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GAM

Ainda que muito tenham sido os avanços relativos a práxis psiquiátrica com a

Reforma e o movimento sanitarista no contexto brasileiro, muitos obstáculos ainda se

colocam para que haja de fato um fim das práticas manicomiais. Um obstáculo que se

coloca de maneira incontestável é a prática de medicalização, prática essa que muitos

autores colocam como uma não reformada, ainda que tenha tido uma Reforma

Psiquiátrica de outras ordens (Onocko-Campos et al., 2013). Ainda nos deparamos com

uma primazia no que diz respeito a intervenção farmacológica no contexto da saúde

mental, muitas vezes substituindo práticas substitutivas.

Tendo isso em vista, ainda se coloca como componente que intensifica o uso de

fármacos dado o contexto em que vivemos, onde o consumo de psicotrópicos tem

aumentado substancialmente, sendo prescritos de forma indiscriminada.

Em muitos outros países é imperativo que as decisões relacionadas ao

tratamento em saúde mental sejam compartilhadas com o paciente que iniciará o

tratamento, mas no contexto brasileiro pouco se discute sobre esse ponto. Assim,

Silveira e Moraes (2017) apontam que uma estratégia que se colocou na tentativa de

superação desses obstáculos é a Gestão Autônoma da Medicação, também conhecida

pelas siglas GAM, a qual diz respeito a práticas que visem maior cuidado por parte dos

profissionais e usuários no uso de medicamentos ao considerar todos os aspectos que

este pode influenciar na vida do indivíduo que o utiliza. Se faz necessário que os

profissionais, em conjunto com os pacientes, avaliem se o medicamento utilizado está

de fato servindo como ferramenta de melhoria à vida ou se está intensificando o

sofrimento do usuário. No que tange aos princípios norteadores, a autonomia e a

cogestão são os principais deles; os usuários devem ser estimulados pelos profissionais
em saúde mental a serem protagonistas em seu tratamento (autonomia) e também sejam

corresponsáveis pelas decisões deste (cogestão), em conjunto com a equipe profissional,

inclusive sobre o uso ou não dos psicotrópicos. (ref unicamp)

Assim, a estratégia GAM nasce na década de 90 em Quebec, no Canadá,

fundamentado em movimentos sociais e de defesa dos direitos de usuários de serviço

em saúde mental, visando principalmente no que dizia respeito ao direito de recusa de

medicamentos psiquiátricos em seu tratamento, gerando assim espaços de diálogo sobre

os efeitos dos fármacos na vida dos usuários e questionamento sobre necessidades e

vontade de uso. No Canadá, o GAM foi composto por um conjunto de métodos que

formavam um guia para orientação de profissionais e usuários, tendo como metodologia

a leitura em voz alta deste e o compartilhamento de experiências, visando uma prática

que fosse cada vez mais horizontalizada em desacordo com a hierarquização vertical das

práticas tradicionais em saúde mental (Silveira & Moraes, 2017).

A partir disso, foi necessário que a GAM nascida em Quebec fosse adaptada

para o contexto brasileiro para que os profissionais e usuários pudessem desfrutar

melhor dessa possível estratégia de cuidado, uma vez que as necessidades destes são

outras. Muitos aspectos exigiram que essa adaptação fosse feita, mas a principal delas

aponta para a estrutura linguística do texto, onde foi utilizado frases curtas e de mais

fácil compreensão, visto que o perfil educacional dos dois países possui grande

diferença (Silveira & Moraes, 2017). Além disso, temas como sexualidade e religião

também foram incluídos, uma vez que são temas de grande pertinência para o perfil

populacional brasileiro.

À vista disso, a GAM chega ao Brasil num contexto que desfruta da herança dos

movimentos de reforma sanitária e psiquiátrica e os princípios norteadores do SUS, a

qual práticas de humanização tem ganhado, aos poucos, maior espaço nos serviços de
saúde mental, de maneira semelhante como ocorreu no Canadá. Todavia, os serviços

brasileiros têm demonstrado dificuldade na utilização dele como ferramenta de

intervenção, como demonstra Onocko-Campos et al. (2013), principalmente no que

tange ao direito de recusa a intervenção farmacológica; os autores evidenciam, em um

estudo realizado em um CAPS, que são identificados diversos obstáculos para o uso do

GAM, tais como uso de linguagem técnica por parte dos profissionais, relações

desiguais de poder, medo, entre outros. Além disso, os usuários reportam que, quando

se recusam ao tratamento medicamentoso, são forçados fisicamente a fazê-lo ou sofrem

ameaças por parte da equipe. Outros relatam que, após a leitura compartilhada do guia,

pediram para ter acesso aos seus prontuários e às bulas, mas enfrentaram entraves dos

profissionais.

Consequentemente, Onocko-Campos et al. (2013) apontam para a necessidade

de mudanças nas práticas no que se refere a valorizar de forma mais enfática o papel do

usuário em seu próprio tratamento, mobilizando os profissionais em saúde mental para

que estimulem os pacientes em direção a um tratamento mais autônomo. Concordamos

com os autores que, ainda que houve avanços no que tange as práticas psiquiátricas,

muitas outras ainda não foram reformadas e seguem uma lógica manicomial que poucos

profissionais estão dispostos a rever e se responsabilizarem.

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