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Sérgio Buarque de Holanda afirma que, desde o início da concepção de Estado

brasileiro, ele tem grande dificuldade de se afirmar, por não conseguir conter esses
grandes proprietários de terra.

Nos últimos 15 anos tratar da ideia de se produzir apenas bens primários. Começa com a
colonização portuguesa. É o modelo monoagroexportador, desde a colonização
adotado no Brasil.

Nossa economia desde sempre foi exportar gêneros com baixo valor agregado em razão
da não industrialização. Estamos nessa posição no capitalismo mundial desde 1532.

Nos últimos 15 anos, contudo, temos uma revalorização da primarização

fortalecimento de um novo mercado, que é o mercado chinês.

Ocorre atualmente o processo de expansão das fronteiras agrícolas, que é essa


necessidade do sistema monoagroexportador de aumentar sua área de exploração
territorial.

A legislação florestal antes do Código Florestal impunha algumas barreiras para esse
desenvolvimento desenfreado do setor agropecuário. O Código (2012) foi um primeiro
passo para retirar essas barreiras. Inclusive, no bojo da reforma trabalhista, existe uma
reforma trabalhista rural.

Temos, conforme o texto 1, atualmente a hegemonia do capital financeiro. Temos ai


uma corrida por determinados ativos financeiros que sejam mais palpáveis. O principal
ativo financeiro no caso brasileiro, desde os anos 50, é a terra, urbana ou rural. Com
esse bem, posso me dirigir a uma instituição bancária, dar esse bem em garantia, e com
isso obter crédito. É a chamada hipoteca. Isso garante à terra a característica de ser o
principal ativo financeiro. É o coração do modo de produção capitalista.

Do ponto de vista de uma moldura jurídica, o direito agrário aparece positivado (com
essa nomenclatura) na nossa legislação numa emenda constitucional à CF de 1946 (EC
10/1964). Mas a ideia de direito agrário, as noções que inspiram o direito agrário, eles
aparecem muito antes, desde a legislação medieval portuguesa que é adotada no Brasil.
Até a CF 46 havia dois tipos de desapropriação positivadas, através do Decreto Lei
3365/41: a desapropriação por utilidade pública e a desapropriação por
necessidade pública. Isso ocorreu na gestão Vargas, que era desenvolvimentista, pois
as apostas macroeconômicas estavam voltadas para dinamizar iniciativa privada a partir
de investimentos públicos. Investia-se em infraestrutura básica: portos, ferrovias,
aeroportos, hidrelétricas, etc. Então, esse decreto visava garantir poder ao Estado para
intervir na propriedade privada para poder instalar esses equipamentos públicos e
manter o desenvolvimentismo.

Utilidade pública é o que é de interesse do estado. Se há vontade de construir


hidrelétrica, ele desapropria para garantir a instalação. Por necessidade pública, o
estado intervém em caso de desastre, epidemia, situações de urgência como um todo.

A CF 1946 trouxe uma novidade, que foi a introdução de um terceiro tipo de


desapropriação. Trata-se da desapropriação por interesse social. Essa modalidade
aparece muito por força da ação do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Busca fazer
com que a propriedade se conecte com o bem-estar social, previsão já existente na CF
de 1934.

Apesar da positivação, até 64 não há nenhuma medida efetiva do ponto de vista estatal
no sentido de dar concretude a essa ideia de desapropriação por interesse social, salvo
uma lei na gestão de João Goulart em 63 em que ele prevê alguns elementos deste tipo
de desapropriação. Essa lei inclusive foi decisiva para o golpe de 64.

A EC 10/64 trata do conteúdo dessa desapropriação por interesse social, já após o golpe,
trazendo expressamente: “É competência exclusiva da União legislar sobre direito
agrário”. Isso ocorreu pois em 1959, o Governo de Pernambuco promoveu a primeira
desapropriação por interesse social do brasil.

Isso ocorreu num Engenho de Açúcar de Vitoria de Santatão, interior pernambucano. Os


empregados lá eram tratados como arrendatários, e não como empregados de fato. Lá os
empregados tinham que oferecer o “cambão”, que era um dia gratuito de trabalho
prestado para o empregador, que às vezes virava semanas, tornando os empregados
quase escravos. Esses empregados passaram a se mobilizar contra essa conjectura,
pressionam o Governo Pernambucano, e desapropriam a Fazenda Galiléia, onde isso
ocorria. Esses coletivos de trabalhadores vão ser chamados de Ligas Camponesas. Em
1960, existiam 22 estados, e em 18 havia ligas camponesas. Essa mobilização gera
pânico no país, por medo de ocorrência de uma revolução comunista nos moldes
cubanos. Com isso, logo após o golpe a União edita essa EC.

Até hoje, na CF 88, é competência exclusiva da União legislar sobre direito agrário.

Cabe ressaltar que os Estados também legislam sobre direito agrário. A CF se refere à
direito agrário para se limitar a competência legislativa em relação à desapropriação por
interesse social. O uso e ocupação de terras públicas estaduais, por exemplo, é legislado
em âmbito estadual, e por vezes ainda em âmbito municipal, quando se trata de terras
municipais.

A EC 45/2004 contribui para esse processo de autonomização do direito agrário. No


art. 126 da CF/88 pós-emenda 45 aparece:

Art. 126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça


proporá a criação de varas especializadas, com competência
exclusiva para questões agrárias.

Esse artigo trata da especialização da matéria direito agrário, inclusive no âmbito


jurisdicional. Nos tribunais de justiça criam-se varas especializadas para dirimir
conflitos fundiários.

Em 2014, o TJ-BA assumiu, via Instrução Normativa (nº 2/2014) a função que o artigo
126 lhe atribuiu ainda em 2004, criando finalmente as varas especializadas. O TJ define
que serão criadas 6 (seis) varas, que terão competência territorial semelhante à da
Justiça Federal (em regiões e seções judiciárias). Até agora, só 1 funciona, que é a vara
de Barreiras.

O índice de GINI, que mede a concentração fundiária no Brasil, era em 1920, em uma
escala de 0 a 1, 0,8. Em 2006, data do ultimo levantamento, era também de 0,8. Nota-se
manutenção da alta concentração fundiária no Brasil ao longo das décadas/séculos.

É esse instituto jurídico que será importado para o Brasil pela empresa colonial. Antes
desse instituto aparecer na legislação, ele teve uma origem fora do âmbito estatal.
Surgiu pelos costumes. Os próprios camponeses da Idade Média pensaram nesse
costume, com vista a permitir acesso e distribuição da terra. Atrela-se ao conceito de
“communalia”.

Segundo esse ultimo conceito, as terras de lavrar serão partilhadas entre a comuna. Essa
terra será necessariamente compartilhada com todos os membros daquela coletividade.
Cada um dos membros do grupo terá acesso a uma fração da terra, chamada de sexmo.
Sobre esse sexmo incide a obrigação de lavrar.

As terras comunais, que são essas que seguem a lógica da communalia, continuam
existindo em alguns locais, como nas terras tradicionalmente ocupadas por quilombolas,
índios, entre outras comunidades tradicionais. Também subsiste na Europa. O CC/16
tratava das terras comunais, que era o instituto do compáscuo, mas o de 2002 se calou.
Há tratamento em Convenções, leis extravagantes e na própria CF.

Em 1348 em Portugal, ocorre a Grande Peste. Com a queda demográfica, ocorre queda
também no abastecimento, já que eram os atingidos pela praga que produziam os
gêneros alimentícios.

Em 1375, o Rei de Portugal, Dom Fernando I, edita o que ficou conhecido como Lei
de Sesmarias. Isso ocorreu, para muitos, por conta dos efeitos da Grande Peste. Dom
Fernando teria incorporado esse costume numa norma jurídica para que todos aqueles
que se assenhorassem de determinado terreno/imóvel tivessem a obrigação de lavrar.

Para outros, ocorre pela preocupação política de definir os rumos da apropriação


territorial dentro do território português, que já vinha ocorrendo com a derrocada do
sistema feudal e o crescimento do sistema monárquico centralizador.

A Coroa Portuguesa, ao definir essa positivação do uso da terra, também define valor
pelo uso da terra, que seria então de 1/10 (dízimo). A razão social da Coroa Portuguesa
era “mestrado de cristo”, justamente para trazer uma fundamentação divina à atuação
do monarca. Assim, justificava-se (religiosamente) o pagamento do dízimo sobre o uso
da terra.

