principais prejudicados nesse sistema, pois a sua funcionalidade esta pautada na criminalizago ¢ encarceramento da classe trabalhadora ‘empobrecida e periférica, especialmente a populagio negra, segmento majoritrio entre populago {que apresenta tais caracteristicas, além da ja confirmada maioria da populagaio negra nas prisdes brasileiras. Na atual conjuntura, esse quadro tende a se agudizar, especialmente no que se refere 208 rumos que a nossa politica criminal deve seguir. Preocupagées também trazidas pelos estudiosos Rafael Godoi e Fabio Mallart quando sugerem que: Em tempos de incerteza, de instabilidade institucional, do desmanche que vem sendo imposto i pesquisa cientitica, de “novos-velhos” massacres em presidios ¢ de investidas, cada vez mais mortiferas, contra 0 povo pobre, negro e periférico, e tudo isso na esteira do recente golpe parlamentar, nao basta se limitar& légica do “mal menor”. (MALLART e GODOI, 2017, p.31) Segundo Faustino (2010) além da maquina infernal de aprisionar, o Estado penal persegue sistematicamente os pobres ¢ amplia o sistema penal, intensificando os preconceitos, sua criminalizago, ampliando a repress, buscando enquadrar essa class no perfil desejado das classes dominantes, Para isso, 0 uso do Estado policial. Assim o Estado pune para conter 0s efeitos de sua omissio ¢ desresponsabilizagio, Um Estado (ainda que democritico e de direitos) que no pode prescindir da violencia A.ativista de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos Angela Davis (2018), estudiosa sobre as prisdes naquele pais ¢ defensora do abolicionismo penal contribui para essa discussio sobre a fungio ideolgica da prisio, especialmente no que se refere a forma de como esse ‘mecanismo atinge diretamente a populagao negra, Guardadas as devidas proporedes, pois a autora esti ancorada nos estudos da sociedade estadunidense, podemos considerar que privagio de liberdade ¢ igual em qualquer parte do mundo, ¢ nesse sentido, as prisdes brasileiras guardam semelhangas importantes com as dos Estados Unidos, especialmente o seu cardter seletivo, racista € sexista, como esto os niimeros para confirmar essas caracteristicas ja apresentados nessa pesquisa. Davis (2018) nos convida a refletir sobre as nossas préprias certezas em relagio is fungdes e as necessidades das prisdes na sociedade ¢ nos estimula a fazer discusses similares sobre a instituigao do encarceramento, especialmente o encarceramento da populagdo negra, j que esse tipo de punicdo tem trazido tantos prejuizos 4 nossa populagio, haja vista o grande nimero de mortes, epidemias de doengas, entre outras questdes que esto diretamente relacionadas com a vida na prisio. Problemas estes que nao atingem exclusivamente a populago carceriria, mas também suas familias, sua comunidade, a sua maneira de ser ¢ de estar no mundo. Cadernos da Defensoria Piblica do Estado de Si0 Paulo, Sto Paulo, . 6 n. 28 p.39-53, 2021 4 Consideragées finais A criminalizagao dos pobres, responsaveis por sua condigao ou situagdo de pobreza; a joléncia estatal contra pretos e pobres que ameagam a harmonia e hegemonia da branquitude social, ameaga o controle capitalista da ordem burguesa sob a chamada “classe perigosa” ou a classe dos criminosos em potencial: uma classe/massa de desassistidos, desempregados, destituidos da capacidade de consumo; os chamados “vagabundos” iniiteis, sobrantes, dispendiosos para o Estado: os “matveis”, negros, negras, pelo racismo estrutural ¢ institucional, ameagadores dos “cidadios de bem”, Essas caracteristicas sociais, econdmicas ¢ morais-conservadoras ¢ higienistas, vem justificando as agdes violentas do Estado nas ruas, nas pri ‘0 desmonte delas). Para Davis (2015), nas politicas publicas (ou melhor, A prisio acaba por ser um “efeito magia”, ou melhor, as pessoas que defendem ‘apristo ¢ tacitamente parecem favoriveis a uma rede de proliferagio de prises ¢ cadcias, sio levadas a acreditarem na magia do aprisionamento. Mas nas prisdes ndo desaparecem os problemas, elas desaparecem com os seres hhumanos. E a pritica de desaparecer um grande mimero de pessoas pobres, imigrantes e comunidades racialmente marginalizadas, literalmente se tomuou. uum grande negécio. A magia das prisdes cria uma auséncia de esforgo para ‘compreender os problemas sociais, escondendo assim, a realidade por