Você está na página 1de 12

Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

corredores de ônibus

Política Nacional de No período de crescimento urbano mais intenso – décadas de 1960


a 1970 – aumentou a discussão sobre os problemas do transporte
Transporte Público no Brasil: urbano, focada em dois eixos principais: o congestionamento cres-
organização e implantação de cente do trânsito e a precariedade dos serviços de transporte
corredores de ônibus1 público. Neste período, intensificaram-se os planos e ações para
melhorar o transporte público, tendo-se iniciado os primeiros pro-

AN P Eduardo A. Vasconcellos
E-mail: eduardo@antp.org.br
jetos de integração de redes de ônibus e de construção de corre-
dores de ônibus. A primeira experiência com corredores ocorreu
em Curitiba, a partir de 1974, tendo-se seguido ações em outras
Adolfo Mendonça cidades, principalmente Porto Alegre e São Paulo. O sucesso do
E-mail: adolfo@antp.org.br projeto de Curitiba transformou-o em caso mundial, mencionado
Instituto Movimento, São Paulo em toda a literatura internacional e inspirando projetos semelhan-
tes em outros países. A partir desta experiência o Brasil foi alçado
à categoria de “país dos corredores de ônibus”.
O objetivo deste estudo é analisar e resumir a história deste processo,
buscando tanto suas virtudes quanto suas limitações. O período de
Uma das discussões mais importantes sobre a vida nas cidades
referência dos estudos vai de 1960 a 2008.
dos países em desenvolvimento é aquela relativa ao transporte
cotidiano das pessoas. O Brasil, por suas dimensões continentais
e elevado número de cidades de médio e grande porte, tem, há Condicionantes históricos
muito tempo, grandes sistemas de transporte coletivo por ônibus Crescimento urbano e de motorização
nas áreas urbanas.
A análise da política de transporte público no Brasil requer um bom
Conforme analisado em detalhes por Orrico et all (1986) e por Brasi- entendimento de dois processos quase simultâneos: a urbanização e
leiro e Henry (1999), ao contrário dos vizinhos latino-americanos – a constituição da indústria automotiva no país.
bem como da maioria dos países em desenvolvimento da Ásia e
África –, o Brasil adotou, desde a década de 1960, um modelo regu- O processo de urbanização deve ser analisado, pois ele recolocou
lamentado de transporte público por meio do qual o Estado define as pessoas em ambientes urbanos nos quais elas passam a necessi-
condições de prestação dos serviços – tipo de veículo, rotas, frequên- tar de transporte público regular. Ademais, o processo aumentou
cia, tarifa – e o setor privado os opera (com algumas exceções ao as dimensões das cidades, fazendo crescer as distâncias e a
longo da história), sendo então controlado pelo setor público. Com a necessidade de transporte público para as pessoas. O processo de
crescente urbanização do país após a II Guerra Mundial e com a constituição da indústria automobilística é importante por repre-
implantação da indústria automobilística a partir de 1956, o sistema sentar o início da oferta regular e mais acessível de veículos de
de transporte no país tornou-se cada vez mais motorizado, seja com transporte individual, que passaram a disputar o mercado com o
o uso dos ônibus, seja com o uso dos automóveis (e, mais recente- transporte público. Sendo adquiridos por grupos sociais de renda
mente, de motocicletas). A demanda por transporte público aumentou média e alta tornaram-se um tema politicamente importante devido
muito, situando-se entre as maiores do mundo – alcançando, em ao poder de pressão destes grupos sobre as decisões das políticas
2007, cerca de 16,2 bilhões de viagens por ano apenas nas cidades públicas. Ademais, sendo fonte importante e crescente de receitas
com mais de 60 mil habitantes (ANTP, 2008). Desta demanda, 14,3 de impostos, a indústria automobilística tornou-se muito importan-
bilhões de viagens foram atendidas por uma frota de 98 mil ônibus, te para o governo federal.
mostrando as enormes dimensões do sistema. O crescimento da população urbana do Brasil pode ser visto na
tabela 1 e na figura 1. No período entre 1960 e 1991 a população
urbana foi multiplicada por 3,5, tendo sido acrescentados 80 milhões
1. Estudo financiado pela Volvo Foundations da Suécia, como parte do estudo geral mais amplo de três de habitantes. Nas nove metrópoles pesquisadas, esta população
políticas de transporte no Brasil (organização do transporte público, segurança de trânsito e controle
da emissão de poluentes por veículos). O estudo teve o apoio administrativo e técnico da ANTP. aumentou 2,8 vezes, incorporando 28 milhões de pessoas. No caso

73 74
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

das metrópoles, considerando que a taxa média de viagens por Tabela 2


transporte público, por dia, é de 0,5 por habitante (Vasconcellos, Produção veículos no Brasil, 1960-2005
2000), este contingente adicional representou um aumento diário de Produção (veículos)
Ano
14 milhões de viagens. Autos Comerciais leves Caminhões Ônibus
Tabela 1 1957 1.166 10.871 16.259 2.246
Crescimento da população urbana, Brasil e metrópoles 1960 42.619 48.735 37.810 3.877
1970 306.915 66.728 38.388 4.058
População urbana
Ano 1980 933.152 115.540 102.017 14.465
Brasil1 Índice Metrópoles2 Índice
1990 663.084 184.754 51.597 15.031
1960 31.303.034 100 15.014.571 100 2000 1.361.271 235.161 71.686 22.672
1970 52.084.984 166 23.574.038 157 2005 2.011.817 365.636 118.000 35.387
1980 80.436.409 257 34.392.315 229 Fonte: Anfavea (2009).
1991 110.990.990 355 42.677.730 284
Figura 2
1. Fonte: IBGE. Produção veículos no Brasil, 1960-2005
2. Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São
Paulo (fonte: Ibam, 2000).

Figura 1
Evolução da população urbana no Brasil, total e áreas metropolitanas,
1950-2005

Fonte: Anfavea (2009), adaptado.

Figura 3
Licenciamento de veículos no Brasil

Fonte: IBGE.