Com o pagamento do dízimo, a Coroa garante ainda o orçamento que a colocará na


dianteira na próxima fase do modo de produção pós-feudal, capitalista - mercantilista.
Assim, o Portugal sai na dianteira na fase das Grandes Navegações em busca de novos
territórios e no comércio marítimo.
Na Lei de Sesmarias, Dom Fernando traz um pouco da explicação do por que da
instituição desse modelo, corroborando a primeira explicação, que trata da crise de
abastecimento no pós-grande peste. Mesmo assim, entende-se que as explicações se
complementam.

Consequência da obrigação de lavrar é que, aquele que não lavrar, perderá a


concessão da sesmaria. Concessão, pois não havia propriedade privada como
entendemos hoje. A propriedade em si era do “mestrado de cristo”, e não de ocupante.
Essa era apenas cessionário do imóvel.

No Código Justiniano havia o instituto do usucapio pro agro deserto. Segundo este, se o
titular do imóvel não executasse as obrigações decorrentes da titularidade daquele bem
em 2 anos, ele perderia o bem. É o que se chama hoje de prescrição aquisitiva.

Em Portugal, se deu assim: se no prazo de 6 meses aquele que recebeu a concessão da


Havia um fiscal da Coroa, chamado de “vedor”, para verificar se as terras de fato eram
cultivadas.

No Brasil as sesmarias perdem a característica da forma de exploração da terra para


consumo interno. Além disso, o sistema colonizador ainda enfrentará outro desafio, o da
empresa colonial.

Já tivemos 1 caso de mulher sesmeira (ilha de Itaparica), de indígenas e de 1 sesmeiro


escravo alforriado. Os sesmeiros daqui tinham algumas obrigações: (1) de cultivar (não

Outra função do sesmeiro era de (2) defesa, devendo edificar fortificações em seu
território visando evitar invasões de outros europeus.

Mas a principal obrigação dos sesmeiros era (3) utilizar mão de obra de escravizados
(as) de varias etnias diferentes provenientes do continente africano. Era fundamental
para o funcionamento da empresa mercantil e do capitalismo mercantil como um todo.

o (4) dízimo. No século 18, esse dizimo sofre transformação, por conta de nova
legislação portuguesa.
Desde essa legislação colonial, dessas concessões de sesmarias, aquelas terras onde se
encontrasse presença originária indígena, seriam considerados não suscetíveis de ser
concedidas em sesmarias. Eram os chamados indigenatos. Isso, como se sabe, não
ocorreu bem dessa forma. A determinação de indigenatos foram muito descumpridas.

A 2ª Turma do STF tem desconsiderado essa legislação anterior, e considerado a CF de


88 como inicio da regulação das terras indígenas no Brasil, apesar da CF de 1934 já ter
regulado isso, bem como a Lei de Terras de 1850. O indígena deve demonstrar que
estava naquela terra à época da entrada em vigor da CF (marco temporal em 5 de
outubro de 1988). Esse é o entendimento específico da Segunda Turma. As outras
divergem. Consequência disso foi a anulação, à época, de quatro demarcações de terra
indígena, pois era local de disputa com madeireiros e sojeiros.

(5) demarcar terras..

Assim, eram obrigações do sesmeiro:

(1) cultivar na terra

(2) defender o território da sesmaria

(3) utilizar mão de obra de escravizados

(4) pagar o dízimo (foro)

(5) demarcar terras

AULA 05- 31/05/2017

3.3. O REGIME DE POSSES (1822-1850)

O modelo de sesmaria durou de 1532 (divisão do Brasil em capitanias hereditárias) até


1822. Uma resolução de 17 de julho de 1822 suspendeu o modelo de sesmaria. Ou seja,
quase 300 anos de vigência do modelo.

Entre 1822 e 1850 vingou o chamado regime das posses. Aqui, não se concede mais
sesmaria, e em seu lugar não temos mais nada. O Estado se isenta de ditar como será a
ocupação das terras brasileiros.
Se mantem a denominação de “terras tributárias da coroa portuguesa”. Temos como
regulamentação apenas a Constituição Imperial Portuguesa de 1824, influenciada pela
legislação europeia marcada pelas revoluções liberais da época. O chamado espírito
proprietário, oriundo do pensamento de John Locke, segundo o qual o homem já nasce
proprietário do próprio corpo, e por isso devia ter acesso a outras propriedades.

Com a suspensão do regime de sesmarias, e muito embora tenhamos a previsão de


regime de propriedade, isso não impacta na forma de acessar à terra. A principal forma
de acessar a terra nesse momento (1822-1850) passa a ser ocupação primária, ou
“posse”, como dizemos hoje. Por isso se chama de regime “de posses”. Isso não
decorria da lei, mas dos costumes.

Essa ocupação primária vai gerar direitos. Mas esse direito não é gerado como no
direito romano, quando bastava ver a terra inocupada e toma-la para si. Ou seja, não
bastava o animus domini. Aqui, esse ânimo de se apossar, de ter a terra para si, deve
estar associado ao cultivo da terra. A posse-trabalho tem supremacia em relação ao
direito de propriedade, situação que continua no direito agrário até hoje. Consequência
disso é que, se o ocupante primário que cultiva for prejudicado por uma concessão a
sesmeiro, a posse de ocupante (também chamado de posseiro ou possuidor) prevalecerá
sobre a do sesmeiro. Ocorre a chamada legitimação da posse, positivada apenas em
1850.

Essa forma foi fracassada, pois ele não conseguiu ser competitivo adotando esse
modelo. O que aconteceu depois foi o custeio, pelo Estado, da imigração de europeus
para o país. E a solução para custear essa imigração foi a venda de terras públicas,
originada com a Lei nº 601/1850, a Lei de Terras. É o ano também, não por acaso, da
lei que extinguiu o tráfico negreiro (Lei Eusébio de Queiroz) e do Código Comercial.

3.4. O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO DA LEI Nº 601/1850 (A LEI DE TERRAS)

Havia forte pressão internacional oriunda da Inglaterra para o fim do escravismo, como
visto. No Brasil, por tudo isso, os cafeicultores, em especial do sul e sudeste, vão
tentando encontrar alternativas para enfrentar essa pressão internacional. Há iniciativas
tomadas por particulares, como a do Senador Vergueiro, já trazida acima. O preço do
escravizado subia com o fim do tráfico, e os cafeicultores tinham que importar
trabalhadores europeus. A ideia também era embranquecer a população.

Na Europa isso também produz repercussões, já que esses trabalhadores que aqui
chegavam muitas vezes eram submetidos a condições de trabalho degradantes. Há
vários registros de governos europeus pedindo informações e ameaçando aplicar
sanções ao Estado Brasileiro por conta da insalubridade a que os trabalhadores europeus
eram submetidos.

Tudo isso contribuiu para a edificação da Lei de Terras de 1850. O primeiro projeto de
lei que trata dessa matéria foi aquela elaboração da Câmara de Comercio Exterior do
Império. É proposto na primeira Casa Legislativa, mas fica engavetado por vários anos.
Com a proibição do tráfico negreiro pela Inglaterra através da Bill Aberdeen, o projeto
ganha força e começa a tramitar de novo no Senado, para resolver o problema. Já havia
a péssima experiência do Senador Vergueiro, que gerou prejuízo para seus negócios.

O primeiro artigo do texto da Lei diz que “ficam proibidas as aquisições de terras
devolutas que não seja a titulo de compra”. Ou seja, até 1822 as terras eram concedidas
em sesmaria. Agora, elas só serão obtidas por meio de compra, assim como prevê a tese
wakefieldiana do preço suficiente. Logo, ficaram excluídos da propriedade da terra os
escravizados e os imigrantes pobres da Europa. Aqui temos mais um passo para garantir
a concentração fundiária. A própria lei de terras impede, mesmo que o imigrante
europeu consiga reunir dinheiro suficiente para tanto, que ele compre terras nos 3 anos
imediatamente subsequentes à sua chegada no país. Ele é obrigado a participar da
lavoura nesse período inicial.

É com esses documentos de revalidação, entre outros, que começaram a aparecer os


procedimentos de grilagem. Criava-se um documento de revalidação, colocava numa
caixa, enchia de grilos e os papeis ficavam com aparência de antigos. Esses documentos
eram utilizados em processo judicial para comprovar propriedade. Hoje são utilizados
outros métodos, em especial o pagamento de suborno a oficiais cartorários para
matricular o imóvel. Outro método é pegar a revalidação de sesmaria, bota embaixo na
cela de cavalo, anda no cavalo e, com o suor do cavalo, o papel fica com aparência de
antigo.
A Lei de Terras já vai trabalhar com a ideia de indenização de benfeitorias daquele
ocupante ou sesmeiro que não conseguiu revalidar, ou do posseiro que não conseguiu
legitimar. Esses indivíduos terão direito a indenização das benfeitorias feitas no terreno.