tris do cencarceramento em massa. As prises desaparecem com os seres humanos a fim de transmitir a ilusio ¢ resolver os problemas sociais. Infraestruturas penis devem ser criadas para acomodar uma populagio em ripido ‘crescimento para serem criadas em gaiolas. ‘A questio do tratamento penal-prisional, como responsabilidade do poder piblico, ‘enquanto tutor desta realidade nos ambitos federal e estadual tem desafiado a sociedade brasileira sobre as mudangas mais do que urgentes do sistema ¢ no apenas ages reformadoras (ou ampliadoras da penalizagiio) do que ja existe, mas sim, de inovagdes e superagdes dessa logica. Iniciamos 0 século XXI, no olho do furacio do crescimento do Estado Penal ¢ de uma sociedade que apoia o Estado punitivo e encarceratorio, cada vez mais rigido, em detrimento das politicas neoliberais, neoconservadoras, do Estado social cada vez mais desmontado, da desprotecio, da “inseguridade” aos trabalhadores (TORRES, 2007). Como bem afirma Carvalho (2003), 0 aparato de controle penal-penitenciirio, na atuagio da ordem e seguranga, vem assumindo cada vez mais seus papéis punitivo-repressivos para os ‘do cidadios”, excluidos da ordem social econémica e destituidos de seus direitos. A penalizagio da miséria via 0 encarceramento dos pobres do qual fala Wacquant (2001) sio caracteristicas crescentes dos governos neoliberais e da atuacdo do Estado social minimo, penal e encarceratério. O estado caético do cumprimento de pena privativa de liberdade hoje no Brasil pode ser também caracterizado, além de varios outros fatores, como parte de uma “desassisténcia” generalizada. E possivel identificar a no correspondéncia entre o que esta disposto na Lei de Execugdo Penal vigente (LEP) ¢ 0 que ¢ praticado nos estabelecimentos prisionais; e mesmo que cumprida, por sua desatualizagao, a LEP nio contempla uma politica de seguridade social ¢garantidora de direitos sociais/cidadania, para quem esta preso Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 50 Por fim, as formas de violéncias e de violagdes dos direitos humanos no encarceramento ‘em massa de forma geral € mais especificamente da populagio preto, pobre ¢ periférica que, notadamente, tem apresentado um crescimento significativo apés a aprovagao da Lei de Drogas, vio ganhando contornos que repercutem nos familiares que, fisicamente esto livres, mas objetivamente também estio presos, pois so obrigados a vivenciar as mesmas experiéncias dos familiares que estdo privados de liberdade. Referéncias ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa. Encareeramento em massa. PUCViva, So Paulo, n. 39, p. 1-4, set, 2010. Bimestral. Editorial. ABRAMOVAY, Pedro Vieira. BATISTA, Vera Malaguti (orgs). Seminario Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro, RJ. Revan, 2010, 1* reimpressdo, 2015. ADAO, Clitidia Rosalina. “As periferias do Brasil podem ser consideradas como senzalas contemporaneas”, afirma pesquisadora. Disponivel em: ‘ttps://www.almapreta.com/editorias/realidade/as-periferias-do-brasil-podem-ser- consideradas-como-senzalas-contemporaneas-afirma-pesquisadora, Acesso em: 22 out. 2018, BATISTA, Vera Malaguti (org.). Loic Wacquant € a questi penal no capitalismo neoliberal. ~ Rio de Janeiro, RJ: Revan, 2012. 2° Edigdo. Direitos (¢) humanos no Brasil contempordneo. Revista Jura Gentium, 2008 Disponivel em: . Acesso em: 26 jul. 2014. Introdugao critica a criminologia brasileira. - Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2* edigdo, julho de 2012, 2" reimpressio, 2015, BRASIL. Banco de dados mostra situaco da populagdo negra do Brasil. Brasilia: SAE, 2012. Disponivel_ em: . Acesso em: 6 jun. 2015. BRASIL. indice de vulnerabilidade juvenil 4 violéncia e desigualdade racial 2014. Bra SNJ, 2015. Disponivel_ em: ~—_. Acesso em: 28 maio 2015. BRASIL. Lei de Execugio Penal no. 7.210 de I de junho de 1984, BRASIL, Ministério da Justiga e Seguranga Publica; Departamento Penitencidrio Nacional Levantamento Nacional de Informagdes Penitencidrias: Atualizagio - Junho de 2016. INFOPEN, 2017. Disponivel em: . Acesso em: 15 ago. 2018. BRASIL; Ministério da Justica ¢ Seguranga Piblica; Departamento Penitenciario Nacional. INFOPEN Mulheres: Levantamento Nacional de Informagdes Penitencidirias. 2018. Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 5 Disponivel em: . Acesso em: 18 ago. 2018, BRASIL. Presidéncia da Repablica, Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil / Secretaria-Geral da Presidéncia da Reptiblica e Secretaria Nacional de Juventude. ~ Brasilia : Presidéncia da Repablica, 2015, 112 p. (Série Juventude Viva). BUCH, Joo Marcos. Na Europa ou América Latina, encarceramento esta longe de ser a solucdo para a sociedade. 2017. Disponivel em: -. Acesso em: 15 ago. 2018. CARCERARIA, Pastoral. Agenda Nacional pelo Desencarceramento. 2017. Disponivel ‘em: . Acesso em: 20 ago. 2018. CARVALHO, S, Penas e Garantias. Rio de janeiro: Limen Jiris, 2003, CATOIA, Cinthia de Céssia. A produgao discursiva do racismo: Da escravidio & criminologia positivista. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 11, nm, .2, p.259-278, Mai-Ago 2018. Quadrimestral.-—Disponivel__em: . Acesso em: 15 ago. 2018. ‘NI, Consetho Nacional de Justiga. Novo Diagnéstico de Pessoas Presas. Departamento de Monitoramento ¢ Fiscalizagao do Sistema Carcerario ¢ do Sistema de Execugao de Medidas Socioeducativas Brasilia, junho —de_——2014 Disponivel em http://www. cnjjus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. Acesso em 30/10/2014. DAVIS, Angela. O encarceramento em massa nunca trouxe solugdes para conter a violencia: Hoff Post Brasil 2017. Disponivel em: . Acesso em: 08 ago. 2018 Estaro as prisdes obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018. 144 p. Tradugao de: Marina Vargas DEPEN, Departamento Penitenciirio Nacional (Depen), Ministério da Justiga. Brasilia. Disponivel em hitp://portal.mj gov.brimain.asp? View="%7BDS74E9CE-3C7D-437A-ASBO- 22166AD2E896%7D& Team=& params=itemID=%7BD82B764A-E854-4DC2-A018- 450D0D1009C7%7D;&UIPartUID="7B2868BA3C-1C72-4347-BE I l- A26F70F4CB26%7D. Acesso em 30/10/2014. FAUSTINO, Deivison Mendes. O encarceramento em massa e os aspectos raciais da exploragio de classe no Brasil. Revista PUCVIVA ~ encarceramento em massa, simbolo do Estado Penal. Sio Paulo: APROPUC-SP no. 39, 2010, FORUM BRASILEIRO DE SEGURANCA PUBLICA. Anuario Brasileiro de Seguranga Piblica, 7" ~—edigdo. Sio Paulo, 2013, Disponivel em Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 hup://www.forumseguranca.org, br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/7a~ edieao . Acesso em 01/11/2014 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Petropolis, RJ: Ed. Vozes, 29° Ed,, 2004, JUSTIGA, Ministério da. Ha 726.712 pessoas presas no Brasil: Levantamento Nacional de Informagées Penitenciarias, 0 Infopen, traz dados consolidados. 2017. Disponivel em: <. Acesso em: 21 ago. 2018. MALLART, Fabio; GODOI, Rafael (Org.). BR 111: a rota das prisdes brasileiras. Sao Paulo: Veneta, 2017. 162 p. MATOS, Deborah Dettmam. Racismo cientifico: O legado das teorias bioantropologicas na estigmatizagao do negro como delingtiente. In: Ambito Juridico, Rio Grande, XIII, n. 74, mar. 2010. Disponivel em: -, Acesso em: 24 jul. 2016 ROLNIK, Raquel. Territ6rios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em Si Paulo ¢ Rio de Janeiro, Diversidade, espaco e relacdes étnico-raciais Brasil, Belo Horizonte: Auténtica, 2007. ‘o negro na Geografia do SILVEIRA, Valdir. Prisdes siio as senzalas dos dias de hoje, diz ativista da Pastoral Carceréria. 2014. Disponivel em: . Acesso em: 15 ago. 2018. SMALL, Deborah. Guerra as drogas facilita a criminalizagao de pobres e negros: O Globo. 2016. Disponivel em: . Acesso em: 08 ago. 2018. TORRES, Andrea Almeida, Criticas ao tratamento penitenciério e a falicia da ressocializagdo, Revista de Estudos Criminais no. 26, ITEC/ PUCRS: Porto Alegre, 2007, ; VILA NOVA, Adeildo. O corpo negro eriminalizado nos cérceres brasileiros In: CONGRESSO DE PESQUISA EM PRISAO, 1., 2017, Sio Paulo. Anais do I CPCCRIM. Si Paulo: Ibecrim, 2017. p. 893 - 917. Disponivel_ em: -. Acesso em: 08 ago. 2018. WACQUANT, Loic. Da escravidio ao encarceramento em massa: Repensando a "questio racial” nos Estados Unidos. 2002. Disponivel em: -. Acesso em: 15 ago. 2017. YUCA, Marcelo, Todo camburao tem um pouco de navio negreiro. Album Instinto Coletivo (1994). Disponivel em: hitps://www.vagalume.com.br/o-rappa/todo-camburao-tem- um-pouco-de-navio-negreiro.html. Acesso em: 15 ago. 2017 Cadernos da Defensoria Piiblica do Estado de Sao Paulo, Sao Paulo, x. 6 n. 28 p.39-53, 2021 5

Você também pode gostar