O crescimento da indústria automobilística pode ser apreciado pelos


dados da tabela 2 e das figuras 2 e 3. Pode-se ver que, na década de
1980, a indústria já produzia quase 1 milhão de automóveis e comer-
ciais leves por ano, valor que subiu a 2,4 milhões em 2005. A produ-
ção foi multiplicada por 26 no período 1960-2005 (a produção de
automóveis foi multiplicada por 47). Do seu lado, a produção de ôni-
bus experimentou crescimento bem mais modesto: a produção foi
multiplicada por sete no mesmo período. Fonte: Anfavea 2009, adaptado.

75 76
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

A combinação destes dois processos resultou em um aumento do índi- que o uso do automóvel aumentou de 8 para 137 viagens por habitan-
ce de motorização privada no país: o número de automóveis por cem te, por ano (figura 5). Estas transformações podem ser consideradas
habitantes aumentou de 0,4 em 1950 para 14,3 em 2005 (figura 4). representativas da maioria das grandes cidades brasileiras.
Figura 4 Figura 5
Evolução do índice de motorização por automóveis no Brasil Alterações no uso dos meios de transporte, Rio de Janeiro, 1950-2005

Fonte: Denatran (frotas) e IBGE (população). Fontes: Barat (1986) e ANTP (SI-2005).

As fases da política nacional de transporte urbano


A transformação da demanda de transporte urbano no Brasil
A EBTU e os novos desafios na década de 1970
Em decorrência dos fatores citados anteriormente e das transforma-
ções urbanas, econômicas e sociais do Brasil após a II Guerra Mun- A participação federal no setor de mobilidade urbana até a primeira meta-
dial, a demanda de transporte urbano no Brasil alterou-se profunda- de da década de 1970 era praticamente nula, sendo as atribuições e
mente. Dada a ausência de dados confiáveis mais antigos para um ações no setor de transporte público e trânsito de competência exclusiva
grande conjunto de cidades, podem ser usadas as informações sobre da esfera municipal e estadual. O governo federal tinha participação dire-
o Rio de Janeiro, capital da República até 1960 e que por isto contava ta apenas no caso dos trens urbanos, que formavam a rede ferroviária
com dados de melhor qualidade. Em 1950, os habitantes do Rio usa- federal e cujos subsistemas do Rio de Janeiro e de São Paulo tinham
vam três formas de transporte público – trens, bondes e ônibus – e participação importante na demanda do transporte coletivo.
uma forma de transporte privado ainda incipiente – o automóvel. Os
No entanto, a década de 1970 agregou novos elementos que induziram
bondes atendiam 600 milhões de viagens por ano, ao passo que trens
a entrada do governo federal no tema, tanto do planejamento quanto do
e ônibus atendiam juntos cerca de 400 milhões. O automóvel tinha
projeto de sistemas de transporte coletivo. O processo de urbanização
uma participação ínfima (20 milhões). Na década de 1970, ocorreu a
brasileiro apresentava crescimento acelerado e com dispersão na ocupa-
primeira grande transformação: desapareceram os bondes e agravou-
ção, trazendo repercussões negativas para os transportes urbanos. Adi-
se a precariedade do transporte ferroviário suburbano (Barat, 1986),
cionalmente “a crise internacional de petróleo e o desenvolvimento
colocando o ônibus na posição do veículo mais importante para o
desordenado dos centros urbanos do país são os dois argumentos prin-
transporte coletivo. Nesta década, a predominância do transporte
cipais...” para a adoção de uma política nacional de desenvolvimento
público sobre o individual permaneceu inalterada. Já em 2005, acon-
urbano, através da criação da Empresa Brasileira de Transportes Urba-
teceu claramente a segunda transformação estrutural, quando o uso
nos - EBTU (EBTU, 1981). O documento aponta ainda o agravamento
do transporte individual praticamente se igualou ao uso do transporte
das dificuldades financeiras dos governos locais decorrentes do cresci-
público: em consequência, entre 1950 e 2005, o uso do transporte
mento demográfico, que tinham capacidade limitada de investimento e
público caiu de 451 para 149 viagens por habitante, por ano, ao passo
viviam crescente dependência dos governos locais ao governo federal.