Outro elemento importante da lei é a questão da posse das terras tradicionalmente


ocupadas e as terras de uso comum. Diz a lei que elas serão conservadas e
conservarão o mesmo uso de acordo com a prática atual, se lei específica não dispuser
em contrário. São as situações em que há posse comunitária, e não posse individual. O
CC/1916 também se referiu a isso, chamando-o de “compascuo”. O CC/02 se omitiu
sobre o assunto. Só a CF e a legislação agrária continuam tratando sobre o tema.

A Lei de Terras repete o que já aparecia nas Cartas Régias. O governo deve garantir
terras devolutas para garantir a presença do indigenato. O governo organizará ainda, por
freguesias (hoje chamadas de “bairros”) o registro de propriedades.

Depois da Lei de Terras, tivemos outro diploma legislativo importante, que foi a Lei nº
1237 de 1864. Ela instituiu o primeiro registro geral imobiliário e de hipotecas do
Brasil. A lei de terras já tinha instituído o registro paroquial (as propriedades deveriam
ser comunicadas ao pároco). Mas esse registro não tinha fins imobiliários, mas
meramente fins cadastrais. Foi somente com esse registro de 1864 que se adotou o
registro com o fito de garantir a segurança das operações de crédito, a dar transparência.
É o Estado que passa a se responsabilizar por esse registro. As hipotecas também eram
registradas, de modo a inibir as hipotecas ocultas.

Institui-se o método de aquisição de propriedade através da transcrição no registro


público. Sem essa transcrição, não haverá direito a propriedade. Essa transcrição tem
que seguir os procedimentos/ritos constantes da legislação própria para que seja
considerada valida.

Logo após esses decretos, tivemos a primeira Constituição Republicana de 1891.


Nela, o direito de propriedade é previsto da mesma forma da CF de 1824: “É garantido
o direito de propriedade em toda a sua plenitude”. Só que aqui a propriedade do solo já
existe, não é mais patrimônio da Coroa Portuguesa. O proprietário poderia usar, gozar,
dispor, reaver, fruir e destruir sua propriedade. Era uma visão bastante absenteísta do
Estado quanto à propriedade, tendo o direito de propriedade caráter absoluto.

Contudo, já estávamos no fim do século 19, e algumas ideia já abalavam essa ideia de
do direito de propriedade absoluto. No plano religioso, alguns papas escreveram as
chamadas encíclicas papais asseverando que direito de propriedade deveria ser
concebido considerando também o bem comum, da coletividade. Começa a aparecer a
doutrina social da Igreja Católica. Exemplo clássico foi a encíclica chamada “Rerum
Novarum”, de 1893. Advém da chamada teologia da libertação, ramo filosófico da
Igreja.

No inicio do século XX, o cientista político e sociólogo francês Leon Duguit cria a
ideia de função social da propriedade, o que também contribui para o
enfraquecimento da ideia de direito de propriedade absoluto.

Além disso, os movimentos políticos de caráter marxista e socialista como um todo


estavam a todo vapor nesse contexto.

Três movimentos constitucionais no mundo serão importantes para o direito de


propriedade no início do século XX. Em 1917, ocorre a revolução bolchevique na
Rússia (na qual se destituiu a monarquia até então vigente), que vai ter impacto jurídico
na leitura do direito de propriedade; e a promulgação da Constituição do México a partir
dos valores da revolução mexicana, em que camponeses, povos indígenas e soldados
de baixa patente se uniram para destituir governo que tinha aproximação com os EUA.
O autor americano John Reed retratou ambas as revoluções em suas obras.

Haviam as haciendas no México. Com a revolução, essas haciendas foram parceladas,


dando origem aos ejidos, onde poderia haver inclusive compartilhamento entre varias
famílias camponesas. A ideia era resolver o problema da concentração fundiária.
Ocorreu o fenômeno da estatização dessas propriedades privadas no México, tendo o
Estado a partir dai a incumbência de promover esse partilhamento da terra.

Na Rússia também houve consequências da revolução, que foi a promulgação de nova


Constituição Russa. Ela previu expressamente a abolição da propriedade privada. John
Reed escreveu o livro “Dez dias que abalaram o mundo” retratando também esse
evento.
Em 1919, é promulgada a Constituição de Weimar (ou Constituição alemã). Ela
promove outra leitura. O direito a propriedade é garantido, mas existe uma obrigação
ligada a esse direito. A obrigação deve estar conectada com o bem estar social.

Importante notar como esses movimentos modificam o entendimento do direito de


propriedade. Não há mais disposição absoluta sobre a propriedade. O proprietário terá
obrigações vinculadas ao uso da terra. Segue-se a ideia de função social da propriedade
de Leon Duguit.

Em 1931, o papa de então edita nova encíclica papal, chamada de “Quadragesimo


Anno”. Diz que a propriedade é direito natural, mas o bem estar social deve estar inter-
relacionado com esse direito.

Tudo isso contribui para o novo texto da Constituição Federal de 1934. A CF dispunha
que “é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido sem observar ou
contra o interesse social ou coletivo”. Assim, não se trata mais de direito absoluto.
Porém, não há instrumentos jurídicos de operacionalização dessa mudança radical
em relação ao texto de 1891. Um instrumento jurídico só aparece nos anos de 1960, a
desapropriação por interesse social.

A CF de 1934 é expressa também em dizer que não há mais plenitude no direito de


propriedade, pois “é distinta a propriedade do solo das riquezas do subsolo, bem como
das quedas d’água e corpos hídricos”.

A CF de 1891 já havia sofrido Emenda (sem numeração) em 1926, proibindo que


estrangeiros ou particulares usufruíssem dos bens do subsolo das propriedades. Com a
descoberta do petróleo, o Estado se apressou a editar essa Emenda para garantir a
monopólio de propriedade dessas riquezas à União, podendo ela garantir ao proprietário
no máximo a concessão de uso dessas riquezas. Isso está sendo flexibilizando hoje em
dia, ao menos em relação ao petróleo, pois o Estado já está leiloando poços de petróleo.

Esse regime de intervenção da propriedade vai começar a ser bem definido após a CF.
Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 3365/41 institui a desapropriação nos casos de
utilidade pública e por necessidade pública.

Na Constituição de 1946 temos uma transformação ainda mais contundente quanto a


essa possibilidade do Estado intervir na propriedade. Seu texto diz que “é garantido
direito de propriedade, salvo desapropriação por utilidade e necessidade púbica, ou por
interesse social mediante prévia e justa indenização em dinheiro.” A novidade é essa
terceira hipótese de intervenção, considerando o interesse social. Isso decorre da
participação do Partido Comunista no debate da nova Constituinte.

O texto da CF usa ainda a expressão “justa distribuição da propriedade”, com base


no “interesse social”. Daí se depreende a ideia de combate à concentração fundiária
na nova CF. Essa distribuição de terras, a partir do estabelecimento de limites nos
tamanhos das propriedades, ocorreu de forma bem sucedida nos Estados Unidos. Isso,
porém, não gerou grandes consequências na realidade brasileira, por questões
econômicas, políticas, etc.

As Ligas Camponesas tiveram papel importante nesse momento. Buscavam melhores


condições de trabalho nas fazendas de cana de açúcar. Isso tudo se transformou em
pauta por melhor distribuição do acesso a terra, em pauta para reforma agrária.

Nesse momento, Francisco Julião, advogado de Pernambuco e deputado estadual, é


buscado pelos camponeses para auxiliá-los em sua mobilização para conquistar direitos.
Ele se destaca como fomentador da importância das ligas camponesas, da reforma
agrária, inclusive dentro do Congresso Nacional, já que ele chegou a ser também
deputado federal. Há ainda a questão da Fazenda Galiléia, tratada anteriormente, que é
um marco da desapropriação por interesse social.

A Emenda nº 10/1964 à CF/1946 instituiu a palavra “reforma agrária” e define melhor


o que é desapropriação por interesse social. A Lei nº 4504/1964, chamada de “Estatuto
da Terra”, regula enfim essa desapropriação. Essa Lei ainda está vigente em alguns
dispositivos, enquanto outros não foram recepcionados.

O Estatuto da Terra foi editado apenas alguns meses após o golpe militar. Por exemplo,
a “fruit company”, atual Kibon, tinha e tem diversos imóveis rurais na América Latina,
e estava preocupada com o acontecimento (Revolução) de Cuba em 1959, uma vez que
ocorreu a estatização dos seus imóveis. Ela, então, financiou a ditadura militar, para
garantir a manutenção de sua propriedade.

Num contexto maior, criou-se uma aliança chamada de aliança para o progresso, que
se deu entre os EUA, corporações transnacionalizadas (como a Fruit Co.) e setores
políticos da América Latina para evitar novas revoluções socialistas na região. Nesse
contexto, o presidente do Chile foi assassinado e João Goulart renunciou.

A ideia era então esmaecer a possiblidade de reforma agrária naqueles termos propostos
pelas Ligas Camponesas, que envolvia a extinção dos latifúndios e a redistribuição
direta da terra, cominadas com políticas públicas para melhorar as condições de vida
dos camponeses. Os setores patronais rurais acharam que se poderia resolver o
problema com a modernização do latifúndio arcaico, atrasado, até então
predominante. Assim, não seria necessário extinguir o latifúndio, mas apenas
modernizá-lo.

O Estatuto da Terra incorpora essa pauta do setor patronal, de dinamização do


latifúndio. Eles entendiam que não podiam ignorar a matéria, dada sua importância. A
modernização proposta era a chamada modernização conservadora. No mundo ocorria
a chamada revolução verde 1, envolvendo o aumento da produtividade agrícola através
da utilização de agrotóxicos, mecanização da produção, pesquisa cientifica, OGN’s
(organismos geneticamente modificados), crédito rural, entre outros. A pauta da
modernização conservadora incorporava essas ideias.

A reforma agrária do Estatuto da Terra tem caráter residual, pois ocorreu apenas em
alguns imóveis, que estavam “em zonas críticas de tensão e conflito social”. Se deu
ainda de imóvel por imóvel, ou seja, o Estado tinha que observar qual imóvel está em
condições de ser desapropriado. É ainda reforma agrária onerosa, pois deve haver justa
indenização.

O latifúndio arcaico terá então que se transformar na chamada empresa rural, adotando
as ideia da revolução verde.

Como se vê, o Estatuto da Terra, ao invés de contribuir para a melhor distribuição das
terras, ajudou apenas a aumentar a concentração fundiária no Brasil.

1
O texto dos anos 60 tratando do tema foi o “Plano Nacional de Desenvolvimento dos Defensivos
agrícolas”. Nos anos 80, temos a “Lei de Agrotóxicos”.
A Constituição de 1934 traz que “será respeitada a posse de terra de silvícolas”.
Prevê então o modelo tutelar, que determina que os índios não são proprietários, mas
apenas possuidores de forma permanente da terras que ocupam. Na CF atual esse
instituto da posse das terras indígenas não desaparece, apenas adiciona-se o adjetivo
“permanente” a posse. Assim, do ponto de vista jurídico, as terras indígenas são bens
públicos da União.

A União, quando demarca a terra indígena, não pode anular essa demarcação.
Essa é a ideia da posse permanente.

O modelo da CF atual traz outra ideia, mais ampla, que é o da terra tradicionalmente
ocupada, englobando não apenas as terras em que se encontram indígenas vivendo.
Existem locais que eram de indígenas, mas estes foram expulsos. Esses locais também
podem ser considerados tradicionalmente ocupados.

A segunda turma do STF, como já vimos, tem desconsiderado a ideia de terra


tradicionalmente ocupada com base na ancestralidade. As outras turmas entendem em
sentido diverso.

Essas terras têm algumas características como a imprescritibilidade,


impenhorabilidade e a inalienabilidade.

A regulamentação da desapropriação por interesse social ocorre de maneira bastante


tímida no Governo de João Goulart, através da Lei nº 4132/62. Se interessa mais em
descrever o que é interesse social do que estabelecer de fato quais imóveis serão objeto
de desapropriação. A União define quais imóveis serão desapropriados, e os
trabalhadores terão acesso a esses imóveis de interesse social por meio de venda ou
locação (modelo oneroso).

Esse modelo difere do modelo do Estatuto da Terra, pois não interessa se no terreno há
algo funcionando. Se houver interesse público na desapropriação, desapropria-se. No
Estatuto da Terra primeiro avaliava-se o terreno para ver se estava cumprindo função
social, para só depois, se não estivesse, desapropriá-lo.

Hoje é diferente: a União desapropria e, ao final da desapropriação, a União destina aos


beneficiários, através de instrumentos como concessão de direito real de uso,
transferência do direito de propriedade, etc. Ou seja, hoje se dá por modelos
gratuitos, e não onerosos. Apenas pode ser oneroso se acontecer por meio do chamado
crédito fundiário, que será discutido depois.

Todo esse contexto da época e a influencia das grandes corporações internacionais


gerou as condições para a ocorrência do Golpe de 64.

No Estatuto da Terra temos ainda a definição do que se entende por função social da
propriedade da terra. A função social acontece quando a propriedade (1) favorece o
bem estar dos proprietários e dos trabalhadores (entenda-se como da coletividade, e
não só dos trabalhadores do estabelecimento), (2) com níveis satisfatórios de
produtividade (uso adequado e racional, no texto constitucional atual), que (3)
assegura a conservação dos recursos naturais (respeito ao meio ambiente e
atendimento da legislação ambiental, na CF/88. A nova CF traz a ideia não só de função
social, mas função socioambiental) e (4) respeita a legislação trabalhista.

Os imóveis serão classificados pelo Estatuto da Terra em: (a) minifúndios, que são
aqueles que não atendem as condições de manutenção de uma família. Assim,
nacionalmente se instituem padrões para saber qual será a fração mínima de
parcelamento de terra que garante o sustento de uma família. Essa fração mínima é a
propriedade familiar. Os minifúndios, para o estatuto, deveriam ser banidos,
desapropriados, para que no processo de remembramento se tornem ao menos
propriedades familiares; (b) propriedade familiar, que corresponde a 1 (um) modulo
rural. Esses módulos são definidos regionalmente e municipalmente através do INRA,
considerando condições ambientais, solo, clima, etc; (c) latifúndios, que podem ser por
extensão ou por exploração. Por extensão é aquele imóvel que excede em 600 vezes a
média dos imóveis rurais da região em que se localiza, devendo o INRA localizar esses
imóveis, independemente de haver produção em todo o terreno. Por exploração é o
latifúndio que, independemente da extensão (só não pode ser 1 modulo, porque ai vai
ser propriedade familiar), não atinge níveis satisfatórios de produtividade, está sendo
explorado em desconformidade com a legislação ambiental e trabalhista, etc. O
latifúndio, assim como o minifúndio, também deve ser banido por interesse social ; e
(d) empresas rurais, que são aqueles imóveis explorados tanto por pessoa jurídica
como por pessoa física, sendo explorado racionalmente e garantindo níveis de
produtividade. A ideia da modernização era, portanto, transformar os latifúndios
arcaicos em empresas rurais. Por isso não se atinge o problema central, que é a
concentração fundiária.

Os latifúndios e minifúndios não são desapropriados caso não estejam em zona


crítica ou de tensão social (art. 15, Estatuto da Terra). Dessa forma, a reforma fica
ainda mais limitada.

Se pensamos numa ótica civilística a posse está fundamentada numa teoria clássica da
posse, qual seja, a teoria objetiva da posse. Para Ihering, formulador original dessa
teoria, a posse decorria do direito de propriedade. Posse e propriedade não eram
autônomos entre sim, sendo a posse exteriorização da propriedade. Já Savigny,
formulador da teoria subjetiva entendia que a posse decorria de 2 elementos: animus
domini (intenção de ser dono) e corpus (a relação de fato do dono com o objeto). Essa
teoria é subjetiva porque depende da intenção. 2

Para ambas as teorias clássicas da posse, o que importa é a apropriação, é a relação de


fato com o objeto. Seja fundamentada na intenção de ser dono, seja fundamentada em
outro instituto, que é o da propriedade. Mas a apropriação é necessária.

O vínculo jurídico da propriedade se identifica pela transcrição no cartório do registro


de imóveis, e a partir daí se tem a posse.