77 78
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Outro elemento importante presente na década de 1970 foram os movi- municipal pelas Empresas Metropolitanas de Transportes Urbanos -
mentos populares surgidos nos grandes centros urbanos. De uma manei- EMTUs. À EBTU era atribuída uma função central, de promoção da
ra geral voltados a combater a elevação do custo de vida, os movimentos política nacional dos transportes urbanos, com poderes de decisão
populares se organizaram em diversas áreas específicas, como saúde, sobre propostas e investimentos. Ela passou a administrar o Fundo de
educação, habitação e transporte urbano. Especificamente no caso do Desenvolvimento dos Transportes Urbanos, cujos recursos provinham
transporte urbano, os movimentos populares eclodiram de forma até principalmente da Taxa Rodoviária Única (TRU) e do Imposto Único
violenta, com diversos episódios de destruição de trens e estações dos sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IULCLG).
sistemas de trilhos, e também de ônibus urbanos. Com as reivindicações Assim, com a criação da EBTU e do Sistema Nacional de Transportes
baseadas em melhoria da qualidade e redução do custo (tarifa), a com- Urbanos, o governo federal articulou a sua ação para lidar com os
ponente de redução de custo era preponderante, em função do movi- elementos associados à crise internacional do petróleo, à dificuldade
mento geral de contenção da elevação do custo de vida. de realizações dos governos locais nos transportes urbanos e às prin-
O marco institucional do início da participação federal no setor de cipais reivindicações dos movimentos populares de transporte, prin-
transporte urbano foi a edição da Lei nº 6.261 de 14/11/1975, que cipalmente quanto à qualidade e à tarifa. Os projetos desenvolvidos
criou a EBTU e instituiu o Sistema Nacional de Transportes Urbanos adotando os princípios de eficiência (definição de modalidades e sis-
(SNTU). O governo federal passou a assumir a corresponsabilidade temas operacionais mais adequados às necessidades de transporte,
pelos transportes urbanos, em particular na formulação de políticas e condicionada aos recursos disponíveis) e de equidade (igualdade de
diretrizes, além de apoio técnico e financeiro. atendimento aos diversos extratos da população e de justiça social).
Em relação ao processo de crescimento acelerado e desordenado A criação da EBTU veio juntar-se a uma maior atuação do Grupo Exe-
das grandes cidades, a ação federal concentrou-se na criação de cutivo de Implantação da Política de Transportes - Geipot, do Minis-
mecanismos para planejamento conjunto do crescimento urbano e tério dos Transportes, na questão do transporte urbano, uma vez que
sua infraestrutura. Havia uma preocupação com o agravamento do este historicamente concentrara sua atuação no estudo dos proble-
“alastramento urbano” e com as tendências de maiores pressões pela mas estratégicos do transporte de cargas no país.
melhora das condições de mobilidade, que “...reforçará as tendências
de alteração na repartição modal em favor do automóvel, o que pode- Área de atuação da EBTU
rá comprometer os esforços no sentido da redução do consumo de Do ponto de vista espacial, foi definido, como objeto de atuação, os
combustíveis derivados de petróleo”. (EBTU, 1981). Por outro lado, corredores urbanos de transporte, definidos como “um conjunto de
era enfatizado que o transporte coletivo não se apresentava como vias e facilidades com aspectos físicos e operacionais próprios ao
alternativa ao transporte individual, em função da baixa qualidade de atendimento de uma determinada estrutura de demanda”. Foram
prestação do serviço, prevendo-se “medidas em favor do transporte identificados 63 corredores nas nove regiões metropolitanas, que res-
coletivo e restritivas ao uso indiscriminado do automóvel” (EBTU, pondiam, em 1976, por 31 milhões de viagens/dia de um total de 37
1981). Era destacada explicitamente a necessidade de garantir a prio- milhões. Estes corredores apresentavam uma divisão modal de via-
ridade ao transporte coletivo, visando a economia de combustível e gens motorizadas que era amplamente favorável ao transporte coleti-
de dispêndio de divisas e a redução de poluição ambiental. vo, que tinha 68% das viagens (62% nos ônibus e 6% nos demais
No caso do SNTU, ele foi constituído de forma ampla, abarcando a modos coletivos), contra 32% das viagens feitas em automóvel e táxi.
infraestrutura viária expressa e as de articulação com os sistemas viá- Foram definidos quatro níveis de comunidades urbanas a serem aten-
rios federal, estadual e municipal; os sistemas de transportes públicos didas, com a seguinte prioridade - regiões metropolitanas, demais
sobre trilhos, sobre pneus, hidroviários e de pedestres, operados nas capitais, aglomerados urbanos e cidades de porte médio. Conside-
áreas urbanas; as conexões intermodais de transportes; e a estrutura rando este público alvo, foram selecionadas como potencial de atua-
operacional, na forma do conjunto de atividades e meios estatais de ção nove regiões metropolitanas; 17 capitais; 14 aglomerados urba-
administração, regulamentação, controle e fiscalização que atuam dire- nos; e 86 cidades de porte médio. A ação da EBTU foi estruturada
tamente em cada modo de transporte, nas conexões intermodais e nas através da elaboração de estudos de curto, médio e longo prazo (Fon-
infraestruturas viárias. No campo institucional, o SNTU era composto seca, 1986), resumidos na tabela 3. Ao todo foram 17 planos de curto
no nível nacional pela EBTU e nos níveis estadual, metropolitano e prazo, nove planos de médio prazo e 12 planos de longo prazo.

79 80
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Tabela 3 Além desses programas específicos, o Ministério dos Transportes


Municípios atendidos com ações da EBTU preparou o Programa de Transportes Alternativos para Economia de
Recomendações Planos de Planos diretores Combustíveis, visando alterar a estrutura dos transportes de passa-
Município
para implantação reorganização do de transportes geiros e cargas no país. Ele foi focado na expansão de modalidades
imediata transporte coletivo urbanos de transporte de maior eficiência energética, em especial com estra-
(curto prazo) (médio prazo) (longo prazo) tégias que priorizassem o transporte ferroviário e hidroviário de carga
Aracaju/SE 1980 1982 e o transporte urbano de passageiros.
Barra Mansa/RJ 1981
A tabela a seguir, extraída do documento da EBTU (1981), mostra a divi-
Bauru/SP 1979 são modal das viagens nas regiões metropolitanas, observada em 1977
Belém/PA 1978 1980 e estimada para 1985 após a implantação das ações preconizadas no
Campina Grande/PB 1980 1981 1982 Programa de Transportes Alternativos para Economia de Combustíveis.
Caxias do Sul/RS 1978 1979 Tabela 4
Cuiabá/MT 1979 Regiões metropolitanas: demanda diária de viagens motorizadas e sua
Distrito Federal/DF 1979 1979 repartição modal
Florianópolis/SC 1977 1978 1978 19771 19852
Modo
Fortaleza/CE 1978 1981 Viagens/dia (milhões) % Viagens/dia (milhões) %
Ipatinga/MG 1978 Automóvel 10.448 29,1% 10.655 20,0%
João Pessoa/PB 1983 Táxi 1.214 3,4% 2.664 5,0%
Juiz de Fora/MG 1977 Ônibus 21.807 60,8% 29.424 55,2%
Lages/SC 1980 Troleibus 290 0,8% 2.000 3,8%
Maceió/AL 1977 1980 1982 Ferrovias urbanas 1.483 4,1% 8.235 15,5%
Manaus/AM 1983 Barcas 174 0,5% 303 0,6%
Natal/RN 1981 1982 1982 Outros 470 1,3% 0,0%
Pelotas/RS 1978 1979 Total 35.886 100,0% 53.281 100,0%
Recife/PE 1977 1982 1. Valores observados.
2. Meta do programa.
Salvador/BA 1978 1982 Fonte: Geipot (1985).
São Luiz/MA 1977
Os resultados esperados com a realização do programa de investi-
Volta Redonda/RJ 1981
mentos eram a redução do consumo de gasolina por automóveis e de
22 17 9 12 diesel pelos ônibus, e o aumento da produtividade e da velocidade
média dos ônibus face à introdução de faixas e pistas seletivas.
A ação da EBTU foi pautada por um conjunto de programas específi- As ações citadas anteriormente tinham como objetivo central o
cos, incluindo a melhoria nos trens de Porto Alegre, São Paulo, Rio de aumento da oferta de transporte coletivo, gerando, portanto, melhoria
Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza; a expansão dos na prestação dos serviços. Em relação às demandas dos movimentos
metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro; a expansão dos sistemas de populares de transporte por melhor qualidade e menor tarifa, o gover-
trólebus existentes em São Paulo, Santos, Araraquara e Recife e no federal articulou sua ação de diversas formas.
implantação de novos sistemas em Ribeirão Preto e Campina Grande;
a ampliação da infraestrutura viária associada ao transporte público, Quanto aos custos para os usuários, o governo federal adotou distintas
como corredores estruturais, acessos, anéis viários e vias alimentado- estratégias em função do grau de capacidade de atuação nos distintos
ras; a racionalização do transporte público: projetos de capacidade e modos de transporte urbano. Nos sistemas ferroviários em que exercia
segurança do tráfego, para reduzir acidentes e congestionamentos; e diretamente a gestão e operação, o governo federal tratou de iniciar
a construção de terminais de passageiros e cargas. programas de investimento na qualificação do serviço, além de adotar

81 82
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

uma política de elevado subsídio à tarifa, cobrando valores inferiores ao não havia, na verdade, uma política nacional com diretrizes e linhas de
custo operacional e, em muitos casos, inferiores aos valores cobrados ação definidas para orientar a ação da própria EBTU neste setor”.
pelas tarifas dos sistemas de ônibus das localidades.
Como consequência da estratégia de financiamento adotada, a segunda
Nos demais sistemas de transporte urbano, em que não exercia dire- metade da década de 1980 observa uma crescente pressão dos encar-
tamente a gestão e operação, o governo federal estruturou a ação no gos financeiros, com uma redução da participação dos investimentos no
sentido de elaborar estudos e investir em, ou ajudar a financiar, inter- dispêndio global. A partir de 1985, segundo Fagnani e Cadaval (1988), “a
venções de melhorias dos sistemas de transporte. Em relação à tarifa, estratégia do governo procura “caracterizar o transporte urbano como
foi definida uma metodologia de cálculo tarifário e o valor cobrado uma questão local, atuando o governo federal em caráter complementar
passou a ser controlado por um órgão do governo federal (Conselho às ações empreendidas pela municipalidade, organismos metropolitanos
Interministerial de Preços - CIP2). e estaduais, cabendo ao estado o papel de elo de ligação entre as esfe-
ras federal e municipal” (Brasil, Presidência da República, Seplan, 1985,
Ainda em relação ao tema do custo da tarifa e seu impacto nas popula-
p. 177). Nesse sentido, um dos objetivos prioritários é “consolidar o sis-
ções de baixa renda, no final deste período foi criado o vale-transporte
tema nacional de transportes urbanos, através de estruturações, reorga-
(em 1985 em forma opcional e em 1987 em forma obrigatória). A legisla-
nização e aperfeiçoamento das entidades que compreendem os siste-
ção do vale-transporte obriga todo empregador a adquirir certa quanti-
mas locais” (Brasil, Seplan-PR, 1985, p. 181).
dade de passes de transporte coletivo e repassar aos empregados,
descontando um valor equivalente a no máximo 6% do salário. Desta Em função dos elementos descritos anteriormente, durante o final da déca-
forma, parte do custo do transporte coletivo foi repassada do orçamento da de 1980, a EBTU transformou-se numa agência de fomento, priorizando
individual dos trabalhadores para os empregadores e para o próprio ações de baixo custo, visando à racionalização dos sistemas existentes,
governo federal, na medida em que parte do valor gasto com o vale- sobretudo na infraestrutura viária do transporte de ônibus, além de atuar
transporte poderia ser deduzida dos impostos pagos pelo empregador. na organização e capacitação dos órgãos locais de controle e fiscalização.

Resultados da ação federal


A evolução da tecnologia nos ônibus brasileiros
A atuação do governo federal no âmbito do transporte urbano na pri-
meira metade da década de 1980 apresentou maior relevância em Três alterações na tecnologia dos ônibus brasileiros foram muito
função dos objetivos da política econômica. Segundo Fagnani e relevantes para a constituição no país do sistema regular de grande
Cadaval (1988), esta maior atuação federal no setor ocorreu como abrangência e flexibilidade.
“instrumento de transformação da matriz energética, dado o segundo O primeiro salto tecnológico deu-se com a criação de um ônibus novo,
choque do petróleo, e da política monetária e cambial do governo, no desenvolvido no Brasil, o Padron. Conforme resume Stiel (2001), o veículo
contexto de recrudescimento da crise econômica”. No aspecto insti- foi desenvolvido com base em convênio celebrado entre várias entidades
tucional os autores salientam que “evidencia-se, desde o início, a públicas e privadas: a Secretaria de Planejamento da Presidência da
debilidade da EBTU, incapaz de viabilizar seus objetivos precípuos. República (Seplan) e o Ministério dos Transportes, o Ipea, a EBTU, a
Dada sua fragilidade, preconizou ações de baixo custo e de reduzido Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Comissão Nacional de
impacto que não atritassem com outros órgãos de governo que, para- Regiões Metropolitanas e de Políticas Urbanas (CNPU) e o Geipot.
doxalmente, deveriam subordinar-se às duas diretrizes”. Apoiaram também o desenvolvimento do projeto a Associação Nacional de
Transportes Públicos e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas S/A de São
De fato, conforme apontado por Barat (1986), “A montagem de um sistema Paulo. Este grande arco de participantes demonstra claramente o grande
institucional para apoiar o planejamento e o financiamento dos transportes interesse estratégico no desenvolvimento deste novo produto.
urbanos nas principais cidades brasileiras, tendo a EBTU como entidade- Entre 1978 e 1979, o Geipot desenvolveu as especificações técnicas da
chave desse processo, trouxe consigo a emergência de inúmeros proble- carroceria e dos componentes mecânicos do chassi e as repassou para
mas de natureza legal e institucional. Por outro lado, havia dificuldades os fabricantes que aderiam ao projeto. O novo veículo tinha transmissão
também ligadas à inadequação das estruturas institucionais e legais de automática, sistema de três freios independentes, direção hidráulica e
natureza local, para apoio às atividades da EBTU (...) Em outras palavras, níveis mais baixos de emissão de poluentes. Sua capacidade nominal era
de 105 passageiros, bem superior à dos ônibus comuns da época. Foram
2. O CIP foi criado em 29/08/1968 pelo Decreto Federal 63.196, tendo sido extinto em 1991.