No âmbito agrarístico, por sua vez, o elemento de distinção que caracteriza a posse é o
trabalho. A posse toma concretude não mais da mera transcrição do cartório de registro
de imóveis, mas numa relação fática com muito mais concretude, que é a ideia de
trabalho. Alguns autores trazem a distinção dizendo que na posse agrária há
efetividade, pois se verifica se há existência de atividade agrária e quem a exerce, sendo
ela que determina a posse agrária. Por atividade agrária se entende tudo que for

2
A Teoria Subjetiva (de Savigny ) entende que a posse se configura quando houver a apreensão física
da coisa ( corpus ), mais a vontade de tê-la como própria ( animus domini ). Segunda teoria, por sua
vez, a Teoria Objetiva (de Ihering ), indica que a posse se configura com a mera conduta de dono,
pouco importando a apreensão física da coisa e a vontade de ser dono da mesma. Basta ter a coisa
consigo, mesmo sem ter a intenção de possuí-la. Exemplo: comodato.
Nosso Código Civil adotou a Teoria Objetiva de Ihering , pois não trouxe como requisito para a
configuração da posse a apreensão física da coisa ou a vontade de ser dono dela. Exige-se tão somente
a conduta de proprietário.

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum
dos poderes inerentes à propriedade.
desempenhado no terreno com continuidade, como a agricultura, pecuária, extrativismo,
artesanato, etc.

CARACTERÍSTICAS DA POSSE AGRÁRIA - A posse agrária se exercita de forma


direta, pessoal e contínua sobre o imóvel rural, no qual há uma hipoteca social (pois é
bem de produção). Quanto ao exercício direto e pessoal, o Decreto nº 59.566/66 diz
que é possível a contribuição de terceiros, mas essa contribuição não pode desconfigurar
o regime de economia familiar, não podendo os terceiros ser em número maior que o
numero de membros daquele núcleo familiar. Se ocorrer essa última situação, esses
trabalhadores serão considerados empregados. Isso é aplicável também para fins
previdenciários, sendo possível pleitear condição de segurado especial caso exerça essa
atividade rural em regime de economia familiar.

Importante notar que não se pode falar de posse agrária para os empregados, pois o
vínculo empregatício impossibilita isso. No caso de arrendamento, apesar de não ter
vinculo empregatício, também não pode constituir-se posse agrária.

Contínua é a ideia de não sofrer interrupção, de modo a gerar ociosidade. A atividade


deve ser contínua, a menos que ocorram caso fortuitos ou de força maior. Mas nunca
pode ser interrompida por deliberação do possuidor.

Outro característica trazida na doutrina é o uso adequado e racional da terra, o que se


vincula diretamente à ideia de função social da propriedade. Esse uso adequado é
definido através de dois índices previsto na Lei 8.629, que são o Grau de Utilização da
Terra (GUT) e o Grau de Eficiência na Exploração da terra (GEE). O GUT é
definido a partir apenas das áreas aproveitáveis, excluindo-se as terras não
aproveitáveis. Deve ser utilizada pelo menos 80% dessas terras aproveitáveis 3. Já o GEE
deve ser de 100%, sendo definido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA) o referencial de eficiência, variável a depender do bioma. O
não preenchimento desses índices pode gerar como sanção a desapropriação do
imóvel pelo INCRA.

3
O Código Florestal define a área não aproveitável de um terreno como Reserva Legal, cuja percentagem
varia de acordo com o bioma (Amazonia-80%; Cerrado- 35%; Restante do Brasil-20%)
5. TERRAS DE USO COMUM (POSSE E RECONHECIMENTO DE TERRAS
INDIGENAS, QUILOMBOS E FUNDOS E FECHOS DE PASTO)

Terras de uso comum são também chamadas de terras comunitárias, terras


tradicionalmente ocupadas (essa, inclusive, é a forma como a CF/88 se expressa sobre
a matéria), território, etc.

Quanto à posse, o vinculo entre o bem (terra ou outro bem ambiental) e o sujeito não é
mais a partir de um individuo, mas a partir de uma comunidade, de uma coletividade,
que mantem um vínculo de pertencimento com a terra ou outro bem, e o que vai
fundamentar esse vinculo é o aspecto cultural. A posse sobre a terra de uso comum,
chamada de posse tradicional (também chamada de posse imemorial, étnica) depende
desse aspecto cultural, da cultura.

Cultura, a partir da concepção antropológica de Roberto da Matta, significa a tradição


viva conscientemente elaborada. Tradição viva no sentido de, por estar uma cultura em
permanente interação com outras culturas, ela está também sempre em transformação,
modicando-se ao longo do tempo. É, por isso, viva. Conscientemente elaborada, pois
é característica do ser humano o agir consciente, em oposição ao agir instintivo dos
outros animais. Quando agimos, refletimos sobre o que fazemos. As transformações que
ocorrem no nosso modo de viver, fazer e criar decorrem da nossa reflexão, são
elaboradas conscientemente. Exemplificando, um ninho de joão-de-barro será sempre
igual, onde quer que ele esteja, pois o pássaro age reagindo ao meio ambiente. Um
barco humano construído por uma cultura será diferente do construído por outra, pois
ele reflete sobre o que faz, tendo em vista seu modo de viver, de criar, etc.

TRADIÇÃO VIVA
CULTURA (P/
Roberto da
Matta)
CONSCIENTEMENTE
Quando a CF faz referencia a essas terras de uso comum, é no capítulo que se refere aos
ELABORADA

povos indígenas, no art. 231:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,


costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
À época da Constituinte, vários grupos de movimentaram. Até Movimento Nacional de
Meninos de Rua existia. A participação popular de fato ocorreu em torno da
Constituinte. A Constituinte inclusive recepcionava propostas de emendas populares. A
proposta do movimento indígena à época era que cada aldeia indicasse seus
representantes, que participariam da Assembleia Nacional Constituinte, e, ao final dela,
esses indígenas voltariam às aldeias, sem pleitear cargos de deputado ou senador. Essa
proposta não foi aceita, por ser considerada muito radical.

A principal critica dos grupos indígenas em relação aos textos constitucionais anteriores
era a perspectiva assimilacionista que existia neles. Segundo essa perspectiva,
deveriam ser reconhecidos direitos aos indivíduos na medida em que eles abdicassem de
sua diversidade, de sua tradição.

Essa discussão contra o assimilacionismo já existia há algum tempo, há mais de 30


anos, o que resultou na Convenção nº 169 Organização internacional do Trabalho
(OIT) em 1989, determinando o reconhecimento de direitos aos povos originários em
consonância com o reconhecimento de seus aspectos tradicionais. Isso ocorreu pois a
OIT tem representação não apenas dos Estados, mas também patronal e de
trabalhadores. Foram os trabalhadores que trouxeram essa questão para discussão.

A OIT utiliza a expressão território para designar as terras de uso comum,


considerando elas os espaços materiais e imateriais (o que representa essa base
ambiental) que sejam úteis para reprodução dos povos tradicionais sob um ponto de
vista econômico, cultural, religioso. É a base territorial onde a cultura se manifesta.
Onde as atividades materiais e imateriais se manifestam. Exemplo de atividade imaterial
é a exercida num cemitério, onde a cultura local impõe preservação. Não há necessidade
que ocorra atividade agrária no local, basta a reprodução física, cultural, religiosa,
econômica de determinado grupo.

Mas como definir o grupo? Quem é índio, não índio, tribal ou não tribal? A Convenção
nº 169 traz a ideia de auto identificação para definir isso. Não se trata hétero-
identificação, não é um terceiro que identifica, mas o próprio individuo e sua
coletividade que vão se identificar como pertencente a um determinado grupo.

A auto identificação com um grupo é observada a partir de dois critérios, um objetivo e


um subjetivo. No critério objetivo, consideramos a ideia de pertencimento a um grupo
para caracterização de identidade étnica. O grupo deve reconhecer o individuo como
pertencente àquele grupo. No critério subjetivo, o individuo deve se reconhecer
enquanto parte do grupo. A consciência individual se vincula à consciência coletiva.

AULA 14 – 11/07/2017

5.1. POSSE E RECONHECIMENTO DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS


INDÍGENAS

A definição da noção de terras tradicionalmente ocupadas busca reconhecer vínculos


jurídicos entre um grupo e um bem, a partir do aspecto cultural.

A ideia aqui é abarcar não apenas o aspecto econômico da posse da terra, mas também o
aspecto religioso, cultural, etc. Ex. Um cemitério de indígenas deve ser protegido, pois
envolve tradição religiosa, devendo ser considerado também como terra
tradicionalmente ocupada. Todos os lugares onde ocorre reprodução física, material,
imaterial, cultural, econômica, religiosa, esportiva e educacional do grupo étnico devem
ser abarcados pela ideia de terra tradicionalmente ocupada.