83 84
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Da Constituição Federal de 1988 até o Plano Real de 1994 dades para as administrações municipais. A responsabilidade sobre o
transporte público local passou explicitamente para a esfera munici-
O final da década de 1980 e início da década de 1990 apresentam um
pal. Segundo Belda (1988)
quadro bastante distinto daquele de meados dos anos 1970, que pro-
piciaram a entrada do governo federal na questão do transporte urba- a responsabilidade quanto à prestação de serviços de transportes de
passageiros aparece como sendo dos estados e municípios....
no. O início da década de 1990 já apresentava taxas de crescimento
(mas)....o governo federal continua a ter a função normativa sobre
populacional inferiores àquelas registradas nos anos 1960 e 1970. A
todo serviço de transporte coletivo nas cidades, pois o ...(artigo 21) ...
redução do ritmo da atividade econômica nos anos 1980 e 1990 con- indica que é atribuição da União instituir as diretrizes para o desenvol-
tribuiu para a “contenção” dos índices de mobilidade urbana, garan- vimento do transporte urbano.
tindo uma sobrevida à infraestrutura instalada e reduzindo a pressão
sobre o poder público para expansão de oferta. Em relação à crise Dentre estas alterações destacam-se também o fechamento da EBTU
internacional do petróleo, a década de 1990 apresenta uma normali- e do Geipot, retirando do poder federal qualquer capacidade de pla-
zação dos preços do petróleo, a redução do consumo de derivados nejamento e ação na área do transporte urbano. O início da década
do petróleo e o aumento da produção nacional desta matéria-prima. de 1990 marca, assim, a formalização da retirada do governo federal
Neste período, também são implantadas diversas medidas que contribu- como ator principal na questão dos transportes urbanos.
íram para uma alteração da matriz energética nacional, com redução da
dependência dos derivados de petróleo. Entre estas medidas, pode-se Transporte público: legalidade e ilegalidade
destacar o programa do Proálcool, que desenvolveu uma alternativa de
A natureza do transporte público – de atendimento a uma necessidade de
combustível não derivado do petróleo para os automóveis, possibilitando circulação de muitas pessoas – fez com que ele surgisse, em todas as socie-
a redução do consumo de gasolina, independente dos projetos da EBTU. dades, na forma de indivíduos dirigindo pequenos veículos, como um negócio
As maiores transformações aconteceram com a Constituição de 1988. privado de pequena escala. Com o crescimento das cidades e das necessida-
des de transporte, tanto a quantidade de veículos quanto o seu tamanho
A alteração da estrutura tributária vigente, com aumento da capacida- médio tenderam a crescer. A partir de certo ponto, a oferta de transporte cole-
de de arrecadação dos governos locais, colocou novas responsabili- tivo começou a tornar-se caótica, principalmente em grandes cidades, levan-
do à sua reorganização. Esta mudança ocorreu na maior parte dos casos pelo
inicialmente construídos cinco protótipos, envolvendo as maiores uso predominante de veículos maiores (com cerca de 40 assentos e capaci-
indústrias atuantes no país: Marcopolo, Volvo, Mercedes, Caio e Scania. dade máxima de 70 a 80 pessoas), agrupados em empresas ou cooperativas
A operação experimental dos veículos foi efetuada em linhas de de operadores, submetidos a algum grau de controle por parte do estado.
transportes coletivos durante o período de 28/07/1980 e 27/03/1981, em No caso do Brasil esta mudança ocorreu a partir dos anos 1940, no Rio de
cinco regiões metropolitanas: São Paulo, Porto Alegre, Recife, Belo Janeiro e em São Paulo e foi sendo progressivamente ampliada, até criar
Horizonte e Rio de Janeiro. A primeira operação regular com ônibus no país um dos maiores sistemas de transporte público por ônibus do
Padron foi feita em Recife, em 1981. A partir de então seu uso ampliou-se mundo. O sistema experimentou grande crescimento no período entre
muito, passando a ser utilizado em todo o país. 1960 e 1990, em função do crescimento urbano das maiores cidades do
país, conforme explicitado no início deste artigo.
O segundo salto tecnológico ocorreu com a criação do ônibus
articulado (dois corpos separados por um pequeno salão com “sanfona” Ameaças ao modelo regulamentado
flexível para facilitar as curvas). Sua primeira aparição pública ocorreu A partir do início da década de 1990, com as mudanças estruturais e econô-
em 1978 durante o I Congresso Nacional de Transportes Públicos, micas no nível global e dentro do país, surgiu, com grande intensidade, um
organizado pela Associação Nacional de Transportes Públicos - ANTP. movimento de oferta ilegal de transporte coletivo de pequena capacidade,
Este veículo podia ter capacidade entre 150 e 180 passageiros. na forma de kombis e pequenas vans. Logo denominado de “transporte
O terceiro salto tecnológico foi a criação do ônibus biarticulado (três clandestino”, este novo sistema cresceu exponencialmente, a ponto de cap-
tar até 20% da demanda do sistema legalizado nas grandes cidades. Pes-
corpos), em 1991, por encomenda feita à Volvo pela Urbs, responsável pela
quisa realizada em Recife, em 1999, mostrou que os veículos kombi e vans
operação do sistema de ônibus de Curitiba. Os primeiros veículos atuando na região metropolitana transportavam 272 mil passageiros por dia,
circularam em outubro de 1992 no corredor Boqueirão. Estes veículos têm dos 1,4 milhão de passageiros totais (19,4%) (Cavalcanti, 2000). Foi concluído
capacidade de até 250 passageiros, mas suas características de tamanho no estudo que este volume de passageiros havia praticamente triplicado em
e peso fazem com que seu uso se limite a corredores de grande demanda. relação ao observado em 1994, demonstrando a força do fenômeno.

85 86
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Do Plano Real (1994) aos dias de hoje (2009) para o Desenvolvimento Econômico - CIDE, saída das receitas da
indústria de petróleo e sua utilização como mecanismo de manu-
A partir do plano de estabilização econômica implantado em 1994
tenção de preços mesmo com flutuações do preço internacional
(Plano Real), a maior preocupação do governo federal passou a ser o
do petróleo.
desenvolvimento econômico, considerando que uma dos principais
obstáculos era o processo inflacionário que assolava o país até então. Esta política de incentivo à aquisição de veículos individuais, associa-
Assim, no correr das décadas de 1990 e 2000, o governo federal pas- da ao período de crescimento econômico observado no início dos
sou a atuar de forma decisiva no incentivo ao uso do transporte indivi- anos 2000, acabou contribuindo para a volta da questão dos trans-
dual, visto como importante setor econômico no Brasil, gerador de portes urbanos para a pauta política, em função da elevação dos
empregos e de uma “onda” de crescimento econômico em diversos congestionamentos e, consequentemente, da piora das condições de
segmentos associados. As sérias consequências para a mobilidade mobilidade urbana no Brasil.
urbana advindas desta ação (congestionamento, poluição, acidentes)
No entanto, o governo federal somente passou a se envolver de
pareceram não sensibilizar o governo federal. Entre as ações mais des-
forma mais acentuada com o tema na segunda metade da década
tacadas aparece a introdução do veículo popular em 1993, com as
de 2000, acenando com investimentos federais no setor de mobili-
reduções tributárias que a acompanharam, a contenção dos preços
dade urbana dentro da perspectiva de superação de gargalos para
dos combustíveis através da criação da Contribuição Independente
megaeventos esportivos patrocinados pelo país, como a realização
dos jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro (2007), a candidatura
à realização dos Jogos Olímpicos de 2016 e a realização da Copa do
Após 30 anos de operação contínua e de grande rentabilidade, o sistema Mundo de futebol de 2014.
regulamentado de transporte coletivo por ônibus enfrentou seu primeiro
concorrente real. Como salientam Nassi et all (2003), o serviço regular de
transporte não servia adequadamente aos interesses dos usuários, abrindo Corredores de ônibus no Brasil
a possibilidade de uma oferta alternativa para superar as deficiências. Torna-
As figuras 6 e 7 mostram dados do mercado de ônibus no Brasil. A
va-se claro, independente da análise da legalidade do novo transporte, que
o transporte regular tinha criado um descontentamento relacionado à sua figura 7 mostra que o licenciamento de ônibus no país (urbanos e
baixa qualidade de serviços, abrindo amplo espaço para a entrada de um rodoviários) passou por ciclos de grande crescimento (1972-77; 1986-
concorrente. O processo de crescimento do transporte clandestino foi extre- 89) e de estagnação ou queda (1979-85). A figura 8 mostra a frota
mamente tumultuado, marcado por violência física nas ruas (disputa de existente de ônibus (urbanos) em regiões metropolitanas no período
passageiros e linhas) e queima de ônibus, com intervenção policial frequen- 1974-1978, de aumento de veículos.
te. Na mídia, o assunto dividiu-se entre os que apoiavam o novo transporte
– usuários de periferia e políticos associados ao novo negócio – e aqueles Figura 6
que o criticavam, como os operadores do transporte regular, as autoridades Licenciamento de ônibus no Brasil, 1957-2007
de transporte e entidades civis como a Associação Nacional de Transportes
Públicos - ANTP. O transporte público no Brasil viveu então mais uma etapa
de alternância dos ciclos de oferta de transporte, quando o ciclo estável do
transporte regulamentado operado por empresas passou a ser atacado
pelos defensores do ciclo operado por indivíduos em pequenos veículos,
sem regulamentação (Vasconcellos, 2002).
Nos anos em que ocorreu esta tentativa de substituição de um modelo pelo
outro, as autoridades públicas e os defensores do modelo tradicional conse-
guiram uma crescente organização na sua defesa do modelo existente.
Na maioria dos casos, os operadores do transporte clandestino foram
sendo paulatinamente absorvidos pelo sistema regular, como serviços
alimentadores do sistema tradicional (operando nas áreas periféricas). A
única diferença referiu-se à forma de inserção: como contratados dos
operadores tradicionais ou do governo (como outros operadores do sis-
tema já existente). Fonte: Anfavea 2009.

87 88
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Figura 7 zonte entre 1977 e 1980. Entre 1985 e 1988, são implantados
Frota de ônibus em áreas metropolitanas, 1974-78 corredores em Campinas, Goiânia, Recife, São Paulo e Região Metro-
politana de São Paulo (corredor ABD). Após 1991, há um longo perío-
do sem novos corredores até que, em 1999 e 2001, são feitos novos
corredores em Manaus e Fortaleza; em São Paulo, o projeto Passa-
Rápido, este um dos maiores projetos da história dos corredores
(embora sem as características de corredores completos, com ultra-
passagem entre veículos). Mais recentemente, apenas dois casos
novos surgiram – o corredor da avenida perimetral de Porto Alegre em
2004 e a Linha Verde de Curitiba em 2009.
Figura 9
Implantação de corredores de ônibus no Brasil

Fonte: Geipot (1985).

Até o início da década de 1990, o uso do ônibus cresceu na propor-


ção da população urbana. Este também foi o período no qual ocorre-
ram as implantações da maioria dos corredores. A partir de 1990 e até
o ano 2000, ocorreu uma redução acentuada no uso de ônibus em
comparação ao crescimento da população urbana do país (figura 8).
Figura 8
População urbana e venda de ônibus no Brasil, 1980-2000

A figura 10 torna mais claro o ritmo descontinuado da implantação


dos corredores de ônibus no Brasil.
Figura 10
Corredores de ônibus no Brasil, extensão acumulada 1974-2009

Fontes: IBGE 2005 (população) e Anfavea, 2009 (vendas de veículos).