Trata-se de posse ancestral, imemorial. É difícil até demarcar quando começou.


Quando usamos o vocábulo “tradicionalmente ocupados”, quer-se falar de território
ocupado inclusive no passado, antes de serem usurpados (aqui no Brasil houve
usurpação por capitania hereditária, sesmaria, etc.). Essa noção de terra
tradicionalmente ocupada envolve, portanto, não só a ocupada hoje, mas a ocupação
diacrônica, na medida em que diverge a ocupação atual da que costumava ocorrer.

O STF sempre interpretou dessa forma, mas a 2º turma do STF, a partir do que se
infere de seus julgados (e em especial após o julgamento do caso Fazenda Raposa Serra
do Sol), quer romper com essa noção diacrônica de terra tradicionalmente ocupada,
mantendo a ideia sincrônica tão somente de “terra ocupada”.

O § 1º do art. 231 da CRFB/88 traz uma ideia de terra tradicionalmente ocupada:

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles


habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Também o art. 14 da Convenção 169 da OIT traz uma ideia de “território”:

 1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de


propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente
ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas
medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar
terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às
quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades
tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada
especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores
itinerantes.

Por fim, o art. 2º do Decreto Federal nº 6040/2007

Art. 2o  A PNPCT (Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável


dos Povos e Comunidades Tradicionais) tem como principal objetivo
promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e
garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos
e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas
de organização e suas instituições. 

Quando a Constituição, no caput do art. 231 se refere aos povos tradicionalmente


ocupados, ela usa o vocábulo “reconhecimento”. Não é a toa. No caso dos povos
indígenas, isso ocorre pois estamos diante de um direito originário, que já existia, e
apenas foi reconhecido. Estamos diante de dimensão do direito que precede o próprio
ordenamento jurídico brasileiro. O Estado brasileiro não está diante de constituição de
um direito, mas de uma declaração desses direitos que já existem previamente. 4

A Convenção nº 169 da OIT traz a noção de território, mas traz outras ideias muito
importantes. Diz que as normas se aplicam aos povos “indígenas e tribais”. Aqui no
Brasil, essa ideia de tribal está vinculada aos povos tradicionais. Ex. quilombolas,
fundos e fechos de pasto, ciganos, seringueiros do acre, pescadores artesanais: a todos

4
A luta de Chico Mendes e os seringueiros para possibilitar o uso das florestas de modo sustentável para
o extrativismo deu origem a uma espécie de unidade de conservação chamada “Reserva Extrativista”.
Essas reservas são destinadas às comunidades tradicionais.
eles se aplica essa Convenção, pois todos eles seriam “povos tribais”, no conceito
trazido pela Convenção.

Outro elemento importante trazido na Convenção é que qualquer atividade exercida


pelo Poder Público, seja administrativa ou legislativa, que impacte a vida, existência e
hábitos dessas comunidades tradicionais, dependem de consulta prévia, livre e
informada a esses povos. Exemplo: se o Estado quer construir uma rodovia que pode
incidir sobre um território indígena, o ente público deve consultar aquele grupo sobre os
impactos da obra sobre eles. Contudo, essa consulta não tem poder de veto.

Além disso, estabelece que esses povos tradicionais não devem ser retirados de seus
territórios tradicionais. Contudo, ressalva a possibilidade excepcional de deslocamento
dos povos de seu território temporariamente, e caso não seja possível voltar, o
pagamento de indenização. Isso acaba enfraquecendo bastante essa ideia de terra
tradicionalmente ocupada na Convenção.

DIREITOS TERRITORIAIS INDIGENAS NA CF/88

Antes da CF/88, havia as cartas de concessão de sesmarias, na qual havia dispositivo


não permitindo concessão de sesmaria sobre territórios indígenas. Além disso, tivemos
o Alvará, cuja data diverge entre 30/07/1711 e 30/07/1611. Esse alvará trouxe o
instituto do indigenato, que nada mais é do que a federalização daquilo que já aparecia
individualmente em cada carta de sesmaria: não é permitido exploração de terra
indígena.

Posteriormente, temos a Carta Régia de 1680 enviada pelo Rei de Portugal, e que
proibia a tomada de propriedade pelos sesmeiros dos territórios ocupados pelos
indígenas.

A CF 1891 silenciou a respeito dos indigenatos. A CF de 1934 reconheceu a posse


exercida pelos silvícolas (forma que se referia aos indígenas).

O Estatuto do Índio trazia gradação entre as terras indígenas: (i) Terras Ocupadas; (ii)
Terras Reservadas; (iii) Propriedade Particular.

A partir dessa classificação, essa ideia de terra tradicionalmente ocupada foi


corrompida, em especial pela ideia de terra reservada. Na terra reservada o
procedimento ocorre assim: o Estado, ao reconhecer esse direito originário, pode o fazer
em terra diferente da tradicionalmente ocupada, afetando local diverso do espaço de
ocupação tradicional. Isso forçava a transferência da comunidade tradicional e
desconsiderando a ideia de ocupação tradicional. As vezes, inclusive, se misturava
diversas etnias em uma só terra reservada, como no Parque do Xingú.

Nessa ideia de terra reservada, estão abrangidas quatro modalidades: parque, reserva,
colônia agrícola e território federal indígena. As que mais proliferaram foram os
parques e as reservas.

A ideia de terra ocupada dialoga mais com a ideia de terras tradicionalmente ocupadas.
Já a propriedade particular é a terra de domínio das comunidades indígenas, ou
mesmo de um só determinado indivíduo indígena.

A CF/88 acaba com a modalidade de terras reservadas e de propriedade


particular. Hoje trabalhamos apenas com a categoria de terra tradicionalmente
ocupada, que seria como uma sofisticação da ideia de terra ocupada que havia no
Estatuto do Índio.

Essas terras tradicionalmente ocupadas, por serem da União e possuírem usufruto


exclusivo das comunidades indígenas, são indisponíveis (não estão sujeitos a alienação,
permuta, doação, etc.), impenhoráveis (não sujeitos a constrição judicial) e
imprescritíveis (não sujeitas a usucapião). Como dizia Pontes de Miranda, “são
nenhuns os direitos de propriedade alegáveis em face de terras indígenas”. Nesse
sentido:

Quanto à demarcação, a primeira etapa é a realização de estudos antropológicos, cujo


objetivo é determinar onde e qual a dimensão da terra tradicionalmente ocupada. Não é
definir se são ou não indígenas, já que o critério para tanto é a auto identificação dos
próprios índios. O método utilizado na antropologia é o método etnográfico.

Pode haver ainda estudos complementares, com de agrônomos, estudo do direito


sucessório envolvido, etc.

Depois, esses laudos antropológicos serão submetidos à FUNAI, que então efetuará
analise. Há o prazo de 15 dias do recebimento dos estudos para que sejam publicados os
estudos. Após esse prazo, possíveis interessados podem ...
Quilombo é o movimento efetuado por negros nos primeiros séculos da experiências
brasileira, no sentido de sair das áreas de plantation, fora das zonas de escravização.
Contudo, existiu também presença quilombola dentro da área de plantation. Outro nome
dado para quilombo é mocambo.

Temos como referencia a CF de 1988, pois antes não tivemos nenhuma menção, na
legislação fundiária e agrária, a presença quilombola no Brasil. A CF é um marco
significativo nesse sentido.

O art. 68 da ADCT se origina a partir de movimentações protagonizadas, na


Assembleia Constituinte, por coletivos relacionados à luta contra o racismo no Brasil.
Dois deputados em especial, atuaram de modo significativo na inclusão dos direitos
quilombolas na CF: Carlos Alberto Carol (?) e Benedita da Silva.

Segundo o art. 68: “É reconhecida às comunidades remanescentes de quilombos, a


propriedade definitiva sobre as terras que ocupam, devendo o Estado emitir-lhes os
respectivos títulos”. (checar redação do artigo)

Assim, esse artigo atribui aos remanescentes de quilombos o direito de propriedade,


diferente do que ocorre com indígenas. Contudo, trata-se de uma propriedade diferente
da propriedade individual do Código Civil. Tem diversas especificidades. É uma
propriedade necessariamente coletiva, indisponível, impenhorável, imprescritível e
pro indiviso (não pode ser desmembrada, dividida). A CF estabeleceu aqui novo
modelo de propriedade.

Os sujeitos aqui são representados por uma pessoa jurídica, que é uma associação civil.
Essa associação representa os quilombolas como titular desse direito de propriedade
coletivo. Cada quilombo tem sua associação civil.

Aplica-se à matéria do reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos


as disposições da Convenção 169 da OIT. Assim, aqui também se aplica a ideia de auto
identificação, já tratada quando falamos dos índigenas.

A questão quilombola, todavia, já era discutida muito antes disso. Já havia uma
comunicação, no Conselho Ultramarino de 1740, tratando sobre grupos quilombolas. A
definição dada por esse conselho é restrita aos quilombos fora da área de plantation.
Definiu quilombo como: “Toda habitação de negros fugidos, que passem de 5, em
parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões
neles.”

Essa concepção do Conselho Ultramarino foi replicada através dos séculos, para nos
trazer a definição do que é quilombo. Assim, há dificuldade, inclusive na seara
jurisprudencial, de aceitar aquele grupo que não fugiu, que se formou dentro da própria
área de plantation, como quilombo.

Aqui é importante lembrar da ideia de brecha camponesa, quando se dava partes de


terreno aos escravizados para que pudessem plantar comidas para o abastecimento
interno. Nessas áreas em que o escravizado plantava para seu sustento e p/ o sustento da
casa grande, ele exercitou posse tradicional, devendo assim ser reconhecidos direitos
tradicionais, apesar dessas áreas terem se constituído dentro da própria plantation.
Muitos senhores de engenho, inclusive, formalizaram instrumentos de doação,
comodato dessas terras aos escravos alforriados.

Outro campo também se dedica a ressignificar a ideia de quilombo do Brasil, que é o


campo da Antropologia. Tivemos também um parecer da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), que se deteve na matéria. Trouxeram que é necessário fugir da
ideia de negros fugidos. O termo “quilombo” não se referiria apenas a locais com
resíduos ou resquícios arqueológicos (como correntes, senzalas). Também não deve
estar ligado necessariamente a descendência direta (biológica) de antigos quilombolas,
não é necessário que a população seja totalmente homogênea (pode misturar índios,
negros, trabalhadores livres e pobres, etc.), assim como não precisa estar formado a
partir de referencia histórica comum, que é a fuga da escravização.

O quilombo se constitui, para a ABA e a CF, a partir de suas formas de viver e criar
partilhadas pelo grupo. O que define quilombo hoje, também para a ABA, é a auto
atribuição.

Resumindo, a CF reconheceu direitos á comunidades remanescentes de quilombos. O


critério que alguém seja classificado como quilombola é a autoidentificação. A
definição de quilombo do Conselho Ultramarino está ultrapassado.

Até 2001, tivemos alguns instrumentos normativos tratando da matéria, mas sem definir
procedimento de estabelecimento de como se daria essa propriedade coletivo. Assim,
tivemos uma lei que estabelece as obrigações da Fundação Cultural Palmares (que é
vinculada ao MinC). Uma das matérias que ela deve se dedicar é a efetivação dos
direitos territoriais dos quilombolas, mas sem especificar o procedimento administrativo
necessário para tanto.

Em 2001, a Presidência da República publicou, em 2001 o Decreto Presidencial nº


3.912/2001, que instituiu o procedimento para titulação dessa propriedade coletiva. O
problema desse decreto é que ele praticamente inviabilizou qualquer titulação, por conta
de dois requisitos: (i) exigia que a comunidade comprovasse sua presença naquele
território pleiteado em 1888: (ii) deveria demonstrar que, em 5 de outubro de 1988, ela
também estava presente naquele território.

Um procedimento efetivo, contudo, só foi existir a partir de 2003, com o Decreto nº


4887/2003. Esse decreto se inspira na Convenção 169 da OIT. Assim, o critério para
definir quem é remanescente de quilombo passa a ser, nesse decreto, a auto
identificação (também chamada de auto atribuição). A comunidade quilombola pode
ser rural ou urbana.

A propriedade, como já dito, e repetido no Decreto, deve ser coletiva, indisponível,


imprescritível, impenhorável, pro indiviso, devendo ser constituída a partir de uma
associação civil. A gestão da posse é estabelecida pelos próprios membros daquela
coletividade. Assim, pode ser dividida tranquilamente em lotes individuais, se assim for
definido através da associação.

O decreto busca uma definição do que é comunidade remanescente de quilombo.


Portanto, seriam comunidades remanescentes de quilombos aquelas que, levando em
conta a autoatribuição, têm trajetória histórica comum, e dentro dessa trajetória há
elementos de resistência coletiva contra o processo histórico de opressão.

Além disso, traz explicitamente o elemento da autoatribuição em um dispositivo


específico. Essa autoatribuição, contudo, está vinculada a um processo de certificação,
efetuada pela Fundação Cultural Palmares. Após a certificação, ocorre o cadastro da
comunidade.

A Fundação Cultural Palmares foi criada pela Lei nº 7668/88.


Pensando agora no direito ao território, o Decreto determina que o critério para definir a
extensão do território envolve os estudos desenvolvidos pelo Estado , além de critério
definidos pelo próprio quilombo, devendo ele afirmar em que pedaço de território a
ocupação tradicional se dá. Assim, depende de (i) estudos técnicos realizados pelo
Estado; e (ii) autodemarcação pela próprio comunidade quilombola.

O procedimento de titulação de territórios quilombolas de chama Relatório Técnico de


Identificação e Delimitação (RTID). Pode ser proposto pelo INCRA. O INCRA pode
iniciar o RTID de ofício ou a requerimento de algum interessado. Na elaboração do
RTID serão realizados estudos acerca da existência da ocupação tradicional, extensão da
terra utilizada para reprodução material e imaterial dos quilombos. Observe que não
serve para dizer quem é e quem não é quilombola, já que isso depende da
autoatribuição. O objetivo aqui é delinear qual o território ocupado. Como falamos de
ocupação tradicional, isso contempla os território que foram usurpados, perdidos por
esses grupos pela opressão histórica.

Após a elaboração, esse relatório é publicado no Diário Oficial da União e no Diário


oficial da Unidade Federativa onde o estudo está sendo feito. Serve para dar publicidade
ao estudo tanto para particulares, quanto para as outras esferas do Estado que possam ter
algum interesse na identificação daquele território.

O INCRA deve então notificar os particulares e cientificar os diversos órgãos da


Administração Publica Federal e Estadual sobre a produção da RTID para que se
manifestem. Os particulares terão 90 dias para apresentar impugnações e opor
documentos. Já os órgãos da Administração terão 30 dias para manifestar interesses. O
Decreto menciona o IPHAM, IBAMA, Secretaria de Patrimônio da União, FUNAI e
FCP. Na faz menção ao Departamento Nacional de Produção Mineral. Isso ocorre pois
na época ainda não havia o boom do processo de exploração mineral, oriunda sobretudo
da demanda chinesa. Hoje, qualquer instrumento normativo tratando do tema, faz
referência expressa ao DNPM.

Busca-se evitar com essas cientificações problemas de ordem fundiária, como a


sobreposição de terras quilombolas sobre terras indígenas, unidades de conservação,
área tombadas, área fronteiriças, etc.
Por fim, caso não haja impugnação ou manifestação dos órgãos que gerem óbice à
titulação, vai encaminhar para o processo de titulação e demarcação física. Quando o
relatório é feito, ocorre estudo da cadeia sucessória dos imóveis até sua origem. Por isso
é importante estudar sesmaria, pois pode se originar nela.

Feita essa análise, podemos identificar duas situações: (i) o imóvel é, de fato, particular,
não havendo vícios na cadeia sucessória do imóvel (como o comisso da sesmaria).
Nesse caso, a consequência é a desapropriação por interesse social, com indenização
pelas benfeitorias úteis e necessárias e terras nuas. Além de desapropriados, devem ser
desintruídos, o que significa dizer que serão desocupados. Esses desapropriados terão
preferência na aquisição de terras da reforma agrária, podendo inclusive escolher o lote
da sede do imóvel; (ii) se não for imóvel particular, é terra pública devoluta (também
chamada de terra pública indeterminada), de propriedade dos Estados. Nesse último
caso, o INCRA enviará o RTID para o órgão de terras estadual, e é esse órgão que vai
titular a terra para o quilombo, já que o INCRA só pode titular terras federais. Ou a
Comissão de Desenvolvimento Agrário estadual utiliza a ação discriminatória, ou o
Tribunal de Justiça procede ao cancelamento do registro de matricula do imóvel; (iii)
por fim, pode ser terra pública determinada: são de propriedade do Estado, União ou
Município, sendo essa propriedade decorrente da lei ou do fato da entidade federativa
ter efetuado algum procedimento de definição, medição, demarcação, discriminação ou
registro da terra.