Quando o uso dos ônibus é comparado à implantação de corredores


de ônibus no país, torna-se claro que o período entre 1974 (primeiro
corredor de Curitiba) e 1991 é aquele que concentra a maior quanti-
dade de corredores (figura 9). Após o surgimento de Curitiba, seguem-
se os casos de corredores em Porto Alegre, São Paulo e Belo Hori-

89 90
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

A tabela 5 e a figura 11 mostram a extensão dos corredores em Figura 11


1997 e sua relação com o sistema viário das cidades. Observa-se, Corredores de ônibus existentes no Brasil em 2007
pela tabela, que os corredores (em sua totalidade) usavam ape-
nas 0,7% do comprimento das vias das cidades. Considerando
apenas as vias nas quais os ônibus circulam, o valor é de apenas
4,4% do comprimento disponível. Estes valores tornam claro que,
no Brasil, não há um grande sistema de prioridade ao transporte
público por ônibus. A imagem transmitida pelo país no plano
internacional pode se justificar apenas pelo caso de Curitiba. A
estas limitações deve ser acrescentado que os corredores são,
em sua maioria, arranjos físicos limitados, em que os ônibus
ganham uma “semi-preferência” junto à calçada direita ou uma
preferência limitada junto ao canteiro central. Não há um sistema
amplo de gestão da operação dos veículos que possa atuar sobre
o seu desempenho no trânsito e a qualidade do seu atendimento
aos usuários. Não há faixa de ultrapassagem que aumente a
capacidade e permita a operação de linhas expressas ou semiex-
pressas. Em consequência, o serviço fica muito limitado na sua
Fonte: ANTP (2006).
produtividade e confiabilidade, reduzindo consideravelmente sua
atratividade: no grande conjunto de corredores da cidade de São
Paulo, os ônibus circulam a 14 km/h por hora nos horários de Corredores de ônibus na Região Metropolitana de São Paulo
pico, representando baixíssima qualidade.
A Região Metropolitana de São Paulo, a maior do Brasil, teve um histórico
Tabela 5
rico relativo aos corredores de ônibus que, ao final, gerou impactos muito
Extensão dos corredores em relação ao sistema viário, 2007
pequenos. Já na década de 1970, a crise do petróleo contaminou os planos
Cidade Extensão (km)
% do sistema % das vias usadas pelo gerais de transporte, gerando uma série de recomendações para a garantia
viário total transporte público da circulação prioritária dos ônibus. Em 1980, ocorreu a primeira implanta-
Belo Horizonte 32 0,8 4,5 ção, de um corredor relativamente curto (Paes de Barros), que fazia parte de
Campinas 18,8 0,8 4,6 uma infraestrutura mais ambiciosa, que nunca se concretizou. O processo
passou por um momento importante com a implantação, em 1988, do cor-
Curitiba 72 1,7 9,8 redor ABD, cruzando os municípios de São Paulo, São Bernardo do Campo,
Fortaleza 4 0,1 0,5 Santo André e Diadema, e que até hoje é um dos melhores do Brasil. Na
Goiânia 15 0,6 3,3 mesma época (1987), foi inaugurado o corredor Nove de Julho - Santo
Amaro, que gerou grande debate em função do seu possível impacto na
Manaus 34 1,0 5,7
deterioração do uso do solo lindeiro, tornando-se um exemplo negativo que
Porto Alegre 46,5 1,5 8,5 esfriou o ânimo das autoridades para implantar novos corredores. Apenas na
Recife 10 0,3 1,7 década de 2000, a prefeitura do município de São Paulo mudou o cenário,
Rio de Janeiro 15 0,2 1,0 implantando grande quantidade de corredores, mas que ficaram limitados
em seu potencial pela falta de espaço de ultrapassagem entre ônibus e de
São Paulo (RMSP) 139,7 0,7 4,0
reorganização da oferta, ocasionando baixos níveis de produtividade. Pode-
Total ou média 387 0,7 4,4 se concluir, pela análise do caso, que a política pública de priorização do
Fonte: ANTP (2006). transporte por ônibus na região mostrou-se ao final extremamente tímida,
limitada pela oposição das elites e da classe média usuária de automóvel,
pela oposição dos operadores temerosos de queda na sua lucratividade e
pela falta de espaço físico para implantar esquemas de alta prioridade para
os ônibus sem causar grandes prejuízos aos usuários de automóvel.

91 92
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ... Revista dos Transportes Públicos - ANTP - Ano 33 - 2010 - 3º quadrimestre

Conclusões Um segundo motivo está relacionado ao modelo brasileiro de regulamen-


tação do transporte público. Se, por um lado, a regulamentação permitiu
Os dados e informações analisadas permitem chegar a conclusões a profissionalização dos serviços, por outro lado, deu aos operadores das
importantes sobre as vantagens e as limitações da política de trans- grandes cidades condições legais de resistirem a alterações nas suas
porte público urbano no Brasil. condições de operação. Esta capacidade de resistência parece ter sido
A primeira conclusão diz respeito ao processo de regulamentação, um dos entraves mais relevantes para a integração dos sistemas e a
que é diferente daquele verificado em outros países em desenvolvi- implantação de corredores de ônibus. De fato, integrar sistemas e corre-
mento. A regulamentação do transporte público no Brasil levou à dores alteram as distâncias percorridas, a frota utilizada e a receita. Fren-
criação de um setor empresarial amplo e dinâmico, que passou a te às incertezas sobre as consequências de alterações na operação, na
adotar procedimentos avançados de organização administrativa e sua rentabilidade e posição de mercado, os empresários tornaram-se
operacional. Incentivado pelo intenso crescimento da população adversários de muitos projetos, inviabilizando-os na prática.
urbana e acompanhado pelo crescimento da indústria nacional de Um terceiro motivo, mais indireto, refere-se às políticas de incentivo ao
ônibus, o setor atendeu a demandas crescentes. Na prática, as cida- transporte individual por automóvel e, nos últimos anos, por motocicle-
des médias e grandes passaram a contar com serviços com grande tas. As políticas de apoio ao automóvel, aplicadas ininterruptamente no
cobertura espacial e temporal, de confiabilidade média ou alta, com período entre 1960 e 2008 (embora com níveis diferentes de apoio) e
veículos de qualidade razoável para os países em desenvolvimento. acompanhadas da precariedade do transporte por ônibus, ajudaram a
No entanto, as formas de regulamentação, as características da minar crescentemente a imagem do transporte público, transformando-
demanda e a fragilidade do estado permitiram uma grande concentra- o em um uso “para quem ainda não conseguiu seu automóvel”. Adicio-
ção de propriedade, havendo muitas empresas com mais de mil ônibus nalmente, dado o crescimento do número de automóveis, sistemas de
e algumas de até 10 mil ônibus, dentre os cerca de 120 mil utilizados prioridade para ônibus passaram a ser vistos como impedimentos à sua
em todo o sistema. Estas condições permitiram também a formação de fluidez, implicando em riscos políticos de conflitos com uma classe
monopólios geográficos, protegidos por contratos de longo prazo, com média cada vez mais influente nas decisões das políticas públicas.
cláusulas de garantia do equilíbrio econômico-financeiro. Neste aspecto, o caso da maior cidade do país é exemplar: após apoiar
a implantação de um dos melhores corredores de ônibus do Brasil – o
Os dados analisados permitem concluir que, salvo no caso de Curiti- corredor ABD – nada mais de alta qualidade foi feito. A imagem nega-
ba, nenhuma cidade brasileira organizou um sistema integrado ope- tiva deixada pelo corredor Santo Amaro - Nove de Julho, implantado
rando em corredores, de forma ampla. Nos outros casos – São Paulo, em 1984, serviu de argumento para bloquear outras iniciativas, motivo
Belo Horizonte, Goiânia, Recife, Fortaleza, Campinas, Manaus – ocor- este que passou a atuar juntamente com os demais já mencionados.
reram implantações limitadas no espaço e com baixa produtividade. Mesmo a implantação dos Passa-Rápido, no início da década de 2000,
Se, no período caracterizado pela crise do petróleo (décadas de 1970- não alterou o quadro, uma vez que se tratou de um projeto limitado que
80), foram implantados vários corredores, no período seguinte as não permitiu o salto de qualidade que poderia mudar a opinião pública.
implantações minguaram. Considerando as dimensões das cidades
Considerando estes fatos e as tendências atuais de queda no uso do
brasileiras e a demanda de passageiros de transporte público, o resul-
transporte público e aumento no uso do transporte individual (automó-
tado final foi medíocre: em 2007, os corredores existentes não corres-
veis e motocicletas), pode-se afirmar que a história dos corredores de
pondiam a mais do que 4% das vias utilizadas pelos ônibus e o maior
ônibus do Brasil, após viver seu “clímax’ com o sistema de Curitiba (e de
deles não chegava a transportar 200 mil passageiros por dia. casos isolados de alguns corredores de boa qualidade em outras cida-
Há vários motivos que podem estar relacionados a este resultado des), já está contada. A perspectiva de implantação de novos projetos de
medíocre. grande envergadura e consistência é cada vez menor, salvo quando
incentivados por eventos esporádicos como a realização da Copa do
Um primeiro motivo pode ser identificado na saída do governo federal Mundo de Futebol em 2014. Mas, mesmo neste caso, não há garantia de
do tema do transporte público urbano, causada pela Constituição de que os projetos sejam apropriados ao seu objetivo principal, que é o de
1992 e pela extinção da EBTU e do Geipot. Estas mudanças parecem garantir transporte público acessível de qualidade para quem dele preci-
ter afetado as cidades com menos recursos e que, a partir do fim do sa. Também não é garantia de que o sistema de transporte público por
apoio federal, enfrentaram muitas dificuldades em implantar os proje- ônibus, que sempre foi e será o principal sistema de qualquer sociedade,
tos por conta própria. seja planejado, implantado e operado com qualidade e prioridade.

93 94
Política Nacional de Transporte Público no Brasil: organização e ...

Referências bibliográficas
Anfavea. Anuário estatístico da indústria automotiva brasileira. São Paulo, 2009.
ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos. Projeto TEU – Transporte
Expresso Urbano, estudo sobre o potencial do TEU no Brasil. São Paulo, 2006.
ANTP. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana, relatório final. São Paulo, 2008.
Barat, Joseph. Questão institucional e financiamentos dos transportes urbanos no
Brasil: o caso da Região Metropolitana de São Paulo. Transportes Coletivos Urba-
nos – Cadernos Fundap, ano 6, nº 12, São Paulo, 1986.
Belda, Rogério. O transporte na nova Constituição: uma descentralização descentra-
lizada. Revista dos Transportes Públicos 42, 1988, p. 25-27.
Brasil, Presidência da República, Seplan. I Plano Nacional de Desenvolvimento da
Nova República, Brasília, 1985.
Brasileiro, A. e Henry, Etienne. Viação ilimitada – os ônibus nas cidades brasileiras.
São Paulo: Cultura, 1999.
Cavalcanti, Cesar. A situação do transporte coletivo na RMR, com foco em Recife.
In: ANTP. O transporte clandestino no Brasil. Série Documentos Setoriais, São
Paulo, 2000, p. 47- 55.
Denatran – Departamento Nacional de Trânsito. Estatísticas da frota de veículos no
Brasil. www.denatran.gov.br.
EBTU – Empresa Brasileira de Transportes Urbanos. Estudo da demanda de transportes
urbanos: diagnóstico 1981: prognóstico 1985-90. Brasília: Geipot, 1981.
Fagnani, E. e Cadaval, M. A política federal de transporte coletivo nos anos 80.
Revista dos Transportes Públicos 42, 1988, p. 43-58.
Fonseca, J. Marques. Considerações sobre a demanda por transporte coletivo nas
áreas urbanas e o emprego de modelos para a sua previsão. Dissertação de Mes-
trado em Engenharia de Transportes, COPP-UFRJ, Rio de Janeiro, 1986.
Geipot. Estudo da demanda do transporte urbano no Brasil. Brasília, 1985.
IBAM – Instituto de Administração Municipal. Evolução demográfica dos municípios das
regiões metropolitanas brasileiras, segundo a base territorial de 1997. Rio de Janei-
ro, 2000.
IBGE. Perfil dos municípios brasileiros, Brasília, 2005.
Nassi, C. D., Balassiano, R., Braga, A. F. y Lopes, D. P. Operação de vans e
kombis no municipio do Rio de Janeiro. Clatpu XII, Bogotá, 2003.
Orrico, Rômulo D., Brasileiro, Anísio, Santos, Enilson M. e Aragão, Joaquim.
Ônibus urbano – regulamentação e mercados. Brasília: LGE, 1986.
Stiel, Waldemar Correia. Ônibus – Uma história do transporte coletivo e do desenvol-
vimento urbano no Brasil, 2001.
Transporte urbano, espaço e equidade – análise das políticas públicas. São Paulo:
Annablume, 2000.
Vasconcellos, Eduardo A. Transporte urbano nos países em desenvolvimento –
reflexões e propostas. São Paulo: Annablume, 2002.

95

Você também pode gostar