No que diz respeito aos corpos hídricos, terreno marginal e terreno de marinha, tem que
ver se é terra pública federal (ex. zona costeira, mar territorial, que são zonas da
marinha; rio São Francisco, que atravessa mais de um Estado), ou terra pública estadual
(ex. Rio Vaza Barris, que passa tão somente pelo Estado da Bahia). Se for federal, o
INCRA não pode titular essa terra, pois bens dominicais, devendo então notificar a
Secretaria de Patrimônio da União. A SPU então vai emitir concessão de direito real de
uso para a comunidade quilombola pleiteante. O corpo hídrico estadual também deverá
ser concedido com direito real de uso pela autoridade estadual.

A legislação prevê, antes da concessão de direito real de uso, a utilização de instrumento


precário prévio, chamado Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS),
concedido sempre de modo precário antes da concessão.
AULA 18 - 01/08/2017

5.3. POSSE E RECONHECIMENTO DE DIREITOS TERRITORIAIS: FUNDOS


E FECHOS DE PASTO

No interior nordestino, houve ocupação sobretudo com fins de prática da pecuária e


da extração de minérios. A invasão do interior, com os rebanhos de gado, se dava
pelos tropeiros (trabalhadores livres e pobres, ou fugidos escravizados). Assim se
observa como se deu a ocupação primária do interior nordestino. A ocupação se
dava sobretudo pelo rebanho de gado bovino.

Contudo, no semiárido nordestino, por conta do clima, outros rebanhos se


adaptaram melhor. O gado bovino, sobretudo na região de caatinga, não é o mais
bem adaptado. Aqui, ocorre sobretudo gado caprino e ovino.

Fato é que sesmeiro desses locais era absenteísta em relação aos terrenos mais
interioranos, onde a agricultura era mais difícil. Quem acabou ocupando essa terras,
então, foram esses tropeiros/vaqueiros. Assim, nessas regiões, sobretudo de
caatinga/cerrado, o que ocorreu foram ocupações comunitárias, na medida que um
grupo de tropeiros compartilhava vasta extensão territorial soltando o rebanho, sem
dizer qual parte era de quem, e sem cerca-la. Apenas decidiram compartilhar. Isso
ocorreu por necessidade, já que os bois/cabras/bodes/ovelhas precisam de extensão
territorial razoável para poder sobreviver.

Esse tipo de ocupação primária foi a mais comum no nordeste brasileiro. Na Bahia,
o próprio Estado escolheu uma designação para essas ocupações: fundos e fechos
de pasto.

Segundo a Convenção 169 da OIT, trata-se dos espaços onde há compartilhamento


para a pecuária.

Os rebanhos dos tropeiros nasciam a partir do sistema de quarta. Como forma de


pagamento pelo trabalho do tropeiro, o sesmeiro cedia 1 a cada 4 bezerros nascidos
no gado do sesmeiro.

Há diferença entre fundos e fechos. Fundos são regiões, normalmente de caatinga,


onde há mais criação de caprino/ovino. Já os fechos são as zonas de transição de
caatinga e cerrado, com maior incidência de chuva e corpos fluviais, onde a criação
de bovinos era mais utilizada.

No Estado da Bahia, há legislação reconhecimento essa experiência a partir da


Constituição Estadual de 1989. A Constituinte Estadual também contou com forte
participação popular, através das emendas populares. Isso justifica o tratamento do
tema do texto.

O art. 178, parágrafo único da CE trata do tema. Faz referencia à destinação que o
Estado da Bia deve dar as terras que são de seu patrimônio. O Parágrafo único faz
referencia às terras que são de patrimônio da Bahia e que estão tradicionalmente
ocupadas por fundos e fechos de pasto. (COPIAR ARTIGO)

Segundo essa norma, na conveniência do Estado, pode ele conceder com direito real
de uso a terra aos fundos e fechos de pasto. Ele define as condições, prazo, forma de
rescisão, etc. Isso porque se trata de contrato administrativo.

Nos anais da Assembleia Constituinte Estadual está a razão para essa tratamento
diferente ao dado no âmbito federal aos indígenas/quilombolas. Os deputados
consideravam que esses indivíduos eram atrasados, refratários à adoção de novas
tecnologias, e tenderiam a vender essas terras tão logos tivessem a propriedade
delas, passando então a inchar a massa urbana de miseráveis.

Apesar da previsão da concessão de direito real de uso para FFP, o Estado, até 2007,
ignorou essa previsão, concedendo a essas comunidades titulo de propriedade
coletiva, cuja titularidade é atribuída a uma associação civil, nos moldes
quilombolas. Tatiana acredita que isso se deu em decorrência de estratégia
eleitoreira, para não de indispor com certos grupos. Após 2007, quando o PT passou
a ocupar a gestão do governo do Estado, houve mudanças no instrumento, o que
travou a concessão de FFP.

AULA 19 – 3/8/2017 – NÃO VIM

AULA 20 – 08/08/2017

6. O DIREITO À PROPRIEDADE DA TERRA E SUA FUNÇÃO


SOCIOAMBIENTAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Expropriação pressupõe o não pagamento de indenização. É o chamado confisco,
previsto no artigo 243 da CF. Já a desapropriação pressupõe a indenização.

Vamos agora tratar dos artigos 184-191 (Política agrícola, fundiária e da reforma
agrária), 243 e 225.

O art. 184 trata da hipótese de desapropriação por interesse social para fins de reforma
agrária. Prevê a competência de desapropriar por interesse social apenas para a União.
Isso decorre do episódio da Fazenda Galiléia.

O imóvel que será desapropriado é aquele que não atende à chamada “função social da
propriedade”. Perceba que não há mais aquela restrição de desapropriação apenas para
zonas de tensão e conflito social.

Haverá indenização não mais em títulos da dívida pública, mas em títulos da dívida
agrária. É titulo específico, com orçamento específico, também emitido pelo Tesouro
Nacional. A ideia é sancionar, por isso não se paga em dinheiro. Esse título remunera
apenas a terra nua, e podem ser emitidos no prazo de 2 a 20 anos após a desapropriação.
Benfeitorias úteis e necessárias serão remuneradas em dinheiro

Há um procedimento bifásico na desapropriação: uma fase administrativa, e uma fase


judicial. O fim da desapropriação, na sua fase administrativa, se dá com um decreto
presidencial. Com esse decreto, a AGU, representando o INCRA, está autorizada a dar
inicio a fase judicial.

A fase judicial tem rito sumário. Nessa ação judicial não há possiblidade do
desapropriado discutir o mérito da desapropriação. Ele apenas pode discutir se houver
divergência quanto aos valores pagos a titulo de indenização.

Não há tributação na transferência de domínio das terras desapropriadas.

O art. 185, por sua vez, trata das modalidade de imóveis que não são suscetíveis de
desapropriação. A CF abandonou a tipologia do Estatuto da Terra. Aqui ela trata com a
tipologia de “pequena propriedade”, “media propriedade” e “propriedade produtiva”. A
pequena é a propriedade com 1 a 4 Módulos Fiscais. A média possui de 4 a 15 módulos
fiscais. A propriedade produtiva não traz critério dimensional, mas outros critérios.
O Módulo Fiscal de cada município é encontrado na Instrução Normativa 20/80 do
INCRA, e é definido de forma diferente para cada município brasileiro.

O art. 186 diz que se considera função social da propriedade quando, simultaneamente,
o imóvel demonstra o cumprimento dos seguintes requisitos: (a) aproveitamento
adequado e uso racional; (b) utilização adequada dos recursos naturais e preservação do
meio ambiente; (c) observância da legislação trabalhista e; (d) respeito ao bem estar dos
proprietários e dos trabalhadores.

Apesar de falar “simultaneamente”, a prática administrativa e jurisprudencial têm


aceitado apenas o primeiro requisito, o do aproveitamento adequado e uso racional. Para
averiguar o preenchimento desse requisito, utilizam-se dois índices: o GUT (Grau de
Utilização da Terra) e o GEE (Grau de Eficiência na Exploração da Terra). A legislação
infraconstitucional traz que o GUT deve ser de pelo menos 80%, e o GEE de 100%.

Hoje em dia, ao invés de função social, deve ser lido como “função socioambiental” da
propriedade, articulando essas disposições com o as previsões do art. 225 da CF.

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